amor e amargor - crônicas agridoces

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Amor & Amargor: crônicas agridoces ressalta a contradição que permeia os aspectos fundamentais da nossa existência: o amor à vida, ainda que diante da certeza da morte; a angústia da morte, apesar do conforto dessa convicção única; o nosso desprezo pelo tempo, a despeito de sua indissociável relação com a vida; o amor obstinado à fé, em oposição ao progresso da ciência; o amor ao conhecimento e ao desconhecido, mesmo diante de nossa miséria social e cultural; e, por fim, o despercebido amor ao fútil, ao estéril e ao desnecessário, em detrimento do amor à natureza e à própria vida. Mas se, por um lado, esse ciclo vicioso de amores contraditórios pode revelar-se profundamente embaraçoso, por outro, é a incoerência desses sentimentos que oferece o tempero agridoce da realidade humana. E quando o assunto é incoerência, o autor não hesita em colocar-se como exemplo ilustrativo, numa desatinada tentativa de vivenciar a essência como forma de superação do supérfluo e do mesquinho de cada dia.

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Amor & AmArgor

crônicas agridoces

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Ricardo Otavio Costa

São Paulo, 2013

COLEÇÃO NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

Amor & AmArgor

crônicas agridoces

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Copyright © 2013 by Ricardo Otavio Costa

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográficoda Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no. 54, de 1995)

Costa, Ricardo OtavioAmor & Amargor : crônicas agridoces / Ricardo Otavio Costa – Barueri, SP : Novo Século Editora, 2013. – (Coleção novos talentos da literatura brasileira)

1. Crônicas brasileiras I. Título.

13-12356 cdd-869.93

Índices para catálogo sistemático:1. Mulheres : Autobiografia 869.93

2013IMPRESSO NO BRASIL

PRINTED IN BRAZILDIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO

À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA.CEA – Centro Empresarial Araguaia II

Alameda Araguaia, 2190 – 11o- andarBloco A – Conjunto 1111

CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SPTel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323

[email protected]

Coordenação Editorial Nair Ferraz Diagramação Edivane Andrade de Matos/Efanet Design Capa Monalisa Morato Revisão Paulo Alexandre Rocha Rita Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

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Para Fabiane

Se o percurso é difícil, resta o consolo da caminhada. Se a caminhada é penosa, resta o sentido da jornada.

Se a jornada não faz sentido, prudente é arbitrar um propósito. Amar, simplesmente, já não seria suficiente?

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Sumário

Apresentação 9

I - UM POUCO DE AMOR 18Três homens, três vozes 19

Um pedido 23A Carta 27

Sargento Geraldo 33Indelével ingenuidade 37

Contraditório recomeço 41Este silêncio que nos une 45

Uma história de Josés 47Essa emoção inominável 53

II - AMARGOR A GOSTO 56Crime comum 57

Máscaras, fantasias e adereços 63Um Eu irresignável 67

Essa liberdade não, obrigado 71A solidariedade é nobre 75

A ocasião faz o herói 79Isaías 85

Teatro do anacronismo 89Cidade, esse ambiente hostil 93

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III - MAIS AMARGOR (sem perder o humor) 96Solicitação de um bêbado inconformado 97

Nós não somos assim 101Receita de hipocrisia social 105Sua Excelência, o babaca 109As cores da competência 113

