alma, magia e seduÇÃo

Upload: rayom-ra

Post on 30-May-2018

231 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    1/76

    ALMA

    MAGIA

    E

    SEDUO

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    2/76

    A MALDIO

    E A

    VIRTUDE

    RAYOM RA

    [ Direitos Autorais 49415 ]

    [email protected]

    2

    mailto:[email protected]:[email protected]
  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    3/76

    Esta uma das muitas lendas contadas de Sertrio: trovador, msico, e cantor,

    heri e meio santo. Num lugar qualquer do passado Sertrio viajava no dorso deFirmamento, tinhoso e inteligente animal negro, salpicado de manchas brancas pelocorpo, com um perfeito losango sobre a testa. Dizia-se que o cavalo s faltava falar;sua presena era marcante em episdios vividos por Sertrio, tendo-o salvo da mortecerta em vrias oportunidades. Segundo ainda relatavam, alm de magnfico de sadee aparncia, era de alma sensvel, trotando com graa em medidos compassos quandoseu dono, artista virtuoso, soltava-se ao sabor da arte. Sertrio sabia quandoFirmamento pedia. Ele empacava de tal jeito que nada o tirava do lugar, somente a vozpotica e melodiosa do cantor. Ento se tornava leve e dcil.

    Terminado mais um retiro num mosteiro, cujo principal, monge e amigo, apreciava-o e sua arte, Sertrio resolveu retomar os caminhos do mundo semeando o quetrazia e buscando o que no possua. Eram frequentes suas passagens e perodos derecluso no citado mosteiro. Insinuavam que Sertrio, se por um lado aprendia asperfeitas regras do jejum e ascetismo, mortificando-se dias a fio a fim de se purificar ematar as tentaes que o mundo lhe produzia, por outro lado, ensinava aos eruditos asartes da invocao e prticas da magia. Todavia, ningum jamais conseguira ter provasdeste pacto. O silncio entre os monges era sua lei e quando perguntados, eles, emresposta, somente sorriam.

    A viola, amiga inseparvel do cantor, magnfica e assaz ambicionada, repousavaagora s suas costas. Contavam que uma princesa, quase morta de paixo pelo belopoeta, houvera-o presenteado, que a viola, comprada de um mercador por muito ouro,pertencera a um msico que a vendera momentos antes de sua morte. A ambio porela era tamanha que teria levado trs ladres morte em ocasies diferentes.Afirmavam-na construda por um duende a mando de uma ninfa da msica que aencantara e a jogara ao mundo. De fato, sua beleza era incomparvel, a vibrao desuas cordas, perfeitas. Ningum jamais conseguira descrev-la com preciso. Somentesabiam-na construda de madeira leve e desconhecida, com brao da mesma cepaterminado numa flor trilobada. Muitos juravam que sob os geis dedos de Sertrio aviola criava vida e cores, a flor se abria mais soltando poeira luminosa e prateada, emuitas ninfas, em vus coloridos, vinham rode-lo a danar extasiadas. Mas quanto aisso jamais juravam, pois no podiam ter prova alguma, e Sertrio, quando inquirido arespeito no respondia, antes fazia uma trova e os deixava curiosos a pensar sobreela.

    Sertrio, como no tivesse uma definio de qual trilha seguir ou qual local atingir,puxou Firmamento para a esquerda e penetrou pelo bosque. A tarde dentro em poucose apagaria e o moo queria encontrar um lugar onde dormir. Quanto ao frio da noite,estaria protegido porque trazia um cobertor espesso de l de carneiro dobrado sobre aanca do animal. Mas quanto ao alimento, teria sorte se encontrasse alguma fruteira,pois mesmo sem se abster da carne no matava para comer.

    3

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    4/76

    Assim, mediante esta imediata preocupao, no tinha alento e nem inspiraopara o canto, embora apreciasse as graciosas formas das plantas, as flores silvestres,os agradveis zumbidos dos insetos e os estridentes cantos dos pssaros. E quantomais Firmamento se enfiava por arbustos e capins altos abrindo passagens e alas, ou

    entre rvores galhadas dos arvoredos, o bosque se abria e se oferecia na sua virginalsingularidade, dando-lhe as boas vindas e acolhimento, talvez esperando por umarecompensa musicada do cantor. Mas Sertrio no cantava. Persistia de cerviz altiva eolhar percuciente, denotando que de todas as formas procurava. Em seguidosmomentos a cerviz dobrava-se por que um galho mais alto obstava sua altivez. Porm,ultrapassado o obstculo, ei-lo de novo retomando o prumo da postura para, maisadiante, submeter-se outra vez. Nesta estranha dana, s vezes interrompida por umfrear de Firmamento, uma reorientao do cavaleiro ou uma retomada de direo,nosso personagem se interiorizava cada vez mais, embrenhando-se em gargantasverdes e profundas, nada vendo de aproveitvel nem satisfazendo a fome que oapertava.

    Quando o manto noturno comeava a descer e j se estendia preguiosamentesobre todas as coisas, as rvores deixavam refletir em suas folhas uma coloraoinsegura, as aves e bichos quase silenciavam se acolhendo mutuamente, produzindotoadas melanclicas e j sonolentas, e trechos do cu que dali se podia descortinarmostravam nuvens acinzentadas, Sertrio viu algo por entre as ramagens, l adiante:um filete de fumaa. Esperanado, pressionou Firmamento com os calcanhares e seencaminhou para o local, desvencilhando-se dos ramos e galhos com maior energia,usando braos e mos.

    O filete de fumaa fez seu olhar escorregar para uma chamin de tijolos; da paraum telhado semi encoberto por folhas e galhos. Era, sem dvida, uma casa, escondidabem no interior do bosque - que sorte ele tivera! Aproximando-se, pde constatar suaaparncia torta, velha e mal construda, de paredes em tijolos disformes, telhado empalhas secas soltando pedaos, tendo ao fundo, no muito distante, um barrancoirregular. Uma cerca de paus enviesados, amarrados por cips e fibras, e um portosolto encostado numa das estacas da cerca, constituam os limites frontais e laterais dapropriedade e respectiva entrada, naquela vastido de lugares de ningum.

    Era nada acolhedor o seu aspecto; de causar certo calafrio e afastar as pretensesdos passantes. Sertrio, no obstante, sem carregar temores na alma, no tendoalternativa e vendo-a como a melhor soluo para os seus problemas imediatos, apeoudiante do porto e chamou:

    - de casa! Nenhuma resposta, o silncio era absoluto, a imobilidade total;somente a fumaa ao alto mexia-se, mesmo assim se esticando com lentido.Resolvido, ultrapassou o umbral e chegou ao limiar da porta fechada, a dois passosdela.

    - de casa!- Vai embora, estranho, leva contigo tua ousadia! No queiras tornar-te tambm

    amaldioado!

    4

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    5/76

    Uma voz esganiada e esquisita falou-lhe s costas. Ele se virou rapidamentesurpreso com o que ouvia e mais ainda com o que via. Era um ano, trazendo s mosum arco retesado e uma flecha apontada, tendo s costas em tamanho natural, pormdesproporcional sua altura, que seria talvez de um metro e trinta, uma aldrava decouro carregada de outras flechas. Sertrio j ouvira falar dele. Descreviam-no como

    lenda, mas via neste instante que ele realmente existia. Diziam teria ele sido bufo, quehavia tomado poo mgica da longevidade, teria duzentos anos de idade eresolvera se encerrar na solido. Afirmavam que no escolhera tal isolamento, masfora forado a faz-lo, por que ao ingerir a poo mgica acometera-o uma maldio.Essa maldio seria terrvel e acometeria tambm a todos que dormissem debaixo domesmo teto onde ele dormia. Alguns confirmavam t-lo encontrado pela floresta, ou sua casa, mas, temerosos, fugiam espavoridos. Outros, mais corajosos, chegavam aconversar com ele, dando-lhe notcias do mundo e ouvindo trechos de sua vida, porm

    jamais passavam a noite em sua companhia.

    Era feio o homenzinho: magro, enrugado, de olhos grandes e cados, nariz aduncoe queixo comprido, e alm de tudo com ombros meio arcados. Sertrio, passada asurpresa, sorriu polidamente, levando a mo ao chapu e o saudando reverentemente:

    - Saudaes, senhor bufo, tenho ouvido falar de ti, muito assustadoramente,alis, julgando-te uma lenda. Todavia, eis-te aqui diante de meus olhos, falando-me eadvertindo-me. Permitas que me apresente: sou Sertrio, trovador, cantor, e msico, eme encontro perdido neste bosque encantador, hoje desafortunado para mim, cansadoe faminto.

    - Sertrio, o trovador? surpreendeu-se o bufo, piscando com cara atoleimada,folgando e baixando o arco.

    - Vejo que ouviste falar de minha humilde pessoa. Ento no ests to afastado domundo quanto dizem. s mesmo, Aldegundes, o bufo amaldioado?

    - Sim, sou Aldegundes, o bufo amaldioado, - confirmou com acrimnia, - teusfeitos j chegaram aos meus ouvidos. Contam que alm de amigo das artes s valentee possuidor de grande nobreza de esprito, verdade?

    - Exageros, senhor bufo. Sou somente um homem de sensibilidade que buscapela beleza e ama a verdade. Aldegundes olhou-o com maior admirao, da cabeaaos ps, notando o seu belo e principesco porte, invejando-o.

    - Vejo, quanto ao aspecto exterior, que no exageraram ao descrever-te e se foresrealmente to nobre quanto dizem, poders ajudar-me.

    - Referes-te maldio?- Teme-a, trovador? - Sertrio somente sorriu, mas to intensamente que esse

    encantador sorriso inundou ao feio bufo de certeza - Tens coragem de dormir sob omeu teto? insistiu Aldegundes. Sertrio, ainda sorrindo, arcou-se em reverncia,apontando para a direo da porta. Ele, satisfeito, encaminhou-se e adentrou. Sertrioo seguiu.

    `A mesa tosca, pisando o cho de terra batida, sentados sobre tocos de rvores,eles jantaram. O guisado de coelho estava delicioso e as frutas timas. Nesta sala emque permanecera desde que entrara, Sertrio pode notar a simplicidade dela; que todaa moblia e objetos eram velhssimos e mal acabados, tortos como era a casa,certamente feitos pelas mos do prprio truo ou por ele remendados e que luz da

    5

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    6/76

    candeia as moventes sombras lembravam coisas fantasmagricas a querer possuirtentculos e abraar. Terminado o silencioso repasto, Sertrio solicitou ao dono dacasa que lhe deixasse trazer Firmamento para os limites do quintal onde, sob aproteo de uma parede, poderia passar melhor a noite. Aldegundes concordou,mandando que o levasse para junto do forno de barro onde fazia assados, debaixo de

    um alpendre l no fundo. L, encontraria tambm um saco contendo pela metade grosde milho, que usava para dar de comer s galinhas e atrair outras aves e ca-las,alm de um balde dgua que poderia a ambos utiliz-los. Sertrio assim fez.Firmamento quase nada comeu do milho, por que pastara o suficiente do lado de fora,porm bebeu gua com disposio.

    Sertrio surpreendia-se com esta solicitude inicial do bufo e se enchia decuriosidade pelo que o aguardava, precisando, porm, ficar atento e de olhos bemabertos. Tendo retornado e recolocado a candeia sobre a mesa, pde notar comsurpresa pela bruxuleante e fraca luz da vela de cera, que a fisionomia do pequenohomem se transformara. Ele estava agora carrancudo, de lbios apertados, olhando-ofixamente. Sertrio sentou-se e o experimentou:

    - verdade, senhor bufo, que tomaste uma poo mgica que te faz viver com omesmo aspecto h duzentos anos?

    - Cento e cinqenta, mas envelheci tambm.- Ainda assim muito tempo para um mortal comum. Dizem que a maldio te foi

    trazida ao teres ingerido tal poo, tambm verdade este fato?- Senhor Sertrio - disse com especial nfase naquela desagradvel voz - queres

    certamente ouvir sobre toda a minha histria, j que levantei a possibilidade de poderesme ajudar?

