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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X A IMAGEM DE EVA REVISITADA PELA ARTE GRÁFICA DO SÉCULO XX Daniela Queiroz Campos 1 Resumo: Entre a virgem e a pecadora, entre reprodução e a eroticidade, entre Eva e Maria. As Garotas do Alceu enquadram-se como Evas. A coluna Garotas do Alceu circulou entre 1938 e 1964 na afamada revista O Cruzeiro. Entre comportamento e humor as personagens de Alceu Penna se vestiram, ou melhor, se despiram como Eva em inúmeras colunas. Maria e Eva uma questão imagética muito bem posta em meados dos séculos XX. As imagens femininas na imprensa brasileira daquela época por vezes parecem repletas da dualidade entre estas duas imagens cristãs. A dualidade imagética feminina. Entre Evas e Marias. Entre Vênus Celestiais e Vênus Vulgares. A Vênus da Antiguidade, marcadamente nua, fora desencontrando lugar nos séculos subsequentes. A Idade Média condenara o nu e com ele a beleza desnuda de Vênus. A nudez feminina fora reinventada, mais tarde, no corpo de Eva. As personagens da coluna estudada revisitam as imagens de tantas Evas marcadamente sedutoras e eróticas. Palavras-chave: Imagem, Eva, Arte gráfica. Um mundo de papel imprenso O mundo do papel, o mundo da imprensa. O objeto de pesquisa circulou em meio a tantas outras páginas periódicas editadas no Brasil. Estas página, tiveram o cotidiano como pano de fundo e como meio. As imagens que analiso não foram pintadas à óleo sobre tela, nem sequer foram esculpidas em carara. Foram sim gravadas com tinta em papel imprensa. Minhas fontes são revistas – pontualmente, o periódico de circulação semanal e nacional, O Cruzeiro. Em especial, uma coluna de humor e comportamento: a coluna Garotas do Alceu. A coluna de Alceu Penna era uma imagem de verso e reverso, a coluna Garotas, não alcançara o publico circulando em páginas soltas. Este era integrante da revista O Cruzeiro. As páginas da revista não se apresentam dissociadas das páginas das colunas Garotas, do mesmo modo como encontram-se extremamente associadas as páginas periódicas que vinham sendo impressas naquele país do passado. No dia 10 de dezembro de 1928 chega às bancas O Cruzeiro. O primeiro número da revista tem seus 50 mil exemplares esgotados já no primeiro dia de circulação. A revista foi vendida nas principais cidades brasileiras, de norte a sul do país, graças a caminhões, barcos, trens e até a um bimotor. A revista já em sua primeira edição fora comercializada do Rio Grande do Sul até a Amazônia. Todavia, esta era inteiramente impressa em Buenos Aires e “Como se quisesse esbanjar 1 Informe sobre a afiliação do/a autor/a, incluindo instituição de origem, cidade e país.

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

A IMAGEM DE EVA REVISITADA PELA ARTE GRÁFICA DO SÉCULO XX

Daniela Queiroz Campos1

Resumo: Entre a virgem e a pecadora, entre reprodução e a eroticidade, entre Eva e Maria. As Garotas do Alceu enquadram-se como Evas. A coluna Garotas do Alceu circulou entre 1938 e 1964 na afamada revista O Cruzeiro. Entre comportamento e humor as personagens de Alceu Penna se vestiram, ou melhor, se despiram como Eva em inúmeras colunas. Maria e Eva uma questão imagética muito bem posta em meados dos séculos XX. As imagens femininas na imprensa brasileira daquela época por vezes parecem repletas da dualidade entre estas duas imagens cristãs. A dualidade imagética feminina. Entre Evas e Marias. Entre Vênus Celestiais e Vênus Vulgares. A Vênus da Antiguidade, marcadamente nua, fora desencontrando lugar nos séculos subsequentes. A Idade Média condenara o nu e com ele a beleza desnuda de Vênus. A nudez feminina fora reinventada, mais tarde, no corpo de Eva. As personagens da coluna estudada revisitam as imagens de tantas Evas marcadamente sedutoras e eróticas. Palavras-chave: Imagem, Eva, Arte gráfica. Um mundo de papel imprenso

O mundo do papel, o mundo da imprensa. O objeto de pesquisa circulou em meio a tantas

outras páginas periódicas editadas no Brasil. Estas página, tiveram o cotidiano como pano de fundo

e como meio. As imagens que analiso não foram pintadas à óleo sobre tela, nem sequer foram

esculpidas em carara. Foram sim gravadas com tinta em papel imprensa. Minhas fontes são revistas

– pontualmente, o periódico de circulação semanal e nacional, O Cruzeiro. Em especial, uma coluna

de humor e comportamento: a coluna Garotas do Alceu.

