07_08_sonia
Post on 06-Sep-2015
4 Views
Preview:
DESCRIPTION
TRANSCRIPT
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
145
O Tabu da Violncia Intrafamiliar: A escola na fronteira
Sonia Isabel Fabris Campos1
A violncia um desafio para a sociedade, e no apenas um mal. Ela pode ser elemento de mudanas (Roberto Da Matta, 1982)
Resumo: Este artigo baseia-se em uma pesquisa sobre violncia na famlia, realizada no contexto escolar, como projeto de pesquisa de doutorado. Nele abordo o tema da violncia
intrafamiliar a partir das histrias contadas por educadores da escola pblica e particular da
zona sul do Rio, durante entrevistas, das quais emergiram narrativas sobre as experincias de
violncia e sofrimento vividos por crianas e jovens nas suas famlias. Nas entrevistas os
educadores contam as histrias as quais tiveram acesso, como tiveram acesso a elas e como
essas histrias foram encaminhadas por eles ou pela instituio. Abordo, aqui, algumas
tentativas de conceituar a violncia, chamando a ateno para o fato de que os nossos
sentidos de dignidade, tica e justia so fundados nos ideais da modernidade, cujas
pretenses universais so questionadas nesse momento sociocultural. Apresento alguns dados
de pesquisas realizadas por profissionais de sade publica sobre a violncia intrafamilar no
Brasil, a partir das quais articulo com dados do estudo realizado com os educadores na escola
pblica e privada do Rio de Janeiro, enfatizando aspectos convergentes em ambas as
pesquisas. Chamo ateno para a importncia da escola como um espao onde os conflitos
familiares adentram, cada vez mais, exigindo dos educadores habilidades especiais para
lidarem com essas questes.
Palavras-chave: Famlia; violncia; escola.
Introduo
Este artigo foi inspirado em uma pesquisa2 que focaliza as histrias de
sofrimento e violncia vividos por crianas e adolescentes nas suas famlias,
contadas por educadores de escola pblica e privada do Rio de Janeiro. As
1 Mestre em Lingstica Aplicada pela UFRJ e doutoranda em Estudos de Linguagem da PUC-RJ. 2 Pesquisa de doutorado em Estudos da Linguagem da PUC-Rio, realizada pela autora do artigo: Sonia Isabel Fabris Campos
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
146
narrativas emergem de uma entrevista realizada com esses profissionais: as
orientadoras Ina3 e Lia4, o coordenador, Leo5, e a diretora, Bia6. A sua
percepo sobre o que violncia ancorada nos princpios que fundamentam
os direitos humanos e que orientam as nossas normas e leis e,
consequentemente, os nossos valores ticos, que visam coibir atos violentos e
privilegiar o direito vida digna. Assim, o modo como os educadores nomeiam
a violncia no singular, individual. So crenas compartilhadas,
consensuais, que so atualizadas nas suas falas. Os relatos construdos nas
entrevistas no so apenas eventos de fala isolados: esto situados em um
contexto social macro, onde foras polticas, ideolgicas e um conjunto de
prticas influenciam a vida das pessoas. Desse modo, os significados que os
falantes constroem discursivamente sobre o mundo social so tambm
influenciados por esse conjunto de foras e prticas.
O objetivo deste artigo chamar a ateno para a violncia intrafamiliar no
Brasil vista na perspectiva de pesquisadores da sade pblica e oferecer a
viso de educadores da escola publica e particular do Rio de Janeiro sobre
esse problema, com base nas suas experincias nos contextos escolares onde
atuaram e atuam, mostrando os pontos convergentes nos dois campos de
investigao.
Inicialmente, apresento algumas conceituaes da violncia. A primeira
formulada pela filsofa Marilena Chau que argumenta sobre a dificuldade de
conceituar a violncia, uma vez que diferentes culturas abordam essa questo
de diferentes modos. Segundo Chau, na impossibilidade de se criar um
conceito universal, cada sociedade cria o seu cdigo de tica que orienta as
aes dos indivduos e da coletividade. A segunda baseada na reflexo do
socilogo Michel Misse que afirma que a violncia o emprego da fora ou
3 Nome fictcio do participante da entrevista realizada na pesquisa. Ina orientadora da escola pblica estadual e professora de uma escola municipal localizada na zona rural da cidade e de uma escola municipal de uma comunidade da zona sul. 4 Nome fictcio da orientadora da escola pblica estadual, participante da entrevista realizada na pesquisa. 5 Nome fictcio do participante da entrevista realizada na pesquisa. 6 Nome fictcio da diretora da escola pblica estadual, participante da entrevista realizada na pesquisa.
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
147
dominao sem legitimidade. Para Misse, a sociedade individualista de massa
produz violncia, uma vez que no reconhece todos os indivduos como
membros ratificados pela participao na vida social e nos meios de produo.
A terceira a viso da pesquisadora Minayo que estuda o impacto da violncia
intrafamiliar na sade pblica, e segundo a qual a violncia um problema cujo
espao de criao a vida em sociedade, e ela atinge a todas as sociedades
de diferentes modos.
Utilizo as pesquisas de estudiosos da violncia intrafamiliar como uma
problemtica da sade pblica. Segundo Minayo, as crianas so vtimas
freqentes da violncia intrafamiliar. Seus estudos mostram que a violncia na
famlia independe de classe social, embora a sociedade tenha mecanismos
que tornam a violncia na classe de baixa renda mais visvel do que aquela
praticada nas famlias de classe mdia e mdia alta.
Finalmente, apresento, de maneira sucinta, a viso dos educadores sobre o
problema da violncia que vivenciaram nas prticas nos contextos escolares
onde atuaram, confrontando-a com aquelas apresentadas pelos profissionais
de sade pblica, com base nas suas pesquisas, enfatizando os seus aspectos
convergentes. Do ponto de vista da pesquisa realizada, isso significa que os
educadores tm grandes contribuies a dar no s no sentido de detectar e
denunciar os casos de violncia aos quais tm acesso, mas tambm no sentido
de acolher e responsabilizar-se socialmente sobre esta questo.
Trs conceituaes da violncia
Segundo a filsofa Marilena Chau (1996, 1998), a violncia uma questo em
debate desde a Antiguidade clssica (greco-romana) e est no centro das
discusses da conduta tica. Essas discusses tm o objetivo no s de
avali-la e denunci-lo, mas visam tambm buscar meios de control-la e at
mesmo evit-la (CHAU, 1996). A dificuldade de lidar com essa questo
consiste no fato de que embora a violncia no possa ser tratada como um
conceito universal, uma vez que diferentes formaes sociais e culturais
instituem conjuntos de valores ticos como padres de conduta, de relaes
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
148
intersubjetivas e interpessoais de comportamentos sociais, para que possam
garantir segurana fsica e psquica de seus membros, certos aspectos da
violncia so percebidos da mesma maneira nas vrias culturas e sociedades,
formando o fundo comum contra o qual valores ticos so erguidos (CHAU,
1996, p. 336).
Na nossa sociedade, definimos a violncia como sendo o exerccio da fora
fsica e do constrangimento psquico para obrigar algum a agir [...] contra a
sua prpria vontade. O sujeito ou um mecanismo violento aquele que age
por meio da fora e da coao psquica com a finalidade de obrigar algum a
fazer algo contra si, contra os seus interesse e desejos, causando-lhes danos
profundos e irreparveis (CHAU, 1996, p. 336). A violncia , portanto, uma
prtica de violao da integridade fsica e psquica das pessoas, seja por meio
de agresses fsicas, humilhao, da discriminao social e poltica em relao
s condies tnicas, crenas religiosas, convices polticas e preferncias
sexuais [...] (id. ibid.). Em outras palavras, ela tudo quanto reduza a pessoa
condio de objeto. Assim sendo, faz-se necessria a prevalncia de valores
ticos que norteiem as aes de pessoas e grupos na sociedade, para conter o
uso da violncia e de tudo o que transforme as pessoas em coisa usada e
manipulada por outros [...]. A tica normativa porque suas normas
determinam permisses e proibies e visam impor limites e controles ao risco
permanente da violncia (CHAU, 1996, 337). A tica orienta, pois, as nossas
aes individuais e coletivas.
