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1 Alteridades e Direitos Humanos enunciados 2Simpósio Internacional de História das Religiões XV Simpósio Nacional de História das Religiões ABHR 2016 João Roberto Bort Júnior 1 Abordando enunciações acerca do Outro Os Yanomami compõem um grande grupo norte-amazônico localizado na região fronteiriça entre Brasil, estados de Roraima e Amazonas, e Venezuela. De 1970 a 1980, envolveram-se em conflitos étnicos e, justamente por isso, religiosos do Instituto dos Missionários da Consolata (IMC) e antropólogos denunciaram violências sofridas por eles e mobilizaram-se pela demarcação de suas terras tradicionalmente ocupadas. No entanto, a violência contra o grupo foi umas das razões de enfrentamentos, contexto social e político nos quais noções sobre índios e não índios foram construídas. É sobre essas noções que versamos aqui. Controvérsias etnográficas e enfrentamentos teóricos resultaram de distintas posições epistemológicas de pesquisadores e de suas distintas concepções acerca do ser Yanomami. Controvérsias que podemos compreender como disputas de representação e significação entre agentes sobre alteridade indígena. O documentário Segredos da Tribo (2010) de José Padilha e o controverso livro de Patrick Tierney (2002) apresentam debates em que se envolveram reconhecidos antropólogos cujas pesquisas trataram sobre os Yanomami. As questões centrais nas quais se detiveram dizem respeito à ética científica e à representação da alteridade em trabalhos antropológicos. Marcaram fortemente o debate o francês Jacques Lizot e os norte- 1 Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), atualmente é professor efetivo de sociologia da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE/SP). Foi membro do Grupo de Estudos sobre Mediação e Alteridade (GEMA), ligado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e à Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), durante o desenvolvimento da pesquisa de mestrado com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). É autor da dissertação Concepções sobre os Yanomami: uma análise de textos missionários e antropológicos resultante daquela pesquisa sob orientação da Profa. Dra. Melvina Afra Mendes de Araújo (UNIFESP). [email protected].

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Page 1: Alteridades e Direitos Humanos enunciados 2 Simpósio ... · 2 americanos Napoleon Chagnon e Keneth Good. A polêmica ganhou contornos acerca da centralidade organizativa da violência

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Alteridades e Direitos Humanos enunciados

2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões

XV Simpósio Nacional de História das Religiões

ABHR 2016

João Roberto Bort Júnior1

Abordando enunciações acerca do Outro

Os Yanomami compõem um grande grupo norte-amazônico localizado na região

fronteiriça entre Brasil, estados de Roraima e Amazonas, e Venezuela. De 1970 a 1980,

envolveram-se em conflitos étnicos e, justamente por isso, religiosos do Instituto dos

Missionários da Consolata (IMC) e antropólogos denunciaram violências sofridas por eles e

mobilizaram-se pela demarcação de suas terras tradicionalmente ocupadas. No entanto, a

violência contra o grupo foi umas das razões de enfrentamentos, contexto social e político

nos quais noções sobre índios e não índios foram construídas. É sobre essas noções que

versamos aqui.

Controvérsias etnográficas e enfrentamentos teóricos resultaram de distintas

posições epistemológicas de pesquisadores e de suas distintas concepções acerca do ser

Yanomami. Controvérsias que podemos compreender como disputas de representação e

significação entre agentes sobre alteridade indígena.

O documentário Segredos da Tribo (2010) de José Padilha e o controverso livro de

Patrick Tierney (2002) apresentam debates em que se envolveram reconhecidos

antropólogos cujas pesquisas trataram sobre os Yanomami. As questões centrais nas quais

se detiveram dizem respeito à ética científica e à representação da alteridade em trabalhos

antropológicos. Marcaram fortemente o debate o francês Jacques Lizot e os norte-

1 Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), atualmente é professor efetivo de sociologia da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE/SP). Foi membro do Grupo de Estudos sobre Mediação e Alteridade (GEMA), ligado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e à Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), durante o desenvolvimento da pesquisa de mestrado com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). É autor da dissertação Concepções sobre os Yanomami: uma análise de textos missionários e antropológicos resultante daquela pesquisa sob orientação da Profa. Dra. Melvina Afra Mendes de Araújo (UNIFESP). [email protected].

