alguma coisa sobre a]eistem

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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, v. 27, n. 3, p. 313 - 315, (2005) www.sbfisica.org.br Cartas ao editor Sobre o artigo “A dinˆamica relativ´ ıstica antes de Einstein” Cumprimento o editor pela iniciativa da edi¸c˜ ao es- pecial dedicada a Einstein e felicito todos quantos contribu´ ıram para a brilhante execu¸c˜ ao do projeto. Cumprimento em especial o professor Roberto de An- drade Martins pelo artigo em ep´ ıgrafe [1]. Na verdade, v´arios estudiosos apontam que a F´ ısica necess´aria para aobten¸c˜aodarela¸ c˜aomassa-energiaedavaria¸c˜aoda massa com a velocidade estava dispon´ ıvel na d´ ecada de 1890 [2]. Mas a riqueza de informa¸c˜ oes e a precis˜ao dos argumentos fazem deste artigo uma referˆ encia in- dispens´avel sobre o assunto. No entanto, antes que nos lancemos como icono- clastas (afinal, Einstein ´ e um ´ ıcone da ısica...), ´ e necess´ario verificar se n˜ao h´a outras conjeturas poss´ ıveis, em alternativa `as expostas pelo autor de que a hist´oria da F´ ısica poderia ter prescindido de seu nascimento e de que parece que, se Einstein tivesse morrido logo depois de publicar seus trabalhos de 1905, isso n˜ao teria feito nenhuma diferen¸ ca significativa no desenvolvimento da relatividade especial. A an´alise do autor cinge-se a aspectos relacionados com a relativi- dade especial. Mas, ao referir-se, na primeira frase acima transcrita, `a hist´oriadaF´ ısica de um modo geral, pode induzir seu leitor a atribuir um car´ater mais geral a suas afirmativas. Imp˜oe-nos, ent˜ ao, buscar al- ternativas tamb´ em de car´ater mais geral. Comrela¸c˜ ao `a relatividade especial, o Professor Martins esclarece que as duas teorias surgidas no in´ ıcio do s´ eculo XX, a de Lorentz & Poincar´ e e a de Einstein, possu´ ıam o mesmo conte´ udo emp´ ırico, sendo imposs´ ıvel distinguir, por qualquer experimento, uma da outra. Sendo, ent˜ ao, ambas igualmente competentes, talvez a ısica pudesse mesmo haver seguido seu curso sem a presen¸ca de Einstein. O valor de uma teoria, contudo, est´atamb´ em na sua capacidade de municiar m˜aos e mentes dos pesquisadores em dire¸c˜ ao a novas descober- tas e, para esse fim, a formula¸ ao de Einstein mostrou- se mais fecunda. O desenvolvimento posterior foi de fato realizado por outros, conforme detalha o autor, mas em grande parte gra¸cas `a formula¸c˜aodid´atica (con- forme as suas palavras) elaborada por Einstein, que, assim, condicionou fortemente tudo o que veio ap´os ele. Mas o Professor Martins tem raz˜ao: se, depois de 1905, Einstein houvesse largado a F´ ısica para tornar-se um virtuoso violinista (prefiro esta hip´otese`ada sua morte prematura...), talvez n˜ao fizesse mais falta. J´ahavia cumprido a sua parte. Olhando agora a quest˜ao de um ponto de vista mais geral, devemos nos perguntar se a hist´oria da F´ ısica prescindiria das contribui¸ oes de Einstein `a f´ ısica es- tat´ ıstica,`af´ ısica quˆantica e `a relatividade geral. Para ao alongar demasiadamente esta carta, limitarei a dis- cuss˜ ao ao tema “f´ ısicaquˆantica”. Em 1900, Max Planck inventou a mecˆanica quˆ antica, ao propor uma solu¸c˜ ao para o problema da ra- dia¸c˜ ao de cavidade. Tratava-se de um problema que j´a se arrastava por demasiado tempo e que j´a come¸cava a deixar os f´ ısicos um tanto embara¸cados. Planck, como ´ e sabido, supˆos que a energia de oscila¸c˜ ao dos radi- adores elementares nas paredes da cavidade seria quan- tizada, uma suposi¸c˜ ao que contrariava frontalmente a mecˆ anica newtoniana. Deste modo, sua solu¸c˜ ao resul- tou mais embara¸cosa do que as dificuldades que viera superar. Como atribuir qualquer conte´ udo f´ ısico a tal suposi¸c˜ ao? Segundo o pr´oprio Planck, tratou-se de uma hip´otese puramente formal, e n˜ao refleti muito sobre ela, mas apenas sobre o fato de que, sob quaisquer cir- cunstˆancias, custasse o que custasse, um resultado posi- tivo (para o problema da radia¸c˜ ao de cavidade) tinha de ser obtido [3]. Em 1905, Einstein apresentou outra solu¸c˜ ao para o problema. Suasolu¸c˜ ao propunha que a (energia da) luz consiste em um n´ umero finito de quanta de energia, lo- calizados em pontos do espa¸ co, que se movem sem se dividir e que podem ser absorvidos ou gerados somente como unidades integrais [4]. Asolu¸c˜ ao de Einstein ´ e completamente diferente e independente da de Planck, conforme pode-se ver simplesmente comparando-as: 1. Planck deduziu a lei que governa a radiˆancia espectral da cavidade a partir de primeiros princ´ ıpios, um dos quais era a sua inveross´ ımilrestri¸c˜ ao ao movi- mento dos osciladores f´ ısicos. J´a Einstein partiu dos dados experimentais, conforme descritos pela f´ormula de Wien e, interpretando-os `a luz da Termodinˆamica e daMecˆanicaEstat´ ıstica, mostrou que eram compat´ ıveis com a hip´otese de uma “estrutura granular” para a radia¸c˜ ao eletromagn´ etica. Einstein n˜ao usou, em sua argumenta¸ ao, o postulado de Planck, nem sequer o mencionou. 2. As hip´oteses de Planck e de Einstein n˜ao s˜ao equivalentes nem implicam necessariamente uma na outra. Segundo Planck, um oscilador elementar s´o pode 0 Copyright by the Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