Nos tempos do futebol-arte 119O gênio que gostaríamos de ser 129

Que diferença faz o conhecimento? 133Que diferença faz o conhecimento!? 137

A mais real das fantasias 143

IV - AGRIDOCE 148Lenitivo: oração dos desvalidos 149

Terra 153Uma pequena ternura 159

Um dia qualquer 161Um caso com a cidade 165

Reconhecimento a quem não me conhece 169Em defesa dos escritores medíocres 173

O poeta de poucas palavras 177Homenagem ao criador 183

Um pedaço de azul 187A dor do irretratável 191

Um sussurro inaudível 195Consentimento 201

Primeira síntese autobiográfica 205

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ApreSentAção

QUANDO UM MESTRE da literatura como Guimarães Rosa sugere a outro mestre como Fernando Sabino que deixe de assar biscoitos para construir pirâmides, evidencia-se o parecer, talvez dominante, de que as crônicas são peças textuais rapidamente consumidas e cujo propósito é apenas o de distrair o espírito do leitor, sem contudo infundir-lhe elementos edificantes. Mas tal parecer não encontra unanimidade entre os especialistas quando se trata da obra de escritores como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, para citar apenas alguns cronistas de cuja genialidade não haveria quem ousasse discordar. Esses e mui-tos outros dominavam a arte de escrever crônicas atemporais, ou, num infame e surrado trocadilho, crônicas que nunca se torna-riam anacrônicas. Sua arte estava associada à notável capacidade de selecionar, entre os temas do cotidiano, aqueles que não são efê-meros, e de construir textos que, mesmo em prosa ligeira, viriam durante décadas despertar a emoção do leitor ao tangenciarem a essência humana. Empregar a essência humana como argumento literário significa falar de um assunto que não perde o vigor, não se deprecia ao longo dos anos, não se altera com o lançamento de uma nova edição. A crônica escrita por Rubem Braga na década

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de 1930 diz respeito aos mesmos sentimentos do leitor do século XXI. Por isso, perdura.

Manuel Bandeira dizia que Rubem Braga era sempre bom, mas quando não tinha assunto, então, era ótimo. A falta de assun-to a que aludiu o poeta – referindo-se à ausência de notícias dignas de servir ao propósito criativo do cronista –, quando associada à reiterada aflição da obrigação de escrever com prazo marcado, é apontada por célebres cronistas como o pior dos martírios de sua profissão. O próprio Rubem Braga, consensual mestre da crôni-ca, vem confirmar com inigualáveis requintes de humor o uso do recurso da falta de assunto diante dos “(...) jornais lidos e relidos na minha mesa, sem nada interessante” e a aflição causada pela pe-riodicidade do ato de escrever: “Eu tenho de suportar vocês diaria-mente, sem descanso e sem remédio. Vocês podem virar a página, podem fugir de mim quando entenderem. Eu tenho de estar aqui todo dia, exposto à curiosidade estúpida ou à indiferença humi-lhante de dezenas de milhares de pessoas”.

Vinicius de Moraes chega a descrever a profissão do cronista como uma “arte ingrata”, reconhecendo que, na ausência de “(...) um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou da véspera, em que, com as suas artimanhas peculiares, possa injetar sangue novo, (...) resta-lhe o recurso de olhar em torno e esperar que, por meio de um processo associativo, surja-lhe de repente a crônica, provinda dos fatos e feitos de sua vida emo-cionalmente despertados pela concentração”. E ainda acrescenta que “(...) em última instância, (resta) recorrer ao assunto da falta de assunto, já bastante gasto, mas do qual, no ato de escrever, pode surgir o inesperado”. Pode-se imaginar que aquele recurso de “olhar em torno” em busca da despercebida emoção num fato ordinário e indigno de se tornar notícia, eventualmente aplica- do na concepção de sua “arte ingrata”, decerto se assemelha ao re- curso empregado como regra na arte pela qual se tornou célebre

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e que, sem o compromisso estabelecido pelo relógio, viria resultar na expressividade de sua obra poética.

Pois, justamente, quando um cronista da envergadura dos já citados, na sua incessante e confessadamente aflitiva busca pelo próximo tema, consegue fugir aos assuntos cuja existência depende inextricavelmente da cronologia dos acontecimentos da semana, passando por reflexões que abordam os dramas humanos e atingindo a essência do que há para ser dito, nasce a crônica atemporal. Assim como um poema, a crônica atemporal tem a propriedade de transportar a carga emocional do autor, porém, contraditoriamente exposta de forma objetiva. Rubem Braga era indiscutivelmente um poeta prosador.

Ao contrário da crônica de cunho jornalístico, que resulta necessariamente da ocorrência de um fato real e, por conseguinte, tem o sentido da notícia, a crônica atemporal tem vida própria porque surge independentemente da realidade concreta situada no tempo e no espaço. A crônica jornalística, de fato, costuma tra-tar de temas relevantes apenas no contexto determinado por uma “janela de tempo” bastante estreita, razão do próprio termo que a denomina, prestando-se mais comumente a expressar opiniões sobre matérias cujo interesse pode esgotar-se tão logo se proce-da à abertura da edição do dia seguinte. Como afirma Ferreira Gullar, outro notório poeta cronista, “A crônica é literatura sem pretensão, que não se bate com a morte: sai do casulo, voa no sol da manhã (a crônica é matutina) e, antes que o dia acabe, suas asas desfeitas rolam nas calçadas”. É verdade que a crônica, seja ela de que espécie for, é rápida e essencialmente livre. Mas a crônica atemporal resiste. Ainda que pertencente à categoria dos biscoitos, seu sabor estende-se por décadas, subsistindo contrariamente às expectativas pessimistas baseadas na sua objetividade temática e vocabular. Nela, o cronista expõe-se em primeira pessoa, longe do refúgio oferecido por seus personagens fictícios, cuja criação lhe

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serve apenas de pretexto para registrar suas próprias ideias. E faz da crônica palco de suas reflexões e devaneios, de seus monólogos, de suas abertas declarações de amor e amargor, de sua colocação como ser humano.