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americanos Napoleon Chagnon e Keneth Good. A polêmica ganhou contornos acerca da

centralidade organizativa da violência naquela sociedade depois da publicação The Fierce

People (CHAGNON, 1968), cuja hipótese é a de que a violência yanomami consiste uma

resposta social à escassez de mulheres. Por outro lado, o uso de vacinas como vetores de

epidemias, a hostilidade de pesquisadores em campo, o estabelecimento de relações sexuais

com os índios foram igualmente objeto de polêmica com qual se questionou a possibilidade

da violência ter na verdade partido dos antropólogos contra a cultura nativa2. Por isso,

indicamos as formulações de concepções acerca dos Yanomami deram-se muito em razão de

disputas que pela definição do que viria ser violência e que sociedades ou culturas praticá-la-

iam contra quais. Até o momento retomamos o que apresentamos em outro momento

(BORT JR, 2012), quando analisamos concepções disputadas e negociadas sobre esse povo

ameríndio e os tipos de olhares de agentes consolatinos e antropológicos em torno deles,

demonstrando, por fim, categorias privilegiadas para falar de alteridade indígena e marcar

comparativamente fronteiras socioculturais. Dito de outro modo, de nosso esforço analítico

pode-se dizer que a categoria violência fixou-se como categoria elementar de comunicação

entre agentes consolatinos e antropológicos para definir alteridades (branco, índio,

civilizados, garimpeiros...) e, nessa disputa negociada, empenharam-se em estabilizar os

sentidos que deram a elas e a categoria. Diga-se de passagem, que o lugar de violência na

tradução do Outro é de longa duração, presente em olhares desda a grade de leitura

seiscentista da alteridade3.

Parece inegável a disposição universal humana em procurar compreender por meio

de categorias culturais de entendimento o que é percebido como diferente. Estudos de

cunho histórico-etnográfico (SHALINS, ALBERT & RAMOS, VIVEIROS) apontam estratégias

sociais e culturais de esforço compreensivo do Outro. Nesse sentido, são emblemáticos os

2O cineasta Ruggero Deodato, acusado de ter assassinado os atores de seu Canibal holocausto (1980), participa da polêmica ao ter produzido o referido filme, ao procurar questionar o sensacionalismo midiático em torno da violência, sugere que em nada o canibalismo dos Shamatari, um grupo pertence aos Yanomamö, aproxima-se da crueldade de jovens americanos que matam animais, estupram mulheres e assassinam indígenas. 3 Isso se revela a partir de Montaigne (1984) a partir de sua leitura relativista embrionária dos escritos de viajantes sobre os nativos da América e de Pompa (2003) que demonstra as categorizações de “índio manso” e “índio bravo” por missionários no Brasil Colonial.

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escritos dos viajantes, como Duas Viagens ao Brasil (2008 [1557]) de Hans Staden e Viagem

à Terra do Brasil (1961 [1578]) de Jean de Léry, cujas letras indicam não exclusivamente suas

impressões sobre nativos da América. É possível ainda desvendar como esses povos

formularam percepções sobre os não índios com os quais passaram a relacionar-se por

ocasião das empreitadas coloniais, bem como entender como desenvolveram estratégias

frente ao imperativo histórico do contato interétnico4. Semelhantemente, procuramos

séculos depois compreender alteridades por meio da domesticação científica do olhar e criar

considerações, por meio deste olhar domesticado, sobre como seres humanos apreendem

os seus Outros: a ciência antropológica. Isso quer dizer que a Antropologia configura-se

numa estratégia de comensurabilidade da diferença gerida no pensamento ocidental por

parâmetros da ciência.

Neste texto, também objetivamos refletir sobre essa estratégia antropológica por

meio dela mesma. O intuito é realizarmos de algum modo o que Cardoso de Oliveira (1988:

176-177) chama de vocação metadisciplinar da etnografia da ciência ao focalizarmos “o

caráter discursivo do conhecimento, mais do que o conhecimento propriamente dito. Tal

focalização remete (...) mais para o problema da (inter)comunicação desse conhecimento no

público interno da disciplina científica objeto de investigação”. Explicamos: queremos

analisar estratégicas de enunciação de agentes antropológicos no contexto de luta política

dos Yanomami do final do século XX com vistas a compreender as formulações de sentido

resultadas e observáveis em textos. Ou seja, este texto é o esforço de análise dos sentidos

que emergem discursivamente sobre esses ameríndios e de diferenças étnicas por meio das

construções simbólicas e categoriais enunciadas textualmente por agentes e disputadas

entre eles. Embora nosso trabalho também consista em compreender a comunicação entre

antropólogos sobre o ser Yanomami, o objeto investigado, as concepções sobre tais

ameríndios, transcendem o campo disciplinar e realiza-se numa esfera mais ampla, portanto,

numa interação comunicativa que envolve inclusive religiosos. Esforçamo-nos em analisar

como consolatinos e antropólogos falam sobre esses índios em seus textos ao mobilizarem

4 Para uma leitura sobre o modo nativo de compreender e relacionar-se com a alteridade no período colonial, ver a análise de Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro (1986) sobre os Tupinambá.

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categorias. Por meio dos usos de categorias discursivas e das relações estabelecidas entre as

mesmas em seus escritos, os agentes configuram sentidos para a diferença, marcam e

comunicam distinções socioculturais. A distinção cultural constrói-se relacionalmente e em

partes pelo modo como é inscrita textualmente.