Assim, conforme argumenta Chau, a violncia a realizao das relaes de
fora, tanto em termos de classes sociais quanto em termos interpessoais. Ela
diz,
(...) em lugar de tomarmos a violncia como violao e transgresso de
normas, regras e leis, podemos consider-la sob dois outros ngulos. Em
primeiro lugar, como converso de uma diferena e de uma assimetria numa
relao hierrquica de desigualdade com fins de dominao, de explorao e
de opresso. Isto , a converso dos diferentes em desiguais e a desigualdade
em relao entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ao que trata um ser humano no como sujeito, mas como coisa [grifos nossos]. Essa se
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
149
caracteriza pela inrcia, pela passividade e pelo silncio, de modo que, quando
a atividade e a fala de outrem so impedidas ou anuladas, h violncia.
(CHAU, 1984, p.35 apud CAMARNADO & VILLELA, 2004, p. 9)
Para o socilogo Michel Misse (MISSE, 2002, p. 4), violncia (violentia)
significa fora que se usa contra o direito e a lei, isto , a violncia o
emprego da fora ou da dominao sem legitimidade, na impossibilidade do
conflito e resistncia. Violento (violentus), por sua vez, quem agia com fora
impetuosa, excessiva, exagerada (id. ibid). Misse lembra em seu texto os usos
retricos da palavra, que lhe conferem significados mais largos, conforme suas
palavras, mas que expressam o seu sentido original, como, por exemplo, as
expresses: violncia dos ventos, violncia das paixes, violncia da
expresso. Diz ainda que o emprego da palavra violncia ganhou, na poca
moderna, muitos significados novos, porm, em seu emprego usual, duas
caractersticas no se modificaram com o tempo. A primeira, diz respeito ao
seu uso, pois, conforme salienta Misse (2002, p. 4), o emprego da palavra
performativo, isto , ao empreg-la agimos socialmente sobre o outro, seja
denunciando uma ao ou uma pessoa, seja acusando um evento ou um
sujeito. A segunda refere-se a contra quem a expresso usada. A esse
respeito, Misse (id. ibid.) chama a ateno para o fato de que violento
sempre o outro. aquele a quem aplicamos essa designao, uma vez que
nas raras situaes em que se ouve algum dizer de si mesmo que violento,
ele normalmente o faz por expiao de sentimento de culpa (MISSE, 2002,
p.4).
Minayo e Souza (1999), pesquisadoras da rea de sade pblica, conceituam a
violncia como sendo uma forma prpria de relao pessoal, poltica, social e
cultural; por vezes uma resultante das interaes sociais; por vezes, ainda, um
componente cultural naturalizado. Desse ponto de vista, a violncia pode ser
concebida como o evento representado por aes realizadas por indivduos,
grupos, classes, naes, que ocasionam danos fsicos, emocionais, morais, e
ou espirituais a si prprio ou a outros. (MINAYO, 1989, p.514). Denisov (1986),
por sua vez, afirma que a violncia
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
150
um conceito multifacetado em funo de suas caractersticas externas -
quantitativas - e internas - qualitativas encontrando sua expresso concreta
no fato de que indivduos, grupos, classes e instituies empregam diferentes
formas, mtodos e meios de coero e aniquilamento direto ou indireto
(econmico, poltico, jurdico, militar) contra os indivduos, grupos, classes e
instituies, com finalidade de conquistar ou reter o poder, conquistar ou
preservar independncia, obter direitos ou privilgios.
Minayo chama a ateno para o fato de que a violncia um problema
presente em todas as sociedades. Afirma que, embora controverso, h
elementos consensuais sobre o tema (MINAYO, 1994, p. 7). Diz ainda que o
seu espao de criao e desenvolvimento a vida em sociedade (id. ibid.) e
que a violncia faz parte da prpria condio humana e se manifesta de
diversas formas.
De modo geral, podemos afirmar que no h um conceito sobre o que se
nomeia como violncia, uma vez que cada cultura possui o seu cdigo de
conduta e o seu conjunto de valores que regem as relaes pessoais e dos
grupos sociais. Isso no significa dizer, entretanto, que haja alguma
organizao social conhecida que seja isenta de qualquer tipo de prtica
violenta.
O conceito de violncia aplicado no Brasil
Constitui violncia, para efeito deste estudo, aquilo que os nossos discursos
nomeiam como tal. Esses discursos tanto so produzidos em um contexto
socio-histrico como tambm contribuem para criar esse contexto,
dialeticamente. Assim, a concepo de justia e violncia na qual nos
baseamos, na nossa sociedade, apoiada pelo Cdigo Penal brasileiro,
inspirado nos estatutos dos Direitos Humanos, que consistem no principal
instrumento de defesa, garantia e promoo das liberdades pblicas e das
condies materiais fundamentais para uma vida humana digna (CUNHA,
2005, p.139). Esses conceitos constam tambm no Relatrio Mundial sobre
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
151
Violncia e Sade, divulgado pela Organizao Mundial de Sade (OMS) 7,
segundo a qual a violncia
o uso da fora fsica ou do poder real ou em ameaa contra si prprio, contra
outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha
qualquer possibilidade de resultar em leso, morte, dano psicolgico,
deficincia ou privao (KRUG et al., 2002, p. 5).
Vigora, portanto, entre ns, a idia de que atos que oprimem, coagem e
restringem a liberdade das pessoas so considerados violentos, que so
repudiados, e, por isso, devem ser enfrentados. O combate violncia
ancorado nos princpios ticos que regem o nosso Direito Civil, que advoga a
defesa do direito vida digna e o princpio da dignidade humana. Esse
posicionamento um legado do projeto da modernidade, fundamentado no
ideal iluminista, cuja ambio atingir o aperfeioamento da ordem social e
das condies de vida de todas as pessoas, igualitariamente. Muito embora
essa pretenso tenha um vis utpico, dificilmente ousaremos duvidar da sua
legitimidade, mesmo nos dias de hoje quando muitos projetos da modernidade
esto sendo questionados. Prevalece como ideal, na ordem jurdica, a nfase
na instaurao de valores ticos essenciais vida em sociedade.
Assim sendo, continuamos advogando o direito vida digna, aplicvel a todas
as pessoas e grupos sociais, ao mesmo tempo em que chamamos a ateno
para as mltiplas formas de vida e a impossibilidade de se criar conceitos
universais para reger a sociedade multifacetada e plural. Ainda assim,
persistimos no projeto de justia social que estendido a todas as pessoas,
indiscriminadamente. Pautamo-nos em alguns princpios normativos do
conceito de tica que so reiterados incessantemente nos discursos que
produzimos. Em geral, elegemos os discursos que consideramos legtimos nas
nossas prticas dirias, com base em normas e regras que compartilhamos.
Agimos discursivamente, diariamente, no sentido de avaliar essas normas e
regras, ampliando os seus sentidos, levando em considerao as condies
scio-histricas e a natureza dinmica e cambiante da vida em sociedade.
7 A Organizao Mundial de Sade ligada s Naes Unidas e tm como membros 193 pases. Qualquer pas interessado em tornar-se membro deve aceitar os termos da sua Constituio.
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
152
Desse modo, ao invs de meramente reproduzirmos conceitos herdados
historicamente, atualizamos as discusses sobre a responsabilidade individual
e coletiva na nossa relao com o outro e com o mundo, para que seja possvel
almejar, conforme desafia Bauman (1999, 2000) uma sociedade melhor, capaz
de se questionar incessantemente.