Carlos Drummond de Andrade é ilustre exemplo do argu-mento. Em prefácio a um livro de crônicas do poeta, Fernando Py apresenta, como um dos critérios de seleção da coletânea, a inclusão daquelas crônicas que “(...) não trouxessem a restrição da marca do tempo muito evidente, podendo ser lidas quase como se escritas no momento presente”, evidenciando uma linha trivial de raciocínio com base na qual se justifica conferir uma nova roupagem à crônica de jornal.

E se, historicamente, renomados poetas acabam adotando a crônica como profissão, o cronista Paulo Mendes Campos parece contrariar a regra servindo-se da crônica com o propósito oculto de fazer sua poesia: “Não quero mais ir, quero ficar; não quero mais procurar, quero conhecer o que já encontrei; para quem sou, as alegrias e as tristezas que já tenho estão de bom tamanho”. É capaz de converter em patrimônio as paisagens de todas as suas janelas e até de personificar uma aurora ao conferir-lhe poder de perdoar pecados. Como afirma Flávio Pinheiro, “(...) o horror à vulgari-dade, temática e vernacular, dá perenidade a quase tudo o que ele fez”, ressaltando mais uma vez a existência de certos pré-requisitos literários para a criação de uma crônica atemporal.

Em concordância com tal raciocínio, Domício Proença Filho, referindo-se à crônica de Rubem Braga, afirma que o autor, “(...) no fazer do seu texto, capta e expressa aspectos com que se identifica a emoção profunda dos seus leitores”. E acrescenta: “É pouco comum entre os cultores dessa forma de prosar. Nesse sentido, apesar das limitações da modalidade a que se dedica, sua crônica reveste-se de caráter modelar e carrega-se de instân-cias universalizantes que asseguram permanência e atualidade”.

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Fica ainda mais evidente que o caráter universal que Rubem Braga conseguiu imprimir à sua crônica tem relação não somente com a atemporalidade de seus temas, mas também com a natureza das emoções que despertam. Justifica-se a reiterada menção a Rubem Braga. Conquistou lugar entre os mais célebres escritores do país ao firmar sua obra exclusivamente como cronista, fato que valoriza o gênero da crônica no contexto da literatura brasileira.

Joaquim Ferreira dos Santos, organizador da afamada coletâ-nea As cem melhores crônicas brasileiras, exprime seu entendimento a respeito da crônica atemporal ao afirmar que “A princípio essas crônicas tinham o compromisso apenas com o efêmero, encher meia página de jornal, manter ocupados os olhos do leitor, e se-rem esquecidas imediatamente. Deveriam ter a durabilidade de uma notícia. Não foi possível. (...) Transportadas para a página dos livros, as nossas melhores crônicas mantêm surpreendente vi-talidade e frescor”. E conclui que as crônicas selecionadas “(...) desafiam a ideia de apenas narrar seu tempo. Elas acabaram indo aonde ninguém poderia imaginar. Eternas”.

E quando se trata desse gênero, é imperiosa a inclusão da obra de Fernando Sabino, em cujos textos transparece inequivoca-mente a ideia de que a crônica atemporal é inadvertida e decorre de habilidade inata e vocação do escritor. Em sua “A última crô-nica”, Fernando Sabino revela, ao menos parcialmente, a natureza de seu processo criativo e as condições fortuitas que o cercam: “Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso con-teúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. (...) Lanço então um últi-mo olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica”. Já em “Escritório”, o cronista, mestre da atemporalidade,

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ressalta a importância da introspecção e do lirismo no seu processo criativo: “Levo para o meu novo covil uma mesa, uma cadeira, a máquina de escrever – e me instalo, à espera de meus costumeiros clientes. Estranhos clientes estes, que entram pela janela, pelas pa-redes, pelo teto, trazidos pelas vozes de antigamente, vindos numa página de jornal, ou num simples ruído familiar: projeção de mim mesmo, ecos de pensamento, fantasmas que se movem apenas na lembrança, figuras feitas de ar e imaginação”.

