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Alfredo Bronzato da Costa Cruz Uma versão da institucionalização do movimento cristão : a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia Monografia apresentada à Graduação em História da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em História. Orientador: Prof. a Silvia Patuzzi Rio de Janeiro Dezembro de 2009

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Page 1: Alfredo Bronzato da Costa Cruz · menção nestas páginas. Agradeço a meus pais, Dilene Teresa Bronzato e José Alfredo Fruz, por ... Paulo Cezar Costa, do Departamento de Teologia

Alfredo Bronzato da Costa Cruz

Uma versão da institucionalização do movimento cristão : a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Monografia apresentada à Graduação em História da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em História.

Orientador: Prof.a Silvia Patuzzi

Rio de Janeiro

Dezembro de 2009

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Ficha Catalográfica

CDD: 900

Cruz, Alfredo Bronzato da Costa Uma versão da institucionalização do movimento cristão : a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia / Alfredo Bronzato da Costa Cruz ; orientadora: Silvia Patuzzi. – 2009. 283 f. ; 30 cm Monografia (Graduação em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. História – Monografias. 2. Teoria e história da historiografia. 3. Eusébio de Cesaréia – História Eclesiástica. 4. História da historiografia antiga. 5. História do movimento cristão. I. Patuzzi, Silvia. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

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Dedicado a Ir. Leiza Azenaide, Serva da Ssma. Trindade, que em uma despretensiosa conversa de fim de manhã foi a primeira pessoa a me indicar o quanto – positiva e negativamente – o cristianismo ainda continua em nossos dias a repousar sobre o legado imperial romano, e a Augusto Sampaio e Jadir Cruz, que tenho a imensa alegria de poder chamar de amigos. Diz uma história do folclore judaico que, a cada geração, há trinta e seis pessoas realmente boas e justas (os lamed vavnik) cujos méritos, que ignoram, são o fundamento do mundo. Geralmente trabalhando no anonimato, ajudam eles a tornar este planeta um lugar mais habitável e decente, e deste modo fazem Deus continuar a se alegrar com o que criou (Gênesis 1, 31). Não há palavras para expressar o quanto me honra ter podido estar em contato com pelo menos três destas nos mais recentes anos de minha vida.

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AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas contribuíram de muitos modos para que eu conseguisse conceber o plano deste trabalho, realizar a pesquisa no qual ele se sustenta e redigi-lo – ainda que se deva registrar que todas as falhas que nele constam se devem a erros e incompreensões unicamente meus. Todas elas foram importantes, favoráveis cada um a seu modo a este esforço, mas algumas merecem especial menção nestas páginas.

Agradeço a meus pais, Dilene Teresa Bronzato e José Alfredo Fruz, por todo incentivo e apoio dado, e em especial por terem me ensinado que, antes de qualquer outra coisa, o estudo deve ser fonte de realização pessoal. Agradeço também a outros familiares que me incentivaram especialmente nestes tempos mais recentes: Célia Bronzato e Ary Rodrigues, Jacira Cruz, Jadira Cruz e, de modo muito especial, a Jadir Cruz, com quem tive a honra de poder passar muitas horas discutindo as mais diversas idéias.

Agradeço àquelas pessoas que foram imprescindíveis por seu incentivo e sua intervenção – pequenos que lhes parecessem – para que eu ousasse vir para o Rio de Janeiro fazer a Graduação em História na PUC-Rio e aqui me mantivesse: Ir. Leiza Azenaide, Serva da Ssma. Trindade, Pe. Medoro de Oliveira, Pe. Paulo Cezar Costa, antigo pároco e mais recentemente mestre e interlocutor das idéias que presidiram a redação desta monografia, e D. Elias James Manning, O.F.M., bispo diocesano de Valença. Também faço um destaque especial para os que de forma determinante foram um apoio nesta caminhada até aqui: Augusto Sampaio e sua estimada esposa, que demonstraram para comigo reiteradas vezes uma preocupação que considerei completamente surpreendente.

Agradeço a tantos professores cujas aulas, conversas e convivência me nutriram de forma especial, aproveitando para advertir que as marcas que estas deixaram em mim talvez possam ser bastante evidentes nas linhas que se seguem. Da PUC-Rio devo destacar Ricardo Benzaquen de Araújo, sempre gentil e solícito, exemplo daquilo que o nosso ofício de historiadores tem de mais erudito e bem articulado, e Silvia Patuzzi, orientadora deste trabalho, que depositou em mim uma imensa confiança ao dar-me a liberdade de arranjar e executar este trabalho quase da maneira como eu achasse que deveria fazê-lo, além de ter sido ajuda da maior valia nos períodos de maior dificuldade e ter demonstrado proverbial paciência com minhas angústias e prazos ignorados, ambos do meu Departamento de História; e Lina Boff, Maria Clara Bingemer e o já referido Pe. Paulo Cezar Costa, do Departamento de Teologia. Também a Lair Amaro, de quem assisti no segundo semestre do corrente ano as enriquecedoras aulas do curso “O Jesus Histórico e as Origens do Cristianismo”, ministrado no Centro Loyola de Fé e Cultura da PUC-Rio; a Heloisa Bertol Domingues, amiga e incentivadora de todas as horas, que foi minha orientadora de Iniciação Científica (2007-2009) no Projeto “História da Antropologia no Acervo Luiz de Castro Faria” (MAST / MCT); e a Magali Romero Sá, de quem sou atualmente auxiliar de pesquisa (Fiocruz / Casa de Oswaldo Cruz), muitíssimo compreensiva comigo nestas complicadas semanas de revisão, entrega e apresentação de minha Monografia. Registro também um muito obrigado a Celso Taveira, da Universidade Federal de Ouro Preto, que, não obstante o fato de não me conhecer

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pessoalmente, com satisfação e presteza disponibilizou-me um texto de difícil acesso no qual tinha especial interesse.

Agradeço àqueles diversos amigos e amigas que tornaram esta lida mais suportável ao me honrar com sua companhia, e dentre estes destaco Leandro Cesar Bedetti, Rafael Carlos Francisco, Estevão Anísio, Paulo José Belisário, Juliana Pereira, André Calcagno, Maria de Belém, Leonardo Silva, Eduardo Gonçalves, Ana Toledo, Leandro Cavalcanti, Fernanda Giesta – e seu pai, Antônio Muccillo, que sem sombra de dúvidas foi a pessoa com quem mais conversei sobre o Império Romano e os problemas da História e da Historiografia Antigas em toda a minha vida –, Bruno Sampaio, Rafael Rochê, Carlos Taveira e Ricardo Milani. De um modo muito especial, também agradeço a Isabella Menezes, por seu incentivo, interesse, companheirismo e (eventualmente notável) compreensão, sempre disposta a me ouvir e a me ajudar a conduzir da melhor maneira possível todas as fases de elaboração e redação deste trabalho. Foram pessoas que fizeram – e felizmente continuar a fazer – a minha vida mais agradável, e que não poucas vezes estiveram dispostas a tomar como suas as minhas dúvidas, angústias e esperanças. Não há palavras no mundo para agradecê-los por isto.

Agradeço também a PUC-Rio pela concessão de bolsa de estudos integral para a Graduação em História do primeiro semestre de 2005 ao segundo semestre de 2009, fazendo-o na pessoa do Vice-Reitor Comunitário, o supra-citado Augusto Sampaio, e de toda a sua equipe de trabalho.

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Resumo :

O presente trabalho é uma análise possível da História Eclesiástica de Eusébio de

Cesaréia, obra na qual este bispo se propôs a fazer a crônica do cristianismo desde

as suas origens até o seu favorecimento pelo Imperador Romano Constantino.

Através da consideração de seu lugar de fala, temas, fontes e estratégias

argumentativas, pretende-se aí esclarecer a partir de quais lentes pôde este autor

apreender e narrar a trajetória histórica do movimento cristão, e como tal

investigação e discurso se relacionam com o progressivo ancoramento de uma

facção deste como instituição sociopolítica que se pretendia guardiã de uma

verdade exclusiva e incontestável. Na seqüência de seus capítulos, tratamos

sucessivamente das bases materiais que viabilizaram a produção intelectual de

Eusébio; dos pressupostos teórico-metodológicos que nos permitem lidar com

estas de modo inter-relacionado e mutuamente esclarecedor; dos grandes temas e

matrizes intelectuais que se articulam em sua escrita e fornecem a sustentação

para um método específico de raciocínio e construção discursiva da verdade (e do

erro); de como estes possuem afinidades com as idéias e posicionamentos

político-doutrinários do bispo de Cesaréia, fornecendo, por um lado, a sustentação

para a sua militância durante as controvérsias cristológicas do século IV e, por

outro, um esteio lógico para o modelo de vinculação entre Igreja e Império

Romano que se edificava neste mesmo período.

Palavras-chave :

1. Eusébio de Cesaréia – História Eclesiástica; 2. História da Historiografia

Antiga; 3. História do Movimento Cristão.

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SUMÁRIO

UM LIVRO QUE CONTÉM UM BISPO (OU : A GLÓRIA DE EUSÉBIO) .............. 9

I .............................................................................................................................................. 9 II ........................................................................................................................................... 11 III .......................................................................................................................................... 17

A BIBLIOTECA DE CESARÉIA .................................................................................. 22

I ............................................................................................................................................ 22 II ........................................................................................................................................... 36 III .......................................................................................................................................... 45

POSSÍVEIS SIGNIFICADO HISTÓRICO E RAÍZES INTELECTUAIS DA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA .......................................................................................... 65

I ............................................................................................................................................ 65 II ........................................................................................................................................... 76 III ........................................................................................................................................ 122 IV ........................................................................................................................................ 127 V ......................................................................................................................................... 145 VI ........................................................................................................................................ 172

DA PAX ROMANA À PAX CHRISTI (OU VICE-VERSA) ................................... 189

I .......................................................................................................................................... 189 II ......................................................................................................................................... 202 III ........................................................................................................................................ 223 IV ........................................................................................................................................ 245 V ......................................................................................................................................... 265

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 271

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“Eu poderia ter vivido na época de Constantino, trezentos anos depois da morte do Salvador,do qual se sabia apenas que tinha ressuscitado como um Mitra ensolarado entre os legionários romanos. Eu teria testemunhado a disputa entre homoousios e homoiousios, sobre se a natureza de Cristo é divina ou se somente se assemelha à divindade. Provavelmente eu teria votado contra os trinitários, pois quem alguma vez pôde adivinhar a natureza do Criador? Constantino, Imperador do Mundo, janota e assassino,fez a balança pender para um lado no Concílio de Nicéia,de modo que nós, geração após geração, meditamos sobre a Santa Trindade, Mistério dos mistérios, sem o qual o sangue do homem teria sido alheio ao sangue do universo e o derramamento de Seu próprio sangue por um Deus sofredor, que se ofereceu a Si mesmo como sacrifício inclusive quando estava criando o mundo, teria sido em vão. Assim, Constantino foi simplesmente um instrumento indigno, inconsciente do que estava fazendo para pessoas de épocas distantes?E nós, sabemos para o que estamos destinados?”

CZESLAW MILOSZ, “O Imperador Constantino”

“O final da história só pode ser contado por metáforas, uma vez que se passa no reino dos céus, onde não há tempo. Talvez coubesse dizer que Aureliano conversou com Deus e que Este se interessa tão pouco pelas diferenças religiosas que o tomou por João da Panônia. Isso, no entanto, insinuaria uma confusão da mente divina. É mais correto dizer que, no paraíso, Aureliano soube que para a insondável divindade ele e João da Panônia (o ortodoxo e o herege, o abominador e o abominado, o acusador e a vítima) constituíam uma única pessoa.”

JORGE LUIS BORGES, “Os teólogos”

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Introdução

UM LIVRO QUE CONTÉM UM BISPO

(OU: A GLÓRIA DE EUSÉBIO)

I.

“Seria agradável, portanto, pensar nela como a coruja de Minerva, alçando vôo no anoitecer de uma era intelectual. Mas ela tem uma organização que se assemelha mais ao vôo do inconstante pássaro pós-modernista, movendo-se em círculos hermenêuticos decrescentes, até que... E a referência a Minerva também não deve ser tomada por uma reivindicação de conhecimento profundo. Embora eu esvoace rapidamente por um vasto continente de erudição (...), faço-o apenas na condição de um turista (...), que recolhe aqui uma genealogia intelectual e, ali, um fragmento de folclore acadêmico, ao mesmo tempo que faz uma inspeção extremamente superficial dos grandes monumentos filosóficos. Como a maioria dos turistas, não há dúvida de que faço constantemente o papel de bobo.”

MARSHALL SAHLINS, “A tristeza da doçura, ou a antropologia nativa da cosmologia ocidental”

Não tenho conhecimento de nenhum formato padrão para introduzir um

trabalho monográfico – ou qualquer outro, aliás. Tal omissão não nos deve afligir,

já que todos sabemos (ou deveríamos saber) do que trata uma introdução. Na triste

maioria dos casos, análogos aos (cada vez mais raros) prólogos de grande parte da

literatura de ficção, são resumos ou encaminhamentos pouco responsáveis, que

abundam em promessas não-cumpridas e hipérboles desimportantes, possuindo

afinidades mais ou menos evidentes com os necrológicos, os panegíricos, os

currículos, a publicidade e a oratória de sobremesa, de cafezinho e de bar. Não há

porque ser assim:

“(...) O prefácio comovido e lacônico dos ensaios de Montaigne não é a página menos admirável de seu livro admirável. O de muitas obras que o tempo não quis esquecer é parte inseparável do texto. Em As mil e uma noites – ou, como quer Burton, O livro das mil noites e uma noite –, a fábula inicial do rei que faz decapitar sua rainha cada manhã não é menos prodigiosa do que as que se seguem; o cortejo dos peregrinos que irão narrar, em sua piedosa cavalgada, os heterogêneos Contos de Canterbury foi por muitos considerado o mais ágil relato

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do volume. Nos palcos elisabetanos era através do prólogo que o ator anunciava o tema do drama.”1

Encontramos na última frase da citação acima uma coisa realmente digna

de nota. Anunciar o tema do drama: eis um bom propósito para uma introdução

de uma monografia de conclusão de curso de Graduação em História. Acho que é

redundante afirmar que, dados os complexos mecanismos criativos que presidem

a utilização da palavra escrita, e a virtual imprevisibilidade do resultado do

esforço de colocarmos em caracteres as nossas idéias, esta introdução está sendo a

última parte deste trabalho que redijo, de modo que também é uma espécie de

despedida. O que pretendo fazer nesta espécie de ante-sala do discurso é

apresentar alguns dos pressupostos, justificativas, abordagens e fontes que

presidiram a composição de meu texto, retornando neste âmbito a um Projeto de

Pesquisa que, com a finalidade de pontuar pela primeira vez tudo isto para mim

mesmo, redigi em fins de novembro ou começo de dezembro do ano passado. Em

tal esforço, espero conseguir apresentar com sucesso de onde parti e onde pude

chegar; além do dever que me é imposto pelo imperativo da probidade intelectual,

pretendo com isto facilitar o julgamento de eventuais leitores acerca daquilo que

consegui (ou não) de fato obter em minha lida.

Apresentação, projeto e instrumento de diagnóstico. De fato, não há agora

mais nada que eu possa esperar de uma minha introdução a este modesto texto.

                                                            1 Jorge Luis BORGES. Prólogos : Com um prólogo dos prólogos. (Trad. Ivan Junqueira). Rio de Janeiro: Rocco, 1985. pp. 8-9.

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II.  

“Uma jovem chamada Ann descreveu como, na terapia, recuperou a memória do temível abuso satânico sofrido nas mãos dos pais e também descobriu que possuía múltiplas personalidades. Vídeotaipes e fotografias de família mostravam Ann, antes da terapia, como jovem animada e cantora de futuro promissor... ‘Não me importa se é ou não verdade’, afirmou o terapeuta de Ann, Douglas Sawin. ‘Para mim, o importante é ouvir a verdade da criança, a verdade da paciente. É isso que é importante. O que realmente aconteceu é irrelevante’. Quando lhe perguntaram sobre a possibilidade do relato de um cliente ser um delírio, Sawin não vacilou: ‘Todos nós vivemos em um delírio, só que mais ou menos delirante.’”

DANIEL L. SCHATCHER, Em busca da memória

 

“Nosso objeto não é a erudição do Ser e da Cultura, mas, antes, aquela Roma onde Cristo era Romano.”

ERICH AUERBACH, Anotação no livro dos convidados

do Instituto de Colônia, 1932

   

O que pretendi fazer em minha monografia – o resultado, como já

mencionei, fica a critério de eventuais leitores que ela venha a ter – foi analisar a

narrativa composta por Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica, obra em

dez livros que Jacques Liébaert designou como sendo “(...) A glória de Eusébio

historiador”2, acerca da institucionalização do movimento cristão e sua ascensão

de religião perseguida ou marginalizada à crença protegida e talvez professada

pelo Imperador Constantino – e, pouco mais tarde, religião oficial do Império

Romano. Para tal fim, busquei utilizar constantemente uma abordagem estilística

e semântica semelhante àquela que Peter Gay fez de uma série de diferentes

autores e obras em seu livro O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay,

Burckhardt.3 Considerei a observação de Arnaldo Momigliano de que “(...) A

procura pelos precursores de Eusébio começou muito cedo, talvez de forma já

esperada por um de seus seguidores imediatos, Sozômeno”4, e não pretendei de

forma alguma seguir aqui esta linha de observação estritamente. Busquei,

entretanto, encontrar em alguns trechos selecionados da considerada obra de

                                                            2 Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). p. 148. 3 Peter GAY. O estilo na história : Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. (Trad. Denise Bottmann). São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 4 Arnaldo MOMIGLIANO. “As origens da historiografia eclesiástica”. In: As raízes clássicas da historiografia moderna. (Trad. Maria Beatriz B. Florenzano). Bauru: EDUSC, 2004. p. 195.

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Eusébio as marcas de sua formação pessoal, de suas leituras, suas simpatias (e

antipatias) doutrinais e políticas, do seu lugar institucional de redação, e das

matrizes de pensamento com as quais dialogou ao compor sua obra magna. Fiz

isto, conforme me foi possível, de maneira mais ou menos minuciosa, certo de que

se tratava de esforço trabalhoso, mas de resultados suculentos na medida em que

forneceu muitos e interessantes insights sobre os encaminhamentos específicos

que o bispo de Cesaréia deu a seu texto.

Ao dissertar sobre esta ruptura ou desenvolvimento que é a passagem

daquilo que se viria a chamar de Era Apostólica ou de Cristianismo Primitivo para

a Igreja constantiniana, Eusébio de Cesaréia se posicionou sobre a instituição

eclesiástica cristã de seu tempo. Ao fazer tal coisa, apoiando-se em ampla

pesquisa documental e flertando com o gênero memorialístico, o bispo historiador

se inseriu nos grandes debates que lhe eram contemporâneos, e elaborou a partir

deles uma teoria cristã da História, assim como uma teologia política particular,

de grande ressonância posterior. Nesta formulação se deixam entrever as formas

segundo as quais ele compreendeu a natureza da história e as forças que a põem

em movimento de contínua mutação.

Cronista das perseguições sofridas pela Igreja Cristã desde os seus

primórdios até os dias em que viveu e defensor de sua fé frente aos argumentos

que lhe eram opostos, por um lado, pelos críticos judeus e pagãos e, por outro,

pelas versões alternativas do cristianismo que disputavam espaço com a sua

própria, Eusébio descreveu o favorecimento de sua fé por Constantino e a vitória

deste contra seus inimigos políticos mais imediatos como uma intervenção direta

de Deus na história. Seu elogio do Imperador, novo Moisés e novo Paulo, não é

(ou não é apenas, poderiam apontar alguns), contudo, a bajulação de um

eclesiástico que se beneficiou diretamente da proteção imperial ao clero, mas a

elaboração de uma narrativa original sobre o cristianismo. Para demonstrar isto,

recorri ao exame não do tardio e declaradamente panegírico eusebiano que

recebeu o nome de Vida de Constantino, mas de uma obra que se pretendeu

espelho dos fatos – e que talvez por isto seja mais reveladora de que os fatos em si

mesmos, caso existam, são impossíveis de serem apreendidos e narrados de forma

objetiva mesmo por um autor aferrado a este propósito e extremamente cônscio de

suas tarefas.

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Na História Eclesiástica podemos perceber, antes de qualquer outra coisa,

que a Igreja não é mais considerada apenas como a comunidade dos que

esperavam a iminente volta do Cristo para julgar os vivos e os mortos, mas um

instrumento para a realização do Reino de Deus neste mundo. Trata-se da marca

de uma significativa mudança de paradigma em relação à crença da grande

maioria dos cristãos dos anos anteriores. Estruturando com base neste a sua mais

influente obra, Eusébio de Cesaréia de algum modo ajudou a desencadear o vasto

– e então já iniciado – processo de institucionalização da esperança cristã e de

eclesialização da idéia evangélica de “Reino”, percurso este que está,

especificamente, na base da montagem ideológica da autocracia bizantina e, de

maneira mais ampla, do próprio conceito de Império (ou Estado) Cristão.

Deve-se explicitar que para este autor, na raiz mesmo de sua filosofia da

história, estava a convicção de que a realidade não é apenas o conjunto arbitrário

de eventos encadeados quase que ao acaso, mas sim um todo prenhe de

significados e direcionamentos mais ou menos velados; é simbólica e demanda

interpretação, no sentido de que remete a elementos não-visíveis, que estão

“abaixo da superfície” dos acontecimentos. Para Eusébio esta verdade dissimulada

sob as aparências dos episódios correspondia não a um palco conflituoso onde se

entrechocam de maneira informe as razões secretas do próprio homem e as

combinações e injunções de paixões e interesses que o levam a agir, mas sim a um

mundo superior de realização dos desígnios divinos, presidido mesmo em seus

mais caóticos momentos pela providência transcendente e salvífica manifesta na

redenção oferecida ao mundo pelo sacrifício de Jesus Cristo.

Como já mencionado, o mais importante referencial teórico no qual me

alicercei para realizar a pesquisa que estrutura esta monografia e redigi-la foi o

formulado e exercitado pelo historiador norte-americano Peter Gay no seu já

referido trabalho. Nesta obra breve e sumamente interessante, confessadamente

inspirada em uma frase do livro de Sir Ronald Syme sobre Tácito – “os homens e

as dinastias passam, mas o estilo perdura”5 –, Peter Gay aplicou para análise de

uma série de autores da historiografia o mesmo método filológico e sociológico

que Eric Auerbach aplicou em seu Mimesis às obras clássicas da literatura

                                                            5 Citado em: P. GAY. Op. cit. p. 11.

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ocidental para investigar como nestas é representada a realidade.6 Com efeito,

desde o primeiro momento em que imaginei este empreendimento que agora

ofereço à vossa leitura, acreditei que podia ser consideravelmente proveitoso o

recurso ao tipo de análise que Eric Auerbach e Peter Gay formularam e

exercitaram em suas mencionadas obras para lidar com a narrativa apresentada

por Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica sobre a institucionalização

do movimento cristão. Isso se dá na medida em que o estudo do estilo, que

“molda e é por sua vez moldado pelo conteúdo”7 de um texto, possui um

importante valor diagnóstico para a história da historiografia:

“(...) a maneira cultivada do escritor expressa de maneira instrutiva tanto o seu passado pessoal quanto as formas de pensar, sentir, crer e operar da [sua] cultura. (...) O estilo é o desenho no tapete – a indicação inequívoca, para o colecionador informado, do local e época e sua origem. É também a marca nas asas da borboleta – a assinatura inconfundível, para o lepidopterista atento, de sua espécie. E é o gesto involuntário da testemunha no banco dos réus – o sinal infalível, para o advogado observador, da prova oculta.”8

Acredito que semelhante abordagem, baseada na crença de que, ao invés

de apenas buscar ler nas entrelinhas das obras para se obter informações

relevantes sobre seus autores, pode-se chegar a resultados sumamente

recompensadores ao se ler as próprias linhas por eles redigidas9, podem ajudar-

nos a vislumbrar as pessoas por trás – ou melhor, dentro – dos textos, a que

diálogos devem ou contribuem em algo, como pensam seu próprio ofício e como

compreendem a natureza do mundo em que vivem. Ainda que as convenções da

escrita pública e, ao menos em se tratando de obras de narrativa histórica, as

pretensões de veracidade ou verossimilhança limitem em muito as possibilidades

de caracterização dos eventos de acordo com certas normativas retóricas, variadas

de sociedade a sociedade, de época cultural a época cultural, sempre há certa

margem de manobra larga o suficiente para ser muito instrutiva e nos indicar algo

                                                            6 Erich AUERBACH. Mimesis : A representação da realidade na literatura ocidental. (Trad. Jacob Guinsburg). (5ª ed.). São Paulo: Perspectiva, 2004. (Col. “Estudos”, Seção “Crítica”, n. 2; dir. Jacob Guinsburg). 7 P. GAY. Op. cit. p. 17. 8 Id. Op. cit. pp. 20-21. 9 Ibid. Op. cit. p. 29.

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sobre os próprios historiógrafos. Mesmo as referidas convenções nos remetem a

certos contextos, a certas compreensões socialmente forjadas, sobre o mundo, e

para a reflexão do historiador isto não deixa de ser um indício relevante – muito

ao contrário! Os artifícios narrativos que um autor usa para caracterizar eventos e

personagens são possíveis indicações de qual sua opinião sobre aquilo que ele

narra; a maneira como ele compõe sua narrativa, identificada no “seu tom de voz

tal como surge na tensão ou no repouso de suas orações, seus adjetivos preferidos,

sua escolha de episódios ilustrativos, suas tônicas, seus epigramas”10, desvela,

ainda que de modo efêmero, qual a sua particular compreensão do homem e do

mundo – afinal, faz toda a diferença contar uma mesma história, a História, como

se esta fosse um épico, uma tragédia, uma comédia, uma liturgia ou teatro sacro,

uma peregrinação, um carnaval ou um caos de desmandos e arbitrariedades sem

sentido, ou seja, sem direção e significado. Além do mais, tais representações

acerca do homem e do mundo possuem suas conseqüências, corolários

sociopolíticos e morais que devem ser levados em conta, ainda que não de

maneira anacrônica, em sua análise. Os autores e fontes que um historiador cita

também são extremamente importantes para se definir com quem ele dialoga e

onde acredita estarem as janelas para o passado a partir de seu presente – ou

simplesmente que narrativas e vestígios despertaram seu interesse ou estavam

disponíveis para o seu exame.

Como, porque e através de quê um autor capta o passado e o representa em

uma narrativa são coisas que apenas cuidadosa leitura de sua própria obra,

considerada em seu próprio contexto, pode revelar. Peter Gay afirma que se um

historiador “tem alguma consciência e competência profissional, irá

necessariamente dizer muito mais a respeito do período sobre o qual está

escrevendo do que sobre o período em que vive”11, mas ainda assim suas escolhas

de tema, de eventos exemplares que invoca para apresentá-lo, as expressões que

usa para fazê-lo, as fontes que utiliza ou rejeita para sua pesquisa, os autores com

os quais concorda ou discorda, a tradição literária e científica na qual se insere ou

contra qual se insurge, as formas retóricas de exposição das quais se apropria, o

“tom de voz” que se faz presente no seu texto, são todos indícios que remetem ao

                                                            10 Ibid. Op. cit. p. 22. 11 Ibid. Op. cit. p. 30.

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homem que escreve, suas intuições, crenças e intencionalidades mais profundas,

ao mundo de seu ofício e ao seu universo de referências.

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17  

III.

“O teólogo pode bem se comprazer na deleitosa tarefa de descrever a religião descendo do céu revestida de sua pureza natural. Ao historiador compete um encargo mais melancólico. Cumpre-lhe descobrir a inevitável mistura de erro e corrupção por ela contraída numa longa residência sobre a terra, em meio a uma raça de seres débeis e degenerados.”

EDWARD GIBBON, Declínio e queda do Império Romano

Como limitação e possibilidade de seu próprio ofício, os cientistas sociais

– sejam eles historiadores, sociólogos, antropólogos, ou de outros tipos quaisquer

– não podem ascender a verdades convencional e interpretativamente válidas sem

descer ao intrincado universo de fatos particulares que compõem seu objeto de

estudo.12 Um historiador especialmente interessado em se aproveitar do – como o

chama o literato argentino Jorge Luis Borges – melancólico acaso que faz com

que depois de certo tempo os próprios historiadores e suas narrativas

historiográficas se convertam eles mesmos em objetos passíveis de uma análise de

dimensões históricas deve ser bastante cuidadoso no trabalho de pesquisa a que se

propõe.13 Somente a partir de um estudo adequadamente profundo de trabalhos

específicos sobre temas bem delimitados é que ele poderá vir a em algum

momento de sua carreira tecer considerações de caráter mais geral sobre como a

realidade é, ou melhor, como a realidade pode ser – em diferentes contextos, de

acordo com diferentes intencionalidades, dentro de diferentes dinâmicas de

diálogo, pesquisa e escrita – retratada por uma obra de historiografia.

Dessa maneira acima referida é que se quis proceder na elaboração deste

trabalho de monografia, fazendo-o em relação a um autor e obra específicos: no

presente caso, Eusébio de Cesaréia e sua História Eclesiástica. O que pretendi foi

produzir como que um instantâneo discursivo sobre a imagem composta por este

historiador acerca do desenvolvimento histórico do movimento cristão dos

primeiros séculos e a sua institucionalização como religião permitida e protegida

do Império Romano, buscando elencar alguns dos elementos contextuais, autores

e conceitos com os quais o bispo de Cesaréia dialogou para compô-la.                                                             12 Cf. Clifford GEERTZ. Observando o Islã : O desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. (Trad. de Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. (Coleção “Antropologia Social”; dir. Gilberto Velho). ps. 12-14 e 33-35. 13 Cf. J. L. BORGES. Op. cit. pp. 86-87.

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Se é verdade que certos tipos particulares de fé – aliás, como certos tipos

particulares de dúvida – florescem em certos tipos particulares de sociedade e

dinâmica social, também nos é possível afirmar que certa compreensão do

historiador sobre o que faz e sobre qual a natureza de seu objeto de estudos está

relacionada intimamente com seu contexto cultural específico. Não que isso seja

um fator completamente determinante do que pode ou não elaborar ou fazer ele a

partir de sua apropriação particular dos instrumentos de pensamento que lhe são

fornecidos por sua formação cultural, mas não levá-la em conta seria como

observar uma aranha que se move em uma teia sem considerar o formato e a

construção da própria teia. Como já atestamos acima, qualquer historiador

seriamente debruçado sobre determinada realidade que não é sua própria, passada,

procurará escrever em seu âmbito profissional mais sobre seu estrito objeto de

estudos do que sobre si mesmo; contudo, suas próprias escolhas de fatos a narrar

como exemplares de certos processos, sua abordagem temática, as fontes que

utiliza em sua pesquisa, os autores com os quais dialoga e como o faz, o estilo

com o qual compõe seu texto, são indícios muito relevantes sobre o homem que

escreve, o mundo no qual ele se insere (e para o qual ele escreve) e como ele

compreende e lida com este mundo.14

Fazer a análise de como Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica

retratou e interpretou o processo de oficialização da Igreja Cristã, que marca a

passagem do cristianismo de uma crença mais ou menos periférica e

esporadicamente perseguida para uma religião permitida e protegida pelo Império

Romano, é pensar também como este homem compreendia e se posicionava em

relação à sua própria crença cristã, e, mais ainda, é entrever como este pensador

compreendia seu próprio ofício, a natureza, da história, do homem e do mundo.

Antes de prosseguirmos em tal intento, é necessário fazer ainda algumas

considerações preliminares. A primeira dela diz respeito à terminologia usada no

título e no corpo deste trabalho. Em toda a parte preferi usar para me referir ao

conjunto dos seguidores de Jesus de Nazaré a expressão movimento cristão ou

movimento de Jesus do que cristianismo – com a qual expressamos o variado e

nem sempre coerente sistema de crenças dos diversos cristãos – ou Igreja Cristã –

que associamos a uma facção do movimento cristã que veio a se tornar                                                             14 Cf. C. GEERTZ. Op. cit. p. cit. P. GAY. Op. cit. p. cit.