A coluna de Alceu Penna era uma imagem de verso e reverso, a coluna Garotas, não

alcançara o publico circulando em páginas soltas. Este era integrante da revista O Cruzeiro. As

páginas da revista não se apresentam dissociadas das páginas das colunas Garotas, do mesmo modo

como encontram-se extremamente associadas as páginas periódicas que vinham sendo impressas

naquele país do passado.

No dia 10 de dezembro de 1928 chega às bancas O Cruzeiro. O primeiro número da revista

tem seus 50 mil exemplares esgotados já no primeiro dia de circulação. A revista foi vendida nas

principais cidades brasileiras, de norte a sul do país, graças a caminhões, barcos, trens e até a um

bimotor. A revista já em sua primeira edição fora comercializada do Rio Grande do Sul até a

Amazônia. Todavia, esta era inteiramente impressa em Buenos Aires e “Como se quisesse esbanjar 1 Informe sobre a afiliação do/a autor/a, incluindo instituição de origem, cidade e país.

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competência, até nos principais pontos de venda de Buenos Aires e Montevidéu havia repartes da

revista – da mesma edição em português que circulava no Brasil” (MORAES, 1994, p.187).

A revista se coloca entre as mais compradas e lidas do país. “Durante alguns anos, a revista

O Cruzeiro esteve á frente de todas as publicações do gênero no Brasil” (NETTO, 1998, p.38). A

revista O Cruzeiro tinha uma característica que a permitiu explorar variada gama de informações,

colunas, reportagens. Ela era uma chamada revista de variedades, segundo seus editoriais, periódico

que buscava atender toda a família. O compêndio trazia vinculado em suas páginas de noticiários

políticos a receitas de bolo, de fotorreportagens sobre os índios da Amazônia até a cobertura

completa da coroação da Rainha Elizabeth ou de um evento social, ou seja, era uma revista para

agradar a diferentes tipos gostos e estilos de vida. Aparentemente conseguiu atingir esta meta, pois

sua singularidade era particular.

Nos 47 anos em que O Cruzeiro circulou em território nacional e também no exterior,

constava em seu sumário um sem-número de colunas voltadas para a mulher. No sumário inclusive

continha uma secção intitulada Para mulher. Dentre as páginas sempre relacionadas a assuntos

femininos destacam-se a coluna Da mulher para a mulher, Elegância e Beleza, as exclusivamente

de moda, entre outras. No ano de 1938, por sugestão de Accioly Netto, uma nova coluna começara

a circular naquelas páginas. Alccioly Netto, no ano de 1938, encomendou à Alceu Penna a criação

de figuras femininas semelhantes às do The Saturday Evening Post, as Gilbson Grils. Assim, Alceu

Penna deu forma e vida a ideia de uma coluna Pin-ups de Alccioly. “Eram vários grupos de lindas

mocinhas, vestidas na última moda, conversando. O texto na forma de diálogo e destinado ao

público juvenil, deveria ser escrito por um humorista malicioso. Fiquei encantado com o projeto”

(NETTO, 1998, p. 125).

E assim o foi. Em 19 de novembro de 1938, no exemplar da revista O Cruzeiro de número 3

do ano XI fora publicada As Garotas. A primeira coluna recebera o título de Garotas da Praia e

tiveram desenhos e textos de autoria de Alceu Penna. Estava ali o primeiro número da coluna.

Impresso em três cores – branco, vermelho e preto – em papel coche ocupava duas páginas da

revista. Trazia desenhos e textos vinculados como ocorreria até o findar de sua circulação.

