aline dias algumas consideracoes sobre a funcao do fracasso

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17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis 1552 a limpeza da casa (algumas considerações sobre a função do fracasso) * Aline Dias - Mestranda em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Resumo: O presente artigo propõe uma reflexão sobre a função do fracasso, partindo de experiências artísticas que aproximam as esferas da arte e do cotidiano. Neste contexto, o texto problematiza noções de ordem e desordem, apoiando-se no conceito de ‘informe’ de Georges Bataille e em reflexões sobre a função utópica e sua relação entre ‘concretização’ e fracasso. Palavras-chave: fracasso, arte, cotidiano, informe, utopia. Abstract: This article proposes a reflection about the role of failure, from artistic experiences that elates the fields of art and daily life. In this context, the text discusses notions of order and disorder, based on the concept of ‘formless’ by Georges Bataille and also on reflections about the role of utopia and its relationship between 'realization' and failure. Keywords: failure, art, daily-life, formless, utopia. Minha epígrafe neste texto é uma imagem: o trabalho “self erased drawing” da artista Mona Hatoum i . Neste trabalho, a artista apresenta um mecanismo formado por uma superfície contendo areia em que uma pá move- se circularmente a partir de um eixo central. Ao entrar em movimento, a metade da pá, ranhurada, desenha linhas circulares na areia enquanto a outra metade, lisa, apaga o desenho, continuamente. HATOUM, Mona. “Self Erased Drawing”, 1979, madeira, areia, metal, motor elétrico, 9,5 x 28 x 28 cm. Reprod. 5,5 x 6,5 cm em papel : p&b. IN: ARCHER, Michael; BRETT, Guy; ZEGHER, Catherine de. Mona Hatoum. Londres: Phaidon, 2001. p.38. Esta imagem, que por ora abre o texto, vem acompanhando há algum tempo meu processo e minhas reflexões. Como um pequeno enigma: o que

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Page 1: Aline Dias Algumas Consideracoes Sobre a Funcao Do FRACASSO

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

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a limpeza da casa (algumas considerações sobre a função do fracasso) *

Aline Dias - Mestranda em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo: O presente artigo propõe uma reflexão sobre a função do fracasso, partindo de experiências artísticas que aproximam as esferas da arte e do cotidiano. Neste contexto, o texto problematiza noções de ordem e desordem, apoiando-se no conceito de ‘informe’ de Georges Bataille e em reflexões sobre a função utópica e sua relação entre ‘concretização’ e fracasso. Palavras-chave: fracasso, arte, cotidiano, informe, utopia. Abstract: This article proposes a reflection about the role of failure, from artistic experiences that elates the fields of art and daily life. In this context, the text discusses notions of order and disorder, based on the concept of ‘formless’ by Georges Bataille and also on reflections about the role of utopia and its relationship between 'realization' and failure. Keywords: failure, art, daily-life, formless, utopia.

Minha epígrafe neste texto é uma imagem: o trabalho “self erased

drawing” da artista Mona Hatoumi. Neste trabalho, a artista apresenta um

mecanismo formado por uma superfície contendo areia em que uma pá move-

se circularmente a partir de um eixo central. Ao entrar em movimento, a metade

da pá, ranhurada, desenha linhas circulares na areia enquanto a outra metade,

lisa, apaga o desenho, continuamente.

HATOUM, Mona. “Self Erased Drawing”, 1979, madeira, areia, metal, motor elétrico, 9,5 x 28 x 28 cm.

Reprod. 5,5 x 6,5 cm em papel : p&b. IN: ARCHER, Michael; BRETT, Guy; ZEGHER, Catherine de. Mona

Hatoum. Londres: Phaidon, 2001. p.38.

Esta imagem, que por ora abre o texto, vem acompanhando há algum

tempo meu processo e minhas reflexões. Como um pequeno enigma: o que

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dizer desse movimento contínuo de fazer, desfazer, refazer? É também um

emblema de outras tantas imagens de tarefas desenvolvidas infinitamente, de

empreendimentos fadados ao fracasso, de trabalhos intermináveis. Castelos de

areia, esculturas minuciosas de gelo, a limpeza da casa. Como se esta imagem

pudesse acionar outras imagens e reflexões sobre o sentido do ato e da

experiência, a função da utopia e o papel do fracasso.

