ambientalização e territorialização.pdf

Upload: deize-brito

Post on 16-Feb-2018

222 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    1/30

    151

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    ARTIGOS

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    2/30

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    3/30

    PIERRETEISSERENC*

    AMBIENTALIZAOETERRITORIALIZAO: SITUANDOODEBATENOCONTEXTODAAMAZNIABRASILEIRA1

    Considera-se como objeto neste artigo os pro-cessos de ambientalizao e de territorializao

    da ao pblica especicamente no contexto daAmaznia brasileira, apoiando-se no debateque atravessa o mundo acadmico brasileiro.

    Descreve-se no primeiro momento os efeitosda ambientalizao dos movimentos sociais edos conitos dos quais emanam os principaisdesafios, tanto do ponto de vista social eeconmico, quanto politico. Insiste-se parti-cularmente sobre as mudanas produzidas em

    matria de renovao da ao local, tanto emseu contedo quanto em referncias e valoresque a acompanham. Tal renovao, em pro-

    fundidade, da ao pblica local se manifestapela territorializao, o que apresentado nasegunda parte do artigo, e que permite carac-terizar certas consequncias e materializar os

    desaos. Mostra-se, ento, notadamente, comoa reivindicao do territrio por certos grupossociais ocorre ao lado da reivindicao de umestatuto social e politico, e do reconhecimento

    identitrio e da cultura que esta identidade

    mobiliza.Palavras-chave:ambientalizao, territoria-lizao, ao pblica local, movimento social,

    identidade.

    1 Traduo de Maria Jos da Silva Aquino (professora adjunta da UFPA)

    * Professor de Socio-logia Poltica da Uni-versidade Paris 13.Fundador e, atual-mente, Vice-diretordo Centre de Recher-ches sur lAction Loca-le (CERAL). ProfessorVisitante do Ncleode Meio Ambiente(NUMA) e Programade Ps-Graduao em

    Cincias Sociais (PPG-CS), UniversidadeFederal do Par.

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    4/30

    154

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    INTRODUO

    Na sequncia de vrias pesquisas sobre Reservas Extrativistas (TEIS-SERENC, 2010) no contexto da Amaznia brasileira, faz-se necessrio

    proceder reviso das reflexes que trazem a ideia de ambientalizao.Essaideia tem, por vezes, parecido evidente, pois numerosos autoresutilizam-na sem discuti-la. Ao mesmo tempo, tornou-se objeto centralem debates no meio acadmico, tanto quanto nos meios social e pol-tico. Portanto, a ideia de ambientalizaopresta-se discusso em doissentidos. Porque sua definio um desafio aos debates atuais sobre abiodiversidade e sobre as polticas de sua conservao; e porque, paraalm de sua definio, esta noo abre caminhos a perspectivas novasnos domnios econmico, social, cultural e poltico.

    Na inteno de contribuir academicamente com o debate, quer-se aquiidentificar pontos de convergncia no seio das cincias sociais e, conse-quentemente, aspectos que demandam esclarecimentos e aprofundamen-tos em razo dos desafios da gesto da biodiversidade. Esta contribuioparece ser necessria tanto pela ideia de ambientalizaono se limitar elaborao e definio de um novo conceito que possa integrar osparadigmas das cincias sociais e das cincias da vida, quanto por ser estanoo mais uma indicao da necessidade de revisitar nossa maneira de

    pensar o real, em particular a relao entre homem e natureza, a relaoentre sujeito e objeto. Enfim, por ter-se tornado referncia sobre a qual,desde o sculo XVII, se baseia a cincia, dando lugar a uma classificaoe a uma diviso dos campos de conhecimento das quais somos herdeiros.Por essa razo, situar o debate sobre a ideia de ambientalizao requerconsiderar outros modos do conhecimento, outros saberes, identificadospor Claude Lvi-Strauss como pertencentes ao sistema de pensamento,por ele definido selvagem.

    O questionamento sobre as formas de conhecimento toma como pressu-posto que os saberes tm no somente uma funo e um valor acadmi-co, mas, ao mesmo tempo, funo e valor social, aos quais temos de serparticularmente sensveis, a partir do momento em que os impasses emmatria de desenvolvimento do pas e do planeta tambm nos obriguema recolocar em causa os instrumentos cientficos e os paradigmas queinformam e justificam este desenvolvimento. A crise atual e as rupturasde toda natureza que ela gera esto na origem do debate sobre a biodi-versidade e sobre a maneira de re-pensar o futuro (ou o re-desenvolvi-

    mento) da humanidade. E no centro deste debate pode-se situar a ideiadeambientalizao,j que ela exprime, de algum modo, seus resultados,no somente quanto maneira de pensar o mundo e seu futuro, mas

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    5/30

    155

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    tambm quanto maneira de gerir os recursos que este mundo encerrae cuja explorao permite aos homens viver e se dar um futuro comum.

    Escolheu-se, ento, apreender esta ideia deambientalizao,apoiando-se,inicialmente, nas reflexes conjuntas de Alfredo Wagner de Almeida(2008) e Carlos Walter Porto Gonalves (2001), que tratam dessa questoespecificamente no contexto da Amaznia; de Jos Srgio Leite Lopes(2006), que a refere a contextos urbanos, diante dos efeitos de poluiona regio sudeste do Brasil, no mbito da globalizao e da moderniza-o do modo de produo industrial; e de Enrique Leff (2002 e 2006),que prope uma reflexo em grande parte terica sobre a construode um pensamento e de uma racionalidade ambientais, ao analisar astransformaes resultantes nos movimentos sociais, sobretudo em ter-

    mos de modo de pensar, a partir da conjugao da questo social coma questo ambiental.

    A leitura cuidadosa do trabalho desses autores confirma a dificuldade dedissociar os desafios sociais, econmicos e polticos dos desafios de ordemacadmica e epistemolgica, concernendo estes s formas de produoe de reconhecimento da cincia, dos saberes e das tecnologias. Os desa-fios econmicos, sociais e polticos, manifestando-se em particular pelaexistncia de um processo de ambientalizaodos movimentos sociais,permitem explicar como, a partir de conflitos locais, a questo ambientalse imiscue no corao desses movimentos, tornando-se seu alvo e razode ser. Ao mesmo tempo, esse processo se faz acompanhar de fenme-nos que afetam o objeto das reivindicaes e deslocam os objetivos dosmovimentos, ao incorporarem novas preocupaes quelas em curso,inclusive colocando-as como prioritrias. Tratar-se- na primeira partedeste artigo do estado atual da anlise daambientalizao dos movimentossociais e de seus conflitos.

    Em meio aos objetos desses processos de reivindicao, o territrio

    emerge como questo central, no somente em termos de refernciapara a justificativa e a conduta nos conflitos, como aes engajadas, mastambm em termos de objetivos concretos que respondem a desafiospolticos. Assim sendo, a questo da territorializaose impe para in-meros autores como sendo intrinsecamente ligada daambientalizao. E tambm a razo pela qual atribui-se a ela um lugar central na segundaparte deste artigo.

    Ao lado dos desafios sociais, econmicos e polticos, os desafios de carter

    acadmico, questo referida anteriormente, dizem respeito particu-larmente maneira como os debates sobre a ideia de ambientalizaoso ocasio de lanar um olhar novo sobre o interesse, a utilidade e a

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    6/30

    156

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    pertinncia dos saberes tradicionais. Estes desafios dizem respeito igual-mente aos modos de reconhecimento desses saberes e seu impacto sobrea maneira de pensar um novo desenvolvimento das sociedades. Essaquesto ser tratada na terceira parte deste artigo, servindo de entrada

    a concluses nas quais prope-se abrir novas pistas de reflexes.