A violncia e a no violncia
A vida em sociedade tem se mostrado polmica e paradoxal. Muitas das
tentativas de explicar a violncia tm sido simplificaes dessa questo social
to complexa. Uma delas a associao da prtica violenta com a pobreza. A
outra considerar que o impulso violento tem causas biolgicas, isto , admitir
que algumas pessoas nascem violentas. Esses argumentos explicativos fazem
parte de uma prtica ancorada na tendncia de se essencializar as pessoas e
naturalizar prticas.
Outro ponto que merece ser assinalado em relao violncia o fato de que
a sua prtica se caracteriza por ser um exerccio de poder sobre um outro
fragilizado. Ela impe a submisso do mais fraco pelo mais forte (SILVA,
1998, p.795). Assume, muitas vezes, uma configurao autoritria,
possibilitando situaes de exerccio de poder (MARMO et al., 1995, p.314),
em nome da disciplina e da obedincia, por exemplo. Seja qual for a forma de
violncia, ela uma prtica que viola as normas de convivncia, que tm como
ferramenta fundamental para a vida em sociedade o exerccio do dilogo.
Assim, o uso da violncia significa a alienao do agressor em relao ao
outro, e essa posio alienada o priva de experincias humanizadoras e
essenciais.
importante tambm salientar que muito embora o sofrimento esteja
comumente associado passividade e sujeio, ele pode tambm produzir
reao, levando a pessoa a abandonar a posio de objeto do outro que a
oprime. Nesse caso, a pessoa posicionada como vtima ascende a uma outra
posio, liberta-se. Esse o processo que Mishler (2002) chama de
rehistorizao do self, que quando a pessoa realiza o seu ponto de virada
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
153
(MISHLER, 2002). Assim, podemos afirmar que embora a violncia constitua
um ato de poder destrutivo de uma pessoa sobre a outra, esse poder opressor
pode, conforme afirma Foucault (1979), ser produtivo, isto , ele pode produzir
uma ao que vise combat-lo e modific-lo.
A violncia e as suas (possveis) causas Ao refletir sobre a violncia, Minayo afirma que ela um fato humano e social,
uma vez que no se conhece uma sociedade totalmente isenta de violncia,
embora algumas sejam mais violentas do que outras, o que evidencia o peso
da cultura na forma de soluo de conflitos (MINAYO, 2007, p. 16). Afirma
ainda que ela histrica, pois alm de cada sociedade apresentar formas
particulares de violncia, a violncia social, poltica e econmica, por exemplo,
adquirem caractersticas diferentes, conforme as transformaes por que passa
o mundo. A pesquisadora chama a ateno para o fato de que h formas de
violncia que persistem no tempo e se estendem por quase todas as
sociedades (idem, p. 16), e que, muitas vezes, so naturalizadas, pois, ao
comet-las, as pessoas julgam que esto fazendo algo normal. o caso, por
exemplo, como cita Minayo (id. ibid) das diferentes formas de discriminao de
raas, gnero, sobretudo do homem contra a mulher, alm da discriminao
contra mulheres e homens homossexuais, manifestada pelo sentimento
homofbico. Essa violncia, conforme argumenta Minayo (2007, p. 16),
atravessa todas as classes e os segmentos sociais. Ela violncia
socialmente produzida e est dentro de cada um. A no violncia uma
construo social e pessoal. Assim, para que uma sociedade no seja
violenta, preciso que ela se incumba de
incluir, ampliar e universalizar os direitos e deveres de cidadania. No que tange
ao mbito pessoal, a no-violncia pressupe o reconhecimento da
humanidade e da cidadania do outro, o desenvolvimento dos valores de paz,
de solidariedade, de convivncia, de tolerncia, de capacidade de negociao
e de soluo de conflitos pela discusso e pelo dilogo (Minayo, 2007, p. 17).
Entretanto, por mais que se pretenda encontrar uma relao de causa e efeito
na questo da violncia ou desenvolver uma teoria explicativa sobre as suas
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
154
motivaes, esta uma tarefa mais complexa e menos determinista do que
parece ser. Sobre isso, diz Minayo diz que,
a violncia um dos eternos problemas da teoria social e da prtica poltica e
relacional da humanidade. No se conhece nenhuma sociedade onde a
violncia no tenha estado presente. Pelo contrrio, a dialtica do
desenvolvimento social traz tona os problemas mais vitais e angustiantes do
ser humano. (MINAYO, 1994, p. 7)
Para a pesquisadora, a violncia, ao contrrio de fazer parte da natureza
humana ou ter razes biolgicas, um complexo e dinmico fenmeno
biopsicossocial, mas seu espao de criao e desenvolvimento a vida em
sociedade (id. ibid.). Minayo chama a ateno para o fato de que a violncia e
a no violncia coexistem, dialeticamente. Ela ento um caminho possvel
em contraposio tolerncia, ao dilogo, ao reconhecimento e civilizao,
como o mostram Hegel (l980), Freud (l974), Habermas (l980), Sartre (l980),
entre outros (MINAYO, 1994, p. 7). E, segundo Domenach, ela est inscrita
nas relaes sociais, no podendo ser considerada apenas como uma fora
exterior se impondo aos indivduos e s coletividades, havendo, desta forma,
uma dialtica entre vtimas e algozes (DOMENACH, 1981, p. 40). Alm disso,
a violncia traz para o debate pblico questes fundamentais, em formas
particulares, e questes sociais, vivenciadas individualmente, uma vez que
somos, enquanto cidados, ao mesmo tempo sujeitos e objetos deste
fenmeno (MINAYO, 1994, p. 7).
Assim, a constatao de que a violncia um problema, uma distoro, faz
com que se busque explicar as razes dos impulsos violentos nas pessoas. As
pesquisas realizadas por Minayo (1994) e Deslandes (1994, 2001, 2002)
indicam como uma das causas de atos de violncia na nossa sociedade, dentre
outras, a opresso do sistema capitalista que impede, muitas vezes, o acesso
aos bens materiais e simblicos. Segundo as pesquisadoras, a falta de
emprego, a humilhao pessoal ou at mesmo a propagao de ideais de
sucesso aos quais as pessoas no podem corresponder geram frustraes de
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
155
enorme proporo nas pessoas, que no conseguem por inmeras razes
elaborar essas imposies ou privaes.
O socilogo Michel Misse, nos seus estudos sobre violncia urbana, afirma que
as grandes reas urbanas brasileiras sociedade so baseadas no
individualismo de massa (MISSE, 2006, p. 6), caracterstica do tipo de
capitalismo adotado no pas. Segundo ele, no Brasil,
ns nem conclumos o processo de modernizao, nem completamos o
processo de incorporao das massas ao capitalismo moderno,
economicamente racional e orientado; nem conseguimos completar o
assalariamento do trabalho; no conseguimos estender os direitos civis
esmagadora maioria da populao trabalhadora e queremos e achamos
surpreendente que estejamos vivendo nesse clima que, unificadamente,
colocamos sob a designao de violncia (MISSE, 2006, p. 4).
Para Misse, s faz sentido falar-se da necessidade de reconhecimento social
para as parcelas socialmente excludas quando voc est se referindo a uma
sociedade individualista de massa (MISSE, 2006, p. 7). Essa exigncia de
reconhecimento social numa sociedade capitalista de massas como a nossa
no leva em conta que parcela significativa de sua populao no encontra um
lugar social de incluso [...] (id. ibid.). Misse prossegue dizendo que,
Para que voc possa ser reconhecido como parte integrante da sociedade
preciso que voc tenha acesso aos meios materiais bsicos de existncia;
preciso que voc tenha acesso escola; preciso que voc tenha acesso
sade; preciso que voc tenha acesso a um conjunto de direitos civis,
sociais, econmicos, humanos... Por outro lado, como voc poder ter acesso
a tudo isso se voc no reconhecido como cidado, no reconhecido como
membro desta sociedade? Quando voc morto, quem se interessar em
apurar o crime, em punir seus responsveis, se sou indiferente ao seu destino
pessoal? (MISSE, 2006, p.7)
A outra importante questo suscitada pelo socilogo diz respeito s teses
equivocadas nas tentativas de se explicar as razes da violncia na nossa
sociedade. Uma delas a idia de que a pobreza a causa violncia e do
aumento da criminalidade. Para Misse, essa tese estabelece uma relao
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
156
causal direta entre indicadores de pobreza e criminalidade (MISSE, 1995, p.