    - Se merecer de ti tamanha confidncia, sim!- E ajudar-me-ia de fato se te dissesse que necessito destruir a maldio e

    correrias todos os riscos junto comigo?- Somente poderei afirmar-te, aps ter ouvido tua histria, senhor bufo, antes no!- Mas se a ouvisses e no te dispusesses a ajudar-me?

    - Iria embora e calar-me-ia para sempre, jamais dizendo a algum uma nicapalavra sobre o assunto enquanto tu vivesses.

    - Humm... - resmungou o bufo, levando a mo ao queixo, levantando umasobrancelha e pregando o olhar nervoso no plcido e claro rosto do belo mancebo - eque provas me ds de seres de fato Sertrio de quem tantos falam?

    Sertrio sorriu. Segurando a presilha em diagonal ao trax, trazendo a violaadiante e acariciando suas cordas, dedilhou-as ensaiando qualquer coisa e comeou acantar. A voz perfeita e melodiosa do cantor encheu o ar, o lirismo dos seus versos sederramou melifluamente, as notas maravilhosas da viola vibraram mgicastransformando todo o ambiente. Ao trmino, Aldegundes j havia perdido algo dacarranca, mas no estava inebriado como tantos, aps ouvirem-no. Havia nele tantarudeza de esprito quanto havia nos objetos e naquela casa inteira.

    - Prometes, ento, que me ajudando ou no nada revelars de minha histria?- Prometo, enquanto tu viveres! reafirmou Sertrio.

    6

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    7/76

    O bufo agitou-se no banco, jogou nervosamente as mos frente, unindo osdedos e vincando a testa, concentrando-se no que ia contar. Sertrio, como estavapermaneceu, calmo, porm atento, disposto a ouvir a verdade de todas as coisas quelhe chegavam aos ouvidos atravs dos homens.

    - um alvio, senhor trovador, depois de tantos anos ter algum digno de

    confiana diante de mim, a escutar minha histria. H mais de um sculo estouenterrado vivo nesta casa, neste lugar solitrio, sem uma companhia humana, sem umcalor igual. Desde o maldito dia em que tomei a poo, julgando estar aprisionando afortuna, acabei prisioneiro de meu desventurado desejo. Saibas, senhor, que amaldio de fato existe, sendo maligna unicamente a mim. No te preocupes, portanto,pois no te acompanhars quando daqui sares. Todavia, somente algum como tu,creio eu, disposto a ajudar-me, poderia, em verdade, livrar-me dela. O comeo detudo? Quase me esqueo. Teria trinta e sete anos de idade, talvez quarenta, era obufo preferido do rei, tendo me tornado tal depois de comprado de um circo onde erasaltimbanco. Meus pais, viajantes por ndole, naturais de outro pas, tendo observadopelo meu fsico e feira que outra coisa melhor eu no poderia ser, venderam-me aoreferido circo por um punhado de moedas quando eu atingia a idade de catorze anos.O dono do circo adestrou-me por alguns anos, como se adestra a um animal domsticoa fim de que faa tudo aquilo o que se queira.

    O rei, homem inconstante, por vezes divertido, por vezes violento, principalmentequando bbado, exigia-me quase sempre ao seu lado e em todas as suas festas erecepes. Nessas reunies, enquanto os fantasmas do vinho no tinham ainda sesoltado, ele ria e gargalhava com minhas anedotas maliciosas e comicidade. Porm,quando o vinho acordava as sombras de seu mundo infernal, ele me espancava e medava pontaps.

    Sua filha nica, a princesa, bela e tambm cruel, por motivos que desconhecia,no perdia a menor oportunidade de me humilhar e maltratar, despertando com issosentimento recproco de rancor em meu corao. Entretanto, que poderia eu, pobre eescravizado bufo, fazer contra o rei e a princesa? Quanto rainha, pouco ligava aoque se passava em redor, estando mais preocupada com seus encontros amorosos,no tomando conhecimento de minha insignificante vida. Aquela situao foi setornando verdadeiramente insuportvel. Com o tempo, a princesa no se contentavamais em humilhar-me, espancava-me tambm atirando-me coisas onde me visse,dizendo odiar minha feira. Um dio quase gritante, em contrapartida, crescia cada vezmais em mim e a custo era abafado. Isto se agravou mais no dia em que o rei, numa desuas escandalosas festas, obrigou-me a lamber do cho o vinho que derramara.Naquele momento, jurei vingar-me dele, da princesa e de todos os que riam dashumilhaes a que me submetiam.

    Havia fora da cidade um bruxo, velho e solitrio, que, segundo contavam, faziabruxarias sob encomenda. Aquele que fosse visto em sua companhia, ou acusado defreqentar sua casa, seria desprezado e apedrejado. Havia, em relao ao bruxo, umtemor maior do que escrpulos. Se tanto o temiam era porque o homem seriapoderoso, pensei eu, e mergulhado numa torrente de revolta, sedento de vingana,resolvi ir visit-lo, saindo noite, s escondidas, com grande risco, andando pela

    7

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    8/76

    estrada e depois pelos caminhos escuros. Ruminava os planos de vingana, aulandomais e mais um dio que se agigantava.

    Diziam que o bruxo encantava, fazia poes e enfeitiava coraes e eu desejavaencomendar algo forte, que os fizesse humilhar-se diante de mim. Pensava tambm

    em envenen-los de uma s vez, mas assim no iria saborear o prazer de v-los sofrer.Ademais, tinha outra idia em mente: a idia da riqueza e opulncia. Sendo rico epoderoso, aqueles que zombavam de minha condio iriam respeitar-me e bajular-me.Mas quanto ao rei e a princesa? Esses eram os meus donos e patres. Se me tornasserico, nada em verdade me pertenceria seno a eles. Sim, era isso, antes de tudo aalforria, a liberdade, depois a riqueza e a vingana. E aps, mat-los-ia a ambos deuma s vez? Tais eram meus pensamentos, meus desejos de assim realiz-los, semao menos saber que tipo de bruxaria conseguiria encomendar.

    Chegando a casa do bruxo, bati porta. A noite estava fria, penetrada de espessanvoa. Uma voz rouca e abafada ordenou-me que entrasse. Sob a fraca luz de vela, algubre e desarrumada casa, com objetos de cera e vasilhames espalhados por todosos lados, exalando muitos cheiros, causava-me calafrios. O fogo da lareira extinguia-se. A temperatura ali dentro era quase to igual quanto de fora.

    No o vendo parei naquela sala, mas a mesma voz chamou-me do quarto,mandando-me que lhe trouxesse a candeia de sobre a mesa. Assim fiz e fui encontr-lodeitado, tremendo de frio. Era um velho realmente, e pelo seu aspecto estaria doente.Sem a menor formalidade perguntou-me o que eu queria. Estando vido por umaconfidncia, contei-lhe tudo sobre minha vida e sobre os meus planos. Afirmei-lhe,convictamente, estar disposto a qualquer coisa conquanto obtivesse liberdade e poder.Ao trmino, ele me olhava com grande curiosidade, estudando-me atentamente,deixando-me embaraado e temeroso. Finalmente falou, dizendo que me poderia dar oque eu desejava, mas o preo seria alto: metade do ouro que eu ganharia. Intrigado,perguntei-lhe por que precisaria de tanto ouro j que por toda a vida, ao que parecia,vivera pobre. Ele revelou-me ento que estando para morrer, desejava ser enterradono cemitrio dos bruxos, longe dali, onde a fraternidade dos malignos se rene emconcilibulos e onde s os espritos que adquiriram em vida o direito a uma sepulturano lugar, podem freqentar e fazer parte. E isso custaria muito ouro!

    Como no tivesse escolha se desejasse levar adiante meus planos de vingana,aceitei o trato. Ele, imediatamente, me pediu que o amparasse e o levasse para a sala.Em l chegando, apoiou-se na mesa e apontou para a lareira, mandando-me que aempurrasse. Com surpresa, via-a escorregar e se abrir, dando lugar a uma passagemsecreta. De volta mesa, amparei-o entrando com ele atravs da passagem. Era-medifcil carreg-lo porque sendo franzino e de baixa estatura, no conseguia grandesresultados neste tipo de auxlio.

    Descendo alguns degraus, chegamos a um poro onde o bruxo guardava emurnas e prateleiras todos os apetrechos e ingredientes secretos de magia negra e ondeexistia um caldeiro. Fazendo-me de seu auxiliar, mandou-me colocar sob o caldeirorachas da madeira amontoada a um canto, ensinando-me como fazer o fogo. Em

    8

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    9/76

    seguida, foi-me pedindo os objetos e os ingredientes de que necessitava. Sempre queeu estendia-lhe alguma coisa ele fechava os olhos e recitava uma frmula mgica,soltando sons guturais, gritando e rindo, s vezes olhando para o alto da escada ondea porta permanecia aberta. Isso me causava arrepios e grande medo, mas assimmesmo eu continuava. Em certo momento ele parou tudo, ficando a pensar em silncio.

    Depois, com cara zangada, apontou para um grosso e enorme livro negro quedescansava junto parede sobre uma base de madeira, fazendo-me sinal para que olevasse at ali. Abrindo as largas e compridas laudas com cuidado e esforo, correndoo enrugado dedo sobre figuras e textos de uma escrita ininteligvel para mim,certamente codificada, ele grunhiu de satisfao ao encontrar o que buscava. Aps lertudo com ateno e memorizar o que precisava, mandou-me que o levasse de volta

    junto ao caldeiro.

    Quando o caldeiro fervia, ele jogou os ingredientes e invocou os espritos do mal.Depois, com uma concha, cujo cabo era um osso humano, retirou a quantidade julgadanecessria daquela poo depositando-a num recipiente que eu levaria. Enquanto faziaisso, instrui-me como us-la, explicando-me que bastariam trs gotas numa taa devinho a fim de que tornasse qualquer pessoa submissa e escrava aos meus desejos.Esse poder de submisso era total, porm temporrio. Eu deveria aproveitar essesmomentos para exigir da vtima tudo o que quisesse por que ela estaria sob oencantamento da poo. Porm, tendo a vtima dormido e depois que acordasse, elaestaria consciente de todos os seus atos, embora no tivesse ainda foras para voltaratrs, mesmo contrariada. Para novas e diferentes exigncias seria aconselhvel dar-lhe novamente da poo, mas correria o risco dela recusar-se a beb-la. A poo tinhasido preparada com os nicos ingredientes nesse teor que ele agora possua, por issoera preciosa e insubstituvel.

    Antes de entreg-la, mandou-me encher duas taas de um vinho que ali havia afim de que selssemos o pacto. Tendo-o tomado, observado antes e inutilmente queele o tomasse primeiro, o bruxo riu estranhamente informando-me que bebramosveneno. O veneno, entretanto, levaria exatamente sete dias para fazer efeito, o prazomximo de que eu dispunha para realizar o plano e trazer-lhe o pagamento. Sefalhasse, ou o ouro fosse insuficiente para o seu intento, ele no me daria o antdoto eeu morreria. Da mesma forma, morreria se tentasse engan-lo na partilha por que elefalava a linguagem dos corvos e um deles me vigiaria dia e noite. Intil tambm seriaprocurar outra forma de anular o efeito do veneno: somente ele conhecia sua natureza.Aps ter sido novamente obrigado a ajud-lo a locomover-se de volta ao quarto, deixei-o, voltando apavorado para o castelo, temendo que me visem, levando comigo a poodo encantamento.