De modo que o que procuramos desenvolver neste trabalho não transpareça como

outra reflexão sobre a ética do fazer antropológico5 ou como mais uma posição em disputa

em torno da violência Yanomami – o que nos colocaria não num patamar heurístico, mas

nativo – evidenciamos que nosso esforço é demonstrar as edificações enunciativas dos

agentes em apropriar-se e mobilizar categorias privilegiadas como, reiteramos, a de

violência, mas também, as de cultura, natureza e vida. Já argumentamos, o que

reproduzimos a seguir, sobre posições enunciativas pelas quais tais categorias ganharam

significados e ganharam novamente em novas enunciações textuais, formando uma rede de

interação e comunicação nas quais os agentes posicionam-se para construir concepções

sobre os Yanomami.

(...) a categoria violência envolve mais que agentes, índios, antropólogos, missionários,

Estado, instituições, organizações não governamentais, entidades antropológicas e

religiosas, etc.. Em suas definições e redefinições de sentido, ela articula também uma

série de outras noções e categorias que caracterizam os Yanomami de determinadas

maneiras. A controvérsia em torno da violência entre os Yanomami, que poderia ser

resumida a partir da pergunta “eles são violentos ou são vítimas da violência de outrem?”,

põe muitos agentes em interação e em disputa. Veremos mais detalhadamente as

diferentes posições dos agentes acerca dessa questão no decorrer da dissertação. Em

cada capítulo serão apresentados como os sentidos de violência foram sendo construídos

e redefinidos pelos agentes para pensar os Yanomami e quais as demais categorias

articuladas a ela, como, civilização, cultura, natureza, por exemplo (BORT JR, 2012: 26).

As configurações específicas de sentido que forjam e reforjam estrategicamente os

agentes, por isso mesmo assumem posições convergentes ou divergentes entre si, se dão

por meio dos usos situacionais que fazem de categorias possíveis do contexto de

5 Para uma reflexão sobre ética em pesquisas entre os Yanomami, ver Diniz (2007).

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enunciação. Significa evidenciar que estratégias enunciativas tornam verossimilhantes as

concepções acerca das diferenças etnicossociais. Justamente porque se valem de categorias

discursivas socialmente estabelecidas nos contextos de comunicação, fornecendo as

condições objetivas de enunciação, podem formular o que do ponto de vista de Cabral

(2003) seria o horizonte narrativo. Seria este um espaço de possibilidade de entendimento

cujos parâmetros ao serem partilhados permitiria a compreensão de narrativas entre

interlocutores. Acreditamos que as estratégias discursivas dos agentes acerca de alteridades

tenha algum efeito, político inclusive, uma vez que fazem uso das categorias discursivas que

constituem exatamente a condição da comunicação.

Quando afirmamos que as enunciações sobre o Outro são estrategicamente

mobilizadas com a finalidade de que outros agentes partilhem-na também, salientamos uma

forma de estratégia política da etnicidade, todavia construída e enunciada. Ademais das

práticas rituais, do uso da memória e das mobilizações coletivas6, o discurso sobre o outro

produz também fronteiras, direitos, territórios, etc., ou seja, objetiva diferenças. Esse é

especificamente o foco neste momento, demonstrar usos contextuais das categorias

discursivas violência, cultura, natureza e vida como estratégias para a estabilização de terra

e território como direitos humanos.

Entendemos que os posicionamentos discursivos de agentes podem ser

conceituados enquanto lugares numa rede de comunicação entre agentes. Essas posições

discursivas e os significados produzidos por elas resultam de certas disposições em relação

ao Outro somadas dialeticamente às condições socioculturais nas quais se situam os

agentes. Sendo assim, as enunciações sobre os Yanomami são compreendidas enquanto

atualizações de sentido das categorias, disponibilizadas em contexto às práticas enunciativas

de agentes com mais ou menos empatia7 em relação aos índios. Os agentes tendem

constantemente operacionalizar categoriais, mas que estão abertas à criatividade da prática

de enunciação em determinadas situações. A prática para Bourdieu (1983) consiste

6 João Pacheco de Oliveira (1998) reflete sobre a emergência étnica de remanescentes de povos indígenas do Nordeste do Brasil. 7 Consideramos essa empatia pelos grupos estudados como disposição inerente ao habitus de antropólogos. Ao menos daqueles que a fizeram pesquisa em território nacional, uma vez que a posição política a favor dos nativos parece ter marcado, de acordo com Cardoso de Oliveira (1988), uma Antropologia feita na periférica.