    1. DODEBATESOBREAQUESTOAMBIENTALAMBIENTALIZAODOSMOVIMENTOSSOCIAIS

    Pode-se entender o conceito deambientalizao, no sentido apresentadopor Leite Lopes, isto , quando de suas anlises sobre os conflitos de

    trabalho em empresas brasileiras confrontadas aos riscos de poluio,como um processo histrico de construo de novos fenmenos, []relacionado poluio, como uma construo da uma nova questo social,uma nova questo pblica (2006, p. 34). Esse processo se manifesta nasmudanas de forma dos conflitos sociais, na linguagem desses conflitose por um incio de institucionalizao, o que se faz acompanhar de umainteriorizao, pelos atores e pelos grupos sociais, de diferentes aspectosque caracterizam a maneira como o meio ambiente levado em contacomo questo pblica. Esse processo seria particularmente significativo

    na situao de pases industrializados e modernos, que so conduzidos,em razo dos riscos de poluio e das incertezas de todo tipo que atin-gem os territrios volta de si, a pensar seu desenvolvimento, segundoAnthony Giddens, em termos de incerteza artificial e de modernizaoreflexiva. E, segundo Ulrich Beck, em termos de sociedade do risco.Em meio aos riscos identificados, os mais significativos so aqueles queafetam a natureza sob todas as formas e, em particular, a natureza comobiodiversidade, nesse contexto apresentando-se tambm como patrim-nio histrico e cultural.

    Nessa perspectiva, o processo histrico deambientalizaoaparece comouma nova etapa da grande transformao, que Karl Polanyi interpre-taria possivelmente como uma nova maneira de o capitalismo controlarseu desenvolvimento e de se transformar. maneira como se passoucom as etapas precedentes deste processo histrico, a ambientalizaose acompanha de mudanas tanto ao nvel do Estado e da sociedadeem geral, quanto ao nvel das populaes, de sua vida cotidiana, detrabalho, de lazer.

    Para justificar sua interpretao, Leite Lopes leva em considerao cincofatores particularmente significativos dessa evoluo. Primeiro, a impor-

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    7/30

    157

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    tncia crescente tomada pela esfera institucional do ambiente, a partirdos anos 1970 at o fim do sculo XX; segundo, o desenvolvimento deconflitos sociais de carter ambiental ao nvel local e seus efeitos sobrea interiorizao, pelos atores e por grupos locais, de novas condutas e

    novos valores; terceiro, a multiplicao de prticas de participao navida local; e quarto, a importncia dos debates sobre a questo ambientalcomo nova fonte de legitimidade e de justificao dos conflitos sociais.

    Sem refutar esse esquema de anlise, Henri Acselrad (2010) constata, apartir de uma abordagem econmica, que desde sua origem o processodeambientalizaodos conflitos se desenvolveu em duas perspectivas bemdiferentes. Uma que ele qualifica como contra-cultural; e outra comoutilitria. A primeira questiona o modo de produo e de consumo

    fordista, uma vez que ele impe um modo de vida s populaes e umaforma particular de apropriao do mundo material. A segunda, herdeirado pensamento do Clube de Roma, se preocupa em assegurar a conti-nuidade do sistema de produo e de acumulao capitalista, medianteracionalizao da explorao e do consumo dos recursos naturais, demodo a garantir um desenvolvimento sustentvel. A essas duas perspec-tivas correspondem dois modelos de ao estratgica.

    Para Acselrad, essas duas perspectivas tm disputado a construo daquesto ambiental dos anos 1970 at hoje. Do lado utilitrio, a questose coloca no em termos de finalidades, mas em termos de meios a seremacionados para prevenir um risco ambiental nico, instrumental, queafeta as fontes de matria-prima e de energia que alimentam o capitalis-mo; assim tambm as condies materiais da vida urbana e os riscos deparalisia da atividade produtiva, em razo da poluio e das dificuldadesde vida nas grandes aglomeraes. Nesse sentido, a preveno dos riscosambientais resulta em abordagem que Acselrad qualifica de democrtica,que no se refere a uma organizao da sociedade em classes sociais.

    Do lado cultural, a questo ambiental apreendida em termos de finali-dade da apropriao dos recursos do planeta, considerando as qualidadessocioculturais desses recursos. Desse modo, os riscos ambientais depen-dem da capacidade de diferentes grupos sociais de escapar aos efeitosde tais riscos ou de estar na origem de produo desses. Essa desigualrepartio dos riscos e das causas e os mltiplos significados atribudospelas diferentes sociedades s consequncias desses riscos criam, assim,um espao para a percepo e a denncia daquilo que cada grupo, noseio de cada sociedade, considera como um risco ambiental. Abre, dessaforma, o caminho para o que se impe como conflitos ambientais, querse trate de conflitos metafricos, cada vez que se colocam em causa as

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    8/30

    158

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    geraes futuras que, por definio, no podem participar efetivamen-te dos debates que lhes dizem respeito; ou quer se tratem de conflitosreais, que dizem respeito a atores em presena. Em todos os casos, osconflitos ambientais resultantes consistem na denncia de desigualda-

    des ambientais e suas relaes com as desigualdades redistributivas; asexposies desproporcionais aos riscos ambientais de diferentes grupossociais, ou ainda a concentrao dos benefcios do desenvolvimento nasmos de algumas pessoas. Nesse quadro, a preveno da poluio no unicamente e necessariamente de natureza democrtica. Ela se revestede formas diferentes em funo de cada grupo social, de cada contextoe da maneira como as lutas ambientais se desenvolvem e so tratadas.

    No mundo amaznico , incontestavelmente, essa segunda perspectiva

    que predomina, sobretudo quando se busca levar em conta mudanaspelas quais passaram os conflitos sociais a partir dos anos 1970. SegundoEnrique Leff (2006, p. 455), o novo ambientalismo social que se mani-festa no curso desses anos, a partir das lutas engajadas pelas populaestradicionais, caracterizam-se por uma reivindicao em matria deapropriao da terra, de novas prticas econmicas e sociais e de ope-rao de um novo processo de produo ao lado de uma demanda dedemocratizao dos poderes locais e das instituies e, ao mesmo tempo,uma descentralizao econmica e administrativa.

    As reivindicaes que acompanham essas mudanas colocam de antemouma concepo participativa de tomada de deciso, que questiona asestruturas de poder e sua capacidade de conferir direito a tais reivindica-es. Elas integram qualidades e ressonncias fortemente ambientalistas,que se traduzem em justificativas de demandas concretas de reapro-priao e de gesto dos recursos naturais. Resulta disso uma mudanana natureza das reivindicaes. E, desse modo, por exemplo, a reivin-dicao pela apropriao da terra tende a tornar-se uma reivindicao

    pela apropriao do modo de produo do qual depende as condiesde vida das populaes.

    Assim, a ambientalizaodos conflitos sociais, quanto a seu objeto e asua natureza, acompanha-se de uma ambientalizao dos movimentossociais, impondo-lhes a tomada em conta de uma grande diversidadede grupos sociais implicados nas lutas. E a tal ponto que possvel falar,nesse sentido, de novos movimentos sociais. Novos movimentos que seconcretizam pela busca de objetivos comuns, entre os quais:

    Maior participao nas arenas polticas eeconmicas, inclusive na gesto dos recursos;

    Democratizao do poder poltico, acelerao da

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    9/30

    159

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    descentralizao administrativa e econmica ecrtica aos sistemas clientelistas e corporativistassobre os quais est baseado o poder local;

    Defesa do territrio, de seus recursos e do

    ambiente, junto organizao das lutas pela terra,pelo emprego e pela renda;

    Elaborao de um novo modo de produo e dabusca de novas formas de consumo;

    Submisso das exigncias do mercado s exignciasda qualidade de vida;

    Crtica da racionalidade econmica e de suareferncia exclusiva lgica do mercado, da mesmaforma, crtica s instituies econmicas e de seusefeitos em termos de conscientizao ideolgica epoltica.

    Aambientalizaodos movimentos sociais tem como efeito propor um novoesquema de anlise da ao, preocupado com o impacto democrticodesses novos movimentos sobre as estruturas polticas; com o impactodas estratgias, das prticas e dos discursos ambientalistas sobre o enga-jamento dos atores locais; e com o impacto de suas proposies e valores,aos quais essas proposies se referem, em matria de desligitimao, de

    ideologia e do discurso poltico dominante. De tais impactos dependemnotadamente estratgias polticas que esses novos movimentos sociaisacionam em relao ao Estado, aos partidos e aos sindicatos, mesmocom alianas passadas com outros movimentos da sociedade civil. Elesdependem igualmente da maneira como a nova cultura poltica qualsuas prticas se referem, feita de pluralidade e tolerncia, facilitaria atransio de uma sociedade capitalista para uma sociedade sustentvel,justa e democrtica, funcionando a partir de novas regras de poder,que permitem uma distribuio mais justa do potencial ecolgico do

    planeta. De fato, a abordagem proposta por Enrique Leff no se limi-ta a uma anlise reflexiva e crtica da sociedade atual; ela apreende aquesto ambiental como uma etapa necessria da emergncia de umanova sociedade.