Através da observação, concentração e organização de vestígios

cotidianos, minha pesquisa artística se detém nos processos e resíduos de

atividades domésticas. Tarefas simples, banais, solitárias, mas persistentes, a

que nos dedicamos repetidamente: varrer o chão, limpar o piso, o banheiro, os

vidros, lavar as roupas, as louças, tirar o pó que se acumula nos móveis e

objetos. A partir destas atividades – ou de sua não-execução – passo a

desenvolver uma série de trabalhos, abordados na pesquisa de Mestradoii: um

cubo de poeira, uma esfera de pó de feiticeira, uma linha de traças, pequenas

superfícies de pêlos de gatos, vidros com resíduos de óleo de cozinha. iii

Estes trabalhos possuem uma intensa relação com minha experiência

cotidiana através da observação e da ação dentro de casa. Sobretudo, com a

angustiante sensação de impotência diante de processos entrópicos, tendo

como imagem paradigmática a poeira que se forma, insistentemente, a

despeito de qualquer empenho em eliminá-la, como sublinha Bataille no

verbete ‘poeira’ de seu Dicionário Crítico:

Os contadores de estórias não se deram conta que a Bela Adormecida

acordaria coberta com uma grossa camada de poeira; nem pensaram nas

sinistras teias de aranha que se desprenderiam ao primeiro movimento de sua

cabeleira ruiva. Porém, melancólicas camadas de poeira constantemente

invadem habitações e as sujam uniformemente: como se preparassem sótãos

e cômodos velhos para a ocupação iminente de obsessões, fantasmas,

espectros, que o odor decadente da velha poeira nutre e intoxica. (...) Um dia

ou outro, é verdade, a poeira, admitindo sua persistência, vai provavelmente

ganhar vantagem sobre as domésticas, invadindo as imensas ruínas dos

prédios abandonados, dos estaleiros desertos...iv

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O pouco tempo disponível para desempenhar as tarefas domésticas

diante das exigências da vida acelerada de trabalho, estudo e viagens, torna

este fracasso ainda mais evidente. É inquietante perceber indícios da minha

própria ausência. De preguiça, cansaço, passividade, resignação. Nos

alimentos estragando na geladeira, no mofo que se forma nas panelas sujas,

no lixo por recolher, na poeira que se acumula nos objetos, percebo de forma

incisiva minha não-ação e a demanda por meus gestos. É neste ponto,

imprecisamente, que começo a pensar na recuperação do ato e do

compromisso com o presente. E dessas pequenas aflições se desdobram

indagações sobre novas formas de lidar com os fracassos, de esburacar ou,

nos termos de Bloch: transpor a repetição do mesmo e os ideais de perfeição

inautênticos, impostos por um deve ser.v

Para desenvolver esta reflexão, tomo então como referência um trabalho

em particular, silenciosamente desenvolvido em 2006. Este trabalho foi

sintomaticamente intitulado participação invisível. Mais que um título, foi uma

definição feita pela artista e então curadora da exposição, Júlia Amaral, diante

da necessidade de fazer uma ação tão insipiente constar no convite.vi

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DIAS, Aline. “Participação Invisível”, 2006, intervenção. Registro fotográfico realizado por Júlia Amaral.

fogos-de-artificio-050.jpg; fogos-de-artificio-051.jpg; fogos-de-artificio-055.jpg. 03 fot. dig. 300 dpi. RGB.

Formato JPEG, 2006. Acesso em: 07 fev. 2008.

Participação invisível tratava, simplesmente, de limpar a casa. Ajudar a

dona da casa a fazer a faxina para receber os convidados na abertura da

exposição. Algumas coisas, aparentemente mínimas ou banais, são

importantes na proposta como, por exemplo, a probabilidade de que o trabalho,

mesmo depois de pronto, não fosse visto. Embora estivesse por todo o espaço.