4). Porm, ele argumenta que se a pobreza causasse o crime, a maioria dos
pobres seria criminosa, e no (id. ibid.). Diz tambm que essa associao da
pobreza com a marginalidade provoca maior discriminao contra pobres e
negros. A imensa maioria de presos no Brasil negra, pobre e desocupada, o
que mostra que a polcia segue "um roteiro tpico que j associa de antemo a
pobreza (ou a marginalidade e tambm os negros e os desocupados) com a
marginalidade (MISSE, 1995, p. 4-5).
Assim, embora as pesquisas indiquem a maior participao dos excludos do
sistema financeiro capitalista na criminalidade urbana e, segundo Minayo
(1994), na violncia na famlia, o crime no privilgio de uma classe
(MISSE, 1995, p. 5). Como lembra ainda Misse, a ndia, por exemplo, uma
sociedade cuja modernizao no rompeu com seus fundamentos sociais
tradicionais; no uma sociedade baseada no individualismo de massa (idem,
p. 6). Isso significa que o tipo de capitalismo praticado no Brasil e o que ele
produz em termos simblicos e subjetivos afetam a noo de convivncia
social, produzindo a desintegrao e deformao de valores norteadores para
a vida em sociedade.
Esse argumento contribui para refletir sobre a violncia urbana e tambm sobre
a violncia intrafamiliar, que ocorre em todas as classes sociais. As suas
motivaes no so facilmente identificadas. O debate promovido por Minayo,
com base em suas pesquisas, e por Misse ilumina a discusso do problema da
violncia no contexto familiar. possvel que a opresso do sistema capitalista
ou a excluso promovida pela sociedade individualista de massa causem
distores no modo como as pessoas lidam com o outro na sociedade. Ou
melhor, essas montagens ideolgicas podem impelir o indivduo a agir segundo
a sua prpria vontade ou impulsos, uma vez que no governado por
nenhuma lei fora de si mesmo. preciso considerar na discusso sobre o tema
que o modo como uma sociedade se organiza economicamente, os seus
valores, as suas crenas so fundamentais para torn-la melhor ou pior. Uma
sociedade centrada na performance individual, fundada coisificao das
pessoas, excludente e preconceituosa tender a produzir sofrimento, violncia
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
157
e injustias em grandes propores. Entretanto, a questo da prtica da
violncia parece ser mais complexa e paradoxal. Ainda no tivemos
conhecimento de uma sociedade no violenta. H, todavia, alguns
agrupamentos sociais mais e outros menos violentos. Ainda assim, essa
classificao requer uma reflexo sobre o que violncia, em cada um desses
contextos.
A violncia intrafamiliar: dados das pesquisas realizadas por profissionais de sade pblica
De acordo com os dados das pesquisas realizadas, por profissionais de sade
pblica, a violncia praticada na famlia geralmente mantida entre as suas
paredes. Seu alvo preferencial so crianas e jovens seguidos de mulheres e
idosos, normalmente nessa ordem.
H, muitas vezes, um acordo tcito entre os agressores e vtimas, no sentido
de preservar aquela famlia. Muito embora a violncia intrafamiliar possa
causar mortes, incapacitaes e ter graves conseqncias de ordem
emocional, social e cultural, existem, segundo Minayo (1994, p. 12),
negociaes e presses, por parte das vtimas e parentes e/ou interessados,
no sentido de evitar notificaes que tragam possveis transtornos legais.
Talvez isso se explique porque os traumas fsicos, psicolgicos, morais e
relacionais so muito mais amplos e complexos do que as notificaes
conseguem captar 8 (MINAYO, 1994, p. 12).
8 Segundo Minayo (1994, p. 12), A Associao Brasileira de Crianas Abusadas e Negligenciadas informa que, em 1992, no Brasil, houve cerca de 4,5 milhes de crianas vtimas de violncia. Estudos de Assis (1991) e Deslandes (1993) mostram, em abordagens espacialmente localizadas, que 33% das crianas e adolescentes relatam padecimento de atos violentos nas suas elaes com os pais. Agudelo (1989) comenta um estudo realizado num hospital de Cali, na Colmbia, que aponta 41/1.000 dos pacientes peditricos atendidos com diagnstico de problemas de maus-tratos. O autor relata tambm uma pesquisa realizada em um hospital de Medelln, na Colmbia, para os anos de 1987 e 1988, onde foi constatado que 73,8% das crianas maltratadas que recorreram aos servios pertencem a famlias que vivem com menos de um salrio mnimo, juntando-se, assim, a violncia estrutural e a violncia domstica.
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
158
Em seu estudo sobre a Ateno a Crianas e Adolescentes Vtimas de
Violncia Domstica, Deslandes (1994, p. 177) introduz o artigo dizendo:
Estudiosos afirmam que, quando se tratam dos aspectos de morbidade por
violncia contra crianas, o mbito familiar o lcus privilegiado destes atos
sociais (Azevedo & Guerra, 1989; Guerra, 1985; Oliveira, 1989; Santos, 1987;
Straus et al., 1980), infligidos quase sempre pelos prprios pais ou
responsveis e exercidos de forma variadas, isto , atravs de violncia fsica,
violncia sexual, violncia psicolgica, abandono intencional e negligncia, ou
seja, por um conjunto de atos violentos denominados maus-tratos.
A pesquisadora afirma que no Brasil h um grande desconhecimento sobre a
freqncia da violncia praticada contra a criana e adolescente, pois o pas
conta apenas com os registros nos poucos servios existentes (DESLANDES,
1994, p. 178). Em sua pesquisa, Deslandes focaliza a atuao de organizaes
consideradas pioneiras no atendimento a famlias que praticam a violncia
domstica. Seus estudos concluram que as condies econmicas das
famlias atendidas neste servio apontam que a maioria absoluta (sempre
acima de 70,0%) percebe uma renda familiar variando entre menos de um
salrio mnimo (SM) a trs salrios mnimos (id. ibid.). Porm, ela aponta que
a literatura clssica sobre o tema afirma que todas as classes sociais
vivenciam o problema da violncia domstica (DESLANDES, 1994, p. 179).
Segundo Deslandes, a famlia maltratante compreendida como partcipe de
um problema que envolve uma complexidade de determinantes culturais, scio-
psicolgicos, econmicos, religiosos e psiquitricos, cujas diferenas regionais
interferem na sua compreenso (SANTOS, 1991 apud DESLANDES, 1994, p.
178). Sua pesquisa aponta tambm uma alta incidncia de violncia nas
famlias numerosas de baixa renda. Ela atribui s presses, frustraes e
estresse que as privaes produzem como sendo as causas de
comportamento agressivo dos pais nas famlias. Porm, difcil concluir que a
violncia est apenas relacionada com a questo da presso econmica, uma
vez que o acesso a informaes sobre os conflitos intrafamiliares, nas famlias
de rendas superiores, muito dificultado.
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
159
De acordo com Deslandes, o acesso aos assuntos privados das famlias de
baixa renda mais facilitado, pois elas convivem com constantes e variadas
intervenes nas suas vidas privadas (do poder pblico, dos poderes locais,
dos poderes paralelos). J as famlias de maior poder aquisitivo geralmente
esto muito menos merc de serem notificadas, pois, ao utilizarem servios
privados de atendimento mdico, psicolgico e de educao, pagam tambm
pela discrio (DESLANDES, 1994, p. 180). Ou seja, as famlias mais pobres
tm a sua vida privada menos blindada, o que no significa que sejam mais
violentas do que as famlias de classe mdia ou mdia alta. O acesso s
experincias de violncia nessas famlias no o mesmo, porm a prtica
violenta existe em ambas.
