almeida, costa, pantoja - teoria e pratica da etnicidade no alto jurua

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Raízes v.33, n.1, jan-jun / 2011 Raízes, v.31, n.1, jan-jun / 2011 TEORIA E PRÁTICA DA ETNICIDADE NO ALTO JURUÁ ACREANO THEORY AND PRACTICE OF ETHNICITY: A CASE STUDY IN THE UPPER JURUÁ RIVER, ACRE. Mariana Ciavatta Pantoja; Eliza Mara Lozano Costa; Mauro William Barbosa de Almeida RESUMO ABSTRACT Este artigo é uma reflexão crítica sobre algumas das bases conceituais com que a antropologia opera ao tratar da constituição de novas “identidades étnicas”, retomando o conceito de “comunidades étnicas” de Max Weber, e tomando como referência o caso recente dos índios Kuntanawa do Acre. Os Kuntanawa reivindicam hoje uma Terra Indígena própria enquanto povo indígena, tendo antes conquistado direitos territoriais enquanto “população tradicional” na Reserva Extrativista do Alto Juruá em cuja criação tiveram papel de destaque. Argumentamos que a formulação de Weber dá pistas para entender processos como esse combinando dimensões que costumam ser trata- das como se fossem inconciliáveis: de um lado, a dimensão pragmática e político-territorial e, de outro, a dimensão ontológica da autoconstituição de comunidades étnicas. Palavras-chave: Etnicidade, Habitus, Ontologia This article is a critical reflection on some of the conceptual basis which anthropology uses when dealing with the constitution of ethnical identity. In so doing, we reconsider Weber’s concept of “ethnic community”, and take as our object the recent case of the Kuntanawa indians of Acre. The Kuntanawa claim today an Indigenous Land of their own as an indigenous people, having before that obtained territorial rights as a “traditional people” in the Extractive Reserve of Upper Jurua which they contributed to create. We argue that Weber’s concepts give clues to understand the phenomenon of ethnic communities by combining dimensions which are usually taken as if they were irreconcilable, i.e., the pragmatic, political-territorial dimension on the one hand, and on the other hand the ontological dimension of the processes of ethnic self-constitution of ethnic communities. Key words: Ethnicity, Habitus, Ontology. Mariana Ciavatta Pantoja. Doutora em Ciências Sociais (UNICAMP), Professora da Universidade Federal do Acre/UFAC, maripantoja@ya- hoo.com.br. Eliza Mara Lozano Costa. Doutora em Ciências Sociais (UNICAMP), Professora da Universidade Federal do Rio Grande/FURG, [email protected]. Mauro William Barbosa de Almeida. Doutor em Antropologia Social (Cambridge University), Professor da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP, [email protected]. Dossiê: Povos e Comunidades Tradicionais (Carlos Guilherme Octaviano do Valle, Rodrigo de Azeredo Grünewald - Orgs.)

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ALMEIDA, COSTA, PANTOJA - Teoria e Pratica Da Etnicidade No Alto Jurua

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  • Razesv.33, n.1, jan-jun / 2011

    Razes, v.31, n.1, jan-jun / 2011

    TEORIA E PRTICA DA ETNICIDADE NO ALTO JURU ACREANO

    ThEORy AND PRACTICE Of EThNICITy: A CAsE sTUDy IN ThE UPPER JURU RIvER, ACRE.

    Mariana Ciavatta Pantoja; Eliza Mara Lozano Costa; Mauro William Barbosa de Almeida

    RESUMO

    ABSTRACT

    Este artigo uma reflexo crtica sobre algumas das bases conceituais com que a antropologia opera ao tratar da constituio de novas identidades tnicas, retomando o conceito de comunidades tnicas de Max Weber, e tomando como referncia o caso recente dos ndios Kuntanawa do Acre. Os Kuntanawa reivindicam hoje uma Terra Indgena prpria enquanto povo indgena, tendo antes conquistado direitos territoriais enquanto populao tradicional na Reserva Extrativista do Alto Juru em cuja criao tiveram papel de destaque. Argumentamos que a formulao de Weber d pistas para entender processos como esse combinando dimenses que costumam ser trata-das como se fossem inconciliveis: de um lado, a dimenso pragmtica e poltico-territorial e, de outro, a dimenso ontolgica da autoconstituio de comunidades tnicas.Palavras-chave: Etnicidade, Habitus, Ontologia

    This article is a critical reflection on some of the conceptual basis which anthropology uses when dealing with the constitution of ethnical identity. In so doing, we reconsider Webers concept of ethnic community, and take as our object the recent case of the Kuntanawa indians of Acre. The Kuntanawa claim today an Indigenous Land of their own as an indigenous people, having before that obtained territorial rights as a traditional people in the Extractive Reserve of Upper Jurua which they contributed to create. We argue that Webers concepts give clues to understand the phenomenon of ethnic communities by combining dimensions which are usually taken as if they were irreconcilable, i.e., the pragmatic, political-territorial dimension on the one hand, and on the other hand the ontological dimension of the processes of ethnic self-constitution of ethnic communities. Key words: Ethnicity, Habitus, Ontology.

    Mariana Ciavatta Pantoja. Doutora em Cincias Sociais (UNICAMP), Professora da Universidade Federal do Acre/UFAC, [email protected]. Eliza Mara Lozano Costa. Doutora em Cincias Sociais (UNICAMP), Professora da Universidade Federal do Rio Grande/FURG, [email protected]. Mauro William Barbosa de Almeida. Doutor em Antropologia Social (Cambridge University), Professor da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP, [email protected].

    Dossi: Povos e Comunidades Tradicionais(Carlos Guilherme Octaviano do valle, Rodrigo de Azeredo Grnewald - Orgs.)

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    INTRODUO

    Este artigo um exerccio de reflexo sobre algumas das bases conceituais com que a antropologia opera ao tratar do fenmeno de constituio de identidades tnicas, toman-do como referncia o caso recente dos ndios Kuntanawa. Este caso pode ser tomado como um exemplo de interesse da importncia da etnicidade neste caso, indgena em proces-sos polticos e territoriais contemporneos na Amaznia. O enfoque adotado no delimita porm o foco de ateno ao grupo auto identificado etnicamente, mas em alguma medida se dirige tambm populao cujos direitos enquanto povos tradicionais, foram reconhecidos pre-viamente com a criao de uma Reserva Ex-trativista, a do Alto Juru, e que incluem mi-grantes, caboclos e misturados, parte deles residente hoje no territrio da Reserva, parte em cidades vizinhas. Trata-se assim de procurar entender quais os processos envolvidos na auto diferen-ciao tnico num contexto em que a popula-o est conectada por redes de parentesco e de vizinhana, recobrindo tanto reas de floresta como de ncleos urbanos. Procuramos guiar a argumentao em duas direes: por um lado, evitar a reduo dos processos de auto con-stituio tnica a aes guiadas por interesses poltico e territoriais, e, por outro, levar em conta os processos de ontognese a operantes. Procuramos tambm no esquecer os efeitos pragmticos dessas reivindicaes sobre as rela-es sociais preexistentes e que criam na rea novas cises e conflitos. Nessa argumentao, nosso dilogo principalmente com Max We-ber e com as teorias de etnicidade apoiadas na tradio weberiana.