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hegemônica contra outras versões concorrentes que acabaram sendo silenciadas e,

por assim dizer, ficaram para trás; por institucionalização do movimento cristão

queremos designar justamente a conformação de uma considerável fatia sua como

uma instituição sociopolítica e jurídica solidamente estabelecida sobre uma

realidade humana e patrimonial concretas e um conjunto de crenças conseqüentes

inter-relacionadas de forma sistemática. Nisto tudo segui as considerações que

Dale T. Irvin e Scott W. Sunquist registraram no prefácio da obra História do

movimento cristão mundial, por eles organizada:

“(...) O movimento cristão tem sido sempre maior do que qualquer comunidade eclesial individual ou local imaginou que fosse. Sua história reflete uma enorme diversidade de crenças e práticas através dos dois milênios passados. Poucos haverão de concordar com tudo o quanto tem sido dito ou feito em nome do cristianismo, e na verdade a própria história do movimento está repleta de disputas. Para narrar uma história fidedigna do movimento, é preciso levar em conta esta diversidade, as divergências que muitas vezes separam várias partes uma da outra, sem reduzir sua história comum à perspectiva de uma só. Somos forçados a unir numa história comum indivíduos e comunidades que em vida muitas vezes lutaram para distanciar-se uns dos outros, e cujos descendentes eclesiásticos com freqüência permanecem em desacordo uns com os outros hoje em dia. Muitas dessas diferenças surgiram como resultado da ultrapassagem por parte da fé cristã dos limites históricos da linguagem, da cultura e da identidade. O próprio tempo introduziu ulteriores mudanças no significado, na expressão e na prática. O movimento cristão foi continuamente diversificando-se por meio de suas expansões, embora pretendesse permanecer o mesmo.”15

Em segundo lugar, tive de enfrentar a problemática das fontes. É um pouco

embaraçoso reconhecer que lidei como amador com a História Eclesiástica, e que

um meu próprio estudo um pouco mais aprofundado implicaria revisões muito

sérias no trabalho que agora apresento. Embora tenha escolhido trabalhar com a

análise estilística de um historiador de língua grega, o meu domínio do grego é

simplesmente uma nulidade, reduzido ao de perscrutador de notas de rodapé e um

tanto quanto displicente utilizador de dicionários e gramáticas. Evidentemente

também considero saudável a regra de não se tratar de autores com os quais não se

pode lidar no original, mas fui levado a desrespeitá-la não só por um fascinado

ímpeto aventureiro que, ultrapassando a curiosidade, chegou a constituir quase

uma imprudência e uma deselegância, mas também pela grande importância de

                                                            15 Dale T. IRVIN e Scott W. SUNQUIST (orgs.). História do movimento cristão mundial. Vol. I : Do cristianismo primitivo a 1453. (Trad. José Raimundo Vidigal). São Paulo: Paulus, 2005. p. 5.

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Eusébio de Cesaréia na formação da tradição historiográfica do Ocidente e do

Oriente de matriz civilizacional cristã – assim como pelo melancólico fato de que

este autor é muito pouco ou quase nada estudado entre nós. Prescindir de

investigá-lo por não poder apreciá-lo na sua formulação original seria equivalente

a dar um tratamento sofístico àquela afirmação de Heródoto de que as nascentes

do Nilo são desconhecidas16, contentando-me em afirmar que estas são de todo

insondáveis e a observar encantado e ignorante o movimento sazonal das baixas e

cheias e a fecundidade e devastação que as águas deste rio trazem à terra do Egito.

Posto tudo isto, tive de lidar com uma obscura tradução em português da História

Eclesiástica17, que cotejei com a mais autorizada feita por Argimiro Velasco-

Delgado, publicada em espanhol junto com o texto grego e acompanhada por uma

minuciosa introdução, índices temáticos e onomásticos, referências bibliográficas

muito completas e abundantes notas explicativas, em dois volumes pela Biblioteca

de Autores Cristianos (BAC).18 Comparando as duas traduções, acabei

constatando que a brasileira de que disponho é uma versão não-creditada da

tradução Velasco-Delgado, mantendo inclusive fragmentos de algumas de suas

notas – aliás, muito empobrecidos – e muitos espanholismos. Dadas estas

circunstâncias, optei por citar sempre o texto em português, recorrendo, contudo,

às notas e etimologias da outra tradução; para os trechos e termos de

entendimento especialmente difícil, recorri sempre a esta, e em algumas vezes não

hesitei em tatear o vocabulário grego com o auxílio das referências do

enciclopédico Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs.19

Em terceiro lugar, há a questão da bibliografia que utilizei. Baseei a maior

parte de minha análise em minhas próprias impressões e em uma mistura muito

heterogênea de textos de historiadores, teólogos, cientistas sociais, literatos e

filósofos. Há os que possam vir a achar que este ecletismo é uma desvantagem,

                                                            16 HERÓDOTO. História : O relato clássico da guerra entre Gregos e Persas. (Trad. J. Brito Broca; introd. Vítor de Azevedo). (2ª ed. reform.). São Paulo: Ediouro / Prestígio, 2001. (Col. “Clássicos Ilustrados”). Livro II, 28. p. 200: “(...) Nenhum dos Egípcios, Lídios e Gregos com quem palestrei vangloriava-se de conhecer as nascentes do Nilo”. 17 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria Aparecida Salmeron). São Paulo: Fonte, 2005. 18 EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiastica. (Texto bilíngüe; ver. espanhola, introd. e notas de Argimiro Velasco-Delgado). (2ª ed. rev.). Madri: BAC, 1997 [1973]. (2 vol.). 19 VV. AA. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo Di Berardino). Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002.

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mas considero justamente o contrário. Transitei de bom grado entre diferentes

discursos, examinando-os e colhendo neles o que achei proveitoso para ser aqui

utilizado, e procurei em toda parte ter o cuidado de fazer as adequadas referências

que pudessem situar ao leitor o local de fala dos autores mencionados. Os eruditos

que estudaram a Antigüidade cristã, sejam eles de quaisquer formações

acadêmicas, certamente estavam – e estão – no nível dos mais habilidosos de seus

pares e produziram nos últimos séculos um verdadeiro universo de tratados muito

minuciosos, labirinto que imagino impossível de ser percorrido inteiramente em

uma só vida humana. Não tenho a mínima pretensão de cobrir toda esta polifônica

biblioteca de Babel, mas fico satisfeito se os que lerem este trabalho considerarem

que consegui entrar de alguma maneira proveitosa no vasto e altamente

especializado “Campeonato Greco-Romano”.20

                                                            20 A expressão é do sociólogo Rodney Stark, que diz ter escrito o ensaio intitulado “The Class Basis of Early Christianity: Inferences from a Sociological Model” – cujos desdobramentos deram origem ao seu livro The rise of christianity – com o principal propósito de saber se era “suficientemente bom para jogar no Campeonato Greco-Romano”. Rodney STARK. O crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. (Trad. Jonas P. dos Santos). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 7.

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Capítulo 1

A BIBLIOTECA DE CESARÉIA

I.

“Tu que transcreverás este livro, eu te conjuro, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, e de sua volta gloriosa, na qual virá julgar os vivos e os mortos: confronta o que tiveres copiado, e corrige-o com cuidado no exemplar em que o tiveres escrito. Transcreve também do mesmo modo esta súplica e coloca-o em tua cópia.”

JERÔNIMO, De viris ilustribus

Os primeiros passos do cristianismo rumo à sua institucionalização se

deram na chamada “era da ansiedade”, conforme a definiu o filósofo Eric

Dodds.21 De acordo com o que vemos na imprensa periódica e nos jornais da

semana, segundo aquilo que vivemos em nosso cotidiano, poderíamos objetar – e

com muita propriedade – que o nosso próprio tempo também é um período de

ansiedade; além disso, o estudioso de História pode afirmar que seguramente

todos os tempos – cada um a seu modo – são de ansiedade. Mais ainda: alguns, de

mais discernimento, declaram que não há sequer “eras”, que estas são apenas

divisões artificiais criadas a posteriori pelos historiadores e pelos líderes

religiosos e políticos, pessoas que pretensiosa e arbitrariamente se propõem a

fatiar a experiência humana de acordo com suas próprias concepções e interesses.

Nisto tudo não deixam de ter razão. Aqueles anos transcorridos entre a chegada de

Marco Aurélio ao trono (161 d.C.) e o Edito de Milão (313 d.C.), entretanto,

foram para os habitantes das terras que então compunham o Império Romano

marcados de forma singular por um extremo caos e insegurança, instaurados por

calamidades naturais e sociais: constante inquietação financeira, declínio

acentuado do poder das autoridades civis partidárias do legalismo em favor do

autoritarismo dos magistrados investidos de funções militares, crescente escassez

de gêneros alimentícios, decréscimo acentuado das taxas de natalidade,

desorganização dos padrões tradicionais de organização familiar, mudança nas

estruturas produtivas no campo, miséria urbana crônica, epidemias de grande                                                             21 Citado em: Marilia Pacheco FIORILLO. O Deus exilado : Breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. pp. 121-122.

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alcance e os efeitos debilitantes de uma estrutura cultural saturada “da crueldade

caprichosa e do amor substitutivo da morte”.22 A tudo isto, somavam-se novas

pressões surgidas nas fronteiras, e uma sensação de opressão e isolamento

crescentes: o cristão Bardaisan – que eventualmente viria a se tornar, ou, como se

queira, a ser considerado um heresiarca –, elemento complexo com uma aguda

visão de seu mundo, falante de siríaco como língua-mãe e de pelo menos uma

outra meia dúzia de idiomas, famoso por sua destreza como cavaleiro e arqueiro,

bem versado na filosofia platônica e profundo conhecedor das Escrituras Sagradas

de seus correligionários e dos judeus, afirmou. que a civilização estava cercada

por terras ermas e povoadas por habitantes sinistros, entre os quais não havia nem

mesmo o conhecimento das facilidades indispensáveis à vida urbana.23 No

máximo na década de 210, escreveu ele que “(...) Em todas as regiões dos

Sarracenos, na Líbia Superior, entre os Mauritânios... na Alemanha exterior, na

Sarmácia Superior... em todos os territórios a norte do Ponto [mar Negro], do

Cáucaso... e nas terras do outro lado do Oxus, ninguém vê escultores, pintores,

perfumistas, cambistas ou poetas.”24 A maior parte dos súditos greco-latinos de

Roma, convencidos de sua superioridade cultural, mas cada vez mais hesitantes

quanto às suas reais capacidades bélicas, deve ter compartilhado da claustrofobia

de Bardaisan, agravada mais e mais conforme a própria porção do mundo que

consideravam como civilizada tornava-se um lugar tão estranho quanto violento.

De um modo geral, o terceiro século depois do nascimento e morte de

Jesus de Nazaré foi marcado pela turbulência e pela insegurança política na Bacia

do Mediterrâneo, e em seus anos o governo imperial romano tornou-se, “cada vez

mais, o prêmio a ser conquistado pelo chefe militar mais forte, pelos generais

ambiciosos que abundavam”.25 Nestes dias, “(...) havia quase que invariavelmente

alguma província nas mãos de um usurpador e, na prática, o império dificilmente

                                                            22 Cf. Rodney STARK. O crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. (Trad. Jonas P. dos Santos). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 239. 23 Cf. Peter BROWN. A ascensão do cristianismo no ocidente. (Trad. Eduardo Nogueira; Rev. Saul Barata). Lisboa: Presença, 1999. (Col. “Construir a Europa”; dir. Jacques Le Goff). ps. 21 e 24. 24 Citado em: Id. Op. cit. p. cit. 25 Steven RUNCIMAN. A civilização bizantina. (Trad. Waltensir Dutra). 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. pp. 12-13.

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poderia ser considerado como uma comunidade unida”.26 O mais eficaz sistema

sócio-político e econômico pré-industrial do mundo – com a possível exceção da

China confuciana27 –, sob vários aspectos, finalmente defrontava-se com os seus

limites e seguia a vereda do declínio; os grandes oradores e historiadores do

mundo clássico, entretanto, operando com categorias de ordem apriorística e

imutável, eram incapazes de propor, ou mesmo de conceber tal coisa: não viam e

não podiam ver forças sociais em atuação, “mas somente vícios e virtudes, êxitos

e erros; a sua maneira de colocar os problemas não é espiritual nem materialmente

histórico-evolutiva, mas [exclusivamente] moralista.”28 Apenas na década de 280,

Diocleciano, “o primeiro grande estadista que Roma produziu desde Augusto”29,

conseguiu fazer implementar um programa de reformas de longo alcance com

vistas à pacificação do Império pela reorganização das instâncias de comando

civil e militar, uniformização da administração, submissão completa do exército,

normalização do poder econômico do governo pela estabilização da moeda e

valorização ideológica da pessoa do imperador – segundo Georges Suffert, ao

proceder assim, este soberano acabou inventando “um dos primeiros Estados

modernos e totalitários da História.”30 A Tetrarquia por ele instaurada, contudo,

revelou-se mais frágil do que se poderia ter antecipado e, de fato, elevou a um

novo nível os embates pelo governo de Roma:

“(...) O império reformado por Diocleciano mal resistiu à sua abdicação, em 305. (...) [Ele] fizera o império depender do imperador, mas o sistema de dois

                                                            26 Id. Op. cit. p. cit. 27 Stephen L. DYSON. “A classical archaeologist’s responses to the ‘New Archeology’”. In: Bulletin of the American Schools of Oriental Research, s.l., s.v., n. 242, pp. 7-13, s.d. p. 10. Apud: John Dominic CROSSAN. O nascimento do cristianismo : O que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. (Trad. Barbara T. Lambert). São Paulo: Paulinas, 2004. (Col. “Repensar”). p. 222. 28 Erich AUERBACH. Mimesis : A representação da realidade na literatura ocidental. (Trad. Jacob Guinsburg). (5ª ed.). São Paulo: Perspectiva, 2004. (Col. “Estudos”, Seção “Crítica”, n. 2; dir. Jacob Guinsburg). p. 32. 29 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 17. 30 Georges SUFFERT. Tu és Pedro : Santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A história dos primeiros 20 séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Trad. Adalgisa Campos). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 63. O mesmo autor relativiza, a seguir, ainda na página citada, esta polêmica e certamente anacrônica caracterização ao declarar que se trata de um “(...) Julgamento um tanto excessivo, (...) [ainda que seja] certo que a centralização [administrativa] não pára de aumentar, que a polícia torna-se onipresente e que uma vaga religiosidade envolve este novo império.” Id. p. cit.

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imperadores e uma norma de sucessão ao trono só poderia perdurar se os candidatos imperiais fossem homens de espírito elevado, isentos de ciúmes e de suspeitas. O título de césar era também perigoso, muito alto, mas ainda não bastante alto. Desapareceu rapidamente. Em 311 havia quatro imperadores (...). A cena estava, evidentemente, preparada para a guerra civil.”31

Nos freqüentes conflitos armados – contra correligionários romanos,

contra inimigos externos – cidadãos pacíficos podiam inesperadamente se ver

desgraçados, pilhados, violados, torturados, mortos; a Pax Romana era cada vez

mais apenas um artifício retórico do que uma realidade cotidiana retoricamente

apresentada pelos oradores, poetas e letrados.32 Edward Gibbon escreveu sobre

este período que então “(...) O Império se viu afligido por cinco guerras civis; no

restante do tempo, reinou não tanto um estado de tranqüilidade como de trégua

armada entre os diversos monarcas hostis que, encarando-se um ao outro com

olhos de medo e rancor, forcejavam por aumentar suas respectivas forças às custas

de seus súditos.”33

Este ambiente político tumultuado, conforme escreveu Steven Runciman,

contrastava com o que este historiador considerou “padrões de civilização [que]

eram ainda altos.”34 O empobrecimento geral da população coincidiu com a

ampliação do abismo existente entre pobres e ricos, e o fato material verificável é

que, no âmbito de sucessivas crises, ainda que imersos na insegurança, “as classes

mais ricas desfrutavam um conforto material e um luxo que ultrapassavam

                                                            31 S. RUNCIMAN. Op. cit. pp. 19-20. 32 E isto para aqueles homens livres que possuíam a cidadania romana. Para os povos que foram conquistados pelas armas romanas, ou que lhes declararam por si mesmos a sua submissão, a Pax Romana foi sempre, constitutivamente, marcada por uma “paz” no mínimo ambígua. É fato que durante um considerável período em toda a grande região sob o domínio romano praticamente nenhuma guerra devastava os campos e as cidades, as letras, artes e ofícios podiam desenvolver-se, por toda parte vigorava o mesmo sistema jurídico, e as fronteiras se encontravam em relativa tranqüilidade, mas tratava-se de uma situação de tensão latente. A paz havia sido estabelecida e era mantida pela marcha das legiões – paz-de-vitória para os romanos, paz-de-submissão para os vencidos – e por uma relação que, sendo na teoria uma relação de direito entre dois parceiros, era “na realidade uma ordem de dominação (...) acompanhada de rios de sangue e lágrimas de enormes dimensões”. Cf. Maria Clara Lucchetti BINGEMER (org.) Violência e religião : Cristianismo, Islamismo, Judaísmo : Três religiões em conflito e em diálogo. Rio de Janeiro / São Paulo: PUC-Rio / Loyola, 2001. (Col. “Teologia e Ciências Humanas”, n. 3). pp. 123-124. A este respeito, ver também: Klaus WENGST. Pax Romana : Pretensão e realidade. São Paulo: Paulinas, 1991. 33 Edward GIBBON. Declínio e queda do Império Romano. (Org. e introd. Dero A. Saunders; Pref. Charles A. Robinson. Jr.; Trad. e notas suplem. José P. Paes). Ed. abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 197. 34 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 13.

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qualquer coisa já vista pelo mundo.”35 Com a miopia comum a grande parte de

seus camaradas ricos de outros tempos e locais, em meio à doença, à violência, às

moscas, os romanos mais abastados tornaram-se verdadeiros aficionados por

incenso, cada vez mais ávidos dos prazeres sensuais que lhes podiam proporcionar

os ungüentos raros, as peles e cabelos de servas e eunucos, o vinho de Falerno, as

penas coloridas de pássaros exóticos, a lã purpúrea ou escarlate, a cera, a pimenta,

o mel.36 Os “(...) Templos, estátuas, poemas épicos, revestiam-se todos de

magnificência e rebuscamento”37, e a “arte e as letras ainda se mantinham fiéis

aos velhos poemas gregos ou às suas magníficas reproduções surgidas na Roma

augustina (...), mas a grande civilização que [o Império Romano] copiava perdera

sua força vital”38 com o advento de profundas mudanças culturais.

Na clássica cidade-estado grega o cidadão estava imerso na vida pública,

identificando-a com a esfera mais imediata, mais íntima de sua existência: a lei, a

defesa e a gestão da pólis eram assuntos intrinsecamente seus – o que não foi o

caso nas monarquias helenísticas. Nestas a identificação entre governo e cidadão

desapareceu, e este se viu reduzido à súdito – uma pessoa submissa à um núcleo

de poder externo, que não se confunde com seu âmbito particular de interesses e

afazeres. Afastado de constantes obrigações políticas, entretanto, ele também foi

liberado para cultivar sua personalidade de diversas formas, e posto em diálogo

com discursos e símbolos estrangeiros que então se punham à sua frente na

medida em que as fronteiras estatais que o limitavam foram progressivamente

extintas e seu horizonte de pensamento se expandiu para muito além daquilo que

seus olhos podiam visar.39 Com a desintegração dos governos de origem

macedônica e a expansão do Império Romano, que buscou a colaboração dos

dirigentes nativos das diversas áreas que conquistou ao mesmo tempo em que

                                                            35 Id. p. cit. 36 Cf. R. STARK. Op. cit. p. 172. PETRÔNIO. “A ceia de Trimalchão”. In: Saticiron. (Trad. Miguel Ruas). São Paulo: Atemas. 1949. (Col. “Biblioteca Clássica”, v. 30). ps. 45-46 e 54. 37 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 14. 38 Id. p.cit. 39 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 124-125. Edward McNall BURNS. História da Civilização Ocidental. (Trad. de Lourival G. Machado, Lourdes S. Machado e Leonel Vallandro). (3ª ed. rev. e at.). Porto Alegre: Globo, 1975. pp. 193-210. Henri Irenée MARROU. História da Educação na Antigüidade. São Paulo: Herder / USP, 1966. pp. 153-163 (especialmente as pp. 156-161). Helmut KOESTER. Introdução ao Novo Testamento. Vol. I : História, cultura e religião do período helenístico. (Trad. Euclides Luiz Calloni). São Paulo: Paulus, 2005. ps. 44-47, 105-118 e 167-170.

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“incentivou, como precavida forma de controle administrativo, a assimilação

lingüística e cultural”40, esta tendência ao individualismo e ao cosmopolitismo se

acentuou, sintetizando novas formas de ser no mundo, sincréticas e concorrentes

em um mercado discursivo caracterizado justamente pela livre-concorrência de

idéias e modos de viver.41 Constituída esta estrutura, “(...) A Paidéia helenística

[sic] recuou e cedeu (...). Agora não se lia mais o Platão político da República ou

o comentador da ética socrática, mas o Platão místico de textos como Timeu.”42

Essa metamorfose teve importante ressonância na produção e preservação das

fontes materiais do conhecimento formal nos primeiros séculos depois de Cristo.

Para Edward Gibbon, este “homem engenhoso que, além do mais, tinha

razão (...) [ou, para escrever em] palavras fatais, um clássico”43, este período em

                                                            40 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 124. 41 Cf. Marcus J. BORG e John Dominic CROSSAN. A última semana : Um relato detalhado dos dias finais de Jesus. (Trad. de Alves Calado). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. ps. 27 e 31. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 124-125. S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 14. H. I. MARROU. Op. cit. ps. 375-410 e 447-453. 42 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 126. Sendo plenamente válida a frase no âmbito de nossa argumentação, cremos, entretanto, que há uma pequena desatenção conceitual da parte da autora neste trecho que citamos. Pode-se considerá-la assim ou não. De nossa parte, cremos que seria mais adequado empregar o adjetivos helênica ao invés de helenística, de modo que se evitasse confundir a situação cultural da Hélade das polei com o estado das coisas durante a expansão de Alexandre Magno e os vários governos instaurados por seus generais sucessores. 43 Jorge Luis BORGES. Outras Inquisições. (Trad. Davi Arrigucci Jr.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 101. Sabemos o quanto esse juízo sobre Edward Gibbon pode ser mal interpretado e mesmo encarado como polêmico no contexto de nosso trabalho, mas ainda assim fazemos questão de registrá-lo. A obra magna de Gibbon, Declínio e queda do Império Romano, a qual faremos aqui ocasional referência, é uma narrativa que foi caracterizada por mais de duzentos anos, e ainda hoje, como clássica – adjetivo que contempla a sua profundidade discursiva, as sucessivas leituras que lhe foram feitas e cujas marcas enriquecedoras chegam até nós, o fato de que não deixa indiferente quem a lê, que desperta uma nuvem críticas sobre si e as repele, que teima em persistir como origem ou rumor mesmo em meio a tantos outros escritos atualíssimos sobre o mesmo tema, e que é, de alguma forma, imortal. É temeroso falar em imortalidade no que se refere à validade de um texto, dado que toda obra e existência humana é sempre datada, localizada no tempo e no espaço e necessariamente marcada por esta situação idiossincrática, mas o fato é quem em muitos aspectos, comparados com trabalhos mais contemporâneos sobre os primeiros séculos da Era Cristã, o Declínio e queda permanece incólume – e isso não apenas em função do encanto que desperta como peça literária. J. B. Bury, organizador de uma ilustre edição deste livro escreveu com muita propriedade que “nem o historiador nem o homem de letras subscreverão sem mil reservas os capítulos teológicos de Declínio e queda”, e que mesmo assim, contudo, as mais minuciosas investigações sobre o período que é objeto da maior atenção de Gibbon “nem modificaram de modo substancial nem infirmaram o acerto” dos argumentos mais gerais que estruturam sua narrativa sobre a decadência do Império Romano, de como esta se caracterizou como o triunfo conjunto da barbárie e do cristianismo. Cf. Jorge Luis BORGES. Prólogos : Com um prólogo dos prólogos. (Trad. Ivan Junqueira). Rio de Janeiro: Rocco, 1985. pp. 85-87. Italo CALVINO. Por que ler os clássicos? (Trad. Nilson Moulin). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 9-16. Dero A. SAUNDERS. “Introdução do Organizador”. In: E. GIBBON. Op. cit. pp. 23-26. O literato argentino Jorge Luis Borges registra que se pode ler a obra do grande historiador inglês tanto para saber da história romana quanto para se verificar como

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que convergiram a beligerância e o legalismo romanos, as ferramentas do pensar

grego, a hermenêutica e o monoteísmo judaicos, o dualismo e a magia persas, a

astrologia e o fatalismo babilônicos, a mitopolitologia egípcia, os cultos de

mistério, o estoicismo, o cristianismo, o gnosticismo e o neoplatonismo44 foi uma

“época de decadência do saber e dos valores humanos”45, na qual “(...) O

conhecimento que melhor serve a nossa condição e faculdades, todo o âmbito da

ciência moral, natural e matemática, era negligenciado”.46 As conseqüências desta

negligência no referente ao que é o tema de nosso presente interesse se

evidenciam a uma consideração mais cuidadosa com alguma facilidade.

Durante um largo período de tempo, sucessivos imperadores romanos

seguiram os exemplos de Júlio César e César Augusto e incluíram bibliotecas em

seus projetos de edificação pública, não se limitando a dotar seus próprios

palácios e templos de estantes, arquivos e salas de leitura e transcrição. Ainda sob

o primeiro Imperador de Roma, os banhos públicos – solidários da distribuição de

pães, das arenas de gladiadores e dos hipódromos como parte da política

governamental de contentamento das massas – passaram a incluir bibliotecas em

suas dependências, espaços que continham tanto tratados jurídicos, médicos e

científicos quanto obras literárias familiares – ainda que cada vez mais destas do

que daqueles.47 Segundo a narrativa do bibliotecário Matthew Battles,

“(...) À medida que a República tornava-se Império, as bibliotecas tão adoradas por Cícero prosperavam como nunca. (...) em meio aos sucessivos incêndios que

                                                                                                                                                                   poderia imaginá-la um cavalheiro setecentista, duplicidade de sentidos que não esvazia de valor seu texto, mas, ao contrário, o potencializa: “(...) Afora aquela prevenção contra o sentimento religioso em geral e contra a fé cristã em particular, Gibbon parece abandonar-se aos fatos que narra e reflete-os com uma divina inconsciência que o aproxima da cegueira do destino, do próprio curso da história. Como quem sonha e sabe que sonha, como quem aceita os acasos e as trivialidades de um sonho, Gibbon em seu século XVIII, voltou a sonhar o que viveram ou sonharam os homens dos séculos anteriores, nas muralhas de Bizâncio ou nos desertos árabes. (...) Épocas houve em que se liam as páginas de Plínio em busca de precisões; hoje as lemos em busca de maravilhas (...). Esse dia ainda não chegou para Gibbon, e não sabemos se chegará.” J. L. BORGES. Prólogos. ps. cits. 44 Que “tornou-se uma espécie de igreja-mor da causa pagã, com seus próprios dogmas e apologética.” M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 126. 45 E. GIBBON. Op. cit. p. 195. 46 Id. p. 196. 47 Cf. Matthew BATTLES. A conturbada história das bibliotecas. (Trad. João V. G. Cuter). São Paulo: Planeta, 2003. pp. 52-53.

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flagelavam Roma, elas permaneceram em funcionamento (...). Mesmo em pleno declínio, o esplendor do Império ainda persistiu por um bom tempo. Romanos cristianizados do quinto século ainda faziam visitas aos palacetes uns dos outros para reviver um pouco da glória dos dias idos. O prolífico epistológrafo Sidônio Apolinário, numa carta a seu amigo Donídio descreve uma cena desse tipo (...) [sua] descrição evidencia mudanças no uso dos livros, muito embora as pessoas continuem a apreciar ‘a grandeza da eloqüência latina’ (...) agora existe espaço para livros dissidentes, escritos por aqueles que Gibbon chama de ‘galileus’.”48

Tanto o corrosivo desinteresse, e o abandono que lhe é naturalmente

associado, quanto as depredações feitas por governantes ávidos de apagar a

memória de seus antecessores, e por contingentes de invasores e multidões

furiosas, se juntaram aos acidentes da natureza – terremotos, inundações,

incêndios, erupções vulcânicas, traças, baratas, cupins, piolhos, vespas, fungos,

ratos, a acidez das tintas empregadas na escrita49 – para privar a posteridade da

maior parte dos numerosos acervos escritos da cultura greco-romana. Pela

conjugação de vários fatores, as bibliotecas públicas romanas (assim como as

helenísticas que as precederam e ainda subsistiam – como, por exemplo, a ilustre

Biblioteca de Alexandria) desapareceram com alguma rapidez na confusão

reinante na “era da ansiedade”.50 Conforme

“(...) as luzes de Roma foram se afastando daquilo que Gibbon chamava de ‘a mais formosa porção da Terra’, suas bibliotecas também começaram a definhar e a morrer. De modo geral, foram tempos sombrios para o estudo, para os livros e para as bibliotecas. (...) Com o declínio econômico e social acentuando-se cada vez mais, secaram as fontes dos recursos necessários para adquirir e preparar o pergaminho e o papiro e para sustentar exércitos de copistas. Até mesmo as estradas caíram no abandono, pondo fim ao eficiente sistema postal de Roma, que tinha uma importância central para a vida da Respublica litterarum. Cartas do período tardio mostram a nobreza romana assumindo o encargo de produzir suas próprias cópias, sinal seguro de que a provisão de escravos cultos, que fora constante, agora minguava.”51

                                                            48 Id. Op. cit. pp. 56-57. 49 Para uma síntese acerca de alguns dos variados fatores que engendram a destruição de livros, ver: Fernando BÁEZ. História universal da destruição dos livros : Das tábuas sumérias à guerra do Iraque. (Trad. Léo Schlafman). Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. (Especialmente as pp. 307-313, que tratam dos inimigos naturais dos livros, das tintas ácidas e dos papéis auto-destrutivos, dos exemplares únicos de obras antigas e modernas, e de quando as editores e alfândegas as destroem). 50 Id. Op. cit. ps. 69 e 98-102. 51 M. BATTLES. Op. cit. p. 61.

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A perda do entusiasmo por certas vertentes da literatura clássica em favor

dos textos metafísicos e místicos, e as constantes disputas entre os partidos de

metafísicos e místicos, que não apenas liam, mas veneravam estes mencionados

escritos, somados à fragilidade dos suportes da redação então conhecidos fizeram

sumir para sempre um número impensável de obras.52 Para a irremediável tristeza

dos estudiosos da posteridade, o ramo cristão que viria a triunfar sobre os demais

– e que a partir deste ponto chamaremos neste nosso trabalho, por motivos

puramente práticos, conscientes do anacronismo inerente ao termo, de

paleortodoxos – construiu, ao menos em um primeiro momento (até a segunda

metade do século III, digamos), a sua identidade por oposição à literatura e à arte

da antigüidade pagã.53 Mais decisivamente ainda, estes homens fiéis se opuseram

à preservação dos textos de seus opositores intramuros, que precocemente

designaram “heréticos”, dando a este termo uma conotação pejorativa que até

então não possuía.54 “(...) O desaparecimento dos escritos gnósticos, causado em

grande parte, pela feroz perseguição da [incipiente] Igreja católica”55 é um

processo histórico sintomático de uma tendência comportamental mais ampla e

arraigada, cuja origem entre os cristãos talvez remonte aos dias da pregação do

Apóstolo Paulo em Éfeso.56 De forma quase irônica, entretanto, foi nas

comunidades monásticas dos “galileus” e ao redor de suas cátedras episcopais que

a “chama frágil e oscilante”57 da cultura literária da Antigüidade continuou a

tremular.

