ambrosio 2

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PAZ, EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E ETNOMATEMÁTICA * por Ubiratan D’Ambrosio Resumo: Neste artigo eu elaboro sobre as múltiplas dimensões de paz e falo sobre a responsabilidade do educador, em particular do educador matemático, na busca de paz para a humanidade. Muitos perguntam “Mas o que tem a ver Educação Matemática com Paz?”. Procuro mostrar que tem tudo a ver, relacionando matemática com paz e chego à proposta da etnomatemática como um caminho para preservar a diversidade e eliminar a desigualdade discriminatória, dando assim origem a uma nova organização da sociedade. Palavras-chave: Etnomatemática, Metas da Educação Matemática, Sociologia da Educação Matemática. Abstract: In this paper I elaborate on the several dimensions of peace and I discuss the responsibility of educators, particularly mathematics educators, in the search for peace for mankind. Many question: “But how does Mathematics Education relate to Peace?”. I try to show how do they relate by relating mathematics and peace and I propose ethnomathematics as a way to preserve diversity and at the same time to avoid discriminatory inequity, thus leading to a new society. Key words: Ethnomathematics, Goals of Mathematics Education, Sociology of Mathematics Education. Introdução. Na sua luta por uma humanidade em Paz, dois eminentes matemáticos, Albert Einstein e Bertrand Russell, elaboraram, em 1955, o Manifesto Pugwash, onde se lê: "Esqueçam-se de tudo e lembrem-se da humanidade". 1 Procuro, nas minhas propostas de Educação Matemática, seguir os ensinamentos desses dois grandes mestres, que nos legaram muito de Matemática, mas sobretudo de humanidade. Falar em humanidade é procurar atingir um estado de PAZ, considerada nas suas dimensões múltiplas: Paz Interior, Paz Social, Paz Ambiental e Paz Militar. Sem essa paz total não há possibilidade de sobrevivência para a humanidade. Portanto, é prioridade máxima que a educação seja focalizada na Paz. O ano 2000 foi declarado pela UNESCO o Ano Internacional da * Teoria e Prática da Educação (Maringá,PR), vol. 4, nº 8, junho 2001; pp.15-33. U.D’Ambrosio 1

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  • PAZ, EDUCAO MATEMTICA E ETNOMATEMTICA* por Ubiratan DAmbrosio

    Resumo: Neste artigo eu elaboro sobre as mltiplas dimenses de paz e falo sobre a responsabilidade do educador, em particular do educador matemtico, na busca de paz para a

    humanidade. Muitos perguntam Mas o que tem a ver Educao Matemtica com Paz?. Procuro

    mostrar que tem tudo a ver, relacionando matemtica com paz e chego proposta da

    etnomatemtica como um caminho para preservar a diversidade e eliminar a desigualdade

    discriminatria, dando assim origem a uma nova organizao da sociedade.

    Palavras-chave: Etnomatemtica, Metas da Educao Matemtica, Sociologia da Educao Matemtica.

    Abstract: In this paper I elaborate on the several dimensions of peace and I discuss the responsibility of educators, particularly mathematics educators, in the search for peace for

    mankind. Many question: But how does Mathematics Education relate to Peace?. I try to show

    how do they relate by relating mathematics and peace and I propose ethnomathematics as a way

    to preserve diversity and at the same time to avoid discriminatory inequity, thus leading to a new

    society.

    Key words: Ethnomathematics, Goals of Mathematics Education, Sociology of Mathematics Education.

    Introduo. Na sua luta por uma humanidade em Paz, dois eminentes matemticos, Albert Einstein e

    Bertrand Russell, elaboraram, em 1955, o Manifesto Pugwash, onde se l: "Esqueam-se de tudo

    e lembrem-se da humanidade".1 Procuro, nas minhas propostas de Educao Matemtica, seguir

    os ensinamentos desses dois grandes mestres, que nos legaram muito de Matemtica, mas

    sobretudo de humanidade.

    Falar em humanidade procurar atingir um estado de PAZ, considerada nas suas

    dimenses mltiplas: Paz Interior, Paz Social, Paz Ambiental e Paz Militar. Sem essa paz total no

    h possibilidade de sobrevivncia para a humanidade. Portanto, prioridade mxima que a

    educao seja focalizada na Paz. O ano 2000 foi declarado pela UNESCO o Ano Internacional da

    * Teoria e Prtica da Educao (Maring,PR), vol. 4, n 8, junho 2001; pp.15-33.

    U.DAmbrosio 1

  • Cultura de Paz.2 Portanto, a Educao para a Paz deve ser uma rea prioritria nas discusses

    sobre currculo.3

    Coincidentemente, a Unio Matemtica Internacional declarou 2000 o Ano Internacional

    da Matemtica.4 Como se relacionam esses dois propsitos de se iniciar o sculo XXI?

    Estamos vivendo um momento de transio do paradigma dominante, responsvel por

    sociedades desiguais e excludentes, por injustia e opresso, para um novo paradigma, ou trans-

    paradigma, ainda mal definido, capaz de proporcionar uma vida digna para toda a humanidade. A

    educao a estratgia para evitar que a desordem social e a corrupo institucional prevaleam

    nesse difcil momento de transio. Uma educao voltada para a PAZ TOTAL.5

    Atingir PAZ TOTAL tambm a nica justificativa de qualquer esforo para o avano

    cientfico e tecnolgico, e deveria ser o substrato de todo discurso sobre Educao e sobre o fazer

    cientfico e tecnolgico, particularmente o fazer matemtico. Muitos ainda questionam: "Mas o que

    tem isso a ver com a Educao Matemtica?". Eu respondo "Tem tudo a ver."6 Neste trabalho vou

    elaborar sobre essa afirmao.

    Como um Educador Matemtico eu me vejo como um educador que tem Matemtica

    como sua rea de competncia e seu instrumento de ao, no como um matemtico que utiliza a

    Educao para a divulgao de habilidades e competncias matemticas. Como Educador

    Matemtico procuro utilizar aquilo que aprendi como Matemtico para realizar minha misso de

    Educador. Minha cincia e meu conhecimento esto subordinados ao meu humanismo.

    Em termos muito claros e diretos: o aluno mais importante que programas e contedos.

    A Educao a estratgia mais importante para levar o indivduo a estar em paz consigo mesmo

    e com o seu entorno social, cultural e natural e a se localizar numa realidade csmica.