    1. A PAIsAGEM MULTITNICA NO ALTO-JURU

    O vale do alto rio Juru e sua vizinhan-a uma regio historicamente ocupada por povos indgenas do tronco lingustico Pano, conforme os registros histricos mais antigos (TASTEVIN, 2009). Esses grupos, a partir de finais do sculo XIX, foram expulsos, persegui-dos, mortos ou capturados, em consequncia de levas sucessivas de migrantes (nordestinos e cearenses, em sua grande maioria) que visavam a ocupao econmica das ricas florestas de terra firme para produo de borracha. Mui-tas etnias indgenas foram dadas como desa-parecidas nesse processo (RIBEIRO, 1979).Os patres dos seringais organizavam as chamadas correrias, expedies armadas que cercavam e invadiam as malocas indgenas, a pretexto de retaliar ataques indgenas ou simplesmente para tomar seus territrios, dizimando seus moradores, mas tambm aprisionando mul-heres e crianas (WOLFF, 1999; PANTOJA, 2008; IGLESIAS, 2010). No mesmo perodo, povos indgenas oriundos do vale do Ucayali, no Peru, per-tencendo ao tronco lingustico Arawak, mi-graram para o vale do Juru, enquanto parte dos povos do tronco Pano refugiou-se nas ca-beceiras dos afluentes do Juru e do Purus, alguns em territrio peruano, para escapar s correrias(IGLESIAS,2010). Essa movimenta-o de povos autctones e migrantes em um tempo de violncia deu origem ao atual mo-saico tnico que caracteriza a regio. Entre ess-es povos indgenas deslocados e os migrantes de origem nordestina ocorreram unies conjugais, e hoje em dia muitas famlias de seringueiros contam com ascendentes indgenas, sobretudo mulheres raptadas enquanto crianas, em meio

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    ao massacre de aldeias inteiras (WOLFF, 1999; PANTOJA, 2008). Em todo o Estado do Acre, o termo caboclo utilizado como sinnimo para ndio, tanto com referncia queles que se auto-identificam como tais, quanto em rela-o aos descendentes dessas unies conjugais entre povos nativos e migrantes nordestinos. Os caboclos so constrastados com os caris, como ndios em relao a brancos. Hoje, no Alto Juru acreano1, esta mul-tiplicidade tnica ocupa um tecido contnuo de terras indgenas e unidades de conservao le-galmente reconhecidas, formado pela Terra In-dgena Ashaninka do rio Amnia, pela Reserva Extrativista do Alto Juru, pelas Terras Indge-nas Ashaninka e Kaxinaw do rio Breu, pela Terra Indgena Jaminawa-Arara (Shanendawa) do rio Bag, formando um corredor que se pro-longa com a Terra Indgena Kaxinaw do rio Jordo e de outras terras indgenas e reservas extrativistas no vizinho vale do rio Tarauac. Em 1990, ano de sua criao, a Reserva Extrativista do Alto Juru abrigava cerca de 900 famlias extrativistas, em seus 506 mil hectares. Essas famlias compunham a popu-lao tradicional a que se refere o Decreto de criao da Reserva. Na ocasio, os seus mora-dores tradicionais eram representados pela Associao dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juru, sem se confundirem com os moradores das Terras Indgenas contguas com a Reserva. Parte dos seringueiros e agricultores que formavam a populao tradicional indicada pelo Decreto de criao eram caboclos, que conviviam com caris e que ocuparam, na fase inicial de luta

    pela criao da Reserva e de sua implantao, no final da dcada de 1980 e incio da dcada de 1990, cargos importantes na diretoria da As-sociao e nas cantinas da Cooperativa criada pelo movimento social dos seringueiros. No final da dcada 1990 e inicio da dcada de 2000, surgiram dois movimentos de autoidentificao de grupos locais, enquanto povos indgenas, acompanhados de demandas territoriais que se superpunham naturalmente com o territrio da Reserva. Um desses movimentos, iniciado no fi-nal da dcada de 1990, o do povo autode-nominado de Arara (inicialmente designado como Apolima-Arara). Essa demanda deu origem identificao e delimitao pela Funai, em 2008, da Terra Indgena Arara do Rio Am-nia, que se sobrepe parcialmente ao territrio da Reserva (na margem direita do rio Amnia, afluente esquerdo do Juru), atingindo cerca de 50 famlias no identificadas como indgenas. Esta Terra Indgena sobrepe-se ainda, na mar-gem esquerda do rio Amnia, a um Projeto de Assentamento do Incra e ao Parque Nacional da Serra do Divisor . A demanda da Terra In-dgena Arara do Rio Amnia foi pontuada por conflitos territoriais com moradores da Reser-va e do Projeto de Assentamento, alguns deles com laos de parentesco com os ndios agora autodenominados Arara, e que se arrastam at hoje. Outra nova demanda territorial est as-sociada aos Kuntanawa, no alto rio Tejo, um afluente da margem direita do Juru. Nesse caso, o territrio reivindicado est inteiramente sobreposto rea da Reserva. At o momento

    1. Referimo-nos em particular ao Municpio de Marechal Thaumaturgo, fronteira com o Peru.

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    este pleito, embora reconhecido pela Funai, no conta com um processo administrativo de criao de Terra Indgena aberto, no havendo tampouco confrontos abertos com os morador-es brancos (PNCSA, 2009). Os Arara e os Kuntanawa assemelham-se por serem compostos de caboclos no sen-tido regional, isto , por contarem entre seus antepassados sobreviventes de povos indgenas que escaparam perseguio e destruio fsica e cultural. Tambm se assemelham por terem perdido as lnguas e formas de organizao so-cial de seus grupos de origem, e porque se mis-turam por casamento com migrantes nordes-tinos. Tm em comum, finalmente, o processo pelo qual se reconstituram recentemente como grupos etnicamente autoidentificados e que de-mandam direitos territoriais. H, contudo, diferenas. Os Kuntanawa correspondem a uma nica parentela uma comunidade de descendncia com continui-dade genealgica ao longo de cerca de trs ge-raes, que remonta a mulheres indgenas so-breviventes de correrias (PANTOJA 2008). Enquanto, no caso dos Arara do rio Amnia, a prpria identificao do grupo como cabo-clos criticada por regionais, especialmente enquanto um nico grupo com direito a uma terra contnua, os Kuntanawa so vistos sem contestao como aqueles que no passado eram chamados, s vezes, de caboclos do Milton. O nome Kuntanawa, que tomou o lugar do termo genrico e pejorativo caboclo, alm de fazer parte da tradio oral do grupo familiar, encontra-se registrado na crnica missionria (TASTEVIN, 2009: 61-71) e figura no mapa etnogrfico de Curt Nimuendaj. Pode-se diz-er, portanto, que os Kuntanawa compartilham uma memria de um passado histrico comum. J os (Apolima) Arara do rio Amnia