                                                            52 Fernando Báez escreve que “(...) Sem recorrer à imaginação não há forma de quantificar as perdas [de textos clássicos] ocorridas entre os séculos II d.C. e VI d.C.” F. BÁEZ. Op. cit. p. 114. 53 Cf. M. BATTLES. Op. cit. p. cit. 54 M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 95-96 ,128 e 188-191. 55 F. BAÉZ. Op. cit. p. 106. 56 Id. Op. cit. p. 105. O episódio referido, narrado nos Atos dos Apóstolos, é aquele em que muitos do que haviam abraçado a fé pregada por Paulo começaram a confessar publicamente suas práticas mágicas, pelas quais a cidade de Éfeso era famosa na Antigüidade, trazendo seus livros e os queimando-os à vista de todos. Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Coordenação editorial de José Bortolini; Tradução de Euclides Martins Balanci et al. São Paulo: Paulus, 2002 (4ª impressão: 2006). Atos dos Apóstolos 19, 18-19. p. 1938 e notas correspondentes. Da violência simbólica contra si e contra o próprio patrimônio à agressão do outro a distância é bastante pequena neste caso, dado o seu elemento comum de fomento: em última instância, ao se considerar além de toda discussão e argumentação humana, “(...) a certeza conduz à violência.” John J. COLLINS. A Bíblia justifica a violência? (Trad. Walter E. Lisboa). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Bíblia na mão do povo”, n. 1). p. 48. 57 M. BATTLES. Op. cit. p. 62.

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A maior parte dos Evangelhos (e Atos dos Apóstolos) – canônicos e

apócrifos – dos quais hoje temos conhecimento foi composta ainda nos séculos I e

II, mas o cristianismo então não era exatamente uma religião do Livro como o

judaísmo (e como o islamismo viria a ser): “(...) A experiência do Mestre e

profeta Jesus assemelhou-se a um fogo que ninguém pôde extinguir, a uma luz

capaz de iluminar a superfície da Terra, ou, seguindo a linha de Newman, a uma

‘idéia’ viva”.58 Os cristãos de então liam as Escrituras Sagradas hebraicas e, em

sua maioria, as consideravam dotadas de autoridade, mas seguiam a uma a Pessoa

cuja palavra, dada de viva voz, era ela mesma uma Nova Lei, que rompe os

estáticos quadros culturalmente estabelecidos e põe todos os indivíduos que com

ela entram em contato em movimento rumo a algo radicalmente novo.59 John B.

Gabel e Charles B. Wheeler ressaltam que “(...) É fato que, mesmo depois de os

evangelhos serem escritos, alguns membros da Igreja preferiam a tradição oral e

não conseguiam ver a necessidade de um registro escrito”.60 A afirmação do

cristianismo como uma religião do Livro é um processo longo, que se iniciou

talvez com a formulação por Marcião, em meados do século II, de um corpus de

textos sagrados – e que foi catalisado pela refutação deste pelo cristianismo

paleortodoxo. Seja como for, este desenvolvimento – se é que assim o podemos

chamar – alcançou um seu primeiro ápice mais ou menos simultaneamente à

formulação cristológica e litúrgica do Concílio de Nicéia (325).61 Justamente

                                                            58 Richard BERGERON. Fora da Igreja também há salvação. (Trad. Maria Stela Gonçalves; rev. Iranildo B. Lopes). São Paulo: Loyola, 2009. p. 23. 59 Neste ponto, discordo de H. I. Marrou, que considera que o cristianismo é em princípio – ou seja, desde sempre e necessariamente – uma religião do Livro, e, mais ainda, uma crença livresca, “uma religião douta (...) [que] não poderia existir em um contexto de barbárie.” H. I. MARROU. Op. cit. p. 482. Cf. Mircea ELIADE. História das Crenças e das Idéias Religiosas. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983. (Tomo II : De Gautama Buda ao Triunfo do Cristianismo; Volume 2 : Das Provações do Judaísmo ao Crepúsculo dos Deuses). pp. 165-166. Bernard SESBOÜË. “A comunicação da palavra de Deus: Dei Verbum”. In: Bernard SESBOÜË e Christoph THEOBALD (orgs.). Palavra da Salvação (Séculos XVIII-XX) : Doutrina da Palavra de Deus, Revelação, fé, Escritura, Tradição, Magistério. (Trad. Aldo Vannucchi; rev. Albertina P. L. Piva e Marcelo Perine). São Paulo: Loyola, 2006. (Col. “História dos Dogmas”, t. 4; dir. Bernard Sesboüë). pp. 435-438. J. D. CROSSAN. Op. cit. ps. 89-130 e 137-150. E. AUERBACH. Op. cit. p. 37. 60 John B. GABEL e Charles B. WHEELER. A Bíblia como literatura : Uma introdução. (Trad. Adail U. Sobral e Mana S. Gonçalves; apres. e anexos à ed. bras. Johan Konings). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2003. p. 169. 61Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 96. Alfred STUIBER e Berthold ALTANER. Patrologia : Vida, Obras e Doutrina dos Padres da Igreja. (Trad. Monjas Beneditinas). (2ª ed.). São Paulo: Paulinas, 1988. (Col. “Patrologia”, n. 3). pp. 103-104. Julio Trebolle BARREIRA. A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã : Introdução à história da Bíblia. (Trad. Ramiro Mincato). Petrópolis: Vozes, 1995. ps. 274-284 e 294-302. Barbara ALAND. “Marcião – Marcionismo”. In: VV. AA. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo Di Berardino).

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neste período intermédio – ou seja, entre o estabelecimento do corpus marcionita

e do corpus niceno – ocorreu no ambiente cultural greco-romano que escrita

deixou de ser um fim em si para ser apenas um meio, perecível: “(...) Na ausência

da demanda imperial por inscrições em pedra e dos decretos e discursos a ser [sic]

transcritos em papiro ou pergaminho, pouca coisa era escrita na forma de um

registro perene.”62 Nos primórdios de sua fé (e igualmente nas comunidades

monásticas tardo-antigas e medievais do Oriente e do Ocidente), os cristãos

aprendiam a ler e a escrever apenas “para se entregarem com afinco a um trabalho

espiritualmente recompensador”63, de modo que registravam versos das Escrituras

e de outros textos que consideravam edificantes em cacos de cerâmicas (as

óstracas) e em tabuinhas cobertas de cera, que não sobreviviam por muito tempo.

A expansão das pesquisas arqueológicas nos séculos XIX e XX, somada ao

significativo refinamento de seus métodos de análise, de fato fez vir à luz com

surpreendente facilidade miríades de textos neste formato, importantes

testemunhos – redigidos majoritariamente em grego, latim e siríaco, mas também

em irlandês, etíope, armênio e sogdiano, entre outros idiomas – do

estabelecimento e dinâmica de um imenso número de cristianismos dispersos

entre o Atlântico e o Mar da China, dispostos como “contas de um imenso rosário

partido. No condado de Atrim, no Norte da Irlanda, e em Panjikent, a Leste de

Samarcanda, descobriram-se [por exemplo, alguns destes] fragmentos de cadernos

de cópias (...) contendo linhas copiadas dos Salmos de David.”64 Inspirados nestas

tabuletas é que os cristãos coptas e palestinos inventaram – ou pelo menos

                                                                                                                                                                   Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. pp. 881-882. Os efeitos desta transformação são vários e profundos, e um destes foi expresso de forma pungente por São Jerônimo quando este douto anacoreta escreveu que “(...) Tinge-se o pergaminho de cor de púrpura, traçam-se letras com ouro líquido, revestem-se de gemas os livros, mas diante das suas portas, totalmente nu, Cristo está morrendo”. Citado em: Paulo Evaristo ARNS. A técnica do livro segundo São Jerônimo. (Trad. Cleone A. Rodrigues). (2ª ed. rev. e ampl.). São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 28 e nota correspondente, n. 71, p. 37. Em referência a uma questão que é a esta conecta, ver: J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 167 e nota correspondente, n. 1. Sobre o caráter de definitivo (fechado) do cânone ortodoxo, ver a admoestação inserida no final do livro do Apocalipse, o último da Bíblica cristã pós-nicena: “(...) A todo o que ouve as palavras da profecia deste livro, eu declaro: ‘Se alguém lhes fizer algum acréscimo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. E se alguém tirar algo das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará também a sua parte da Árvore da Vida e da Cidade Santa, que estão descritas neste livro!” BÍBLIA. Ver. cit. Apocalipse 22, 18-19. pp. 2167-2168 e notas correspondentes. 62 M. BATTLES. Op. cit. p. 62. 63 Id. Op. cit. p. cit. 64 P. BROWN. Op. cit. p. 22.

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aperfeiçoaram – o códice, que deu origem ao formato moderno do livro.65

Substituindo os rolos, que eram o formato padrão dos livros na Antigüidade

clássica, os códices eram formados por folhas de pergaminho ou papiro

sobrepostas e unidas por um cordão entre si e à uma encadernação de couro

rígido, madeira ou marfim, e foram introduzidos “em Roma pelos cristãos, que o

trouxeram das cidades que sediaram a Igreja nos primeiros tempos, na Palestina,

no Egito e na Grécia (...). Um mosaico em Ravena, do tempo de Sidônio, mostra

um tradicional armarium romano cheio de códices deitados com as capas viradas

para cima, e os títulos claramente à mostra. Eram evangelhos. O códice era algo

tipicamente cristão.”66

Para Evaristo Arns, o que precipitou esta evolução técnica do livro foi

“(...) O amor ao livro sagrado e sobretudo a posição oficial da Igreja.”67 Talvez

não estejam excluídos desta formulação cunhada pelo atual Sr. Cardeal Emérito

da Arquidiocese de S. Paulo quando tratava-se ainda um entusiasta do estudo

erudito da antiga literatura cristã os bem conhecidos motivos de ordem

missionária e apologética que influíram neste processo: sabe-se, por exemplo, que

ainda por volta de 730 Bonifácio escreveu para seus confrades ingleses

requisitando cópias da Bíblia que fossem escritas “em letras de ouro, para que a

reverência às Sagradas Escrituras seja impressa nas mentes carnais dos gentios.”68

Não está no âmbito de nossa reflexão, entretanto, prosseguir tecendo

considerações sobre as causas de tal notável mudança; cabe-nos apenas registrar

que este novo suporte para a escrita não era apenas mais fácil de ler que os rolos e

podia suportar mais caracteres do que estes (já que permitia que se escrevesse nos

dois lados de uma mesma folha), mas também mais simples de ser armazenado e                                                             65 Matthew Battles registra que “(...) Muitos conjecturam que a palavra inglesa para livro, ‘book’, teria vindo de ‘boc’, termo anglo-saxão que designa a faia, cuja madeira era muito usada na confecção das tabuletas. As tábuas de faia eram escavadas de maneira a conter um reservatório raso, onde se derramava a cera de abelha. Depois de esfriar, a cera formava uma superfície macia sobre a qual era possível escrever utilizando um estilo [sic]. Bastava um esfregão vigoroso para apagar o que estivesse escrito – algo bastante conveniente para quem escreve, mas não tão conveniente para o historiador. Tudo o que se escreveu sobre as tabuletas desapareceu.” Ibid. Op. cit. p. cit. 66 Ibid. Op. cit. p. 58. Evaristo Arns menciona que “(...) os manuscritos de autores cristãos que nos restam do século III compreendem quatro vezes mais codices que rolos, enquanto, para o mesmo período, entre manuscritos de autores pagãos, os rolos são quase quinze vezes mais numerosos que os codices.” P. E. ARNS. p. 105. 67 Id. Op. cit. p. 28. 68 Citado em: P. BROWN. Op. cit. p. 23.

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organizado – o que no devido tempo iria permitir às bibliotecas atingirem um

nível de complexidade impensável mesmo no Mouseion de Alexandria. Embora o

material de que foram feitos estivesse tão sujeito à corrupção quanto o de seus

predecessores, a posição estável dos códices nas estantes lhes garantiu menor

exposição a danos e, portanto, durabilidade mais longa.69 Não apenas obras

específicas foram preservadas da destruição pelo advento do códice e pelo

interesse cristão na redação e – principalmente – na transcrição de certos textos70,

mas literaturas inteiras, como a contida nos cerca de 250 manuscritos reunidos em

um mosteiro sírio no século X por Moisés de Nisibis.71 Esta salvaguarda,

entretanto, como já destacamos, foi extremamente seletiva. “Os textos dos

chamados pagãos (...) tiveram a má sorte de ser transcritos lentamente, num

processo favorável a poucos [e] (...) O desinteresse pela literatura pagã, gerado

pelos cristãos, provocou, entre outras coisas, a extinção natural de muitos

livros.”72 Daqueles que foram designados heréticos, ironicamente, conservaram-se

muitos fragmentos, transcritos nas obras dos que se dedicaram em seus próprios

manuscritos a refutá-los, “pois era necessário citar as passagens controvertidas”.73

Foi, contudo, apenas com a descoberta no século XX de antigos textos não-

ortodoxos – como, por exemplo, os manuscritos maniqueus de Turfan e Al

Fayyum, a biblioteca gnóstica de Nag Hammadi, o Códex Jung e o Códex

Tchacos – que se pôde conhecer melhor a primitiva literatura cristã em suas

diversas (e concorrentes) vertentes; até então, para mencionarmos um caso

específico, “(...) O que se conhecia dos textos gnósticos era material de segunda

mão, citações nem sempre acuradas, e invariavelmente pejorativas, dos padres da

                                                            69 Cf. M. BATTLES. Op. cit. p. 58. 70 Do qual Italo Calvino, fazendo referência a um período posterior, zomba de maneira muito refinada: “(...) Começa-se a escrever com gana, porém há um momento em que a pena não risca nada além de tinta poeirenta, e não escorre nem uma gota de vida, e a vida está toda fora, além da janela, fora de você, e lhe parece que nunca mais poderá refugiar-se na página que escreve, abrir um outro mundo, dar um salto. Quem sabe é melhor assim; talvez quando escrevia com prazer não era milagre nem graça: era pecado, idolatria, soberba. Então, estou fora disso tudo? Não, escrevendo mudei para melhor: consumi apenas um pouco de juventude ansiosa e inconsciente. De que me valerão estas páginas descontentes? O livro, o vazio, não valerá mais do que você vale. Não há garantias de que a alma se salve ao escrever. Escreve, escreve, e sua alma já se perdeu.” Italo CALVINO. O cavaleiro inexistente. (Trad. Nilson Moulin). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 61. 71 Cf. M. BATTLES. pp. 63-64. 72 F. BÁEZ. Op. cit. p. 111. 73 Id. Op. cit. p. 107. O mesmo autor acrescenta em seguida: “(...) Deste modo, puderam ser salvas verdadeiras jóias do pensamento religioso antigo.” Ibid. Op. cit. p. cit.

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Igreja do século II. Tanto Irineu de Lyon quanto Tertuliano de Cartago, ao

empregarem sua pena na denúncia do que chamavam de ‘falsa crença’,

produziram mais faíscas do que luz: eram partidários demais, ferozes demais para

deixar que seus adversários se explicassem.”74

No alvorecer do século IV, quando Eusébio de Cesaréia realizava a

necessária pesquisa para escrever a sua História Eclesiástica, tão rica em citações

de fatos, obras e autores, é que se concluía esta passagem das bibliotecas clássicas

às bibliotecas cristãs, dos rolos aos códices. Muito do material que hoje não

conhecemos in persona devia ainda estar disponível, como remanescente, à sua

leitura; de fato, não são poucos os autores e obras que conhecemos apenas através

de citações transcritas na prolífica obra eusebiana.75 O próprio Eusébio se

empenhou na preservação consciente de parte deste material, engajando-se como

seu predecessor Pânfilo na conservação e defesa da obra de Orígenes, núcleo

seminal do grande centro de estudos que viria a ser a biblioteca eclesiástica de

Cesaréia.76

                                                            74 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 36. 75 Cf. Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). ps. 143 e 145. 76 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. ps. 196 e 219. P. E. ARNS. p. 64 e 148. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 145.

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II.

“O que compreendemos e amamos em uma obra é a existência de um ser humano como uma possibilidade para nossa própria existência.”

ERICH AUERBACH, A linguagem literária e seu público na Antiguidade tardia e na Idade Média

 

“Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significante, sem cultura não haveria homens. (...) os homens, (...) até o último deles, são artefatos culturais.”

CLIFFORD GEERTZ, “O impacto do Conceito de Cultura sobre o Conceito de Homem”

Em História nenhum ponto é um todo isolado e auto-explicativo. É esta a

possibilidade e o limite inerente ao trabalho de todo aquele que se propõe

historiador. Considere-se o termo ponto como equivalente a evento, crença,

artefato, procedimento, pessoa, localidade, sentimento, instituição, significado, ou

qualquer outra coisa humanamente concebível, e ainda assim o axioma

anteriormente formulado constituir-se-á em uma das poucas verdades de fato com

a qual os historiadores, profissionais ou amadores, de todos os matizes

ideológicos imagináveis, lidam sempre e necessariamente em seu ofício. Essa

situação que constatamos – uma tautologia – é daquele tipo que não se deseja ou

não se tem maios de questionar.

Em História qualquer ponto – na acepção, já explicitada, em que aqui

empregamos este vocábulo – apenas é, e pode ser, em relação a outros, ou seja,

dentro de uma teia de coordenadas espaciais e temporais muito precisas. Nada

nem ninguém é um fato isolado, surgido ex nihil, se considerado dentro de uma

reflexão de dimensões históricas. Assim sendo, portanto, todas as coisas que

formam o mundo dos homens, inclusive e principalmente os próprios, em suas

mais diversas dimensões, mesmo as mais essenciais, são como vidraças dotadas

sempre de algum grau de opacidade através dos quais é possível ousar tecer

algumas considerações também sobre seu processo constitutivo no tempo e no

espaço.

De maneira nenhuma se pretende afirmar aqui que o saber histórico pode

explicar integralmente porque tudo é como é. Sobre as desventuras do homem

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enquanto habita este terceiro planeta de nosso sistema solar, os mais diversos

campos de conhecimento especializados oferecem testemunhos, mais ou menos

verificáveis de acordo com os padrões da lógica formal, tão diferentes e

contraditórios entre si quanto sua própria variedade. As diversas concepções

presentes e passadas de história, a filosofia especulativa, as diversas vertentes de

psicologismos, a biologia evolutiva, as sociologias e as antropologias culturais e

físicas em suas caleidoscópicas variações, todas as experiências de fé e teologias

existentes, a astrologia, o senso comum de cada cultura: todos estes saberes, aos

quais podemos ou não conferir alguma credibilidade conforme nossa própria

formação e pendores idiossincráticos, possuem suas próprias versões do que e

porque é o ser humano o que é, e de como e porque são todas as coisas que este

produz, e dos significados que confere ao mundo em que vive, e à sua muito

variada experiência de estar neste e o construir.77 Gostaríamos apenas de reafirmar

que, sim, os historiadores podem fornecer validamente algumas interpretações

acerca de como determinados pontos puderam vir a ser o que foram – ou são.78

Toda a reflexão acima composta pode parecer um mero elencar de

obviedades, mas se deve lembrar que coisas óbvias, realidades com as quais nos

acostumamos pelo trato cotidiano, as mais evidentes dentre elas, podem ser, e                                                             77 Construí-lo com as mãos, com suor de seu rosto, mas também com o seu raciocínio prático, memórias, aspirações e fantasias: “(...) Pela sua capacidade de criar sinais, o homem não só ultrapassa a imediatidade da situação e dos instintos, mas ele se cria um mundo próprio de sentido. Pois com os sinais ele não só pode exprimir os dados e experiências presentes, mas também pode tematizar o real ausente, o futuro e o passado, o abstrato e o fictício, o normativo e o jocoso.” Xavier HERRERO. “O homem como ser de linguagem. Um capítulo de Antropologia Filosófica.” In: Carlos PALÁCIO (org.). Cristianismo e História. São Paulo: Loyola, 1982. (Col. “Fé e Realidade”, n. 10). O grifo é do autor. 78 Muitíssimo longe, contudo, estamos aqui da quimera de Laplace, que imaginava que o estado presente do universo seria – ao menos em teoria – passível de ser reduzido a uma fórmula matemática da qual se poderia deduzir todo os momentos que o antecederam e os que o sucederão. John Stuart Mill, no capítulo de sua Lógica que trata da lei da casualidade, manifesta possuir uma fantasia semelhante, ao argumentar que o estado do universo em qualquer instante é uma precisa e necessária conseqüência de seu estado no instante anterior, e que, portanto, o conhecimento perfeito de um único instante seria uma chave-de-leitura suficiente para que uma inteligência infinita soubesse toda a história passada e vindoura. Seguindo a mesma linha de raciocínio, este pensador também sustenta que, considerando-se que isso seja possível, a repetição ocasinal de qualquer momento implicaria a repetição de todos os outros, o que faria da história universal uma série cíclica. Mill não exclui porém a possibilidade de uma intervenção exterior que rompa o férreo nexo conseqüente que dá forma e ritmo ao devir das coisas – o substrato judaico-cristão de sua visão de mundo acabou por forçá-lo a relativizar o asséptico cientificismo pelo qual propôs que os imprevisíveis acontecimentos humanos fossem analisados. Ele “(...) Afirma que o estado q fatalmente produzirá o estado r; o estado r, o s, o estado s, o t; mas admite que antes de t uma catástrofe divina – a consummatio mundi, digamos – poderia ter aniquilado o planeta. O futuro é inevitável, mas pode não acontecer. Deus espreita nos intervalos.” Jorge Luis Borges. Outras Inquisições. pp. 35-36.

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geralmente o são, as de mais difícil consideração analítica, as mais nebulosas

existentes. Uma coisa posta à vista durante longa data, naturalizada como uma

realidade de fato, não é necessariamente visível mesmo aos olhos mais atentos,

como nos lembra Edgar Allan Poe em um seu conto de título A carta roubada,

que foi objeto da análise de ensaios de Jacques Lacan e de Jacques Derrida.79

À vista, visível: não se está aqui a fazer mero jogo de palavras. Pelo

contrário, quer-se chamar a atenção para algo que é tão óbvio aos historiadores,

pressuposto, limite e possibilidade de seu ofício, que acaba lhes parecendo por

vezes natural, e não apenas convencional (ou aceito como convencional). Pode-se

considerar o objeto de atenção da História – a espécie humana e o mundo que ela

constrói para si – de diversas maneiras, inclusive a partir de perspectivas

históricas.80 O historiador pode deter-se sobre os diversos sentidos que as pessoas

atribuem às coisas, por exemplo, mapeando a história dessas significações pelo

inventário possível da “história de textos e contextos, das estruturas de linguagem

e dos usos que dela se fez”,81 aproveitando-se de

                                                            79 Edgar Allan POE. “A carta roubada”. In: Braulio TAVARES (org.). Contos fantásticos no labirinto de Borges. (Trad. Julio Silveira et al; ilust. Romero Cavalcanti). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. 80 Tal afirmação pode parecer banal, mas cresce em importância se contrastamos o nosso historicismo de matriz tão judaico-cristã e tão européia com outros discursos acerca do homem no tempo, como, por exemplo, aqueles numerosos sábios do Industão que “não têm senso histórico (isto é: perversamente, preferem o exame das idéias ao dos nomes e das datas dos filósofos).” J. L. BORGES. Outras Inquisições. p. 30. Em outra parte, acerca desta mesma questão, Jorge Luis Borges e Alicia Jurado escreveram que “(...) Para o hindu que estuda filosofia, as diversas doutrinas são idealmente contemporâneas. A mais ou menos precisa cronologia dos sistemas filosóficos da Índia foi fixada por europeus”. Jorge Luis BORGES e Alicia JURADO. Buda. (Trad. Cláudio Fornari). (4ª ed.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. p. 25. 81 John G. A. POCOCK. Conceitos e discursos: uma diferença cultural? Comentário sobre o paper de Melvin Richter (pp. 83-96). (Trad. de Janaína de Oliveira e Marcelo Gantus Jasmin). In: Marcelo Gantus JASMIN e João FERES JR. (org.). História dos conceitos : debates e perspectivas. Rio de Janeiro: PUC-Rio / Loyola / IUPERJ, 2006. p. 85. Deve-se destacar o quanto é necessariamente humana esta possibilidade de investigação histórica. À título de mera ilustração, recordemos que a angeologia escolástica afirmou em mais de um grosso tratado, reiteradas vezes, que os mensageiros de Deus não necessitam da linguagem de modo algum, já que pensam e se comunicam por espécies inteligíveis não mediadas, ou seja, por apreensões-representações diretas do real em si, manifesto para além de todos os artifícios e contingências verbais. Não haveria, portanto, maneira de um místico escrever uma história, por exemplo, da rebelião de Lúcifer, ou mesmo de registrar suas próprias conversas com seres celestiais, sem o recurso a metáforas, oximoros e hipérboles, expedientes que apenas imperfeitamente fraturam a linguagem abrindo-a para o transcendente e o aparentemente irreal. Além disso, sobre o que constitui exatamente o real em si os teólogos que sobre esta questão gravemente se detiveram não conseguiram concordar de modo algum. Cf. Jorge Luis BORGES. El idioma de los argentinos. Madri: Alianza, 2002 [1998]. p. 26.

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“(...) uma série de possibilidades para explorar tanto as inovações e outros atos criativos realizados ou almejados pelos usuários individuais da linguagem – alguns dos quais vão ou desejam ir, de fato, muito mais longe –, quanto o processo de mudança mais lento, multi-autoral, e os processos de mudança social ou historicamente induzidos que têm lugar no interior de, e entre, linguagens disponíveis em sociedades e culturas específicas ao longo de períodos específicos de tempo e de duração variada.”82

Realçar que uma dimensão de perspectivas históricas é uma possibilidade

de pensar sobre o homem, uma em outras, que deve se valer de seu método

próprio de crítica e exposição de argumentos para afirmar a legitimidade daquilo

que afirma, enriquece nossa presente reflexão. De modo algum a consciência de

uma escolha de abordagem para lidar com certo tema a torna menos relevante; ao

contrário, a sinceridade acerca de suas opções metodológicas deveria ser encarada

sempre como um imperativo ético do historiador (e do antropólogo, e do biólogo

evolucionista, e do psicólogo freudiano, e daí por diante) para com seu leitor,

além de um elemento de acréscimo de eficácia e validade ao seu discurso. O caso

é que assumimos como certo que “(...) a imagem de uma natureza humana

constante, independente de tempo, lugar e circunstância, de estudos e profissões,

modas passageiras e opiniões temporárias (...) [é] uma ilusão, que o que o homem

é (...) [está] tão envolvido com onde ele está, quem ele é e no que ele acredita, que

é inseparável dele.”83

Componhamos uma variação de tudo o que já foi afirmado nesta seção, e,

ao revisitá-la, avancemos. Fato empiricamente dado, que podemos – e que

também precisamos – assumir como seguro, é que a vida humana não se dá nunca

em um vácuo, isoladamente; a respeito disso, o antropólogo Marshall Sahlins

escreveu que “homens e mulheres são seres sofredores [justamente] por agirem

tanto uns em relação aos outros quanto num mundo que possui suas próprias

relações.”84 Além disso, só se pode ser alguém em algum lugar: ao se pensar as

peripécias de homens e mulheres – e as estórias que estes nos deixam, ou que

                                                            82 Id. Op. cit. p. 84 e nota correspondente, n. 1. 83 Clifford GEERTZ. “O impacto do Conceito de Cultura sobre o Conceito de Homem”. In: A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. (Col. “Antropologia Social”, n. 3; dir. Gilberto Velho). p. 26. 84 Marshall SAHLINS. Metáforas históricas e realidades míticas : Estrutura nos primórdios da história das Ilhas Sandwich. (Trad. e apres. Fraya Frehse). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (Col. “Antropologia Social”; dir. Gilberto Velho). p. 18.

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outros compõem sobre elas – é necessário enquadrá-las da forma mais adequado

possível no cenário em que estas se deram. Mais ainda: as pessoas (como os

eventos) são o que são porque existem (ou acontecem) em determinado tempo e

espaço. “(...) O que quer que seja que a antropologia moderna tenha afirmado – e

ela parece ter afirmado quase tudo em uma ou outra ocasião –, ela tem a firme

convicção de que não existem de fato homens não-modificados pelos costumes

dos lugares particulares, nunca existiram e, o que é mais importante, não o

poderiam pela própria natureza do caso.”85 Atestamos, assim, que a consideração

do conjunto de ambiências nas quais uma pessoa é formada, nas quais se insere e

com as quais dialoga é imprescindível para (tentar) compreendê-la.86 Ambiências

                                                            85 C. GEERTZ. Op. cit. p. cit. Neste mesmo ensaio que mencionamos, Geertz disserta de maneira muito esclarecedora sobre qual é, afinal, a “natureza do caso”. O ser humano de fato precisa dos padrões interpretativos que lhe são inculcados em sua formação como agente social, já que é através destes é que ele poderá tornar inteligível a experiência e lidar com ela de modo construtivo. Tais sistemas simbólicos são introjetados como se fossem naturais, e deles nos utilizamos, na maioria das vezes de forma espontânea e com facilidade, para auto-orientar-nos no curso corrente das realidades empíricas com as quais somos forçados a lidar. Nossa dependência de tais teias de sentido que a um só tempo nos modelam e nos animam é tão maior quanto é difusa e demasiado pálida a orientação que nos é dada por aquilo que está constitucionalmente gravado em nossos corpos e que podemos arrolar sob a indistinta rubrica de instintos. Estes, caso existam, fornecem-nos apenas capacidades muito gerais de resposta, que, embora tornem possíveis a conquista de novos padrões de plasticidade, complexidade e efetividade de comportamento, nada regulam com precisão. Se fôssemos absolutamente afastados desde o nascimento dos demais seres humanos, milagrosamente sobrevivendo em celas ou estufas isoladas, apartados de todos os sistemas organizados de símbolos significantes que constituem as diversas culturas, teríamos um pensamento e uma corporeidade virtualmente ingovernáveis, simples caos de atos sem sentido, espasmos de movimento físico e mental não dotado de nenhum conteúdo inteligível. A cultura, portanto, não é apenas um ornamento da existência humana, como ser ativo e racional, mas o pressuposto desta. Isto se dá primordialmente porque a cultura não é um suplemento da natureza, algo como uma extensão ou mero aprimoramento de nossas capacidades inatas, mas um ingrediente essencial na formação do Homo Sapiens enquanto espécie animal. O aparecimento de atividades propriamente culturais (que remonta a quatro ou cinco milhões de anos a.C.) antecede o surgimento do ser humano como entidade distinta dos demais primatas superiores (o que data de aproximadamente duzentos ou trezentos mil anos a.C.), e se relaciona intimamente com o seu desenvolvimento filogenético e anatômico – bem mais do que muitos biólogos, psicólogos e filósofos aferrados ao projeto de ancorar certos comportamentos e formas de pensamento na ordem das coisas-como-elas-são gostariam de admitir. Entre sistemas de símbolos socialmente forjados e culturalmente disponíveis, a estrutura anatômica geral e o sistema nervoso central foi criado um circuito vital, através da qual cada um modelava (e modela) o funcionamento e o refinamento dos demais – a interação entre o uso crescente e a complexificação das ferramentas, as mudanças da anatomia dos membros superiores (e em especial dos dedos das mãos) e a representação expandida dos polegares no córtex é apenas o mais popular e mais gráfico dos processos relacionados a esta complexa rede pela qual, embora inconscientemente, o ser humano acabou determinando os estágios de seu próprio destino biológico. Cf. Id. Op. cit. pp. 33-37. Para uma reflexão correlata, muito próxima a esta, e que pode enriquecê-la consideravelmente, ver: David LE BRETON. “Corpo e simbolismo social”. In: As paixões ordinárias : Antropologia das emoções. (Trad. Luís A. S. Peretti). Petrópolis: Vozes, 2009. pp. 16-37. 86 Cf. Paul VEYNE. Como se escreve a História – Seguida de Foucault revoluciona a História. (Trad. Alda Baltar e Maria A. Kneipp). (4ª ed.). Brasília: Ed. da UnB, 1998. pp. 17, 19, 21-23, 34, 42-43 e 56-58.