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Page 1: Alguma Coisa Sobre a]Eistem

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, v. 27, n. 3, p. 313 - 315, (2005)www.sbfisica.org.br

Cartas ao editor

Sobre o artigo “A dinamica relativıstica antes de Einstein”

Cumprimento o editor pela iniciativa da edicao es-pecial dedicada a Einstein e felicito todos quantoscontribuıram para a brilhante execucao do projeto.Cumprimento em especial o professor Roberto de An-drade Martins pelo artigo em epıgrafe [1]. Na verdade,varios estudiosos apontam que a Fısica necessaria paraa obtencao da relacao massa-energia e da variacao damassa com a velocidade estava disponıvel na decada de1890 [2]. Mas a riqueza de informacoes e a precisaodos argumentos fazem deste artigo uma referencia in-dispensavel sobre o assunto.

No entanto, antes que nos lancemos como icono-clastas (afinal, Einstein e um ıcone da Fısica...),e necessario verificar se nao ha outras conjeturaspossıveis, em alternativa as expostas pelo autor de quea historia da Fısica poderia ter prescindido de seunascimento e de que parece que, se Einstein tivessemorrido logo depois de publicar seus trabalhos de 1905,isso nao teria feito nenhuma diferenca significativa nodesenvolvimento da relatividade especial. A analise doautor cinge-se a aspectos relacionados com a relativi-dade especial. Mas, ao referir-se, na primeira fraseacima transcrita, a historia da Fısica de um modogeral, pode induzir seu leitor a atribuir um carater maisgeral a suas afirmativas. Impoe-nos, entao, buscar al-ternativas tambem de carater mais geral.

Com relacao a relatividade especial, o ProfessorMartins esclarece que as duas teorias surgidas no inıciodo seculo XX, a de Lorentz & Poincare e a de Einstein,possuıam o mesmo conteudo empırico, sendo impossıveldistinguir, por qualquer experimento, uma da outra.Sendo, entao, ambas igualmente competentes, talvez aFısica pudesse mesmo haver seguido seu curso sem apresenca de Einstein. O valor de uma teoria, contudo,esta tambem na sua capacidade de municiar maos ementes dos pesquisadores em direcao a novas descober-tas e, para esse fim, a formulacao de Einstein mostrou-se mais fecunda. O desenvolvimento posterior foi defato realizado por outros, conforme detalha o autor,mas em grande parte gracas a formulacao didatica (con-forme as suas palavras) elaborada por Einstein, que,assim, condicionou fortemente tudo o que veio apos ele.Mas o Professor Martins tem razao: se, depois de 1905,Einstein houvesse largado a Fısica para tornar-se umvirtuoso violinista (prefiro esta hipotese a da sua morteprematura...), talvez nao fizesse mais falta. Ja havia

cumprido a sua parte.Olhando agora a questao de um ponto de vista mais

geral, devemos nos perguntar se a historia da Fısicaprescindiria das contribuicoes de Einstein a fısica es-tatıstica, a fısica quantica e a relatividade geral. Paranao alongar demasiadamente esta carta, limitarei a dis-cussao ao tema “fısica quantica”.