A impossibilidade de o trabalho ficar pronto, pois a limpeza da casa é uma

tarefa que dificilmente podemos dar por definitivamente terminada. E que,

mesmo assim, durasse muito pouco, pois na medida em que os convidados

começassem a chegar e a utilizar o espaço, a sujeira fosse fazendo todo o

trabalho da limpeza desaparecer. O trabalho também envolvia uma noção de

afeto, ajudando a Julia, que é minha amiga, numa tarefa ingrata como costuma

ser uma faxina.

Aproximando-a do território artístico, esta experiência está relacionada a

questões de minha pesquisa como a noção de pouco, de uma materialidade

intermitente, de problematizar a visibilidade da obra e lidar com a própria

atenção e com seu revés, a decepção. Possui uma relação com o próprio

cotidiano e a intenção de dissipar-se, de embaralhar e misturar estas duas

esferas de ação: arte e vida.

A partir deste caráter inapreensível de participação invisível e sua

dissolução na experiência cotidiana, esta experiência pode ser relacionada ao

conceito de inframince, de Marcel Duchamp sobre espaços e experiências

infinitesimais e relações sutis. Para o artista, a indeterminação e a imprecisão

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são fundamentais na arte, como rejeição a uma concepção de positividade e

suficiência do sentido.vii

Em sua primeira nota sobre o inframince, Duchamp coloca que o

inframince é um possível. A possibilidade de tubos de tinta virarem um Seurat

seria, segundo Duchamp, a ‘explicação’ concreta do possível como inframince.

Para o artista, o possível implica o devir, pois a passagem de um a outro tem

lugar no inframinceviii. Inframince se refere ao intervalo, ao que escapa,

encontrando ressonância nas reflexões sobre a imagem imperfeita e a

insuficiência do sentido.

De forma similar, a noção de informe, desenvolvida por Georges Bataille,

não se refere a uma deformação ou ausência de forma, mas a este espaço

lacunar entre uma forma e outra, na inconstância e mutabilidade.ix No texto,

Para não ficar de mãos vazias, Edson de Sousa retoma a relação entre utopia

e o conceito de informex, ressaltando que a utopia seria manter o amanhã com

informe, em sua condição de provisoriedade, instabilidade, suspensão.xi

A assimilação do negativo, da falta, da incompletude, do inacabado e do

lacunar, implicados nos conceitos de informe e de inframince, podem ser

retomados para abordar o texto utópico, na contra-corrente de uma visão

projetista e prescritiva que é característica do senso comum.

Participação invisível, por sua condição imaterial, contingente e

circunstancial (e, assim, escorregadia a uma apreensão inequívoca), possui

uma estreita relação com a noção de relato, referenciando o conceito de

narração e experiência de Walter Benjaminxii, na medida em que sua existência

toma forma através de espaços como este: do texto, da fala, da narração. Um

espaço que assume a impossibilidade de anular as lacunas, de abarcar inteira

e positivamente a experiência, mas que propõe um outro viés: o esforço por

dizer aquilo que escapa, sem obliterar a falta, tentando ampliar e redimensionar

o vivido através da narrativa. Para Benjamin, a experiência deve comportar

uma dimensão de compartilhamento, através da narração, daquilo que é vivido

circunscritamente pelo sujeito.

Fredric Jameson, em Utopia, Modernismo e Morte – capítulo do livro As

Sementes do Tempoxiii, também insiste sobre a dimensão narrativa do

pensamento utópico. Através da análise do livro de Platonov, Jameson procura

evidenciar o caráter interpretativo do texto utópico, tendo como eixo a ironia.

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Jameson afirma que, diferentemente dos textos tradicionais, que pretendem

resolver ou eliminar o negativo, a utopia não elimina tensões e contradições,

mas ao contrário, as exacerbera. O autor também chama atenção para os

aspectos formais próprios de cada narrativa como elementos que a integram.