    As consequncias dessa maneira de apreender a questo daambientalizaodos movimentos sociais so mltiplas. Algumas de carter social; outrasmais de carter econmico e outras, finalmente, mais de carter poltico.Estas ltimas dizem respeito emergncia de uma democracia qualificada

    de ambiental e caracterizada pela grande variedade, heterogeneidadede atores sociais, e a diversidade de suas reivindicaes. Em particular,reivindicaes sobre os direitos humanos, a etnicidade e a justia social e

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    10/30

    160

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    ambiental, reivindicaes de compensaes para as pessoas penalizadaspelos danos ecolgicos; ou ainda reivindicaes de direito apropriaoda natureza enquanto um patrimnio integrante de valores, de saberes,de uma cultura etc.

    Prximo da concepo de ambientalizaoproposta por Enrique Leff,Porto Gonalves (2001, p. 130) chama a ateno, com justa razo, parao seguinte. O comeo desse processo de ambientalizao dos conflitossociais se situa no Brasil durante o regime militar, momento em que aspopulaes tradicionais da Amaznia sofriam os efeitos da poltica decolonizao, quando o pas obtinha o apoio das potncias internacionaispara realizar sua poltica. Desde essa poca e nesse contexto, explicaPorto Gonalves, as populaes tradicionais conseguiram encontrar apoio

    exterior e tirar proveito de diferenas de estratgias nos nveis local,nacional e internacional, para ocupar o espao poltico, transform-loparcialmente em seu favor e denunciar o modelo de desenvolvimentoque lhes estava sendo imposto.

    Diferentemente do que se produziu no sculo XIX com a revolta daCabanagem, as lutas tm, ento, testemunhado suas capacidades de es-tabelecer laos e contatos, de constituir alianas com outros movimentosda sociedade civil, nacional e internacional, de se beneficiar dos debatesque esses encontros e alianas ocasionam, tendo-se em conta contextosdiferentes. Esses movimentos tm em comum a mobilizao no somentepela defesa de direitos tradicionais e pela reapropriao de meios deproduo; so tambm movimentos de resistncia pela sobrevivncia.Eis a razo pela qual Porto Gonalves os qualifica de movimentos de

    re-existncia, um modo de vida e de produo, modos diferenciados desentir, de pensar e de agir.

    A noo de re-existncia para se referir a novas formas de mobilizao enovos movimentos sociais retomada por Enrique Leff (2002, p. 501),

    ao constatar que a luta desses movimentos uma luta clssica pela defesado territrio, na qual se reinventam identidades em relao aos outros e natureza, ao permitir que as populaes tradicionais se apropriem deum discurso e de uma poltica do desenvolvimento sustentvel.

    A propsito, considerando os impactos econmicos e sociais daambientali-zao, ilustrativa a situao dos seringueiros descrita tanto em Gonalvesquanto em Leff. No combate vivenciado por eles, durante os anos 1980,os seringueiros no eram mais os trabalhadores independentes a servio

    de um patro que os explorava (TEISSERENC, 2010, p. 43). Eles apa-recem como atores de um movimento social e investem na reafirmao

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    11/30

    161

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    de sua identidade, apoiando-se em uma estratgia de gesto sustentvelda natureza e de seus recursos. Essa nova estratgia corresponde a mu-danas em suas prticas sociais e profissionais, concretizadas em novoprojeto de produo, cultural e poltico.

    Nessa interpretao da situao dos seringueiros importa destacar que anova orientao que eles conseguem dar a seus conflitos e as identidadesque desenvolvem no correspondem re-atualizao de uma identidadeoriginria. De fato, no contexto dos anos 1980, os seringueiros tornam-seprotagonistas de uma luta pela apropriao da natureza que os rodeia epela afirmao de sua cultura, a partir de um projeto de desenvolvimentosustentvel. E nessa luta foi criado um espao pblico de debates e denegociaes. A criao desse espao e os debates que ali so possibilitados

    resultam dessa luta, ao mesmo tempo que so o resultado de uma novamaneira de apreender e pensar o mundo, que acompanha as aes que osseringueiros conduziram conjuntamente. este agenciamento particularentre pensamento e ao que contribui, ao mesmo tempo, com a reconfigu-rao das identidades coletivas e com a organizao de espaos ecolgicos.

    Essa dupla produo, de identidades coletivas e de espaos ecolgicos,faz emergir um novo territrio, apresentando-se ao mesmo tempo comosendo simblico, cultural e poltico, tornando-se o desafio de uma novaforma de apreenso do mundo, de uma nova maneira de o pensar.

    Nesse sentido, e se referindo ao exemplo dos seringueiros, Enrique Leffconsidera que o movimento de re-existncia, mencionado anteriormente,advm de um processo de res-significao e de transgresso de territrios,que este autor qualifica como territrios de conhecimento. O que tambmse considera como, ao mesmo tempo, territrios simblicos referenciaisde uma nova maneira de pensar o tempo, o espao e a ao.

    Essa concepo deambientalizao dos movimentos sociais prxima da

    maneira como Edna Castro e Florence Pinton (1997, p. 236) j vinhamconsiderando a evoluo da situao das comunidades quilombolas.Em particular quando elas demonstram o quanto difcil proteger adiversidade biolgica sem proteger, ao mesmo tempo, a sociodiversida-de, produtora e protetora da primeira. A exemplo de outros grupos,os quilombolas experimentam um movimento social que se reapropriada identidade de seu grupo como identidade diferente, outra, a partirde reivindicaes polticas de territrio sobre o qual eles revivem suastradies tnicas, recriando seus saberes tradicionais a partir de sua

    memria. Reinventam, assim, o modo de fazer poltica, de renovar seussaberes sobre a natureza e de reatualizar suas tradies.

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    12/30

    162

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    A reivindicao mais importante para os quilombolas, identificou Castroe Pinton, o reconhecimento e a delimitao de sua terra, amplamentereafirmada como recebida de seus ancestrais, princpio fundamentalpara a afirmao de sua identidade. O reconhecimento dos lugares como

    lugares carregados de historia, lugares patrimoniais, permite-lhes inte-grar dimenses necessrias ao fato de ser e de existir ao mesmo tempocomo negros e camponeses. Assim, o territrio aparece respondendoa um duplo desafio: o desafio da sobrevivncia pela reproduo da exis-tncia e o desafio do reconhecimento atravs do controle da identidade.Mesmo sem o referir de maneira explcita, Castro e Pinton confirmam aimportncia dare-existnciacomo caracterstica do processo pelo qual osquilombolas se manifestam como atores coletivos de seu territrio; e oterritrio como importante reivindicaona luta pelo reconhecimentoe afirmao da identidade dos quilombolas.A partir das reflexes de Castro e Pinton, abordar-se- as relaes entreterritorializaoeambientalizao.

    2. A QUESTOAMBIENTALEATERRITORIALIZAO: REIVINDICAOTERRITORIALEAOPBLICALOCAL

    Para levar em conta as caractersticas da territorializao, uma reflexo

    prvia sobre o que a territorialidade para um indivduo ou um grupose impe, na medida em que esta noo e as realidades s quais se referejogam uma luz interessante sobre o que convm entender por territo-rializao, permitindo, assim, lhes apreciar os efeitos.

    1.Territorialiade e territrio

    A territorialidade comporta trs dimenses interdependentes. A primeira a de representar o territrio de referncia, permitindo a um indivduo

    ou a um grupo controlar e influenciar as pessoas prximas, dispor deelementos que o compem e de desenvolver com tais pessoas relaes,que so simultaneamente de ordem, de poder e de comunicao ou troca.

    A segunda dimenso confere territorialidade uma realidade de rede, nosentido em que ela o fundamento das mediaes cognitivas e prticasque facilitam a realizao das aes a partir da materialidade dos lugares.Enquanto dimenso ativa da territorialidade, ela se manifesta por umapropenso a valorizar os recursos do territrio e a facilitar as condiesde sucesso desta valorizao em uma perspectiva de desenvolvimento.