    so formados por diferentes troncos famili-ares, tendo, um desses troncos, antepassados entre os Kaxinaw do Jordo e os Arara do rio Bag, enquanto outras famlias remontam aos Chama/Conibo do Ucayali e os Santarrosinos de origem menos clara (talvez Canelos), unidos todos por vrias unies com descendentes de migrantes nordestinos que passaram a residir, ao longo do ltimo sculo, no alto curso do rio Amnia, sem formar um nico grupo de paren-tesco ou unidade poltica (AQUINO, 2010). Notamos assim que os atuais Kuntana-wa se distinguem tambm dos Arara do rio Amnia por terem atravessado dois processos recentes de comunitarizao: primeiro, pas-sando de caboclos a seringueiros, que obti-veram importantes conquistas enquanto povos da floresta, e depois passando de seringueiros a Kuntanawa. Com efeito, o movimento so-cial que levou criao da Reserva projetou a identificao de seringueiros no apenas como um grupo profissional, mas como um povo da floresta que compartilhava um modo de vida similar ao dos povos indgenas. Este processo de comunitarizao da categoria de seringueiros teve um papel essencial na mo-bilizao poltica local e nacional que levou conquista das Reserva Extrativistas (ALMEIDA 2004). O ponto a ressaltar que, nessa fase, os seringueiros incluam tanto os descenden-tes de caris, como os caboclos seringueiros, descendentes de intercasamentos de povos na-tivos com os migrantes. Contudo, apesar do uso poltico da categoria de povos da floresta na dcada de 1990, para abranger tanto os povos indgenas vizinhos, como os caboclos seringueiros no interior da Reserva, as diferenas entre cabo-clos e caris reapareceram e foram reavivadas medida que, j no final da segunda metade

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    da dcada de 1990, os caboclos sentiram-se marginalizados e discriminados no interior da Reserva pelas novas direes da Associao e pela administrao municipal. Essa discriminao apoiava-se, claro, em atitudes arraigadas h muito na populao regional de origem nordestina. Os descendentes dos arigs, como eram chamados os migrantes cearenses, viam-se como marcadamente dife-rentes dos caboclos. Entre os traos do habi-tus branco ,estava tanto comer farinha e usar leite em p, quanto fazer muita borracha2. Entre os traos associados pelos caris aos caboclosestava a pagelana (e o potencial para fazer feitio) e a falta de nimo para cortar seringa, alm de supostos costumes como o de comer sapo. Os caboclos brabos eram men-cionados amide como bichos brabos,para os quais era lcito, no passado das correrias, matar sem maiores escrpulos (curiosamente, os arigstambm eram descritos como brabos ao chegar na floresta, nesse caso, pela ausncia de experincia e conhecimento sobre a vida nos seringais). Entre esses seringueiros de origem migrante, havia a percepo de uma comuni-dade tnica ativada, nos termos de Weber, pela coexistncia conflitiva com grupos indgenas vizinhos com histrias de massacres, atribu-dos por um grupo ao outro, mas tambm com histrias de casamentos e relaes de afinidade duradouras e alimentada pela memria de um passado migrante comum. Contra esse pano de fundo que se distinguiram, no interior do territrio da Reserva, as novas comunidades

    tnicas dos Apolima-Arara e dos Kuntanawa. Vamos agora concentrar nossa ateno ao caso dos Kuntanawa, deixando a complexidade da situao dos Apolima-Arara para uma anlise separada. Com recurso noo de comuni-dade tnica no sentido discutido acima, bus-caremos agora compreender as formas de ao recentes dos Kuntanawa, e dos seringueiros e agricultores com quem se relacionam.

    2. KUNTANAWA, sERINGUEIROs

    Os Kuntanawa de hoje so os descen-dentes de um ndio e de uma ndia capturados quando crianas, nas matas do rio Envira, por correrias, no incio do sculo XX, separados de seus grupos originais e incorporados so-ciedade de seringais.3 A menina ndia, batizada pelos brancos de Maria Regina da Silva, viveu praticamente toda sua vida no rio Jordo sob a autoridade de patres seringalistas, e deu luz, em 1928, a mulher Kuntanawa mais velha hoje viva, dona Mariana. O menino ndio, cap-turado nos idos de 1900, tambm cresceu no rio Jordo, onde se casou com uma filha de cea-renses migrantes e faleceu em seguida. Desta unio nasceu o lder mais velho dos Kuntanawa de hoje, seu Milton, que por volta de 1954, uniu-se conjugalmente com dona Mariana, ai-nda no rio Jordo. No ano seguinte, o casal estabeleceu-se no rio Tejo, onde pai e filhos tra-balharam como seringueiros para patres at o final dos anos de 1980.

    2. Assim, diz-se que famoso pag Crispim, que transitava entre as cabeceiras do Bag e do Riozinho do Humait (hoje TI Arara do Rio Bag e TI Arara do Humait), reservava para os filhos de sua esposa cario fornecimento de leite em p, afirmando que cari criado com leite em p, caboclo criado com caiuma.3 Para a narrativa que segue, ver Pantoja 2008.

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    Dona Mariana e seu Milton geraram uma extensa prole que hoje estende-se por seis geraes. Esse extenso grupo de pessoas ligadas por laos de parentesco sob o comando de uma liderana reconhecida (seu Milton), sempre foi conhecido nos seringais como caboclos; ou os caboclos do Milton. Dona Mariana era a cabocla Mariana, e assim por diante. Foi este mesmo grupo que teve ativa e destacada par-ticipao nas lutas que resultaram, em 1990, na criao da Reserva Extrativista do Alto Juru: os Milton, como a parentela costumava ser tambm identificada, forneceram a principal base poltica local do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) no alto rio Tejo, ao lado de famlias no rio Bag. De fato, desde 1988, o grupo familiar de seu Milton atuou como guarda-costas de Antonio Batista de Macedo (lder regional do CNS), e vrios filhos do seu Milton tornaram-se gerentes de cantinas da Cooperativa insta-ladas em 1989. Nos primeiros anos de 1990, o prprio seu Milton exerceu um mandato de presidente da Associao, cujo primeiro ocu-pante havia sido Francisco Barbosa de Melo, o Chico Gin ele prprio descendente de Rita, uma ndia do Jordo com histria simi-lar de Regina, e provavelmente aparentada a ela. Seu Milton teve, como sucessor, o antigo arig, Antnio de Paula. Mas, aps a der-rota de Chico Gin, como sucessor de Antnio de Paula, j na virada de 2000, iniciou-se um perodo prolongado de controle da mquina da Associao por um grupo de jovens liderados por Orleir Fortunato que, visando galgar cargos no cenrio poltico regional, faziam questo de reforar suas diferenas em relao aos lderes anteriores, utilizando-se de hostilidade face aoscaboclos de uma maneira geral (COSTA, 2010).

    claro que o envolvimento com a Reser-va nunca apagou a alcunha de caboclos e suas conotaes pejorativas. Durante esse perodo, porm, essa alcunha comeou a ser ostentada com orgulho: Ns somos caboclos!. Essa mudana no emprego de caboclo, antes mes-mo que emergisse a identidade Kuntanawa, ocorria em associao com o uso da ayahuasca em cerimnias que resultam de diferentes fon-tes, incluindo-se a dos povos indgenas vizinhos e das religies daimistas. Merece aqui destacar o papel e carisma de Antonio Macedo, antigo sertanista, ligado ao movimento social indgena e ento coordenando regionalmente o CNS. Macedo se tornou grande amigo da famlia de seu Milton e os presenteou seguidamente com cerimnias ayahuasqueiras. Assim, o contraste entre os brancos e os caboclos no era novo, mas, at o final da gesto do arig ,Antnio de Paula no havia dado origem a um conflito poltico. Mas na nova gesto de Orleir, o contraste acentuou-se e tomou uma forma claramente poltica. ento, para voltar ao vocabulrio de Weber, que o contexto de vizinhana e conexo ganha um carter de antagonismo aberto. quando o conflito poltico, aguado pela marginalizao dos caboclos dos destinos da Reserva, e pelo fracasso de tentativas frustradas de retomar a Associao com apoio nas antigas bases do alto Tejo e do Bag, ganha novos contornos com a reivindicao de um projeto prprio e separado por parte Kuntanawa. Enquanto isso, a poltica dos seringueiros que, durante a dcada de 1990, substituram a produo de borracha pela agricultura e pecuria como fonte de renda, combinada a empregos pblicos e servios para a prefeitura tornou-se crescentemente confundida com a poltica municipal, e cada vez menos associada