    Eu poderia sintetizar meu posicionamento dizendo que s se justifica insistirmos em

    Educao para todos se for possvel conseguir, atravs dela, melhor qualidade de vida e maior

    dignidade da humanidade como um todo, preservando a diversidade mas eliminando a

    desigualdade discriminatria, assim dando origem a uma nova organizao da sociedade.

    A dignidade de cada indivduo se manifesta no encontro com si prprio. Portanto atingir o

    estado de Paz Interior uma prioridade. Muitos ainda estaro perguntando "Mas o que tem isso a

    ver com Educao Matemtica?" E eu insisto em dizer "Tem tudo a ver".7

    Atingir o estado de paz interior difcil, sobretudo devido a todos os problemas que

    enfrentamos no dia-a-dia, particularmente no relacionamento com o outro. Ser que o outro estar

    tendo dificuldades em atingir o estado de sua Paz Interior? Muitas vezes vemos que o outro est

    tendo problemas que resultam de dificuldades materiais, como falta de segurana, falta de

    emprego, falta de salrio, muitas vezes at mesmo falta de casa e de comida. A solidariedade com

    o prximo a primeira manifestao de nos sentirmos parte de uma sociedade. A Paz Social ser

    U.DAmbrosio 2

  • um estado em que essas situaes no ocorrem. E com certeza vem novamente a pergunta "Mas

    o que tem a Matemtica a ver com isso?". No me cabe outra resposta queles matemticos que

    no percebem como tudo isso se relaciona que sugerir que pensem e entendam um pouco da

    Histria da Humanidade para perceber que tem tudo a ver.8

    Tambm poucos entendem o que a Paz Ambiental tem a ver com a Matemtica, que

    sempre pensada como aplicada ao desenvolvimento e ao progresso. Lembro que a cincia

    moderna, que repousa em grande parte na Matemtica, nos d instrumentais notveis para um

    bom relacionamento com a natureza, mas tambm poderosos instrumentos de destruio dessa

    mesma natureza.9

    Atingir PAZ TOTAL deve ser a utopia de todo ser humano. Essa a essncia de ser

    humano. o ser [substantivo] humano procurando ser [verbo] humano. Esse o verdadeiro

    sentido de humanidade. Estamos vivendo uma sociedade em transio e a busca de novos

    paradigmas parece estar dominando o pensamento atual, muito especialmente o pensamento

    cientfico. Como diz Boaventura de Sousa Santos na sua excelente rejeio da razo cnica

    dominante, construir, na verdade, uma utopia to pragmtica quanto o prprio senso comum, no

    uma tarefa fcil, nem uma tarefa que alguma vez possa concluir-se. este reconhecimento,

    partida, da infinitude que faz desta tarefa uma tarefa verdadeiramente digna dos humanos. 10

    Educao Matemtica e Paz

    Minha proposta fazer uma Educao para a Paz e em particular uma Educao

    Matemtica para a Paz.

    Muitos continuaram intrigados: "Mas como relacionar trinmio de 2 grau com Paz?".

    provvel que esses mesmos indivduos costumam ensinar trinmio de 2 grau dando como

    exemplo a trajetria de um projtil de canho. Mas estou quase certo que no dizem, nem sequer

    sugerem, que aquele belssimo instrumental matemtico, que o trinmio de 2 grau, o que d a

    certos indivduos -- artilheiros profissionais, que provavelmente foram os melhores alunos de

    Matemtica da sua turma -- a capacidade de dispararem uma bomba mortfera de um canho para

    atingir uma populao de gente, de seres humanos, carne e osso, emoes e desejos, e mat-los,

    destruir suas casas e templos, destruir rvores e animais que estejam por perto, poluir qualquer

    lagoa ou rio que esteja nos arredores. A mensagem implcita acaba sendo: aprenda bem o

    trinmio do 2grau e voc ser capaz de fazer isso. Somente quem faz um bom curso de

    Matemtica tem suficiente base terica para apontar canhes sobre populaes.

    U.DAmbrosio 3

  • Claro, muitos diro, como j disseram: "Mas isso um discurso demaggico. Essa

    destruio horrvel s se far quando necessrio. E importante que nossos jovens estejam

    preparados para o necessrio." E os conteudistas dizem, em ltima instncia, o seguinte: "

    necessrio conhecer bem os instrumentais do inimigo para poder derrot-los". Milhes foram

    nessa conversa durante toda a histria da humanidade e em particular durante a Guerra Fria, com

    perdas materiais e morais para ambas as partes em conflito. Seria fundamental lembrar que os

    interessados nesse estado de coisas justificam dizendo ser isso necessrio porque o alvo da

    nossa bomba destruidora um indivduo que no professa o nosso credo religioso, que no do

    nosso partido poltico, que no segue nosso modelo econmico de propriedade e produo, que

    no tem nossa cor de pele ou nossa lngua, enfim o alvo de nosso bomba destruidora um

    indivduo que diferente. Tem sido e continua sendo esse o conceito do que necessrio nas

    relaes sociais e polticas.

    O trinmio de 2grau serviu como exemplo para argumentar. A importncia to feia que

    destacamos de uma coisa to linda como o trinmio do 2grau interessante ser comentada. No

    se prope eliminar o trinmio de 2grau dos programas, mas sim que se utilize algum tempo para

    mostrar, criticamente, as coisas feias que se faz com ele e destacar as coisas lindas que se pode

    fazer com ele.

    H uma moralidade associada ao conhecimento e em particular ao conhecimento

    matemtico. Por que insistirmos em Educao e Educao Matemtica e no prprio fazer

    matemtico se no percebemos como nossa prtica pode ajudar a construir uma humanidade

    ancorada em respeito, solidariedade e cooperao?

    A Paz total depende essencialmente de cada indivduo se conhecer e se integrar na sua

    sociedade, na humanidade, na natureza e no cosmos. Ao longo da existncia de cada um de ns

    pode-se aprender matemtica, mas no se pode perder o conhecimento de si prprio e criar

    barreiras entre indivduos e os outros, entre indivduos e a sociedade, e gerar hbitos de

    desconfiana do outro, de descrena na sociedade, de desrespeito e de ignorncia pela

    humanidade que uma s, pela natureza que comum a todos e pelo universo como um todo.