Naquelas páginas dividiam-se 9 bonecas traçada com bastante sensualidade. A primeira coluna

ilustra muito bem o viriam a ser aquelas páginas. As historietas tratavam da vida cotidiana de

jovens mulheres de classes médias e altas, urbanas e alfabetizadas. Trazia com um tom de humor,

que não chegava a ser sarcástico, o diálogo destas garotas com outras garotas e alguns rapazes.

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Uma imagem da reprodutibilidade

Aquela era uma imagem da reprodutibilidade. Reprodutibilidade que alcançara 700.000

exemplares semanais da revista no auge da década de 1950. Indústria Gráfica O Cruzeiro S.A. que

atravessara grave crise, presenciara o crescimento editorial de sua grande rival, a revista Manchete.

Periódico que ocupou seu lugar nas bancas de revistas e nas casas de brasileiros na década de 1960.

Viu o surgimento e o desaparecimento de várias colunas e colaboradores. Passou por grandes

perdas, entre elas a de seu dono, Assis Chateaubriand, e de um de seus mais brilhantes ilustradores,

Péricles Maranhão, e de uma afamada coluna As Garotas do Alceu.

Com a xilogravura, o desenho tornou-se pela primeira vez tecnicamente reprodutível, muito antes que a imprensa prestasse o primeiro serviço para a palavra escrita. Conhecemos a gigantesca transformação provocada pela imprensa – a reprodução técnica da escrita. Mas a imprensa representa apenas um caso especial, embora de importância decisiva, de um processo histórico mais amplo. À xilogravura, na Idade Média, seguem-se a estampa na chapa de cobre e a água-forte, assim como a litografia, no início do século XIX (BENJAMIN, 2010, p.166).

Fazem-se notórias nesta imagem as técnicas da indústria gráfica brasileira da época. A

coluna Garotas circulara em uma revista de meados do século XX. Época em que a reprodução

imagética de periódicos nos Brasil não era mais marcada nem pela xilogravura, nem pelo buril. As

rotativas imprimiram, de forma calcográfica, textos e imagens da coluna Garotas. A qualidade de

impressão acompanhou as transformações e as mudanças dos processos gráficos. Modificação de

maquinário, retículas fora do registro, borrões ocasionados pela distribuição heterogênea de tinta,

alteração na qualidade do papel empregado na impressão. Muitas foram as variáveis que

acompanharam a impressão da coluna durante 27 anos de circulação. A percepção gráfica de nossa

imagem, de nosso objeto, o cola em seu tempo de produção.

A coluna Garotas do Alceu tem suas imagens femininas contornadas e coloridas através de

um maquinário da indústria gráfica que se torna condutor de boa parte dos veículos impressos no

século XIX e XX. Este sucinto e incompleto histórico sobre a gravura torna-se de fundamental

importância na percepção da imagem em estudo. As mulheres desenhadas pelo artista gráfico Alceu

Penna são imagens impressas, imagens em sua própria concepção reprodutíveis. Elas as foram

traçadas não tendo em vista a originalidade da peça única. Não foram desenhadas em guache sobre

o papel para que aquele único fosse o suporte preferencial da imagem.

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A longa vida da Imagem

A longa vida da imagem. Do Imago, mascara mortuária, as suas concepções e “nascimento”

pela morte. A imagem “[...] nasceu, assim, da morte para prolongar a vida e apresentou, com isso,

as noções de duplo e memória. A imagem tinha o papel de recompor o homem, cujo corpo se

decompõe pela morte. [...] Ela teve o caráter mágico de proteger os vivos da visão do corpo

putrificado” (DEBRAY, 1994, p.22). Muitos fizeram imagem, e se utilizaram dela de dispares

maneiras. Muitos também escreveram sobre ela. Escritos que consagram ainda no século XVI uma

história da arte (THUILLIER, 2006). Escritos que se pautaram, inicialmente, na questão da imagem

como tal. Uma imagem como mimese que marcara, de maneiras várias, escritos platônicos e

aristotélicos (BAZIN, 1989). Escritos que inauguram uma escrita teórica acerca da imagem. As

teorias platônicas, de certo modo, negativas do objeto do ver, não deixara de enaltecê-lo pelo seu

risco, pelo seu poder.