Por tudo isso, fica evidente: a crônica atemporal nasce fortui-ta. E apresenta elementos verdadeiramente criativos, esteticamen-te admiráveis, que transmitem sentimentos nobres e inspiradores, como é da natureza de qualquer obra de arte. Vinicius de Moraes refere-se modestamente à sua crônica como uma “prosa fiada”, de-rivada da obrigação maquinal de escrever com uma periodicidade calculada. Uma injustiça consigo mesmo e com outros “prosado-res do cotidiano”, como ele próprio os chama. Ao contrário, a imposição de prazos exíguos para a criação talvez seja um dos fato-res que leva mais fertilidade à imaginação desses grandes cronistas profissionais na produção de suas crônicas memoráveis. Mas é na humildade da afirmação de Vinicius de Moraes que se identifica a essência do modelo da crônica dos mestres: a fuga à presunção literária e à abominável parcialidade opiniosa. Chamar de “atem-poral” a crônica desses autores poderia soar-lhes, portanto, quase contraditório. Designá-la como lírica ou existencial seria prova-velmente uma forma mais legítima de tratar essa espécie nobre, selecionada dentro de um gênero literário ao qual se impingem tantos rótulos.

É nesse contexto de despretensão do espírito da crônica que surgem os temas que orientam a concepção desta obra dirigida aos apreciadores do gênero. Amor & Amargor: crônicas agridoces reúne textos essencialmente existenciais que, com algum lirismo ou caráter sutilmente crítico, tocam a realidade cotidiana de todo

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ser humano: família, sociedade, natureza, tempo, vida, morte, fé. Não se verifica singularidade, portanto, na seleção dos temas, mas na percepção que resulta da forma como são abordados. Ao em-pregar o recurso de “olhar em torno”, na tentativa de aprofun-damento em cada um desses cenários em busca de um pouco de contato diário com o absolutamente essencial, manifesta-se, pun-gente, a contradição: o amor e o desamor, o amar e o amargar.

A contradição nasce despercebida, encontra abrigo esguei-rando-se pelos meandros da mente e prospera enraizando-se em seus níveis mais profundos de consciência, tornando-se caracterís-tica indissociável do ser humano. A contradição permeia os aspec-tos fundamentais da existência: o amor à vida, ainda que diante da certeza da morte; a angústia da morte, apesar do conforto des-sa convicção única; o nosso desprezo pelo tempo, a despeito de sua indissociável relação com a vida; o amor obstinado à fé, em oposição ao progresso da ciência; o amor ao conhecimento e ao desconhecido, mesmo diante de nossa miséria social e cultural; e por fim, o despercebido amor ao fútil, ao estéril e ao desneces-sário, em detrimento do amor à natureza e à própria vida. Se, por um lado, esse ciclo vicioso de amores contraditórios revela-se profundamente embaraçoso, por outro (contraditoriamente), é a incoerência desses sentimentos que oferece o tempero agridoce da realidade humana.

Amor & Amargor: crônicas agridoces traz uma seleção de ar-gumentos que expressam essa dualidade, muitas vezes sob uma perspectiva tipicamente autocrítica. Pois quando o assunto é in- coerência, o autor não hesita em colocar-se como exemplo ilustra-tivo. Os textos buscam transcender a mera narrativa ou descrição de fatos e fantasias, empregando-os como instrumentos para indu-zir a uma reavaliação de ideias carentes de reflexão.

As crônicas não guardam relações de interdependência, e seus argumentos, embora eventualmente associados a fatos e pessoas

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reais, não exibem características que lhes imponham identidade factual ou cronológica. Pode o leitor, portanto, gozar da liberdade de estabelecer sua própria sequência na apreciação do conjunto. Coube ao autor apenas não renunciar ao privilégio de experimen-tar um encadeamento lógico de ideias que, a seu ver, destaca a contradição fundamental expressa no título do livro.