    Enfim, a territorialidade comporta tambm uma dimenso simblica esubjetiva, pois leva em conta o desdobramento do conjunto de atividades

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    13/30

    163

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    cotidianas, quer se trate de atividades de trabalho, da vida familiar e delazer como o resultado e condio do processo de produo de cadaterritrio, cada lugar (ZANNETTI, CANDIOTTO e SANTOS, 2009,p. 320-1). Ela representa a impresso simblica das relaes sociais de

    cada lugar e assim ela participa da produo do territrio e ao mesmotempo produzida por ele. Portanto, ela influenciada pelas tcnicase pelo modo de produo de suas populaes; e essa influncia se ma-nifesta pela cultura comportamentos que os indivduos adotam e asaes que eles inauguram. Sendo assim, mais ligada vida social emtermos culturais, econmicos e ambientais.

    A territorialidade assim definida remete a uma realidade em movimento,que caracteriza o modo de vida e a organizao da vida de cada indivduo

    e de cada grupo. Esse , em particular, o caso dos indivduos que organi-zam sua vida em referncia a vrios espaos. A multiterritorialidade queda resulta, caracteriza geralmente sua maneira de ser e influencia suasestratgias. Como conceber, a partir dessa noo de territorialidade, aterrritorializao? A palavra territorializaoj sugere, antes de tudo, umprocesso que envolve atores, aes nas quais eles se engajam, relaesmltiplas e cotidianas na forma de jogos de alianas ou de redes, prticasobjetivas e subjetivas em referncia a escalas espaciais diferentes.

    Por meio de suas relaes, aes e prticas, esses atores juntos desen-volvem formas de apropriao, materiais e simblicas, do espao quecomportam dimenses econmicas, polticas e culturais. So dimensesque caracterizam sua territorialidade. No contexto amaznico, essesgrupos recebem geralmente o apoio de diversas instituies de carterpblico ou privado, como sindicatos, partidos polticos, ONGs, associa-es, amparo pelo qual opera essa apropriao.

    As relaes que esses indivduos e esses grupos mantm so relaes detrabalho, aquelas da vida cotidiana enquanto consumidores de bens,

    de recursos e de energia. Ao mesmo tempo, essas relaes de trabalhoe da vida cotidiana so relaes de dependncia, que se desenvolvemem referncia a saberes, experincias, modos de explorao comuns.Com efeito, o grupo que eles constituem dispe de tcnicas, tecnologias,saberes instrumentos de mediao entre aqueles e seu espao. Essesinstrumentos de mediao so na origem realizaes diversas de cartersocial global, que participam da apropriao do espao e da produodo territrio. Essas realizaes dependem nodamente da mobilidadedos grupos, mas tambm dos indivduos no tempo e no espao; tempose espaos que podem, alm disso, ser descontnuos.

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    14/30

    164

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    Essa mobilidade dos indivduos e dos grupos sobre os espaos, em partecontnuos e em parte descontnuos, igualmente influenciada pelasdesigualdades e diferenas entre indivduos e grupos de um mesmoterritrio. Em particular, quando essas desigualdades e diferenas so

    historicamente constitudas em identidades coletivas; e quando elas in-tegram um sistema de relaes, ao ponto de definir traos comuns comoespecficos do territrio.

    O conjunto desses elementos permite compreender as mudanas quese manifestam em termos de territorializao,desterritorializaoe reterri-torializao, por vezes de maneira concomitante e complementar sobreum mesmo territrio, na proporo da mobilidade das populaes e dosfenmenos de continuidade-descontinuidade na sua vida social. Esses

    processos so uma caracterstica do que possvel definir por territoriali-zao, que concerne geralmente a um territrio permanentemente fluido(SAQUET, 2009), que se apresenta como o resultado de um processo dedesconstruo e reconstruo incessante.

    Tal fluidez, resultado do processo permanente de decomposio/re-composio, se apresenta s vezes como um espao fsico, delimitadopor uma fronteira, sem, no entanto, se confundir com ele. E, ao mesmotempo, como uma produo social e poltica, consequncia do fato de essemesmo espao fsico ser igualmente um espao inscrito em um campode poder (RAFFESTIN, 1993). Campo de poder que se materializa eminstituies complexas, que tm por funo, notadamente, controlar oterritrio e suas populaes e facilitar a gesto de seus recursos. Essasinstituies do uma visibilidade ao poder, ao mesmo tempo em que dolugar sua invisibilidade.

    Disso se coloca uma definio de territorializao como uma produosocial que, de acordo com Rogrio Haesbaert, o resultado de umahibridao entre sociedade e natureza, entre poltica, economia e cultura,

    e entre a materialidade e idealidade, numa complexa interao espao--tempo (HAESBAERT, 2004, p. 79). Esse efeito de territorializao aindamais forte quando o territrio em questo o objeto de reivindicaescomplexas como aquelas, em discusso anteriormente, provenientes da

    ambientalizaodos conflitos sociais em referncia a um territrio.

    2. A territorializao dos assentamentos

    Como, a partir desses elementos de definio, apresentar o processo

    de territorializaoe analisar seus laos com a ambientalizao? Para darclareza ao exposto, faz-se a descrio desse processo tomando-se a ex-

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    15/30

    165

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    perincia dos assentamentos, estudada por Medeiros (2009). A autoraconsidera que a ocupao do territrio de assentamentos se apoia sobreuma mobilizao das populaes concernidas que, com isso, reforam omovimento social. Ao mesmo tempo, esta ocupao um instrumento

    de poder poltico e um espao de afirmao de uma identidade cultural,aquela do grupo que o ocupa e dele se apropria. Assim, a ocupao doterritrio, como observa Rogrio Haesbaert, incorpora uma dimensosimblica, identitria e afetiva (2004, p. 41), que caracteriza o grupoocupante.

    A ocupao voluntria do espao em questo traz como efeito erigir umterritrio alternativo, que se torna objeto de um trabalho de provimen-to de equipamentos e de organizao. Esse trabalho a concretizao

    de aspiraes daqueles que conquistaram a terra e que, a partir dessemomento, vo trabalh-la reconstruindo sua identidade e sua territo-rialidade, uma vez que novas relaes emergem nesse novo territrio(MEDEIROS, 2009). Esse o mesmo sentido apontado por Claude Re-ffestin (1993), quando ele considera que os homens vivem, ao mesmotempo, o processo territorial e o produto territorial por intermdio deum sistema de relaes existenciais e/ou produtivistas. A identidade queest em questo aqui aquela de um grupo de pessoas que vivem sobreum mesmo territrio e que partilham o fato de ser gente sem terra, cujo

    objetivo de se dar uma terra.A reconstruo da identidade e da territorialidade desse grupo procedepor operao coletiva de produo e de organizao do espao, que ser-ve de base ao desenvolvimento de novas relaes sociais, econmicas eculturais. Esta territorialidade se caracteriza notadamente pelas relaessimtricas entre os membros do grupo, expressas por um sistema deintercmbio e por uma repartio dos ganhos e dos custos no interiorde diferentes espaos de vida na comunidade.

    medida que se organiza a vida coletiva no seio da comunidade, e pormeio de diferentes espaos por ela ocupados, aes se desenvolvem, namaior parte das vezes de carter coletivo. E diferentes estratgias, quefazem sentido em conformidade aos desafios que essas populaes atri-buem ocupao desses espaos, so utilizadas. Esse trabalho coletivocorresponde a uma produo simblica especfica, que confere sentidos aes e aos compromissos, que justifica as estratgias e que qualificaas relaes entre os membros do grupo. uma produo simblicaobjetivada especialmente pela adoo de valores de referncia, quecontribuem para a distino cultural desse territrio.

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    16/30

    166

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    Procedendo de tal modo, a comunidade participa da criao de um novoterritrio, que ela dota de limites e que se compe de um conjunto dereas sobre as quais se desenvolvem relaes socioeconmico polticas.O espao delimitado se apresenta como a propriedade da comunidade

    que, de um lado, o eleva a novo territrio no interior do qual as relaesestabelecidas so relaes de igualdade; e que, de outro lado, de modomais subjetivo, apropria-se dele e o organiza de modo a fazer desseterritrio o desafio de sua identidade e a base de sua territorialidade.