    Naquela noite no consegui dormir e muito mal na outra; somente pensando noque me acontecera. Na madrugada do terceiro dia, em meu pequeno quarto, - mais umcubculo do que outra coisa qualquer numa das torres menores no fundo do castelo, -subi num velho ba encostado parede e me apoiei no frio peitoril de pedra da janela,a fim de olhar a restrita paisagem. Apesar da escurido e fraca luz da lua, conseguiadivisar entre sombras e contornos um pedao da rua l embaixo, mida pelo sereno.Mas no eram essas poucas coisas que eu discernia que me prendiam a ateno. Eu

    9

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    10/76

    as olhava to somente. Em meus pensamentos ainda perambulavam as sombras dascenas passadas com o bruxo, e as revivia, admirando-me de minha coragem eproposta. Acreditava agora que somente impelido por tal ardente dio a queimar-me asentranhas, pudera ir to longe. No que o dio endereado ao rei, princesa e a toda acorja de aduladores houvesse arrefecido. Existia ainda e intensamente. Todavia, se

    naquele instante da visita ao bruxo, eu pensasse ou me sentisse como agora,certamente no teria feito o pacto com o sinistro. Ante essa reflexo, meu corpo foitomado de um estremecimento e cheguei a perguntar-me se, apesar de tudo, dashumilhaes e maus tratos porque passava, teria realmente coragem para levaradiante o plano de vingana.

    Neste exato instante, ouvi o crocitar de um corvo e olhei para cima, percebendo,apesar da noite, que ali estava um voando em direo de minha janela. Chegando maisprximo atacou-me com as garras, embaraando-se aos meus cabelos, bicandodiversas vezes minha cabea. Assustado, bati-lhe. Ele me largou voando novamente,subindo e se preparando para nova investida. Rapidamente fechei a janela impedindo-o de entrar, ouvindo-lhe, entretanto, o ruflar de asas ao pousar sobre o peitoril, ali apermanecer a vigiar-me e a lembrar-me de que o pacto precisava ser cumprido. Aquilorealmente surtiu efeito em mim. Relembrando que tomara o veneno, portanto, deveriaapressar-me ou morrer, decidi realizar o plano to logo a oportunidade se meoferecesse, sem delongas.

    Dia seguinte, o rei mandou chamar-me a fim de que permanecesse ao seu ladoenquanto recebia uma comitiva de mercadores estrangeiros, que vinha para oferecerpresentes e obter permisso para negociar na cidade. Tendo enchido um recipientemenor com a poo e t-lo fechado bem, levei-o comigo na tentativa de us-la naprimeira oportunidade.

    Durante a recepo e na entrega dos presentes, fiquei atento, porm o rei nopediu vinho. Ao invs, o miservel ordenou-me que contasse uma anedota paraaqueles estrangeiros repugnantes que, de aprecivel tinham somente os presentes.Eles riram e o rei tambm e tal como se dirigisse a um co obediente, ao final, apontou-me para o lado do trono, ordenando-me que ali eu ficasse. A princesa e a rainhaestavam deslumbradas com os tecidos de fina seda e cores vivas que lhes eramofertados bem como com os pequenos objetos e pedras preciosas.

    Finalmente o rei se retirou, indo sozinho para os seus aposentos. Aproveitando-medisso, fui at a cozinha e menti ao copeiro, dizendo que o rei pedira vinho e que eumesmo o levasse. No seria a primeira vez disso acontecer, dessa maneira nohaveria estranheza ao fato e logo o copeiro trazia da adega a bandeja e a taa realcom o vinho, entregando-me. No caminho, desviando-me do corredor principal, entreinuma pequena guarita abandonada que se lanava ao alto de um recuado canteiro de

    jardim, e certificando-me de que no havia ningum por perto, despejei trs gotas dapoo na taa, retornando ao corredor, logo entrando nos aposentos reais.

    Sentado escrivaninha, o rei escrevia avidamente no prestando ateno a minhapessoa. Coloquei a bandeja sobre a mesa, alertando-o sobre isto, e ele somente

    10

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    11/76

    resmungou sem olhar-me, concentrado no que fazia. Sa rapidamente, excitado etrmulo, aguardando impacientemente do lado de fora. Ao cabo de certo tempo, resolvientrar novamente, encaminhando-me vacilante para a escrivaninha onde ele ainda seencontrava. Meu corao quase pulou do peito quando notei que a taa estava pelametade. Mas o rei aparentemente continuava o mesmo, pois ainda escrevia. Teria a

    poo falhado? Ansioso, perguntei-lhe se desejava mais vinho. Para minha surpresa edesconcerto ele largou a pena e disse que sim, somente porque eu lhe pedia. Eletomou mais dois goles e ficou a olhar-me com ar aparvalhado, e eu, estupefato, via quea poo parecia ter funcionado. No obstante, precisava test-lo e pedi-lhe que medesse um pergaminho de presente, ao que ele prontamente acedeu. Exultante, pedi-lheo cordo de ouro com o medalho que trazia ao pescoo, e ele deu-mos. Depois outras

    jias e o rei a nada me negava. Tranquei a porta e deitei-me em sua cama, ordenando-lhe que ficasse de joelhos ao meu lado enquanto pensava. Como um cozinho, ele meobedeceu. Ento, ali deitado, pensei em como obter ouro sem que ningumsuspeitasse, pois ambicionava muito, vindo-me, afinal, uma idia. Levantando-me dacama, ordenei-lhe que escrevesse uma carta de alforria, libertando-me da escravido.Ele assim fez. Depois, mandei-o formular uma ordem-de-trnsito, ao mesmo tempo umsalvo-conduto, a fim de que a carga que eu portasse no fosse interceptada porningum no reino inteiro, nem violada, por tratar-se de assunto de interesse real ameus cuidados, sendo transportada para destino somente conhecido por mim. Semtitubear o rei a formulou. Novamente, a meu mando, elaborou um terceiro documento,segundo o qual me doava um ba imenso, lotado de ouro, descrevendo suascaractersticas e insgnias para que, se necessrio, eu pudesse provar que no oroubara. Finalmente, por um ltimo documento de seu prprio punho, cedia-mecentenas de acres de terra numa provncia e um pequeno castelo ali existente de suapropriedade, que nele se instalava quando viajava para a regio.

    Havia ainda um empecilho: o tesoureiro. Ele era responsvel pelas apropriaesde todo o reino e contabilidade geral e o rei o fazia seu conselheiro para assuntos decompra e venda e do tesouro. Sendo funcionrio ladino, no se convenceria de quesua majestade, a quem conhecia muito bem, estaria doando toda aquela fortuna epropriedade a um simples bufo, principalmente eu, Aldegundes, seu capacho e lixeiraprediletos.

    Pensando numa soluo, mandei-o pedir mais duas taas de vinho. Ele foi evoltou. Tendo, aps, o vinho chegado, fiz com que o rei ficasse de costas, derramandooutras trs gotas da poo na taa que se destinaria ao tesoureiro, ordenando-lhe queo mandasse chamar imediatamente aos seus aposentos. Quando o tesoureiro chegou,homem forte e hirsuto, eu estava a um canto, em posio de bufo, com cara de tolo. Orei, sorrindo, em obedincia ao que eu o havia instrudo, apontou-lhe a cadeira onde,adiante, sobre a mesa, estava a taa de vinho a ele reservada. O tesoureiro franziu atesta e por um instinto pareceu desconfiar, olhando-me interrogativamente, cravando-me aqueles olhos argutos. Eu estremeci e quase pus tudo a perder, controlando-mecom enorme esforo, sentindo, no obstante, apesar do frio, o suor a escorrer-me pelocorpo. Mas ele foi e sentou-se. O rei segurou sua taa e aproximou-a para umacomemorao. Ele, desconfiado ainda, levantou a sua e brindou. O rei bebeu e otesoureiro, sendo um sdito, foi obrigado tambm a beber.

    11

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    12/76

    Tendo recolocado a taa sobre a mesa, nada aconteceu de anormal e eleperguntou ao rei porque o chamara e qual o motivo daquela comemorao. O rei,sempre rindo, apontou-me, dizendo que o motivo era eu. O tesoureiro virou-se e olhou-me surpreso enquanto o rei gargalhava. Sbito, ele tambm comeou a rir, abraando-

    se ao rei. Aproveitei-me ento e fiz com ele o mesmo teste que fizera com o rei,pedindo-lhe seu cordo, e ele deu-mo. Em seguida, mostrei-lhe o documento feito porsua majestade, ordenando-lhe que providenciasse imediatamente o ouro bem como ummeio de transporte adequado que disfarasse a carga, pois partiria naquela mesmanoite, em sigilo, saindo por um dos tneis secretos que s o rei e seus asseclasconheciam, e ele de bom humor a tudo assentiu.

    Estando de novo a ss com o rei, saboreei a ltima vingana naquele dia,imaginando ser somente mais uma de tantas que planejava. Segurando uma daquelastaas, derramei vinho no cho, ordenando-lhe que o lambesse, e ele o fez exatamentecomo me obrigava fazer. Depois, pisei-o e golpeei-o vrias vezes, com voluptuosasatisfao, tendo o cuidado de no lhe deixar marcas pelo rosto a fim de que nadadesconfiassem, saindo aps.

    Perto da meia noite, procurei ao tesoureiro. Levava um saco s costas com roupase objetos de uso pessoal. Ele se encontrava em seu gabinete, no palcio, e recebeu-me de mau humor, com cara sonolenta. Era evidente que dormira e pela rudeza desuas palavras e gestos, cheguei a temer que o plano fracassasse. Mas lembrei-me doalerta do bruxo, e sem qualquer gesto de resistncia o tesoureiro real conduziu-meante um tnel secreto, cuja entrada era disfarada por uma estante fixa de paredemvel numa saleta contgua ao seu gabinete. Logo ele acendeu um archote eenveredamos pelo mido tnel no subterrneo do castelo, at um ptio fechado, paramim desconhecido, onde pequena carroa atrelada a um cavalo ali estava. Aindabastante contrariado, meu acompanhante e guia levantou uma braada do feno jogadosobre a carroa, mostrando-me o largo ba envolto num pano prpura. Pedi-lhe entoque o abrisse, e ele, obedecendo-me, subiu imediatamente na carroa puxando opano.

    Minha cupidez cresceu mil vezes ao ver todas aquelas reluzentes moedas. Erammilhares, mais do que jamais vira em toda a minha vida e quase mergulhei sobre elas,tamanha a satisfao! Finalmente, dando-me por satisfeito, ele de novo fechou o ba eo lacrou com o lacre do tesouro real. Intil e desnecessria providncia, assim tomadapor que eu exigira no momento em que ditara a missiva ao rei. Como ltima ateno,abriu-me o porto para que eu sasse e ao passar junto a ele cumprimentei-o do alto dacarroa com gesto de cabea, enviando-lhe sorriso de escrnio, ao que evidentementeele no respondeu. Aquela partida era-me triunfal e j me via retornando dentro empouco com pompa, cumulado de honras, seguido de um sqito de bajuladores aentrar pela porta principal do salo real, a convite de sua majestade.

    Mas a vingana no terminaria ali, pensava com satisfao e acalanto, pois malcomeava. Depois seria a vez da princesa. Ela me serviria e se prosternaria diante demim, e todos iriam se admirar respeitando-me. Talvez no a envenenasse e nem ao

    12

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    13/76

    rei, contentando-me em v-los eternamente humilhados e ruminantes de dio, semforas para se libertarem de meu jugo. Ah, o demnio no era to feio assim como odescreviam, ele sabia ser generoso com aqueles com quem se pactuava!

    Ao pensar sobre isto, lembrei-me do bruxo e de meu compromisso em dar-lhe

    metade do ouro. Em movimento instintivo e repentino, puxei as rdeas do animal e freeia carroa, no me conformando em ter de dar-lhe tanto ouro, meu ouro! O prazer depossuir, de sentir-me rico, causava-me uma sensao estranha. Pulando para dentroda carroa, abracei ao ba como se abraa a uma coisa viva e apaixonante efebrilmente abri-o, rompendo o lacre, enterrando as mos nas moedas, querendo senti-las mais intimamente, desejando que fizessem parte de meu corpo - e elas agora defato faziam! No, no dividiria o ouro com ningum, nem uma moeda, quanto mais metade delas! Aquilo representava minha felicidade, a riqueza e a vingana com queeu sonhara. Porm, precisava tomar o antdoto seno morreria e de nada me valeria oouro!