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    a um projeto de povos da floresta. Em outras palavras, enquanto os caboclos se comunitar-izavam, os caris se societarizavam ao en-trar na esfera poltico-partidria convencional. A Reserva perdeu progressivamente o papel de exemplo inovador na regio, papel que foi assumido no final da dcada de 1990 pelos bem-sucedidos Ashaninka do rio Am-nia, e pelos vizinhos Kaxinaw do rio Jordo. O exemplo dos Ashaninka, em sua Terra Ind-gena, prxima sede municipal, foi particular-mente impressionante: menosprezados como os Campa at 1990 pelo menos, j aps a vi-rada do sculo ,a principal parentela deste gru-po havia se convertido em uma das principais foras polticas indgenas do Estado do Acre, como porta-vozes da conservao ambiental e do tradicionalismo tnico, como lderes de projetos ecolgicos e econmicos exemplares, e como participantes da administrao estadu-al. Em contraste com essa brilhante trajetria, a jovem diretoria que havia assumido a As-sociao em 2000, terminou sua trajetria na priso por envolvimento com trfico de dro-gas, enquanto se multiplicaram as Associaes concorrentes no interior da Reserva. O aban-dono do movimento dos povos da floresta foi bem expresso em um encontro recente que reuniu Ashaninka e ex-seringueiros moradores

    da Reserva, quando um destes disse: Ns tnhamos cultura, agora no temos mais.4

    Essa linha de anlise pe em evidncia os antagonismos crescentes entre seringueiros e caboclos como pano de fundo para constitu-io de uma comunidade tnica Kuntanawa. Esse processo de comunitarizao pe em ao vrios dos ingredientes mencionados por We-ber, a comear pela memria de um destino comum, tal como evocada pelos mais vel-hos, retrocedendo at s caboclas capturadas durantes as correrias do incio do sculo, mas incluindo tambm reiterao constante do hab-itus que distingue os caboclos dos outros.5

    Na formao de comunidade tnica, deve estar presente a percepo subjetiva de uma disposio (Anlage), expresso que tem aqui a conotao de uma caracterstica fsica ou de comportamento, ou ainda de um habitus exterior, expresso que Weber emprega com o sentido de uma atitude ou aparncia cor-poral adquirida culturalmente, e que absorve, por assim dizer, as disposies herdadas. Dis-posies podem ser caractersticas como cabe-lo liso e negro, pele escura e olhos amendoad-os, e um habitus distinto inclui o uso de cabelos longos, pintura corporal e faixas na testa, alm de modos de andar e de falar6. Lembremos, contudo, que na acepo

    4. Sobre este processo poltico, consultar Costa( 2010). Vale registrar, por outro lado, que a partir do incio do sculo XXI, num movimento liderado pelos Ashaninka do rio Amnia e com a participao da Comisso Pr-ndio do Acre, uma reaproximao e aliana vm sendo reconstruda com os moradores da Reserva com base em aes de combate ao desmatamento, notadamente a implantao de experincias agroecolgicas, e tendo como pano de fundo a discusso sobre gesto territorial da regio e suas fronteiras, nacionais e internacionais. Projetos financiados pelo Programa Arpa/Funbio (entre 2008 e 2011) e o Plano de Manejo da Reserva expressam esse movimento.5. A publicao de livros com verses escritas da memria oral das matriarcas indgenas dos Kuntanawa (WOLFF, 1999 e PAN-TOJA, 2008), assim como a elaborao da Enciclopdia da Florestacom destaque visual e textual para os Ashaninka ( CUNHA E ALMEIDA, 2002), foi um componente desse processo de revalorizao da memria oral como fonte de legitimidade externa.6. O termo habitus, tal como usado aqui por Weber, remonta escolstica medieval, e no deve ser lido segundo as frmulas bem conhecidas de Bourdieu. Neste sentido, est relacionado com o conceito de disposio (Anlage), que tem aqui uma conotao de arranjo de partes. H disposies que so inerentes ao corpo (podem ser herdadas), e as que so adquiridas. Habitus so dis-posies adquiridas, mas que se tornam difceis de mudar ,segundo a formulao de Aquino, apoiada por sua vez em Aristteles (cf. ALMEIDA 2000).

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    7. Por tradio inventada entende-se um conjunto de prticas...de natureza ritual ou simblica, [que] visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relao ao passado.(HOBSBAWM E RANGER 1984,p:9)8. Dito ainda de outra forma pelo mesmo autor, a conscincia tribal resulta em geral (embora no exclusivamente) de um des-tino poltico comum. esta conscincia que far com que o grupo seja capaz de se reconhecer enquanto tal e unir-se contra os outros.

    weberiana no so disposies ou habitus que constituem uma comunidade tnica, nem mes-mo a percepo subjetiva de que elas existem, e sim a mobilizao dessa percepo como referncia para a ao social, em particular de cunho poltico. Esse parece ter sido um com-ponente importante no processo de comuni-tarizao Kuntanawa. Recordemos ainda que a existncia de disposies e de habitus em comum no uma condio sine qua non para a comunitarizao: esta pode comear ativando uma memria de migrao comum, e s de-pois reconstituindo um habitus em comum um processo que pode estar em curso no caso Arara do Amnia. No caso Kuntanawa, havia um autore-conhecimento pr-existente do grupo inteiro como caboclos, que foi sendo acentuando e transformando medida que passaram a se auto identificar enquanto ndios Kuntanawa, e no mais caboclos, que no eram sujeitos de direitos. Ao longo desse processo, um habitus de caboclos foi reconstrudo, levando a uma reformulao de modos de vestir, a uma nova postura e atitude, e novos modos de pensar. Chegamos aqui a um ponto importante. Processos desse tipo tm sido descritos como inveno da tradio. Mas essa acepo, se tomada como a formao artificial de uma comunidade tnica, a partir de interesses poltico-econmicos, recobre apenas um dos mecanismos possveis de comunitarizao. We-ber tinha aqui em mente, assim como Benedict Anderson, a formao de Estados Nacionais

    modernos7. Como foi dito acima, a crena na ances-tralidade ou ascendncia comum no basta para constituir uma comunidade tnica, mas um componente importante de comunidades de cl na linguagem de Weber. Ora, no caso Kun-tanawa, h tanto uma continuidade genealgi-ca que leva a mes indgenas fundadoras, como uma comunidade de descendncia, inclusiva e mais vaga, que remete aos povos indgenas que falam lnguas aparentadas e que alguns Kuntanawa esforam-se hoje para aprender. Assim, os Kuntanawa so tanto comunidade tnica, como comunidade de parentes su-perposio essa que expressa na identificao de uma com a outra. Nessa viso, a crena num parentesco de origem justifica a auto percepo subjetiva daqueles que so diferentes dos demais, e serve tanto para auto-delimitar na micro-escala os Kuntanawa com uma memria genealgica lo-cal, como para substituir a categoria pejorativa de caboclos pela de ndios unidos enquanto parentes com ancestrais precolombianos co-muns. Nos dois planos, a comunitarizao as-sociada a novas estticas corporais e a novos ritos coletivos. A comunidade tnica tem, portanto, uma clara e inegvel dimenso poltica8. Mas o que marca a comunidade tnica no so sm-bolos arbitrrios, e sim habitus disposies difceis de mudar que so reconfiguradas.