    Quando se considera de maneira mais precisa o que se passa no interiordesse novo espao, a territorializao a se apresenta como o resultadode uma hibridao de sistemas de objetos, de sistemas de aes e desistemas de atores, no sentido indicado por Milton Santos: O espao,

    uno e mltiplo, por suas diversas parcelas e atravs do seu uso, umconjunto de mercadorias, cujo valor individual funo do valor que asociedade, em um dado momento, atribui a cada pedao de matria, isto, cada frao da paisagem (2004, p. 104). Dessa hibridao resultamos mltiplos usos do solo, as modalidades de trocas entre os produtos,a organizao coletiva do trabalho e as formas de diviso que aquelagera. As redes que se constituem a partir de diferentes atividades e quese religam sobre o territrio participam de uma diferenciao entre oslugares de produo e lugares de consumo, ao mesmo tempo em que as

    relaes entre os indivduos, geralmente hierarquizadas, notadamentequando se tratam de relaes de trabalho, conseguem se manter sob aforma de relaes de solidariedade.

    Conquistando uma terra, ocupando um espao, territorializando sualuta e criando uma identidade coletiva, os assentamentos, enquantocompostos de populaes diferentes, do-se os meios de construir umnovo territrio, no seio do qual os desafios da vida cotidiana vo levaros membros do grupo a se dotar de novos instrumentos e a renovar

    seus conhecimentos. Segundo (MEDEIROS, 2009, p. 219): H assim aincluso de elementos que, na vida diria, so colocados como desafios eque os camponeses vo incorporando sua herana cultural. Instrumen-tos e conhecimentos renovados esto na origem de uma nova maneirade agir e enriquecem a herana cultural e intelectual dos membros dogrupo. Com efeito, a partir de ento que uma nova necessidade seimpe, ou seja, que preciso mudar o modo de ver o mundo internoe o mundo externo, dando espao para o surgimento de novos valoresque lhe orientaro e lhe permitiro organizar-se no novo ambiente

    (MEDEIROS, 2009, p. 225).

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    17/30

    167

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    Assim se definiu a territorializao,que se apresenta como um processocomplexo que concerna um territrio concebido como um espao aberto.Aberto em razo do desafio de criao e de inovao que impe respostasa problemas concretos e novos, encontrados pelos membros da comuni-

    dade no seu trabalho de prover um espao de vida e de promoo de umsistema de produo. Essas respostas se elaboram em situao de debates:elas se traduzem por aes e prticas que questionam os membros dogrupo, sua cultura, tanto quanto seus sistemas de conhecimentos e suaidentidade. precisamente ao nvel do contedo desses debates e dasrespostas obtidas que se identifica o ponto de articulao entre os proces-sos deambientalizaoe de territorializao, objeto de reflexo deste artigo.

    Antes de abordar a questo da articulao entre esses dois processos,

    h um outro ponto importante a explicitar, o que permitir melhorcompreender a maneira como a ambientalizao e a territorializaose interferem. Trata-se da ideia de ao local enquanto ao iniciada eapoiada em um territrio. De fato, constantemente, nos trabalhos aquimencionados, chama a ateno a importncia das aes iniciadas local-mente, do mesmo modo que as prticas, os conhecimentos, as tcnicase os instrumentos que contribuem para caracterizar e qualificar umterritrio e seus atores. Para alm disso, as definies do territrio sobreas quais se apoia confirmam esta importncia das aes. Por exemplo:

    quando se considera que o territrio apresentado como uma produosocial e poltica e que ele foi a propsito constitudo de uma diversidadede aes que se justificam por desafios coletivos identificados e valorescompartilhados, como refere Saquet, e a seu modo o exprimem Zanetti,Pessoa Candiotto e Alves dos Santos (2009, p. 320).Eles reconhecemque os territrios so determinados por aes locais e tambm forasexternas (nacionais e internacionais) ligadas dinmica econmica,poltica e cultural. Essas relaes de poder que produzem os territriosesto em movimento, de modo que os territrios so fluidos, podendoser temporrios ou relativamente permanentes. Dada a importnciadessas aes locais, como caracteriz-las e defini-las?

    3. A AOLOCAL

    No contexto francs, a noo de ao local imposta a partir do mo-mento em que uma nova paisagem poltica e institucional, herdeira dadescentralizao e dos efeitos da globalizao sobre as polticas conduzidaslocalmente, tem dado ocasio ao Estado de se dotar de novos meios deao e interveno. Esses novos meios se materializam em uma oferta dedispositivos que dizem respeito aos principais domnios de ao dos pode-

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    18/30

    168

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    res pblicos locais (em particular, a proviso de equipamentos pblicos, oambiente, a segurana e o emprego). Sua operao sobre os territrios temresultado na instituio deuma capacidade de negociaoentre uma grandediversidade de atores locais. Esses atores so geralmente convidados s

    cenas de ao ou s arenas locais, no interior das quais se elaboram e seiniciam, de modo coletivo, aes pblicas de carter territorial.

    Um dos primeiros traos dessas aes pblicas locais seu carter cole-tivo, uma vez que elas so o resultado de um trabalho de intercmbio,de negociaes e de acordos entre os atores locais. A ao local uma

    ao coletiva. E como esta ao fruto de um acordo entre uma grandediversidade de atores vindos de diferentes setores de atividade, dotadosde competncias diferentes, destatustambm diferentes (em particular,

    osstatusque distinguem os atores privados dos atores pblicos), da re-sulta que a atividade de coordenao de setores e de atores em relaoao tratamento dos problemas identificados chamada a desempenharum papel proeminente; e, na medida em que os problemas locais queesta elaborao coletiva permite apreender, concernem geralmente emdomnios como a segurana, o emprego, o desenvolvimento sustentvel,a insero, nos quais os conhecimentos necessrios formulao dessesproblemas so limitados, a identificao de tais problemas, sua definioe elaborao de respostas necessitam de um trabalho complexo para

    alcanar um acordo entre os parceiros implicados.Ademais, o acordo procurado entre os atores fortemente tributrio dacapacidade de negociao, de busca do entendimento sobre a definiodos problemas e sobre a escolha dos meios de interveno. A negociaoem questo aqui se d entre atores heterogneos, com interesses diferen-tes, at mesmo divergentes, que buscam um acordo para agir juntos emum territrio. Tal negociao pode ser considerada como uma atividadepoltica, desde que se estime, ao modo de Bernard Marin (1991), apud

    Catherine Bosc (1996, p. 45), que la ngociation fonde, perptue et loca-lise le politique [] que celui-ci ne se dfinit pas partir dune positioncentrale ou prminente, mais plutt partir de localisations fluctuantes,soumises a des processus empiriques dchanges organiss en rseauxautour dacteurs collectifs, pluriels, contingents et non homognes.

    Esta negociao poltica ocorre em dia especial e no quadro de umadeliberao aberta, pblica, argumentada e at mesmo midiatizada.(GAUDIN, 1997). Discutem-se nesta conflitos de interesses entre par-ceiros habilitados e autorizados a negociar; e o acordo advindo traz aomesmo tempo uma definio do territrio relacionado e da natureza dasaes nas quais convm aos parceiros se engajar. , portanto, uma busca

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    19/30

    169

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    permanente de compromisso e de acordo que faz parte da renovaodas normas e dos valores da ao pblica.

    Na medida em que essas aes se apoiam sobre novas maneiras deapreender as situaes locais que contribuem para renovar modos deinterveno pblica em domnios diferentes como o ambiental, o desen-volvimento, a insero, a segurana, sua operao se baseia sobre umaparceria entre atores pblicos e atores com interesse lucrativo, cujasprticas so pouco compatveis com uma gesto local setorizada, comoevocada anteriormente. Alm disso, dessa parceria e suas prticas sedifundem muitas vezes novas formas de ao como a competitividade ea rentabilidade, sem, portanto, com ela se confundir (LORRAIN, 1993).

