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Page 1: Álvaro de Campos

Heterónimos de Fernando Pessoa

Álvaro  de  Campos  -­‐  O POETA DOS EXCESSOS E DA ABULIA  

1. Biografia

Álvaro de Campos nasce em Tavira em 1890 e morreu em 1935.

Estudou num Liceu em Tavira e posteriormente foi para a Escócia estudar Engenharia Mecânica e formou-se em Glasgow em Engenharia Naval. Em férias visitou o Oriente e durante a mesma escreveu o "Opiário", dedicado a Mário de Sá-Carneiro.

Conheceu Alberto Caeiro numa visita ao Ribatejo, tornando-se seu discípulo.

De entre todos os Heterónimos, Álvaro de Campos foi o único a manifestar fases poéticas diferentes ao longo da sua obra. A sua trajectória começa com um decadentista (influenciado pelo Simbolismo) e depois adere ao Futurismo. Após uma série de desilusões com a existência, derivadas do facto de Campos ser um engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa, mas que contudo estava sempre com a sensação de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo, assumiu uma veia niilista ou intimismo. Podemos encontrar essa veia no Poema "Tabacaria"(considerado um dos mais conhecidos e influentes da Língua Portuguesa).

Eu fingi que estudei engenharia. Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.

Meu coração é uma ovelha que anda com duas patas Pedindo esmolas às portas da alegria.

2. Perfil poético e principais temáticas

Em oposição a Ricardo Reis, surge “impetuosamente um novo heterónimo “branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente aparentado ao lado, monóculo” de nome Álvaro de Campos. Teve “uma educação vulgar de liceu, depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval”.

Álvaro de Campos é o mais fecundo e versátil dos heterónimos de Fernando Pessoa, e também o mais nervoso e emotivo, por vezes até à histeria.

A vanguarda e o sensacionismo

Álvaro de Campos é, sobretudo, o futurista da exaltação da energia até ao paroxismo, da velocidade e da força da civilização mecânica do futuro (patentes, por exemplo, na “Ode Triunfal”). É o único heterónimo que reconhece uma evolução ("Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já não o sou"). Normalmente associando-se-lhe três fases de produção poética: a decadentista, a futurista e sensacionista; por fim, a intimista. Mais do que cada uma delas se referir a um só poema, por vezes todas elas aparecem representadas num só. Mas, em termos de dominante, inicialmente, encontra-se um Campos dominado por sentimentos de tédio, enfado, náusea, cansaço, abatimento e necessitado de novas

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sensações. É a fase decadentista Tal é o reflexo da falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à monotonia. Um dos poemas mais exemplificativos desta fase é o “Opiário”, escrito por Fernando Pessoa em 1915, todavia datado de março de 1913 para documentar, mistificadamente, uma primeira fase de Campos. Segue-se a fase designada sensacionista e futurista, marcada por uma poesia triunfal, enérgica, repleta de vitalidade, manifestando o favoritismo pelo belo feroz, o que virá contrariar a conceção aristotélica de belo ("Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto./ Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos"- “Ode Triunfal”). Após a descoberta do futurismo e de Walt Whitman, Campos adotou, para além do verso livre, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, interjetico, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações, mas vivificado pela fantasia verbal duradoura e inesgotável. Além de celebrar o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna, cantou também os escândalos e as corrupções da contemporaneidade, em sintonia com os sinais do modelo futurista. O ideal futurista em Álvaro de Campos fá-lo distanciar-se do passado para exaltar a necessidade de uma nova vida futura, onde se tenha a consciência da sensação do poder tecnológico e do triunfo. Esta fase também está marcada pela inteletualização das sensações ou pela sua desordem. Como verdadeiro sensacionista, inspirado no mestre Caeiro, procura o excesso violento de sensações à maneira de Walt Whitman. Contudo, afasta-se de Alberto Caeiro, na medida em que este considera a sensação captada pelos sentidos como a única realidade; Campos não rejeita o pensamento. O mestre, com a sua simplicidade e serenidade, via tudo nítido e recusava o pensamento para fundamentar a sua felicidade em sintonia com a Natureza; já o discípulo, sentindo a complexidade e a dinâmica da vida moderna, procura sentir a violência e a força de todas as sensações ("Sentir tudo de todas as maneiras"). O poema “Ode Triunfal” exemplifica claramente esta fase poética. O título sugere a grandiosidade, não só no conteúdo como na forma. A irregularidade métrica e estrófica, típicas da poesia modernista, afastam logo o poema da lírica portuguesa. A consequente irregularidade rítmica traduz a irreverência e o nervosismos eufórico do próprio poeta. A nível estilístico, sobressaem inúmeras metáforas, comparações, imagens, apóstrofes, anáforas (entre outros), a fim de realçar o sensacionismo de Campos, o quadro de referência enaltecido, as invocações produzidas ("Sentir tudo de todas as maneiras"). Neste sentido se pode entender ainda o registo de horror presente no poema: retirado o fio temático da moralidade e do belo aristotélico, a "Ode Triunfal" representa um sujeito poético que se toma como local de confluência e de procura do absoluto. Assim se entende que o poeta tanto manifeste o elogio, a invocação das máquinas, através das apóstrofes ("Ó rodas, ó engrenagens, ó máquinas!...") como também o desejo de se materializar ao identificar-se com elas ("Ah! poder eu exprimir-me como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina!"). Daí a conclusão da ode: "Ah, como eu desejava ser o souteneur disto tudo!" - a expressão de desejo de alguém que confessa a sua limitação na ascensão ao estatuto glorioso da máquina, a ponto de se poder exprimir "todo como o motor se exprime".