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estas que são intelectuais, mas não só: é tão importante levar em conta na análise

de uma obra as técnicas de sua redação quanto à intencionalidade do autor ao

compô-la, ou quando e onde ela foi efetivamente redigida, ou os debates que a

estruturam quanto o seu público-alvo, ou as fontes às quais recorre para se

informar do assunto do qual trata quanto os argumentos que efetivamente tomam

forma no ato criativo de sua escrita.87 Isto tudo decorre do fato de que, ao

contrário daquilo que assumiram como dogma basilar os individualistas de todos

os tempos,

“(...) o pensamento humano é basicamente tanto social como público – (...) seu ambiente natural é o pátio familiar, o mercado e a praça da cidade. Pensar consiste não só nos ‘acontecimentos na cabeça’ (embora sejam necessários acontecimentos na cabeça e em outros lugares para que ele ocorra), mas num tráfego entre (...) símbolos significantes – as palavras, para a maioria, mas também gestos, desenhos, sons musicais, artifícios mecânicos como relógios, ou objetos naturais como jóias – na verdade, qualquer coisa que esteja afastada da simples realidade e que seja usada para impor um significado à experiência.”88

É só a partir deste tipo de consideração de conjunto que a historiografia

pode aspirar ser algo mais que simples colecionismo, antiquário e anedótico, ou

                                                            87 Remetemo-nos aqui à reflexão do ilustre historiador Fernand Braudel, que propõe que o exercício do pensamento histórico se dê levando em conta três distintos níveis ou durações, que estão assentados uns sobre os outros à maneira de camadas estratigráficas e são interdependentes em suas dinâmicas próprias, ou seja, conectados em um sistema de realimentação (feedback) positivo, onde cada um incide sempre e necessariamente sobre os demais. São estes três níveis: a) O da longa duração, que é a história quase imóvel (pelo menos até o advento da Revolução Industrial) do relacionamento do homem com o meio natural que o cerca (e que também é ou poderia ser o do desenvolvimento filogenético do ser humano enquanto espécie animal); b) O da média duração, que é o da história lentamente ritmada das instituições, dos grupos e dos agrupamentos, de suas psicologias coletivas e ethos, padrões morais e formas jurídicas; c) O da curta duração, que é a história dita factual, que se refere ao que Braudel poeticamente diz que são agitações “de superfície, as ondas que as marés elevam em seu poderoso movimento (...) história com oscilações breves, rápidas, nervosas (...) história ainda ardente” (p. 14). Não foram muitos os que perceberam as implicações práticas de tal proposição: abandonar as seguranças da geografia, da sociologia, da antropologia e do jornalismo e conceber a história como um campo de conhecimento que articula estes saberes e se propõe a lidar com o modo como se influenciam mutuamente. Dentro de tal quadro interpretativo, compreende-se que mesmo os acontecimentos mais originais e retumbantes, os profundos traumas e as grandes conquistas e formulações, não são mais do que instantes, que manifestações desses largos destinos e só se explicam por eles – e que também possuem a capacidade de influenciá-los em maior ou menor dimensão, e mesmo vir a modificar significativamente os seus rumos. Fernand BRAUDEL. Escritos sobre a História. (Trad. Jacob Guinsburg e Tereza C. S. da Motta; rev. Angélica D. Pretel e Vera Lúcia B. Bolognani). São Paulo: Perspectiva, 1978. (Col. “Debates”, Seção “História”; dir. Jacob Guinsburg). pp. 13-16. 88 C. GEERTZ. Op. cit. p. 33.

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uma imensa coletânea de fragmentos biográficos ou elegíacos, destinada a salvar

na medida do possível a memória dos indivíduos. Seja como personagem

principal da narrativa, seja como figurante entre milhões de outros, próximos ou

distantes dele mesmo cronológica e geograficamente, a singularidade individual

de fato só conta historicamente pela sua especificidade, ou seja, por aquilo que

tem de representativo de sua forma própria, socialmente recebida e exercida, de

ser no mundo – e, eventualmente, em como contribui ela mesma para de alguma

forma modificar esta em outra.89

Renunciamos aqui, entretanto, a qualquer explicação de chave determinista

para, como fizeram venerandos homens da ciência no passado (e talvez ainda

hoje), pensar a vida intelectual de qualquer pessoa ou período; do mesmo modo,

também à tentação de explicar um indivíduo apenas pelo seu contexto de

formação, aderindo a uma destas escolas de cientistas sociais que assumem entre

nós ares de fraternidade religiosa. De fato, temos como certo que professar tal fé é

se conformar a um padrão discursivo tão estreito que, ao buscar produzir uma

imagem inteligível da experiência humana, desenha uma simplória caricatura da

realidade, que acaba gerando mais dúvidas e dificuldades do que qualquer tipo de

interpretação explicativa minimamente relevante – e quiçá aceitável – acerca

desta. O que está em questão aqui não são os grandes sistemas interpretativos que

se dispõem a apresentar as molas-mestras que impulsionam o movimento da

História, mas o ser humano e como este constrói, narra e atua – ou pode fazê-lo –

na realidade conforme a apreende.

Como todos os homens, aquele que passou à História como Eusébio de

Cesaréia era um homem de seu tempo, sendo formado e atuante especificamente

em certa ambiência espacial e cultural, fruto ele mesmo de uma inumerável gama

de influências socialmente incidentes. Se não podemos mapear e apresentar esse

feixe de fatores formativos, podemos selecionar alguns destes, mais ou menos

verificáveis, e com eles lidar, na convicção de que se trata de exercício analítico

útil para se situar e compreender mais adequadamente este homem – autor e leitor

do mundo como todos os outros homens e mulheres de todos os outros tempos e

locais – e certo trecho aqui considerado de sua não pequena produção escrita. O

                                                            89 Cf. P. VEYNE. Op. cit. p. 57.

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ato de leitura é o gesto básico do ser-no-mundo, e isto significa justamente

perceber, distinguir, selecionar e interpretar, ações que fazemos de modo diverso

de acordo com nossa bagagem cultural, em um horizonte que também é o das

nossas possibilidades epistemológicas – em outros termos, “(...) Conhecemos

apenas aquilo que conseguimos decifrar.”90 Com tudo isto, reafirmamos que cada

ser humano se compõe como pessoa dentro de uma estrutura de concepções

incorporadas em símbolos socialmente forjados, com os quais se comunica com

os seus e torna inteligível o que é diverso, ou seja, com os quais dá “forma à

experiência e objetivo à ação”.91 Quando cria algo de genuinamente original pelo

manejo circunstancial e particular daquele instrumental cultural que lhe é

formativo, o indivíduo não apenas “rompe as incrustações do senso comum”92 em

um ímpeto surpreendente de absoluta genialidade, inovação ou iconoclastia, mas

retorna necessariamente “ao mundo do óbvio e do ordinário, para corrigi-lo e

mudá-lo à luz do que se aprendeu, ou do que se pensa ter aprendido, para

transcendê-lo.”93 Sem o entendimento das dinâmicas sociais destes padrões de

significados não poderíamos nem ao menos tatear em busca de uma leitura

histórica que dissesse algo de relevante sobre qualquer experiência humana, em

qualquer ponto do tempo ou do espaço: as pessoas se formam dentro de certos

padrões interpretativos socialmente compostos e com estes estão necessariamente

em constante diálogo – ainda que para modificá-los, ainda que para renegá-los e

compor contra ele refutações e acusações de falsidade, ainda que para buscar

aprofundá-los e reafirmá-los em face de condições históricas diversas das que os

originaram. Faremos mais adiante nova menção a esta relação entre estruturas

culturais, eventos inesperados e as revisões que eles forçam.

Acerca desta questão das ambiências, retenhamos o seguinte fato capital:

os autores que consultamos afirmam que a História Eclesiástica de Eusébio de

Cesaréia foi composta em um longo período, pelo artifício de sucessivas emendas                                                             90 Braulio TAVARES. “Postfácio: Contos Borgianos”. In: B. TAVARES. Op. cit.. p. 279. 91 Clifford GEERTZ. Observando o Islã : o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. (Trad. de Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. (Coleção “Antropologia Social”: dir. Gilberto Velho). p. 103. Em outra parte o mesmo autor afirma que “(…) Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos com os quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas.” C. GEERTZ. Op. cit. 1989. p. 37. 92 C. GEERTZ. Op. cit. 2004. p. 102. 93 Ibid. p.cit.

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e camadas de redação e correção94, mas eles concordam quanto ao local de sua

redação – tanto físico quanto social: tratava-se do Bispo de Cesaréia, em sua

biblioteca episcopal – e às fontes aí disponíveis, coisa que naturalmente imprime

decisiva marca no plano desta obra – e ajuda a definir a sua importância posterior,

duradoura:

“(...) Sua documentação era naturalmente muito parcial. Ele usou o que subsistia da literatura cristã antiga e podia ler ainda muitas obras perdidas para nós; utilizou também muitos dossiês de correspondência: cartas de bispos reunidas outrora a respeito de um assunto controvertido; assim, foram constituídos dossiês concernentes, por exemplo, à data da Páscoa (com cartas de Irineu, sobretudo, das quais Eusébio cita preciosos trechos), ao encratismo e ao problema dos lapsi... Serviu-se ainda da correspondência de Orígenes... A História Eclesiástica não tenta uma reconstituição contínua do desenvolvimento da Igreja: apresenta, antes, uma série de ‘flashes’, segundo o conteúdo dos documentos de que dispunha o autor. Do mesmo modo, ela é infinitamente preciosa pelos personagens, fatos e escritos que evoca e que, sem ela, talvez ignorássemos completamente. Como não nos mostraríamos gratos a Eusébio por ter conservado a emocionante carta das Igrejas de Vienne e Lião sobre a perseguição de 177 nesta última cidade? Ou as linhas gerais de uma biografia de Orígenes?”95

                                                            94 Cf. Jacques LIÉBAERT. Op. cit. p. 148. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 224. Carmelo CURTI. “Eusébio de Cesaréia (Palestina)”. In: VV. AA. Op. cit.. p. 537. Argimiro VELASCO-DELGADO. “Introducción”. In: EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiastica. (Texto bilíngüe; ver. espanhola, introd. e notas de Argimiro Velasco-Delgado). (2ª ed. rev.). Madri: BAC, 1997. (2 vol.). pp. 40*-46*. John D. CROSSAN. Op. cit. p. 503. 95 J. LIÉBAERT. Op. cit. pp. 148-149.

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III.

“Que otros se jacten de los libros que les ha sido dado escribir; yo me jacto de aquellos que me fue dado leer, dije alguna vez. No sé si soy un buen escritor; creo ser un excelente lector o, en todo caso, un sensible y agradecido lector.”

JORGE LUIS BORGES, “Biblioteca personal”

“No recuerdo una etapa de mi vida la que yo no supiera leer y escribir. Si alguien me hubiera dicho que esas faculdades son innatas, lo habría creído. Nunca ignore que mi destino sería literario. Simpre estava leyendo y escribiendo. La biblioteca de mi padre me parecia gratamente infinita. Las enciclopedias y los atlas me fascinaban. Ahora comprendo que mi padre desperto y fomento esa vocación.”

JORGE LUIS BORGES, “Escribir”

Orígenes – a quem Erasmo de Roterdã, um dos grandes humanistas do

Renascimento, rendia a homenagem nada banal de declarar que aprendia mais

sobre a filosofia cristã em uma de suas páginas do que em dez de Agostinho de

Hipona96 – nasceu por volta de 185, e, mais ou menos em 202, com o martírio de

seu pai, Leônidas, e o confisco dos bens que lhe cabiam por herança, teve de se

refugiar na casa de uma rica mulher cristã de Alexandria. Desde muito cedo

proveu a si mesmo e a seus familiares remanescentes com os ganhos do ensino de

gramática; com apenas dezoito anos assistiu ao exílio forçado do clero de

alexandrino, fato que provavelmente explica porque tão jovem foi encarregado

pelo bispo Demétrio de instruir àqueles que se preparavam para receber o

batismo.97 Assumiu esta tarefa “não apenas com seriedade, mas com exagero

dramático”98, vivendo de maneira rigorosamente ascética; vendeu seus livros

profanos e, interpretando literalmente Mateus 19, 12, castrou-se – “fato estranho,

mas por demais conhecido e criticado para que seus admiradores mais entusiastas

pudessem tê-lo negado.”99 Assim como ultrapassou em muito a sua época, o seu

prestígio foi muito além do Egito e da Palestina. Retornarei ainda ao conteúdo de

parte da imensa obra de Orígenes neste trabalho, mas por hora me deterei apenas

                                                            96 Cf. Id. Op. cit. p. 104. 97 Sobre a escola catequética de Alexandria, ver: B. ALTANER e A.STUIBER. Op. cit. pp. 195-196. 98 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 89. 99 Id. Op. cit. p. cit.

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em alguns aspectos de suas andanças – que, aliás, não são poucas. 100 Faremos

menção, entretanto, apenas àquelas que tiveram como destino Cesaréia da

Palestina, que viria a ser um privilegiado lócus da preservação, difusão e

elaboração posterior de sua obra.

Em 215 as tropas do Imperador Caracala sitiaram Alexandria e a

submeteram, causando terrível mortandade como represália de uma tentativa de

insurreição. Nesta ocasião as legiões romanas perseguiram especialmente os

filósofos e suas escolas, dedicando um especial zelo à incineração de suas obras e

ao saque do ilustre muséon.101 Não sabemos o que motivou este comportamento

específico, mas podemos ressaltar que não se tratou de fato isolado na história da

cidade. Quando a rainha Zenóbia de Palmira atacou a cidade em 272 desencadeou

perseguições sistemáticas e impiedosas contra gramáticos, bibliotecários e livros;

Aureliano comandou sua reconquista aos romanos um ano depois, e seus soldados

agiram de forma muito semelhante aos palmirenses. Diocleciano promoveu mais

tarde a destruição de todos os escritos filo-teológicos e fórmulas alquímicas que

seus emissários conseguiram encontrar no interior da Alexandria de seu tempo,

metrópole que no começo do século XX o historiador da arte Aby Warburg

definiu como representando “a essência do lado obscuro e supersticioso do

homem”102; aparentemente o Imperador de Roma acreditava que os habitantes da

cidade “podiam aprender a converter metais em ouro com o objetivo de comprar

armas.”103 Aproveitando o ensejo, fez destruir com fogo todos os livros sagrados

judeus e cristãos que pôde; um registro contemporâneo declara que a Acta

Martyrum era uma obra cara porque muitos exemplares desapareceram.104 De

qualquer forma, da investida ordenada por Caracala, Orígenes e suas idéias – e

                                                            100 O adjetivo “imensa” aqui empregado não é apenas força de expressão ou artifício retórico para denotar a sua grande fecundidade no desenvolvimento literário e teológico da Antigüidade cristã; o clássico manual de Patrologia de Berthold Altaner e Alfred Stuiber menciona um catálogo de Jerônimo de 800 obras de Orígenes, e também um informe do tradutor da Vulgata referente a um levantamento de seu trabalho, feito por Eusébio e hoje perdido, nos quais constavam nada menos do que 2000 títulos. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 205. 101 Cf. Id. Op. cit. p. 204. F. BÁEZ. Op. cit. p. 72. 102 Citado em: Alexander ROOB. O Museu Hermético : Alquimia & Misticismo. (Trad. port. Tersa Curvelo). Köln / Londres / Los Angeles / Madri / Paris / Tóquio: Taschen, 2006. p. 18. 103 F. BÁEZ. Op. cit. p. cit. Na mesma página em que afirma isto, o autor remete-nos a uma nota na qual cita Edward Gibbon, autor que escreveu que esta “(...) perseguição de Diocleciano é o primeiro acontecimento autêntico na história da alquimia.” Id. Op. cit. p. 352, n. 143. 104 Cf. Ibid. Op. cit. p. 72.

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talvez alguns de seus manuscritos – conseguiram escapar: sabe-se lá como logrou

fugir, mas pôde ir para Cesaréia da Palestina, onde, a pedido do bispo da cidade,

Teotito (ou Teoctisto), e de Alexandre, bispo de Jerusalém, pregou nas

assembléias cristãs locais.105

Quando Orígenes chegou ao bispado de Teotito, este já era uma cidade de

sólida tradição cristã e crescente importância no âmbito desta religião: tratava-se

então da Sé Titular da Palestina, precedência que foi sancionada em 325 pelo 7º

cânone do Concílio de Nicéia.106 As modernas escavações arqueológicas na região

podem nos ajudar a compreender algo de sua dinâmica de vida desde os começos

do movimento dos seguidores de Jesus até os dias do governo pastoral de Eusébio.

Sua antiga área constitui um dos mais importantes sítios de pesquisa do Estado de

Israel, além de um dos maiores; ele se estende ao longo do litoral mediterrâneo ao

norte de Hadera, a meio caminho entre Haifa e Tel-Aviv, e o trabalho minucioso

que aí vem sendo feito nos dá alguns informes preciosos sobre o período de nosso

interesse.107

Segundo os mais confiáveis indícios, sua origem é helenística, e não

judaica; a cidade desenvolveu-se ao redor da chamada Torre de Estratão, nome

tanto de um aventureiro grego que se desgarrou das tropas de Alexandre, o

Grande, e que aí se estabeleceu – ou que foi deixado propositalmente na região

para manter a sua lealdade aos seus novos senhores macedônicos – quanto de um

semi-lendário Rei dos Sidônios, que aí também teria subsistido, ainda que em

tempos muito anteriores aos do Grande Conquistador. Em todo o caso, a Pyrgos

Stratonos e suas imediações foram tomadas como patrimônio particular por

Herodes Magno em 9 a.C.; este aí fez erguer um novo muro fortificado de ameias,

assim como templos, palácios, um teatro, um hipódromo, uma grande arena com

                                                            105 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 204. 106 Cf. Daniel STIERNON e Bellarmino BAGATTI. “Cesaréia da Palestina”. In: VV. AA. Op. cit. p. 286. Apenas cento e poucos anos depois (em 451), ela foi rebaixada em sua dignidade e integrada ao Patriarcado de Jerusalém, considerado o quinto em primazia – depois das Sés de Roma, de Constantinopla, de Alexandria e de Antioquia. Honrada então como Metrópole Eclesiástica, teve jurisdição sobre vinte e oito dioceses sufragâneas, todas já governados por bispos de origem grega. Cf. Id. Op. cit. p. cit. S. VAILHÉ. “Cæsarea Palæstinæ”. In: Charles G. HERBERMANN, Edward A. PACE et al. The Catholic Encyclopedia : An international work of reference on the constitution, doctrine, discipline and history of the Catholic Church. (2a ed.). Nova Iorque: The Encyclopedia Press, 1913. (Vol 3 : Brown-Clancy) . p. 134. 107 Cf. D. STIERNON e B. BAGATTI. Op. cit. pp. 286-287.

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lugar para 20.000 espectadores, um porto, banhos, fontes, canais de água potável e

um aqueduto, um imenso obelisco de granito rosa e numerosos monumentos,

ornados de colunatas e estátuas de grandes proporções, e rebatizou-a de Cæsarea

Maritima, em honra de Augusto e em função de sua localização estratégica como

porta de entrada mediterrânea da Palestina. Há registro de uma data precisa que

marca sua passagem de um assentamento militar cercado por algumas poucas

casas e dotado de notáveis melhoramentos por um déspota para uma cidade

propriamente dita: em 13 d.C. grupos de colonos samaritanos foram deslocados à

força para cultivar os campos ao seu redor e judeus helenizados receberam ordens

de ir residir no interior de sua muralha. No mesmo ano Cesaréia Marítima foi

constituída a capital civil e militar da Judéia, passando a ser a residência do

procurador romano na região, em detrimento da cidade santa dos hebreus,

localizada noventa quilômetros a leste.108 Pôncio Pilatos, famoso entre nós por sua

participação no processo de condenação à morte de Jesus de Nazaré, foi um dos

que residiu na nova e bela cidade litorânea. Para os romanos forçados a residirem

na área, situada, sob mais de um aspecto, literalmente à margem do mundo greco-

latino, Cesaréia apresentava-se como “um lugar muito mais agradável do que

Jerusalém, a capital tradicional do povo judeu, que era interior e insular,

provinciana e politizada, e freqüentemente hostil. Para as principais festividades

judaicas, porém, Pilatos, como seus predecessores e sucessores, ia a

Jerusalém.”109 Estes o faziam “não tanto por reverência empática pela devoção de

seus súditos judeus, mas para estar na cidade caso houvesse problemas”110 – e de

fato, “(...) Freqüentemente havia, em especial na Páscoa, uma festa que

comemorava a libertação do povo judeu de um império anterior.”111 Com a grande

revolta de 66-70 e sua repressão pelos romanos, os judeus foram dispersos,

expulsos da Palestina, inclusive de Jerusalém – onde sobre as ruínas do Templo de

Salomão se edificou outro, dedicado à Afrodite – e de Cesaréia Marítima.

Vespasiano e Tito tornaram esta última cidade uma colônia exclusivamente

romana, chamando-a de Colonia Prima Flavia Augusta Cæsarea. Sob Alexandre

                                                            108 Cf. S. VAILHÉ. Op. cit. pp. 134-135. 109 M. J. BORG e J. D. CROSSAN. Op. cit. p. 17. 110 Id. p. cit. 111 Ibid. p. cit.

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Severo ela se tornou a mais populosa cidade da Palestina, então dividida em três

províncias.112

Segundo a tradição eclesiástica, Cesaréia da Palestina foi logo atingida

pela pregação cristã, talvez já no ano de 35.113 O livro dos Atos dos Apóstolos,

que integra o cânone neo-testamentário contemporâneo, narra alguns importantes

eventos da primeira Antiguidade cristã acontecidos nesta cidade: aí se estabeleceu

o diácono Filipe após o seu encontro com o eunuco servo de Candace, rainha da

Etiópia; aí Pedro (em aproximadamente 43) batizou o centurião Cornélio e toda a

sua casa, introduzindo oficialmente os primeiros romanos de que temos

conhecimento no movimento de Jesus; por aí Paulo passou mais de uma vez em

suas viagens rumo à Ásia e Europa e, finalmente, aí foi preso e processado pelo

estado romano (por volta do ano de 52).114 O primeiro bispo de Cesaréia cujo

nome chegou até nós foi Teófilo, que teria assumido o governo pastoral da região

no ano de 135; não há virtualmente mais nenhuma informação sobre a Igreja na

região em meados dos séculos primeiro e segundo da Era Cristã. No alvorecer do

terceiro século aí teve lugar um Concílio para definir a data da celebração da

Páscoa; há significativos vestígios arqueológicos de edifícios cristãos datados

deste período que eram usados exclusivamente como espaços de culto. De

especial relevância são as ruínas de um edifício cruciforme nos quais se podem

ver ainda restos de pinturas com cruzes, além de muitas inscrições que contêm

versículos bíblicos, ou mencionam nomes de personagens conhecidos do

cristianismo antigo e diversos fiéis dos quais não temos maiores notícias; aí

também se encontrou um tesouro do período constantiniano com um medalhão de

ouro com a cena da Anunciação, gravada de um lado, e de Salomão a cavalo, no

outro. Apesar de estarem hoje submersas pelas águas do Mediterrâneo – que

avançaram bastante sobre as suas margens orientais nos últimos 2.000 anos –, foi

possível a pesquisas contemporâneas localizar suas muralhas concêntricas,

edificadas sucessivamente nos períodos das cruzadas, bizantino, romano e por

Herodes. Não muito distante desta primeira, contígua ao prédio cruciforme

mencionado, se encontra o ambiente que os arqueólogos batizaram como Recinto

                                                            112 Cf. S. VAILHÉ. Op. cit. p. 134. 113 Cf. D. STIERNON e B. BAGATTI. Op. cit. p. 286. 114 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. Atos dos Apóstolos 8, 40; 10; 23-26. ps. 1916, 1919-1921 e 1944-1950.

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dos Cruzados, porque aí se encontrou uma estátua, muito mutilada, do Bom

Pastor, datada de algum momento do século XIII – outras investigações,

entretanto, comprovaram que se trata de um espaço edificado em meados do

século III ou no princípio do seguinte. No seu grande pavimento ornado com um

mosaico com figuras de animais também se pode ler o trecho da Epístola de Paulo

aos Romanos que diz: “Como de dia, andamos decentemente; não em orgias e

bebedeiras, nem em devassidão e libertinagem, nem em rixas e ciúmes.”115 A

maior parte dos especialistas concordam que se trata de parte remanescente da

grande sala de leitura da biblioteca de Cesaréia, também denominada, justamente,

como sendo “de Orígenes”.116

Cercado de alunos e admiradores, este teólogo foi chamado novamente de

Cesaréia da Palestina à Alexandria no ano de 217 pelo bispo Demétrio, que uma

vez mais lhe confiou à tarefa de instruir os catecúmenos. Após um breve lapso de

tempo, Orígenes entregou a catequese elementar desta escola a seu camarada

Heraclas, que viria a se tornar sucessor de Demétrio e a instituir mais de vinte

dioceses pelo Nilo acima117; dedicou-se ele próprio então a ministrar lições de

filo-teologia e exegese bíblica a um auditório de personagens mais cultos que

vinham lhe procurar – pagãos e cristãos dos mais diversos matizes – e a compor

numerosas obras de teologia exegética e especulativa, sermões, livros

apologéticos, de espiritualidade, de moral e de análise de questões filosóficas,

ditando-as a notários e taquígrafos remunerados por Ambrósio, rico cidadão

romano que foi por ele convertido da gnose valentiniana à fé cristã (ainda)

paleortodoxa.118 Em 230, viajou à Grécia, e, estando de passagem em Cesaréia de

Palestina, foi novamente convidado a aí pregar por seu amigo Teotito. Tal

incumbência foi abertamente desaprovada por Demétrio de Alexandria, que já se

ressentia, desconfiado, das audaciosas idéias teológicas de Orígenes; sabe-se que

então “ele era objeto de críticas em certos meios e que mais tarde terá de defender

a sua ortodoxia e justificar a abertura à filosofia.”119 Em reconhecimento à seus

                                                            115 Id. Ver. cit. Epístola aos Romanos 13, 13. p. 1988. 116 Cf. D. STIERNON e B. BAGATTI. Op. cit. pp. 286-287. S. VAILHÉ. Op. cit. pp. 134-135. 117 Cf. E. GIBBON. Op. cit. p. 279. 118 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 92. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 195-196. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. pp. 204-205. P. E. ARNS. Op. cit. p. 55 e nota correspondente, n. 121, p. 72. 119 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. cit.

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grandes esforços, e talvez para apoiá-lo contra Demétrio, Alexandre de Jerusalém

e Teotito de Cesaréia o ordenam presbítero, apesar de sua mutilação voluntária,

contrariando um antigo costume de só elevar ao sacerdócio cristão homens com a

potencialidade de gerarem filhos.

O bispo de Alexandria se indignou de tal maneira contra isto que em um

sínodo diocesano reunido no mesmo ano de 230 expulsou Orígenes formalmente

de Alexandria e o destituiu do magistério catequético em todas as partes (mesmo

fora de sua jurisdição pastoral) e da dignidade de presbítero, qualificando sua

ordenação como ilegítima.120 Heraclas continuou o trabalho de seu predecessor, e

quando o seu antigo companheiro tentou retornar à sua cidade de origem ano

seguinte, o excomungou, fazendo com que fosse formalmente banido das terras do

Egito.121 Segundo Marilia Fiorillo, o motivo deste embate não era o caráter

inovador e autoral da teologia de Orígenes – que ela chega a designar como sendo

“gnosticismo batizado” – e sim o seu prestígio pessoal, que acabou por se tornar

um inconveniente para as ambições políticas de Demétrio (e Heraclas): ter-se-ia

tratado menos de um embate entre tradicionalismo e pendores demasiado

filosóficos do que um coup d’état eclesiástico que visava estabelecer um controle

rígido da autoridade episcopal sobre o pensamento teológico alexandrino.122

Afirma a mesma autora que “(...) Prova disso é a deferência com que Demétrio

havia tratado o antecessor de Orígenes, Clemente, cujas doutrinas poderiam ser

consideradas muito mais desviantes”123; e a partir disto conclui ela que Demétrio

perseguiu Orígenes e adulou Clemente não porque tivesse se tornado mais fiel, ou

mais rígido, com a idade, mas porque, no intervalo de uma geração, a linha entre o

que era permitido e o que não era em se tratando de teorização do cristianismo

                                                            120 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 204. 121 Cf. Id. Op. cit. pp. 201-202. 122 Cf. Ibid. Op. cit. p. 201. 123 Ibid. Op. cit. p. 202. Prossegue ainda a autora, na mesma página, tal linha de argumentação, desdobrando-a: “(...) Clemente (c. 140-211) sustentava, por exemplo, que a matéria era eterna (idéia totalmente platônica) e que o Filho não era uma criação (isto é, o Logos não se tornou realmente carne), mas uma espécie de ‘emanação’ (o que agradaria aos posteriores arianos), e que, cúmulo dos cúmulos, Javé e o Deus platônico eram o mesmo. Não há dúvida de que era um entusiasta da gnose, embora diferenciasse a verdadeira (uma estudada e calma aplicação, a dele) da falsa (a convulsiva, dos outros). Seu ideal era praticar para ser um Deus, isto é, empenhar-se para extrair de si o que já estava lá, para que ‘o divino elemento na natureza humana seja gradualmente trazido à tona, mais e mais perto de Deus, de quem, enfim, ele provém’.”

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havia se tornado tanto mais relevante quanto menos tênue.124 Grandes

comunidades cristãs corroboraram as atitudes de Demétrio e Heraclas em relação

ao grande teólogo homenageado por Erasmo de Roterdã, especialmente a Sé de

Roma, “porque os romanos tinham medo de serem eclipsados pela eloqüência e

erudição do alexandrino.”125 Algumas outras, entretanto, se opuseram a ela: as da

Palestina, da Arábia, da Fenícia e da Acaia. Quando o itinerante Sextus Julius

Africanus chegou à cidade de Alexandria, não muitos anos depois da excomunhão

de Orígenes, não encontrou nada do refinamento e sutileza de sua escola, mas

apenas, erguido sobre as suas ruínas, o ensino chão-a-chão instituído por Heraclas.

Seu legado já havia se transferido para outra parte.126

Atormentado por “tempestades de malignidade tão em contradição com o

espírito do evangelho”127, Orígenes se estabeleceu definitivamente em Cesaréia da

Palestina, onde constituiu uma nova escola e biblioteca e continuou o seu trabalho

até a época das perseguições promovidas por Décio, quando “foi lançado na

prisão e sofreu cruéis torturas, de cujas conseqüências morreu, no seu 70º ano,

provavelmente em 253-54, em Tiro, onde, durante muito tempo, via-se seu

túmulo.”128 Sediado na mais importante metrópole eclesiástica da Palestina de

então, compôs numerosos volumes escritos, coisa que novamente só pôde ter sido

materialmente realizada com o amparo de uma equipe, talvez fornecida por

Teotito de Cesaréia; destes trabalhos ainda temos conhecimento de diversos

comentários às Escrituras, de séries de homilias sobre o Antigo e o Novo

Testamento, e da última versão da tão erudita quanto volumosa refutação do livro

anti-cristão do filósofo neoplatônico Celso. A partir da mesma base de operações

também se lançou a pesquisas diversas: perto de Jericó descobriu em uma jarra há

muito lacrada uma tradução grega dos Salmos diferente das que eram conhecidas

em sua época, um verdadeiro prelúdio à moderna corrida de pesquisadores que

seguem em busca de antigos textos religiosos nos áridos desertos e cavernas do

Oriente Médio. “Graças a Orígenes, Cesaréia da Palestina permanecerá um centro

intelectual cristão muito ativo, até o fim do século IV; ali, o trabalho mais                                                             124 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 193-203. 125 Id. Op. cit. p. 202. 126 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 204. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 202. 127 Citado em: Id. Op. cit. p. 201. 128 B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. cit.