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exatamente nesse produto da relação dialética entre a situação e o habitus, este sendo um

sistema de disposição durável que fornece a matriz da ação, no caso, da ação discursiva. Ou

seja, a práxis não deixa de estar orientada objetivamente, por isso nossa insistência acerca

das possibilidades contextuais de significação sobre a alteridade por meio da agência de

categorias já estabelecidas nos contextos nos quais os textos foram produzidos.

Assim, compreendemos os textos dos agentes como produtos de suas práticas

enunciativas cristalizadas no tempo. A polêmica sobre as pesquisas de Chagnon, Good e

Lizot que se estenderam a ponto de terem sido tratadas cinematograficamente retrata uma

parcela das enunciações de um conjunto de posições assumidas pelos agentes e que ganhou

maior visibilidade em vista do acirramento conflitivo que as caracterizaram e da provável

capacidade tecnológica do cinema de fazê-las circular. Nossa hipótese é de que as categorias

de violência, cultura, natureza e vida constituíram elementos discursivos pelos quais

enunciações sobre os Yanomami foram possíveis até o momento, mas especificamente

neste texto redemonstramos8 como se articulam numa relação específica e, com isso,

produziram sentidos especiais fundamentando posições a favor de direitos dos Yanomami.

Antes de efetivamente expormos a análise das enunciações, é preciso salientar duas

considerações hipotéticas. Primeiramente, é a de que debates, enfrentamentos e

controvérsias que tangenciaram e ainda reverberam sobre os Yanomami, incluindo as lutas

por direitos à terra a partir dos anos de 1970, estão circunscritos a um contexto mais amplo

marcado pela construção de distinções sociais e culturais. Quer dizer que compreender o

debate promovido pelos agentes acerca dos direitos dos povos indígenas como questão dos

Direitos Humanos, no contexto odicental de Roraima, significa localizá-lo junto ao problema

antropológico clássico da percepção e concepção da diferença. Em seguida, é preciso

salientar que a emersão internacional de princípios e direitos ligados aos chamados Direitos

Humanos favoreceu o florescimento de posições internas ao indigenismo e a articulação

desse movimento político com o ambientalismo.

8 O leitor encontra em nossa dissertação a tese central desenvolvida neste texto, todavia, o trabalho de reflexão e análise prolonga-se aqui numa escrita que nos deixa mais confortável em fazer considerações mais conclusivas.

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Contexto de enunciações e enunciações sobre o contexto

São os processos migratórios e desenvolvimentistas promovidos durante as décadas

de 1970 e 1980 que marcaram o cenário norte-amazônico e dos agentes, portanto. O

desenvolvimento exploratório local foi impulsionado pelos Programa Calha Norte, obras da

Rodovia Perimetral Norte, projeto RADAM Brasil, obras dos programas de colonização

pública e, por fim, pelo Plano de Integração Nacional (PIN), todos implementados pelo

Regime Militar (ALBERT, 1985 e ALBERT & MILLIKEN, 1997). São marcas das políticas de

segurança nacional dos ditadores a militarização da região amazônica e o seu povoamento

com programas de colonização implantados ao longo de rodovias construídas em terras

tradicionalmente ocupadas por índios. A chegada de contingentes populacionais expressivos

parece ter se dado entre os anos de 1978 e 1979 no extremo sudeste do território

yanomami (Albert, 1997).

A entrada de grande números de garimpeiros e outras tantas empresas

mineradoras interessadas nas terras ocupadas pelos Yanomami ocorreu após prospecções

de minérios na região com a qual se descobriu a existência de ouro. Em vista dos

imponderáveis históricos, as relações dos Yanomami com a população não índia estreitaram

e ganharam novos contornos. Escritos sobre o povo Yanomami relacionam os índios, não

índios e a entrada destes em áreas indígenas.

A construção da Rodovia Perimetral Norte (BR-210), iniciada em setembro de 1973

pela empresa Camargo Correa, foi emblemática na criação das possibilidades de

intensificação da relação intersocietária. A rodovia, distante onze quilômetros da cidade de

Caracaraí, segue da BR-174 a Oeste até a divisa do país com a Colômbia. Quanto a área

yanomami, ela aproxima mais dos índios nas regiões dos rios Ajarani e Catrimani. São os

efeitos da construção da rodovia e as consequências da proximidade dela com os Yanomami

que preocupam mais centralmente os autores:

Os frequentes contatos destes grupos com as frentes colonizadoras, mudaram bastante

seu estilo de vida. As consequências negativas foram: (1) a constante introdução na área

Yanomami de doenças; (2) a cobiça de possuir ‘objetos supérfluos’ como relógios, rádios,

toca-fitas, carteiras, etc; (3) uma atitude egoísta contrária ao sistema tradicional de troca;

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(4) uma imitação do comportamento dos civilizadas nas expressões mais negativas (fumar

cigarros, tomar cachaça, falar palavrões, etc.) (Lindey, Damioli, Saffírio, 1988: 59).