A abulia e o tédio

Após uma procura, em vão, da totalidade associada ao mundo mecanizado, Álvaro de Campos sente-se mergulhado em sentimentos disfóricos, envolvido numa abulia e num tédio resultantes da frustração de uma caminhada inglória, do insucesso face ao pretendido. É a fase pessimista ou intimista.

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Este Campos descaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão do Pessoa ortónimo no ceticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de qualquer outra coisa irreal, é o único heterónimo que comparticipa da vida extraliterária de Fernando Pessoa. É ele próprio que afirma "eu e o meu companheiro de psiquismo Álvaro de Campos". É Campos que reconhece os limites do humano, a apatia e o cansaço de quem quis ser máquina e não o conseguiu por ser Homem. Em “Lisbon revisited” (1923), o sujeito poético debate-se com a imperatividade da morte ("Não me venham com conclusões! / A única conclusão é morrer."). Todo o poema é triste, daí a acumulação de construções negativas. Recusa a estética, a moral, a metafísica, as ciências, as artes, a civilização moderna, apelando ao direito à solidão, apontando a infância como símbolo da felicidade perdida (Ó céu azul - o mesmo da minha infância - / Eterna verdade vazia e perfeita!"). Campos sente-se vazio, um marginal, um incompreendido ("O que há em mim é sobretudo cansaço -"; "Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: / Porque eu amo infinitamente o infinito, / Porque eu desejo impossivelmente o possível"). A construção paradoxal destes versos é, o espelho do interior do poeta, dominado por forças antagónicas: a da totalidade e da limitação.

3. Características gerais da linguagem e estilo

- verso livre, em geral, muito longo

- assonâncias, onomatopeias (por vezes ousadas), aliterações (por vezes ousadas)

- mistura de níveis de língua

- enumerações excessivas, exclamações, interjeições, pontuação emotiva

- desvios sintáticos

- estrangeirismos, neologismos

- subordinação de fonemas

- construções nominais, infinitivas e gerundivas

- metáforas ousadas, oximoros, personificações, hipérboles

Análise do poema "Dobrada à moda do Porto"

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    O poema "Dobrada à Moda do Porto" é um poema sem data, de Álvaro de Campos; que se

tornou num dos seus poemas mais conhecidos.

Trata-se de um poema que, apesar de poder considerado algo irónico (ou mesmo cómico), é

imbuído de uma enorme tristeza. A sua temática é a da não concretização do amor, e, por

oposição, da solidão (do frio). A simbologia da refeição (dobrada) é levada ao extremo, sendo que

representa, enquanto quente, a essência do amor realizado, e enquanto fria a ausência de qualquer

tipo de amor.

Podemos especular se o que Pessoa nos quer dizer, quando nos diz "Serviram-me o amor como

dobrada fria", é que ele apenas conheceu uma aparência de amor quando era demasiado tarde

para ele. Penso que tenha sido esse o caso. Sendo que o poema não é datado, podemos no

entanto extrapolar, pela temática, que poderia ser um poema tardio de Pessoa (talvez posterior a

1933/34) e certamente posterior ao seu namoro com Ophélia Queiroz.

Todo o poema roda em redor de um problema essencial: o amor, ou melhor, a capacidade

de amar. É que, para Pessoa (e por extensão para Campos, para o Campos já metafísico, tardio) o

amor chegou demasiado tarde. Para ser um amor "quente", verdadeiro, ele deveria ter surgido

muito mais cedo na sua vida. Ele sente intimamente que, quando conhece o amor (mesmo

superficialmente, com Ophélia), já é demasiado tarde. Porquê? Simplesmente porque ele já não se

encontrava disponível psicologicamente para o amor. Tinha-se fechado sobre si mesmo, devido aos

grandes traumas da sua infância e pelo efeito de uma adolescência atrapalhada e solitária. Era um

homem essencialmente solitário, tímido, sem capacidade de abordar as mulheres, provavelmente

sem namoradas antes de Ophélia - uma espécie de "freak" social, um desajustado, alguém à

margem do que seria uma vida normal.

Podemos confirmar esta análise com o próprio poema, que se divide em duas partes. Uma primeira parte em que ele fala do amor (presente, vv. 1-11) e uma segunda parte em que ele fala (subitamente) da infância (vv. 12-22).

  Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, Serviram-me o amor como dobrada fria. Disse delicadamente ao missionário da cozinha Que a preferia quente, Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria. Impacientaram-se comigo. Nunca se pode ter razão, nem num restaurante. Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta, E vim passear para toda a rua. Quem sabe o que isto quer dizer? Eu não sei, e foi comigo...

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(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim, Particular ou público, ou do vizinho. Sei muito bem que brincarmos era o dono dele. E que a tristeza é de hoje). Sei isso muitas vezes, Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram Dobrada à moda do Porto fria? Não é prato que se possa comer frio, Mas trouxeram-mo frio. Não me queixei, mas estava frio, Nunca se pode comer frio, mas veio frio.  

   

    Lendo o poema rapidamente não se entende muito bem o porquê dele começar a falar da infância de repente. Apenas faz sentido se compreendermos que ele sente que não consegue amar porque não teve o "amor quente", a tal "dobrada quente" - a tempo e horas. O que lhe deram foi uma “dobrada fria” - servida já depois do tempo ideal; ou seja, o amor chegou-lhe frio à mesa e ele não o quis. Pagou, mas não o comeu. Ou seja, teve-o, mas não usufruiu dele. Pode bem ser a descrição fria da sua relação (distante) com a sua única namorada conhecida - Ophélia.

O problema essencial é esse intervalo entre infância e idade adulta, que é um vazio - e onde deveria estar um período de adolescência feliz, que é essencial para o desenvolvimento emocional de todos os homens, para que eles possam ter a tal dobrada servida quente, um amor a tempo e horas.