Alm disso, Deslandes afirma tambm que quarenta ou cinqenta por cento
das famlias investigadas no contam com a presena de ambos os pais. Em
cerca de trinta a quarenta por cento das famlias a criana vive somente com a
me (DESLANDES, 1994, p. 180). Algumas pesquisas indicam que a ausncia
do pai verificada em cerca de 50% das famlias e que a separao conjugal e
a ausncia do pai agravam a violncia domstica. De modo geral, de acordo
com a pesquisa, as explicaes para a violncia tm por base a necessidade
de educar as crianas e o seu comportamento rebelde. comum tambm o
uso da agresso fsica como mtodo empregado na educao dos filhos. E
ainda, pesquisas mostram que a drogadio vista como sendo tambm
responsvel pela violncia.
De acordo com Niskier e Minayo (2004, p.33), a violncia intrafamiliar uma
forma de comunicao e de relao interpessoal. Os maus-tratos e abusos
fazem das crianas as suas maiores vtimas, isso porque, segundo as
pesquisadoras, a sua fragilidade fsica e de personalidade as tornam alvos
fceis do poder dos adultos (idem ibidem). A gravidade das agresses chega a
provocar invalidez temporria ou permanente, e, em alguns casos, a morte. A
violncia sexual tem as meninas como sua vtima mais fcil. Os agressores so
geralmente o pai, o padrasto ou ainda pessoas do relacionamento familiar ou
pessoas conhecidas. Do ponto de vista emocional, as vtimas, em geral,
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
160
tm mais dificuldade de aprendizagem, distrbios de comportamento como
disperso, fobias, terror noturno, comportamentos autodestrutivos, isolamento
social, precoces atitudes erotizadas [...], baixa estima, dificuldades para fazer
amizades, baixa auto-estima e depresso (NISKIER E MINAYO, 2004, p. 34).
Alm da violncia fsica, as crianas so tambm alvo de abuso psicolgico,
caracterizado por um ambiente de dominao e humilhante, que potencializa
sintomas de agressividade, passividade, hiperatividade, depresso e baixa
auto-estima. Essa forma de abuso pode aumentar nos jovens as dificuldades
de lidar com a sexualidade (idem, p. 35).
Niskier e Minayo chamam a ateno para o fato de que a negligncia, de modo
geral, identificada pela falta de provimento material, desde alimentos, roupas
a cuidados escolares, mdicos e afetivo. Reconhecem que para famlias que
vivem em situao de pobreza, a carncia material a que so submetidas
dificulta um julgamento mais preciso entre a prtica abusiva em relao aos
filhos e essa impossibilidade de prover os requisitos para o seu crescimento e
desenvolvimento. Por outro lado, enfatizam que na classe mdia e mdia alta o
que ocorre que a ausncia real e moral dos pais em relao ao dilogo, ao
afeto e ateno aos filhos muito freqente, tendo fortes repercusses no
comportamento infantil e juvenil (NISKIER E MINAYO, 2004, p. 35).
A violncia Intrafamiliar: vises convergentes de pesquisadores da sade pblica e de educadores
De certo modo, sejam quais forem as formas de violncia impingidas ou
praticadas, elas tm na famlia um campo frtil de manifestao. Porm, muitas
vezes, nesse mbito, ela se mantm protegida do olhar externo. por essa
razo que a escola desempenha um papel importante no sentido de se
responsabilizar e zelar pelo segurana fsica e emocional dos alunos, conforme
enfatizado nos Estatutos da Criana e do Adolescente (Art. 56. p. 49).
Esta reflexo sobre a violncia na famlia ancorada nos estudos de
pesquisadores da rea de sade pblica e tambm na pesquisa realizada com
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
161
educadores da escola pblica e da escola particular do Rio de Janeiro. Eles
contam histrias sobre as experincias de violncia na famlia vividas por
alunos. Interpretam e se posicionam em relao a elas.
Os seus posicionamentos (Bamberg, 1999, 2002) contribuem para a
construo de sentidos sobre o contexto social a que se referem e so
moldados por suas crenas e valores. Nas suas falas eles fazem
representaes de seus selves profissionais e pessoais (Goffman, 2002) e elas
so influenciadas pelo contexto imediato da interao (Mishler, 1999, 2002). O
aspecto central abordado aqui o modo como eles posicionam os seus
personagens: os filhos, os pais e a escola. Os filhos so posicionados como
vtimas de seus pais e dos valores da sociedade caudados em imposies de
que precisam corresponder aos modelos socialmente reconhecidos. Os pais,
negligentes, ausentes, permissivos ou, muitas vezes, pressionados pela
sociedade, seja porque ela no lhes oferece condies de subsistncia
melhores ou porque lhes impe valores fundados na crena em uma
performance de sucesso e de ascenso social.
Embora os educadores ofeream algumas explicaes, eles atribuem as
causas da violncia a um conjunto de fatores. Todavia, na sua fala, est
implcito que as aes que visam vigiar e punir as pessoas violentas podem, na
viso dos educadores, contribuir para cont-las. Uma das participantes, a
orientadora e professora Ina, afirma que o grande nmero de crianas com
marcas no corpo na escola da zona rural onde trabalhou poderia ter relao
com o fato de que os pais no tm conhecimento do Conselho Tutelar e das
possveis penalizaes a que podem ser submetidos. J na escola da
comunidade da zona sul a violncia no se expressa de forma to
aparentemente brutal, pois, segundo ela, os pais sabem que podem ser
denunciados no Conselho e, assim, terem que responder legalmente pelos
seus atos.
A entrevista realizada com os educadores lhes possibilitou descrever as suas
experincias nas escolas onde atuaram e/ou atuam como professores,
orientadores ou coordenadores. A orientadora da escola pblica, Ina, conta
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
162
histrias de crianas de uma escola da zona rural do Rio de Janeiro que
apresentavam marcas de agresses no corpo, provocadas por queimaduras de
cigarro, isqueiro, ferro, espancamento.
Segundo ela, esse o tipo de agresso muito comum naquela rea da cidade.
J na comunidade da zona sul onde tambm trabalha como professora a forma
de agresso mais comum o espancamento. Em sua opinio, essa diferena
devido maior ou menor proximidade com o Conselho Tutelar. Na
interpretao de Ina, os pais moradores daquela comunidade tm
conhecimento das aes do Conselho Tutelar, por isso evitam marcas que
possam tornar visveis a agresso. A orientadora conclui tambm que as
crianas que sofrem marcas no corpo so mais oprimidas, enquanto as que
apanham tendem a ser mais agressivas. Alm disso, ela confirma os dados de
pesquisas sobre violncia intrafamiliar que mostram que as crianas so alvos
mais fceis. A ao do Conselho colocada em questo, uma vez que as
condies com as quais opera nos lhes permite, segundo as educadoras, dar o
retorno ou encaminhar as denncias como deveria. Elas alegam que o
Conselho precisa priorizar os casos. Muitas vezes os problemas de drogadio
so considerados mais urgentes do que os casos de espancamentos e
agresses fsicas ou psicolgicas.
Leo, o coordenador da escola particular de classe mdia alta da zona sul do
Rio de Janeiro conta que na sua experincia viu muitas histrias de sofrimento
de adolescentes, faixa etria com a qual trabalhava. Segundo ele, a questo
mais comum nessas escolas que atendem a alunos dessa classe social a
negligncia dos pais. Ele diz tambm que muitas vezes o sofrimento dos jovens
resultado da forte presso psicolgica sofrida no seu convvio familiar por
uma demanda de sucesso. Os jovens sofrem presses nesse sentido e no
tm o apoio psicolgico, afetivo e emocional dos pais. As relaes so, muitas
vezes, baseadas em cobranas, sem que se estabelea uma relao afetiva,
ou ento os pais esto envolvidos com as suas prprias vidas e anseios, que
simplesmente abandonam os filhos. H casos em que os jovens so
sistematicamente depreciados e tambm histrias de conivncia dos pais em
relao aos erros dos filhos, agindo assim no extremo oposto. Os resultados
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
163
so igualmente desastrosos. O coordenador chama a ateno para o fato de
que um grande nmero de jovens apresenta preocupao exacerbada com a
aparncia fsica e que h muita frustrao quando no tm o fsico valorizado
pela mdia ou pelo grupo a que pertencem. Isso resulta em uma srie de
desordens alimentares ou baixa auto-estima.