    Considerar o conjunto desses elementos reconhecer a complexidade

    como outra caracterstica da ao local. Consequncia no somente danatureza dos problemas apreendidos, como o emprego, a segurana, odesenvolvimento sustentvel, mas, igualmente, da maneira de trat-lostanto quanto da escolha das respostas a dar, levando-se em consideraoa interferncia entre os problemas. A ttulo de exemplo, no contextobrasileiro de desenvolvimento da agricultura familiar em uma ReservaExtrativista, esse desenvolvimento repousa ao mesmo tempo sobre umtrabalho de qualificao dos atores, sobre uma organizao do trabalhotanto ao nvel de cada uma das unidades familiares (notadamente poruma diviso das atividades entre homens e mulheres), quanto ao nvel decada uma das comunidades no que tange ao melhoramento dos recursosnaturais e de sua explorao pelo trabalho comum. E nesse aspecto entra--se em relao com os centros de pesquisa universitrios e as expertisesdo meio profissional, para organizao dos circuitos de comercializao,habitualmente problemticos em termos de transporte, para a questodo financiamento dos investimentos necessrios ao desenvolvimento daatividade agrcola e para a proviso de equipamentos coletivos e servios

    de base s famlias, especialmente a sade e a educao.Esta ao local, de carter coletivo, complexo, em razo da natureza dosprolemas tratados, mas tambm em razo da vontade de uma apreensoglobal destes problemas, uma ao que, diferentemente daquelas que soconduzidas no quadro de polticas pblicas nacionais, se desenvolve emcircuito curto devido proximidade entre o tempo e o lugar de decisoe o tempo e o lugar da ao e seus resultados. Esta caracterstica impor-tante pois modifica consideravelmente o interesse que do as populaess decises tomadas, ao engajamento nas aces e aos meios utilizados.

    Em um pas centralizado como a Frana, esta nova proximidade entrea deciso e a ao, entre os tomadores de deciso e os beneficirios,

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    20/30

    170

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    modifica de maneira consequente os paradigmas que contriburam nadefinio de polticas pblicas, induzindo em particular nova relaocom o tempo da ao. Em um contexto de ao em circuito curto, sode fato os resultados da ao que se impem pouco a pouco como o

    referencial de apreciao da legitimidade da ao escolhida, atribuindode um mesmo golpe um lugar importante ao trabalho de avaliao deque esta apreciao necessita.

    Esta prtica de avaliao se confirma ainda mais necessria quando aproximidade entre a deciso e os resultados da ao amplia os riscos declientelismo, um dos desvios mais frequentes das polticas locais, com osefeitos redutores que o acompanham.

    Face a um tal risco, reabilitar a avaliao como meio privilegiado de

    pilotagem de aes, das quais se espera solues para problemas com-plexos, cujas respostas propostas so carregadas de incertezas, constituium verdadeiro desafio para o qual a ao local deve trazer uma resposta,facilitando assim seu sucesso.

    Construda coletivamente, a ao local realizada por uma parceria quegarante a pilotagem. Essa copilotagem da ao local traz por consequnciaretirar do poltico a exclusividade da coisa pblica em benefcio de umaresponsabilidade partilhada. E isso tem uma incidncia significativa sobre

    o papel, a funo e a misso do poltico na conduo dos assuntos locais.De fato, na medida em que existe uma partilha de responsabilidade euma mutualizao dos meios a servio da ao, h por isso mesmo umapartilha de risco no caso do insucesso da ao, mas tambm uma partilhados benefcios no caso do seu sucesso. isso que se entende por perdade exclusividade da coisa pblica, da parte do poltico em benefcio deseus parceiros, obrigando, assim, este ltimo a abandonar uma parte doque podia parecer at ento como um tipo de monoplio.

    A perda do monoplio da coisa pblica se faz a propsito de aesresultantes da capacidade dos atores locais de se engajar na sua reali-zao. Este acordo concerne a aes que podem ser sociais, econmicasou culturais e que so ao mesmo tempo aes de carter poltico, quersejam aes em matria de emprego, de segurana, de desenvolvimentodurvel dos recursos do territrio etc. Esta qualidade das aes de de-senvolvimento questiona os referenciais da ao pblica na medida emque sua realizao e a apreciao de seus efeitos fazem apelo a novosvalores para permitir aos parceiros locais levar em conta a pertinncia

    e a eficincia dessas aes.

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    21/30

    171

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    E neste ponto, em particular, que a anlise da ao local junta-se questo ambiental e ao processo de ambientalizao. Estando a questoambiental no centro dos debates, da advm parte dos critrios de justifi-cao e os indicadores de avaliao dos resultados dessa ao. Com efeito,

    a ao local dever ser sustentvel e responder, a propsito, exignciasdo desenvolvimento do mesmo nome, para alcanar uma legitimidadepoltica e obter os apoios correspondentes. Assim, o trabalho de cocons-truo da ao local participa daambientalizaona medida em que estese justifica pelos acordos negociados pelos atores locais, integrando entreos critrios de escolha dessas aes aqueles que remetem s exignciasdo desenvolvimento sustentvel. Eis a razo pela qual, no contextofrancs e europeu, a ao local se apresenta como o resultado de uma

    ambientalizaoprpria a este contexto.

    No contexto amaznico, aambientalizaoassume a forma de um pro-cesso que afeta os conflitos sociais locais, cuja natureza se modifica deconflitos sociais locais tornam-se conflitos socioambientais assim comomodifica as orientaes dos movimentos sociais. A essas modificaes seagregam alteraes da ordem das alianas entre os movimentos sociais,da composio desses movimentos, da natureza das aes empreendidase dos referenciais em termos de saberes, valores e normas que so utili-zados para conceber tais aes. E, nesse sentido, o conjunto de atores e

    seus movimentos so introduzidos no novo universo, hipottico, dondeinterrogaes se pem principalmente sobre os saberes, as tcnicas e osinstrumentos, mas tambm sobre os referenciais em termos de normase de valores, em termos de regimes polticos e seus modos de funcio-namento.

    Essaambientalizaono contexto amaznico se acompanha de uma ter-ritorializaodos engajamentos que tm como perspectiva uma grandeparte das reivindicaes dos conflitos ambientais em termos de desafios

    de territrio. O territrio se apresenta, ento, como ancoradouro e polode convergncia do conjunto dos desafios aos quais fazem face as popu-laes, seus lderes e seus dirigentes. Desafios que so, simultaneamente,de reconhecimento e de identidade, em meio globalizao ascendentee ao questionamento do modelo de desenvolvimento pelos problemassocioambientais que ele produziu.

    Para vencer tais desafios, o territrio em questo no somente terri-trio fsico e de gesto administrativa, no sentido clssico do termo. Ele aquele da ao local, no sentido j apontado, ao que se elabora emcontextos de conflitos e debates, cujo sucesso deve-se, em grande parte, capacidade dos atores locias de explorar novas pistas, de mobilizar

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    22/30

    172

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    novos saberes e de combin-los, de conceber novas ferramentas de ao,sua gesto e avaliao, de imaginar novas alianas e novas estratgias ede enriquecer os referenciais que servem habitualmente concepo deao pblica. Portanto, no esse territrio de nenhum modo aquele

    de aes programadas. o de aes coconstrudas, cuja gesto feitade uma copilotagem entre atores pblicos e atores privados; um ter-ritrio que consegue polarizar os investimentos e os engajamentos decada um e que sabe tirar proveito de aes locais e de seus resultadospara confortar a mobilizao da qual dependem tais engajamentos. Umterritrio, enfim, que serve tanto como referncia identitria quanto aoreconhecimento de seus atores.

    4. ALGUMASQUESTESEMTORNODAIDEIADETERRITORIALIZAONeste ponto coloca-se uma primeira questo quanto ao momento e maneira em que esses dois processos, deambientalizaoe de territoriali-

    zao, comeam a se influenciar. difcil responder de maneira precisaa esta questo pois os eventos que experienciam cada territrio desem-penham papel importante nesta perspectiva; tanto isso evidente queesses dois processos se encontram, por diferentes razes, em ordemexterna e interna. As razes de ordem externa, vo desde influnciasinternacionais, impondo limitaes como, por exemplo a necessidadede certos territrios de se beneficiarem de recursos especficos mediantea operacionalizao de um projeto de territrio atento s exigncias dodesenvolvimento sustentvel, a intervenes do Estado. Este bem ocaso da criao de uma Unidade de Conservao (TEISSERENC, 2010,p. 52-55) ou de um Assentamento em um municpio que no o deseja.Quanto ordem interna, outras razes so da natureza dos debates nointerior do territrio. Por exemplo: a presena de comunidades que seorganizam coletivamente para reivindicar o direito ao reconhecimento

    de suas terras, de suas culturas e, ao mesmo tempo, o reconhecimentode sua identidade.