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importante será a transmissão da Bíblia grega.”129 Não por acaso, mais tarde,

quando Constantino se estabeleceu em Constantinopla, foi ao ateliê episcopal de

Cesaréia, por intermédio de Eusébio, que o Imperador requisitou cinqüenta

exemplares da Bíblia destinados a diversas igrejas, dentre as quais aquelas treze

ou quatorze que fez edificar em sua nova capital.130

Imediatamente após a morte de Orígenes reacendeu-se e propagou-se o

debate acerca da ortodoxia ou não de suas idéias; este só se acalmou de forma

definitiva no século VI, quando, por um edito promulgado em 543, o Imperador

Justiniano condenou nove das mais polêmicas proposições do grande teólogo

alexandrino, decisão logo ratificada por todos os bispos de seus domínios, em

primeiro lugar o Patriarca de Constantinopla, Menas, e Vigílio, que então era Papa

de Roma.131 Em meados do século IV, entretanto, uma verdadeira batalha de

palavras foi travada em torno desta questão, ampliada em muito pela fama e

influência de Orígenes, que já em vida foi considerado o mais ilustre teólogo da

Igreja grega, de tal maneira importante que nenhum amigo ou inimigo seu,

ortodoxos ou heréticos, pôde efetivamente subtrair-se a imitá-lo em algo. De fato,

“(...) Não houve nome, na Antigüidade cristã, mais discutido do que o de

Orígenes; nenhum foi pronunciado com tão apaixonado entusiasmo ou tão

profunda indignação.”132 Como os principais opositores de seu legado, se

ergueram Teófilo, Patriarca de Alexandrina, e Epifânio de Salamis, diretor por

quase trinta anos de um rigoroso mosteiro de modelo egípcio situado no deserto

da Judéia, inimigo contumaz do pensamento grego, delator público de pelo menos

dezoito personalidades eclesiásticas alexandrinas que designou como heréticas, e

autor do Panarium (“Baú de medicamentos”), obra que “traz o elenco de 80

heresias, judaicas, pagãs e cristãs, e retrata as diversas seitas como inspiradas por

serpentes cujo veneno põem em risco a pureza da fé.”133 A estes homens

escandalizou especialmente a negação origenista da eternidade do inferno.134

                                                            129 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. cit. Também cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 398, n. 222. 130 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 145. 131 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 205. 132 Id. Op. cit. p. 205. 133 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 267, n. 25. 134 Em algumas poucas linhas, Berthold Altaner e Alfred Stuiber explicam esta polêmica posição filo-teológica do pensamento do grão-teólogo alexandrino: “(...) Um dos pontos capitais de sua

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Do outro lado das trincheiras erguidas com impressionantes arabescos

verbais, anos após a morte de Alexandre de Jerusalém e Teotito de Cesaréia,

levantou-se um laborioso sucessor deste, Pânfilo. Proveniente de família nobre de

Beritus (Beirute), Pânfilo exerceu alguns cargos públicos de certa relevância antes

de se transferir para Alexandria para tomar aulas de filo-teologia com Piério,

também chamado de “Orígenes, o jovem”, um dos eclesiásticos denunciados por

Epifânio devido a suas opiniões supostamente desviantes. Privado de suas lições,

transferiu-se para Cesaréia da Palestina, onde se dedicou a reanimar a escola

fundada por Orígenes e ampliar o seu acervo. Com este intento restaurou e

aumentou a biblioteca anexa à catedral, realizou novas aquisições, reuniu

correspondência do polêmico teólogo, fez redigir catálogos de suas obras e

organizou uma oficina de copistas. Foi ordenado sacerdote pelo bispo Agápito de

Cesaréia, e veio a sucedê-lo no governo pastoral da Sé Titular da Palestina; aí

desenvolveu uma reflexão e ensino que propriamente podem ser chamados de

origenistas, por sua fidelidade aos modelos do erudito egípcio. Defendeu o seu

mestre menos pela participação nas discussões públicas em torno de suas

doutrinas do que pela conservação, divulgação e elaboração de seus manuscritos;

assim, instaurou e fez crescer aquilo que foi de fato “a primeira grande coleção

cristã de livros da Antigüidade.”135 Detido em novembro de 307 por ocasião da

perseguição desencadeada por ordem de Maximino Daia, ficou dois anos na

prisão; aí, com a ajuda de Eusébio, um seu aluno muito próximo, que se fez

chamar por toda a vida de “Eusébio (filho) de Pânfilo”136, escreveu uma Apologia

                                                                                                                                                                   doutrina [i.e., de Orígenes] é a apokatástasis pánton: as almas que pecaram na terra, irão, depois da morte, para um fogo purificador; pouco a pouco, porém, todos, inclusive os demônios, subirão, de grau em grau, até que, por fim, inteiramente purificados , ressuscitarão com corpos etéreos e, novamente, Deus será tudo em todos. No entanto, esta restauração (apokatástasis) não significa o fim do mundo e, sim, um fim provisório. Antes de nosso mundo atual existiram outros mundos e, depois dele, ainda outros seguirão. De acordo com Platão, Orígenes ensinava sucederem-se os mundos, em mutação interminável. Portanto, Orígenes negava a eternidade do inferno”. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 213. 135 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 145. 136 Id. Op. cit. p. cit. Evaristo Arns quase chega ao jocoso ao interpretar de maneira demasiado carnal esta filiação e escrever a respeito de Pânfilo que este era “parente de Eusébio”. P. E. ARNS. Op. cit. p. 148. Neste ato falho, desconsiderou toda a narrativa eclesiástica que se refere à relação mestre-discípulo nos termos de uma espécie de vínculo pai-filho.Tal topos discursivo é justamente a base do conceito de Padres / Pais da Igreja. Este nos remete em contextos cristãos à Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios (“Com efeito, ainda que tivésseis dez mil pedagogos em Cristo, não teríeis muitos pais, pois fui eu quem pelo Evangelho vos gerou em Cristo Jesus”), à Didaquê (“Meu filho, procure evitar tudo o que é mau e tudo o que se pareça com o mau”) e a Ireneu de Lião (“Qui enim ab aliquo edoctus est verbo, filius docentis dicitur, et ille eius pater”). Suas raízes, contudo, são anteriores, e conduzem-nos ao surgimento do partido e do legalismo fariseu e

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de Orígenes em seis livros, que deixou incompleta: decapitado em 16 de fevereiro

de 310, o sexto livro foi concluído, em seu nome, por seu auxiliar.137 Citando

numerosos textos do pensador alexandrino, alguns dos quais não conhecemos hoje

senão por estes fragmentos de sua Apologia, Pânfilo “repele as acusações

concernentes ao pensamento de Orígenes sobre a Trindade, a encarnação, a

historicidade das Escrituras, a ressurreição, as penas, a alma, a metempsicose.”138

O sucessor de Agápito cedo percebeu as aptidões de Eusébio, e não tardou

a ensiná-lo os métodos mais cuidadosos de pesquisa bíblica e a conhecer e

admirar os diferentes aspectos da obra de Orígenes. “De Pânfilo, Eusébio herda o

amor pelos manuscritos, o cuidado na transmissão crítica dos textos, o fervor pelo

texto sagrado da Escritura. (...) juntos mantêm e enriquecem a biblioteca deixada

por Orígenes (...) Juntos também defendem o grande alexandrino em face das

contestações violentas e excessivas à sua pessoa e às suas idéias em certos

meios.”139 Na escola teológica e na biblioteca de Cesaréia é que Eusébio recebeu a

sua formação – assim como Gregório, o Taumaturgo. Por intermédio destas a

tradição alexandrina – ou o origenismo, designe-se como queira – pôde estender

sua influência para além de sua terra natal, onde estava sob o fogo cerrado de

muitos e poderosos críticos; chegou aos grandes expoentes eclesiásticos da

Capadócia – Basílio Magno e os dois Gregórios (o de Nazianzo e o de Nissa) – e

desdobrou-se no tempo para fecundar a Igreja de Constantinopla na pessoa de

Máximo, o Confessor, possivelmente o mais importante teólogo grego do século

VII.140 Outras personalidades de relevo da literatura cristã antiga foram instruídos

sob os auspícios dos bispos de Cesaréia, à sombra das estantes dos códices dos

escritos de Orígenes e de versões de textos bíblicos que hoje só podemos conceber                                                                                                                                                                    do rabinato como instituição, elementos já conhecidos na Palestina do século I – e duramente criticados por Jesus de Nazaré (“Quanto a vós, não permitais que vos chamem de ‘Rabi’, pois um só é o vosso Mestre e todos vós sois irmãos. A ninguém na terra chameis de ‘Pai’, pois só tendes o Pai Celeste”). Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. pp. 17-22. (A citação de Ireneu – extraída de Adversus haereses IV : 41, 2 – está transcrita na p. 18). BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 23, 8-9. p. 1745. Primeira Epístola aos Coríntios 4, 15. p. 1998 e notas correspondentes. DIDAQUÊ. Português. Didaqué : O catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje. Trad., introd. e notas Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. (15ª ed.). São Paulo: Paulus, 2008. III : 1. p. 11. 137 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 219. Henri CROUZEL. “Pânfilo de Cesaréia”. In: VV. AA. Op. cit. p. 1071. 138 Cf. Id. Op. cit. p. cit. 139 J. LIÉBAERT. Op. cit. pp. 145-146. 140 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 196, 301-311 e 516-518.

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com a ajuda da imaginação.141 Acácio, Eusébio e Nemésio de Emessa, Gelásio,

Filostorgo e Sócrates de Constantinopla, João Gramático, João Cozibita, Procópio

de Gaza e o outro Procópio, historiador, que em dois livros distintos louvou e

difamou Justiniano I e sua Imperatriz, Teodora: todos estes estudaram por algum

período na antiga Cesaréia Marítima.142 No tempo em que Jerônimo estava a

                                                            141 Atenhamo-nos a mencionar acerca destes um único exemplo, bastante ilustre e de comprovada relevância. Durante muito tempo – e, até onde sabemos, desde períodos muito primitivos da história da Igreja – acreditou-se que o Evangelho de Mateus, o primeiro a ser apresentado no cânone cristão ortodoxo, foi o primeiro a ser redigido, em hebraico, e que o texto dito de Marcos, que lhe segue na ordem canônica, bem mais curto e composto em um grego gramaticalmente mais simples do que as versões gregas de seu antecessor, seria uma versão abreviada do escrito mateano. Corroborando isto, Eusébio de Cesaréia mencionou Clemente de Alexandria (Quis dives salvetur? 42, 1-15) que afirmou que, antes de Marcos e Lucas publicarem os seus respectivos Evangelhos, “(...) Com efeito, Mateus, que primeiramente tinha pregado aos hebreus, quando estava a ponto de ir para os outros, entregou por escrito seu Evangelho, em sua língua materna, fornecendo assim por meio da escritura o que faltava de sua presença entre aqueles de quem se afastava.” O douto prelado, no mesmo intento, também invocou o juízo de Irineu de Lião sobre o assunto (Adversus haereses III : 39, 15-16) e com este atestou que “Mateus publicou entre os hebreus, em sua própria língua, um Evangelho também escrito, enquanto Pedro e Paulo estavam em Roma evangelizando e lançando os fundamentos da Igreja. Depois da morte destes, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, transmitiu-nos por escrito, também ele, o que Pedro havia pregado.” Mais adiante, registrou ainda que quando Panteno, mestre de Clemente em Alexandria, partiu para pregar no Hindustão aí encontrou um Evangelho de Mateus, composto em caracteres hebraicos, que teria sido dado a “alguns habitantes do país que conheciam Cristo” pelas mãos do apóstolo Bartolomeu, destacado como primeiro arauto da fé cristã em tais terras. (Em outra parte, nos décimo quarto, décimo quinto e décimo sexto versículos do trigésimo nono capítulo do terceiro Livro de sua História Eclesiástica, Eusébio menciona escritos de Papías sobre a redação dos Evangelhos que, entretanto, nada afirmam claramente sobre a ordem de redação destes). A opinião de que o texto mateano antecipava o marcano foi abandonada pela parcela mais autorizada dos pesquisadores modernos, que proferem de maneira quase unânime o julgamento de que o Evangelho de Marcos foi o primeiro dos quatro intracanônicos a ser escrito, por volta do ano 70. (John B. Gabel e Charles B. Wheeler destacam que há não pequena probabilidade de a narrativa marcana ter sido o primeiro evangelho a ser redigido, ou seja, que ela teria inaugurado o evangelho como forma literária original). Os mesmos especialistas que contestam a correção temporal da ordem canônica datam a redação do Evangelho de Mateus em algum momento entre 80 e 90, não havendo nenhum consenso sobre sua preeminência ou postergação em relação ao escrito dito de Lucas. Como nenhum fragmento de nenhuma cópia do antiqüíssimo texto hebraico do de Mateus foi encontrado pelos arqueólogos contemporâneos, não há maneira de contradizer efetivamente a hipótese de que a primitiva versão mencionada por Irineu de Lião, Panteno, Clemente de Alexandria e Eusébio de Cesaréia de fato nunca foi composta na forma à qual se referem, e de que a narrativa mateana foi originalmente redigida em grego, usando tanto fontes próprias quanto o escrito de Marcos, o qual, ao que se pode depreender de sua análise textual comparativa, buscava corrigir e superar. Há notícia, entretanto, de que na antigüidade cristã havia um exemplar do evangelho hebraico de Mateus disponível na biblioteca de Cesaréia da Palestina. Ainda que não se saiba bem a procedência ou data de redação deste elo perdido das pesquisas eruditas sobre os Evangelhos, temos conhecimento de que se tratava de volume tão relevante que Jerônimo dispensou os copistas e correspondentes a ele associados para ir até o bispo local pedir – e obter a todo custo – uma autorização para transcrevê-lo de próprio punho. Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria Aparecida Salmeron). São Paulo: Fonte, 2005. Livro III : 24, 5-6. p. 97. Livro III : 39, 14-16. p. 113. Livro V : 8, 2-3. p. 167. Livro V: 10, 3. pp. 169-170. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. ps. 159 e 161, n. 143 e 150, e p. 297, n. 170-172. Eugenio ROMERO POSE. "Mateus (evangelho)". In: VV. AA. Op. cit. pp. 906-907. J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. ps. 170, 174-175 e 178. P. E. ARNS. Op. cit. p. 149 e nota correspondente, n. 187, p. 165. 142 Cf. S. VAILHÉ. Op. cit. p. 134. D. STIERNON e B. BAGATTI. Op. cit. p. 286.

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compor a sua tradução latina da Bíblia, “(...) O espírito comunitário dita ao bispo

Euzoio – condiscípulo de Gregório de Nazianzo, em Cesaréia – o gesto magnífico

de reconstruir a biblioteca de Orígenes e de Pânfilo”143; para este local é que o

asceta se dirigiu quando desejou consultar, copiar ou mandar copiar algum texto

especialmente difícil de ser achado.144 Juntamente com a Biblioteca de Elia

Capitolina, ou Jerusalém, com a qual mantinha nos tempos de Eusébio um rico

intercâmbio145, a de Cesaréia compunha uma espécie de sombra ou reflexo

genuinamente cristão do acervo reunido em Alexandria por iniciativa dos

governantes Ptolomeus: nas estantes palestinas podiam ser achadas, além das

obras de Orígenes e versões diversas das Escrituras judaicas e cristãs, fontes de

primeira mão como cartas, atas de martírios, códigos jurídicos helênicos e

judaicos, obras apologéticas e anti-heréticas, histórias naturais de autores clássicos

e as primeiras corografias cristãs, além de cópias de documentos oficiais, como os

escritos do Imperador Galieno dirigidos aos bispos do Egito, um dos quais é

transcrito no décimo terceiro capítulo do sétimo Livro da História Eclesiástica.146

Séculos de melancólica decadência se seguiram após a violenta tomada da

cidade pelos samaritanos no ano de 556, ocasião marcada pelo saque de suas

igrejas e pela matança generalizada de sua população. A ocupação persa em 614-

619 e a invasão árabe em 637-638 foram responsáveis pela precipitação do fim, ao

ocasionarem dois incêndios monstruosos que consumiram quase por inteiro a

Biblioteca de Cesaréia. Quando da época das Cruzadas, o Rei Balduíno I de

Jerusalém reconstruiu parte da cidade em 1101, dotando-a de edificações

esplêndidas em ornamentos e dividindo-a com seus arredores entre seus cavaleiros

francos; neste processo foi encontrado um cálice ornamentado que se acreditou ser

o Santo Graal, usado por Cristo na Última Ceia: este, cantando em diversos

poemas medievais, foi levado para Paris em meados do século XII, e dele

                                                            143 P. E. ARNS. Op. cit. p. 27. 144 Cf. Id. Op. cit. p. 149. 145 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. ps. 56* e 58*. Eusébio menciona a sua relação com a biblioteca da antiga Jerusalém no vigésimo segundo capítulo do sexto Livro de sua História Eclesiástica: “(...) Floresciam nesta época muitos varões eloqüentes e eclesiásticos, cujas cartas, que mutuamente se escreviam, ainda hoje se conservam e são fáceis de encontrar. Também foram preservadas até nossos dias na biblioteca de Elia, formada por Alexandre, que então regia a igreja deli, e na qual nós também pudemos reunir pessoalmente o material para a presente obra.” EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. p. 211. 146 Id. Op. cit p. 246 e notas correspondentes, n. 500-501.

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perdemos o rastro. Desde 1101 até 1496 trinta e seis bispos latinos ocuparam a Sé

de Cesaréia da Palestina, e durante a ocupação franca esta província eclesiástica

foi reorganizada em dez dioceses sufragâneas, nas quais foi mantido o episcopado

grego (antes ligado ao Patriarcado Ortodoxo de Jerusalém) que declarou sua união

com Roma. No século XVII, Anastácio, peregrino e autor de algumas notáveis

obras de espiritualidade, mencionou que ainda lhe era possível encontrar no

mercado, em porões ou em idas ao campo adjacente à cidade, fragmentos antigos,

normalmente em péssimo estado, do imenso acervo da Biblioteca de Cesaréia. Em

1884 um grupo de muçulmanos bósnios foi deslocado pelo governo otomano para

ocupar a cidade medieval, já então quase abandonada à poeira e aos fantasmas do

passado – nesta ocasião já não havia virtualmente nenhum cristão a habitar a velha

Metrópole Eclesiástica que outrora abrigou Orígenes. O atual nome do pequeno

povoado que ainda subsiste em torno daquilo que era a grande Cesaréia Marítima

é Kaisariyeh.147 Já estamos, entretanto, indo aqui muito longe em nossa

divagação, demasiado distantes dos tempos de Eusébio.

Note-se bem a expressão que usamos acima. Dos tempos – não do tempo.

Eusébio de Cesaréia, autor da História Eclesiástica, nasceu no começo da década

de 260 e faleceu em 339 ou 340: conheceu demasiado bem a Igreja Perseguida e a

Igreja Triunfante. Viveu de forma intensa a paz que os cristãos tiveram após a

morte do Imperador Aureliano, e percebeu com agudeza os problemas que se

desenvolveram no interior da comunidade eclesial durante este período de

arrefecimento da perseguição romana.148 Interpretou a intensa perseguição

desencadeada por Diocleciano como um castigo divino contra as rivalidades

surgidas entre os seguidores de Cristo, mas presenciou e narrou admirado a saga

daqueles que “lutando animosamente em meio a terríveis tormentos, ofereceram

quadros de grandes combates”149, resistindo até a tortura e a morte à determinação

imperial de que todos deveriam oferecer “infames e impuros sacrifícios”.150

Declarou que esta “guerra sem quartel”151 promovida pelo Império contra os

correligionários de Eusébio trouxe sobre esta formidável organização política a                                                             147 Cf. S. VAILHÉ. Op. cit. p. 134. 148 Cf. Eusébio de Cesaréia. Op. cit. Livro VIII : 1, 1-8. pp. 273-274. 149 Id. Op. cit. Livro VIII : 3, 1. pp. 275-276. 150 Ibid. Op. cit. Livro VIII : 3, 2. p. 276. 151 Ibid. Op. cit. Livro VIII : 13, 10. p. 288.

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justiça de Deus na forma de carestia, desordem civil e moléstias que vitimaram o

povo e os governantes, e que o agravamento desta situação fez com que, de um

lado, o Augusto Maxêncio, “por agradar e adular o povo romano, (...) ordenou a

seus súditos interromper a perseguição contra os cristãos, simulando piedade e

pensando que assim pareceria acolhedor e muito mais brando que seus

antecessores”152, e, do outro, Constantino, filho do Imperador Constâncio, “o

único de nossos contemporâneos que durante todo o tempo de seu mandato

portou-se de um modo digno (...) e não participou o mínimo da guerra (...) [e]

preservou livres de dano os fiéis que eram seus súditos”153, fosse proclamado

imperador por suas legiões, mostrando-se sempre bondoso como seu pai para com

os discípulos do Nazareno. Viveu a perseguição ordenada por Maximino no

Oriente e cantou deslumbrado como “(...) quando a esperança já estava quase

morrendo na maioria (...), Deus, campeão de sua própria Igreja, fazendo travar o

freio, por assim dizer, do orgulho do tirano contrário a nós, demonstrou que o céu

era um aliado posto ao nosso lado”154, e golpeou os domínios deste governante

com a fome, a peste, a guerra e a pobreza. Descreveu com entusiasmo o conflito

entre Constantino e Maxêncio e entre Licínio e Maximino, afirmando que foi por

obra divina que os segundos foram vencidos pelos primeiros, que os superavam

“tanto em linhagem quanto em educação, instrução, dignidade, inteligência e – o

que é mais importante – em sábia prudência e em piedade para com o verdadeiro

Deus.”155 Foi o cronista não só da “sucessão dos apóstolos”156, mas da completa

mudança de situação dos cristãos no Império com o Edito de Tolerância

proclamado por Constantino e Licínio em 313: um novo horizonte de expectativas

se desvelou para o cristianismo – ou melhor, para certa corrente ou tendência do

movimento de Jesus – com a aceitação e, logo depois, o favorecimento imperial;

este traz consigo novas questões e esperanças, tematizadas por Eusébio ao longo

de toda a sua obra.157

                                                            152 Ibid. Op. cit. Livro VIII : 14, 1. p. 289. 153 Ibid. Op. cit. Livro VIII : 13, 13. p. cit. 154 Ibid. Op. cit. Livro IX : 7, 16. p. 305. 155 Ibid. Op. cit. Livro IX : 10, 1. p. 312. 156 Ibid. Op. cit. Livro VIII : Prólogo. p. 273. 157 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 133. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 201.

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In hoc signo vinces: é por meio de uma modalidade muito específica da fé

cristã – tema ao qual voltaremos adiante – que o mundo romano do século IV

assiste ao primeiro passo para uma síntese eficaz da religião, do Estado e da

cultura, que irá refundir em bases novas e duradouras a lealdade das províncias ao

governo central, dos súditos ao soberano.158 Interligados e simultaneamente se

deram então o triunfo da Grande Igreja159 e de seu modelo organizacional e a

passagem de uma política religiosa do Estado Romano – fundada em um

substrato helenístico – para a sua defesa de uma Ortodoxia política – prenhe de

afinidades eletivas com o modelo eclesiástico ao qual Constantino tornou-se

simpático em algum momento dos anos 300 e no qual se inseriu como “bispo,

ordenado por Deus para supervisionar os que estão fora da Igreja.”160 O discípulo

de Pânfilo vivenciou e louvou esta guinada decisiva, cujas ambigüidades – que ele

não demonstrou nunca intuir – não tardariam a aparecer. Logo outros prelados

tiveram de defender a independência de sua jurisdição em relação àquela do

Império, e alguns pagaram caro por ela161, mas a interpretação feita por Eusébio

                                                            158 Cf. M. FIORILLO. Op. cit. p. 202. S. RUNCIMAN. Op. cit. pp. 21-22. Henry CHADWICK e G. R. EVANS. Igreja Cristã. (Trad. port. Calos Noué e Francisco Manhães; rev. Carlos Noué e Meritxell Almarza). Barcelona: Folio, 2007. (Col. “Grandes civilizações do passado”). pp. 26-27. Karen ARMSTRONG. Uma história de Deus : Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. (Trad. Marcos Santarrita; rev. da trad. Hildelgarda Feist e Wladimir Araújo). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 146. Albert Habib HOURANI. Uma história dos povos árabes. (Trad. Marcos Santarrita). São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 23-24. 159 Ao usar esta expressão tomada de empréstimo do mencionado volume de Karen Armstrong – “(...) Os cristãos falavam agora numa Grande Igreja, com um único governo de fé, que evitasse o extremismo e a excentricidade” – nos referimos ao desenvolvimento no tempo imediatamente anterior e contemporâneo ao governo de Constantino como Imperador dos Romanos do grupo que denominamos anteriormente neste trabalho como paleortodxos. K. ARMSTRONG. Op. cit. p. 145. 160 Citado em: Paul JOHNSON. História do cristianismo. (Trad. Cristina de Assis Serra). Rio de Janeiro: Imago, 2001. p. 85. Sobre o conceito de Ortodoxia Política a que aqui fazemos referência, ver o capítulo com este mesmo título em: Celso TAVEIRA. O modelo político da autocracia bizantina : Fundamentos Ideológicos e Significado Histórico. 2002. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo (BR). pp. 341-348. 161 Mencionemos como único exemplo o célebre caso de João Crisóstomo, a quem foi atribuída – muito provavelmente de modo errôneo – a composição da Liturgia Bizantina (por isto dita “de São João Crisóstomo”). João Crisóstomo nasceu em Antioquia-sobre-o-Orontes, filho de uma família abastada, em ocasião ainda controversa (meados da década de 340 ou 350) – a primeira data precisa de sua vida que é conhecida pelos historiadores é a de sua ordenação como diácono, em 381. Recebeu uma educação esmerada e preparou-se para seguir carreira na chancelaria imperial constantinopolitana; conta em algumas das suas homilias que foram preservadas que passou sua juventude a divertir-se com os divertimentos teatrais e a observar o dia-a-dia dos tribunais. Ainda moço, por influência de um amigo, aproximou-se da fé cristã. Afastou-se do seculum, recebeu o batismo, assistiu às preleções de Diodoro, futuro bispo de Tarso, e dedicou-se à exegese. Tornou-se amigo de Melécio, então bispo de Antioquia, que o nomeou leitor; sua família manifestou o desejo de que se fizesse padre, mas então não tinha a mínima vontade de envolver nas polêmicas político-teológicas que partiam a cidade, e, tão logo conseguiu fazê-lo, abandonou sua casa e se isolou no deserto sírio, primeiro, durante quatro anos, sob a orientação espiritual de um velho

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                                                                                                                                                                   monge, conhecido como taumaturgo, e, depois, por dois anos, isolado em uma gruta, onde tratou de decorar ambos os Testamentos. Com a saúde bastante debilitada, também em função da disciplina rigorosa que se auto-impôs, voltou à sua urbe natal, onde foi feito diácono. Em 386, Flaviano, sucessor de Melécio, ordenou-lhe sacerdote. Por doze anos fascinou os cristãos antioquenos com a sua eloqüência (daí o cognome de Crisótosmo, ou seja, “Boca de Ouro”, que postumamente lhe atribuíram) e não hesitou em fustigar os arianos e as demais seitas ditas heréticas que pululavam em Antioquia – até que foi escolhido como sucessor de Nectário, bispo de Constantinopla recém-falecido, conhecido por seu gosto pelo luxo. O prefeito de Antioquia temeu que João negasse o episcopado da capital do Império, e por isso fez com que partisse para lá sem dizer-lhe os motivos de tal viagem. Foi sagrado Patriarca a 26 de fevereiro de 398. Ninguém lhe perguntou se aprovava esta decisão. Ligado a este alto cargo, pretendeu moralizar os costumes e reformar a sociedade; arremeteu com entusiasmo sobre a riqueza insolente de alguns e sua dureza de coração para com os pobres. Pregou a fidelidade ao mandamento da caridade, recomendou a leitura diária dos dois Testamentos a todas as pessoas e vendeu uma parte dos bens de sua Sé. Em mais de uma ocasião chegou a contestar, moderadamente, as decisões do Imperador, de quem dependia diretamente o seu cargo; mais ou menos publicamente afirmou que a majestade imperial tinha intrínsecos limites, e que o domínio espiritual não se incluía em sua jurisdição. Graças ao auxílio de uma rica senhora da sociedade constantinopolitana que se dispôs a ajudá-lo, criou grandes obras de beneficência na cidade: multiplicou as esmolas, as refeições gratuitas, as guaridas para as noites de inverno. Inusitadamente, começou a proteger os godos que amontoavam as margens da capital; além disso, designou clérigos que os preparam para a conversão e constituiu um seminário para esse povo: graças a João, alguns anos depois, haveriam numerosos padres de origem bárbara em todo o Oriente bizantino. Quanto mais fez com que a Igreja de Constantinopla se livrasse do supérfluo, mas a fez enriquecer: por doações e legados, passou a dispor de grandes propriedades por toda a região e de um considerável poder econômico, assim como de imensa popularidade. À pedido dos bispos locais, foi a Éfeso, reuniu um sínodo e designou novos bispos. Legalmente tratava-se de um abuso – João não tinha autoridade para intervir em um território que não dependia de sua Sé –, mas todos se curvaram: por este gesto imprevisível, fez do arcebispo de Constantinopla o superior imediato das províncias eclesiásticas da Trácia, da Ásia e do Ponto. Como era de se esperar, sua proeminência e as exigências severas que fazia em nome do Evangelho logo despertaram tanto a inveja de alguns poderosos quanto a hostilidade dos que foram alvos de suas ácidas reprimendas – chamado de “João das Esmolas”, atraiu para si mesmo mais ódio do que amor. A imperatriz Eudóxia, algumas damas da Corte, os bispos de várias províncias e monges que viviam uma vida desregrada na capital do Império, articularam-se contra ele. Seus inimigos o acusaram de ter usado no Sínodo de Éfeso seu prestígio pessoal para contradizer o costume estabelecido e influir em um assunto administrativo da Igreja. Teófilo, Patriarca de Alexandria, um dos eclesiásticos mais criticados por João, pôs-se à frente da ofensiva, conseguiu atrair o apoio do Imperador para a sua causa e convocou o sínodo dito do Carvalho, diante do qual o bispo de Constantinopla foi intimado a comparecer. Reconhecendo que se tratava de uma armadilha, este não o fez – e foi deposto em conseqüência disto. Posto em silêncio, foi chamado meses depois a reassumir a sua Sé. Feito isto, novamente atacou de viva voz aqueles personagens públicos que considerava injustos e imorais. De maneira contumaz fustigou aqueles clérigos que admitiam em suas casas, a pretexto de protegê-los, jovens monges ou virgens consagradas, e com estes mantinham consórcios tão hipócritas quanto escandalosos. Sua paixão – da qual afirma em sua Homilia pronunciada no dia de sua ordenação [presbiteral] “que não se pode imaginar nada de mais forte e de mais tirânico” – repetida e rapidamente se tornou virulência, e não raro degringolou em sonora ofensa. Na noite de Páscoa de 404 seus inimigos fizeram com que baderneiros provocassem graves tumultos durante o batismo dos catecúmenos; multidões invadiram igrejas por toda a cidade, interromperam as liturgias, agridiram alguns sacerdotes e profanaram os templos. Cinco dias depois de Pentecostes do mesmo ano, o Imperador deu um veredicto que considerava João o responsável pelos mencionados conflitos, e assinava para ele uma ordem de exílio, desta vez definitiva. João escreveu ao bispo de Roma, Inocêncio, e lhe enviou porta-vozes, da mesma forma que o fez, antes Teófilo, seu detrator: o Papa tomou a defesa do arcebispo deposto, mas não possuía poder para se opor aos caprichos de Eudóxia, furiosa por ter sido comparada em uma homilia do Crisóstomo a Herodíade, esposa ilegítima de Herodes que foi alvo da sonora cólera do Batista. Após uma viagem de mais de noventa dias chegou à desértica região de Cucuso, nas fronteiras da Armênia, onde ficou por três anos; sua resistência silenciosa e ausência de revolta exasperam seus inimigos que, por fim, conseguiram que fosse transferido para a distante Cólquida (então Pityus), na costa oriental do Mar Negro. Debilitado pelas longuíssimas

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acerca deste triunfo de um certo cristianismo e da autoridade imperial que o

favorece é inequívoca. Pensando retrospectivamente, e tendo em vista o padrão de

crescimento do cristianismo mediterrânico nos séculos I a III conforme este foi

definido pelos modernos estudos de sociologia estatística, com o inevitável

anacronismo de necessariamente considerarmos por seus resultados processos

históricos do qual estamos tão distanciados no tempo e no espaço, pode até nos

parecer quase inevitável que ocorresse alguma aliança entre a Igreja e o Estado

romano.162 Isto, entretanto, não deve obscurecer a nossa tentativa de compreender

como alguns daqueles que viveram os tempos que Eusébio viveu interpretaram o

sentido desta aliança. De fato, não nos surpreende que considerassem tal coisa

como uma milagrosa intervenção de Deus na história:

“(...) agora aqueles homens odientos de Deus já não existem, porque tampouco existiam. Depois de haver causado e de haver sofrido por sua vez perturbações por breve tempo, e depois de suportar um castigo irrepreensível em justiça, eles

                                                                                                                                                                   marchas forçadas e pelos maus tratos impostos pelos soldados encarregados de vigiá-lo, morreu próximo a Comana, província do Ponto, em 14 de setembro de 407. Alexandre, então Patriarca de Antioquia, fez de tudo para reabilitar a sua memória, assim como Inocêncio de Roma. Já em 417 foi incluído nos martirológicos ocidentais, e pouco depois nos orientais. Com a ampliação dos conflitos entre Papas e Monarcas que marcariam toda a Idade Média e Moderna, foi constantemente evocado como defensor da liberdade da Igreja e como um santo conduzido às portas do inferno pelo poder imperial. Cf. Anne-Marie MALINGREY. “João Crisóstomo”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 761-763. G. SUFFERT. Op. cit. pp. 82-85. 162 Esta parece ser a intuição e o erro interpretativo que marcam o ensaio de especulação histórica composto por Carlos M. N. Eire sob o título de “Pôncio Pilatos poupa Jesus”. Este texto se encontra em uma coletânea de estudos de história contra-factual organizada por Robert Cowley, e aí é a única a tratar de um tema diretamente referente às religiões. A premissa da obra é interessante: os historiadores são profissionais que não possuem um campo externo de estudos, mas que têm como laboratórios suas mentes, e, posto isto, o estudo de resultados alternativos para determinados eventos da história permite que, pela imaginação, o pesquisador isole e retorça um dos dados que a documentação disponível lhe apresenta, buscando assim dimensionar a real importância desta variável determinada. A execução, no caso do ensaio de Carlos Eire, ainda que memorável, entretanto, não é das mais geniais. Padece este autor da duvidosa convicção de que entre o cristianismo e o Império Romano acabaria havendo algum tipo de conluio, mais cedo ou mais tarde, sem considerar devidamente o que poderia ocorrer se o próprio cristianismo tivesse vindo a ser outro. Na sua narrativa, os romanos protegeram Jesus de seus opositores judeus por ele pregar a submissão às autoridades imperiais: “À César o que é de César...” Muito mais cedo que na nossa própria realidade, o movimento de Jesus teria sido, então, cooptado pelo Império; mantido dentro dos limites do judaísmo conformista, um corpo doutrinal é organizado sob a tutela dos soberanos que promovem a nova religião, e, com o elogio da homogeneidade e a intolerância legitimadas e incitadas pela distinção mosaica e a sua conseqüente teologia do povo eleito, são impiedosamente perseguidos os dissidentes da religião oficial adventícia: tanto os que não aceitam o profeta Jesus, e ainda continuam apegados à pouco sutil justiça da Antiga Aliança e ao ideal nacionalista judaico, quanto os que insistem na supersticiosa crença de que ele era o Filho de Deus e ressuscitou no terceiro dia depois da sua morte. V. Carlos M. N. EIRE. "Pôncio Pilatos poupa Jesus". In: Robert COWLEY (org.). E se...? : Como seria a História se os fatos fossem outros. (Trad. Fábio Fernandes; Coord. ed. e pref. Mary Del Priore). Rio de Janeiro: Campus, 2003.