Para ambos os educadores, geralmente os alunos que vivem problemas graves
na famlia apresentam dificuldade de aprendizagem ou comportamento social
alterado: isolamento ou indisciplina. A escola, ao identificar o problema, inicia
um processo de investigao para saber o que se passa com o aluno e em
seguida encaminha a questo, que culmina com o convite para que os pais
compaream escola.
Na escola pblica, conforme apontam os dados, muitas vezes a famlia ignora
o convite, e, dependendo da gravidade do caso, o Conselho Tutelar
acionado, porm, ele nem sempre d retorno. A razo, segundo as
orientadoras, o grande nmero de casos e falta de pessoal para atender a
essa demanda. Na escola particular, por sua vez, depois de conversas com o
aluno, a famlia chamada, e, conforme o relato do coordenador, quando ela
chega o problema est de tal modo mapeado que no ela tem como negar. A
escola tenta dialogar com os pais e orient-los sobre como agir. De modo
geral, mesmo quando os problemas so mais graves a escola procura resolver
internamente, evitando a sua exposio e a da famlia. Na maioria das vezes,
encaminha os alunos para que tenham atendimento com profissionais
especializados, porm, comum a famlia tirar o filho ou a filha da escola por
no querer seguir as suas orientaes ou negarem o problema.
Essas questes tornam evidente o fato de que hoje so exigidas novas
habilidades do professor uma vez que a fronteira entre a escola e a famlia j
no to ntida. A escola desempenha, cada vez mais, o papel adicional de
cuidar dos alunos tanto acadmica e intelectualmente quanto emocional e
psicologicamente.
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
164
Os dados de pesquisas realizadas em servios pblicos de atendimento a
pessoas que sofreram maus tratos na famlia coincidem com as informaes
dos educadores que participaram desta pesquisa e com falas de professores e
profissionais que atuam no contexto escolar. Na rede pblica de ensino,
comum ouvir dos professores que algumas mes alegam precisar bater nos
filhos para educ-los e atribuem a sua intolerncia a dificuldades que
atravessam. A ausncia da figura paterna tambm frequentemente
mencionada. Na escola particular, os profissionais falam com freqncia sobre
o abandono a que so submetidos os filhos nas famlias de classe mdia e
mdia alta. Em ambos os casos, a ausncia dos pais em relao ao afeto e
dilogo com os filhos est presente e cada vez mais freqente. Porm, se na
fala das educadoras da escola pblica os filhos sofrem com a ausncia de um
pai que est inclusive fisicamente distante, enquanto na classe mdia-alta,
geralmente, h a negligncia do pai fisicamente presente. Os conflitos dos
casais, as separaes difceis so considerados pelo coordenador da escola
particular, Leo, como sendo um problema gerador de sofrimento nos jovens.
Outro dado relevante que observado na anlise da fala de uma da orientadora
e professora, Ina, e que coincide com os resultados das pesquisas
desenvolvidas por profissionais da sade pblica o fato de que as crianas
so alvos mais freqentes de agresso. Sobre isso, Deslandes (1994 p. 180)
oferece um quadro com a distribuio das faixas etrias mais suscetveis
violncia domstica e mostra que crianas pequenas de 0-6 anos e de 6-9
anos so vtimas freqentes. Dados dos Centros Regionais de Ateno aos
Maus Tratos na Infncia (CRAMI9), entretanto, sugerem que crianas de 10-14
anos so mais frequentemente agredidas. Em alguns estudos, o alvo
preferencial de prticas abusivas so os meninos e primognitos
9 O CRAMI - Centro Regional de Ateno aos Maus Tratos na Infncia do ABCD uma Organizao No Governamental, sem qualquer vnculo poltico ou religioso, fundada em 1988 e declarada de Utilidade Pblica Municipal, Estadual e Federal. Segundo o seu estatuto, sua MISSO propiciar atendimento psicossocial a crianas e adolescentes vtimas de violncia domstica e desenvolver aes preventivas que lhes possibilitem defesa e proteo incondicional. Essa misso fundamentada no Artigo 5 do Estatuto da Criana e do Adolescente, segundo o qual "nenhuma criana ou adolescente ser objeto de qualquer forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso, punido na forma da lei qualquer atentado, por ao ou omisso, aos seus direitos fundamentais."
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
165
Em relao ao agressor, Deslandes (1994) aponta que, em grande parte, as
agresses so praticadas pela me. A esse respeito, os educadores da escola
pblica entrevistados nesta pesquisa fazem freqentes aluses a pais ausentes
e agressivos, enquanto as mes so apontadas como responsveis pelas
agresses com menor freqncia. Na opinio de Ina, o pai e a me agridem
igualmente, embora, de acordo com as histrias que conta, na zona rural o pai
foi apontado como o agressor na grande maioria dos casos. A me, por sua
vez, foi posicionada como passiva e submissa. O argumento de que a me
quem passa a maior parte do tempo com os filhos e por isso se v autorizada a
puni-los para educ-los foi usado pela diretora da escola pblica, Bia. Nesse
caso, havia um tom de compreenso e solidariedade a essas mes.
Segundo os dados das pesquisas realizadas por Deslandes (1994), quando o
agressor a me, observa-se que a maioria do lar ou est desempregada.
Alm disso, ela afirma que grande parte dos estudos sobre a causalidade dos
maus-tratos indica, entre muitos outros fatores, o desemprego e a baixa renda
como responsveis pela frustrao e pelo estresse (DESLANDES, 1994, p.
182). Porm, embora esse seja um argumento comum, tal associao
indiscriminada pode gerar uma criminalizao da pobreza, colocando
segmentos sociais inteiros como suspeitos ou na mira de permanentes
julgamentos prvios (GOMES, DESLANDES, VEIGA, BHERING & SANTOS,
2002, p. 712).
Outro aspecto importante observado na pesquisa citada o fato de que
frequentemente os profissionais explicam a violncia do agressor como sendo
causada pelas condies de vida precria, o que se traduz em: pais que
apanham da vida e acabam batendo nos filhos (GOMES, JUNQUEIRA, SILVA
& JUNGER, 2002, p.280). Esse pensamento muito difundido pode estar
associado ao fato de que os casos de agresso nas famlias de baixa renda
so normalmente notificados, enquanto as famlias de classe mdia e alta
contam com mecanismos que lhes garantem o sigilo (id. ibid.). Alm disso,
Deslandes (1993) chama a ateno para o fato de que as famlias mais pobres
so tambm mais numerosas e mais sujeitas notificao. Essa constatao
ratificada na entrevista com as educadoras que citam com maior freqncia o
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
166
Conselho Tutelar como instrumento de notificao e denncias, enquanto na
escola particular esse dispositivo legal no mencionado. Geralmente, a
escola busca entendimento com as famlias, sem envolver os mecanismos
legais, oficiais, para evitar exposio pblica sua e dos envolvidos.
Conforme apontam os resultados da pesquisa sobre maus-tratos contra
crianas e adolescentes realizada em uma unidade pblica de sade por
Gomes, Junqueira, Silva e Junger (2002, p. 277), h o aspecto visvel e
invisvel da violncia e a descrena na resolubilidade dos casos de maus-
tratos. Alguns estudos (GOMES, JUNQUEIRA, SILVA & JUNGER, 2002)
apontam para o fato de que profissionais responsveis pelas crianas e
adolescentes so negligentes em relao aos casos nos quais a violncia
menos visvel. Assim, outras formas de violncia praticadas, tais como, o
abandono, a indiferena, a presso psicolgica, por no serem facilmente
detectadas, no so, muitas vezes, motivo de ateno desses profissionais. De
modo geral, como se pode observar a escola particular acaba exercendo maior
controle, uma vez que dispe de colaboradores que ajudam a acompanhar o
desempenho e atitude dos alunos, o que no assegura, entretanto, que eles
sejam devidamente assistidos.