Do início de uma História da arte Renascentista até a filosofia da imagem, muitos se

escreveu (DIDI-HUBERMAN, 2010). Muitas foram as verdades, muitas foram as mentiras. As

biografias varsarianas, as problematizações sociais de Winckelman que iniciava uma história critica

de seu próprio conhecimento. Um estatuto de arte contestado ainda no século XIX por Riegl

(PEIXOTO, 2006). O diretor do Museu Austríaco de Arte Decorativa propunha uma história da arte

que abrangesse objetos imagéticos em toda sua amplitude. Estas chamada história da arte veio se

modificando, se alterando, se multiplicando, se findando.

Uma transição na história da arte, não exclusiva obra de Alois Riegl. Se o trabalho de Riegl

ainda prendia a história da arte a questão do tempo linear homogêneo do evolucionismo histórico, o

trabalho de outro historiador da arte que lhe fora contemporâneo desprendia a historia da arte desta

temporalidade. A memória e Aby Warburg. Memória, título dado por Giorgio Agamben a uma

ciência iniciada, ou inventada, por Aby Warburg (AGAMBEN, 2008). O nome da deusa grega –

Mnemosyne - estava escrito em uma placa no adentrar de sua famosa biblioteca. A mesma deusa

dava nome aquele considerado um dos seus mais brilhantes; seu último e inacabado trabalho: o

Mnemosyne Atlas (WARBURG, 2010)

O escritos do historiador da arte Didi-Huberman e a memória de Aby Warburg se cruzam,

se interpenetram nas vertentes teóricas em que o presente trabalho. Aby Warburg utilizou o termo

Nachleben ao referir-se a esta vida póstuma da imagem. Modelo temporal próprio das imagens

marca a heterogeneidade temporal. O Nachleben warburguiniano pode ser considerado um modelo

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temporal próprio às imagens. Modelo marcado por tempos heterogêneos. Esta vida póstuma da

imagem fora traduzida por Didi-Huberman como uma sobrevivência. Sobrevivência que não

simplifica nem o passado, nem a história. Ela marca-se por seu caráter complexo e desorientador de

periodização.

O Livro das Passagens em sua vasta gama de montagens traz muitas colocações e

inquietações de Walter Benjamin acerca da imagem. a sua problematização diante do tempo. “Não

é preciso dizer que o passo esclarece o presente ou que o presente esclareça o passado. Uma

imagem, pelo contrário, é aquilo em que o Outrora encontra o Agora num relâmpago para formar

uma constelação [...]” (BENJAMIN, 2006, p.504). As imbricações temporais são sublinhadas por

Benjamin. O encontro de passado e presente, ou melhor, do Outrora com o Agora, marcam uma

concepção temporal não cronológica. A imagem marca-se por este encontro de tempos, de tempos

não homogêneos nem lineares.

Uma imagem transposta de temporalidades. Um tempo montado utilizado por Didi-

Huberman e principalmente pautado nas obras de Aby Warburg e Walter Benjamin. Três nomes

essenciais ao presente trabalho. As imagens dialéticas de Walter Benjamin configuram-se como

imagens autênticas nos escritos de Didi-Huberman. Imagem crítica, imagem em crise. Uma crise

instaurada pela própria imagem. Ela alcança colocação como objeto ativo, de objeto do olhado para,

um também, objeto olhante.

A imagem que se apresenta como encontro do Outrora com o Agora, do que sobrevive com

a novidade. A aflição da imagem dialética na qual o presente pode interpretar, interrogar,

criticamente o passado, ou os passados. O proposto anacronismo imagético de Didi-Huberman tem

causado furor no meio acadêmico. Enaltecido e criticado, propõem a percepção de um tempo

heterogêneo na análise imagética. Aborda a múltipla temporalidade da imagem.

A inquietação diante do distempo de algumas colunas Garotas do Alceu é concomitante. As

bonecas desenhadas por Alceu Penna configuram-se como uma destas tantas imagens quais o

anacronismo demonstra-se fecundo para analisa-las, senão para entende-las, para questiona-las.