É nesse contexto de interação societária, igualmente construído discursivamente

pelas fontes, de interações societárias que os agentes formulam concepções sobre modos

de ser indígena em geral contraposto a modos de ser não índios. Em geral, os Yanomami são

descritos comparativamente como povo cultural e moralmente superior. É o contato entre

esses grupos que seriam a causa do desenvolvimento de comportamentos condenáveis,

como fica evidente da leitura do fragmento de texto acima escrito por religiosos que

contribuíram com a formação da Missão Catrimani9 entre os Yanomami. O mesmo fica

evidente do fragmento seguinte, escrito por um importante consolatino e antigo fundador

da Comissão para Criação do Parque Yanomami (CCPY):

Às margens do rio Catrimani, no Território de Roraima, uma das últimas tribos indígenas a

entrar em contato com a civilização, deverá abandonar sua maneira de viver para adotar o

modo de vida dos brancos, há pouco chegados nos arredores da Missão com a ‘Perimetral

Norte’. (...) Agora a área está sendo invadida por garimpeiros de diamante e ouro,

baladeiros e, às vezes, até por aventureiros sem escrúpulos (Zacquini, 1976: 7).

É o efeito da perda das características culturais causados pela relação com não

índios que constituem o objeto de denúncias de textos produzidos por religiosos como

esses. Outro efeito, semelhante ao outro já dito, e proferio por Alcida Rita Ramos,

antropóloga que estou os Yanomami:

De lá para cá, muitas mudanças ocorreram no território Yanomami. De 1973 a 1976, os

Yanomam e Yawarib dos vales dos rios Ajarani e Catrimani sofreram repetidas epidemias

de gripe e sarampo, contaminados por centenas de peões que abrigam a rodovia

Perimetral Norte. A população indígena dessas áreas foi devastada, sendo que quatro

aldeias do vale do rio Ajarani perderam 22% de sua população entre 140 1973 e 1975 e

9 Missão dos Missionários da Consolata fundada em 1965 entre os Yanomami da região do Rio Catrimani, um afluente da margem esquerda do Rio Branco.

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quatro outras do alto Catrimani perderam metade de sua gente numa epidemia de

sarampo em 1978 (Ramos, 1990: 64).

Uma questão já presente nos enunciados consolatinos tratados acima são os efeitos

sanitários do contato. Questões relativas à saúde indígena foram consideradas prejudiciais

igualmente como foram os efeitos culturais do contato, conforme texto consolatino a seguir:

Poucas eram as doenças conhecidas pelos índios e às quais estavam sujeitos, a saber:

malária e verminose. O contato com os brancos trazidos pela estrada, porém, provocou

uma série de males jamais verificados no seio da tribo, a saber: gripe, sarampo,

tuberculose, bronquite e doenças venéreas. Ocasionou, enfim, um desajuste físico, moral

e cultural, uma dispersão dos componentes do grupo que, abandonando seu 'habitat'

natural ficam vagando pela estrada (Valle, 1977: 12)

Ainda de acordo com os missionários da Consolata:

Como todas as populações nativas da América, os Yanomami são extremamente

vulneráveis as doenças introduzidas pelos civilizados por falta de anticorpos. (...) Contra

estas violentas epidemias que em poucos meses se alastraram pela região toda dizimando

as populações Yanomami, os pajés não tinham nem explicações, nem poderes para

afugenta-las (Lindey, Damioli e Saffírio, 1988: 54)

É fundamental que se saliente como os autores mobilizaram a categoria violência

no excerto acima atribuindo um sentindo completamente diferente dos que antropólogos

como Chagnon, Lizot e Good, por exemplo, imputaram a ela (BORT JR, 2012). Neste trecho

dos missionários observamos como a violência é concebida como externa aos e contra os

Yanomami. Delineiam-se os sentidos de doença e morte para a categoria enunciada que se

distinguem das noções de hostilidade ou agressão como, segundo Chagnon (1968) e Albert

(1985), mecanismos social e cultural dos Yanomami.

O que procuramos evidenciar é que menos do que simples denúncias formuladas

textualmente, os autores são agentes religiosos e antropológicos que posicionam-se e, por

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que se posicionam, produzem o que Oliveira Filho (1998) entenderia como definição de

fronteiras étnicas e sociais no campo intersocietário. Nota-se sentidos convergentes e

divergentes em posicionamentos em enunciados escritos. Essa posição de denúncia contra a

destruição sociocultural e física dos indígenas é também assumida em texto por Bruce

Albert, reconhecido etnógrafo dos Yanomami. Observemos:

Nas décadas de 1970 e 1980, os projetos de desenvolvimento do Estado começaram a

submeter o grupo [dos Yanomami] a formas de contato maciço (...). Esses contatos

provocaram um choque epidemiológico de grande magnitude, causando pesadas perdas

demográficas, degradação generalizada do estado sanitário e graves fenômenos de

desestruturação social (Albert, 1997: 68)

Não obstante, o desaparecimento físico desses índios do noroeste-amazônico

estaria sobredeterminado por outra forma de agressão externa. A concepção de violência

engendrada aqui é strito sensu na medida em que significaria agredir fatalmente o outro.