Mudar a forma de narrar, é mudar também a narrativa. Para Jameson, o

devaneio pode ser bem-sucedido como uma narrativa, não por conseguir

evadir-se ou enganar o principio de realidade, mas sim, por embater-se com

ele.xiv

Para Jameson, a vocação da utopia é o fracasso, sublinhando que seu

valor epistemológico está nas paredes que ela nos permite perceber em torno

das nossas mentesxv. A utopia parte da insatisfação com o presente e, segundo

o autor, o texto utópico nos dá a lição do que não podemos imaginar, não pela

imagem perfeita, concreta, mas pelos buracos do texto, pela nossa própria

incapacidade de ver além dos limites da época e da ideologia. Ainda assinala a

importância do esforço para começar imaginar utopia e não para realizar o

projeto, compreendendo o processo utópico como um tipo de desejo de

desejar, um aprendizado do desejo, invenção do desejo e que, portanto, inclui

o problema da representação.

Ainda seguindo o pensamento de Jameson, podemos afirmar que a

narrativa utópica desafia suas próprias imagens, produz um novo material que

torna impossível reconhecer ou aceitar as velhas imagens. Não se trata de

materializar um projeto, mas do próprio processo narrativo, com a inerente

dificuldade de conceituação, formulação e representação da utopia. As utopias

possuem assim um caráter não-prescritivo e uma dimensão de fracasso, na

medida em que sua função não está na projeção e concretização de ideais,

mas numa função crítica, política.

A utopia, enquanto esperança ativa, para Ernst Bloch – um dos

principais estudiosos da função utópica – está relacionada a uma intenção

voltada para a possibilidade do que ainda não veio a ser. Dessa forma, exclui a

concepção de um mundo pronto, acabado, cujo futuro é previsível e inevitável.

De forma oposta, a utopia aposta no que Bloch chama de um futuro autêntico,

compreendido como um processo aberto, contínuo, inconcluso, e não mera

contemplação. Pensar significa transporxvi alerta Bloch, portanto, a função

utópica está relacionada à crítica do presente e ao desejo de transformações.

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O conceito de novo, afirma Bloch, encontra resistência nas concepções de um

mundo ordenado previamente, fechado e imobilizado naquilo que está

instituído pela ideologia dominante.xvii

A utopia é uma ficção, mas que não se configura como uma concepção

ociosa do perfeito, para usar os termos de Jamesonxviii. É função da utopia

esburacar os falsos ideais, romper e des-naturalizar as formas instituídas,

recusando a aceitação passiva de sonhos e rotinas impostas. O ideal, alerta

Bloch, com seu acento na perfeição, seu modo de exigir, de dever, possui

como negatividade a ilusão, a abstração e a falsificação do ideal. Mesmo

quando se restringe a uma imagem, o ideal possui um fim, que é da perfeição.

A função utópica, afirma Bloch, não traz a eclosão do ideal, mas sua correção.

O autor também alerta que a aproximação infinita deste ideal é facilmente

transformada em mera contemplação. O ideal se configura como impotente na

medida em que está pronto, imobilizado, em concordância com o mundo. Ao

mesmo tempo, que no ideal ressoa uma resposta ao insuficiente, à imperfeição

da vida, a função utópica se embate com este estar-pronto.

Do desejo de conservar a casa limpa, é preciso pensar no ideal de

limpeza e assepsia próprio de uma sociedade cientificista que produz e

abomina o resíduo, o lixo, o excesso, o inútil. Desorientando o ideal esterilizado

que despreza e mascara a sujeira, devemos pensar sobre as atividades de

limpar, recolher e organizar restos, marcas e imagens domésticas. E pensar

que a pesquisa e narração sobre estas questões possam, de alguma forma,

abrir fissuras em hierarquias postiças entre arte e cotidiano, em padrões

instituídos, encontrar espaço para contestar a forma como as coisas devem

ser.

As atividades domésticas de onde parte esta reflexão também levantam

questões sobre a automatização das ações, a repetição alienante dos gestos –

como na música de Chico Buarque: todo dia ela faz tudo sempre igualxix. Como

a tarefa sisífica, apontada por Bataille, de combater a poeira, e por extensão, a

desordem. Como fazer com estas atividades escapem do jugo terrível do

cansaço, do esforço sem sentido? Como produzir diferença na repetição?

Como arrancar as tarefas da casa deste estatuto inferior, marginalizado? Como

derrubar as falsas imagens de perfeição? Como desmascarar os mecanismos

de subordinação?