    3. POLTICA ONTOLGICA

  • 126

    Talvez parte da dificuldade de escapar s antinomias entre autenticidade tnica e in-veno de tradies venha da conceitualizao que define grupos tnicos como forma de organizao social, mas sem recurso com-plexidade das diferentes formas de comunitar-izao. Essa conceitualizao restritiva talvez tenha origem em uma leitura excessivamente funcionalista de Weber, por parte de Fredrik Barth (2000), ou de seus repetidores. Nessa leitura, pe-se em segundo plano as crenas em algo comum como fundamento da ao comunitria (tradicional ou afetiva), sejam elas referentes a uma ancestralidade comum, se-jam referentes a destino comum, sejam refe-ridas a um habitus percebido como igualmente comum, retendo-se as regras que governam os encontros sociais intertnicos9. Nisso, no limite, os traos diacrticos passam a ser vis-tos como manobras de um jogo de estratgia. Comecemos com o papel da ancestrali-dade. O fato que no Alto Juru a linguagem genealgica importante como fundamento das afirmaes locais tanto de quem se con-sidera, quanto de quem considerado como n-dio tanto, ou mais, do que a territorialidade histrica. Isso ficou claro no caso da histria de constituio dos Kuntanawa, retratada em livro que tratado pelas prprias lideranas do grupo como um laudo que comprova seu parentesco original com ndias capturadas na mata (PANTOJA, 2008). Nesse caso, a lingua-gem genealgica ser descendente de uma n-

    dia pegada a lao atravs de conexes claras na memria de pessoas vivas critrio visto como auto evidente e fundante para a crena na existncia de algo comum ao grupo, e que o fundamento de suas relaes comunitrias. Os Kuntanawa, sob esse ponto de vista, so tanto uma comunidade tnica como uma comuni-dade de parentesco. Essa auto imagem parece, primeira vis-ta, contrastar com a perspectiva antropolgica que enfatiza, em lugar de parentesco gene-algico, a produo de pessoas atravs de rela-es sociais. Sob esse ponto de vista, perten-cem ao grupo dos Milton aqueles que foram criados por seu Milton e por dona Mariana, aqueles que compartilharam a vida cotidiana e cresceram juntos, geograficamente ou no, e que foram formados por laos de amor e afeto. Mais do que genealogia, o que importa ter morado junto e ter sido criado junto (PAN-TOJA 2008; INGOLD, 2007, p. 172-188)10. Essa viso tambm conduz ltima verso que Weber d para as bases nas crenas tnicas: a conduo da vida cotidiana. E permite dar conta igualmente de genros e noras e seus de-scendentes, bem como dos membros adotivos que so hoje considerados parte do grupo. Mas a viso local no separa rigidamente parentes por criao de parentes: todos sabem que os Kuntanawa incluem de fato filhos criados por seu Milton, sem que sejam tratados sob uma categoria separada. Para os Kuntanawa, de fato, no h oposio entre fazer parte do grupo de uma maneira ou de outra.

    9. Considero que a caracterstica organizacional que deve ser geral em todas as relaes intertnicas um conjunto sistemtico de regras que governam os encontros sociais intertnicos. (BARTH 2000: 35)10. Ingold explora a tese de que as relaes entre os seres humanos, e entre eles e seu ambiente, no podem ser explicadas por aptides dadas geneticamente, mas sim como efeitos de um habitar (dwell) que resulta em habilidades, sensibilidades e disposies particulares e transformadas no tempo. Uma aplicao particular dessa tese consiste em privilegiar o habitar em detrimento da genealogia como base de reivindicaes territoriais.

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    Consideremos agora o papel da rein-veno de novos traos culturais Kuntanawa no perodo recente como o uso de cocares e pintura corporal. Manuela Carneiro da Cunha j havia advertido contra a idia de que to-dos os traos dos costumes e do habitus os traos culturais teriam papel meramente instrumental, qual seja, o de servir como mar-cas de diferenas articuladas a fins polticos ou econmicos (CUNHA 1987, p. 97-108). Se-gundo afirma, no somente o papel diacrtico dos traos culturais que importa, pois depois que a explicao funcionalista ou instrumental termina, fica um resduo de sentido. Esse re-sduo, a nosso ver, aponta justamente para aq-uilo que Weber chamou de crena na comu-nalidade, subjacente ao modo de vida ou na memria histrica que distinguem os membros do grupo dos outros com os quais eles se relac-ionam. Voltando ao caso dos Kuntanawa. No contexto poltico em que caboclos (sem per-sonalidade jurdica e objeto de preconceitos misturados a temor por seus poderes msticos) tornam-se reconhecidos nacionalmente como ndios (sujeito potencial de direitos e objeto de reverncia internacional), os vrios aspec-tos do modo de vida costumeiro a cultura tornaram-se objetos de autoconscincia e de reflexo. Quando isso ocorre, esses componen-tes do habitus passaram a ser autoreconheci-dos com orgulho. Contudo, passaram ao mes-mo tempo a ser objeto de ativa reconstruo, porque agora no basta o modo caboclo de fumar, de danar e de cantar: o habitus passa

    a conter cantos na lngua, o uso do tabaco maneira indgena e corpos pintados com a pele visvel. Ou os dois habitus se alternam osci-lando do ritmo cotidiano de vida para as oca-sies rituais e solenes, na cidade ou na aldeia. Os traos diacrticos, eleitos num con-texto poltico, precisam ser capazes de operar contrastes, e, nesse sentido, a etnicidade opera como uma linguagem ( CUNHA, 1987, p. 97-108). Contudo, dito isso, as diferenas cult-urais que sero invocadas num contexto de demarcao de diferenas e busca por direitos, so imprevisveis: elas sero convocadas a par-tir de um repertrio que depende da tradio local, da vizinhana, e da capacidade de inven-o11. Carneiro da Cunha chama ateno, as-sim, para o fato de que, embora grupos tnicos no sejam explicveis pela cultura, a cultura entra de modo essencial na etnicidade (Idem p. 101). Mais recentemente, ainda lidando com o carter irredutvel da cultura, Cunha (2009, p. 311-373) chamou a ateno para a coex-istncia da cultura e da cultura, distino que pode ser interpretada como a que existe entre o domnio do que temos chamado, seguindo We-ber, de habitus e disposies, e o das marcas externas usadas em contextos intertnicos para expressar reivindicaes polticas e econmi-cas. Uma tradio recente de pensamento sobre essas questes associa-se aos estudos dos ndios do Nordeste e representada por Joo Pacheco de Oliveira (2004, p. 13-38). Nessa perspectiva, central a conexo indissocivel entre processo de territorializao e a et-

    11. Os traos selecionados para marcar diferenas podem ou no surgir a partir de categorias brancas da etnificao, con-forme Bruce Albert (1995,p:4).