Os dados apresentados nas pesquisas citadas enriquecem a anlise deste
estudo sobre violncia na famlia sob a tica dos educadores na escola, pois,
embora tenham sido desenvolvidos em contextos de sade, os resultados, as
avaliaes e/ou respostas dos participantes aos problemas apresentados no
diferem muito daqueles observados nas entrevistas realizadas com professores
das escolas.
Vale ressaltar que as interpretaes e dados apresentados na pesquisa
realizada com os educadores no so concluses ou generalizaes aplicveis
a todos os contextos escolares e contextos sociais mencionados. Devem,
outrossim, contribuir para estudos posteriores e/ou aes que visem acolher os
alunos no seu sofrimento e conscientizar as famlias, os profissionais de
educao e sade, i.e., a sociedade, de modo geral, sobre a sua
responsabilidade em relao s crianas e tambm aos jovens, no importando
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
167
quais sejam as suas raas, etnias, classes sociais, sexos, preferncias sexuais,
crenas religiosas.
Concluso
Este artigo foi inspirado em uma pesquisa sobre histrias de violncia
intrafamiliar vividas por alunos, crianas e adolescentes, narradas por
profissionais de uma escola pblica e uma escola particular do Rio de Janeiro.
Inicio com uma breve tentativa de conceituar a violncia do ponto de vista da
filsofa Marilena Chau, do socilogo Michel Misse e da pesquisadora da rea
de sade pblica, Ceclia Minayo. Em seguida, apresento uma reviso
bibliogrfica de pesquisas realizadas por profissionais da sade pblica que se
dedicam ao problema da violncia intrafamiliar e que apontam, nos dados das
suas investigaes, quem so os alvos mais freqentes de agresso na famlia,
a incidncia em que ela ocorre e de que modo ela se manifesta nos diferentes
grupos sociais. Essas pesquisas no oferecem respostas em relao s
causas da violncia, mas sugerem que ela seja um problema da vida em
sociedade, que atinge todas as classes sociais.
Embora, de acordo com as pesquisas e os estudiosos citados, no seja
possvel identificar as causas da violncia, acredita-se que a marginalizao de
alguns grupos sociais, privados de condies mais dignas de vida - trabalho
qualificado, assistncia mdica e educao formal de qualidade seja
geradora de grande estresse pessoal, o que poderia levar algumas pessoas a
prticas violentas. Entretanto, ainda assim, julgar que essa seja a causa
fundamental da violncia seria admitir que as famlias que vivem em tais
condies sejam violentas ou propensas a isso, e que aquelas que tm acesso
a esses bens estejam livres desse tipo de experincia, o que no ocorre. As
pesquisas contempladas neste artigo mostram que agresso, negligncia,
abandono so comuns tambm s famlias de classe mdia alta, que tm pleno
acesso aos bens subjetivos e materiais necessrios para uma vida digna.
possvel que, nesses casos, o medo da perda do poder conquistado pela
condio econmica e a obsesso por um desempenho individual baseado no
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
168
sucesso, isto , pela garantia da conquista de uma posio social cada vez
mais valorizada, tornem as pessoas mais distantes de uma experincia
coletiva, levando-as a sobrepor suas prprias demandas, mesmo que em
detrimento de outros. Porm, ainda assim, essas so apenas especulaes.
Finalmente, o artigo aborda alguns pontos centrais das falas dos educadores
que participaram da pesquisa sobre violncia intrafamilar: duas orientadoras e
uma diretora de uma escola pblica da zona sul do Rio de Janeiro e um
coordenador de uma escola particular, da mesma regio da cidade. Essas falas
foram extradas de entrevistas nas quais esses profissionais relataram as suas
experincias nas escolas onde trabalham ou trabalharam. Os relatos
construdos nas entrevistas no so apenas eventos de fala isolados; esto
situados em um contexto social macro, onde foras polticas e ideolgicas
influenciam as prticas e, consequentemente, a vida das pessoas.
O artigo chama a ateno para o fato de que h pontos comuns na fala dos
educadores e nos resultados das pesquisas dos profissionais de sade, tais
como os tipos de agresso, as faixas etrias atingidas e o fato de que a
violncia no se restringe a uma determinada classe social. Ambos os
contextos de pesquisa indicam que h maior conhecimento sobre as agresses
vividas nas famlias de classe pobre porque elas so normalmente mais
notificadas. As famlias de classe mdia alta protegem-se mais, uma vez que
tm ao seu dispor atendimento de profissionais particulares: psiclogos,
psiquiatras, advogados etc.
Os educadores alegam que tanto na escola pblica quanto na particular
crescente a indisciplina escolar e as desordens emocionais das crianas e
jovens, muitas vezes levado medicalizao precocemente. Os educadores,
de modo geral, associam o sofrimento dos jovens ausncia dos pais,
principalmente, o pai, um problema cada vez maior em todas as classes
sociais.
A percepo dos educadores e dos pesquisadores de sade pblica sobre o
que violncia, agresso, humilhao, sofrimento ancorada em uma
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
169
concepo que vigora na sociedade, baseada no princpio de que violncia
todo o ato que fere os princpios do direito a uma vida humana digna. Assim, o
modo como os educadores e os pesquisadores nomeiam a violncia no
singular, individual. influenciado por crenas compartilhadas, consensuais,
atualizadas nas suas falas ou nos seus textos.
bem possvel que, dada a complexidade da questo da violncia, no
possamos conhecer uma sociedade privada desse tipo experincia. Todavia,
novas formas de organizao social podem contribuir para uma vida mais
humana. Elas so marcadas por aes coletivas, com forte mobilizao da
sociedade com o intuito de demandar da sociedade e do Estado o
compromisso com a formao e educao das crianas e jovens, nas suas
casas, na escola e no mundo, oferecendo-lhes a possibilidade de participao
no mundo do trabalho, de acesso ao conhecimento e do exerccio da
convivncia social, diminuindo, assim, as distncias que separam os grupos
sociais: uma perspectiva de cidadania plena. REFERNCIAS AZEVEDO, Maria Amlia Nogueira de, GUERRA, V. N. A. (Orgs.). Crianas
Vitimizadas: A Sndrome do Pequeno Poder. So Paulo: Iglu, 1989.
BAMBERG, Michael. Construindo a masculinidade na adolescncia: posicionamentos e o processo de construo da identidade aos 15 anos. In:
MOITA LOPES, Lus Paulo, BASTOS, Liliana Cabral. Identidades. Recortes
multi e interdisciplinares, p.149-185. Campinas: Mercado de Letras, 2002.
______. Is there anything behind discourse? Narrative and the local Accomplishments of identities. In: MAIERS, W., BAYER et alii (eds.).
Challenges to theoretical psychology. Nova York, Ontrio: Captus University
Publications, 1999.
BAUMAN, Zygmund. Liquid Modernity. UK: Polity Press, 2000.
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
170
______. Globalizao. As Conseqncias Humanas. Trad. Marcus Penchel.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999.
BRASIL. Estatuto da Criana e do Adolescente. Lei Federal 8069 de
13/07/1990. SP: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2008.
CAMARNADO, Drusio Vicente Jr, VILLELA, Wilza Vieira. BIS - Boletim do
Instituto de Sade, n. 33. So Paulo: Instituto de Sade, 2004.
CHAU, Marilena. Convite Filosofia. So Paulo: Editora tica, 1996.
______. Ensaio: tica e Violncia. Revista Teoria e Debate, ano 11, n 39, 1998.
Cdigo Penal do Brasil criado pelo decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de
1940.
CRAMI (Centros Regionais de Ateno aos Maus-Tratos na Infncia).