Até 1987, em Boa Vista, capital de Roraima, as doenças infecciosas eram a causa principal

da mortalidade. A partir de 1988, os homicídios alcançaram o primeiro lugar,

transformando em verdadeiro faroeste essa unidade da Federação. A violência no trânsito

ocupa o segundo lugar na estatística de morte. Estas duas causas estão diretamente

ligadas ao garimpo. A ganância do ouro e a vontade de um rápido enriquecimento tornam

o garimpeiro destemido, lançando-o em plena selva sem calcular riscos como o da própria

vida (Santos, 1990: 9)

Os projetos desenvolvimentistas que desembocaram em perdas para o povo

Yanomami, de acordo com as enunciações formuladas pelos autores, teriam produzido

consequências sobre toda a ontologia yanomami, uma vez que as consequências sobre o ser

indígena recaíam tanto sobre suas saúde e existência material, portanto sobre suas bases

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físico-biológicas, mas também sobre seus comportamentos e valores10 culturais, logo

igualmente sobre suas bases metafísicas. Sendo assim, os agentes indigenistas estão

denunciando por meio de seus textos de caráter etnográfico o que poderia ser entendido

como a destruição da cultura e do povo. É o que parece dito abaixo.

Destruir uma cultura é extinguir um povo. É fadar ao esquecimento a memória de uma

raça que, por mais rudimentares que sejam seus valores, poderiam enriquecer o

patrimônio histórico e cultural de uma nação. Cláudia [Andujar], com seu espírito

humanitário e sua preocupação em preservar a cultura indígena, está demonstrando o

quanto é importante e fundamental o respeito pela dignidade do ser humano, mesmo que

ele seja um índio (Valle, 1977: 13).

A construção de concepções sobre os Yanomami naquele momento faz-se também

articulada a noções internacionais dos Direitos Humanos. O esforço compreensivo acerca

dos Yanomami nesses textos faz-se tocante a um processo contextual de genocídio. Por isso

mesmo, não parece eventualidade que Valle, o autor acima, anuncie a preocupação de

Cláudia Andujar, cujas fotografias sobre os Yanomami são internacionalmente reconhecidas,

fundamentada no “respeito pela dignidade do ser humano”, um princípio axial da

Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Paradigmático foram as posições dos agentes acerca do caso da aldeia de Haximu,

localizada no Alto Orinoco, na área yanomami venezuelana. Sucintamente, tratou-se de

conflitos recorrentes entre garimpeiros e índios, cujo sistema de vingança de acordo com

Albert (1993) prescreve que ataques sejam respondidos com contra-ataques. O desfecho

trágico ocorreu com a matança de mulheres, crianças e índios velhos e doentes deixados

pelos homens guerreiros num tapiri a caminho de outra aldeia. A polêmica jurídica que

envolveu inúmeros agentes e instituições do poder público deu-se em torno da possibilidade

de categorização do crime como genocídio.

10 “A garimpagem repercute na cosmovisão dos indígenas trazendo-lhes maneiras diferentes de ver o mundo, um mundo agora voltado para fora, dando acesso a novos canais de experiência e expressão; o impacto do ouro como bem material e simbólico no universo cognitivo e de valores dos Yanam (...)” (Ramos, 1984: 7).

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São os usos frequentes de categorias discursivas, por isso fixadas no horizonte

narrativo da comunicação entre agentes, e seus usos relacionados a categorias de contextos

mais globais como as geridas no âmbito da formação dos Direitos Humanos que nos

interessam. É esta estratégia de enunciação, a saber, de composição de sentidos por meio

de agenciamentos de categorias discursivas globalizantes, que parece ter alguma eficácia

política. Parece ser exatamente a estratégia que Montero (2006) descreveu como esforço de

missionários em fazer circular códigos de comunicação em esferas mais generalizantes da

vida social. A eficácia política do que é dito parece residir nessas edificações que se

aproveitam de categorias mais ou menos estáveis de distintos contextos sociais e políticos.

Vejamos as capacidades criativas dos agentes em mobilizar diferentes categorias e sentidos

formulando processos locais relativos aos Yanomami enquanto problemas de toda à

humanidade.