    Retomando a viagem, fui em direo da casa do bruxo. Mil pensamentos aindafaziam fervilhar minha cabea, mas no encontrava a maneira de engan-lo. Tendopenetrado o caminho que levava diretamente a sua casa, algo sobre a copa de umapequena rvore assustou-me, levantando vo ruidosamente: era o corvo, que crocitoufurioso - maldito espio - e temi ser novamente atacado! Mas no me atacou, antes meacompanhou durante o restante do trajeto, pousando de rvore em rvore, anunciando-se a cada vez que eu o alcanava!

    Finalmente cheguei. O bruxo j me aguardava porta daquela casa lgubre, decandeia mo, sorrindo ironicamente, estando j o corvo pousado sobre o seu ombro.Fazendo-me sinal, mandou-me que o ajudasse a retornar para a sala. Tendo feito oque me ordenara contei-lhe que conseguira tudo, mas estando de partida para minhasterras, necessitava tomar logo o antdoto. Assim que o tomasse, realizaria a prometidapartilha. Ouvindo isso, o bruxo gargalhou sinistramente e senti calafrios a percorreremminha espinha. Ainda rindo, ele me disse que no me daria agora o antdoto, massomente depois de eu lev-lo confraria dos bruxos. Estava velho demais para partirsozinho e no agentaria chegar l sem ter algum para ajud-lo. Protestei de vriasmaneiras, argumentando do perigo em viajar para mais longe com tanto ouro, haviamuitos assaltantes pelas estradas e no pretendia desviar-me de minha rota. Ademais,isto no fazia parte de nosso pacto. Mas ele no quis saber de nada e proferiu suasentena: se eu no o obedecesse, morreria envenenado. Trepidando de dio tive deaceitar aquela traio, mas jurei em silncio que se tivesse oportunidade me vingariadele tambm. Se antes no desejara partilhar meu ouro, neste momento desejavamuito menos.

    A viagem at a confraria dos bruxos seria longa, levando semanas. Como ele nosoubesse quanto tempo de vida dispunha, desejava se pr a caminho imediatamente.Tendo tomado conhecimento deste fato, perguntei-lhe, ansioso, acerca do antdoto,pois o veneno faria efeito dentro de pouco mais de quatro dias. Em resposta, eleinformou-me que estaria levando suficiente poo a fim de prorrogar o efeito letal desete em sete dias, at chegarmos ao destino, onde me faria beber a dose definitiva.

    13

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    14/76

    Soltando outra horrvel gargalhada, o execrvel aconselhou-me cuidar de que nada lheacontecesse porquanto se tornava agora para mim carga mais preciosa do que oprprio ouro que eu carregava.

    Partimos naquela mesma madrugada levando alguma bagagem, alimentos e um

    burro de cargas amarrado carroa, de propriedade do bruxo. O corvo ia tambm oravoando para as copas do arvoredo, observando e trazendo informaes para o seudono, ora descansando sobre o seu ombro. Era realmente estranho como ambos seentendiam. O corvo falava-lhe ao ouvido e o bruxo assentia com a cabea, soltandosons guturais. Isso me causava mal e temia a ambos. Por quatro dias viajamos semnovidade. Durante o dia nos escondamos pelos matos ou bosques, noiteretomvamos a jornada, pois o luar era suficiente para clarear os caminhos. O bruxoera pessoa extremamente desagradvel, ora a maldizer as mnimas coisas ora agargalhar de forma assustadora. Antes de dormir, dava ordens ao corvo para quevigiasse o seu sono e invocava espritos. Eu me afastava dele para tentar dormirmelhor, porm o meu sono era interrompido e cheio de terrveis pesadelos. Na quartamanh da viagem, perto do meio dia, acordei sobressaltado, estando o corvo a bicar-me e a puxar meus cabelos. O bruxo, encostado a uma rvore, gargalhava delacrimejar, dizendo, afinal, passado o acesso de riso, que o mandara acordar-me a fimde que lhe preparasse a refeio. Isso me irritou ao extremo e senti-me novamenteescravizado, tendo de servir a um dono mais insano e perigoso do que o primeiro. Quedestino o meu!

    Durante a refeio, ele me estendeu uma caneca contendo um lquido grosso eescuro, mandando-me que o bebesse, pois se tratava da primeira dose do antdoto. Olquido era amargo e engoli-o com repugnncia sob o seu sorriso sarcstico e grasnosnervosos da negra ave. Naquele mesmo dia, comecei a suspeitar de que o bruxo nopretendia me libertar. Se alcanssemos confraria me faria l seu escravo. Uma vezouvira dizer que todo aquele que descobrisse o esconderijo dos bruxos, seriaaprisionado e os serviria at a morte, ou ento, se escapasse, morreria amaldioadopoucas horas depois. Mas com todo o dio que lhe endereava no poderia fugir e nemmat-lo, sob pena de morrer tambm!

    Dois dias depois, tendo sado de um caminho secundrio e meio abandonado,ouvimos ao longe o rumor de vozes e cantos. Seria uma taberna localizada na estrada,falou o bruxo, e isto lhe despertou o desejo de tomar vinho. Como tambmnecessitssemos de alimentos ele me ordenou que montasse o burro e fosse ladquirir essas coisas. L chegando, fui alvo de piadas e troas. Adquiri po, toucinho evinho. Ao enfiar a mo na algibeira para retirar as moedas e pagar ao taberneiro meusdedos tocaram em qualquer coisa estranha e vi tratar-se do pequeno recipiente,contendo um resto da poo. Esquecera-me dele, tendo deixado o recipiente maior nacarroa junto aos meus pertences, e uma rodopiante idia agitou os meuspensamentos. Aps pagar ao taberneiro sa pelos fundos, indo estrebaria onde,escondido de todos e certificando-me de que ali o corvo no conseguiria vigiar-me,derramei toda a poo no vinho. Meu corao batia descompassadamente e malconseguia conter a excitao.

    14

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    15/76

    O bruxo, ao ver o vinho e o alimento que eu trouxera, sorriu e estendeu-me asmos. Passei-lhes as coisas e ele as cheirou ruidosamente, qual um bicho faminto esedento. Neste instante, o corvo mergulhou e pousou sobre sua mo, grasnandoagitadamente, chamando-lhe a ateno. Meu corpo todo tremeu e temi que a malditaave o alertasse de algo. Ela gritou mais, bateu as asas e pulou em seu brao. Ele riu e

    abriu o pano que envolvia o alimento, cortando um pedao do toucinho, enfiando-o emseu bico. A ave, ento, satisfeita, foi-se dentre as sombras, deixando-me aliviado.

    Virando-se sobre o banco da carroa, o nauseabundo retirou de dentro da sacolauma pequena caneca e a estendeu-me para que a enchesse. Minhas mos tremiam,eu fazia esforo hercleo para dominar-me enquanto o vinho escorregava. Quase sebabando, abriu as mandbulas e derramou o vinho goela adentro, pedindo mais. Repetia dose, ele tomou mais dois goles, estalando a lngua, elogiando. Tenso, quase semrespirar, estudava-o naquela escurido, a qual era aliviada pela luminosidade da luacrescente. Se a poo iria fazer efeito em seu prprio criador, dentro em pouco eusaberia.

    Em movimento brusco, ele novamente se virou e remexeu na sacola, retirandooutra caneca de metal, ordenando-me que bebesse. Pensei recusar, mas temi que eledesconfiasse de algo e resolvi engan-lo, enchendo-a lentamente, tentando ganhartempo. Depositei a bilha no cho e noutra srie de movimentos lentos encarei-o. Eleme olhava com ateno e silenciosamente. Mas eu no podia beber, assim, fingindoacidente, larguei a caneca derramando o vinho no cho, e esperei por uma exploso deimprecaes. A exploso no aconteceu, ele somente gargalhou. Seria esta a maneiradele mostrar-se submisso? Resolvido a experiment-lo pedi-lhe outra caneca. Eleimediatamente atendeu-me. Depois solicitei-lhe que descesse para bebermos no choe se arrastando feito um rptil o bruxo desceu, apoiando-se na carroa. Sem dvida apoo voltava a funcionar, desta feita sobre o seu criador. Era o feitio se voltandocontra o feiticeiro, conforme reza o adgio.

    Sem perda de tempo, ordenei-lhe que me desse o antdoto definitivo. Ele meinformou que precisaria antes prepar-lo. Mandei-o, pois, que o fizesse e sob a luz dolampio ele remexeu em sua arca, retirando recipientes e ingredientes, passando amistur-los e a invocar espritos. Tendo-o preparado, estendeu-me. Entretanto, noexato instante em que levava a mo para segur-lo, o maldito corvo, desconfiando datrama, atacou-me furiosamente, quase me vazando os olhos com as garras. Ca aocho, sangrando e estonteado, procurando defender-me do feroz atacante. Ele pulavasobre mim causando-me outros ferimentos, rasgando-me a roupa. Gritei para o bruxo afim de que o mandasse parar, porm por um sortilgio muito forte que o ligava ave,ele no me obedecia, permanecendo imvel. Consegui levantar-me e corri para asrvores, tendo-o sobre minha cabea a bicar-me e a ferir-me impiedosamente. Alichegando, tropecei e ca; por sorte, sobre um galho seco que de imediato segurei-o,desferindo-o sobre o agressor, acertando-o em cheio no primeiro golpe apesar daescurido. A ave caiu e se debateu estonteada; aproveitando-me disto lancei-me sobreela, golpeando-a outras vezes, com raiva, at sentir que seu sangue espirrava portodos os lados. No momento em que isso acontecia, como se a alma da negra avefosse a alma negra do bruxo, ele gritou e rolou por terra. Corri para l e sequer lancei-

    15

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    16/76

    lhe um olhar, preocupando-me to somente em salvar o antdoto. Ele havia sederramado, no obstante restara ainda o suficiente e bebi-o com mo trmula e peitoarfante, nada sentindo de diferente, como, alis, nada havia sentido ao ingerir oveneno.

    Sacudindo o horrendo homem, fi-lo beber mais vinho, antes que se tornassetotalmente consciente de tudo, e mansamente ele permaneceu aguardando as minhasordens. Tinha-o agora sob domnio e fiquei a pensar o que poderia obter usando suafeitiaria. Tinha ouro, terras e liberdade e queria agora todos os prazeres que estascoisas poderiam me proporcionar, mas por quanto tempo? A vida to curta, pensavaainda, logo a gente se transforma num farrapo como esse andrajoso ser. Bom seria euviver muitos anos, com juventude e disposio, eternamente, se possvel, ainda maisagora que me tornara rico e senhor!

    Tendo pensado bastante, acorreu-me uma idia. Perguntei-lhe se poderiaprolongar-me a vida eternamente e ele assentiu com a cabea. Ordenei-lhe ento queme explicasse como faria isto. Ele me informou conhecer o segredo de uma poo queaumentava indefinidamente os anos de vida de uma pessoa. Entretanto, nunca a tinhapreparado por que ela no surtiria efeito nele mesmo, e se a preparasse para algumaconteceria uma troca. Cada vez mais curioso, quis saber que troca seria essa. Ele meexplicou que a partir do momento em que uma pessoa a bebesse, cada dia vivido porela representaria dois dias a menos da existncia do bruxo, abreviando, portanto, o seutempo na Terra. Por isso, obviamente, nunca a preparara.

    De novo pus-me a refletir. O bruxo, ao que tudo indicava, no teria mesmo muitotempo de vida, logo no faria a menor diferena se morresse alguns dias antes. Semorresse antes de chegar confraria, azar dele, pois de todos os modos no lhe dariao ouro, sobretudo porque novamente o recuperara todo e liberdade. Tendo isto emmente, ordenei-lhe que fizesse a poo da longevidade, mas ainda que sob os efeitosda poo, seu instinto de sobrevivncia gritou mais alto e recusou-se. Ameacei bater-lhe, obrigando-o tambm a tomar mais vinho e no sei bem se somente pela ameaa,pelo reforo da poo ou pelos espritos inebriantes do vinho, ele acabou concordando.