    Conhecimento e ao

    A gerao, organizao intelectual e social e a difuso do conhecimento do o quadro

    geral no qual procuro desenvolver minhas propostas especficas para a educao matemtica.

    Minhas idias muitas vezes parecem um tanto vagas, imprecisas e exploratrias. Isto reflete o que

    se poderia chamar o estado da arte na teoria do conhecimento. Sabemos muito pouco sobre como

    U.DAmbrosio 4

  • pensamos. As contribuies recentes da ciberntica e da inteligncia artificial e mais recentemente

    dos neurologistas tornam aquilo que normalmente se estuda nas disciplinas de psicologia, de

    aprendizagem e correlatas pelo menos obsoleto.11 Da a apresentao bem geral e o tom algumas

    vezes impreciso e vago desta parte, na qual proponho um modelo na qual podem se enquadrar

    praticamente todos os enfoques modernos ao conhecimento.

    Ao longo da histria se reconhecem esforos de indivduos e de todas as sociedades para

    encontrar explicaes, formas de lidar e conviver com a realidade natural e sociocultural. Isto deu

    origem aos modos de comunicao e s lnguas, s religies e s artes, assim como s cincias e

    s matemticas, enfim a tudo o que chamamos conhecimento. Indivduos e a espcie como um

    todo se destacam entre seus pares e atingem seu potencial de criatividade porque conhecem.

    Todo conhecimento resultado de um longo processo cumulativo, onde se identificam estgios,

    naturalmente no dicotmicos entre si, quando se d a gerao, a organizao intelectual, a

    organizao social e a difuso do conhecimento. Esses estgios so normalmente objeto de

    estudo de teoria da cognio, de epistemologia, de histria e sociologia, e de educao e poltica.

    O processo como um todo, extremamente dinmico e jamais finalizado, est obviamente sujeito a

    condies muito especficas de estmulo e de subordinao ao contexto natural, cultural e social.

    Assim o ciclo de aquisio individual e social de conhecimento.

    Minhas reflexes sobre educao multicultural levaram-me a ver o ato de criao como o

    elemento mais importante em todo esse processo, como uma manifestao do presente na

    transio entre passado e futuro. Isto , a aquisio e elaborao do conhecimento se d no

    presente, como resultado de todo um passado, individual e cultural, com vistas s estratgias de

    ao no presente projetando-se no futuro, desde o futuro imediato at o de mais longo prazo,

    modificando assim a realidade e incorporando a ela novos fatos, isto , "artefatos" e "mentefatos".

    Esse comportamento intrnseco ao ser humano, e resultam de impulsos naturais para a

    sobreviver e transcender. Embora se possa reconhecer a um processo de construo de

    conhecimento, minha proposta mais ampla que o construtivismo, que se tornou efetivamente

    uma proposta pedaggica, e que privilegia o racional. O enfoque holstico que proponho incorpora

    o sensorial, o intuitivo, o emocional e o racional atravs da vontade individual de sobreviver e de

    transcender.

    Sobrevivncia e transcendncia constituem a essncia de ser [verbo] humano. O ser

    [substantivo] humano, como todas as espcies vivas, procura apenas sua sobrevivncia. A

    vontade de transcender o trao mais distintivo da nossa espcie.

    No se sabe de onde provm a vontade de sobreviver como indivduo e como espcie.

    Sem dvida, est incorporada ao mecanismo gentico a partir da origem da vida. Simplesmente

    constata-se que essa fora a essncia de todas as espcies vivas. Nenhuma espcie, e portanto

    U.DAmbrosio 5

  • nenhum indivduo, se orienta para a sua extino. Cada momento um exerccio de

    sobrevivncia.

    Igualmente, no sabemos como a espcie humana adquire a vontade de transcender,

    que tambm parece estar embutida no nosso cdigo gentico. Essa tem sido a questo filosfica

    maior em toda a histria da humanidade e em todas culturas. Na forma de alma, vontade, livre

    arbtrio, o pulso de transcender o momento de sobrevivncia reconhecido em vrias

    manifestaes do ser humano.

    As reflexes sobre o presente como a realizao de nossa vontade de sobreviver e de

    transcender devem ser necessariamente de natureza transdisciplinar e holstica. Nessa viso o

    presente, que se apresenta como a interface entre passado e futuro, est associado ao e

    prtica.12

    O foco de nosso estudo o homem, como indivduo integrado, imerso, numa realidade

    natural e social, o que significa em permanente interao com seu meio ambiente, natural e

    sociocultural. O presente quando se manifesta a [inter]ao do indivduo com seu meio

    ambiente, natural e sociocultural, que chamo comportamento. O comportamento, que tambm

    chamamos prtica, fazer, ou ao, est identificado com o presente, e determina a teorizao, as

    explicaes organizadas que resultam de uma reflexo sobre o fazer. Essa teorizao e

    elaborao de um sistema de explicaes o que geralmente chamamos saber ou simplesmente

    conhecimento. Na verdade, conhecimento o substrato do comportamento, que a essncia do

    estar vivo.

    O ciclo vital .... ---> REALIDADE ---> INDIVIDUO ---> AO permanente e permite a

    todo ser humano interagir com seu meio ambiente, com a realidade considerada na sua totalidade

    como um complexo de fatos naturais e artificiais. Essa ao se d mediante o processamento de

    informaes captadas da realidade por um processador que constitui um verdadeiro complexo

    ciberntico, com uma multiplicidade de sensores no dicotmicos, identificados com instinto,

    memria, reflexos, emoes, fantasia, intuio, e outros elementos que ainda mal podemos

    imaginar. Como observa Oliver Sacks referindo-se em especial percepo visual, mas que se

    aplica a todos os sentidos, "Atingimos a constncia perceptiva -- a correlao de todas as

    diferentes aparncias, as modificaes dos objetos -- muito cedo, nos primeiros meses de vida.