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mesmos se arruinaram por completo e arruinaram seus amigos e suas famílias, tanto que as predições gravadas outrora em estelas são reconhecidas como verdadeiras ante os fatos. Por meio destes, a palavra divina afirma como verdadeiras as outras coisas, mas também o que declara acerca daqueles: ‘Os pecadores desembainharam uma espada; esticaram seu arco para abater o pobre e o indefeso, para degolar o reto de coração. Oxalá sua espada penetre em seus próprios corações e seus arcos se quebrem!’; e novamente: ‘Sua memória se perdeu com o eco, e seus nomes estão apagados para sempre e pelos séculos dos séculos’, porque realmente, ‘achando-se entre males gritaram, mas não havia quem os salvasse, gritaram ao Senhor, e não os escutou.’ Mesmo assim, ‘travaram-se-lhe os pés e caíram. Mas nós nos levantamos e nos endireitamos.’ E ante os olhos de todos mostra-se verdadeiro o que se predizia com estas palavras: ‘Senhor, em tua cidade reduzirás a nada sua imagem.’ Eles, que levantaram uma luta contra Deus parecida com a dos gigantes, tiveram um final igualmente catastrófico. (....) o Verbo salvador e emissor de luz divina, obedecendo ao amor do Pai, todo santidade para com os homens, (...) tendo eleito em primeiro lugar as almas dos supremos imperadores, valendo-se deles, amantíssimos de Deus, limpou inteiramente a terra habitada de todos os indivíduos ímpios e funestos e até dos terríveis tiranos, odientos de Deus. Logo trouxe à luz do dia os homens bem conhecidos por Ele, que em outro tempo haviam-se consagrado com sua vida a Ele e andavam ocultando-se ao abrigo de sua proteção, como numa tempestade de males, e honrou-os mui dignamente com a magnificência do Pai. E logo, também por meio destes, purificou e limpou as almas pouco antes manchadas e cobertas de material de toda espécie e montes de terra, que eram as ordens ímpias, usando como enxadas e ancinhos os impressionantes ensinamentos de suas doutrinas.”163

Posto isto, chegamos em um ponto nevrálgico de nossa reflexão. As

pessoas interpretam os fenômenos históricos que vivenciam de acordo com

padrões interpretativos socialmente forjados que lhes foram legados em sua

formação e são continuamente exercidos e reforçados em sua vivência em

comum. Estes mesmos fenômenos, entretanto, não estão obrigados a se adequar a

nenhum sistema culturalmente pré-estabelecido, dada a imprevisibilidade que

marca o desenrolar dos assuntos humanos; assim sendo, eles acabam forçando

revisões e ajustes que modificam os mesmos padrões interpretativos através dos

quais foram assimilados. A estrutura cultural de um indivíduo ou comunidade

define como os eventos serão por ele considerados, mas a consideração de certos

eventos concorre para modificar esta mesma estrutura, transformando-a em sua

reprodução. Em outros termos, novos fatos e contextos demandam novas formas

de narrativas. Estas, por sua vez, possuem determinados pressupostos e corolários,

e atuam no sentido de gerar novas circunstâncias e interpretações possíveis.164 Ao

                                                            163 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 4, 29-31.59-60. ps. 327-328 e 333-334. 164 C. GEERTZ. Op. cit. 2004. pp. 102-103. M. SAHLINS. Op. cit. ps. 25-28 e 125-134.

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narrar por meio de certo mecanismo de raciocínio próprio da apologética o triunfo

de certo cristianismo contra seus opositores externos e contra o coro dos seus

dissidentes, Eusébio de Cesaréia pôs em evidência os elementos que levou este

movimento religioso a ser hostilizado e posteriormente cortejado – e cooptado –

pelo Império Romano; ao cantar o triunfo de Constantino, “aferrado à aliança de

Deus”165, elaborou uma teologia do governo imperial e se apropriou dos termos da

cultura – inclusive da cultura política – greco-romana, tomando-os como base

para o fortalecimento, intra e extramuros, até a hegemonia166 do movimento

cristão – agora solidamente ancorado como instituição sociopolítica nos quadros

jurídicos e ideológicos do Império Romano; ao buscar comprovar a ação de Deus

no mundo dos homens em favor de uma determinado partido religioso com o

recurso à erudição e à prova documental, através de convenções literárias que se

acreditava serem capazes de comunicar não apenas conjecturas, mas a verdade,

transformou a confiança cristã na Divina Providência em historiografia

eclesiástica.

                                                            165 EUSÉBIO de Cesaréia. Op. cit. Livro VIII : 9, 3. p. 308. 166 E a degradação, como afirmou Simone Weil. Cf. Simone WEIL. Ouvres. Paris: Gallimard, 1999. (Col. “Quarto”). p. 1013. Apud: R. BERGERON. Op. cit. p. 73.

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Capítulo 2

POSSÍVEIS SIGNIFICADO HISTÓRICO E RAÍZES INTELECTUAIS DA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA

I.

“A história não é, portanto, uma categoria que explica, mas que explicamos.”

M. GODELIER

“Você acha que o passado afeta o futuro. Nunca passou pela sua cabeça que o futuro pode afetar o passado?”

MAY SINCLAIR, “Onde seu fogo jamais se apaga”

O nono Livro da História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia começa

com a narrativa de como Maximino, Augusto que então governava as províncias

romanas do Oriente, “ímpio como nenhum outro e convertido no maior inimigo

da religião do Deus do universo”167, se desgostou do Edito promulgado pelos seus

colegas Maximiano, Constantino e Licínio que fazia cessar a perseguição àqueles

“que tinham abandonado a seita de seus antepassados”.168 Não podendo opor-se

ao juízo dos outros co-imperadores, teria ele então tentado evitar que a nova

legislação fosse conhecida nas regiões de seu governo, substituindo-a por uma

instrução oral para que se afrouxasse o cerco armado contra os cristãos. Tal

disposição de Maximino, consignada por escrito à sua revelia graças a um

magistrado de nome Sabino, difundiu-se rapidamente entre as diversas instâncias

de seu governo. Os efeitos de tanto, Eusébio descreve nos seguintes termos:

“(...) Depois disto, os de cada província, pensando que a intenção do que se lhes escrevia era verdade, dão a conhecer por meio de cartas o pensamento imperial aos curadores, aos magistrados municipais e aos prepostos de distrito rural. Mas não fizeram avançar o assunto somente por meio de cartas, mas também, e muito principalmente, por meio das obras. Com o fim de levar a cabo a decisão

                                                            167 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria Aparecida Salmeron). São Paulo: Fonte, 2005. Livro IX : 1, 1. p. 299. 168 Id. Op. cit. Livro VIII : 17, 6. p. 294.

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imperial, tiravam à luz do dia e davam liberdade a todos que tinham encerrados nos cárceres por terem confessado a divindade, e deixavam ir também os que dentre eles estavam condenados às minhas. Ainda que se equivocassem, eles criam que isto era o que verdadeiramente pensava o imperador [Maximino]. E ao ocorrerem deste modo as coisas, de repente, como uma luz que brilha saindo da noite escura, em cada cidade podia-se ver igrejas congregadas, reuniões concorridíssimas e, além disso, as cerimônias executadas do modo costumeiro. E todo pagão infiel era presa de grande espanto ante isto e se maravilhava de mudança tão prodigiosa, e a gritos proclamava grande e único verdadeiro o Deus dos cristãos. Dos nossos os que haviam sustentado valente e fielmente o combate das perseguições recobraram novamente sua liberdade franca para com todos; em troca, os que, enfermos na fé, haviam naufragado em suas almas apressavam-se alegremente em busca de remédio, implorando e pedindo aos fortes sua mão direita e suplicando a Deus que lhes fosse propício. E logo, os nobres atletas da religião, liberados do sofrimento das minas, regressavam a suas casas caminhando majestosos e radiantes através das cidades e transbordando uma indizível alegria e uma liberdade franca que não é possível traduzir com palavras. Assim, pois, ao longo dos caminhos e das praças, multidões em tropel realizavam sua viagem louvando a Deus com cantos e salmos, e os que antes estavam presos com duríssimos castigos e desterrados de suas pátrias, deverias vê-los agora recobrando seus lares com o rosto transbordante de alegria e satisfação, tanto que inclusive os que antes gritavam contra nós, ao ver agora um prodígio tão contrário ao que se poderia esperar, uniam-se também ao nosso regozijo pelo ocorrido.”169

A passagem, redigida em um tom correto, mas que não é pretensioso,

evoca aquele encanto que é característico da palavra falada. O seu quadro

discursivo, de uma estrutura e a movimentação quase cênica, poderia muito bem

nos conduzir a afirmar que foi um trecho composto para ser lido coletivamente,

como o foram os Evangelhos, as Epístolas Paulinas ou o Apocalipse. Tal intuição

é reforçada se o lermos atentamente e o imaginarmos proferido desde os degraus

de uma basílica ou de um púlpito ou do centro de uma assembléia reunida.170 Por

                                                            169 Ibid. Op. cit. Livro IX : 1, 7-11. p. 300. 170 Jorge Luis Borges registrou em um ensaio intitulado “Do culto dos livros” que foi apenas depois de quatro séculos de existência do cristianismo – crença que é adesão aos ensinamentos e à Pessoa do maior dos mestres orais, do qual se tem notícia que escreveu apenas uma única vez: umas poucas palavras na terra, que nenhum homem leu (João 8, 6) –, portanto, pelo menos meio século depois da redação e difusão da História Eclesiástica, que “teve início o processo mental que, depois de muitas gerações, culminaria no predomínio da palavra escrita sobre a falada, da pena sobre a voz. Um admirável acaso quis que um escritor fixasse o instante (quase não exagero ao chamá-lo de instante) em que teve início o vasto processo. Conta santo Agostinho, no sexto livro das Confissões: ‘Quando Ambrósio lia, passava a vista sobre as páginas, fazendo sua alma penetrar o sentido, sem proferir palavra alguma nem mover a língua. Muitas vezes – pois não se proibia ninguém de entrar nem era costume avisá-lo quando alguém chegava – o vimos ler em silêncio e nunca de outro modo, e depois de algum tempo íamos embora, conjecturando que naquele breve intervalo que lhe era concedido para reparar seu espírito, livre do tumulto dos negócios alheios, não queria que o ocupassem com outra coisa, talvez receoso de que um ouvinte,

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uma providencial ironia – como a que possibilitou que judeus das mais diversas

regiões estivessem reunidos em Jerusalém naquele primeiro Pentecostes depois da

execução de Jesus de Nazaré e aí ouvissem o primeiro discurso de Pedro como

líder do grupo apostólico171 – a disposição favorável dos outros Imperadores em

relação aos cristãos dribla a má vontade de Maximino e as medidas deste no

sentido de dissimulá-la ou atenuá-la. O resultado de tal coisa é a libertação dos

presos que se recusaram a participar do culto imperial e, com isto, um repentino

florescimento da Igreja, que se associa, por um lado, à conversão dos pagãos que

o testemunhavam, e, por outro, ao arrependimento e novo acolhimento no meio

eclesial daqueles que haviam aceitado a adoração aos deuses do Estado como

forma de se preservarem dos sofrimentos físicos, vinculado não à toa com o

elogio dos “atletas da religião”, ou seja, dos que, em nome de Deus, resistiram

pacificamente à violência romana e sobreviveram para testemunhar o fim desta.172

Sem dúvida, no referente ao nosso conhecimento de muitos personagens e

eventos do movimento cristão na sua infância – como, por exemplo, este que

acima mencionamos –, Eusébio de Cesaréi, por sua História Eclesiástica, é não só

a mais conhecida como a única testemunha que resta.173 Esta contingência,

                                                                                                                                                                   atento às dificuldades do texto, lhe pedisse explicação de alguma passagem obscura ou quisesse discuti-la com ele, e com isso não pudesse ler todos os volumes que desejava ler (...).’ Santo Agostinho foi discípulo de santo Ambrósio em 384; treze anos depois, na Numídia, quando redigiu suas Confissões, ainda o inquietava aquele singular espetáculo: um homem, num quarto, com um livro, lendo sem articular as palavras.” À este relato, o literato argentino ajunta a seguinte nota: “(...) Os comentares explicam que, naquele tempo, era costume ler em voz alta para penetrar melhor o sentido, porque não havia sinais de pontuação, nem sequer divisão de palavras, e ler em grupo, para moderar ou evitar os inconvenientes da escassez de códices.” Jorge Luis BORGES. Outras Inquisições. (Trad. Davi Arrigucci Jr.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp. 132-133 e nota correspondente, n. 1. 171 Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Coordenação editoral de José Bortolini; Tradução de Euclides Martins Balanci et al. São Paulo: Paulus, 2002 (4ª impressão: 2006). Atos dos Apóstolos 2, 1-36. pp. 1902-1904. 172 Certamente o epíteto “atletas da religião” empregado por Eusébio na referida passagem se relaciona com o trecho da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios onde o Apóstolo escreveu: “(...) Para os fracos, fiz-me fraco, a fim de ganhar os fracos. Tornei-me tudo para todos, a fim de salvar alguns a todo custo. E, isto tudo, eu o faço por causa do evangelho, para me torna dele participante. Não sabeis que aqueles que correm no estádio, correm todos, mas um só ganha o prêmio? Correi, portanto, de maneira a consegui-lo. Os atletas se abstêm de tudo; eles, para ganharem uma coroa perecível; nós, porém, para ganharmos uma coroa imperecível. Quando a mim, é assim que corro, não ao incerto; é assim que pratico o pugilato, mas não como quem fere o ar. Trato duramente o meu corpo e reduzo-o à servidão, a fim de que não aconteça que, tendo proclamado a mensagem aos outros, venha ser reprovado.” Id. Ver. cit. Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios 9, 22-27. p. 2004 e nota correspondente, a. 173 Cf. Carmelo CURTI. “Eusébio de Cesaréia (Palestina)”. In: VV. AA. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo Di Berardino). Petrópolis / São Paulo:

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contudo, nos conduz a uma questão problemática que é a da veracidade dos fatos

por ele registrados – isto é, se considerarmos, o que não é coisa unânime, que

mais além, ou melhor, mais aquém, dos discursos dos historiadores há “algo de

irredutível, que, na falta de melhor, continuarei a chamar de realidade.”174

Sob muitos aspectos, Eusébio era um historiador consciencioso, um

homem atento aos seus tempos e às raízes dos eventos que aí se davam, dotado de

grande erudição e um extraordinário acervo de fontes que, eventualmente, não

chegaram até nós. Antes de ser um intelectual, entretanto, Eusébio era um

eclesiástico e um sobrevivente das disputas internas e das pressões externas contra

o movimento de Jesus, que acreditava que uma Igreja guardiã da doutrina de

Cristo pura e inteira tinha sido por Ele instituída desde o princípio, solidamente

estabelecida com o chamamento dos Doze e com a promessa de que “as portas do

Hades nunca prevalecerão contra ela.”175 Isso fica bastante evidente ao

considerarmos que o bispo de Cesaréia é incapaz de levar em consideração o

desenvolvimento teológico de sua própria fé, coisa que pareceu muito evidente

mesmo aos mais reverentes historiadores eclesiásticos da Contemporaneidade.176

As intencionalidades dos autores são fugidias aos seus leitores, mas, considerando

o artífice por sua peça, bem se pode afirmar que aquilo que o animou a escrever

uma obra dentro do gênero literário da historiografia era lançar mão deste para

demonstrar, mediante a apresentação de provas documentais transcritas e a

                                                                                                                                                                   Vozes / Paulus, 2002. p. 537. Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). ps. 143 e 145-149. 174 Pierre VIDAL-NAQUET. Carta a Michel de Certeau (1975). In: Luce GIARD (org.). Michel de Certau. Paris: s.e., 1987. pp. 71-72. Apud: Carlo GINZBURG. O fio e os rastros : Verdadeiro, falso e fictício. (Trad. Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp. 216-217 e nota correspondente, n. 20 ao cap. 11, p. 407. 175 BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 16, 18b. pp. 1733-1734. 176 Para Timothy Barnes este comprometimento de Eusébio de Cesaréia e a subseqüente limitação discursiva que ela lhe impõe incidem diretamente sobre a composição de sua História Eclesiástica, que, em grande parte devido a tanto, seria “menos uma narrativa coerente do que uma série de notas desconexas”. Timothy B. BARNES. Constantine and Eusebius. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1981. p. 132. Apud: John D. CROSSAN. O nascimento do cristianismo : O que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. (Trad. Barbara T. Lambert). São Paulo: Paulinas, 2004. (Col. “Repensar”). p. 503. Para exemplos relativamente piedosos da historiografia eclesiástica contemporânea, que reconhecem a evolução das idéias teológicas cristãs, mas rejeitam o relativismo que daí poderia decorrer, insistindo em uma solução de compromisso, ver: Félix Alexandre PASTOR. “Semântica do Mistério (Gênese e tipologia da linguagem da ortodoxia trinitária)”. In: Carlos PALÁCIO (org.). Cristianismo e História. São Paulo: Loyola, 1982. (Col. “Fé e Realidade”, n. 10). Bernard MOUNIER. O nascimento dos dogmas cristãos. (Trad. Odila A. de Queiroz). São Paulo: Loyola, 2005. pp. 131-132.

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construção lógica de nexos causais entre eventos que um observador

contemporâneo não-cristão poderia considerar absolutamente díspares, que a

Igreja que havia sobrevivido e – mais tarde – triunfado era justamente a que havia

logrado transmitir intacta por quase três séculos aquela Verdade que as

autoridades pagãs buscaram calar com a violência e que as heresias supostamente

tentaram deturpar. Procurar algo menos pastoso, que subsistiu factualmente ao

relato eusebiano, chegar a algum ponto no qual pudéssemos nos apoiar com uma

segurança um pouco maior para dissertar sobre o período que este tematiza

implicaria um cotejo sistemático entre o texto de Eusébio e outras séries

documentais que lhe antecederam e lhe eram contemporâneas, assim como algum

nível de diálogo mais ou menos aprofundado com as pesquisas arqueológicas,

antropológicas, filológicas e psicológicas que pudessem concorrer para o sucesso

– necessariamente efêmero – deste nosso esforço.177 Cremos que tal coisa é

possível, pois “(...) Ainda que não reduzamos a escrita da história a um somatório

de fatos, ainda que os saibamos selecionados pelo ponto de vista que presidiu sua

compreensão (...), a narrativa-do-que-houve já apanha a experiência no meio do

caminho.”178 Contudo, além de não dispormos de tempo ou espaço para fazê-lo,

simplesmente não se trata disto de nosso presente objetivo.

A História Eclesiástica do bispo de Cesaréia de fato se constitui em uma

reconstrução da realidade com fins ideológicos, como o são os quatro Evangelhos

canônicos – que não nos apresentam uma biografia de Jesus no sentido moderno,

ou greco-romano, do termo biografia179 – e, aliás, em alguma medida, todas as

narrativas sobre o passado de que temos conhecimento. Esta reconstrução da

realidade, contudo, não é apenas puro e simples documento ideológico, espécie de

símile hipertrofiado da publicidade: as pretensões de verdade da historiografia

remetem-nos às complexas discussões referentes aos problemas concretos ligados

à escolha e uso de certas fontes, às técnicas de pesquisa e aos pressupostos dos

historiadores – questões que não podemos deixar de ter em mente para considerar

                                                            177 Cf. C. GINZBURG. Op. cit. p. 327. 178 Luiz Costa LIMA. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 20. 179 Cf. Marilia Pacheco FIORILLO. O Deus exilado : Breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 164. John B. GABEL e Charles B. WHEELER. A Bíblia como literatura : Uma introdução. (Trad. Adail U. Sobral e Mana S. Gonçalves; apres. e anexos à ed. bras. Johan Konings). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2003. p. 169.

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em todas as suas implicações a afirmação de que “a história se enraíza na

sociedade onde vive o historiador.”180 Como escreveu Carlo Ginzburg, se

referindo às posições teórico-práxicas defendidas por Arnaldo Momigliano,

“princípio de realidade e ideologia, controle filológico e projeção do passado dos

problemas do presente se entrelaçam, condicionando-se reciprocamente todos os

momentos do trabalho historiográfico – da identificação do objeto à seleção dos

documentos, aos métodos de pesquisa, aos critérios de prova, à apresentação

literária.”181 Para que possamos prosseguir em bom termo, contudo, nos

atenhamos apenas ao fato de que o registro feito por Eusébio representava uma ala

da Igreja que havia crescido em popularidade, estabelecido uma sólida tradição

quanto a seus textos e personagens fundadores, consolidado uma forma

hierárquica e eficaz de administração (o episcopado monárquico) e se tornado

hegemônica nos principais centros de poder do Império Romano, com o qual, nos

tempos do historiador de Cesaréia, e também por sua ação, viria a aliar-se. Este

extraordinário homem de letras recolhe e elabora em sua narrativa uma

determinada memória eclesial, e a memória nunca é inocente: ela “transmuta a

experiência, destila o passado em vez de simplesmente refleti-lo”.182 Sob este

ponto de vista, a História Eclesiástica é também um dos palácios imaginativos

sobre os quais o jesuíta Matteo Ricci falou aos seus cultos interlocutores chineses

na última década do século XVI: um arranjo mais ou menos arbitrário de

lembranças e conhecimentos distribuídos de tal maneira que façam sentido, que

componham uma unidade significativa que seja eficaz, ou seja, dentro da qual

milhares de experiências e conceitos pessoalmente vivenciados ou

comunitariamente partilhados possam repousar tranquilamente até que sejam

                                                            180 Fernand BRAUDEL. Escritos sobre a História. (Trad. Jacob Guinsburg e Tereza C. S. da Motta; rev. Angélica D. Pretel e Vera Lúcia B. Bolognani). São Paulo: Perspectiva, 1978. (Col. “Debates”, Seção “História”; dir. Jacob Guinsburg). p. 9. 181 C. GINZBURG. Op. cit. p. 38. O grifo é do autor. 182 David LOWENTHAL. The past is a foreign country. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1985. (Tradução para o português na Revista Projeto História, n. 17 – dossiê “Trabalhos da Memória”, São Paulo, PUC-SP, Programa de Pós-Graduação em História, novembro de 1998). p. 64.

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trazidos à superfície do pensamento, singulares ou em séries de conteúdos

encadeados, por um ato de vontade.183

Ainda a respeito desta questão, deve-se considerar também que, em si

mesmos, os mais antigos textos cristãos, tanto intra como extracanônicos, contém

ao mesmo tempo as sementes ou os pressupostos do desenvolvimento posterior da

ortodoxia e da heresia.184 Do ponto de análise histórico-crítica, portanto, não se

trata de uma questão de fundamentos teologicamente legítimos ou não, mas da

maneira como os diversos grupos de fiéis os assumiram ou rejeitaram, e como

estas comunidades de crentes se desenvolveram, em relação umas com as outras e

com o restante das visões de mundo que compunham o mosaico cultural no qual

se situavam. Colocando a questão de outra maneira, é fato que se os

carpocracianos, os bardesanitas, os ofitas, os marcionitas, os tomesinos, os

montanistas, ou qualquer outro dentre os inumeráveis grupos (supostamente)

desviantes que o cristianismo de Eusébio havia se defrontado em sua ainda breve

existência tivesse triunfado no lugar deste, nossa compreensão acerca da vida e

missão de Jesus Cristo e dos fundamentos, organização e função da religião cristã

iria ser radicalmente diferente da que hoje podemos ter. Muito diversa seria

mesmo a nossa matriz cultural, realizações intelectuais e forma de conceber a

realidade: Dante, por exemplo, poderia não ter descrito infernos, purgatórios e

céus como estabelecimentos onde são conferidas as punições e recompensas

correspondentes aos erros ou acertos dos seres humanos, mas cantado a virtude da

epinoia, a glória da divindade andrógina, os éons e as esferas celestes dos

gnósticos.185

                                                            183 Cf. Jonathan SPENCE. O Palácio da Memória de Matteo Ricci : A história de uma viagem: Da Europa da Contra-Reforma à China da Dinastia Ming. (Trad. Denise Bottmann). São Paulo: Companhia das Letras, 1986. pp. 19-23. 184 Cf. Helmut KOESTER. Ancient christian gospels : Their history and development. Londres (ING) / Filadélfia (EUA): SCM Press / Trinity Press International, 1990. p. XXX. Apud: J. D. CROSSAN. Op. cit. p.150. 185 Henry CHADWICK e G. R. EVANS. Igreja Cristã. (Trad. port. Calos Noué e Francisco Manhães; rev. Carlos Noué e Meritxell Almarza). Barcelona: Folio, 2007. (Col. “Grandes civilizações do passado”). p. 12. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 55. Jorge Luis BORGES. “Una vindicación del falso Basílides”. In: Ficcionario. Una antologia de sus textos. (Ed., introd., pról. e notas de Emir Rodríguez Monegal). Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1985. Para o próprio Eusébio de Cesaréia, é escusado destacar, tal possibilidade seria considerada ímpia nela mesmo, já que parecia se apresentar a seu juízo de modo muito claro de onde provinha tal constrangedora diversidade de cristianismos com a qual o seu próprio teve de se haver. Mais adiante mencionaremos novamente tal coisa, mas, por hora, destaque-se que ele bem o demonstra

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Como detentor de um lugar institucional de relevo considerável no interior

desta vertente cristã que incidentalmente veio a triunfar de algum modo sobre as

demais, o autor da História Eclesiástica buscou mostrar que a Igreja à qual

pertencia havia sido a pioneira e a principal corrente desta crença, na organização

quanto na fé, e, enquanto Corpo Místico de Cristo, mesmo no que remontava aos

tempos anteriores à existência histórica de Jesus de Nazaré.186 Esta convicção –

sobre a qual se baseou uma relevante parte da historiografia eclesiástica católica e

protestante até a contemporaneidade – foi recentemente contradita por nossas

descobertas arqueológicas e pelas mais recentes pesquisas históricas sobre os

primórdios do cristianismo. Em um lúcido trecho, composto a mais de trinta anos

atrás, Paul Johnson afirmou que

“(...) O cristianismo começou em meio à confusão, à controvérsia e ao cisma e assim prosseguiu. Uma Igreja ortodoxa dominante, com uma estrutura eclesiástica reconhecida, só emergiria muito gradualmente, representando um processo de seleção natural – uma sobrevivência espiritual do mais apto. (...) Jesus havia gerado certas idéias e matizes que se propagaram rapidamente por uma vasta área geográfica. Seus seguidores dividiram-se, desde o princípio, em elementos de fé e de prática. E, quanto mais os missionários afastavam-se da base, maior a probabilidade de seus ensinamentos entrarem em divergência. (...) Isso visto, era inevitável que a Igreja se expandisse não como um movimento uniforme, mas como um conjunto de heterodoxias. Ou, talvez, ‘heterodoxias’ seja a palavra errada, já que dá a entender que havia uma versão ortodoxa. (...) Desde o início, pois, houve inúmeras variedades de cristianismo, com pouco em comum (...). Cada Igreja tinha sua própria ‘história de Jesus’, e todas haviam sido fundadas por um membro do bando original que, passara a tocha adiante para um sucessor designado, e assim por diante.”187

                                                                                                                                                                   no início do sétimo capítulo do quarto Livro de sua História Eclesiástica: “(...) As igrejas de todo mundo já resplandeciam como astros brilhantíssimos, e a fé em nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo chegava a seu pleno vigor em todo o gênero humano, quando o demônio, avesso ao bem assim como inimigo da verdade e sempre hostil, demasiadamente, à salvação dos homens, voltou contra a Igreja todas as suas artimanhas. Se em outro tempo suas armas eram as perseguições contra ela, que vinham de fora, agora, em troca, sendo-lhe vedados estes meios e lançando mão de homens malvados e feiticeiros como de funestos instrumentos e ministros da perdição das almas, levam [sic] a cabo sua campanha por outros caminhos. Imaginam [sic] todos os recursos, como o de que feiticeiros e embusteiros que se deslizem sob o próprio nome de nossa doutrina, para assim conduzir ao abismo da perdição os fiéis que conseguem capturar, e aos que não conhecem a fé, com os meios que põe em prática, afastar do caminho que leva à doutrina salvadora.” EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IV : 7, 1-2. p. 120. O grifo é nosso. 186 Id. Op. cit. Livro I : 3 e 4. pp. 21-27. 187 Paul JOHNSON. História do cristianismo. (Trad. Cristina de Assis Serra). Rio de Janeiro: Imago, 2001. pp. 58-59. Sobre a importância destas diversas histórias de Jesus, cuja composição e uso estavam direta e intrinsecamente vinculados à vida de comunidades religiosas concretas, situadas no tempo e no espaço, enredadas em sistemas culturais e relações de poder internas e externas (não se tratando, portanto, de textos emanados de – ou referentes a – uma Igreja

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A História Eclesiástica, portanto, não é apenas um registro de fatos, mas

também uma narrativa que – dando realce a certas conexões entre uns, enquanto

isola ou mesmo ignora outros – projeta no passado as convicções do autor,

dispondo-o e retratando-o de acordo com o seu próprio olhar. Colocando a

questão em outros termos, pode-se afirmar que ela é simultaneamente testemunho

e projeto. Como qualquer outro discurso humano, a narrativa do conjunto de

processos e eventos que forma a História é culturalmente ordenada de diferentes

modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das

coisas que lhe são próprios.188 Ao mesmo tempo, por outro lado, é baseado neste

arranjo particular que os indivíduos organizam seus projetos e dão sentido aos

objetos e elementos conjunturais com os quais se deparam.189 Não se trata de um

expediente maquiavélico de deturpação da verdade com vistas a interesses

egoístas, nem de uma articulada conspiração para falsear os acontecimentos em

favor de um determinado grupo, hipótese inverossímil por seu corolário

psicológico, que não pode por nós verificado. Se não se tratasse de “um mentiroso

político consciente de suas metas, que mentia no interesse de uma pretensão à

                                                                                                                                                                   arquetípica), considere-se a afirmação do teólogo espanhol Alfredo Fierro de que “(...) mediante a interpretação política, o Evangelho reveste-se de beligerância social.” Alfredo FIERRO. O Evangelho beligerante : Introdução e crítica às teologias políticas. (Trad. Álvaro Cunha). São Paulo: Paulinas, 1992. (Col. “Libertação e teologia”, n. 8). p. 6. 188 Este ordenamento implica necessariamente em exclusões conscientes ou não: ao contrário da opinião de Mallarmé de que “o mundo existe para chegar a um livro”, a História, se entendida como a soma de todas as infindáveis memórias fragmentadas e distorcidas sobre todos os eventos e de todas as possíveis análises acerca de seus resquícios materiais, é simplesmente difícil ou inviável de ser formulada em qualquer forma de discurso: a realidade simplesmente não caberia na linguagem. Uma obra publicada nos anos de 1980 sobre a Guerra Civil Americana é composta de quatro grossos volumes, compreendendo quase 2.000 páginas; apenas com o auxílio de uma prodigiosa imaginação chegaríamos a conceber qual seria a extensão de um tratado que se dispusesse a cobrir com a mesma extensão de detalhes – ou com ainda mais profundidade – o surgimento do movimento de Jesus, as vidas de seus fundadores e primeiros propagadores e o seu desenvolvimento histórico nos seus três ou quatro primeiros séculos! Mesmo se postulássemos um hipotético cronista onisciente e imparcial, se não admitirmos que toda obra historiográfica é altamente seletiva, eventualmente forçada a resolver questões complexas de modo simplista e a lidar em uma única frase ou desprezar personagens de relevo e dezenas ou centenas de anos, acabaríamos chegando em uma defesa, semelhante à feita por G. K. Chesterton, da alegoria como única forma privilegiada de representação da realidade – acompanhada, talvez, pela arquitetura e pela música. Segundo a zombeteira afirmação deste autor britânico, “(...) O homem sabe que há na alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimos que as cores de uma floresta outonal. Crê, no entanto, que esses matizes, em todas as suas fusões e conversões, são representáveis com precisão por um mecanismo arbitrário de grunhidos e chiados. Crê que de dentro de um corretor da bolsa possam realmente sair ruídos capazes de exprimir todos os mistérios da memória e todas as agonias do desejo.” Cf. J. L. BORGES. Op. cit. ps. 131 e 178-179. C. GINZBURG. Op. cit. p. 228. J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 51. 189 Cf. Marshall SAHLINS. Ilhas de História. (Trad. Barbara Sette; rev. téc. Márcio B. de M. Leite). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 7.