    Explicou-me ento haver uma dificuldade e um problema: primeiro, a poo teriade ser preparada sob os primeiros raios noturnos da lua cheia e exposta sete noites mesma lua; segundo, precisaria sacrificar uma serpente e utilizar o seu veneno.Faltavam dois dias para o surgimento da lua cheia, pensei eu. Isto eu podia esperar,agentando ainda os sete dias restantes, mas quanto serpente? Cada vez maisinteressado no assunto, perguntei-lhe se encontraria uma e a aprisionaria, porm nome respondeu. Foi preciso que usasse de mais energia para faz-lo falar e eleconfirmou, dizendo saber preparar um leo que tinha o poder de impregnar com seuodor tudo aquilo em que fosse derramado, atraindo serpes. Satisfeito, ordenei-lhe queo fizesse imediatamente. Ele se arrastou at a arca comeando a misturar lquidos, ainvocar demnios e almas de serpentes. Tendo terminado, informou-me quedeveramos procurar local adequado onde us-lo. Montamos na carroa e partimosdali. Embora ele estivesse sob o efeito da poo, era um bruxo, e no confiava

    16

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    17/76

    inteiramente em sua submisso, haja vista em certos momentos demonstrarresistncia, por isso dei-lhe mais dois goles do vinho.

    Num determinado local, junto a uma pedreira, paramos e descemos. Apoiado emmim, ele se aproximou da pedreira, derramando nela o leo, mandando-me que

    voltasse para a carroa e l permanecesse. Sobre a carroa pude v-lo, ainda queimperfeitamente, acocorado feito ave de rapina, banhado pela luz plida da lua queimprimia cena um efeito sinistro e assustador, como se colorisse a prpria morte. Issoproduziu em mim uma espcie de terror surdo e grande repulsa. Mas eu tinha ido longedemais para recuar e resolvi superar aquela reao, mormente quando todas asventuras do mundo aguardavam-me. Valeria a pena tamanho sacrifcio! De repente, obruxo se ps a soltar sons que invocavam serpentes. Logo pude ver duas delas searrastando e se enrodilhando diante dele. Elas assim permaneceram e ele continuou achamar, at aproximar-se uma grande, maior do que as duas anteriores. Ela parou eele fez um movimento de mo, agora falando, segurando-a pela cabea e alevantando. Em seguida, forou-a destilar gotas de veneno numa caneca de metal. Aov-lo caminhar de volta em passos arrastados, trazendo o repulsivo rptil, fiqueihorrorizado, preparando-me para pular e correr, temendo que ele o fosse jogar sobremim. Chegando carroa ele arfava muito e apoiou-se nela, levantando a mo,mostrando-me a serpente que se enroscava e se remexia em seu brao. O bruxo era,verdadeiramente, grande conhecedor de magia negra e artes de encantamento eaquilo vinha reforar aos meus olhos a fama que tinha adquirido.

    Tendo recuperado o flego, disse-me que precisaria estrangul-la, mas no teriaforas para tal, pedindo-me ajuda. J fora da carroa, neguei-me veementemente aisso, ordenando-lhe que fizesse tudo sozinho, reunindo todas as suas foras. Aserpente, parecendo ter entendido que seria sacrificada, levantou a cauda earremessou-a sobre o rosto do bruxo, assustando-o. Tomado de pavor, gritei-lhe paraque a matasse. Ele, ento, segurou-a com ambas as mos e comeou a apert-la. Elase enrodilhava e lutava e ele gemia e se arcava. Foi uma luta titnica que meconsumiu, tambm, grande dose de energia, tal o terror que de mim se apossara.Finalmente o bruxo caiu sobre o rptil, opresso, gritando com voz rouca, implorandoajuda. Hesitei, mas ante os seguidos apelos aproximei-me, verificando que a serpentede fato houvera sido estrangulada e ajudei-o a se levantar.

    Dia seguinte, ele estava mal humorado. Pouco comeu e surpreendi-o em vriasoportunidades a olhar-me estranhamente, expressando dio na fisionomia. Nervoso,dei-lhe um pouco de vinho e ele o tomou. Depois, comeou a tirar o couro da serpente,cantando e invocando espritos. Feito isso o enrolou num pano, tendo o cuidado deexcluir as presas.

    meia noite do outro dia, ele comeou a preparar a poo, tendo feito fogo efervido ingredientes; em certo instante mandou-me que me aproximasse e estendesse-lhe a mo esquerda. Obedeci e ele me espetou um espinho num dos dedos, fazendo-osangrar. A seguir, tomou a caneca de metal onde havia coletado o veneno da serpentee me espremeu o dedo, derramando uma gota de sangue. Mal o sangue se misturouao veneno ele gritou e esbravejou, como se amaldioasse, virando-se para os quatro

    17

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    18/76

    cantos, falando e gesticulando. Quase desmaiei de medo. Senti as pernas tremerem efraquejarem, no sabendo ao certo se ele estaria me enganando ou de fato produzindoa poo que o obrigava produzir. Nuseas e tonturas sobrevieram-me, pois alm domedo daquele ritual macabro, o cheiro forte daquelas coisas na fervura causava-merepulsa. Sempre invocando, ele derramou o contedo da caneca no caldeiro,

    terminando o ritual por aquela noite, apagando o fogo e indo dormir.Como eu determinasse que no partssemos at que a poo estivesse pronta, na

    noite seguinte ele realizou o segundo ritual no mesmo local, acendendo o fogo,invocando conforme fizera anteriormente, tirando-me outra gota de sangue e alanando diretamente no caldeiro. Assim foi feito durante todo o perodo demanifestao da lua cheia. Na ltima noite, aps tirar-me a gota de sangue, ele deitouo couro da serpente diante do caldeiro, untou-o com o leo antes utilizado para atra-la, gritou e falou palavras estranhas. Deixou-o ali, afastando-se um passo. Logo aforma do esprito da serpente sacrificada viria aninhar-se no couro. Ele a tomou comambas as mos e invocando demnios derramou a forma espiritual da serpente nocaldeiro fervente. A seguir, mergulhou pela primeira vez a caneca na fervura,mexendo-a como se a lavasse, retirando-a com a poo e a estendendo a mim paraque eu bebesse. Tenso por ter presenciado todas aquelas coisas e no confiante aindana sua total submisso aos meus desejos, ordenei-lhe que jurasse em nome de todosos demnios que a poo era verdadeira e caso estivesse mentindo, sua alma seriaeternamente prisioneira deles, e ele jurou.

    A poo no faria efeito se tomada uma nica vez, necessitando tom-la sete diasconsecutivos meia noite, entrando este ritual pelos dias da lua minguante. Dessamaneira, aquela seria somente a primeira dose. Num inexplicvel e sbito impulsoquase arranquei a caneca das mos do bruxo, mirando o lquido, sobrevindo-menovamente nuseas que quase me fizeram perder a coragem. Porm, trazendo mente o quadro acalentado por todos aqueles dias, vi-me senhor e prspero, vivendona abundncia e eternamente, gozando prazeres e humilhando inimigos, e bebi alargos goles, quase vomitando ao final. Recuperando-me, contudo, decidi partirimediatamente abandonando ao bruxo. A fim de que no me visse partir, obriguei-o atomar todo o vinho restante, embebedando-o. Utilizando a mesma bilha, guardei nela apoo e em seguida amarrei o burro numa rvore, descendo a arca do velho asqueroso

    juntamente com os outros objetos de seu uso pessoal. Num ato incomum desolidariedade, dividi com ele partes de um coelho apanhado em armadilha; afinal,aquilo poderia ser seu ltimo alimento. Dali em diante assumia o meu prprio destino,ele que se danasse sozinho! Montei na carroa, e com nojo e desprezo lancei-lhederradeiro olhar, vendo-o dormir a sono solto, deixando-o definitivamente.

    Os dias que se seguiram, gastei-os quase todos retornando por onde houvramospercorrido, conquanto o bruxo forara-me viajar em direo oposta ao que eupretendia. Por dois dias e duas noites permanecera abrigado em pequena e rasacaverna, a fim de proteger-me das seguidas pancadas de chuvas que me impediamviajar. Nesses dois dias, quando a lua se espremia dentre nuvens - exatamente meianoite - sob as frias e midas paredes da gruta, eu tomava da poo, sendo invadido dearrepios e calafrios. Finalmente, na stima noite, longe do lugar onde abandonara o

    18

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    19/76

    bruxo prpria sorte, tomei a ltima dose, lanando fora o que restara da poo,quebrando a bilha de encontro a uma rvore. Afora aquelas rpidas e j conhecidasreaes, nada mais sentira, exceto ao crescer da certeza de que a poo redundariaem sucesso e viveria eternamente rico e senhor!

    Mas o pior estava por acontecer. Dois dias depois da ltima dose, enquantoviajava cautelosamente por caminhos secundrios sob a palidez da argntea lua,procurando desviar-me de vilas e lugarejos, senti-me mal. Uma sensao de desmaioabraou-me e parei a carroa, deitando-me na relva. Um suor surpreendente veiolavar-me a testa. Senti que enfraquecia, comeando a ver nuvens e sombras diante demeu rosto. Sbito, as sombras criaram vida e forma e a cara horrvel do bruxo surgiuenorme, rindo pavorosamente, acompanhada de um sqito de seres gneos que serevolviam numa dana macabra. Impossibilitado de mover-me, via a tudo paralisado,escutando de novo aquela voz que to bem conhecia, agora mil vezes maisabominvel:

    Mortal idiota! Queres viver eternamente? No sabes que este poder somente temLcifer, por seu prprio e indissolvel selo com o mal - ele, o senhor indiscutvel dacincia maligna e execranda, da qual sou somente um discpulo? No, no sabes porque nada s alm de um verme. Como pudeste crer que somente ingerindo umapoo, viverias para sempre e sem pagares um tributo? Ao fazeres isto e roubaresalguns dias de minha existncia, deixando-me morrer de inanio, levando o meu ouro,atraste uma horrvel maldio. Um vnculo muito forte foi criado entre tua insignificantealma, a minha e os poderes das trevas. Agora no poders mais recuar. O ouro te sermaldito, porque mais ainda ele atrair tua cobia. Porm, ao mesmo tempo, nopoders passar um nico dia longe dele, ou o perders. Por t-lo roubado de mim e metirado a oportunidade de ser aceito na confraria dos bruxos, fazendo parte da grandemesa, no poders ficar longe do ouro e no gastars uma nica moeda que novenha redundar-te em prejuzo ou desgosto. Vivers muitos anos, no eternamentecomo supuseste, porm muitos e tantos que desejars morrer, tal o tdio de tuaexistncia. Todavia, ao morreres, no estars livre dessa maldio. Aqui estaremospara nos apossarmos de tua alma, infeliz e ignorante mortal!

    Se feio sou, no sei como estaria a expresso de meu rosto naquele momento.Deveria estar horrvel, porque sentia os cabelos arrepiarem e os olhos quase saltaremdas rbitas. Mesmo assim, consegui balbuciar algumas palavras, dizendo-mearrependido e disposto a pagar pelo meu erro para livrar-me da maldio. O bruxo riuestrepitosamente, quase estourando os meus ouvidos e respondeu:

    Tarde demais. s to repelente que no possuas uma virtude sequer antes deingerires a poo, muito menos agora a possus. Desista, homenzinho, estsirremediavelmente perdido. Somente uma virtude desperta em teu corao poderiadissolver os fortes grilhes a que te aprisionastes, e teu corao duro como a pedra,ah... ah...ah! Toma, eis o novo selo de nossa aliana!