    Trata-se de uma enorme tarefa de aprendizado, mas que alcanada to suavemente, to

    inconscientemente que sua imensa complexidade mal percebida (embora seja uma conquista a

    que nem mesmo os maiores supercomputadores conseguem comear a fazer face)."13

    Ir alm da sobrevivncia

    U.DAmbrosio 6

  • O processamento da informao (input) tem como resultado (output) estratgias para

    ao. H evidncia que essas aes so produtos inteligentes. Em outros termos, o homem

    executa seu ciclo vital no apenas pela motivao animal de sobrevivncia, mas subordina a

    sobrevivncia a objetivos maiores, atravs da conscincia do fazer/saber, isto , faz porque est

    sabendo e sabe por estar fazendo.14 Isto , transcende o pulso de sobreviver. As aes para

    transcendncia, que sempre acompanham as aes para sobrevivncia, tm seu efeito na

    realidade, criando novas interpretaes e utilizaes da realidade natural e artificial, modificando-a

    pela introduo de novos fatos, artefatos e mentefatos. H uma incoerncia nas denominaes

    concreto e abstrato, pois repousam no modo de captar esses fatos, enquanto aos falarmos em

    artefato e mentefato estamos pondo nfase na gerao dos fatos.

    O conhecimento o gerador do saber, que vai ser decisivo para a ao. Por conseguinte,

    no comportamento, na prtica, no fazer que se avalia, redefine e reconstri o conhecimento. A

    conscincia o impulsionador da ao do homem em direo sobrevivncia e transcendncia,

    ao saber fazendo e fazer sabendo. O processo de aquisio do conhecimento , portanto, essa

    relao dialtica saber/fazer, impulsionado pela conscincia, e se realiza em vrias dimenses.

    Das vrias dimenses na aquisio do conhecimento destacamos quatro, que so as mais

    reconhecidas e interpretadas nas teorias do conhecimento: as dimenses sensorial, intuitiva,

    emocional e racional. Numa concesso a classificaes disciplinares, diramos que o

    conhecimento religioso favorecido pelas dimenses intuitiva e emocional, enquanto o

    conhecimento cientfico favorecido pelo racional, e o emocional prevalece nas artes.

    Naturalmente essas dimenses no so dicotomizadas nem hierarquizadas, mas so

    complementares. Desse modo, no h interrupo, no h dicotomia, entre o saber e o fazer, no

    h priorizao entre um e outro, nem h prevalncia nas vrias dimenses do processo. Tudo se

    complementa num todo que o comportamento e que tem como resultado o conhecimento.

    Conseqentemente, as dicotomias corpo/mente, matria/esprito, manual/intelectual e outras

    tantas que se impregnaram no mundo moderno, so meramente artificiais.

    Do individual ao coletivo

    O presente, como interface entre passado e futuro, se manifesta pela ao. O presente

    est assim identificado com comportamento, tem a mesma dinmica do comportamento, isto , se

    alimenta do passado, resultado da histria do indivduo e da coletividade, de conhecimentos

    anteriores, individuais e coletivos, condicionados pela projeo do indivduo no futuro. Tudo a

    U.DAmbrosio 7

  • partir de informao proporcionada pela realidade, portanto pelo presente. Na realidade esto

    armazenadas todos os fatos passados, que informam o[s] indivduo[s].

    As informaes so processadas pelo[s] indivduo[s] e resultam em estratgias de ao

    que vai dar origem a novos fatos (artefatos e/ou mentefatos) que so incorporados realidade,

    obviamente modificando-a, armazenando-se na coleo de fatos e eventos que a constituem. A

    realidade est, portanto, em incessante modificao. O passado assim se projeta, pela

    intermediao de indivduos, no futuro. Mais uma vez a dicotomia passado e futuro se v como

    artificialidade, pois o instante que vem do passado e se projeta no futuro adquire assim o que seria

    uma transdimensionalidade que poderamos pensar como uma dobra (um pli no sentido das

    catstrofes de Ren Thom). Esse repensar a dimensionalidade do instante d vida, incluindo os

    "instantes" do nascimento e da morte, um carter de continuidade, de fuso do passado e do

    futuro no instante. Da reconhecermos que no pode haver um presente congelado, como no h

    uma ao esttica, como no h comportamento sem uma retroalimentao instantnea

    (avaliao) que resulta de seu efeito. Assim podemos ver o comportamento como o elo entre a

    realidade, que informa, e a ao, que a modifica.

    A ao gera conhecimento, isto , a capacidade de explicar, de lidar, de manejar, de

    entender a realidade, gera o matema. Essa capacidade se transmite e se acumula

    horizontalmente, no convvio com outros, contemporneos, atravs de comunicaes, e

    verticalmente, de cada indivduo para si mesmo (memria) e de cada gerao para as prximas

    geraes (memria histrica). Note que atravs do que chamamos memria, que da mesma

    natureza que os mecanismos de informao associados aos sentidos, informao gentica e

    aos mecanismos emocionais, as experincias vividas por um indivduo no passado se incorporam

    realidade e informam esse indivduo da mesma maneira que os demais fatos da realidade.

    O indivduo no s. H bilhes de outros indivduos da mesma espcie com o mesmo

    ciclo vital: .... ---> REALIDADE informa INDIVIDUO que processa e executa uma AO que

    modifica a REALIDADE que informa INDIVDUO ---> .... e bilhes de indivduos de outras

    espcies com comportamento prprio, realizando um ciclo vital semelhante, mas prprio ao

    indivduo. O processo de gerar conhecimento como ao enriquecido pelo intercmbio com

    outros imersos no mesmo processo atravs do que chamamos comunicao. A descoberta do

    outro e de outros, presentes ou distantes, contemporneos ou do passado, essencial para o

    fenmeno vida.

    Todos esto, incessantemente, contribuindo uma parcela para modificar a realidade. Todo

    indivduo est inserido numa realidade csmica como um elo entre toda uma histria desde o

    incio dos tempos e das coisas, um big-bang ou equivalente, at o momento, o agora e aqui.

    Todas as experincias do passado, reconhecidas e identificadas ou no, constituem a realidade

    U.DAmbrosio 8

  • na sua totalidade e determinam um aspecto do comportamento de cada indivduo. Sua ao

    resulta do processamento de informaes recuperadas. Essas incluem as experincias de cada

    indivduo e aquelas vividas por outros, na sua totalidade. A recuperao dessas experincias

    (memria individual, memria cultural, memria gentica) constituem um dos desafios da

    psicanlise, da histria e de inmeras outras cincias. Constituem inclusive o fundamento de

    certos modos de explicao (artes e religies).