Alceu Penna manipulara em suas imagens tempos que não foram exclusivamente os seus. Imagens

de outras temporalidades foram por ele visualizadas, manipuladas. As suas bonecas marcam seu

período de produção. São declaradamente bonecas do gênero ilustrativo de pin-ups. Gênero

ilustrativo marcadamente do século XX. Os traços, o gênero, daquelas bonecas não colocam em

cheque seu período de produção. Boa parte dos leigos, ao visualizarem uma pin-ups, a apontam

como uma imagem produzida, ou referente, a um pré, durante, entre ou pós as Grandes Guerras

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Mundiais. Entretanto, aquelas imagens manipulam muito mais tempos. Seria resolutivo afirmar que

nelas só existem caracteres, formas, traços, elementos, questões de seu próprio tempo de produção.

Tal afirmação aparentemente resolveria muitos problemas

Aquelas Garotas apresentam imagens de mulheres. Imagens envoltas de beleza, juventude,

erotismo, sedução. Logo, são imagens que não marcam, tão somente, um caráter de novidade

naquele conturbado século. Elas têm um caráter de latência, um caráter de anacrônico. O Agora e o

Outrora se encontram naquelas bonecas. Seu encontrar não é resolutivo, não busca dar simples

respostas a nada, ele não apazigua nosso problema. A latência é a percepção dos ecos de variados

tempos contidos naquela imagem. Entre mais de mil colunas algumas destacavam-se pelo próprio

lapso temporal. Colunas com imagens de mulheres, com imagens personagens, de um tempo que

não era o mesmo de sua produção. Imagens de personagens tão recorridas por imagens escultóricas,

pictóricas, fotográficas, cinematográficas. Mulheres que se consolidam em uma tradição imagética

Ocidental. Imagem do belo, do sedutor, do erótico.

As Garotas apresentaram-se como muitas personagens da “história”, foram “Algumas

Garotas da história”, foram “Mais algumas Garotas da história”. Imagens com referência a uma

Antiguidade foram várias. Foram Artemis, Vênus, Cleópatras, foram Evas.

Uma pin-up despida de Eva

Foram muitas a Garotas Evas tracejada por Alceu. Elas fazem alusão a um enorme

repertório imagético de outras tantas Evas traçadas, pintadas, esculpidas pela arte, como também

fazem referência a imagem de um nu feminino latente neste repertório imagético. A latência do

passado, a imagem dialética. Memórias erráticas, memórias que sobrevivem. Entre a virgem e a

pecadora, entre reprodução e a eroticidade, entre Eva e Maria. As Garotas do Alceu enquadram-se

como Evas. E elas o foram, se vestiram, ou melhor, se despiram como Evas em inúmeras colunas.

As questões como a nudez e a eroticidade são indissociável da imagem de Vênus, de Eva e

das Garotas do Alceu. A oposição de Eva e Maria, trata-se na revista estudada, O Cruzeiro, da

oposição entre as Garotas do Alceu e boa parte das demais colunas femininas. Se as Garotas

dirigiam-se, ou ao menos, ilustrava uma mulher jovem e solteira, muitas das demais páginas

falavam de uma mulher casada, de uma esposa. A eroticidade aponta também nas páginas daquela

revista, quase que como uma quase oposição à reprodutibilidade. “Seja o que for, o erotismo é a

atividade sexual do homem, ela o é na medida em que difere das atividades dos animais. A

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atividade sexual dos homens não é necessariamente erótica. Ela o é todas as vezes em que não for

rudimentar, que não for simplesmente animal” (BATAILLE, 2004, p.46). Logo, a atividade sexual

com finalidade exclusivamente reprodutoras, como uma sexualidade sem pudor, coincidiria com

abdicar das atividades eróticas, abdicar da sexualidade vergonhosa, da qual o erotismo decorreu.

Até o século XI, a tradição cristã medieval identificara a figura feminina ao pecado de Eva

que, por sua vez, estendeu-se a todas as mulheres. Segundo Georges Duby, apenas no decorrer do

século XII nota-se uma expansão dos cultos marianos (DUBY, 1995, p. 189). As personagens da

coluna estudada poderiam ser enquadradas como uma destas mulheres marcadamente sedutoras,

envoltas pelo erotismo. Jovens, solteiras, extremamente belas, vaidosas. Elas por vezes pareciam

enfeitiçar os homens. Homens que, na coluna, ao contrário de inúmeras outras páginas de revista de

meados do século XX, apareciam como uma espécie de “sexo frágil”. Eles eram enganados por

aquelas personagens. Elas os enfeitiçavam com sua beleza para alcançarem seus objetivos. Eles,

meros coadjuvantes das historietas em que elas narravam. Elas eram as personagens principais. Em

nenhum momento as Garotas do Alceu foram enquadradas como mães, como educadoras e como

amálgama da família. Elas eram destacadas por outras qualidades femininas.