Em 1900, Max Planck inventou a mecanicaquantica, ao propor uma solucao para o problema da ra-diacao de cavidade. Tratava-se de um problema que jase arrastava por demasiado tempo e que ja comecava adeixar os fısicos um tanto embaracados. Planck, comoe sabido, supos que a energia de oscilacao dos radi-adores elementares nas paredes da cavidade seria quan-tizada, uma suposicao que contrariava frontalmente amecanica newtoniana. Deste modo, sua solucao resul-tou mais embaracosa do que as dificuldades que vierasuperar. Como atribuir qualquer conteudo fısico a talsuposicao? Segundo o proprio Planck, tratou-se de umahipotese puramente formal, e nao refleti muito sobreela, mas apenas sobre o fato de que, sob quaisquer cir-cunstancias, custasse o que custasse, um resultado posi-tivo (para o problema da radiacao de cavidade) tinhade ser obtido [3].

Em 1905, Einstein apresentou outra solucao para oproblema. Sua solucao propunha que a (energia da) luzconsiste em um numero finito de quanta de energia, lo-calizados em pontos do espaco, que se movem sem sedividir e que podem ser absorvidos ou gerados somentecomo unidades integrais [4]. A solucao de Einstein ecompletamente diferente e independente da de Planck,conforme pode-se ver simplesmente comparando-as:

1. Planck deduziu a lei que governa a radianciaespectral da cavidade a partir de primeiros princıpios,um dos quais era a sua inverossımil restricao ao movi-mento dos osciladores fısicos. Ja Einstein partiu dosdados experimentais, conforme descritos pela formulade Wien e, interpretando-os a luz da Termodinamica eda Mecanica Estatıstica, mostrou que eram compatıveiscom a hipotese de uma “estrutura granular” para aradiacao eletromagnetica. Einstein nao usou, em suaargumentacao, o postulado de Planck, nem sequer omencionou.

2. As hipoteses de Planck e de Einstein nao saoequivalentes nem implicam necessariamente uma naoutra. Segundo Planck, um oscilador elementar so pode

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Copyright by the Sociedade Brasileira de Fısica. Printed in Brazil.

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oscilar com determinadas energias, mas, numa situacaode equilıbrio, pode ficar oscilando indefinidamente emum desses “estados permitidos”, absorvendo uma quan-tidade indefinida de energia e reemitindo essa mesmaquantidade, pois a radiacao eletromagnetica com a qualinterage e considerada, em princıpio, contınua no tempoe no espaco. Segundo Einstein, sendo a radiacao eletro-magnetica constituıda por quanta de energia, a ener-gia dos osciladores somente podera variar, mediante in-teracao com essa radiacao, por quantidades predetermi-nadas, mas nada impede que outros mecanismos, porexemplo, perdas por atrito, facam com que a energiados osciladores varie de maneira contınua.

3. Einstein conclui que o quantum de energia lumi-nosa vale E = (R/N)βν, onde R e a constante universaldos gases, N o numero de Avogadro, ν a frequencia daradiacao e β uma constante empırica que provem daformula de Wien. Pode-se mostrar que (R/N)β equiva-le a constante de Planck h, mas Einstein nao o fez.Admitindo-se essa equivalencia, ve-se que a expressaoE = hν serve para calcular tanto “os quanta de ener-gia” de Planck quanto “a energia dos quanta” de Eins-tein. O jogo de palavras enfatiza que, apesar da seme-lhanca formal e da equivalencia numerica, o conteudofısico de ambas a propostas e inteiramente diferente.Planck quantizou uma grandeza fısica, a energia dososciladores; o quantum de Einstein e, ele proprio, umente fısico.

Fica claro, assim, que, ao abordarem o mesmo pro-blema, Planck e Einstein encontraram, cada um, umasolucao inteiramente original e independente. Nao se-ria exagero afirmar que, em 1905, Einstein inventou afısica quantica pela segunda vez. Apos 1905, elecontinuou a pautar o desenvolvimento desse novo ramoda Fısica. Em 1907, justificou teoricamente o postu-lado de Planck (mas ainda nao usou o h) e aplicou-oao estudo do calor especıfico dos solidos. Bem depois,vieram os famosos coeficientes A e B. E caso Einsteinnao estivesse la para traduzir, fazer publicar e estendero trabalho de Bose, a estatıstica quantica nao haveriatomado os rumos que tomou [5].