    Numa dualidade temporal, esses mesmos aspectos de comportamento se manifestam nas

    estratgias de ao que resultaro em novos fatos -- artefatos e mentefatos -- que se daro no

    futuro e que uma vez executados se incorporaro realidade. As estratgias de ao so

    motivadas pela projeo do indivduo no futuro (suas vontades, suas ambies, suas motivaes,

    e tantos outros fatores), tanto no futuro imediato e quanto no futuro longnquo, at o que poderia

    ser um momento final. Esse o sentido da transcendncia a que me referi acima.

    Embora os mecanismos de captar informao e de process-la, definindo estratgias de

    ao, sejam absolutamente individuais e se mantenham como tal, eles so enriquecidos pelo

    intercmbio e pela comunicao, que efetivamente um pacto (contrato) entre indivduos. O

    estabelecimento desse pacto um fenmeno essencial para a vida. Em particular, na espcie

    humana esse pacto permite definir estratgias para ao comum. Isso no pressupe a

    eliminao da capacidade de ao prpria de cada indivduo, inerente sua vontade (livre

    arbtrio), mas pode inibir certas aes, isto , a ao comum que resulta da comunicao pode ser

    interpretada como uma in-ao resultante do pacto. Assim, atravs da comunicao podem se

    originar aes desejveis a ambos e tambm podem se inibir aes, isto , gerar in-aes, no

    desejveis para uma ou para ambas as partes.15 Desse modo se torna possvel aquilo que

    identificamos com o conviver. Insisto no fato que esses mecanismos de inibio no transformam

    os mecanismos, prprios a cada indivduo, de captar e de processar informaes. Cada indivduo

    tem esses mecanismos e isso que mantm a individualidade e a identidade de cada ser.

    Nenhum igual a outro na sua capacidade de captar e processar informaes de uma mesma

    realidade.

    Essas noes facilmente se generalizam para o grupo, para a comunidade e para um

    povo, atravs da comunicao social e de um pacto social, que, insisto, leva em conta a

    capacidade de cada indivduo e no elimina a vontade prpria de cada indivduo, isto , seu livre

    arbtrio. O conhecimento gerado pela interao comum, resultante da comunicao social, ser

    um complexo de cdigos e de smbolos que so organizados intelectual e socialmente,

    constituindo aquilo que se chama cultura. Cultura o substrato dos conhecimentos, dos

    saberes/fazeres, e do comportamento resultante, compartilhado por um grupo, comunidade ou

    povo. Cultura o que vai permitir a vida em sociedade.

    U.DAmbrosio 9

  • Quando sociedades, e portanto sistemas culturais, se encontram e se expem

    mutualmente, elas esto sujeitas a uma dinmica de interao que produz um comportamento

    intercultural que se manifesta em grupos de indivduos, em comunidades, em tribos e nas

    sociedades como um todo. A interculturalidade vem se intensificando ao longo da histria da

    humanidade.

    O Programa Etnomatemtica

    A exposio acima sintetiza a fundamentao terica que serve de base a um programa

    de pesquisa sobre a gerao, organizao intelectual, organizao social e difuso do

    conhecimento. Na linguagem acadmica poder-se-ia dizer um programa interdisciplinar abarcando

    o que constitui o domnio das chamadas cincias da cognio, da epistemologia, da histria, da

    sociologia e da difuso.

    Metodologicamente, esse programa reconhece que na sua aventura enquanto espcie

    planetria o homem (espcie homo sapiens sapiens), bem como as demais espcies que a

    precederam, os vrios homindeos reconhecidos desde h 4.5 milhes de anos antes do presente,

    tem seu comportamento alimentado pela aquisio de conhecimento, de fazer(es) e de saber(es)

    que lhes permite sobreviver e transcender atravs de maneiras, de modos, de tcnicas ou mesmo

    de artes [techn ou tica] de explicar, de conhecer, de entender, de lidar com, de conviver com

    [matema] a realidade natural e sociocultural [etno] na qual ele, homem, est inserido. Ao utilizar,

    num verdadeiro abuso etimolgico, as razes tica, matema e etno, dei origem minha

    conceituao de etnomatemtica.

    Naturalmente, em todas as culturas e em todos os tempos, o conhecimento, que gerado

    pela necessidade de uma resposta a problemas e situaes distintas, est subordinado a um

    contexto natural, social e cultural.

    Indivduos e povos tm, ao longo de suas existncias e ao longo da histria, criado e

    desenvolvido instrumentos de reflexo, de observao, instrumentos tericos e associados a

    esses tcnicas, habilidades (artes, tcnicas, techn, ticas) para explicar, entender, conhecer,

    aprender para saber e fazer como resposta a necessidades de sobrevivncia e de transcendncia

    (matema), em ambientes naturais, sociais e culturais (etnos) os mais diversos. Da chamarmos o

    exposto acima de Programa Etnomatemtica. O nome sugere o corpus de conhecimento

    reconhecido academicamente como Matemtica. De fato, em todas as culturas encontramos

    manifestaes relacionadas e mesmo identificadas com o que hoje se chama Matemtica

    (processos de organizao, classificao, contagem, medio, inferncia), geralmente mescladas

    U.DAmbrosio 10

  • ou dificilmente distinguveis de outras formas, hoje identificadas como Arte, Religio, Msica,

    Tcnicas, Cincias. Em todos os tempos e em todas as culturas, Matemtica, Artes, Religio,

    Msica, Tcnicas, Cincias foram desenvolvidas com a finalidade de explicar, de conhecer, de

    aprender, de saber/fazer e de predizer (artes divinatrias) o futuro. Todas aparecem, num primeiro

    estgio da histria da humanidade e da vida de cada um de ns, indistinguveis como formas de

    conhecimento.

    Estamos vivendo um perodo em que os meios de captar informao e o processamento

    da informao de cada indivduo encontram nas comunicaes e na informtica instrumentos

    auxiliares de alcance inimaginvel em outros tempos. A interao entre indivduos tambm

    encontra, na teleinformtica, um grande potencial, ainda difcil de se aquilatar, de gerar aes

    comuns. Nota-se em alguns casos o predomnio de uma forma sobre outra, algumas vezes a

    substituio de uma forma por outra e mesmo a supresso e a eliminao total de alguma forma,

    mas na maioria dos casos o resultado a gerao de novas formas culturais, identificadas com a

    modernidade. Ainda dominadas pelas tenses emocionais, as relaes entre indivduos de uma

    mesma cultura (intra-culturais) e sobretudo as relaes entre indivduos de culturas distintas (inter-

    culturais) representam o potencial criativo da espcie. Assim como a bio-diversidade representa o

    caminho para o surgimento de novas espcies, na diversidade cultural reside o potencial criativo

    da humanidade.