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autoridade absoluta”190, Eusébio de Cesaréia “(...) Tinha de escrever exatamente

aquilo que lhe fosse exigido por sua fé [e] (...) Sua atividade devia limitar-se a

redigir de maneira efetiva a tradição devota [de seu partido].”191 Um homem culto

e convicto, o autor da História Eclesiástica articula o estabelecimento da sua

crença cristã com os instrumentos discursivos que lhe estavam disponíveis, em

resposta a situações bastante concretas – as acusações dos não-cristãos, as

ameaças de dissensão, o exemplo incômodo de cristianismos outros – e, ao fazê-

lo, modifica os contornos e efetividade de suas próprias ferramentas e apresenta

uma imagem da história que lhe parece bastante adequada à luz daquilo que

considera genuíno; lembremo-nos que “(...) Para os que as têm, as crenças

religiosas não são indutivas, mas paradigmáticas; o mundo (...) não fornece

evidências de sua verdade, mas ilustrações dessa verdade.”192

Conforme já fizemos menção anteriormente, considerar o trecho de

Eusébio de Cesaréia que acima citamos para saber o que aconteceu aos cristãos

sob o governo de Maximino quando da promulgação por Maximiano, Constantino

e Licínio de um Edito que dispunha que eles podiam se declarar sem represálias

como tais e reparar os edifícios em que se reuniam193 nos exigiria ir muito mais

fundo do que nossa atual competência nos permite, enveredando por uma erudita

busca de outras fontes documentais referentes ao mesmo evento, a serem

integradas em uma análise mais ampla acerca da verossimilhança e pertinência

deste. Fazer algo diferente disto seria lançar-se a uma “história da historiografia

sem historiografia”194, que admite um separação nítida entre a narrativa histórica e

o trabalho de pesquisa em que ela se baseia.195 Tal dissonância nos parece, mais

do que incoerente, esquizofrênica, mas a sua consideração apenas para fins

analíticos pode conduzir ela mesma a um procedimento de pesquisa e à uma

narrativa historiográfica interessante. Neste sentido, poderíamos assumi-la apenas                                                             190Erich AUERBACH. Mimesis : A representação da realidade na literatura ocidental. (Trad. Jacob Guinsburg). (5ª ed.). São Paulo: Perspectiva, 2004. (Col. “Estudos”, Seção “Crítica”, n. 2; dir. Jacob Guinsburg). p. 11. 191 Id. Op. cit. p. cit. 192 Cf. Clifford GEERTZ. Observando o Islã : o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. (Trad. de Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. (Coleção “Antropologia Social”: dir. Gilberto Velho). p. 106. 193 Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VIII : 17, 9. p. 295. 194 C. GINZBURG. Op. cit. p. 43 e nota correspondente, n. 5 ao cap. 2, p. 350. 195 Cf. Id. Op. cit. p. cit.

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na qualidade de construto intelectual explicativo – como são, por exemplo, os tão

esclarecedores modelos ideais tecidos pela sociologia weberiana. Em apoio a este

artifício, consideremos que

“(...) Tem gente que imagina de boa-fé que um documento pode ser uma expressão da realidade (...). Como se um documento pudesse exprimir algo diferente de si mesmo (...). Um documento é um fato. A batalha, um outro fato (uma infinidade de fatos). Os dois não podem fazer um. (...) O homem que age é um fato. E o homem que conta é outro fato. (...) Todo depoimento dá testemunho apenas de si mesmo, do seu momento, da sua origem, do seu fim, e de nada mais.”196

Estabelecida a nossa concordância com tal afirmação, outro passa a ser o

foco de nossas considerações. Nosso suporte empírico continua a ser a História

Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, mas o que aí buscamos não são dados

factuais, mas uma imagem da realidade: não como se deu, por exemplo, a

invenção e o desenvolvimento das idéias de Taciano ou Bardesanes, o Sírio197,

mas como o ilustre bispo historiador as apreende e narra. A teia de significações

que sustenta este retrato do mundo, “(...) o que os antropólogos chamam de

‘estrutura’ – as relações simbólicas da ordem cultural – é [em si mesma] um

objeto histórico”198, no caso, o que é de nosso presente interesse.

                                                            196 Renato SERRA. “Partenza di un gruppo di soldati per la Libia”. In: Scritti letterari, morali e politici. (Org. M. Isnenghi). Turim: s.e., 1974. p. 286. Apud: C. GINZBURG. Op. cit. p. 229 e nota correspondente, n. 63 ao cap. 11, p. 411. 197 Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IV : 29 e 30. pp. 146-147. 198 M. SAHLINS. Op. cit. pp. 7-8.

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76  

II.

“(...) todos nós começamos com o equipamento natural para viver milhares de espécies de vida, mas terminamos por viver apenas uma”.

CLIFFORD GEERTZ, “O impacto do Conceito de Cultura sobre o Conceito de Homem”

“Gostei daquela sua idéia de que ‘os livros levam uma pessoa dentro, o autor.’ Agradeci-lhe ter me compreendido.”

JOSÉ SARAMAGO, Cadernos de Lanzarote

Do autor da História Eclesiástica, o Monsenhor L. Duchesne assim

escreveu na introdução de sua Histoire ancienne de l’Église:

“(...) Nos tempos da perseguição de Diocleciano, enquanto igrejas eram destruídas, os livros sagrados queimados, os cristãos proscritos ou forçados à apostasia, um dentre eles trabalhava tranqüilamente, e dentro de seu escritório compilava a primeira história do cristianismo. Não se tratava de um espírito superior, ou mesmo especialmente dotado. Era, entretanto, um homem paciente, trabalhador, cônscio. Depois de se passarem longos anos, ele se parecia com os documentos que consultou e meditou para compor aquele livro. Com êxito, ele salvou do naufrágio e colocou todos eles em sua obra. Foi assim que Eusébio de Cesaréia tornar-se-ia o pai da historiografia eclesiástica.”199

Com efeito, é um epíteto bem merecido este que se atribuiu a Eusébio. O

grande especialista italiano em história da historiografia antiga Arnaldo

Momigliano chamou a atenção para o fato de que sua incursão pela escrita da

História abriu um novo período na história da historiografia, e ressaltou que é

duvidoso que algum outro historiógrafo tenha tido um impacto tão direto quanto

duradouro sobre as gerações de outros historiógrafos que o sucederam, autores

que quase sempre o usaram de forma explícita como fonte e modelo. Sua História

Eclesiástica estabeleceu os elementos essenciais e as regras de composição da

imensa maioria das narrativas de dimensões históricas feitas pelos cristãos – e

contra os cristãos – sobre o cristianismo no Ocidente e no Oriente: “a inter-relação

contínua entre dogma e fato; o significado transcendental atribuído ao período das

origens; a ênfase na documentação factual; a necessidade sempre presente de

                                                            199 Citado em: Celso TAVEIRA. O modelo político da autocracia bizantina : Fundamentos Ideológicos e Significado Histórico. 2002. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo (BR). p.189.

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77  

relacionar os acontecimentos das Igrejas locais ao corpo místico da Igreja

Universal.”200

Quase dezessete séculos depois de ter entregue aos seus pares a versão

definitiva de sua mais insigne obra, muito do que está consignado em seus

caracteres continua a ressoar no interior da vida de uma significativa parte de seus

correligionários póstumos. No dia 6 de janeiro de 1970 o secretariado vaticano

para a educação católica publicou o “Regulamento fundamental de formação

sacerdotal”, que, versando sobre as disciplinas teológicas, afirmou na sua

disposição de n.o 79 que “(... ) A história eclesiástica deve ilustrar a origem e o

desenvolvimento da Igreja como povo de Deus que se difunde no tempo e no

espaço, examinando cientificamente as fontes históricas. (...) será preciso ressaltar

o admirável encontro da ação divina e da ação humana, e favorecer nos alunos o

genuíno sentido da Igreja e da tradição.”201 Trata-se de um programa de estudos

nitidamente eusebiano. Há um pouco mais de dois anos, o Papa Bento XVI

apresentou em sua audiência semanal aos peregrinos reunidos uma breve

catequese sobre Eusébio de Cesaréia, “o primeiro a escrever uma história da

Igreja, que segue sendo fundamental”202. Deste antigo escritor eclesiástico,

destacou a “intenção moral”, o fato de que “sua análise da história nunca é um fim

em si mesmo; [já que] não só busca conhecer o passado, mas aponta com decisão

à conversão, e a um autêntico testemunho de vida cristã por parte dos fiéis. É um

guia para nós mesmos.”203 São apenas duas ilustrações, e poder-se-ia referir outras

mais, não só em âmbito católico romano, mas também ortodoxo oriental,

reformado e mesmo pentecostal. Neste sentido, o bispo de Cesaréia ainda

continua a se fazer presente de alguma maneira no mundo contemporâneo.

Tal circunstância, entretanto, é apenas um lado do perfil histórico de

Eusébio. Trata-se de um autor complexo, e, de acordo com a feliz afirmação de

Gustave Bardy, seu comentador e tradutor para o francês, uma “personalidade

                                                            200 Arnaldo MOMIGLIANO. As raízes clássicas da historiografia moderna. (Trad. Maria Beatriz B. Florenzano). Bauru: EDUSC, 2004. p. 194. 201 Citado em: Marcel CHAPPIN. Introdução à história da Igreja. (Trad. Pier Luigi Cabra). São Paulo: Loyola, 1999. (Col. “Introdução às Disciplinas Teológicas”, n. 14; org. Rino Fisichell). p. 16. 202 PAPA BENTO XVI. Intervenção na audiência geral de 13 de junho de 2007. In: Informativo Zenit. O mundo visto de Roma. Cidade do Vaticano, 13 de junho de 2007. (Consultado em: http://www.zenit.org/article-15326?l=portuguese, em 14 de setembro de 2009, às 18:00Hs). p. 1. 203 Id. Op. cit. p. 2.

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litigiosa”204, que da mesma forma que Constantino, o mais destacado personagem

de uma considerável parte de seus escritos, tem sido objeto das mais sérias e

apaixonadas discussões nos últimos mil seiscentos e tantos anos. Dos últimos dias

de sua vida até meados do século VI, a maior parte dos bispos orientais teve sérias

dúvidas quanto à autenticidade e firmeza de sua confissão de fé, tanto por ter

saído ileso durante as perseguições dos anos 303-313 quanto por sua postura

ambígua durante e depois do Concílio de Nicéia, quando foi de uma indecisão

bastante peculiar à tentativa de forçar o estabelecimento de alguma posição

intermediária entre partidos consubstancialista e os ariano. Foi publicamente

acusado de ser um apóstata por ninguém menos que Atanásio de Alexandria, que

colocou em questão no Concílio de Tiro (335) como pôde Eusébio ter escapado

ileso do pior período da perseguição romana sendo então ele assumidamente já

cristão, vivendo na mesma Cesaréia onde ocorreram tantos martírios e

possivelmente tendo sido preso junto com seu mestre, amigo e colaborador

Pânfilo, executado em 310.205 Mais moderado, o intelectual Patriarca Fócio de

Constantinopla reconheceu no século IX a grande erudição e a preeminência de

Eusébio de Cesaréia sobre todos os outros estudiosos da história e literatura cristã

antiga, ainda que tenha definido seu estilo como impreciso, não agradável nem

brilhante. Curiosamente e através de vias ainda não muito claras, esta querela de

cunho disciplinar e dogmático ressoou na historiografia moderna e contemporânea

sobre a Antigüidade Cristã bem mais profundamente do que um avaliador mais

ingênuo poderia imaginar. De um modo geral, pode-se neste âmbito dispor de um

lado os autores que acusaram Eusébio de Cesaréia de interesseiro irenismo,

apostasia, bajulação, servilismo e falsidade, e do outro os que se esforçaram para,

à título de buscar compreendê-lo adequadamente, justificá-lo ou desculpá-lo,

fazendo, além de um autor seminal, um herói ou santo.206

De 1588 a 1607, Cesar Baronius produziu os doze volumes dos Annales

eclesiastici, e nesta densa obra, dedicada em suas partes, alternadamente, a papas

e príncipes laicos, fez um elogio da harmônica união entre o temporal e o

espiritual de acordo com os cânones do gênero historiográfico. Bem recebida

tanto na Europa católica quanto no Oriente ortodoxo, esta obra valorizou                                                             204 Citado em: C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit. 205 Cf. Id. Op. cit. pp. 189-190. C. CURTI. Op. cit. p. cit. 206 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit.

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Constantino como símbolo de ideal colaboração entre as autoridades civis e

eclesiásticas e, com isto, elevou Eusébio de Cesaréia, seu biógrafo, ao nível de um

profeta ou confessor da fé. Entre os protestantes, através da crítica moral do

“Cristianismo político”, desenvolveu-se a concepção oposta, o que implicou uma

sorte bastante distinta para o autor da História Eclesiástica. Johann Christian

Hesse trouxe à público em Jena no ano de 1713 um seu trabalho com o título de

Dissertatio historico-pragmatica, qua Constantinum Magnum ex rationibus

politicis christianum e o subtítulo de De discrimine christianismi veri et politici,

onde apresentava Constantino como um personagem negativo tanto para o

Império Romano quanto para a fé cristã. Este autor holandês retratou tal soberano

como um homem inescrupuloso que escolheu o cristianismo para submetê-lo aos

seus interesses políticos, e considerou Eusébio de Cesaréia, na melhor das

hipóteses, como um deslumbrado que mentia mais por auto-engano do que por

qualquer outra coisa. No século XIX, o Die Zeit Constantins des Grossen (Bâle,

1853) de Jacob Burckhardt aprofundou este juízo, e apresentou aos seus leitores o

quadro psicológico de um Constantino inescrupuloso e o autor da História

Eclesiástica como um incoerente e traidor da verdade.207 Para este historiador,

estava claro que

“(...) Eusébio não é (...) um fanático; ele conhecia a alma profana de Constantino e bem seu frio e terrível despotismo; mas ele é o primeiro historiador realmente desonesto da Antigüidade. Sua tática, que tinha um sucesso glamuroso para aquela época e para toda a Idade Média, consistia em tornar, a qualquer preço, o primeiro grande protetor da igreja um ideal para futuros príncipes. Com isso, se perdeu para nós a imagem de um grande homem genial que nada sabia sobre incerteza moral na política e via a questão religiosa somente pelo lado da utilidade política.”208

Tal juízo teria um efeito duradouro. Contra o pano de fundo da ascensão

do nazismo e do stalinismo, Erik Peterson, teólogo da Faculdade de Bonn

convertido ao catolicismo romano, no âmbito do projeto de desvincular o

cristianismo da reflexão da “mais duvidosa de todas as ciências, as chamadas

Ciências Humanas”209, considerou Eusébio de Cesaréia como uma espécie de

                                                            207 Id. Op. cit. pp. 294-295. 208 Citado em: SCHMITT. Teologia política. (Trad. Elisabeth Antoniuk; coord. e superv. Luiz Moreira). Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 109. 209 Id. Op. cit. p. 73.

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Goebbels, um “perigoso ideólogo” que tentou formular uma continuidade entre o

poder divino e o poder imperial como resposta política aos riscos de

fracionamento deste. Tal autor o caracterizou como sendo “um cabeleireiro da

peruca teológica do imperador”210 Constantino, expressão originalmente cunhada

em 1919 por Overbeck, prócer da Faculdade Teológica de Basel, para atacar

Adolf von Harnack, famoso professor da Universidade de Berlim e Teólogo Real

Prussiano do Kaiser Wilhelm. Peterson opôs a distinção agostiniana das duas

cidades ao elogio eusebiano do Império, associando-os, respectivamente, ao

trinitarismo consubstancialista e ao arianismo; as revistas católicas Graal e

Schweizer Annalen não tardaram a opor ele mesmo a Carl Schmitt, tido como

figura ou tipo de Eusébio e responsável por elaborar uma teologia conformista que

fizesse convergir cristianismo e totalitarismo.211 Para o próprio Carl Schmitt, o

mais relevante sobre o panegirista de Constantino é que ele era “(...) Um bispo da

igreja cristã (...) amante da paz e da ordem”212, características estruturantes de seu

pensamento e bastante evidentes em sua crítica aos extremismos e elogio da

autoridade imperial.

O padre católico Martin Jugie em seu Le Schisme byzantin (Paris, 1941),

um tratado histórico de beligerância nitidamente apologética, apresentou o bispo

de Cesaréia como o grande teórico do cesaropapismo – que segundo o autor

francês “é César, é o Estado civil substituindo o papa no governo supremo da

Igreja, é o Estado totalitário se arrogando o poder absoluto sobre o sagrado e a o

profano, um mal que encontra raízes no passado pagão e que encontrou sobretudo

no Oriente, desde o século IV e com Constantino, seu terreno de eleição.”213 À

Eusébio, portanto, atribuiu a formulação dos princípios especificamente religiosos

que viriam a produzir “a nacionalização da Igreja, a submissão do clero e a

hostilidade, surda ou declarada, à autoridade do papa.”214 No capítulo intitulado

“Constantino e Eusébio”, o último do segundo volume (“Die Christliche

Revolution”) de sua Politische Metaphysik (1959), o pensador Arnold A. T.

Ehrhardt esforçou-se para reabilitar o bispo de Cesaréia, apartando o seu

                                                            210 Ibid. Op. cit. p. 72. 211 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 295-296. C. SCHMITT. Op. cit. ps. 70 e 72. 212 Id. Op. cit. p. 75. 213 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 298. 214 Id. Op. cit. p. cit.

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pensamento político-teológico de um bizantinismo sem caráter, e descrevendo-o

como sincero narrador de tempos tão extraordinários que de fato podiam ser

considerados como sendo substancialmente diversos dos que os precederam.

Trata-se de algo notável, já que este autor alemão foi na referida obra

especialmente crítico com o que identificou como sendo o caráter cesáreo-papal

dos governos de Justiniano e Teodora, de Carlos Magno e dos Otões. Dialogando

com tal escrito, seu homônimo Arnold Gehlen, antropólogo das ciências naturais,

filósofo e sociólogo, retomou a severa opinião de Burckhardt sobre Eusébio,

desdobrando-a até as vias da ofensa pessoal em seu tratado Moral e Hypermoral :

Eine pluralistiche Ethik, de 1969.215

Também na maior parte dos autores que consultamos diretamente para a

composição deste trabalho ecoa esta controvérsia milenar. Não há neles uma única

descrição sobre o autor da História Eclesiástica que não implique um explícito e

necessário posicionamento sobre o seu caráter e / ou afiliações teológicas. No

clássico manual de Patrologia de Berthold Altaner e Alfred Stuiber, cuja primeira

edição é de 1931 e baseia-se em grande parte no trabalho de G. Rauschen

publicado em 1903, consta que “(...) Embora não fosse grande teólogo, Eusébio

era notável historiador”216, e que ele “(...) encara a história universal e eclesiástica

com otimismo de cortesão; como bispo político, apoiado pelo Estado e

devotíssimo ao imperador, desenvolve o ideal de um império e estado cristãos que

repercutirá vigorosamente e por longo tempo, mesmo no Ocidente.”217 O insigne

estudioso da Antigüidade Cristã Jacques Liébaert afirmou de um só fôlego que

não há como não nos mostrarmos gratos a Eusébio por seu trabalho

historiográfico e também que, posta fora de dúvida suas convicções cristãs, ainda

assim sua teologia é discutível.218 Em outra parte de sua obra introdutória

intitulada Os Padres da Igreja, ao principiar um perfil bio-bibliográfico de

Atanásio de Alexandria, compara este genioso prelado ao moderado palestino:

“Atanásio não teve a ciência de um Eusébio de Cesaréia (...) porém, em contato

                                                            215 Cf. C. SCHMITT. Op. cit. pp. 109-110. 216 Alfred STUIBER e Berthold ALTANER. Patrologia : Vida, Obras e Doutrina dos Padres da Igreja. (Trad. Monjas Beneditinas). (2ª ed.). São Paulo: Paulinas, 1988. (Col. “Patrologia”, n. 3). p. 223. 217 Id. Op. cit. p. cit. 218 Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). ps. 149 e 153.

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com ele, pode-se medir a insuficiência da teologia, pura e simples, de Eusébio!”219

Não se trata de contraste novo: ainda no século XIX, no mesmo ano da publicação

do Die Zeit Constantins des Grossen de Burckhardt, o grande publicista político

Joseph Görres a havia elaborado dentro de uma série de discursos e panfletos

compostos por ocasião de uma disputa entre o clero luterano e o Estado da

Prússia.220 O piedoso jornalista e literato Georges Suffert descreveu Eusébio como

um personagem um tanto quanto escorregadio, mas fundamentalmente bem-

intencionado, que nas desgastantes disputas teológicas do século IV era o porta-

voz daqueles indecisos que “gostariam de reconciliar todo mundo.”221 Marilia

Fiorillo, que bradou em seu O Deus exilado : Breve história de uma heresia

contra Irineu de Lyon e Tertuliano de Cartago, parece aprovar o tom moderado e

douto do bispo de Cesaréia, e ao comentar o seu relativo silêncio sobre os

primórdios do cristianismo em Alexandria afirmou que “(...) Seu silêncio só pode

ser creditado à prudência: Eusébio, que era honesto, preferiu calar à fazer

contrapropaganda.”222 No verbete sobre Eusébio de Cesaréia do Dicionário

Patrístico e de Antigüidades Cristãs organizado por Angelo Di Berardino e

publicado em 1983 pela editora italiana Marietti, o historiador e teólogo da

Universidade de Catânia Carmelo Curti escreveu que a doutrina deste prelado do

século IV “é tão profunda que se pode compará-la à de Orígenes (...) [ainda que

permaneça ele] inferior ao grande alexandrino como pensador e como escritor.”223

Destaca ainda este autor que

“(...) Os modernos encontraram em seus escritos imprecisões e defeitos de várias naturezas. Mas um juízo cauteloso sobre sua atividade não pode deixar de reconhecer que, sem suas pesquisas, bem pouco saberíamos dos primeiros séculos da cristandade. Justamente de suas obras históricas se constitui a melhor parte de sua produção e a estas está ligada sobretudo sua fama imperecível.”224

                                                            219 Id. Op. cit. p. 163. 220 Cf. C. SCHMITT. Op. cit. p. 112. 221 Georges SUFFERT. Tu és Pedro : Santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A história dos primeiros 20 séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Trad. Adalgisa Campos). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 74. 222 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 193. 223 C. CURTI. Op. cit. p. cit. 224 Id. Op. cit. p. cit.

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Além de sua imediata associação com o Imperador Constantino e as

ambigüidades características deste personagem, a discussão sobre a sinceridade, o

caráter, o legado e o significado histórico de Eusébio de Cesaréia e suas obras

certamente também está relacionada com a escassez de documentos a ele

contemporâneos de que dispomos para tratar de sua vida. Tal circunstância não

deixa de ser uma grande ironia, já que conhecemos relativamente pouco Eusébio

não obstante conhecer muito bem a sua produção intelectual, cuja maior parte foi

preservada, por seus amigos e inimigos, através de numerosas edições, paráfrases,

refutações e abundantes citações. Há notícias de que existiu na Antigüidade uma

Vida de Eusébio, Bispo de Cesaréia, redigida por Acacio, seu sucessor nesta Sé e

sincero admirador, logo depois da morte do distinto historiador; tanto a História

Eclesiástica composta por Sócrates, quanto a composta por Sozômeno, dois

continuadores declarados do trabalho de Eusébio, nos informam disto. Tudo

indica que o modelo e principal fonte utilizada por Acacio para este escrito foi a

Vida de Constantino composta pelo próprio Eusébio ou sob a autoridade de seu

nome, à qual somou alguns documentos pessoais preservados em sua biblioteca e

arquivo assim como suas próprias memórias do douto prelado. Jerônimo, que

tinha um conhecimento bastante completo e profundo das obras de Eusébio de

Cesaréia, e apesar de citá-lo profundamente e até de copiá-lo sem escrúpulos em

não poucas matérias, transmitiu-nos referências demasiado escassas sobre a sua

vida; do mesmo modo, aliás, que Rufino, seu tradutor para o latim e comentador,

certamente o grande responsável pela transmissão de legado de Eusébio ao

Ocidente. Algumas outras dispersas informações podem ser recolhidas em

fragmentárias passagens das cartas de Alexandre de Alexandria e em alguns

volumes compostos por seu sucessor Atanásio, por Eusébio de Emesa e por

Eusébio de Nicomédia, assim como nas obras historiográficas dos já mencionados

Sócrates e Sozômeno, e também nas de Teodoreto, Filostorgo e Gelásico de

Cícico. Restam-nos também as indicações das atas dos sínodos e concílios dos

quais participou, uma memória anônima que registra uma discussão sobre o seu

caráter e ortodoxia travada no Segundo Concílio de Nicéia, as páginas a ele

dedicadas no Antirrhetica do Patriarca Nicéforo de I de Constantinopla, as

disposições dos burocratas de Justiniano I sobre a necessidade de se

providenciarem cópias de alguns de seus textos, e todo o pouco de dados pessoais

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que podemos recolher – na maior parte das vezes por mera inferência – em seus

próprios trabalhos.225

Para a nossa grande infelicidade, é realmente muito pouco o que podemos

obter de informações biográficas em suas obras, ainda que Eusébio tenha tido

alguns costumes que favoreçam bastante tais investigações – por exemplo, o de

fazer preparar novas edições por ele mesmo corrigidas de seus escritos e o de

escrever numerosos prólogos e dedicatórias. Isto nos permite tanto perceber pela

comparação o câmbio de suas idéias em sucessivas publicações, diversas entre si,

de uma mesma obra, percebendo dinâmica onde um olhar mais ingênuo só notaria

uniformidade, quanto discernir suas simpatias pessoais, que também são

sintomáticas de inclinações doutrinais e políticas.226 Outra grande ajuda que

prestou sem o saber aos pesquisadores dedicados a estudá-lo, foi a de

ocasionalmente aludir a vicissitudes que teve de enfrentar no passado e de citar

profusamente as suas próprias obras – somente na História Eclesiástica, ele

menciona duas vezes suas Éclogas Proféticas (I : 2, 27; I : 6, 11), uma vez sua

Crônica (I : 1, 6), quatro vezes sua Coletânea dos antigos testemunhos (IV : 15,

47; V : 1, 2; V : 4, 3; V : 21, 5) e uma vez seu Os mártires da Palestina (VIII : 13,

7).227

É uma lástima e uma ironia que do possivelmente farto epistolário de

Eusébio, que se preocupou em organizar uma coleção a mais completa possível de

cartas de Orígenes e baseou boa parte da História Eclesiástica em dossiês

compostos por correspondências, não tenha restado para a posteridade mais do

                                                            225 Argimiro VELASCO-DELGADO. “Introducción”. In: EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiastica. (Texto bilíngüe; ver. espanhola, introd. e notas de Argimiro Velasco-Delgado). (2ª ed. rev.). Madri: BAC, 1997. (2 vol.). pp. 13* e notas correspondentes, n. 1-4. 226 Cf. Id. Op. cit. pp. 13*-14* e nota correspondente, n. 6. Tomemos um único exemplo a título de ilustração. Paulino de Tiro, a quem dedica um manual de geografia bíblica e o décimo Livro de sua História Eclesiástica, invocando-o “como selo que sanciona a obra toda” (X : 1, 2), foi um defensor de Ário de primeira hora (desde a metade do ano de 320), destinatário de uma importante carta de conteúdo doutrinal de Eusébio de Nicomédia, que, participante do Concílio de Nicéia, sujeitou-se a assinar as suas declarações e atas para não contrariar os anseios mais imediatos de Constantino e estabelecer a paz no interior da Igreja. A partir de 325, foi um dos que procurou uma forma de reintegrar os arianos expulsos da comunhão eclesial, colaborando no ataque aos consubstancialistas mais exaltados. Como verificaremos adiante, trata-se, sem sombra de dúvidas, de amizade coerente com as posturas assumidas pelo próprio Eusébio na reunião de Nicéia e nos anos que a sucederam. Cf. Manlio SIMONETTI. “Paulino de Tiro”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 1109-1110. 227 Este último escrito teve pelo menos duas versões revisadas pelo próprio Eusébio, e a edição mais antiga e mais breve figura em alguns antigos manuscritos gregos da História Eclesiástica como um suplemento seu ao oitavo Livro. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 224.