Documento de Divulgao. Campinas: Crami. (Mimeo.), 1992.
CUNHA, Jos Ricardo. Direitos Humanos e Justiciabilidade: Pesquisa no
Tribunal de Justia do Rio de Janeiro. Revista Internacional de Direitos Humanos: SUR v. 2, n. 3, 2005.
DA MATTA, Roberto. As razes da violncia no Brasil: reflexes de um
antroplogo social. In: Violncia Brasileira (P. S. Pinheiro, org.), pp. 14-28, So
Paulo: Brasiliense, 1982.
DENISOV, V. Violencia Social: Ideologia y Politica. Moscou: Progreso, 1986.
DESLANDES, Suely Ferreira. Guia de atuao frente a maus-tratos na infncia
e na adolescncia. Orientaes para pediatras e demais profissionais que
trabalham com crianas e adolescentes. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
171
______. Prevenir e proteger: anlise de um servio de ateno aos maus tratos
na infncia. 1993. Dissertao - Escola Nacional de Sade Pblica da
Fundao Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 1993.
______. Prevenir a violncia um desafio para profissionais de sade. Rio de
Janeiro: FIOCRUZ / ENSP / CLAVES, 1994.
DOMENACH, Jean-Marie. La violencia. In: La Violencia y sus Causas (A. Joxe,
org.), pp. 33-45, Paris: Unesco, 1981.
FOUCAULT, Michel. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Edies Graal,
[1979] 2002.
______. A Ordem do Discurso. (Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio). 7.
ed. SP: Edies Loyola. [1971] 2001.
______. Vigiar e Punir. Petrpolis-RJ: Vozes, [1975] 2002.
FREUD, Sigmund. Reflexes para os tempos de guerra e morte. In: Obras
Completas de Sigmund Freud, pp. 311-339, Rio de Janeiro: Imago, 1974.
GOFFMAN, Erving. A Representao do Eu na Vida Cotidiana. Petrpolis:
Vozes, [1959] 2005.
______. Footing. In: RIBEIRO, B. T. e P. GARCEZ (orgs). Sociolingstica
Interacional. So Paulo: Edies Loyola, [1981] 2002.
______. A situao negligenciada. In: Sociolingstica Interacional.
Antropologia, Lingstica e Sociologia em Anlise do Discurso. RIBEIRO, B. T.
& GARCEZ, Pedro M. (Orgs.) Porto Alegre: Editora AGE,1998.
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
172
GOMES, Romeu; DESLANDES, Suely Ferreira; VEIGA, Mrcia Mota;
BHERING, Carlos; SANTOS, Jacqueline F. C. Por que as crianas so
maltratadas? Explicao para a prtica de maus-tratos infantis na literatura.
Cadernos de Sade Pblica (FIOCRUZ), Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, p. 707-714,
2002.
______; JUNQUEIRA, Maria de Ftima Pinheiro da Silva; SILVA, Cristiani de
Oliveira; JUNGER, Washington Leite. A Abordagem dos Maus-Tratos contra a
Criana e o Adolescente em uma Unidade Pblica de Sade. Cincia & Sade
Coletiva, Rio de Janeiro: ABRASCO, v. 7, n. 2, p. 275-283, 2002.
GUERRA, V. N. A. Violncia de Pais Contra Filhos: Procuram-se Vtimas. So
Paulo: Cortez, 1985.
HABERMAS, Jrgen. O conceito de poder de Hannah Arendt. In: Habermas (B.
Freitag & S. P. Rouanet, org.), pp. 100-118, So Paulo: tica, 1980.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A fenomenologia do esprito. In: Hegel. So Paulo: Abril, 1980. pp. 03-71.
Hein, Arturo. Derechos Humanos y superacin de la Violencia en Colmbia.
Bogot (Colmbia): PNUD, 1993.
IBGE (Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica). Sntese de
Indicadores da Pesquisa Bsica da PNAD de 1981-1989. Rio de Janeiro: IBGE,
1990.
KRUG, Ethiene G. et al (Org). Relatrio Mundial sobre Violncia e Sade.
Genebra (Sua): Organizao Mundial de Sade (OMS), 2002.
MARMO, Denise Barbieri; DAVOLI, Aline; OGIDO, Rosalina. Violncia
domstica contra a criana. Jornal de Pediatria, 71, p. 13-316, 1995.
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
173
MINAYO, Maria Ceclia de Souza. Conceitos, teorias e tipologias de violncia: a
violncia faz mal sade individual e coletiva. In: Curso de Impactos de
Violncia na Sade: Bases conceituais e histricas da violncia e setor sade.
Unidade 1. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. pp. 14-33.
______; DESLANDES, Suely Ferreira. Anlise da implantao do sistema de
atendimento pr-hospitalar mvel em cinco capitais brasileiras. Cadernos de Sade Pblica. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008. v. 24, p. 1877-1886.
______; SOUZA, Edinilsa Ramos de. Violncia e Sade como um Campo
Interdisciplinar e de Ao Coletiva. Histria, Cincias, Sade: Manguinhos, p.
513-531, nov. 1998- Fev. 1998.
______; SOUZA, Edinilsa Ramos de. possvel prevenir a violncia?
Reflexes a partir do campo da sade pblica. In: Cincia & Sade Coletiva,
v.4, n. 1, p. 7-23, 1999.
______. A violncia social sob a perspectiva da sade pblica. In: Caderno de Sade Pblica. Rio de Janeiro: 10 (supl. 1), 1994.
______. A violncia na adolescncia: Um problema de sade pblica. In:
Caderno de Sade Pblica. Rio de Janeiro: 6 (3), jul-set/1990.
MISHLER, Elliot. Narrativa e Identidade: a mo dupla do tempo. In MOITA
Lopes, Luiz Paulo e BASTOS, Liliana Cabral. Identidades. Recortes multi e
interdisciplinares. Campinas: Mercado de Letras, 2002. pp. 97-119.
________________. Storylines. Craftartists narratives of identity. Cambridge: Harvard Univeristy Press, 1999
MISSE, Michel. Sobre a construo social do crime no Brasil: esboos de uma interpretao. In: Michel Misse (org.). Acusados e Acusadores. Estudos sobre
-
CAMPOS, Sonia Isabel Fabris. O Tabu da Violncia Intrafamiliar: a escola na fronteira. SINAIS - Revista Eletrnica. Cincias Sociais. Vitria: CCHN, UFES, Edio n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 145-174.
174
ofensas, acusaes e incriminaes. Rio de Janeiro: Editora Revan/Faperj,
2008.
______. A violncia como sujeito difuso. In: Feghali, Jandira, Candido Mendes e Lemgruber, Julita (Orgs.). Reflexes sobre a violncia urbana. Insegurana e
Desesperanas. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, 2006.
______. Violncia e Participao Poltica no Rio de Janeiro. Srie de Estudos. Rio de Janeiro: IUPERJ1995. n. 91.
______. Violncia: o que foi que aconteceu? Disponvel em:
. Acessado em 3/01/2010.
NISKIER, Raquel Sanchez, MINAYO, Maria Ceclia de Souza. Violncia Contra
Crianas e Adolescentes: Questo Histrica, Social e de Sade. In: Violncia
Faz Mal Sade. Ministrio da Sade. Braslia. Editora MS, 2004. pp. 29-37.
OLIVEIRA, W. F. Street Kids in Brazil: an Explanatory Study of Medical Status
Health Knowledge and the Self. Tese de Mestrado. Minnesota: University of
Minnesota, 1989.
SANTOS, Heloisa Occhiuze dos. Crianas Violadas. So Paulo: FCBIA, 1991.
______. Crianas Espancadas. Campinas: Papirus, 1987.
SARTRE, Jean Paul. A questo do mtodo. In: Sartre, pp. 70-92. Coleo OS
Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1980.
STRAUS, Murray A.; GELLES, Richard J.; STEINMETZ, Suzanne K. Behind Closed Doors: Violence in the American Family. Garden City: Anchor Press,
1980.
top related