    Tem havido o reconhecimento da importncia das relaes inter-culturais. Mas

    lamentavelmente ainda h relutncia no reconhecimento das relaes intra-culturais na educao.

    Ainda se insiste em colocar crianas em sries de acordo com idade, em oferecer o mesmo

    currculo numa mesma srie, chegando ao absurdo de se propor currculos nacionais. E ainda

    maior absurdo de se avaliar grupos de indivduos com testes padronizados. Trata-se efetivamente

    de uma tentativa de pasteurizar as novas geraes!

    A pluralidade dos meios de comunicao de massa, facilitada pelos transportes, levou as

    relaes inter-culturais a dimenses verdadeiramente planetrias.

    Inicia-se assim uma nova era que abre enormes possibilidades de comportamento e de

    conhecimento planetrios, com resultados sem precedentes para o entendimento e harmonia de

    toda a humanidade. No a homogeneizao biolgica ou cultural da espcie, mas a convivncia

    harmoniosa dos diferentes, atravs de uma tica de respeito mtuo, solidariedade e cooperao.

    Naturalmente sempre existiram e agora sero mais notadas com maior evidncia,

    maneiras diferentes de explicaes, de entendimentos, de lidar e conviver com a realidade, graas

    aos novos meios de comunicao e transporte criando necessidade de um comportamento que

    transcenda mesmo as novas formas culturais. Eventualmente o to desejado livre arbtrio, prprio

    do ser [verbo] humano, poder se manifestar num modelo de transculturalidade que permitir que

    U.DAmbrosio 11

  • cada ser humano atinja a sua plenitude. Um modelo adequado para se facilitar a esse novo

    estgio na evoluo da nossa espcie chamado Educao Multicultural, que vem se impondo

    nos sistemas educacionais de todo o mundo.

    Sabemos que no momento h mais de 200 estados e aproximadamente 6.000 naes

    indgenas no mundo, com uma populao totalizando entre 10%-15% da populao total do

    mundo. Embora no seja o meu objetivo discutir Educao Indgena, os aportes de especialistas

    na rea tem sido muito importantes para se entender como a educao pode ser um instrumento

    que refora os mecanismos de excluso social.

    Dentre os vrios questionamentos que levam preservao de identidades nacionais,

    muitas se referem ao conceito de conhecimento e s prticas associadas a ele. Talvez a mais

    importante a se destacar seja a percepo de uma dicotomia entre saber e fazer, que prevalece

    no mundo chamado "civilizado" e que prpria dos paradigmas da cincia moderna, como criada

    por Descartes, Newton e outros.

    Surgindo praticamente ao mesmo tempo que as grandes navegaes, a conquista e a

    colonizao, a cincia moderna se imps como uma forma de conhecimento racional, originado

    das culturas mediterrneas e substrato da eficiente e fascinante tecnologia moderna. Definiu-se, a

    partir das naes centrais, conceituaes estruturadas e a dicotmicas do saber [conhecimento] e

    do fazer [habilidades].

    importante lembrar que praticamente todos os pases adotaram a Declarao de Nova

    Delhi (16 de dezembro de 1993), que explcita ao reconhecer que "a educao o instrumento

    preeminente da promoo dos valores humanos universais, da qualidade dos recursos humanos e

    do respeito pela diversidade cultural"(2.2) e que "os contedos e mtodos de educao precisam

    ser desenvolvidos para servir s necessidades bsicas de apendizagem dos indivduos e das

    sociedades, proporcionando-lhes o poder de enfrentar seus problemas mais urgentes -- combate

    pobreza, aumento da produtividade, melhora das condies de vida e proteo ao meio ambiente -

    - e permitindo que assumam seu papel por direito na construo de sociedades democrticas e no

    enriquecimento de sua herana cultural"(2.4).

    Nada poderia ser mais claro nesta declarao que o reconhecimento da subordinao dos

    contedos programticos diversidade cultural. Igualmente, o reconhecimento de uma variedade

    de estilos de aprendizagem est implcito no apelo ao desenvolvimento de novas metodologias.

    Essencialmente, essas consideraes determinam uma enorme flexibilidade tanto na

    seleo de contedos quanto na metodologia.

    Etnomatemtica e matemtica

    U.DAmbrosio 12

  • A abordagem a distintas formas de conhecer a essncia do Programa Etnomatemtica.

    Na verdade, diferentemente do que sugere o nome, Etnomatemtica no apenas o estudo de

    "matemticas das diversas etnias". Para compor a palavra Etno-matema-tica utilizei as razes tica,

    matema e etno para significar que h vrias maneiras, tcnicas, habilidades (ticas) de explicar, de

    entender, de lidar e de conviver com (matema) distintos contextos naturais e scio-econmicos da

    realidade (etnos).

    A disciplina denominada Matemtica na verdade uma Etnomatemtica que se originou e

    se desenvolveu na Europa, tendo recebido algumas contribuies das civilizaes indiana e

    islmica, e que chegou forma atual no sculos XVI e XVII, sendo a partir de ento levada e

    imposta a todo o mundo. Hoje, essa matemtica adquire um carter de universalidade, sobretudo

    devido ao predomnio da cincia e tecnologia modernas, que foram desenvolvidas a partir do

    sculo XVII na Europa.

    Essa universalizao um exemplo do processo de globalizao que estamos

    testemunhando em todas as atividades e reas de conhecimento. Falava-se muito das

    multinacionais. Hoje, as multinacionais so, na verdade, empresas globais, para as quais no

    possvel identificar uma nao ou grupo nacional dominante.

    Essa idia de globalizao j comea a se revelar no incio do cristianismo e do islamismo.

    Diferentemente do judasmo, do qual essas religies se originaram, bem como de inmeras outras

    crenas nas quais h um povo eleito. O cristianismo e o islamismo so essencialmente religies

    de converso de toda humanidade mesma f, de todo o planeta subordinado mesma igreja.

    Isso fica evidente no processo de expanso do Imprio Romano cristianizado e do Islo.

    O processo de globalizao da f crist se aproxima do seu ideal com as grandes

    navegaes. O catecismo, elemento fundamental da converso, levado a todo o mundo. Assim

    como o cristianismo um produto do Imprio Romano levado a um carter de universalidade com

    o colonialismo, tambm o so a matemtica, a cincia e a tecnologia.