    Uma segunda questo quanto anlise do que acontece a cada vez queesses dois processos se juntam e se interpenetram no contexto localde debates, de confrontos, muitas vezes de conflitos, s vezes de buscade acordo, concerne a que se apresentem razes como causas e causascomo razes. Sobre razes e causas a essas buscas de acordo no restanenhuma dvida quando se leva em conta a generalizao de questesambientais. As ocasies de aproximao dos dois processos referidos a setornam mais e mais frequentes. Na Amaznia, essas causas e essas razesse impem cada vez mais como o demonstra Almeida:

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    23/30

    173

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    [] Hoje, na Amaznia no se pode mais pensar no problema doecossistema atravs da categoria terra simplesmente ou ou de umamera oposio entre terra e territrio. Tem-se que considerar as vantagenstericas de se pens-lo a partir de um processo de territorializao, pois

    esta categoria envolve o sujeito de ao, implicando numa construosocial. Bandeiras da luta de preservao ambiental, mobilizaes que secontrapem aos desmatamentos e instrumentos legais no plano muni-cipal para garantir reas reservadas constituem alguns dos elementosdeste processo de territorializao. (2008, p. 148)

    Em pginas anteriores, fez-se referncia hibridaopara dar conta decertos fenmenos de interferncia no territrio: entre cultura, economiae poltica, entre a ordem social e a ordem simblica, entre o material e o

    imaterial. muito provvel que a noo dehibridaoe seus efeitos sejatil para dar conta de certos resultados das interferncias dos processosde territorializaoeambientalizao.

    Alm disso, descrever aambientalizaopara caracterizar as aes geradaspelaterritorializaotem muitas vezes sido uma questo de mudanas, deinovaes, de identificao de recursos, de diversificao de valores, dereferncias a conhecimentos que foram ocultados, esquecidos, sob o efeitode uma dominao de natureza hegemnica e totalitria: a de uma or-dem social e poltica, de um sistema de conhecimentos legtimos, de umaordem mundial econmica. Uma coisa parece, entretanto, certa a partirdos elementos de anlise recolhidos at agora, que se certos debatesdesembocam sobre formas de reconhecimento de valores, de saberes,de recursos, at ento ignorados, isso no traduo de uma inversode relaes de fora, como se se tratasse de reabilitao de uma verdadeescondida. Mas trata-se cada vez mais de um trabalho deressignificaoao se levar em conta novos fatores, novos elementos e sua combinao.

    Para retomar o problema em outra perspectiva, o desafio no tanto a

    busca de uma soluo alternativa pela vitria dos dominados sobre osdominantes e a inverso das relaes de fora, como se isso pudesse sero caso, a partir de uma leitura partidria da luta de classes, mas , antesde tudo, o da busca de uma resposta elaborada conjuntamente na dire-o de um novo modelo de sociedade, com tudo o que ela representa.Portanto, um trabalho de aproximao, de coconstruo, de busca deacordos, de inveno de novas maneiras de ser, de viver e de pensarindividual e coletivamente. Quando se analisa o conjunto dos conflitosde carter ambiental, tanto quanto os do trabalho que foram levados aintegrar os desafios ambientais (LOPES, 2006), impressiona constatarque, para alm da busca de acordos para sair do conflito, os debates que

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    24/30

    174

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    acompanham esta busca fazem cada vez mais apelo a novas maneiras detrabalhar e viver juntos.

    CONSIDERAESFINAIS:AAMBIENTALIZAOEATERRITORIALIZAOENTREVERDEEMARROM

    As transformaes que geram a ambientalizao, a territorializao esuas interferncias so considerveis; elas justificam o ponto de vista deJos Srgio Leite Lopes segundo o qual elas poderiam correspondera um episdio dessas grandes transformaes nas sociedades, de quefala Karl Polanyi. Elas afetam notadamente o objeto e a natureza dosconflitos sociais, que se estende a novos setores e a novos atores. Elasafetam igualmente a composio do movimento social e as orientaesde engajamento nas lutas. Elas afetam, enfim, os conjuntos simblicos ecognitivos dos grupos sociais engajados nesse movimento, em particularsuas culturas, seus sistemas de conhecimento e identidades conferidaspor suas culturas inerentes a um territrio.

    Voluntariamente limitou-se o propsito deste artigo ao contexto ama-znico, contexto no qual predomina uma concepo verde deambien-talizao. guisa de concluso, retorna-se discusso empreendida porJos Srgio Leite Lopes em seu artigo Ambientalizao dos conflitos

    sociais a propsito da comparao entre umaambientalizao verdeeumaambientalizao marrom, objeto de sua anlise. O limite do raciocniode Leite Lopes est em reduzir a ambientalizao verdeao processo dedevastao, ao se referir para tanto aos trabalhos de Almeida, ShiraishiNeto e Martins. Como pde ser observado, a partir, por exemplo, dotrabalho de Alfredo Wagner Berno de Almeida, referido por Leite Lopes,esse processo de devastao um dos aspectos eminentemente conflitu-ais de um processo mais amplo, o daambientalizao. de fato em razoda devastao com todas as suas consequncias que o debate ambientaltomou forma. A devastao fez integralmente parte da ambientalizaoverde. Ela, de todo modo, est na frente da cena. E quando Leite Lopesfala da analogia entre os dois processos, o da devastao, caractersticodo contexto verde,e o da poluio, caracterstico do contexto marrom, essencial afirmar que entre as duas formas deambientalizao, verdee

    marrom, existe esta mesmaanalogia.

    Sobre o que est fundada estaanalogia? Sobre um certo numro de simi-litudes. Em particular, o fato de que a questo ambiental nova e que ela

    gera conflitos socioambientais novos, justificados por um novo discursoe se apoiando sobre novas reivindicaes. No caso da ambientalizao

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    25/30

    175

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    marrom, assiste-se a um deslocamento dos conflitos internos empresaem torno de desafios sociais e econmicos que afetam as relaes entreas organizaes sindicais e a direo da empresa para conflitos voltade desafios socioambientais causados pela poluio industrial no nvel

    da cidade, portanto, do territrio. a multiplicao desses conflitos emtempos prximos um do outro que criou condies favorveis ao nas-cimento e ao desenvolvimento do processo deambientalizao. Processoacompanhado, sobretudo, de uma interiorizao das preocupaes am-bientais pela populao, o que facilita as iniciativas do tecido associativolocal e a tendncia institucionalizao dos debates ambientais (graas,em particular, criao de conselhos deliberativos locais) com o apoiodos expertsuniversitrios. Esse processo igualmente confortado pelodesenvolvimento da educao ambiental, favorecendo a interiorizaode comportamentos e prticas, a normalizao de condutas da vidacotidiana das populaes.

    O estabelecimento de secretarias e conselhos municipais de meio ambien-te, de comisses e de grupos de trabalho a se ocuparem de diferentesaspectos da vida local (sade, educao e transportes) facilita a emergnciade novas categorias de anlise e de observao especficas da questo am-biental e sua difuso. Os atores locais se dotam, assim, de uma linguageme de um repertrio argumentativo novo, ao mesmo tempo em que as

    lutas que eles conduzem sensibilizam-nos para os desafios judicirios. Odesenvolvimento dessas lutas cria condies favorveis renovao deprticas e de reivindicaes: Dentre os leigos, como dentre as populaespobres e vulnerveis, aparecem apropriaes criativas e novas formasde associatividade em torno das questes socioambientais (LOPES,2006, p. 49). Entre as reivindicaes, algumas concernem especialmen-te participao dos cidados em decises polticas e modificao dofuncionamento da democracia local.