Genocídio yanomami: enunciando um crime contra a humanidade

No Museu do Holocausto, em Curitiba-PR, pode-se ver ao final da exposição que

apresenta a história da política nazista de eliminação em massa de judeus um mapa de

formas de genocídio pelo mundo. Neste aparecem os Yanomami, pondo em justaposição

judeus e índios. A possibilidade de enunciar os conflitos envolvendo os Yanomamis e sua

provável eliminação física e cultural um problema de toda a humanidade tornou-se

realizável devido à gênese histórico-jurídica dessa categoria de crime. Sua história remonta

ao período da Segunda Guerra quando políticas de extermínio em massa foram praticadas

contra judeus. Durante o processo jurídico de julgamento de nazistas em Nuremberg (1945-

1946) esculpiu-se a classificação criminal determinando a promulgação da Convenção para a

Preservação e Repressão do Crime de Genocídio, ratificada no país em 1951. Desse modo,

ficaram abertas oportunidades de incriminar práticas que implicam em extermínio de

minorias.

A noção de genocídio ainda reverbera como categoria orientadora da grade de

leitura dos processos relativos a esses índios, como é notável no Museu do Holocausto e em

Andujar (2009). Marcadamente gerada no seio do debates internacionais contra o

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holocausto,a ideia de genocídio parece impor a comparação dos Yanomami a judeus. Sua

publicação apresenta retratos frontais dos Yanomami tendo no pescoço ou no peito

sequencias numéricas que permitiam reconhecimento posterior em tratamentos médicos. O

que ocorrera com os Yanomami lembrava a Andujar o que acontecera com aqueles que

eram fadados à morte na Europa Nazista. As marcas impressas nas vestes dos judeus – as

estrelas de Davi – marcavam-nos para a morte. De acordo com a interpretação de Andujar,

ao colocar, ela mesma, numerações nos Yanomami para fotografa-los, ela os teria marcado

para viver.

Especificamente no contexto envolvendo os Yanomami, o genocídio procederia não

exclusivamente de conflitos físicos entre garimpeiros e índios, mas de um processo de

"contato" com a "sociedade envolvente". É por meio do agenciamento estratégico das

categorias genocídio e violência que interesses yanomamis puderam e podem fazer sentidos

em outros espaços mais generalizados da vida política. Com a emersão de códigos jurídicos

como a Declaração de 1948 principalmente, constitui-se horizontes narrativos nos quais

cada vez menos parece aceitável, ao menos formalmente, o desrespeito pelo outro. Noções

gestadas no desenvolvimento histórico dos Direitos Humanos e em processos correlatos

foram fundamentais para que as formas de relacionar-se com indígenas viessem ser

compreendidas enquanto causas de genocídio. Nesse sentido, é por processos de

construção de direitos em esferas políticas mais amplas que também se criou condições de

enunciação para que concepções sobre diferenças étnicas e posturas éticas erigissem e, no

caso de algumas dessas últimas, fossem criminalizados. É uma estratégia discursiva que

aproxima toda a humanidade a um grupo. Por isso mesmo, massacres contra os Yanomami

passaram ser assuntos do interesse de organismos internacionais como a Organização das

Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos (OEA). Esta última interviu, por

exemplo, junto ao Brasil para a contenção dos conflitos por meio de resolução de sua Corte

em 1975. O que esses agentes enunciaram textualmente foram concepções construídas

sobre grupos em relação e, acerca da destruição físico-cultural dos Yanomami, suas posições

eram de denúncia de crimes contra a vida. A categoria vida parece consistir num elemento

discursivo central que media as enunciações em defesa desses ameríncidos aqui

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apresentadas. É a vida dos Yanomami que corria risco: ou porque morriam por doenças e

agressões físicas, ou porque morriam culturalmente. Argumentamos à frente que vida

articula-se às e põe em relação as categorias natureza e cultura como forma de defender a

demarcação do território indígena.

Cultura e natureza: reproduzir vidas

Instigante do ponto de vista etnográfico é o fragmento a seguir no qual o autor

consolatino faz uso da noção de fraternidade para definir os Yanomami aceitando certa

violência nativa, enunciada enquanto “guerra” e “ataque”, como tática de defesa.

Após várias décadas de atividade entre os indígenas, os missionários sabem que os índios

sempre foram seres profundamente humanos, nobres e fraternos. Suas guerras internas e

seus ataques a inimigos externos só visam defender o próprio espaço ambiental e cultural

(Santos, 1990: 10).

Implicitamente, a hostilidade do índio é aceitável relativamente ao fato de que

serve à preservação do meio ambiente e da cultura. É o fim a que se destina a agressividade

que faz dela moralmente superior, por exemplo, a violência garimpeira que estaria motivada

por anseios de enriquecimento. As concepções sobre índios e não índios emergem dessa

posição, evidente também na fala nativa quando o líder yanomami aponta como objetivo do

“político" o “ganhar dinheiro”.

O político abre estradas, arrancando árvores e raspando a pele da terra, dizendo que nos

fazem um bem, mas foi assim, que nos trouxeram também as doenças e todo tipo de

problemas, como a violência. Matam nosso povo para trabalharem tranqüilos, sem índios,

e ganharem dinheiro11 (Davi Kopenawa).