“Pois ela [Eva] pecou duplamente, contra Deus e contra o homem. Também foi duplamente

punida, não apenas por Adão, pela dor física, mas pela sujeição ao poder masculino” (DUBY, 2001,

p.56). A Eva judaica, tal qual a Pandora na mitologia Grega, disseminaria o mal e o pecado pelo um

mundo. A mítica primeira mulher seduzida pelo diabo em forma serpentina desobedece a ordem

divida. De acordo com o Gênesis, e a uma tradição judaica, cristã e mesmo islâmica, o corpo de Eva

simbolizaria o pecado, ela seria “[...] a origem do mal e da infelicidade, potência noturna, força das

sombras, rainha da noite” (PERROT, 1988, p.168).

Eva sucumbe ao mal, desobedece a Deus e come o fruto proibido. Após comer a maçã, a

mulher priva toda a humanidade da perfeição e da imortalidade. A noção de pecado fora instaurada

com Eva. Após a atitude instauradora do pecado humano, Adão e Eva foram expulsos do Jardim do

Éden. Tiveram ciência que andavam nus e passaram a se vestir afim de esconder seus corpos, agora

pecaminosos.

Evas sem Adão

Desde o início, Eva estava intensa e inteiramente ligada a Adão. Podemos notar que, em

grande parte das esculturas, gravuras e pinturas, Eva divide espaço com a figura humana de Adão.

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Dentre Eva e Adão costumeiramente figuram-se a maçã, a fruta proibida, e a serpente, uma quase

alegoria do Diabo. Alceu Penna, na coluna A tal Garota Eva de 1942, ilustra Eva sem seu parceiro.

Conta, através da imagem, uma história de muitas Evas, sem nenhum Adão. Em complemento à

imagem feminina, podemos apenas notar a maçã, segurada

pelas mãos de uma das tantas Garotas em forma de Eva, e da serpente, que auxilia os tipos a

darem título à coluna. Alceu Penna parece ter escolhido desenhar apenas a figura feminina, na

forma de protagonista de sua coluna. Seleciona também os elementos que figuram as formas de

pecado na expulsão do paraíso. A maçã, a serpente, a Eva, uma espécie de tríade pecaminosa

feminina. Tríade que faz alusão a uma figurabilidade erótica.

Imagem 1 – A tal Garota Eva. Revista O Cruzeiro de 21 de fevereiro de 1942. Ano XIV, número 17. Acervo: Biblioteca Mario de Andrade.

A multiplicidade de Eva desenhadas na coluna A tal Garota Eva nos remete ao retábulo

Jardim das Delícias de Hieronymus Boch. A Eva figura em boa parte de um repertório imagética de

maneira a sublinhar seu caráter singular, sua unicidade. Unicidade instaurada que ela fora a primeira

de todas as mulheres, ela cometera, em companhia da serpente e de Adão, o ato pecaminoso de

comer o fruto proibido. Naquele momento, ela não estava com mais nenhuma outra mulher, mesmo

porque não existia na terra mais mulher alguma. Só passaria a haver mais mulheres no momento

posterior à expulsão do paraíso, com a reprodução de Adão e Eva. A coluna de Alceu Penna, ao

apresentar seis Evas, leva-nos a criticar se todas elas seriam Evas ou se aquela imagem não estaria

relacionada com a expulsão do paraíso. Mas os gestos, as imagens e os textos nos confirmam que

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aquelas eram sim seis Evas e que encenavam um Jardim Éden, e talvez se referissem a uma

expulsão do paraíso.