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    nicidade. Ambos so vistos como fenmenos de ordem poltica e que tm, na vinculao a limites territoriais geridos pelo Estado ,um aspecto chave de sua existncia. Para o autor, identidade tnica deve ser pensada no contexto dos processos polticos por meio dos quais ela constituda, sendo o Estado e suas polticas de gesto territorial um agente central. A cir-cunscrio de comunidades indgenas a um territrio um ato poltico que as transforma em coletividades organizadas, com identidades formuladas, com suas instncias prprias de poder e seu patrimnio cultural, que reestru-turado em funo da nova situao12. Mas essa perspectiva, que se enraza naturalmente em Weber, no esgota o assunto. Assim, Oliveira afirma tambm que a natureza dos grupos t-nicos, tomando a situao do Nordeste como parmetro, no s poltica, pois o que man-teria as comunidades unificadas internamente lhes seria a dimenso religiosa que permite, com ajuda dos encantados, viajarem ao dis-tante passado para recuperar seus vnculos originrios e os atualizarem. Assim, o paradoxo de lidar com grupos que se dizem originais ,embora surgidos na cena pblica h cerca de vinte anos resolvido na expresso viagem da volta, uma espcie de memria sem refern-cia genealgica ou histrica13 . Qual porm o nexo entre a etnicidade enquanto ato poltico e o sentimento de referncia origem? Para evitar o dilema que ope pragma-

    12. A noo de territorializao... um ato poltico constituidor de objetivos tnicos atravs de mecanismos arbitrrios e de arbitragem (no sentido de exteriores populao considerada e resultante das relaes de fora entre os diferentes grupos que integram o Estado) que estou propondo tomar como fio condutor da investigao antropolgica (Oliveira, 2009, p. 23; grifo do autor).13O que seria prprio das identidades tnicas que nelas a atualizao histrica no anula o sentimento de referncia origem, mas at mesmo o refora. da resoluo simblica e coletiva dessa contradio que decorre a fora poltica e emocional da etni-cidade (Oliveira 2004: 33).

    tismo e essencialismo, tambm apontado por outros autores (como Arruti, 1997), convm voltar mais uma vez formulao de Weber. De fato, como vimos acima, Weber j havia ar-gumentado saciedade que a comunitarizao tnica no se explica por um fato biolgico (raa, disposies inatas), nem por um fato cultural dado (habitus), nem sequer por uma histria pregressa objetiva, genealgica ou no. Essa a operao de desnaturalizao sociolgica da comunidade tnica pelo terico. Mas Weber no deixou de lado o fato de que a raa, o habitus e um destino comum so parte da realidade das comunidades, enquanto objeto de crenas subjetivas. Est em questo aqui a natureza dessas crenas subjetivas. Ora, as crenas subjetivas so essencialmente a afirmao nativa de pressupostos da sociali-dade. Trata-se aqui principalmente do pressu-posto de que existe algo em comum, seja nos corpos, na histria, ou no esprito, aos mem-bros de um grupo. Nesse sentido, a etnici-dade apenas um exemplo de um pressuposto subjacente formao de grupos de parentesco, grupos religiosos e nacionalidades. Naes e nacionalidades se caracter-izam pelo fato de que seus membros orientam aes entre si, e para com os outros, pela crena apoiada na experincia, histria do povo, em raa, no carter natural do habitus como a uma aparncia de uma substncia compartil-hada. Nada disso incompatvel com o carter

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    pragmtico de movimentos tnicos e nacionais. Mas esse algo em comum um outro nome para as temidas essncias: um povo, uma raa, um destino. E o fato de que atores sociais persigam objetivos pragmticos no apenas no dispensa, mas amide requer que organizem de maneira afetiva e tradicional sua relao uns com os outros e com o mundo circundante referindo-a a essncias sejam estas deuses, es-pritos, ou raa, povo, tradio. Movi-mentos polticos podem conter pragmatismo e essencialismo ao mesmo tempo, em outras palavras, incluem ontologias. O termo designa aqui um conjunto de pressupostos sobre o que existe no mundo natural e social. Ontologias que so de resto recon-strudas e tm natureza sempre histrica so referncia para ao poltica. Elas precisam ser transformadas para continuarem a ter validade, isto , para serem corroboradas pela vida. A expresso crenas subjetivas em parte re-sponsvel pela desvalorizao do papel funda-mental que tm, para muitos grupos sociais, os fundamentos corporais, histricos e msticos da vida social. O cientista social no obriga-do a acreditar neles, mas precisa descrev-los e etnograf-los. to importante descrever e entender o processo de auto constituio de comunidades indgenas da perspectiva prag-mtico-poltica,quanto do ponto de vista de suas ontologias em elaborao. essa a direo que uma viagem no modo do sonho indica, como nas miraes ayahuasqueiras. No uma volta ao passado, mas o acesso ao presente verdadeiro, isto , a uma realidade subjacente aparncia imediata e que fornece ao uma orientao poderosa. Voltemos ao caso dos Kuntanawa: o contato, para eles, recente, pouco mais de cem anos, e ainda esto vivos representantes

    da gerao seguinte ao contato. Nesse sculo, perderam-se a organizao social, a lingua-gem, a esttica corporal, a mitologia. Mas na vida cotidiana, atravessando a sociedade de seringal e incorporados a ela, conservaram-se e recriaram-se conhecimentos sobre a floresta e suas entidades e processos, visveis e invisveis animais e sua cincia, assombros e cabojos, encantados e caboclinhos do fundo. Como uma via de acesso a esses mundos indgenas e caboclos, no s pags indgenas respeitados re-gionalmente atuavam como guias, mas tambm mestres de cip seringueiros, atuando estes clandestinamente sob o sistema de seringal at a dcada de 1980, quando os barraces funcio-navam ainda no rio Tejo. No s pags, como Crispim nas cabeceiras do Bag e do Humait, mas tambm caboclos comuns ,amansados, e seus descendentes incorporados na estrutura dos seringais eram perfeitamente identificveis entre o conjunto dos seringueiros, e sempre foram conhecidos e temidos por serem bons conhecedores de remdios da mata, capazes de porqueiras. No foram poucas as caboclas consideradas excelentes parteiras. Os seringueiros do alto Tejo e do Alto Juru no apenas conviviam com as parentelas de caboclos descendentes de mulheres ndias apresadas nas correrias, mas tornaram-se viz-inhos dos caboclos mansos que viviam aldea-dos nas fronteiras dos seringais no Amnia, no Jordo, no Breu (IGLESIAS, 2010). Estes grupos haviam realizado desde a dcada de 1970, suas prprias trajetrias de conquista de territrio e de revitalizao de conhecimentos, linguagem, rituais e cosmologias. Os Kuntana-wa, ao deixarem de ser caboclos para se tor-narem ndios, aliaram-se a esses povos como seus principais interlocutores para reaprender lngua, cantos, e ritos. Mas tambm se utilizam

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    sistematicamente das tcnicas xamnicas e dos rituais coletivos para se reconstrurem como entes sociais em outras palavras, para se re-construrem no plano ontolgico. Desse ponto de vista, adereos plumrios e pintura corpo-ral alm de sua importncia como marcas diacrticas ou cultura para uso externo, so habitus que fazem pessoas Kuntanawa.