    Ele levantou a mo e lanou sobre mim a alma da serpente que no se dissolverano caldeiro como eu supusera. Ela picou-me o brao e queimou-me por dentro

    19

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    20/76

    fazendo-me desmaiar tamanha a dor. Ao acordar, o sol j se levantava. Estava tonto ecom sede. Trpego, andei at a carroa puxada mais adiante pelo animal quecalmamente pastava, e bebi gua. Meu brao ardia. Ao levantar a manga da camisa, vicom espanto a dupla marca das presas da serpente, marcas estas que carrego athoje, e o sangue ressecado, escorrido dos ferimentos. Apavorado, pulei para dentro da

    carroa e abri o ba, verificando com alvio o ouro intacto, lembrando-me das palavrasdo bruxo.

    Sem alternativa me pus a caminho, ainda enfraquecido, buscando um local maisescondido para passar o dia, pois onde me encontrava poderia ser surpreendido, eentrei no bosque. Entretanto, as imagens mentais no me abandonavam, mantendo-seperfeitamente ntidas em minha memria acompanhadas do persistente eco daspalavras do bruxo em minha conscincia.

    Encontrando um local apropriado ali fiquei a meditar sobre tudo, concluindo, afinal,que se a maldio havia recado sobre mim de nada adiantaria ir tomar posse dasterras e do castelo, pois me arriscava a perder tudo e ao ouro. Sendo senhor, comoevitar passar um dia longe do ouro, tendo de tudo administrar e viajar a negcios?Alm do mais, por supina infelicidade, no poderia dispor de uma nica moeda daqueletesouro enquanto a maldio existisse. Desalentado, resolvi me esconder e buscaruma soluo para anular a maldio do bruxo, dispondo novamente do ouro. Assim,enfiei-me cada vez mais no interior deste bosque at chegar a esse lugar, achandoesta casa abandonada, escondendo o ouro e aqui permanecendo.

    Todavia, os dias iam se sucedendo, os meses, os anos e nada acontecia. Porvezes chegava a pensar que tal maldio em verdade no existiria ou se existisse jteria perdido a sua fora. Porm, ante este pensamento, logo ouvia no ar a gargalhadado bruxo, sentindo meu brao a doer horrivelmente no exato lugar onde eu fora picadopela serpente. Assustado, corria para o esconderijo onde deixara o ba e abria-o,certificando-me com alvio que o ouro ali estava, intacto e todo meu!

    Mais anos se passaram, dezenas. O tdio veio possuir-me, fazendo-me sofrerindescritivelmente, crendo-me um morto vivo, semi sepultado, o que de fato sou. Emvrias oportunidades pensei em dar cabo de mim, pr um final ao que me pareciainexistncia, mas ao lembrar-me que minha alma seria aprisionada pelos malignos,recuava temeroso. Ademais, a idia de apartar-me do ouro violentava-me, nodesejando isso de forma alguma. Somente viajantes extraviados em suas rotascostumam ainda passar por aqui, encontrando-me em casa ou pelas redondezas.Aproveitando esses momentos, converso um pouco tentando saber notcias do mundo,qual poca estamos atravessando, qual rei nos dirige, se h guerras e outras coisasmais. Para afast-los de mim conto-lhes que sou um amaldioado, confirmando a lendaque inventei de um mal contagioso. Dessa maneira, aqui escondido, venho mantendo oouro a salvo de especuladores, no obstante ter-me tornado conhecido no reino inteiro.

    Mas os incrveis acontecimentos de minha vida no terminam por aqui, carotrovador. H outro fato somado maldio que passo a relatar-te: certa noite,deprimido pela solido, tendo unicamente a companhia dos grilos e corujas a emitirem

    20

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    21/76

    sons, senti-me sufocado, verdadeiramente desesperado. No agentava mais essaexistncia. Tentei chorar, mas no pude. Alis, em toda a minha secular vida, jamaisconsegui derramar uma nica lgrima. Dizem que o choro, por vezes, faz extravasardores, acalmar e at consolar, mas nunca pude provar dessa forma de desabafo.Impossibilitado desse recurso, cada vez mais estrangulado pelas sensaes, atingia ao

    auge de um desespero nunca antes experimentado. Uma onda de raiva veio emseguida possuir-me e comecei a quebrar coisas, a golpear a mesa e socar paredes,somente parando ao sentir-me esgotado e com o corpo dolorido. Ento, cado ao cho,opresso e imvel, comecei novamente a relembrar as palavras do bruxo, tentandoencontrar nelas uma pista que me possibilitasse fazer uma tentativa de libertao, masnada encontrei. Como estava, permaneci, e dormi profundamente, tendo um sonhoestranho e marcante. No sonho vi outra serpente em chamas com olhos a arderem demaneira indescritvel. Tremi e temi-a, pois j havia provado a malignidade da outra.Produzindo movimentos inconstantes, em p, danando em crculos, ela comeou afalar-me:

    Infeliz mortal. O peso da maldio que contraste torna-te desesperado, no?Queres a liberdade, mas no a podes ter. Temes a morte porque tua alma prisioneiradas trevas. Apesar de tudo, no te arrependeste ainda de teus atos passados; teucorao permanece endurecido e congelado. s duplamente infeliz: prisioneiro de tuaimensa ambio e presa fcil e indefesa dos poderes das trevas. No obstante, aindaque sejas uma ovelha negra e desgarrada, resta para ti uma esperana. Somente umachama ardente poder aquecer teu glido corao, fazendo timbrar uma nota quedesconhecesses e se anela a uma virtude humana que no a possus. Porm, tu notens como atear no corao tal chama benigna. s vazio e intil e, por consequncia,

    jazes inerte como a prpria morte. Por isso vou auxiliar-te, cumprindo ordens dospoderes superiores que a tudo velam. Deixar-te-ei algo, que um dia, no sei quando, teser valioso e til, saiba guard-la!

    Dizendo isso, a serpente lanou-se sobre o meu brao e picou-me no exato localonde eu trazia a marca dupla produzida pela outra serpente. Foi de novo uma dorhorrvel que me queimou e me fez acordar aos gritos. Ao levantar a manga da camisavi com incredulidade, saindo de dentro dos ferimentos, emaranhando-se numa sforma, uma mecha de cabelos vermelhos, que de to viva quase reluzia sob a fraca luzda vela ao cho, salva por milagre de minha fria destrutiva. Repugnado, puxei-a e aatirei longe, afastando-me. Pouco depois, mais recuperado, aproximei-me pegando-a ea lanando fora atravs da janela. Dia seguinte, via-a ali. Essa viso causou-me atempestuosa lembrana da apario. Na verdade, eu no a esquecera completamente,porque mal dormira de tanto me doer os ferimentos. Enraivecido e descrente de tudo,peguei-a novamente, saindo para dentro do bosque, enterrando-a em lugar distante,disposto a no dar ouvidos a mais nada, julgando que estivera fora da razo.

    Aquele dia se passou sem outras surpresas. Porm, na manh seguinte, ao abrir ajanela quase ca para trs, tamanho o espanto: a mecha vermelha ali estava sobre opeitoril. Inconformado, segurei-a e parti para o lugar onde a enterrara, encontrando oburaco fechado exatamente como o havia deixado. Escavei-o, e para outra de minhassurpresas, nada ali encontrei! Decidido fui mais longe e cavei outro buraco mais

    21

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    22/76

    profundo, jogando a mecha em seu interior, tapando-o. Mas ela novamente voltou,dessa feita no bico de um pssaro vermelho que a jogou sobre mim, mesa.Acreditando, ento, que teria algo de mgico, aliado ao fato de que surgira de meuprprio sangue, resolvi guard-la.

    Daquele dia para c, nada de novidade apareceu-me, exceto tua presena aqui,senhor Sertrio, dentro dessa casa, minha mesa, coisa jamais acontecida com outrapessoa em mais de um sculo. Alis, ultimamente tenho encontrado pessoas commaior constncia. No obstante temerem-me quase todas e algumas sair a corrertresloucadamente, Isso me faz concluir duas coisas: primeira, meu esconderijo nomais se encontra to afastado assim das trilhas e estradas que levam s vilas ecidades; segunda, minha fama de amaldioado j grande demais para que eupermanea perfeitamente seguro por aqui, pois temo a investida de algum aventureiromais ousado que suspeite eu esconder alguma coisa valiosa. natural te perguntarescomo consigo ter roupas, panos e cobertores, utenslios, ou mesmo boas ferramentasaps tantos anos de recluso. Acontece que a despeito de minha fama e do terror quea maldio desperta, existe ainda pessoas apiedadas de minha condio. Assim, umou outro viajante, a quem exijo o mais absoluto sigilo sobre a localizao exata de meuesconderijo, deixando ao acaso sua descoberta pelos passantes, trazem-me essascoisas em troca de agradecimento, julgando-me miservel. uma ironia, no, senhorSertrio, eu, possuidor de uma fortuna em ouro, no poder pagar por uma camisa, umacala ou qualquer outro objeto, ficando a receber doaes?

    Outra questo deve tambm ter perambulado em teus pensamentos no decorrerde minha narrativa: como consigo viver nesse fim de mundo? Instinto de sobrevivncia,talvez; adaptabilidade s regras da vida natural; sorte ou sortilgio, no sei bem. Aoaqui chegar e apossar-me dessa casa, quase nada em verdade nela existia. Mas aocorrer em redor encontrei algumas coisas que me serviriam. Alm de frutas, constateiexistir abundncia de pssaros e coelhos para caar. Por quase um ms alimentei-medisso, trazendo gua de um regato correndo ao largo, pouco distante daqui, mas meenjoando de tudo, sonhando com po, bolinhos e outras variedades. Ademais, a casanecessitava de reparos e eu no possua uma nica ferramenta.

    Decidido, resolvi um dia sair em busca dessas coisas, nem que precisasse viajarmuito, no me importando com esse sacrifcio, visto ter de permanecer por muitos anosnesse lugar. Carregando o ba com o ouro, coisa sumamente trabalhosa por queprecisava primeiro descarreg-lo para torn-lo leve, parti noite, fazendo marcas esinais aonde ia passando a fim de que, no retorno, encontrasse o caminho semdificuldade. Na terceira noite de ininterrupta viagem, vi ao longe uma vila. Tendocavado um buraco e enterrado o ba, trabalho este que me fez despender quase o diainteiro e grande dose de energia, visto precisar utilizar paus como escavadeiras, partipara a vila. L chegando, pude comprar tudo o que precisava na oportunidade,trazendo, pois, sementes diversas, farinha de trigo, milho, galinhas, reprodutores,toucinho, po, fermento, vinho, ferramentas, cobertores, lenis, pratos, canecas,talheres, etc. Como o ouro que possusse no bastasse e temeroso de usar do outro,negociei com o medalho e o cordo tirados do rei, evidentemente no contando averdade sobre a sua origem, obtendo ainda troco.

    22

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    23/76

    Ao encher a carroa com essas mercadorias, fiz-me alvo da curiosidade geral etemi ser pilhado por ladres, anunciando ento que prosseguiria viagem para a vilavizinha, dormindo a poucas milhas dali, debaixo de rvores. Mal sa, tomei o caminhooposto, disfarando a trilha deixada pelas rodas da carroa, e corri para o ba,

    desenterrando-o e imediatamente partindo na noite. Consegui retornar sem dificuldadepor que as marcas deixadas eram visveis e auxiliaram-me. Com o que trouxera, pudecriar, plantar, colher e cozinhar, nunca deixando que se esgotassem. Afinal, tempo paratratar dessas coisas jamais me faltaria. Da casa, cuidei-a da melhor maneira possvel,arranjando troncos, fabricando tbuas, amarrando cips, inventando colas de resinas.Entretanto, como viesse a necessitar de mais coisas, fiz com o tempo mais duasdessas viagens, visitando outras vilas, porque temia ser reconhecido onde estiveraantes. Gastei o que me restara do ouro recebido de troco do comerciante anterior enegociei com as jias que tirara do rei, e com o cordo e medalho tomados dotesoureiro. Nas duas ltimas viagens procedi como da primeira vez, levando comigo oba, enterrando-o e depois o desenterrando. Mais tarde, como o animal que possusseviesse a morrer, no pude realizar mais viagens e aqui me encerrei definitivamente.Essa a minha histria, senhor Sertrio, incrvel, porm verdadeira, e prisioneiro estouda maldio, a espera que um dia, como me prometeu a serpente, possa encontrar avirtude que me libertar.