    No processo de expanso, o cristianismo foi se modificando, absorvendo elementos da

    cultura subordinada e produzindo variantes notveis do cristianismo original do colonizador.

    Esperar-se-ia que igualmente as formas de explicar, conhecer, lidar, conviver com a realidade

    sociocultural e natural, obviamente distintas de regio para regio, e que so as razes de ser da

    Matemtica, das cincias e da tecnologia, tambm passassem por esse processo de

    "aclimatao", resultado de uma dinmica cultural. No entanto, isso no se deu e no se d e

    esses ramos do conhecimento adquiriraram um carter de absoluto universal. No admitem

    variaes ou qualquer tipo de relativismo. Isso se incorporou at no dito popular "to certo quanto

    U.DAmbrosio 13

  • dois mais dois so quatro". No se discute o fato, mas sua contextualizao na forma de uma

    construo simblica que ancorada em todo um passado cultural.

    A Matemtica tem sido conceituada como a cincia dos nmeros e das formas, das

    relaes e das medidas, das inferncias, e as suas caractersticas apontam para preciso, rigor,

    exatido. Os grandes heris da Matemtica, isto , aqueles indivduos historicamente apontados

    como responsveis pelo avano e consolidao dessa cincia, so identificados na antigidade

    grega e posteriormente, na Idade Moderna, nos pases centrais da Europa, sobretudo Inglaterra,

    Frana, Itlia, Alemanha. Os nomes mais lembrados so Tales, Pitgoras, Euclides, Descartes,

    Galileo, Newton, Leibniz, Hilbert, Einstein, Hawkings. So idias e homens originrios do Norte do

    Mediterrneo.

    Portanto, falar dessa Matemtica em ambientes culturais diversificados, sobretudo em se

    tratando de nativos ou afro-americanos ou outros no europeus, de trabalhadores oprimidos e de

    classes marginalizadas, alm de trazer a lembrana do conquistador, do escravista, enfim do

    dominador, tambm se refere a uma forma de conhecimento que foi construdo por ele,

    dominador, e da qual ele se serviu e se serve para exercer seu domnio. Mas isso tambm se

    passa com calas "jeans", que se mescla com as vestes tradicionais, ou com a "Coca-Cola", que

    aparece como uma opo para o guaran, ainda preferido por muitos, ou com o rap, que est se

    popularizando e, junto com o samba, produzindo um novo ritmo. As formas tradicionais

    permanecem e se modificam pela presena das novas. A religio e a lngua do dominador se

    modificaram ao incorporar as tradies do dominado. Mas a Matemtica, com seu carter de

    infalibilidade, de rigor, de preciso e de ser um instrumento essencial e poderoso no mundo

    moderno, teve sua presena firmada excluindo outras formas de pensamento. Na verdade, ser

    racional identificado com dominar a Matemtica. A Matemtica se apresenta como um deus

    mais sbio, mais milagroso e mais poderoso que as divindades tradicionais e outras tradies

    culturais.

    Se isto pudesse ser identificado apenas como parte de um processo perverso de

    aculturao, atravs do qual se elimina a criatividade essencial ao ser [verbo] humano, eu diria

    que essa escolarizao uma farsa. Mas pior, pois na farsa, uma vez terminado o espetculo,

    tudo volta ao que era. Enquanto na educao o real substitudo por uma situao que

    idealizada para satisfazer os objetivos do dominador. Nada volta ao real ao terminar a experincia

    educacional. O aluno tem suas razes culturais, parte de sua identidade, e no processo essas so

    eliminadas. Essa eliminao produz o excludo.

    Isto evidenciado, de maneira trgica, na Educao Indgena. O ndio passa pelo

    processo educacional e no mais ndio ... mas tampouco branco. Sem dvida a elevada

    ocorrncia de suicdios entre as populaes indgenas est associado a isso. Ora, isso se passa

    U.DAmbrosio 14

  • da mesmssima maneira com as classes populares, mesmo no ndios. Mas exatamente isso se

    d com uma criana, com um adolescente e mesmo com um adulto ao se aproximar de uma

    escola. Se os ndios praticam suicdio, o que nas suas relaes intra-culturais no impedido, a

    forma de suicdio praticada nas outras camadas da populao uma atitude de descrena, de

    alienamento, to bem mostrado no filme recente Kids.

    Uma pergunta natural depois dessas observaes pode ocorrer: seria ento melhor no

    ensinar matemtica aos nativos e aos marginalizados?

    Essa pergunta se aplica a todas as categorias de saber/fazer prprios da cultura do

    dominador, com relao a todos os povos que mostram uma identidade cultural.

    Naturalmente h um importante componente poltico nessas reflexes. Apesar de muitos

    dizerem que isso jargo ultrapassado de esquerda, claro que continuam a existir as classes

    dominantes e subordinadas, tanto nos pases centrais e quanto nos perifricos.

    Faz sentido, portanto, falarmos de uma "matemtica dominante", que um instrumento

    desenvolvido nos pases centrais e muitas vezes utilizado como instrumento de dominao. Essa

    matemtica e os que a dominam se apresentam com postura de superioridade, com o poder de

    deslocar e mesmo eliminar a "matemtica do dia-a-dia". O mesmo se d com outras formas

    culturais. Particularmente interessante so os estudos de Basil Bernstein sobre a linguagem. E

    so muito conhecidas as situaes ligadas ao comportamento, medicina, arte e religio.

    Todas essas manifestaes so referidas como cultura popular. Naturalmente, embora seja viva e

    praticada, a cultura popular muitas vezes ignorada, menosprezada, rejeitada, reprimida e

    certamente diminuda. Isto tem como efeito desencorajar e mesmo eliminar o povo como produtor

    e mesmo como entidade cultural.

    Isso no menos verdade com a Matemtica. Em particular na Geometria e na Aritmtica

    se notam violentas contradies. Por exemplo, a geometria do povo, dos bales e dos papagaios,

    colorida. A geometria terica, desde sua origem grega, eliminou a cor. Muitos leitores a essa

    altura estaro confusos. Estaro dizendo: mas o que isso tem a ver? Papagaios e bales? Cores?