    4. CONsIDERAEs fINAIs

    Um balano parcial da contribuio des-sa perspectiva com origem em Weber comeou com a rejeio da explicao da formao de comunidades tnicas como resultante, seja da raa, seja do habitus, seja da memria do pas-sado, e com a afirmao do carter poltico dos processos de comunitarizao. Mas um segun-do resultado do balano foi recuperar a nfase, tambm weberiana, no papel dos referenciais tnicos para ao, vistos agora como crenas na existncia de uma essncia comum a um grupo partindo da percepo das disposies cor-porais e de um passado comum que formam um contraste do grupo em questo com seus vizinhos. Com essa dupla explicao para os processos de comunitarizao uma causal-in-strumental, outra compreensiva-interpretativa , podemos evitar relegar ao limbo da iluso a percepo de pertencimento e de origem comum. Em vez de opor o ponto de vista desen-

    cantado da anlise sociolgica ao ponto de vis-ta do nativo, a tarefa que se apresenta assim a de reconstruir um ponto de vista nativo como pressuposto ontolgico de sua ao poltica 14. Para os Kaxinaw (e Pano em geral), e tambm para no-indgenas que utilizam a aya-huasca, o mundo visvel na vida cotidiana se distingue do mundo verdadeiro que visvel em certos contextos rituais, ou em sonho, ou mesmo aps a morte. Ora, para muitos dos Kuntanawa a percepo de si mesmo como indgena associa-se com a presena dessa re-alidade profunda na fora da bebida sagrada. Neste caso, evidente que ser ndio correspon-de a uma realidade, e no a uma mera ideolo-gia, como quis, por exemplo, um funcionrio do ICMBio que, ao voltar do Festival Cultural Pano, realizado pelos Kuntanawa em julho de 2011, resumiu sua opinio: Pra mim, isso meio de vida. Note-se que essa dupla dimenso prag-mtica e ontolgica dos movimentos tnicos no descarta de modo algum a relevncia da dimenso histrica dos processos de destribal-izao, migrao, explorao e reorganizao poltica que so o pano de fundo para o au-torreconhecimento e o heterorreconhecimen-to dos novos e velhos coletivos indgenas. O aporte histrico objetivo no caso dos Kun-tanawa, na forma da reconstituio escrita da histria oral, da cartografia dessa histria, e de menes nos relatos de Tastevin e nos mapas de Nimuendaj tem tanta importncia, seja para

    14. Neste sentido, Mrcio Goldman (2009, p. 12) faz uma crtica da abordagem comumente feita pela sociologia dos chamados novos movimentos sociais, ou culturais, que insiste em tratar com categorias bem estabelecidas processos efetivamente novos. Este anacronismo se estenderia, segundo o autor, ao discurso no s dos estudiosos mas tambm dos militantes desses movimentos, em ambos os casos suprimindo sua originalidade e denunciando uma espcie de sentimento de dvida excessiva para

    com experincias e trabalhos anteriores.

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    o Estado como para os prprios Kuntanawa, como o acesso sabedoria dos antepassados em cerimnias de tabaco e ayahuasca. No h con-tradio entre a importncia da histria indge-na e o papel das cosmologias histricas, assim como no h contradio, e sim complementa-ridade, entre os objetivos pragmticos de lutas de povos indgenas e tradicionais e a resistncia ontolgica que um componente essencial des-sas lutas15. Essa uma das concluses desse exerc-cio. A outra aponta na direo de um trabalho ainda a ser feito: dar conta do caso dos ndios e de seringueiros que no se auto-constituem como grupos tnicos para estabelecerem relaes com o Estado nacional, mas que ou enquanto indivduos, ou enquanto comuni-dades, fazem jus, em princpio, ao reconhe-cimento enquanto ndios e enquanto povos tradicionais.

    5. APNDICE CONCEITUAL: COMUNI-DADEs TNICAs sEGUNDO MAX WEBER

    Na anlise feita acima, nos referimos teoria das comunidades e das comunidades tnicas de Max Weber, sob a hiptese de que ela poderia renovar a compreenso desses pro-cessos. Para isso, foi preciso contudo reler os textos originais, dando a eles uma interpreta-o e uma traduo, que s vezes, diverge de outras em curso. Por essa razo, acrescentamos

    ao estudo de caso os comentrios seguintes que visam explicitar nossa compreenso dos con-ceitos que aparecem no texto. Weber no definiu o conceito de comu-nidade (Gemeinschaft) em geral: em vez disso, partiu da noo de comunitarizao (Verge-meinschaftung), um dos conceitos sociolgicos fundamentais. Essa expresso ser alternati-vamente traduzida aqui como comunitariza-o que conota melhor o carter processual evocado pela palavra alem, que tambm um neologismo16. Ao tratar dos grupos sociais que se con-stituem com base em relaes comunitrias, ou seja, que se constituem por comunitarizao, Weber preocupa-se desde o inicio em rejeitar qualquer reificao ou naturalizao de co-munidade, afirmando que no basta a ex-istncia de traos herdados em comum num conjunto de indivduos para que haja relaes comunitrias:

    De modo algum o compartilhamento de qualidades, de situaes ou de com-portamentos uma relao comunitria. Por exemplo, possuir em comum traos herdados considerados como traos de raa por si mesmo no implica nenhu-ma relao comunitria entre as pessoas assim distinguidas. Atravs da restrio dos nexos sociais (commercium) e de casa-mento (connubium) por parte do mundo que as circunda, elas podem achar-se em

    15... a antropologia a cincia da auto-determinao ontolgica dos povos do mundo, e nesse sentido uma cincia poltica no pleno sentido do termo... (VIVEIROS DE CASTRO, 2003, p. 17; traduo de MWBA).16. Eis as definies iniciais (segundo a traduo brasileira): Uma relao social denomina-se relao comunitria (Vergemein-schaftung)quando e na medida em que a atitude da ao social...repousa num copertencimento (afetivo ou tradicional)subjetiva-mente sentido pelos participantes (Weber, 1980:21; 1991:25). Em contraste, uma relao social denomina-se relao associa-tiva (Vergesellschaftung) quando e na medida em que a atitude da ao social repousa num ajuste ou numa unio de interesses racionalmente motivados (com referncia a valores ou a fins). (Weber, 1991:25; 1980:21). Afastando-nos da traduo brasileira , traduzimos Vergemeinschaftung por comunitarizao e Vergesellschaftung por societarizao.

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    uma situao homognea pelo isolamen-to face a esse mundo circundante. Mas, mesmo que reajam homogeneamente face a essa situao, isso ainda no constitui comunitarizao (Vergemeinschaftung), e mesmo o mero sentimento dessa situa-o comum e de suas conseqncias ainda no suficiente para produz-la(1980,p: 22; cf. Weber, 1991,p: 26).

    Quando ento que se caracteriza uma comunitarizao, ou seja, quando que se pro-duz uma comunidade? Eis o que afirma We-ber:

    Uma relao social surge somente quan-do eles de alguma maneira orientam seu comportamento uns para com os out-ros no apenas cada um deles face ao mundo circundante com base nesse sentimento; s na medida em que esta relao evidencia um sentimento de co-pertencimento que surge uma comuni-dade (Gemeinschaft) (WEBER, 1980,p: 22; 1991,p: 26).