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Dessa forma é que proponho pensar o trabalho com os vestígios

cotidianos: como um desejo a ser derrubado e, paradoxalmente, a ser re-

construído; como um desejo que move a ação e, sobretudo, a criação de novas

formas. Um desejo que procura reinventar sentido para as atividades mais

rotineiras e, assim, tentar salvá-las da burocratização do cotidiano,xx

contornando o imperativo de servir passivamente a desejos impostos. E sem

perder de vista, deve-se ressaltar, o perigo de criar bandeiras de ferro, como

descreve o escritor Platonov: imóveis, que não se movem com o vento.xxi

Bataille, que critica duramente o desejo de ordenar o mundo, de dar uma

forma estável a tudo, aproxima o trabalho das faxineiras ao mais positivista dos

cientistas: Quando as arrumadeiras e empregadas domésticas se armam a

cada manhã com grandes espanadores ou mesmo com um aspirador de pó,

elas talvez não estejam completamente desavisadas de que estão

contribuindo, passo a passo, tanto quanto o mais positivista dos cientistas, em

dispensar esse fantasma injurioso que a limpeza e a lógica abominam. xxii

Para Bataille, o fracasso está associado ao desejo de transgressão, ao

risco do desconhecido, a experiência do não-saber. Fracassar como risco,

como procura de formas novas. Com o conceito de informe, o autor que des-

classificar, desorientar a exigência de que cada coisa tenha a sua forma.xxiii Ele

sustenta ainda que todo o saber nos condiciona ao que conhecemos,

afirmando os pressupostos dogmáticos deram limites indevidos a experiência:

aquele que já sabe não pode ir além de um horizonte conhecido.xxiv Como

podemos nos apropriar do que nos ultrapassa? Como derrubar tudo aquilo que

limita o possível? Ele diz: Para ir ao limite do homem é necessário, a um certo

ponto, não mais suportar, mas forçar o destinoxxv.

Bataille ainda permite uma aproximação com algumas questões do ideal

e da utopia quando destaca o processo interminável e inseguro que caracteriza

a experiência: não posso crer no extremo atingido, porque nunca permaneço

lá.(...) só posso, suponho, atingir o extremo na repetição, no fato de que nunca

estou e estarei seguro de tê-lo atingido.xxvi E aborda a dificuldade metodológica

da experiência, que serve-se do projeto para, no entanto, ultrapassá-lo: o

princípio da experiência é sair através de um projeto do domínio do projeto.xxvii

A experiência é o contrário do projeto: atinjo a experiência ao contrário do

projeto que eu tinha de tê-laxxviii.

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Entre o trabalho de recolher e organizar os restos e a paralisia da

ordenação, deve-se pensar também no que diz Estamiraxxix: conservar as

coisas é proteger e existe diferença entre resto e descuido, chamando atenção,

segundo Edson de Sousa, para a função do olhar de recuperar o estatuto

daquilo que foi rejeitado e eliminado.xxx E assim, problematizar as significações

instituídas da mecanização dos gestos e do valor do novo, excluindo a

possibilidade de afeto no cuidar das coisas, consertar, manter, reparar.