11 Disponível em http://www.cimi.org.br/site/pt-br/index.php?system=news&action=read&id=4831. Acessado em 01 de julho de 2016 às 22h49.

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Em seu texto, Alcida R. Ramos implicitamente argumenta que as relações

ecológicas de índios e garimpeiros com o meio ambiente são comparativamente muito

distintas.

A atividade garimpeira incorre, necessariamente, no estabelecimento de novas relações

com o meio ambiente, afetando padrões tradicionais de exploração dos recursos;

enquanto garimpa não se planta, não se caça, nem se coleta. Que implicações tem tudo

isso no equilíbrio vital dos índios, afetados que são pelos ciclos vitais da fauna e da flora?

(Ramos, 1984: 7-8).

São os distintos modos culturais de lidar com o meio ambiente que tem imposto

consequências fatais na medida em que se criaria um desequilíbrio na vida dos Yanomami.

Nesse sentido, vemos que os grupos opor-se-iam pela forma que conduzem suas práticas

ambientais sendo a não índia impeditiva para processos de reprodução da vida dos

indígenas. A relação entre a cultura e o ambiente natural são enunciadas enquanto relações

de interdependência na medida que a vida poder-se-ia realizar-se por meio de uma relação

equilibrada com o espaço da natureza. É essa relação que Bruce Albert reforça e que permite

argumentar para a existência de uma mesma posição discursiva entre esse antropólogo, a

etnóloga e o religioso supracitados.

Vimos que o modelo Yanomami de uso dos recursos naturais é sustentado por uma

complexa interdependência entre sistema produtivo, espaço territorial e equilíbrio

nutricional. (...) No caso de uma invasão por atividade de garimpagem (ou mineração),

este processo de empobrecimento nutricional, já muito sério em si, é consideravelmente

agravado tanto pela degradação do ambiente (desmatamento, escavações, poluições,

caça indiscriminada etc.) quanto pela perturbação das atividades de subsistência

provocada pelas doenças que assolam constantemente a população (Albert, 1997: 75).

Produz-se assim, nesses textos, concepções sobre diferenças em acusações contra

processos desenrolados em terras yanomamis prejudiciais à vida indígena, econômica e

culturalmente depende do meio ambiente natural. Similarmente às agressões físicas e

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epidemiológicas, a vida nativa correria risco em razão de agressões à natureza. contra a

natureza e não exclusivamente às agressões contra a saúde ou aos conflitos físicos. A vida

por toda parte estaria ameaçada, conforme escreveram.

A garimpagem não passa de uma atividade primitiva e predatória que relembra a Idade

Média e leva à perda de recursos naturais. O garimpo devasta as áreas onde se instala,

polui as águas, destrói o ambiente. Uma vez terminada a safra, afasta-se na procura de

outro lugar, perpetuando a devastação dificilmente controlável (Fancello, 1990: 3)

Argumentamos, pois, a emergência de concepções socioambientais entre os

agentes. Por posições que as enunciam, cultura e natureza aparecem articuladas enquanto

condições uma da outra e as duas enquanto condições de reprodução da vida. Noções

forjadas em perspectivas do socioambientalismo colocaram numa relação semântica

específica cultura e natureza de tal modo que reivindicações étnicas passam a ser

reivindicações ambientalistas também. É deste modo que descrevemos a agência discursiva

dos agentes, que edificam concepções estratégicas sobre alteridades e direitos:

Defender a natureza significaria defender, em última instância, o bem primordial

declarado pelos Direitos Humanos em 1948: a vida. O processo políticohistórico dos

Direitos Humanos, bem como de questões correlatas como as do meio ambiente,

definiram categorias e noções, que quando mobilizadas pelos agentes, permitiam

construir determinadas concepções sobre os Yanomami como grupo culturalmente capaz

de manter a vida natural e sua diversidade (BORT JR, 2012: 168)

Últimas considerações

Acreditamos que a descrição de nosso caso etnográfico pode elucidar, em síntese,

outras análises sobre práticas discursivas produtoras de etnicidade, diferenças e direitos

postas em ação por agentes e que tenham se objetivado de alguma maneira. O estudo das

categorias discursivas parece frutífero na medida em que permite rastrear as redes de

interação comunicativa e as lógicas de sentido inerente as mesmas. Nesse sentido, olhar

antropologicamente para textos de religiosos e antropólogos constitui uma oportunidade de

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entender mais profundamente fenômenos da vida social e política. Esperamos, enfim, que

nossa descrição renda comparações analíticas instigantes sobre outras categorias e práticas

discursivas que tocam os temas da construção das fronteiras étnicas e dos direitos de grupos

sociais, em especial, dos povos indígenas.

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