    Antes que Sertrio dissesse qualquer coisa, o bufo enfiou dois dedos entre o cintoe a cintura puxando a mecha de cabelos vermelhos, atirando-a sobre a mesa. Sertrioolhou-a com curiosidade, sem toc-la, voltando a encar-lo, induzindo e perguntando:

    - Supondo que tua histria seja verdadeira, senhor Aldegundes, estes cabelos setenham materializado de teu prprio sangue e o ouro de fato exista aqui guardado, queesperas de mim para auxiliar-te?

    O bufo apoiou um brao na mesa e arregaou a manga da camisa.- Vs, aqui esto as marcas de que te falei. Num lugar qualquer est o ba com o

    ouro. Estou cansado, senhor Sertrio, realmente muito cansado. Tendo ouvido falar deti e de teus feitos, julgo que sejas o nico homem de quem tenho notcias capaz deajudar-me. No saberia como procurar sozinho uma virtude, ou algo fazer para melibertar da maldio.

    Sertrio, levando a mo ao queixo ficou pensativo por instantes. Aldegundesolhava-o silenciosamente, piscando com apreenso. Ento o visitante falou:

    - H entre ns, criaturas do mesmo Pai, obrigaes e dvidas. Isto se estende paraalm das fronteiras humanas, atingindo, pois, o reino das almas. No vejo comoauxiliar-te a sair desta longussima enrascada em que te meteste, senhor Aldegundes,sem ficares a dever-me pelo servio, endividando-te tambm comigo.

    O bufo enrijeceu o tronco e apoiou as mos nervosamente na beirada da mesa,piscando assustado e desconcertado.

    - Ento... no h virtudes em ti e recebes pelo que fazes? perguntou aindaagitado.

    23

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    24/76

    - Fosse eu um santo a peregrinar e ensinar pelo mundo, como viveria sem a pagade meus servios? H diversas formas de pagamentos ou compensaes, como hservios e ajudas. Ademais, o virtuosismo no se desmerece por um punhado demoedas de ouro, nem por centenas de milhares delas. Existe, exatamente, por serdistinto e independente de tal apego, sabendo dar e receber. Assim, senhor bufo,

    proponho-me auxiliar-te, em resposta ao teu apelo, por uma boa recompensa de teuouro maldito!- Meu ouro? levantou-se o homenzinho - jamais, nunca!- Que tens ento a oferecer-me em troca?- perguntou calmamente, mostrando um

    sorriso de malcia. Aldegundes olhou em torno e nada respondeu.- Vs, nada tens devalor para cambiar a no ser o ouro, que dizes?

    Aldegundes voltou a sentar-se, carregando no cenho expresso de profundacontrariedade. De repente, seus olhos cintilaram e o rosto encheu-se com ar desatisfao:

    - Lembras-te das palavras do bruxo? Disse-me ele que eu no gastaria uma smoeda que no me viesse trazer prejuzo ou desgosto. Como, pois, dar-te o ouro?

    - Entendas tu, senhor Aldegundes, de que no o estars negociando. Pagars poruma virtude que te libertar dessa mesma maldio. Que tens assim a perder sedesperdiaste uma vida inteira por causa desse mesmo ouro? O bufo carregou denovo o cenho, levantando-se e andando de um lado para outro a murmurar:

    - Meu ouro, meu ouro!

    Como o homenzinho no se decidisse, Sertrio pediu-lhe que lhe mostrasse ondedormiria. Aldegundes, ainda contrariado, trouxe-o at um quarto vazio e apontou para ocho de terra.

    - No tenho outra acomodao a oferecer-te, trovador, mas arranjarei algumapalha seca para teu melhor conforto! Sertrio saiu e retornou trazendo ao ombro seucobertor de l, falando ao bufo:

    - Aguardo por tua resposta pela manh. Dono de meu destino, daqui parto peloscaminhos do mundo sob o sol abenoado, livre como o ar e o vento.

    Aldegundes saiu resmungando levando a vela, deixando Sertrio mergulhado naescurido. Pela madrugada, Sertrio foi acordado pelo bufo. Sob a oscilante chama,seu rosto mostrava intensa preocupao, denotando que ainda no dormira.

    - Como pretendes encontrar a virtude que me falta? perguntou sem delongas.Sertrio sentou-se provocando rudo nas palhas e redargiu com seriedade:

    - J decidiste pagar-me?- Primeiro conte-me como irs ajudar-me?- Primeiro a promessa do pagamento! O bufo levantou-se soltando imprecaes.

    Sertrio riu e deitou-se novamente, sem desviar-lhe os olhos. Ele de novo andavade um lado a outro. Finalmente parou e dobrou as pernas, pondo-se de ccoras, comimpacincia:

    - Est bem, prometo pagar-te do ouro!- Quanto?- Dez moedas!

    24

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    25/76

    - Nada feito.- Vinte!- Hum, hum!- Ofereo-te ento cinqenta, nem uma a mais!- Quero um tero do que existe no ba!

    - Um tero? loucura, roubo! No farei negcio contigo! E saiu furioso, deixandoo quarto a escurecer como antes.

    De madrugada, Sertrio levantou-se e andou p ante p. Ao chegar cozinhanada havia visto ou percebido. A escurido era intensa e ele tateou pela parede,encontrando uma porta. Cuidadosamente abriu-a. Ao sair, percebeu uma luztremeluzente no fundo do quintal, junto base do barranco. Aproximou-se, guardandocautelosa distncia, e pode ver com certa nitidez que o bufo retirava do ba muitasmoedas, enchendo um caixote rude. Havia um buraco cavado no barranco e montes deterra espalhados. Sertrio sorriu e voltou ao quarto, deitando-se novamente edormindo.

    Ao levantar, pouco depois do dia raiar, foi recebido pelo bufo mesa, com odesjejum pronto. Eram frutas e um caldo quente e Sertrio se alimentou. Houveproposital silncio de sua parte. Aldegundes, por seu turno, nada tambm dizia. Aps orepasto, Sertrio encaminhou-se para o fundo do quintal, dando milho e gua aFirmamento e o encilhando. Ao puxar o belo animal e passar adiante da porta o bufoali o aguardava, Sertrio trouxe o chapu ao peito, dobrou-se levemente e disse:

    - Muito te agradeo pela hospitalidade, senhor Aldegundes. No tenho ouro emomentos existem em que moedas pouco valem diante do que nos proporcionam.Assim mesmo pagar-te-ia se tivesse. Impossibilitado, porm, ofereo-te o que de maisprecioso possuo na humilde inteno de recompensar-te.

    E trazendo a viola aos braos, cantou e recitou uma trova - admirveis momentosde inspirada arte. Mas, como antes, o bufo no se comoveu com a preciosa oferendado artista, permanecendo rijo e surdo. Terminado, Sertrio conduziu Firmamento emdireo ao porto e antes mesmo de ali chegar, Aldegundes j o alcanava colocando-se ao seu lado, falando nervosamente:

    - Setenta moedas! Sertrio meneou negativamente a cabea, continuando acaminhar. Aldegundes o alcanou fora da propriedade e ao seu lado novamenteprops-lhe:

    - Cem! Sertrio no parou e nem respondeu, ele fez novo lance:- Uma ltima oferta: cento e vinte moedas! Sertrio, silencioso, voltou-se para

    Firmamento e fez meno de montar.- Est bem, fazes-me chantagem, um tero do que tenho no ba. Sertrio estancou

    o movimento e Aldegundes olhou-o interrogativamente.- Um tero do teu ouro, incluindo aquele que retiraste do ba esta madrugada.- Raios, ento me surpreendeste? reclamou furioso.- Pela ltima vez, senhor bufo, aceita minha proposta, ou parto imediatamente?- Maldio, no tenho alternativa. Dize-me, ento, como irs encontr-la?- Primeiramente indo e vindo por a, sozinho, at que o momento eleito acontea.- Somente isso? interrogou-o com ar atarantado.

    25

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    26/76

    - Por enquanto, somente. O bufo grunhiu e gesticulou, andandoimpacientemente.

    - Diabos, demnios, como posso confiar em ti homem? Julgava-te uma coisa,agora vejo-te totalmente diferente! - sbito, com a mesma cara enfarruscada, voltou-seagitadamente para Sertrio - E que garantias me ds, trovador, de que irs retornar

    com a virtude, ou com os meios de eu consegu-la?- Retornarei. Basta dar-te minha palavra. Se houver achado a virtude que te falta,ela vir comigo! Furioso, o bufo entrou, deixando Sertrio a sorrir largamente.

    Sertrio partiu levando um tero do ouro. Eram muitas moedas e ele encheu doissacos velhos que o bufo possua, - de ganhos dos passantes, - reforados com fibrasobtidas nos arredores, jogando-os aos flancos de Firmamento. Aldegundes, deccoras, cotovelos nos joelhos, braos encolhidos e mos semi fechadas, mordia-as epraguejava, vendo-o aos poucos desaparecer por entre ramagens e folhas, ouvindo-lheo canto cada vez mais fraco.

    O tempo passou, trs meses. Certo dia, Aldegundes corre porta para atender aum chamado. Ao ver que se tratava de Sertrio quase teve um desmaio; recuperou-se,no entanto, mandando-o que se aproximasse. O trovador, puxando Firmamento,chegou-se com sorriso despreocupado e rosto a irradiar alegria e zombaria.Aldegundes, ao contrrio, vestia-se de caracterstica carranca. Sertrio, parando a trspassos da porta, retirou o chapu da cabea e o cumprimentou com habitual vnia,dobrando-se ligeiramente:

    - Boa tarde, senhor Aldegundes, eis-me de volta, conforme te prometi.- Trazendo-me o que foste buscar, espero!- Trazendo-te notcias do mundo, em princpio.- Que me interessam as notcias do mundo neste momento. Quero somente aquilo

    que necessito e pelo que te paguei! respondeu em tom agressivo.- certo, senhor Aldegundes, pois so as notcias que te trago que necessitas.

    Mas no me convidas a entrar como outrora e no me ofereces alimento?

    Aldegundes mirou-o desconfiado e grunhiu. Como Sertrio nada mais dissesse eaguardasse, ele deu um passo atrs, fazendo aceno afirmativo de cabea. Aps arefeio, em que o silncio novamente imperou, Sertrio resolveu falar, olhando oansioso e feio rosto do bufo.

    - Pois bem, senhor Aldegundes, lamento dizer-te que nada encontrei que possaservir-te.

    - Nada encontraste? Que fizeste do meu ouro?- Distribui-o aos necessitados.

    -Distribuste-o aos necessitados? - o truo enfureceu-se, levantando-serepentinamente, batendo com os punhos na mesa - O meu ouro? Diabos, que homems tu, onde est tua honra, tua palavra?

    - Diante de ti, homenzinho esquisito! No te prometi que algo traria, mas sim, queandaria at o momento eleito acontecer. Porm, o quase indecifrvel destino no quisainda mostrar-te o estreito caminho da salvao e eis-me aqui, cumprindo minhapromessa de voltar.

    26

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    27/76

    - Meu ouro, fui enganado! ele sentou-se, apoiando a cabea com as mos elamentando.

    - No lamentes o destino de teu amaldioado ouro, avaro! Ao invs, deveslamentar tua insipincia e cupidez. s ainda cego e tolo, aps tantos anos j vividos.

    - Sou um homem amaldioado, j te disse! resmungou com choraminga sem

    alterar a postura.- s pior do que isto: s uma alma trancafiada em tua prpria criao. Apesar detodas as coisas acontecidas erigiste outro cativeiro e nele te encerrastevoluntariamente, assim permanecendo.

    - Que fao agora, como vou livrar-me da maldio? O bruxo estava certo, comeoa ter prejuzos e desgostos!

    - Cala-te, boca insana! Olha ao menos uma vez para dentro de ti e busca aesperana que te resta!