A discussao assim compartimentada mascara umpouco o papel relevante desempenhado por Einstein em1905. Na verdade, nada do que ele publicou, publi-cou isoladamente. O que ele fez foi atacar em blocovarias questoes em aberto na Fısica de entao e a to-das respondeu em bloco. Por outro lado, se Einsteinnao houvesse sido fısico, e obvio que a Fısica haveriacontinuado. Os avancos da Fısica, de certa forma, in-dependem dos fısicos. Solucoes para antigos problemastrazem sempre em seu bojo problemas novos e, a cadapasso, varias pessoas dedicam-se ao mesmo tempo, emvarios lugares do mundo, ao mister de resolve-los. Senao fosse Einstein, seriam outros; se nao fosse em 1905,seria mais tarde; se nao fosse tudo de uma vez, seria emvarias etapas. Mas, na Fısica nao existe uma verdadeabsoluta acerca dos fenomenos naturais (embora Eins-

tein, ao que parece, acreditasse existir) e nem existe umunico caminho possıvel. Como seria a solucao encon-trada por outros? Seria ela igualmente abrangente efecunda? Como seria a Fısica hoje? E de que maneirater-se-ia desenvolvido a nossa civilizacao tecnologica?Impossıvel saber. Entao, a Fısica e hoje como e e a tec-nologia desenvolveu-se do modo como se desenvolveupor que houve Einstein em 1905, e isto e tudo.

O que importa e avaliar devidamente a importanciada obra de Einstein para nossa cultura e nossa civi-lizacao. Talvez devamos comecar com a seguintequestao: qual parte da Fısica mais diretamente influ-enciou nossas ideias e nossas vidas? Respondamos demaneira direta: foi a fısica quantica. E claro que, paraa Fısica, como ciencia, a relatividade e igualmente im-portante. Mas a relatividade nos obriga a revisar osconceitos mais fundamentais, como as nocoes de espacoe tempo, de materia e energia e conduz-nos a grandesdiscussoes cosmologicas, como a finitude do universoe a existencia de buracos negros. E a fısica quanticaque esmiuca a constituicao ıntima da materia e proveao homem os metodos e procedimentos que o tornamcapaz de dominar a natureza, domınio este do qual re-sulta, em ultima analise, a tecnologia. Nossa civilizacaocaracteriza-se muito mais pelo progresso material doque pelos avancos das ideias e das concepcoes filosoficas.Em termos de Fısica, esta, certamente, sob o impactodominante da fısica quantica.

Mas, se e assim, como explicar a popularidade dateoria da relatividade em detrimento da fısica quantica?E porque a associacao biunıvoca, quase exclusiva deEinstein com a primeira? Neste ponto, estou de acordocom o Professor Martins. Eis um interessante fenomenosocio-cultural a ser investigado por historiadores daciencia, sociologos, antropologos, psicologos das mul-tidoes... No que nos diz respeito, na qualidade de pro-fessores de Fısica, conscientizemo-nos de que estamosdiante de um equıvoco historico a espera de reparacao.

Paulo Henrique DionısioIF/UFRG

Referencias

[1] R.A. Martins, Rev. Bras. Ens. Fis. 27, 11 (2005).

[2] Frase extraıda, a tıtulo de exemplo, do artigo Eletro-magnetismo Classico: Uma Ponte para a Fısica Mo-derna, de Delcio Basso. In: Claudio Galli (org.), SobreVolta, Batatas e Fotons (EDIPUCRS, Porto Alegre,2003), p. 31-50.

[3] H. Fleming, Max Planck e a Ideia do Quantum deEnergia. In: M. Hussein e S. Salinas (Orgs.). 100 Anosde Fısica Quantica (Editora Livraria da Fısica, SaoPaulo, 2001), p. 10.

[4] A. Einstein, O Ano Miraculoso de Einstein: Cinco Ar-tigos que Mudaram a Face da Fısica. Organizacao eIntroducao de John Stachel (Editora UFRJ, Rio deJaneiro, 2001), p. 202.

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Sobre o artigo “A dinamica relativıstica antes de Einstein” 315

[5] E. Segre, Dos Raios-X aos Quarks (Editora Universi-dade de Brasılia, Brasılia, 1987), p. 101-102.

Resposta do autor

Parece-me que houve um pequeno equıvoco do autor dacarta, que se baseou na seguinte citacao do meu artigo,quando falo sobre Einstein: “a historia da fısica poderiater prescindido de seu nascimento”. Bem, a frase com-pleta que escrevi e a seguinte: “Mas praticamente todosos resultados fısicos da teoria da relatividade especial

surgiram antes de Einstein, e nesse sentido a historiada fısica poderia ter prescindido de seu nascimento”.Ou seja, a frase completa mostra claramente que estoume referindo apenas aos resultados fısicos da teoria darelatividade especial e nao a toda a fısica. Ou seja, aocontrario do que a carta diz, eu nao estava me referindoa historia da fısica de um modo geral. Por isso, a crıticacontida na carta nao procede.

Roberto MartinsIF/Unicamp