    Tem tudo a ver, pois so justamente essas as primeiras e mais notveis experincias

    geomtricas. E a reaproximao de Arte e Geometria no pode ser alcanada sem o mediador

    cor. Na Aritmtica, o atributo do nmero na quantificao essencial. Duas laranjas e dois cavalos

    so "dois" distintos. Chegar ao "dois" sem qualificativo, abstrato, assim como Geometria sem

    cores, talvez sejam o ponto crucial na passagem para uma Matemtica terica. O cuidado com

    essa passagem e com trabalhar adequadamente esse momento talvez sintetizem tudo que h de

    importante nos programas de Matemtica Elementar. O resto daquilo que constitui os programas

    so tcnicas que pouco a poucos vo se tornando interessantes e necessrias.

    U.DAmbrosio 15

  • No se questiona a convenincia e mesmo a necessidade de ensinar aos dominados a

    lngua, a matemtica, a medicina, as leis do dominador, sejam esses ndios e brancos, pobres e

    ricos, crianas e adultos. Chegamos a uma estrutura de sociedade e a conceitos de cultura, de

    nao e de soberania que impem essa necessidade. O que se questiona a agresso

    dignidade e identidade cultural daqueles subordinados a essa estrutura.

    A responsabilidade maior dos tericos da educao alertar para os danos irreversveis

    que se podem causar a uma cultura, a um povo e a um indivduo se o processo for conduzido

    levianamente, muitas vezes at com boa inteno, e fazer propostas para minimizar esses danos.

    Muitos educadores no se do conta disso.

    O que justifica o papel central das idias matemticas em todas as civilizaes

    [etnomatemticas] o fato de ela fornecer os instrumentos intelectuais para lidar com situaes

    novas e definir estratgias de ao. Portanto a etnomatematica do indgena serve, eficiente e

    adequada para as coisas daquele contexto cultural, naquela sociedade. No h porque substitu-

    la. A etnomatemtica do branco serve para outras coisas, igualmente muito importantes, propostas

    pela sociedade moderna e no h como ignor-la. Pretender que uma seja mais eficiente, mais

    rigorosa, enfim melhor que a outra , se removida do contexto, uma questo falsa e falsificadora.

    O domnio de duas etnomatemticas, e possivelmente de outras, obviamente oferece

    maiores possibilidades de explicaes, de entendimentos, de manejo de situaes novas, de

    resoluo de problemas. exatamente isso que se faz pesquisa matemtica -- e na verdade

    pesquisa em qualquer outro campo do conhecimento.

    O acesso a um maior nmero de instrumentos e de tcnicas intelectuais do, quando

    devidamente contextualizadas, muito maior capacidade de enfrentar situaes e de resolver

    problemas novos, de modelar adequadamente uma situao real para, com esses instrumentos,

    chegar a uma possvel soluo ou curso de ao.

    Isto aprendizagem por excelncia, isto , a capacidade de explicar, de apreender e

    compreender, de enfrentar, criticamente, situaes novas. Aprender no o mero domnio de

    tcnicas, habilidades e nem a memorizao de algumas explicaes e teorias.

    A adoo de uma nova postura educacional , na verdade, a busca de um novo

    paradigma de educao que substitua o j desgastado ensino-aprendizagem, que baseado

    numa relao obsoleta de causa-efeito. Procura-se uma educao que estimule o

    desenvolvimento de criatividade desinibida conduzindo a novas formas de relaes interculturais.

    Essas relaes caracterizam a educao de massa e proporcionam o espao adequado para

    preservar a diversidade e eliminar a desigualdade discriminatria, dando origem a uma nova

    organizao da sociedade. Fazer da Matemtica uma disciplina que preserve a diversidade e

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  • elimine a desigualdade discriminatria a proposta maior de uma Matemtica Humanstica. A

    Etnomatemtica tem essa caracterstica.

    Notas 1 Joseph Rotblat: Scientists in the Quest for Peace. A History of the Pugwash Conferences. Cambridge: The MIT Press, 1972;p.137-140. 2 Ver o site http://www.unesco.org/manifesto2000/ 3 Um dos bons trabalhos sobre o tema o livro de Xess R. Jares: Educacin para la Paz. Su teoria y su prctica. Madrid: Editorial Popular, 1999. 4 http://wmy2000.math.jussieu.fr/ 5 Ubiratan DAmbrosio: Educao para uma sociedade em transio. Campinas: Papirus Editora, 1999. 6 Ubiratan DAmbrosio: Mathematics and peace: Our resposibilities, Zentralblatt fr Didaktik der Mathematik/ZDM, Jahrgang 30, Juni 1998, Heft 3; pp.67-73. 7 Ubiratan DAmbrosio: A Era da Conscincia, Editora Fundao Peirpolis, So Paulo, 1997. 8 Ubiratan DAmbrosio: Diversity, Equity, and Peace: From Dream to Reality. IN Multicultural and Gender Equity in the Mathematics Classroom. The Gift of Diversity 1997 Yearbook of the NCTM/National Council of Teachers of Mathematics, Janet Trentacosta and Margaret J. Kenney, eds., Reston: NCTM, 1997; pp. 243-248. 9 Ubiratan DAmbrosio: On Environmental mathematics education Zentralblatt fr Didaktik der Mathematik ZDM 94/6 pp.171-174. 10 Boaventura de Sousa Santos: A crtica da razo indolente. Contra o desperdcio da experincia, v.1, So Paulo: Editora Cortez, 2000; p.383. 11 Brian Butterworth: What Counts. How the Brain Is Hardwired for Math, New York: The Free Press, 1999. 12 O instante uma questo filosfica da mesma natureza que o irracional, que dominou a filosofia desde a antigidade grega. No sculo XIX, quando Richard Dedekind colocou em termos precisos o conceito de irracional, deu-se significado ao instante. 13 Oliver Sacks: Um Antroplogo em Marte, So Paulo: Companhia das Letras, 1995; p.141. 14 Este argumento semelhante ao de Paulo Freire quando diz que o ser humano o nico [ser vivo] que tem conscincia da sua inconcluso. Ver A conversation with Paulo Freire, For the Learning of Mathematics, vol. 17, n.3, November 1997, pp.7-10. 15 Isso foi muito bem ilustrado por Anthony Burgess no seu clssico A Laranja Mecnica [A Clockwork Orange, 1962], que em 1971 deu origem a uma pelcula de grande repercusso dirigida por Stanley Kubrick.

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