    No caso daambientalizao verde, as lutas se desenvolvem contra a expro-priao e a excluso de grupos sociais tradicionais que tm conseguidose organizar como grupos sociais modernos incorporando uma diver-sidade social e adotando formas de organizao e gesto participativas.A mobilizao desses grupos leva populaes tradicionais, assim comoleva populaes trabalhadoras urbanas, que esto no contexto da am-bientalizao marrom, a reivindicar sua autonomia coletiva a partir deuma forma de organizao de sua vida cotidiana e de operao coletivade um sistema de produo especfico. Tal as conduziu a se dotarem,

    em nome da defesa da biodiversidade e da sociodiversidade, de umalinguagem, de argumentos e de estratgias que visam particularmente

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    26/30

    176

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    reivindicao de seu territrio e promoo de sua identidade, nosomente em termos de bens comuns, mas tambm de patrimnios.

    Aambientalizao verdedos conflitos se enriquece com o apoio dos mo-vimentos sociais nacionais e internacionais que se materializam pelainterveno de atores to diversos como as ONGs, as associaes, ossindicatos, certas instituies pblicas (como universidades e centros depesquisa) ou religiosas etc. Ao mesmo tempo, esta ambientalizaocon-forta e enriquece os grupos sociais em si mesmos. Este enriquecimentotira incontestavelmente proveito, como o sublinha com justa razo LeiteLopes, dos efeitos de institucionalizao dos debates sobre a biodiver-sidade e sobre a sociodiversidade nos nveis local, regional, nacional emundial; ele tira igualmente proveito do desenvolvimento da educao

    ambiental, tratada precedentemente, cujos efeitos so importantes emtermos de interiorizao das exigncias ambientais e de mudanas decondutas, assim como da emergncia de novas competncias profissio-nais nas instituies intermedirias, como ONGs, associaes, agnciase organismos de pesquisa.

    Mais um fator que contribui para diferenciar os dois processos deambien-talizao o territrio e seus efeitos em termos de territorializao.Comefeito, em contexto deambientalizao verde, considerar o territrio in-dissocivel da territorializaosobre a qual se apoia, enquanto em contextodeambientalizao marrom, os efeitos so sentidos sobretudo ao nvel dacidade, tanto como instituio e, ao mesmo tempo, como ator coletivo,e no tanto como territrio. Aqui ainda se revela difcil saber se se tratade uma diferena significativa, ao se levar em conta que o territrio eo processo de territorializaoque se impem em contexto deambienta-lizao verdeparecerem menos evidente em contexto deambientalizao

    marrom, pois aqueles que analisam essa dinmica no tm demonstradosensibilidade a este aspecto do problema.

    A abordagem, bem recente, das questes de biodiversidade e de sociodi-versidade em termos de recursos patrimoniais abre perspectivas novas.O fato de os questionamentos resultantes no limitarem as buscas denovas maneiras de desenvolvimento a uma abordagem que privilegiaos aspectos econmicos, ao dar lugar aos aspectos sociais e ambientaiscriou uma situao nova que abre perspectivas interessantes s cinciassociais, sob a condio que se aceite a renovao de seus percursos e deseus mtodos de anlise.

    E, claro, se o impulso mais forte e mais interessante em matria deam-bientalizaovem de contextos verdes, como o caso particularmente naAmaznia, o impacto econmico, social e poltico deste impulso sair

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    27/30

    177

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    reforado, se se revela que os dois contextos, marrome verde,passampor transformaes no somente anlogas mas convergentes quanto aosresultados que elas produzem nos planos econmicos, sociais, culturaise polticos.

    ABSTRACT

    It is considered as an object in this Article the processes of enviromentalizationand territorialization of public action specically in the context of BrazilianAmazon, based in the debate that runs through the Brazilian academic world. It is

    described in the rst time the effects of environmentalization of social movementsand the conicts from which emanate the main challenges, both from the point ofview of social and economical, political. It is insisted particularly on the changes

    produced in the eld of renewal of local action, both in its contents and references

    and values which are attached. Such renewal, in depth, local public action is theterritorialization, which is presented in the second part of the article, which allowsto characterize certain consequences and materialise challenges. It is shown then,

    remarkably, as the claim of territory by certain social groups occurs at the side ofthe claiming of a social status and politics, recognition of identity and culture thatthis identity mobilises.

    Keywords: environmentalization, territorialization, local public action, socialmovement, identity.

    REFERNCIASACSELRAD, Henri (2009). Ambientalizao das lutas sociais O caso domovimento por justia ambiental. Estudos Avanados, 24, (68), 2010, p.103-119.

    ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno.Antropologia dos Arquivos da Amaznia.Rio de Janeiro: Casa 8/F.U.A., 2008.

    BECK, U., GIDDENS, A. & LASH, S. Modernizao Reflexiva: poltica,

    tradio e esttica na ordem social moderna. So Paulo: Unesp, 1997.BECK, Ulrich. La Societ du Risque: sur la voie dune autre modernit.Paris: Aubier, 2001.

    BOSC, Catherine. Approche de la ngociation en politique. In: GAUDINJ. P. (1996),La ngociation des politiques contractuelles. Paris: LHarmattan,Logiques Politiques, CEPEL. 1996.

    CASTRO, Edna e PITON Florence.Faces do Tropico mido. Conceitos e

    Questes Sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente. Belm (PA): Editora Cejup.1997.

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    28/30

    178

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    DURAN, Pierre e THOENIG, Jean-Claude (1996).Ltat et la gestionpublique territoriale, Revue Franaise de Science Politique, vol. 46, no4,aot 1996, pp.580-623.

    GAUDIN J. P., Contrats et conventions: la ngociation des politiquespubliques. In: GODARD, F.Le gouvernement des villes. Territoire et pouvoir.Paris: Descartes and Cie. 1997.

    GONALVES, Carlos Walter Porto. Amaznia, Amaznias.So Paulo:Editora Contexto, 2001.

    HAESBAERT, Rogerio.O mito da desterritorializao. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2004.

    LOPES Jos Srgio Leite. Sobre processo de ambientalizaao dos

    conflitos e sobre dilemas da participao, in Horizontes Antropologicos,Porto Alegre, ano 12, no25, jan/jun, p. 31-64, 2006.

    LORRAIN, Dominique. Aprs la dcentralisation. Laction publiqueflexible, Sociologie du travail, no3, p.285-307, 1993.

    LEFF, Enrique.Epistemologia Ambiental,So Paulo: Cortez Editora, 2002.

    LEFF, Enrique.Racionalidade Ambiental. A reapropriao social da natureza.Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006.

    MEDEIROS, Rosa Maria Vieira, Territrio, Espao de Identidade.In: SAQUET, Marcos Aurlio e SPOSITO, Eliseu Saveiro. Territrios eTerritorialidades. Teorias, processos e conflitos,So Paulo: Expresso Popular,2009.

    RAFFESTIN, Claude,Por uma Geografia do Poder. So Paulo: tica, 1993.

    SANTOS, Milton.A Natureza do espao - Tcnica e Tempo. Razo e Emoo.So Paulo: EDUSP, 2002.

    SAQUET, Marcos Aurelio; SPOSITO, Eliseu Saveiro. Territrios eTerritorialidades. Teorias, processos e conflitos,So Paulo: Expresso Popular,2009.

    SAQUET, Marcos. Abordagens e Concepes de Territrio. In: SAQUET,Marcos Aurelio e SPOSITO, Eliseu Saveiro. Territrios e Territorialidades.Teorias, processos e conflitos,So Paulo: Expresso Popular, 2009.

    TEISSERENC, P., ROCHA, G. e MAGALHES, S. Territrios deDesenvolvimento e Aes Pblicas. Editores NUMA/UFPA, Belm (PA):

    EDUFPA Belm, Belm, fevereiro, 2009.

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    29/30

    179

    ANTROPOLTICA Niteri, n. 29, p. 153-179, 2. sem. 2010

    TEISSERENC, P. Les RESEXs, un instrument au service despolitiques de dveloppement durable en Amazonie brsilienne. In:

    Revista Ps-Cincias Sociais, no12, Dossi: Amazonia e paradigmas dedesenvolvimento, fevereiro 2010, p. 41-68. So Lus: EDUFMA, 2010.

    ZANETTI, Luciano; CANDIOTTO, Pessoa; SANTOS, Roseli Alves dos.Experincias geogrficas em torno de uma abordagem territorial.In: SAQUET, Marcos Aurlio; SPOSITO, Eliseu Saveiro. Territrios eTerritorialidades. Teorias, processos e conflitos,So Paulo: Expresso Popular,2009.

  • 7/23/2019 ambientalizao e territorializao.pdf

    30/30