O desejo que tudo esteja inteiro, completo, limpo, ordenado, sempre

fracassa. As coisas se estragam, ficam manchadas, marcadas, envelhecidas,

perdidas. A instabilidade nos deixa inseguros, mas a simples percepção de que

existe possibilidade de mudar os móveis de lugar, de que coisas acontecem

sem que possamos prever ou controlar, me conforta. Antes de tentar retomar o

que possa haver de positivo em fracassar, penso se é preciso achar respostas

definitivas, se o fracasso precisa ‘servir’ para alguma coisa, tendo em vista o

excesso de sentido imposto pelo desejo tecnicista de que tudo sirva para

alguma coisa. Ou citando Bataille: Odeio / esta vida de instrumento, / busco

uma rachadura, / a minha rachadura, / para ser quebrado.xxxi

Também penso na improvável proposição duchampiana de criar um

aparelho para registrar, colecionar e transformar todos os pequenos excessos

e desperdícios de energia, como o excesso de pressão em um interruptor, o

crescimento do cabelo e das unhas, movimentos impulsivos de medo, os

gestos demonstrativos das mãos, roncos, bocejos.xxxii

Do fracasso, penso que sua ‘lição’ é a importância do ato e do processo,

em contrapartida ao resultado. Prestar atenção na sujeira se acumulando me

confronta com minha não-ação, com a tristeza que caracteriza toda

passividade. E me coloca em contato com a demanda do gesto, o resultado

sempre adiado, a impossibilidade de conservar, estabilizar ou paralisar o

mundo, tentando lidar com o caráter a um só tempo contínuo e provisório da

tarefa.

Da mesma forma que Jameson destaca a importância da narrativa, da

forma como ela se constrói e do embate com a formulação deste ‘narrar’,

cercado de fracasso, ambigüidade e indeterminação, Dandounxxxiii aposta na

utopia como desejo e não como simples concretização de ideais ou narrativas.

O autor destaca a possibilidade de não tomar a utopia em relação com real,

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mas contra o real, impregnada de crítica, do desejo de transposição de que fala

Bloch.

A partir do fracasso, pensar numa espécie de licença para o novo, para

o erro. Finalizo, então, o presente texto com duas citações, a primeira de

Valéry:

Tudo é desordem e qualquer reação contra a desordem é da mesma

espécie que ela. É porque essa desordem é, aliás, a condição de sua

fecundidade: ela contém a promessa, já que essa fecundidade depende mais

do inesperado que do esperado, e mais do que ignoramos, do que e por que

ignoramos, que daquilo que sabemos.xxxiv

E a segunda de Hilda Hilst, que escreve: E hoje, repetindo Bataille: /

"Sinto-me livre para fracassar”xxxv

* O presente artigo é uma versão modificada do texto homônimo, originalmente desenvolvido para a disciplina “A imagem imperfeita: utopia, arte e psicanálise”, ministrada no segundo semestre de 2007 pelo Prof. Dr. Edson Luiz André de Sousa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. i Mona Hatoum, artista libanesa, nascida em 1952. Seu trabalho aborda questões como vulnerabilidade, opressão e resistência e é desenvolvido em diversas mídias como vídeo, performance e instalações, envolvendo objetos, luz, som e estruturas mecânicas. ii A pesquisa de Mestrado, intitulada “marcas e restos – concentração e organização de vestígios” vem sendo desenvolvida desde abril de 2007, no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS, sob orientação do Prof. Dr. Eduardo Vieira da Cunha. iii Esta descrição refere-se a alguns trabalhos por mim desenvolvidos entre 2005 e 2008, intitulados, respectivamente: “cubo de poeira”, “pó de feiticeira (para carlos asp)”, “traças”, “petit (pêlos)” e “óleos”. iv BATAILLE, Georges et al... Encyclopedia Acephalica IN: Documents of avant-garde. Londres: Atlas Press, 1995. p.42-43. Tradução de minha autoria. v BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança I. Rio de Janeiro: UERJ; Contraponto, 2005. vi Intitulada fogos de artifício, a exposição/festa/sessão de slides foi realizada na Rua Sotero José Farias, n.106, bairro Rio Tavares, em Florianópolis, residência de Júlia Amaral e integrava o projeto espaço contramão. Esta iniciativa consiste, resumidamente, em realizar exposições em espaços residenciais, com curadoria e participação ativa do dono da casa na produção e proposição do formato da mostra. vii DUCHAMP, Marcel. Notas. Madri, Tecnos, 1989. São exemplos de situações inframince: a diferença entre dois objetos produzidos em série e saídos do mesmo molde; o calor de um assento recém desocupado. viii DUCHAMP. Op. Cit. p. 20. Tradução de minha autoria. No original: Le possible est/ um infra mince - / La possibilité de plusieurs / tubes de couleur de / devenir um Seurat est / “l’explication” concrête / du possible comme infra / mince. Le possible impliquant / le devenir – le passage de / l’um à l’autre a lieu / dans l’infra mince. ix BATAILLE, Georges. Dicionário Crítico. IN: Documentos. Caracas: Monte Ávila, 1969. p.145. x SOUSA, Edson Luiz André de. Para não ficar de mãos vazias. Encontro: Revista de Psicologia, UNIA, Santo André, SP, jul-dez 2003, 8 (8), p.01-04. xi SOUSA, 2007. Op.Cit. p. 34. xii A necessidade de conservar a incompletude e não mascarar as fissuras, também está relacionada ao modelo de narração apontado por Benjamin, que afirma: metade da arte narrativa está em evitar explicações. A narração é avessa à informação, na medida em que renuncia a preocupação de explicar tudo, evitando que os acontecimentos sejam encerrados em uma única versão daquilo que foi. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras escolhidas - I. São Paulo: Brasiliense, 1987. xiii JAMESON, Fredric. Utopia, Modernismo e Morte . IN: As Sementes do Tempo. São Paulo: Ática, 1994. xiv Ibidem, p. 84. xv Ibidem, p.85. xvi BLOCH, Op.Cit. p.14. xvii BLOCH, Op.Cit. p.39.