    - Viverei eternamente aqui, estou prisioneiro das foras satnicas, que fazer? Obufo no se acalmava, chorando a sua sorte.

    - D-me mais um tero do teu ouro que continuarei na busca do que precisas falou Sertrio com naturalidade.

    - Meu ouro? Ests louco? Fico pobre! gritou, quase pulando tal o espanto,olhando-o com fisionomia alterada.

    - Ento, creio nada mais poder fazer-te; sem ouro, sem ajuda!- Ladro eis o que s! Roubaste-me uma vez e queres roubar-me outra. No te

    darei nem mais uma moeda, meu o ouro!- Serei eu de fato o ladro? De onde te veio o ouro, e de que maneira?- Arrisquei minha vida para ganh-lo!- Para roub-lo, hipcrita! Ele no te pertence por direito, nem uma s moeda. Tu

    s o ladro, no eu! Apenas fi-lo retornar em parte a quem ele de fato pertence. Se,todavia, preferes viver encerrado e amaldioado em tua horrvel teia, no te lamentes.Tudo tem um preo. Se no queres pagar por tua liberdade, fazes a pior escolha. Vou-me embora, adeus, senhor bufo!

    - Espera! J dei-te um tero do ouro, portanto paguei-te por minha liberdade.Tenho o direito de exigi-la!

    - A quem? O bufo calou-se, olhando-o nervosamente. Logo, entretanto,insistindo:

    - Fizeste um preo, assim assumiste um compromisso, cumpra-o agora!- O ouro que me deste somente pagou uma parte de teus males. A virtude est

    ainda escondida. D-me mais ouro, outro tero, ou ters perdido uma coisa e outra.- Ladino, espertalho! No te darei!- Ento, adeus, homem tolo. Nada mais posso fazer para ajudar-te!

    E Sertrio levantou-se, saindo. Aldegundes apoiou de novo a cabea com as mosficando a resmungar e a dizer imprecaes. Pouco depois, ao levantar o rosto dando-se conta de que se encontrava novamente sozinho, desesperou-se, saindo porta afora,gritando feito louco:

    - Senhor Sertrio, senhor Sertrio!

    Sertrio, andando pelo quintal, puxava Firmamento. Aldegundes, transtornando,parou adiante, implorando de mos juntas:

    27

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    28/76

    - No se v, por favor!- Nada de querelas ou barganhas. D-me imediatamente outro tero do ouro ou

    no te darei ateno!- Dou-te, mas, por favor, ajuda-me!

    Sertrio partiu e, como antes, voltou alguns meses depois. Ao contar para o bufoque nada trazia e de novo distribura o ouro aos necessitados, ele sentou-se alimesmo, urrando feito animal ferido. No conseguindo verter lgrimas, puxava oscabelos e rolava pelo cho. Sertrio assistia a tudo impassivelmente, ao trmino dodesespero houve um silncio sepulcral. Finalmente, o bufo falou com voz desanimadae arrastada:

    - Voltaste no s para dar-me conta de teus atos, mas tambm para levar-me oltimo tero do meu ouro.

    - Exatamente, senhor Aldegundes! confirmou simplesmente Sertrio.- E ests absolutamente convicto de que te darei?- No, totalmente, porm com muita resistncia, creio ainda.- Pois te enganas, astuto trovador. Desta feita no mais resistirei. Porm, no irs

    s; iremos ambos juntos em tua companhia, meu ouro e eu.- Bravos, senhor Aldegundes, mostras afinal sensatez! Todavia, permite-me aduzir

    duas exigncias: primeira, irs onde eu for; segunda, o ouro estar sob minha custdia,fazendo eu prprio uso dele sempre que necessrio.

    - Ento o ouro no mais me pertencer?- Nenhuma s moeda, se desejares encontrar tua virtude, naturalmente. O bufo

    estava realmente desalentado e esgotado e fez um breve aceno de cabeaconcordando. Tal foram essa facilidade e submisso que Sertrio de novosurpreendeu-se.

    A noite parecera no produzir bons eflvios na alma de Aldegundes. Pela manhacordara irritado e maledicente, resmungando entre dentes pelos cantos aonde ia.

    Partiram. Sertrio cavalgava tranquilamente, levando como antes o ouro sobreFirmamento em dois sacos iguais. J houvera convidado o companheiro de viagempara que montasse, tendo recebido resposta negativa, acompanhada de um grunhido.Em dado instante, notando os fragmentos dos raios solares a se intrometer dentre osespremidos espaos arbreos e a espalhar figuras mltiplas pelo cho, Sertrio, tocadoem sua sensibilidade, trouxe a viola adiante, afogando-a de encontro ao peito eafagando-a com mos carinhosas de pai e de mestre. Ento, fazendo escorregar osartsticos dedos sobre as reluzentes cordas, despertou-a da inrcia. Como umgigantesco alento, sua audaciosa e limpa voz tonificou com tal ritmo a alma da florestaque s os deuses dos homens saberiam inspirar. Depois mais e mais.

    Porm, se a alma de todas as coisas ali se regozijava, incluindo o dcil animal quesacudia a cabea em assentimento, Aldegundes, ainda surdo para a magia dos sons,caminhava ensimesmado em seu egocntrico e descolorido mundo, to descoloridocomo era neste momento o seu rosto cor de cera. Mas Sertrio no se incomodava,acostumara-se com almas assim em suas andanas e retornou a viola s costas,passando a assobiar e a murmurar trechos e variaes de seu grande repertrio.

    28

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    29/76

    No muito haviam caminhado o bufo pediu para descansar. Sertrio, aindaassobiando, freou Firmamento, sentando-se de lado na cela, dobrando uma perna.Aldegundes encostou-se num tronco de rvore e se esticou, gemendo. Como o tempopassasse, Sertrio chamou-o para continuar viagem por que havia muito a vencer.

    Aldegundes no quis obedecer e Sertrio tomou posio tocando Firmamento. Obufo, vendo que ficaria para trs, levantou-se de imediato e os alcanou poucospassos adiante. Mal tinham vencido curta distncia, Aldegundes pediu novamente paradescansar. Sertrio mais uma vez aquiesceu, pulando de Firmamento, desta feitaandando pelos arredores cata de frutas silvestres, nada encontrando. Pouco depois,insistia novamente para prosseguirem e retomava a iniciativa. Numa terceira vez, obufo resolveu pedir-lhe para montar, ao que Sertrio concordando com maliciososorriso, estendeu-lhe a mo puxando-o para o dorso do animal. Adiante, era Sertrioquem descia e puxava Firmamento pelas rdeas a fim de no for-lo em demasia,pois alm dos cavaleiros, o animal levava muitos quilos em ouro e dois grossoscobertores. Depois o bufo descia e andava e Sertrio cavalgava.

    Neste rodzio de posies, alcanaram um casebre de pessoas conhecidas deSertrio, num local retirado da vegetao mais densa, rodeado por um riachodeslizante sobre muitas pedras. Era o lar de um lenhador que ali vivia com a mulher edois filhos. Sendo prximo do meio dia, os homens retornavam do trabalho numacarroa rude, carregando troncos, e se encontraram todos ao porto. Aps saudaeshabituais e alegres, aguardaram pela apresentao de Aldegundes, ao qual olhavamadmirados. Sertrio apresentou-o como um amigo. Eles o saudaram e receberam emtroca grunhidos e meneios de cabea do truo.

    Convidados a entrar, encontraram a mulher alegre e jovial a receb-los. Sentaram-se todos mesa e o esquisito Aldegundes nada falou, preocupado to somente emcomer. Ao final, Sertrio quis pagar pela refeio, mas o dono da casa negou-se areceber, dizendo que o ouro ganho nas duas vezes em que ele aqui estivera forasuficiente para propiciar-lhe adquirir uma parelha de animais novos. Os animaisdesempenhavam a contento o trabalho, ajudando-os obter pequenos lucros. Pelaprimeira vez Aldegundes pareceu escutar os assuntos, levantando a cabea e olhandoinquisitivamente para Sertrio. Mas a mulher quis ouvir Sertrio cantar. Ele, satisfeito,puxou a viola e a atendeu, inebriando os coraes generosos daquela gente humilde.

    Prosseguiram viagem por dez dias. Sertrio tinha muitos amigos e os ia visitando.Nessas paradas, aproveitavam para alimentar-se, s vezes dormir sob seus tetos. Aofinal, Sertrio pagava-lhes. Alguns, a exemplo do lenhador, no aceitavam opagamento; outros mais necessitados, sim. Por todo o trajeto presenciaram tambmpobreza ou misria. Sertrio, condodo, ofertava-lhes um pouco do ouro para amenizar-lhes o sofrimento. Cada punhado de moedas distribudas - guardado o devido cuidadopara no lhes mostrar de onde as retirava e quanto possua - pois os sacos passavampor bagagem comum embrulhados pelos cobertores, Aldegundes contorcia-se e sesentia apunhalar. Por causa destas extravagncias do trovador, o bufo tornara-semais ainda taciturno, quase assustador a quantos o viam com sua carranca.

    29

  • 8/14/2019 ALMA, MAGIA E SEDUO

    30/76

    Ao cabo do dcimo dia, o ouro de um dos sacos houvera acabado. Aldegundesparecia ter envelhecido cem anos. O relacionamento entre ambos tornava-se cada vezmais difcil, como de dois estranhos, entendendo-se quase que exclusivamente atravsde gestos. Durante as noites, enquanto dormiam em confortveis quartos, em paiis ousob rvores, ajudados s vezes contra o frio por fogueiras, Sertrio acordava ouvindo

    os reclamos e gritos do companheiro em seguidos pesadelos. No dcimo quinto dia de jornada, esgotados, avistaram o mosteiro. Isso animou o trovador por que afinaldescansaria, mas Aldegundes no se alterou, olhando o prdio simplesmente.

    Em l chegando, Sertrio foi recebido com calor e levado para um dos aposentosde hspedes, o mesmo sucedendo a Aldegundes. Aps o banho e vestido com umhbito emprestado, Sertrio compareceu diante dos religiosos. Na oportunidade,contou-lhes somente parte da histria, pois se detinha promessa do silncio feita aobufo e ofereceu-lhes o ouro que restara a fim de que o utilizassem como achassemmelhor. Antes, porm, pediu-lhes licena, derramando o ouro no cho, ficando aremex-lo por uns momentos, finalmente se levantando e mostrando-lhes uma moeda.

    - Eis o terceiro deles. A cada tero do ouro encontrei dentre as moedas um dobro.Estranho valor de um pas longnquo, logo no pertencente ao nosso padro, por issoretirei-os. Fico com eles at saber ao certo o que fazer.

    Ambos permaneceram por uma semana no mosteiro. Sertrio descansava emeditava. Aldegundes, calado, trancafiara-se no seu quarto, abrindo somente a portapara receber alimentos. Findo este perodo, Sertrio veio-lhe ao encontro, propondo-lhe:- Creio termos descansado o suficiente, uma vez que aqui ests de passagem. natural no nos determos em demasia, por isso partimos amanh bem cedo, caso nopenses em tomar-te de maiores delongas. O bufo olhou-o e piscou, no fazendoqualquer gesto ou comentrio e Sertrio saiu.

    O sol se levantava. Sertrio ps-se de p procurando por Firmamento e oencilhando. Os monges realizaram seus rituais do alvorecer e foram mesa para odesjejum, vindo Sertrio acompanhar-lhes. Mal o tinham acabado, receberam a notciapor um dos irmos responsvel em servir ao enclausurado hspede, que ele no abriraa porta de seu quarto para colher o alimento e nem respondera aos seguidoschamados. Preocupados, foram at l e o chamaram insistentemente, no obtendoqualquer resposta, permanecendo a porta trancada. Mediante as circunstncias, noencontrando outra soluo seno lanar mo de uma segunda chave, eles abriram aporta. A surpresa foi total! Viram a cama vazia e ele sentado a um canto, encolhido esisudo, olhando