A obra foi organizada em quatro capítulos: “Um pouco de amor”, “Amargor a gosto”, “Mais amargor (sem perder o humor)” e “Agridoce”. Trata-se de uma tentativa – talvez ingênua – de agru-par crônicas que expressam estados similares de espírito, quase como se fosse possível estratificar os sentimentos contraditórios e anular essa espécie de bipolaridade cotidiana que tange a todo e qualquer ser humano. Um exame superficial desses títulos deno-taria o que se espera de qualquer análise rasa: um duelo despro-porcional de forças em que o amargor vem, embaraçosamente, subjugar o amor. Contudo, como se poderá verificar de maneira um tanto imprevista, é justamente na essência das crônicas mais amargas que afortunadamente se manifesta o amor gratuito, ainda que silencioso.

Não obstante o espírito despretensioso do modelo da crô-nica, talvez haja uma pretensão – se não for injusta a decisão de assim designá-la – que deve ser perdoada em todas as crônicas aqui reunidas: a de terem sido redigidas buscando sempre manter a liberdade interpretativa e deliberativa do leitor, e com a intenção de se permitirem ler a qualquer tempo, conservando o mesmo frescor de quando foram criadas. E se porventura houver entre elas alguma capaz de despertar uma emoção inominável em um único leitor desconhecido e distante, revelando-lhe a contraditória dor da existência, então terá sido alcançado o objetivo do escritor.

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ium pouco

de Amor

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trêS homenS, trêS vozeS

É, VOCÊ TAMBÉM se deixou iludir. Você mesmo, esse sujeito que está aí a olhar-se no espelho feito bobo, sem entender exa-tamente o que se passou. Foi tapeado pela juventude. Mais um. Em algum momento pensou que só aos outros aconteceria. No fundo já sabia, estúpido você não era. Mas faltavam-lhe evidências de que você era como os outros. Faltava-lhe livrar-se desse fardo de ser você mesmo. Faltava-lhe, acima de tudo, o conforto de ser igual aos outros.

Agora, finalmente chegou a sua vez de conversar com o ho-mem do espelho. Chegou sua vez de olhar para essa imagem como se ela fosse a de um desconhecido em quem estranhamente confia, a quem você sem receio confessa suas frustrações. É hora de olhar essa imagem e perguntar ao terceiro sujeito que, rondando à es-preita, transforma em tripla a ambígua duplicidade dessa relação: “E esse aí, sou eu?”.

É hora de vocês três conversarem: aquele que você foi, aquele que você pensava que seria, e esse em quem você se transformou, de fato.

É claro que esse colóquio entre suas vozes interiores articula-das dentro do seu próprio banheiro pode ser embaraçoso. Até de-primente. Não é nada fácil dialogar com esses outros dois sujeitos.

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São teimosos, egoístas, intransigentes, eternamente insatisfeitos. Para falar a verdade, são cansativos. Só sabem falar do que era e do que poderia ter sido, de como foi que não ocorreu e de como de-veria ter ocorrido. Só sabem enaltecer o passado e lamentar o pre-sente. Não têm o mínimo apreço por você. Se pudesse, você bem que os cortaria de suas relações. Mas se os eliminasse, também desapareceria o você de hoje, o homem do espelho. E aí não lhe restaria nem você mesmo. Então, o jeito é aguentar pacientemente o que eles têm a dizer.

Quando criança, você não entendia muito bem por que seu pai, ao trancar-se no banheiro, parecia conversar sozinho. Ago-ra, já entende. E aproveita para conversar bem baixinho, evitando que seu filho, bem mais curioso e indiscreto do que você era, ve-nha constrangê-lo com questões irrespondíveis.

Se o assunto não era privado, seu pai costumava deixar a porta aberta, para fazer a barba, por exemplo. Que garoto não gosta de assistir ao pai barbear-se usando lâmina, espuma e pincel? Num ritual incompreensível, você percebia as mãos dele a lidar com o perigo iminente, inequivocamente revelado na forma de pequenos talhos no rosto, consequências inevitáveis da arriscada batalha travada com o perigoso instrumento franqueado apenas aos adultos. Você se admirava da delicada precisão dos gestos em contraste com o vigor das mãos encorpadas e de veias altas. Exa-minando-as atentamente, você ficava particularmente intrigado com um conjunto notável de poros, precisamente alinhados, dos quais emergiam longos fios, separando a palma lisa do dorso cabe-ludo. Intrigava-o também a aparência dos braços do seu pai, tão distintos dos seus, mais robustos e escurecidos pela ação do sol, a pele ainda com aparência jovem, mas ligeiramente encarquilhada, coberta de tantos e tão longos fios cujo crescimento lhe parecia implausível ocorrer nos apenas 35 anos que os separavam. Pare-ciam poucos, 35 anos, para você que tinha adiante a vida inteira.