    Weber distingue assim o processo de comunitarizao(Vergemeinschaftung), que a produo de relaes sociais (soziale Beziehun-gen) referidas ao sentimento de copertencimen-to do produto, que a comunidade (Gemein-schaft). Na segunda parte de Economia e Socie-dade, o conceito de comunitarizao aparece enfatizando agora a multiplicidade dos modos pelos quais pode-se dar a formao de comuni-

    dades, segundo os fins em jogo e a natureza do sentimento de co-pertencimento em questo. O terceiro captulo dessa parte trata de vrios tipos de comunidade assim formadas, incluindo a comunidade domstica e a comunidade de cl (Sippe), a comunidade de vizinhana e a comunidade poltica, e, finalmente, o oikos (WEBER 1980,p:212 ss.; 1991,p: 243 ss.). Weber escreve um longo texto sobre comunidades tnicas, sob a rubrica de rela-es comunitrias tnicas, que se encontra no captulo IV17. Ele inicia o texto com uma argumentao ampliada contra a ideia de que pertencimento a raa possa ser a causa da ao comunitria. Definindo pertencimento raa como a posse de disposies simil-ares herdadas e herdveis que tm como base uma efetiva ancestralidade comum (WEBER 1980,p:234; 1991,p:267), Weber afirma que essas disposies s podem conduzir a uma comunidade (com aspas suas) se forem sen-tidas/percebidas subjetivamente como um trao comum (WEBER 1980,p: 234; 1991,p: 267). Mas, lembremos que a mera percepo subje-tiva da existncia traos comuns a um grupo de descendncia ainda no suficiente para que exista comunidade: preciso ainda que a percepo subjetiva de algo em comum seja mobilizada para a ao social. Isto : preciso que as aes dos envolvidos estejam orientadas por esse sentimento, tanto em suas relaes recprocas, como face ao mundo circundan-te. Ora, para que isso ocorra, so necessrias condies sociolgicas que Weber descreve de maneira precisa, conduzindo-nos aplicao

    17. O ttulo do captulo diz: Ethnische Gemeinschaftsbeziehungen, ou relaes comunitrias tnicas. A terminologia do autor permite distinguir relaes comunitrias de comunitarizao (Vergemeinschaftung), o que apia a nossa traduo.

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    do conceito ao tema deste artigo.

    A comunitarizao ocorre sob duas cir-cunstncias: ou quando a vizinhana ou conexo espacial de pessoas racial-mente diferentes associa-se a uma ao comum (principalmente poltica); ou, in-versamente, quando um destino comum qualquer de pessoas racialmente similares est ligado um antagonismo qualquer dos similares face aos que so marcada-mente diferentes (WEBER 1980,p:234; 1991,p:267).

    No primeiro caso, parece ser o contato geogrfico dos diferentes que gera uma uni-dade de ao, enquanto no segundo caso uma unidade histrica precedente (um destino co-mum) que se associa a um antagonismo: em ambos os casos, semelhanas e diferenas so ativadas pela histria de grupos sociais e por sua interao espacial. E sempre a percepo da similitude e da diferena por sujeitos isto , subjetivamenteque relevante sociologi-camente. O ponto que, sociologicamente, raa deixa de ser um fator causal de ordem biolgi-ca, para atuar como um percepto no contexto da constituio de um grupo. Nessa viso soci-olgica, raa a crena em uma comunali-dade (Gemeinsamkeit) subjetivamente perce-bida. Weber indica que aquilo que percebido como comunalidades so habitus externos, no importando sociologicamente saber se so inatos ou transmitidos pela tradio. Assim, habitus externos podem ser a cor da pele e a forma do cabelo, como podem ser tradies de perfume e estilos de penteado; podem ser atitudes corporais e modos de falar. O que im-porta que, conforme a definio escolstica,

    habitus sejam disposies do corpo e da mente difceis de alterar (AQUINO; 2001; ALMEIDA, 2000). Weber enfatiza que a atitude primria e normal, face aos que so de outra espcie ou de outra raa (Andersartig) repulsa, sa-lientando que essa atitude nem limitada aos traos antropolgicos [fsicos] comuns, nem a diferenas herdadas, mas a diferenas no habitus externo qualquer que seja sua origem (WEBER, 1980,p: 234; 1991,p: 267). Em suma, a tarefa inicial de Weber aqui desconstruir qualquer essencialismo racialista enquanto explicao causal-sociolgica, desta-cando ao mesmo tempo o papel das comunali-dades (tipicamente o habitus externo) como base da crena de que existe um aparentamento real ou, ao contrrio, uma oposio entre gru-pos que resulta de uma ancestralidade comum (WEBER, 1991,p: 269; 1980,p: 237). Por fim, a crena no ancestral comum no requer sequer o compartilhamento de habitus e de costumes. suficiente que haja uma memria do passado comum, e esse o lugar em que Weber introduz a definio de grupos tnicos:

    Chamaremos de grupos tnicos os grupos humanos que nutrem uma crena subjetiva numa comunalidade ancestral [Abstammungsgemeinsamkeit], com base na semelhana do habitus externo de cos-tumes ou de ambos, ou pela lembrana da colonizao e da migrao, e a tal pon-to que esta crena se torna importante para a propagao da comunitarizao no importando que haja ou no obje-tivamente uma comunalidade de sangue (WEBER 1980,p:237; 1991,p: 270).

    A definio completa tem a ressalva de que ela se aplica quando no se trata de cls,

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    isto , de um grupo de descendncia identifica-do por uma genealogia. Ora, a relevncia dessa ressalva que ela chama a ateno para a passa-gem da identificao genealgica de um grupo de descendncia para a comunidade tnica que se associa a uma crena na ancestralidade comum em um sentido amplo e que no mais requer conexes de consanginidade, e nem mesmo a comunidade de lngua. Nesses casos, diz Weber,... restam por um lado, diferenas estticas perceptveis do habitus manifesto ex-ternamente, e por outro lado, sem dvida com igual direito, as diferenas evidentes aos olhos da vida cotidiana (WEBER, 1991,p: 271; 1980,p: 238). Esse parece ser o fundamento para a ideia de que etnicidade reduz-se a um con-junto de traos diferenciais, e de que comuni-dades tnicas so artificialmente construdas, particularmente atravs da reinterpretao das relaes societrias em termos de relaes co-munitrias pessoais. Por exemplo, membros de associaes profissionais de pescadores e de trabalhadores rurais podem se comunitari-zar, na medida em que seus membros passam a compartilhar a crena de que compartilham uma substncia comum: sindicalistas se vem ento como irmos. A noo de comunitarizao como pro-cesso de constituio de comunidades tnicas pode aplicar-se agora escala de nacionalidades. A nacionalidade compartilha com o povo, no sentido tnico corrente, minimamente, e normalmente, a vaga representao de queuma comunidade de descendncia tem que estar sub-jacente quilo que percebido como comum (WEBER, 1980,p:242 ss.; 1991,p:275 ss.). Ao mesmo tempo, porm, abre-se a possibilidade de que a comunitarizao seja tanto um processo com origens histricas no-

    planejadas e que aparece como resultado de um destino comum, como o resultado artificial-mente produzido por uma poltica de consti-tuio de nacionalidades. O tema das comu-nidades imaginadas assim uma elaborao da tese weberiana sobre a formao de estados nacionais no perodo moderno (ANDERSON 1991). Essa ambigidade estar latente tambm na formao de etnicidades indgenas.

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