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xviii JAMESON, Op.Cit. p.109. xix Referência à música: Cotidiano, de 1971, de Chico Buarque. IN: BUARQUE, Chico. Construção. Rio de Janeiro: PolyGram, 1993. 1 disco compacto (32min45s): digital estéreo. 836013-2 xx O termo burocratização do amanhã é utilizado por SOUSA, Edson Luiz André de. Uma Invenção da Utopia. São Paulo: Lumme Editor, 2007. p.31, remetendo ao texto A Função do Amanhã de Hélio Fervenza (FERVENZA, Hélio. O + é o deserto. Editora Escrituras, São Paulo, 2003.) xxi JAMESON, Op.Cit. p.106. xxii BATAILLE, 1995. Op.Cit. p.42-43. Tradução de minha autoria. xxiii BATAILLE, 1969. Op.Cit. p.145. xxiv BATAILLE, Georges. A Experiência Interior. São Paulo: Ática, 1992. p.11. xxv Ibidem. p.46. xxvi Ibidem. p. 48-49. xxvii Ibidem. p. 53. xxviii Ibidem. p. 61. xxix Referência ao filme de Marcos Prado, Estamira, de 2006, sobre a mulher que dá título ao filme. Estamira possui 63 anos, esquizofrênica, catadora de lixo no Rio de Janeiro. Este filme me foi apresentado pelo belo ensaio de Edson de Sousa Função: Estamira. SOUSA, Edson Luiz André de. Função: Estamira. Estudos de Psicanálise, n.30, ago 2007, Circulo Brasileiro de Psicanálise, Salvador. p. 51-56. xxx SOUSA, Edson Luiz André de. Função: Estamira. Op.Cit. xxxi BATAILLE, Georges. A Experiência Interior. Op.Cit. p.63. xxxii DUCHAMP. Op.Cit. p.155. xxxiii DADOUN, Roger. Utopie: l’emouvante rationalité de l’inconscient. IN: BARBANTI, Roberto (org). L’art au XX siècle et l’utopie. Paris: L’Harmattan, 2000. xxxiv VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999. p.192. xxxv HILST, Hilda. Disponível no site oficial da escritora: http://www.hildahilst.cjb.net/. Acessado em 6 de janeiro de 2008.

Referências:

ARCHER, Michael; BRETT, Guy; ZEGHER, Catherine de. Mona Hatoum. Londres:

Phaidon, 2001.

BATAILLE, Georges et al... Encyclopedia Acephalica IN: Documents of avant-garde.

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Aline Dias é artista e Mestranda em Poéticas Visuais pelo PPGAV-UFRGS.

Graduada em Artes Plásticas pelo CEART-UDESC, atuou na Ação Cultural do

Museu Victor Meirelles, entre 2004 e 2007. Participou do Rumos Visuais, Itaú

Cultural, Projeto Trajetórias, Fundação Joaquim Nabuco e Projéteis,

FUNARTE, entre outros. Vive e trabalha entre Florianópolis e Porto Alegre.