O Jardim das Delícias, pintado no final do século XV, traz alguns elementos que o

aproximam da imagem de Penna. A cena central do retábulo taz uma espécie de jardim fantástico. A

imagem poderia encenar o momento posterior à expulsão do paraíso. Poderia também remeter-nos a

uma ideia de um mundo que não tivesse sido tocado pelo pecado. . O cenário fantástico faz alusão

ao Éden.

Na porção central da cena uma espécie de lagoa repleta de mulheres nuas. São mais de duas

dezenas de mulheres nuas. As inúmeras Evas que dividem as duas páginas da coluna A tal Garota

Eva perecem assinalar esse mundo fantástico incrivelmente intocado pelo pecado e envolto pela

luxúria. A multiplicidade de Eva faz-nos também supor que a imagem remeta-se a um mundo

fantástico. Ora, faz-nos acreditar ser o mundo sequente à concepção do pecado e à expulsão do

Jardim Éden. Ora, faz-nos crer ser um mundo onde o pecado não fora cometido. Um mundo sem

maçãs mordidas, um paraíso terreno, um mundo que coloca o ideal e o estranho lado a lado. Um

paraíso terreno desprovido de pecado, e ao mesmo tempo, permeado por ele. Um sonho pecaminoso

envolto pela luxúria, por uma sexualidade ativa. Como se todas aquelas Evas fossem as mulheres

que habitavam o Jardim do Éden bíblico ou o Jardim das delícias de Bosch.

A imagem feminina na porção superior da página esquerda da coluna, imagem número 6,

posa de costas, apoiada no chão, sentada sob suas pernas parece cruzá-las. A mão esquerda sob o

joelho esquerdo, a mão direita erguida à face, levantando um fruto, a maçã. Uma maçã intacta

figura na coluna. A fruta proibida não fora mordida. Seria como se o pecado ainda não tivesse sido

efetuado. Em contrapartida, os corpos já têm suas “vergonhas” cobertas por folhas de parreiras.

A maçã intocada e a multiplicidade de Eva faz alusão a um paraíso perdido, ao jardim

fantástico de Bosch. Uma parábola de um mundo não acometido pelo pecado de Eva. O erotismo,

uma sexualidade ativa, envolve todas as seis Evas. Os corpos longínquos e curvilíneos, quadris

voluptuosos, cinturas delgadas, seios fartos e arredondados marcam a figurabilidade corpórea. Os

corpos, apesar de muito delineados e curvilíneos, são corpo extremamente magros fazendo alusão a

uma estética da magreza já ensaiada naquele século XX. As imagens das personagens estão

extremamente adornadas em sua nudez. Olhos expressivos em seus delineados, bocas vermelhas,

rostos corados, unhas pintadas. Elementos que enaltecem o belo figuram em todas as personagens.

Seus corpos e faces marcam uma estética do belo e uma estética do erótico. Elas figuram Eva, que

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por sua vez figura a nudez sedutora de Vênus. A deusa da beleza, do amor, do desejo sexual

transmite a luxúria, o erótico.

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. ‘Aby Warburg y La ciencia sin nombre’ In La potencia del pensamiento. Barcelona: Editora Anagrama, 2008.

BAZIN, Germain. A história da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BATAILLE, Georges. O Erotismo. São Paulo: Editora Arx, 2004.

BEJMANIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: ___ Obras Escolhidas I. Magia e técnica,

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11 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

The image of Eva revisited by graphic art of the twentieth century Abstract: The virgin and the sinner. The reproduction and eroticism. Eve and Mary. The Garotas

do Alceu can be considered Eves. The column Garotas do Alceu circulated between 1938 and 1964 in the renowned magazine O Cruzeiro. Between behavior and humor the characters of Alceu Penna dressed, or rather, undressed as Eva in several columns. Maria and Eve, a imagery matter very well placed in the mid-twentieth century. The female images in the Brazilian press of that time often seem full of duality between these two Christian images. The female image duality. Among Eves and Marias. Between celestial and vulgar Venuses. The Venus of Ancient History, markedly nude, was gradually changing place in the subsequent centuries. The Middle Ages condemned the undressed body and with that, the beauty of the nude Venus. The female nudity was reinvented through the body of Eve. The column characters revisit images of many Eves - remarkably seductive and erotic. Keywords: Image, Eva, graphic art.