Seu pai tinha, como muitos pais, barba espessa e cabelos con-traditoriamente ralos. Se seu pai era igual aos outros, seria tolice

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imaginar que você não seria. Mas você não pensava nisso. Naquele tempo você ainda não conversava com o espelho. Você até sabia dos outros, mas só pensava que você era você. A vida que impor-tava era a sua. E, apesar de importante, sua vida era algo que lhe parecia muito distante de você mesmo. Sua vida era algo que esta-va para muito além de quando você crescesse. Na época, isso não lhe parecia nada absurdo. E de fato não era.

Hoje, ao olhar-se no espelho, você se pergunta: quando te-riam surgido esses pelos no peito que você nem viu crescer? E essa pele, quando teria ficado assim ressequida, repleta de cicatrizes e manchas, tão diferente de outrora a recobrir o mesmo menino que ainda costuma acreditar na vida como algo muito distante a ser vivido? E esses pelos grossos, antes inexistentes, agora, brotando das áreas mais insuspeitas, saindo das narinas e orelhas, caindo das sobrancelhas sobre os olhos, recobrindo pescoço, ombros e costas, tornando-os indistintos como num primata? E, se sua barba ainda nem parece assim tão cerrada, se sua calvície ainda nem está assim tão à mostra, já que surge não como um progressivo crescimento da testa, mas como um cocuruto ridiculamente brilhoso, por que seu filho, 35 anos mais novo, fica a rondá-lo apontando todas essas diferenças que são para ele como para você eram 35 anos atrás?

É hora mesmo de vocês três conversarem: seu filho, seu pai e você.

Você se pergunta o que exatamente veem os olhos do ga-roto que os faz brilhar de tanta admiração quando ele se apro-xima de você. Você vê a mesma imagem que ele vê refletida no espelho. Mas ele acredita naquela imagem mais que em tudo na vida. E você se sente um trapaceiro. Você ainda não lhe confessou suas frustrações. Ele é muito ingênuo, desconhece suas fraquezas e imperfeições. Ele sequer sabe o que são imperfeições. Mas um dia saberá, como você também descobriu. E você se pergunta até quando vai durar essa admiração.

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Porém, apesar do receio de que ele lhe venha revelar emba-raçosas contradições suas que você mesmo desconhece, você se regenera na profunda coerência do seu amor por ele, um amor tão genuíno que o surpreende com a serenidade do pensamento recor-rente de deixar-se morrer por ele sem um resquício de hesitação. Esse pensamento o angustia porque você descobre que o seu de-sejo primitivo de não morrer não tem mais relação com o simples instinto de manter-se vivo, mas com uma urgência irreprimível de não faltar enquanto ele ainda precisar de você. Sua angústia maior pela vida é a de estar presente por ele. Você pensa que até teria sido possível ter vivido sem conhecer esse amor, mas que não seria mais possível viver sem ele após tê-lo conhecido. Esse amor lhe parece a própria essência de sua pele encarquilhada, de seus pelos no peito, de sua incipiente calvície, de seu rosto marcado. Esse amor angustiado o emociona porque se coloca entre os poucos conhecimentos relevantes trazidos por esses 35 anos de diferença.

Então, você percebe que esse é o sujeito a olhar-se no espelho feito bobo. Esse é o você de hoje. Talvez você não se lembre dessa imagem refletida no espelho no qual seu pai se barbeava, mas essa é a imagem que aparece agora refletida nos olhos do seu filho, a ima-gem que os faz brilhar de tanta admiração. Essa é a imagem inscrita na própria face do seu filho, a imagem que um dia estará refletida num outro espelho em que você se tornará apenas uma lembrança.

Essa imagem não estava nem estaria na imaginação daqueles outros dois sujeitos aborrecidos, o você de ontem e o você hipo-tético. Essa imagem sequer poderia ser concebida por quem você foi ou por qualquer um que não fosse você mesmo. Essa imagem é sua, somente sua. E você sente um enorme alívio por não ser mais aquele que você foi, e um alívio ainda maior por não se ter trans-formado naquele que você pensava que seria. Então, a sensação de ser você mesmo deixa de ser um fardo e espanta as vozes inopor-tunas. E você, humildemente, encerra a conversa respondendo a si próprio, num acanhado orgulho de pai: “É, esse aí sou eu”.

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