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que fragmentos díspares, conservados quase que por pura casualidade. De fato,

preservaram-se apenas quatro cartas inteiras de sua autoria: uma remetida a

Constância, irmã de Constantino e esposa de Lícinio, onde se posicionou contra a

confecção e veneração de imagens religiosas; uma a seus diocesanos, escrita

desde o Concílio de Nicéia; e duas, conservadas nas atas desta mesma reunião,

endereçadas a Eufratião (ou Eufrates) de Balanea e a Alexandre de Alexandria,

tratando do caráter e das opiniões teológicas de Ário e de seus seguidores. Das

que recebeu, temos notícias de uma redigida conjuntamente por Narciso de

Neronias e um homem designado apenas como Cresto a Eufrônio de Antioquia e

o referido Eusébio, que foi citada por Marcelo de Ancira. Baseados em todas estas

peças bem pouco conexas é que desde o século XVII (com Valois e Tillemont) se

têm elaborado ensaios bio-bibliográficos sobre o mais ilustre bispo de Cesaréia, e

é desta tradição historiográfica, grosso modo, que todas as modernas referências

sobre este personagem derivam.228

Clérigo e historiador de educação helênica, Eusébio de Cesaréia

virtualmente não faz menção a si mesmo em toda a extensão da obra que estamos

privilegiando em nossa análise. Quase todos os seus comentaristas sugerem que

um trecho do quarto capítulo do décimo Livro de sua História Eclesiástica se

refere ao próprio autor – “(...) E saiu ao meio um homem, um dos moderadamente

dotados, que tinha composto um discurso”229 –, mas trata-se de fato de notícia de

natureza duvidosa se considerarmos que se alicerça apenas na observação de que é

quase certo que o orador fosse um bispo e de que Eusébio teve acesso ao texto

proferido e o transcreveu; de qualquer forma, não há mais como verificarmos a

autenticidade desta.230 Alguns autores informam-nos que nasceu, em uma família

já cristã há mais de uma geração, por volta de 263, possivelmente na própria

Cesaréia da Palestina, onde, como já tivemos a ocasião de comentar, teve a

oportunidade de, tendo por mestre Pânfilo, receber sólida formação intelectual na

célebre escola e biblioteca aí fundadas por Orígenes. Sua atividade literária foi

interrompida pela violenta perseguição dos cristãos desencadeada, primeiro, a

mando de Diocleciano (em 303) e, depois, de Maximino Daia (em 307). Quando

                                                            228 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 14* e notas correspondentes, n. 7-11. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 228. 229 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 4, 1. p. 321. 230 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 598, n. 20.

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da morte de seu grande mentor, a quem ajudou a redigir (e completou) uma

Apologia de Orígenes e homenageou com uma Biografia em três livros, buscou

refúgio sucessivamente em Tiro e no Egito, onde assistiu de perto aos suplícios de

vários cristãos e foi lançado na prisão. Não se sabe exatamente como logrou

escapar da morte nas mãos dos romanos. De qualquer forma, boas razões

permitem-nos conjecturar que voltou a Cesaréia antes de 313, ocasião na qual foi

feito bispo desta Sé. Assumiu uma atitude conciliadora tanto na controvérsia

referente aos lapsi quanto no debate suscitado pelas proposições de Ário, sendo,

com efeito, “antes que lutador, sábio.”231

Esta mesma postura em favor de uma Igreja de posturas obrigatoriamente

moderadas, capaz de admirar e atribuir um lugar destacado aos “nobres atletas da

religião” ao mesmo tempo em que se dispunha a readmitir na comunhão os que

estavam antes “enfermos na fé”232 – posicionamento que tanto pareceu

conveniente e atraiu a admiração do Imperador Constantino quando da eclosão da

crise ariana –, fez o bispo de Cesaréia ocasionalmente deixar a sua biblioteca para

enredar-se nos meandros já perigosos da política eclesiástica. Em sua obra desejou

edificar uma grande síntese doutrinal em que ficasse evidente o papel da tradição

cristã como fermento divinamente posto no seio das culturas humanas,

prefigurada e corroborada por aquilo que havia de melhor tanto no judaísmo

quanto no helenismo; por este motivo elaborou uma teologia que tanto é histórica

quanto é da História, baseada nas premissas da antiguidade seminal do

cristianismo e da realização factual do Reino de Deus neste mundo. Tal gênero de

convicção levou-o a um incansável interesse pelo passado, que utilizou

explicitamente como fonte de autoridade para a ação no presente, e que foi

concretizado na procura incessante por documentos que provassem os seus pontos

de vista e na exploração de uma vasta literatura produzida pelos mestres da

ortodoxia e por seus opositores, não-cristãos ou heresiarcas.233

Trabalhou com o texto grego da Bíblia com a ajuda de Pânfilo, e, fazendo

uso da Hexapla, composta por Orígenes, tratou de melhorar as edições do Antigo

e do Novo Testamento a partir de versões, respectivamente, hebraicas e copto-                                                            231 B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 222. Sobre os lapsi, ver: Herman J. VOGT. “Lapsi (a questão dos lapsi)”. In: VV. AA. Op. cit. p. 809. Da problemática ariana trataremos adequadamente no capítulo seguinte. 232 Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IX : 1, 9-10. p. 300. 233 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. ps. 143 e 145. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 223.

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siríacas destes conjuntos de textos. Nos séculos XIX e XX os pesquisadores

lograram mesmo localizar antigos códices bíblicos em cujas margens estão

registradas algumas das anotações de Eusébio de Cesaréia acerca destes trabalhos

filológicos.234 Retomando a idéia de Antônio, um erudito alexandrino do século

III, dividiu os textos evangélicos em curtas seções numeradas (que ainda não são

as nossas divisões em capítulos e versículos, mas séries contínuas para cada

Evangelho), e, servindo-se destes números, fez confeccionar tabelas indicativas

das seções comuns a eles – seja aos quatro, seja a três, seja a dois, ou menções

particulares de cada um. Neste esforço talvez tenha sido o primeiro estudioso a

registrar a existência do problema sinótico e algumas de suas possíveis

soluções.235 Deixou mais ou menos explícito que fazia isto para oferecer uma

solução mais proveitosa (ou seja, conforme as suas próprias convicções) para as

discrepâncias – para ele meramente superficiais ou aparentes – entre os

Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João do que a proposta de Taciano, que

em seu Diatessaron harmonizou-os em uma única narrativa, bastante difundida

nas vizinhanças de Cesaréia da Palestina dos séculos III e IV.236 Além deste seu

ofício de editor das Sagradas Escrituras, deu contribuições originais à ciência

antiga votada a perscrutá-las. Compôs um significativo trabalho de geografia

bíblica, conhecido como Onomasticon, da qual só nos resta uma das suas quatro

partes, vertida por Jerônimo para o latim e divulgada no Ocidente. Mais do que

um guia de peregrinação estendido, tratava-se de um repertório dos nomes (em                                                             234 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 145. 235 Sobre a questão sinótica, ver: J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 170-180. 236 A iniciativa de Taciano, pensador cristão do século II, de origem oriental (escreveu sobre si mesmo que era “nascido na terra dos assírios”) e discípulo de Justino Filósofo, catalogado por alguns entre os Apologistas da Fé e por outros entre o número dos heresiarcas, não foi a primeira ou única tentativa de apresentar os evangelhos que viriam a integrar o cânone cristão em um único texto, mas certamente foi a mais bem-sucedida. Preparado quase certamente no idioma siríaco e motivado por intenções litúrgicas e missionárias em favor das populações de onde era oriundo, por sua praticidade e sua estrutura aberta tanto a fáceis incorporações de logia extracanônicos ou apócrifos, quanto à supressão ou substituição de passagens, o Diatessaron se impôs largamente no Oriente, onde foi o evangelho oficial da primeira geração ortodoxa de Edessa, permaneceu em constante uso pelo menos até o início do século V em uma grande área que ia da Anatólia Interior à Pérsia e às franjas do atual Iêmen, e constituiu uma das fontes mais citadas dos Kephalaia maniqueus e em miríades de atos apostólicos de origem obscura e difusão muito limitada, redigidos em persa, armênio, georgiano e árabe. Também teve o seu impacto no Ocidente, ainda que em menor extensão, e inspirou a antiga harmonia evangélica latina chamada de Diapente, assim como uma série de textos medievais (italianos, holandeses, ingleses, alto-alemães) muito semelhantes a este, dentre os quais se destacam a Papysian Gospel Harmony (anterior ao século X), o Heliand (poema saxão sobre a vida de Jesus), o Monotessaron de Ludolfo da Saxônia e o Concordia evangeliorum quattuor de Zacarias Crisopolitano. Cf. Franco BOLGIANI. “Diatessaron”. In: VV. AA. Op. cit. p. 404. Id. “Taciano”. In: Id. Op. cit. pp. 1321-1322.

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grego onoma) de lugares citados na Bíblia, com uma nota geográfica, filológica e

histórica sobre cada um deles. Também foi possível aos estudiosos modernos

reconstituir dois volumosos tratados exegéticos de sua autoria: um Comentário de

Isaías e um Comentário dos Salmos.237

O restante de sua obra, sua parte mais fundamental, que a maioria dos

autores divide artificialmente em histórica e dogmática, pode ser enquadrada toda

na categoria de apologética. Como apologista da fé cristã, Eusébio de Cesaréia

pode ser situado como herdeiro de uma tradição bélico-intelectual bem

consolidada, que em última instância remonta ao uso paulino dos procedimentos

estilísticos da diatribe e da discussão pública de conceitos da filosofia popular

pagã238 e ao tempo da redação dos Evangelhos que acolheu como divinamente

inspirados, ou seja, os quatro intracanônicos – John B. Gabel e Charles B.

Wheeler afirmaram que “(...) O fato de Lucas e Mateus, agindo

independentemente, terem escrito com uma cópia de Marcos ao lado só significa

uma coisa: eles pretendiam suplantar Marcos com os seus próprios

evangelhos.”239 Segundo o que escreveu o filósofo Bertrand Russell nos anos de

1920, é na figura do Jesus de Nazaré apresentado nestes mesmos evangelhos que

se baseia a agressiva e triunfalista retórica da apologética cristã. Ainda que tenha

sido associado a bons conselhos, como o de fazer o bem sem olhar a quem, não

julgar para não ser julgado, ser espontâneo como as crianças, oferecer a outra face

como forma de constranger um agressor, e não fazer ao outro o que você não quer

que lhe seja feito, e em que pese o seu manifesto lirismo e seu amor pelos

ofendidos e humilhados, ele tratava os que discordavam dele da maneira mais

severa possível: “(...) Serpentes! Raça de víboras! Como haveis de escapar ao

julgamento da geena?”240; “(...) Por que não reconheceis minha linguagem? (...)

Vós sois do diabo, vosso pai, e quereis realizar os desejos de vosso pai.”241

                                                            237 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. pp. 145-147. 238 Cf. Rudolf BULTMANN. “Der Stil der paulinischen Predigt und die kyenischstoische Diatribe”. In: Forschungen zur Religion und Kultur des Alten und Neuen Testaments, n. 13, 1910. Apud: Henri Irenée MARROU. “A Igreja no seio de uma civilização helenística e romana”. In: CONCILIUM : Revista internacional de teologia. Ed. em língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, v. 67, n. 7. 1971. p. 844. 239 J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 171. 240 BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 23, 33. p. 1746. 241 Id. Ver. cit. João 8, 43-44a. p. 1866.

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Precedido por numerosos e notáveis predecessores, entre os quais, por

exemplo, Thomas Hobbes e David Hume, este filósofo manifestou um grande

ceticismo quanto às virtudes morais do seguimento de Jesus justamente por

considerar inadequado em absoluto o tom da prédica cristã. Para ele, é muito

chocante a falta de compaixão que algumas passagens do Novo Testamento

atribuem a Cristo. “Além de viver amaldiçoando os viciosos, imprecando contra

os incrédulos e se comprazendo com atos vindicativos, o Jesus canônico

demonstra pouca gentileza com inofensivos animais. Porque, pergunta-se Russell

a propósito de um episódio de expulsão de demônios, em vez de onipotentemente

mandá-los sumir, ele os faz entrar num pacífico grupo de porcos, que,

desesperados, se precipitam despenhadeiro abaixo? Metáforas são sintomas.”242

Comparando-o a Sócrates, suave, cortês e infinitamente paciente com os que não

queriam ouvi-lo, repudiou a tônica beligerante e impositiva de suas falas,

considerando-as como muito afastadas da “excelência superlativa.”243 No prefácio

do ensaio significativamente intitulado Por que não sou cristão escreveu que

“(...) Dizem-nos, às vezes, que somente o fanatismo pode tornar eficiente um grupo social. Penso que isso é inteiramente contrário às lições da história. Mas, seja como for, só os que adoram abjetamente o êxito podem considerar admirável a eficiência sem levar em consideração aquilo que é realizado. Quanto a mim, acho melhor fazer um pouco de bem do que muito de mal. O mundo que eu gostaria de ver seria um mundo livre da virulência das hostilidades de grupo, capaz de compreender que a felicidade de todos deve antes derivar-se da cooperação que da luta. Gostaria de ver um mundo em que a educação tivesse por objetivo antes a liberdade mental que o encarceramento do espírito dos jovens numa rígida armadura de dogmas. O mundo precisa de corações e cérebros francos, e não é mediante sistemas rígidos quer sejam velhos ou novos, que isso pode ser conseguido.”244

Certo ou errado o juízo do filósofo inglês sobre esta questão, o fato é que

cedo a agressividade apologética, aquilo que Edward Gibbon designou como “(...)

O inflexível zelo e, se nos é permitido usar tal expressão, a intolerância dos

cristãos”245, semelhantes a um fluxo que, “(...) por correr num canal estreito,

                                                            242 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 165. 243 Citado em: Id. Op. cit. p. 164. 244 Citado em: Ibid. Op. cit. pp. 165-166. O grifo consta na versão citada. 245 Edward GIBBON. Declínio e queda do Império Romano. (Org. e introd. Dero A. Saunders; Pref. Charles A. Robinson. Jr.; Trad. e notas suplem. José P. Paes). Ed. abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 236.

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despenhou-se com a força e às vezes a fúria de uma torrente”246, tornou-se uma

atitude hegemônica entre aquela facção do movimento de Jesus que viria a

constituir o cristianismo ortodoxo. De um modo geral, ela conformaria uma

mentalidade comum, baseada na partilha de tradições dispersas pela enorme área

geográfica na qual se difundiu a mensagem cristã nos primeiros séculos de sua

existência. Tal coisa pode ser verificada pela consideração de uma série de

acontecimentos protagonizados por cristãos, claramente semelhantes, ainda que

bem distantes entre si no espaço e no tempo, e que esteja assentado que não

tiveram quaisquer repercussões diretas ou imediatas uns sobre os outros. Em cerca

de 730, logo depois de Bonifácio ter escrito para seus correligionários na

Inglaterra pedindo cópias da Bíblia redigidas em letras de ouro, derrubou ele

mesmo o carvalho sagrado de Geismar para evitar que os alvos de suas prédicas

teimassem em continuar a adorá-lo. Quase na mesma época, na distante

Mesopotâmia, os missionários nestorianos conduziam uma verdadeira guerra

contra as grandes árvores sagradas das encostas montanhosas junto ao Mar

Cáspio, ao fim da qual terminaram por derrubar “a maior parte da floresta”.247

Mais a leste ainda, em Karabalghasun, no vale do Alto Orkhon, o governante

uigur de um império situado entre a China e a Mongólia Interior registrou em um

inscrição feita por volta de 820 como Bogu Qaghan, seu predecessor, introduziu

em 762 novos mestres no reino. Estes personagens citados eram pregadores

maniqueus, arautos de uma fé missionária de origem basicamente cristã, e

causaram imenso desconforto entre os locais por manterem uma atitude muito

rude com as arraigadas tradições da população local – o que eventualmente

causou sua expulsão ou extermínio. A atitude referida nesta inscrição e o esteio de

pensamento que a um só tempo a motiva e justifica são claros como os que Carlos

Magno fez gravar em pedra e metal quando, em algum momento entre 772 e 785,

ordenou o incêndio do grande santuário de Irminsul, dito a “coluna que suporta o

céu”248, e proibiu o paganismo na Saxônia:

                                                            246 Id. Op. cit. p. 237. 247 Citado em: Peter BROWN. A ascensão do cristianismo no ocidente. (Trad. Eduardo Nogueira; Rev. Saul Barata). Lisboa: Presença, 1999. (Col. “Construir a Europa”; dir. Jacques Le Goff). p. 23. 248 Citado em: Id. Op. cit. p. cit.

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“(...) Lamentamos que estejais desprovidos de conhecimentos e que tenhais chamado ‘deuses’ aos espíritos malignos. Deveis queimar as antigas imagens gravadas e pintadas, e afastar para bem longe todas as orações aos espíritos e demônios.”249

Este discurso e prática tão ofensivos foram talvez os maiores pontos fracos

da missão cristã em não poucas regiões e épocas. Em 1253 o missionário

franciscano Guilherme de Rubruck, ao confrontar-se na corte de Mangu Khan

com uma grande quantidade de outras religiões, dentre as quais um considerável

número de versões cristãs diferentes da sua própria, foi obrigado a ouvir uma bela

lição de moral do próprio soberano dos tártaros. No relatório que o frade escreveu

ao rei Luís da França da casa de sua ordem na cidade palestina de Acre, conta-nos

ele que Mangu

“(...) Começou por me confidenciar o seu credo: ‘Nós, Mongóis’, disse, ‘acreditamos que existe apenas um Deus, por cuja vontade vivemos e por cuja vontade morremos, e para com o qual temos um coração leal.’ Então eu disse: ‘Que assim seja, pois sem Sua graça isso não poderá ser.’ (...) Então ele acrescentou: ‘Mas assim como Deus nos dá os dedos diferentes das mãos, assim também dá aos homens modos diversos. Deus dá-vos as Escrituras, e vós cristãos não as respeitais. Não encontrais (nelas, por exemplo) que um deva encontrar defeito no outro, pois não?’ ‘Não, meu senhor’, respondi, ‘mas disse-vos desde o princípio que não quero brigar com ninguém.’ (...) ‘Não o digo’, continuou, ‘por vós. Deus deu-vos, portanto, as Escrituras e vós não as respeitais; Ele deu-nos adivinhos e nós fazemos o que eles nos dizem, e vivemos em paz.”250

Bem antes disto, em um contexto muitíssimo diverso, o Imperador Juliano,

designado pelos cristãos como o Apóstata por sua tentativa de revitalizar o

paganismo greco-latino na segunda metade do século IV, ao mesmo tempo em

que admirou ou invejou os seguidores de Jesus por sua imensa obra

assistencialista, criticou-lhes a intolerância, o péssimo hábito de tentar impor pela

violência discursiva, simbólica e direta a sua verdade a todos os homens e

mulheres. Em uma carta na qual sensata e obstinadamente defendia sua política

religiosa de retirar o apoio militar estatal da ala ortodoxa do cristianismo e deixar

que os diversos grupos de fiéis continuassem a debater interminavelmente entre si

desde que não partissem para a agressão de fato uns contra os outros ou contra

                                                            249 Citado em: Ibid. Op. cit. p. cit. 250 Citado em: Daniel J. BOORSTIN. Os Descobridores : De como o homem procurou conhecer-se a si mesmo e ao mundo. (Trad. Fernando P. Rodrigues; rev. José Manuel Garcia). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. p. 130.

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os não-cristãos – neste caso, seriam tomados apenas como baderneiros comuns e

sofreriam as penalidades normalmente aplicáveis a tal circunstância –,

argumentou que o que estas determinações fizeram foi auxiliar o estabelecimento

da ordem pública e pôr fim a um infindável derramamento de sangue. Com uma

perspicácia e sensibilidades notáveis para um estadista de um período de conflitos

tão constantes, alegou que

“(...) Muitas comunidades inteiras dos assim chamados hereges foram, na realidade, chacinadas, como em Samosata e Cízico, na Paflagônia. Bitínia e Galácia, entre várias outras aldeias tribais, foram saqueadas e destruídas – ao passo que, no meu tempo, o exílio terminou e a propriedade foi restituída.”251

A agressividade apologética havia se tornado então comportamento

arraigado, mas, antes disto, ela já havia sido forma mentis de todo um modelo

discursivo, de uma forma de, por um lado, apresentar a fé cristã e, por outro,

apreender o mundo cultural e inseri-la neste. Neste âmbito, deve-se reconhecer

que, bem ou mal, entre muitas outras coisas, ela também foi um impulso e um

fermento para o estabelecimento do cristianismo ortodoxo.

O pensamento dos Padres da Igreja, que desde o começo e em sua virtual

totalidade eram antes “pescadores de almas, (...) mais ocupados em invectivar do

que em embelezar a imagem da nova religião para o público culto”252,

desenvolveu-se de fato quase todo como uma teologia da refutação. Tal

afirmação equivale a dizer que em tal processo se tratava não da exploração

crescente ou do desenvolvimento progressivo de certas verdades reveladas – ou

pelo menos não apenas isto –, mas da contraposição a afirmações compreendidas

quase intuitivamente como inadequadas e desviantes. De nossa parte, cremos que

não deixa de ser irônico que a doutrina reta tenha se estabelecido para oferecer a

contrapartida discursiva à fé tida como obtusa. Isso pode ser verificado mesmo

através de brevíssimas menções pontuais a alguns outros autores eclesiásticos

antigos. Em explícita oposição a correntes cristãs que professavam que o

comportamento dos fiéis era indiferente e negavam a factualidade da Encarnação

e da Paixão e Morte de Jesus Cristo, Inácio de Antioquia insistiu no realismo e na

                                                            251 Citado em: P. JOHNSON. Op. cit. p. 105. 252 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 87.

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eficácia redentora destes eventos.253 Ao pessimismo antropológico e à depreciação

da matéria, Irineu de Lyon respondeu com um imensurável otimismo e com uma

sonora ênfase na salvação da carne – temas embalados pelo grito de guerra de

que, em relação aos hereges, era necessário “(...) Não só expor, mas ferir de todos

os lados, fundo”.254 À negação da unidade da história salvífica, ou mesmo do

efeito salvífico dos eventos históricos, teorizada por intelectuais como Marcião e

Basílides, os Padres confrontaram o caráter progressivo da redenção, tanto a nível

individual quanto comunitário e cósmico, reconhecendo nos acontecimentos

humanos, sempre ambíguos, o desenho e execução de um plano divino visando à

redenção de cada homem e do universo.255 Acerca deste complexo processo,

Marilia Fiorillo afirmou, em uma formulação evocativa, mais sonora do que

ponderada, que

“(...) quando os Padres da Igreja escolheram o ‘desgarrado’ como alvo, não só de suas diatribes, como de seus tratados, estavam selecionando simultaneamente o inimigo-mor e um precioso colaborador. Pois boa parte do edifício doutrinário da Patrística foi montada a partir do material impuro e espúrio dos heréticos. (...) Devidamente depuradas, as emanações gnósticas viraram Pessoas da Trindade, éons se transformaram em anjos e o delicado tema do mal dissolveu-se no livre arbítrio.”256

                                                            253 A respeito disto, veja-se, por exemplo, o trecho de sua Carta aos Efésios (seções 7-8 e 18) onde escreveu: “(...) Há os que costumam, por um ardil pernicioso, servir-se por toda parte do Nome [de Jesus Cristo], mas praticam coisas indignas de Deus. A estes evitareis como a animais selvagens. São realmente cães raivosos, que mordem traiçoeiramente. É preciso precaver-nos de suas mordeduras, difíceis de curar. Um é o médico, em carne e espírito, gerado e não gerado, aparecendo em carne como Deus, na morte vida verdadeira, tanto de Maria como de Deus, primeiro capaz de sofrer, depois impassível, Jesus Cristo Senhor Nosso. (...) também aquilo que praticais, segundo a carne, é espiritual, pois fazeis tudo em Jesus Cristo. (...) Pois nosso Deus, Jesus Cristo, tomou carne no seio de Maria segundo o plano de Deus, sendo de um lado descendente de Davi, provindo por outro do Espírito Santo. Nasceu, foi batizado, para purificar a água pela Sua Paixão.” INÁCIO DE ANTIOQUIA. Cartas. (Trad., introd. e notas por Paulo E. Arns). (2ª ed.). Petrópolis: Vozes, 1978. (Col. “Fontes da Catequese”, n. 2). ps. 43 e 47. 254 Citado em: M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 99. 255 Desenvolvendo uma refinada argumentação semi-platônica neste sentido, Orígenes chega a uma opinião quase tão a-histórica quanto às dos mais empedernidos gnósticos, na qual virtualmente nega a pertinência pós-mortem dos atos praticados pelo ser humano. Segundo este autor, todas as almas – inclusive as dos demônios – tenderiam ao aperfeiçoamento em vida, e, após a morte, pouco a pouco, de grau em grau, subiriam um determinado número de esferas celestes correspondentes a sucessivas purificações necessárias. Ao término desta ascensão, ressuscitariam em corpos etéreos e então novamente Deus será tudo em todos. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 213. 256 M. P. FIORILLO. 190. Tal opinião não é nova: Edward Gibbon a expressou, afirmando que “(...) Os mais doutos dos pais da Igreja, por uma condescendência assaz estranha, imprudentemente admitiram [por fim] os sofismas dos gnósticos.” E. GIBBON. Op. cit. p. 243.

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É no quadro deste acirrado combate contra os inimigos intramuros – e que,

como em todo combate demorado em que há um pequeno espaço separando os

lados contentores, tende a fazer dos beligerantes cada vez mais parecidos uns com

os outros – e no esforço de oferecer respostas às objeções e zombarias de não-

cristãos cultos que Eusébio de Cesaréia desenvolveu sua própria estratégia

apologética, a um só tempo herdeira e inovadora em relação aos Padres que o

precederam. O seu programa argumentativo talvez tenham sido apresentado em

uma Introdução elementar geral, escrita antes de seu episcopado, da qual só

conhecemos uma pequena parte, dedicada à transcrição e interpretação das

profecias messiânicas da Bíblia judaica, e que se convencionou designar como

Éclogas Proféticas. Já nesta sua obra estavam presentes os topoi discursivos que

viria a explorar posteriormente, e a forma como faria isto: pretendia mostrar que o

cristianismo por ele professado, longe de ser uma inovação sacrílega como alguns

argumentavam, é a maturação e confluência das tradições mais veneráveis da

Antiguidade, despojadas daquilo que era supérfluo ou contingente.257

Com efeito, Eusébio mostrou-se particularmente sensível à acusação

helênica de que a fé cristã era nova e recente. Uma das características mais

notáveis dos pensadores helenistas é justamente o seu interesse pelas instituições

de culto do ponto de vista menos de suas proposições religiosas do que do das

preocupações de cunho antiquário. Já no final do século III a.C. pode-se verificar,

por exemplo, uma irrupção particularmente intensa destas reflexões entre os

pensadores de formação intelectual ateniense: Amónio compôs um tratado

intitulado Sobre altares e sacrifícios, Crates um Sobre sacrifícios atenienses,

Hábron um Sobre festas e sacrifícios, e Apolónio um Sobre as festas

                                                            257 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. pp. 150-151. Eusébio de Cesaréia atribui esta opinião de que o cristianismo era uma inovação perniciosa, por exemplo, tanto ao Edito de Maximiano, Constantino e Licínio que ordena o fim da perseguição no Ocidente – “os cristãos, que tinham abandonado a seita de seus antepassados (...) tão grande a ambição que os retém e a loucura que os domina, que não seguem o que ensinaram os antigos, o mesmo que talvez seus próprios progenitores estabeleceram anteriormente” – quanto ao Edito de Maximino, gravado em estelas de bronze, como a afixada em Tiro, que o bispo historiador transcreve – “obscuridade e trevas do erro”, contrapostas aos sentimentos pagãos de “amor aos deuses (...) fé [que] não se dava a conhecer como fé de novas e ocas palavras, mas como fé sólida e extraordinária em excelentes obras.” Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VIII : 17, 6-7. p. 294. Livro IX : 7, 3-4. pp. 303-304. Curiosamente, talvez sem notar o raciocínio que espelha, o erudito bispo faz a mesma acusação aos cristãos que identifica como desviantes sempre que tem oportunidade para tanto: “(...) Como o inimigo da Igreja de Deus é em último grau avesso ao bem e amante do mal e de forma alguma deixa de lado qualquer maneira de conspirar contra os homens, fez com que de novo brotassem estranhas heresias contra a Igreja”. Id. Op. cit. Livro V : 14, 1. p. 172.

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atenienses.258 Por motivos que aqui não teríamos espaço suficiente para

considerar, para estes antigos, a antiguidade é critério de verdade e a tradição é

considerada como a única instrutora confiável. Não poucos foram os autores

cristãos que combateram este primado do “costume” humano. Taciano, Tertuliano

e Lactâncio advertiram que o pensar helênico era intrinsecamente pagão, e,

portanto, incompatível com o seguimento de Jesus Cristo – não obstante tenham

usado a própria linguagem culta e instrumentos lógicos incorporados do mundo

greco-latino para fazer tal coisa. Para urdir esta condenação, inspiraram-se,

sobretudo, em certas passagens das epístolas de Paulo Apóstolo, dentre as quais se

destacou uma que consta em uma sua carta aos coríntios e que consideravam

como uma espécie de regra geral para o relacionamento entre o pensar cristão e o

patrimônio cultural helenista (e judaico):

“(...) Pois não foi para batizar que Cristo me enviou, mas para anunciar o Evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim de que se torne inútil a cruz de Cristo. Com efeito, a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus. Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o homem culto? Onde está o argumentador deste século? Deus não tornou louca a sabedoria deste século? Com efeito, visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que crêem. Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus, é escândalo, para os gentios, é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.”259

Aferrado a este eloqüente pressuposto, este grupo de pensadores marcou a

filosofia com um sinal bastante negativo, considerando-a desnecessária à fé, que,

ao contrário, seria um pressuposto para entender a mensagem divina. Para

alicerçar tal ponto de vista, muito citada foi passagem do Profeta Isaías que diz

“(...) Se não crerdes, não vos manterei firmes.”260 A questão que se colocava,

portanto, era se o patrimônio cultural greco-latino pode ser um caminho

                                                            258 Cf. Albin LESKY. História da literature grega. (Trad. Manuel Losa). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 710. 259 BÍBLIA. Ver. cit. Primeira Epístola aos Coríntios 1, 17-25. p. 1994. O grifo consta na versão citada. 260 Id. Ver. cit. Isaías 7, 9. p. 1265.

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preparatório para a fé cristã, ou se esta, sabedoria revelada, era completamente

independente daquele – que, neste caso, ao contrário, poderia inclusive lhe ser um

obstáculo. Desde já podemos adiantar que, se muitos o rejeitaram, também não

poucos foram os que reconheceram de bom grado ao saber e à virtude filosóficas

um papel propedêutico para o seguimento de Jesus Cristo.

No capítulo XIII da Filocalia, uma antologia origenista do século IV, foi

sintetizado um argumento do teólogo alexandrino já bastante difundido e

especialmente marcante na defesa do uso pelos cristãos dos instrumentos

intelectuais disponíveis no patrimônio cultural helênico para a defesa, difusão e

auto-compreensão da fé cristã. Trata-se da noção de Spolia ægyptorum (“os

espólios dos egípcios”), expressão que remete ao episódio do livro do Êxodo (3,

21-22.12, 35-39), no qual, após a fuga do Egito, os judeus renderam graças a

Iahweh em um culto no qual utilizaram os objetos de metal precioso, as roupas e a

farinha que haviam conseguido levar consigo daquela terra. Segundo Orígenes,

“(...) A filosofia (e a cultura grega em geral) estaria para o cristianismo assim

como os vasos de prata egípcios para os judeus do êxodo.”261 Tal programa de

incorporação, está bem expresso em uma passagem na qual escreveu que:

“(...) Eu teria desejado que tomasses da filosofia dos gregos tudo aquilo que pode servir como propedêutica para introduzir ao cristianismo (...) e tudo o que será útil para a interpretação das Escrituras. E, assim, tudo o que os filósofos dizem da geometria e da música, da gramática, da retórica e da astronomia, chamando-as auxiliares, nós o aplicaremos também à própria filosofia em relação ao cristianismo.”262

Homens de posicionamento tão diverso quanto a isto como Taciano e

Clemente de Alexandria, entretanto, concordarão que tudo o que é ou parece

haver de bom na cultura greco-latina é em verdade proveniente do judaísmo,

opinião, aliás, já expressa também nas obras do historiador judeu Flávio Josefo.

Não há uma comprovação histórica para tal proposição, mas ela será muito

difundida entre os escritores eclesiásticos dos primeiros séculos, possuindo um

grande impacto no pensamento de Eusébio de Cesaréia, que, através de Pânfilo,

foi um insigne discípulo de Orígenes. Julgando o cristianismo bastante forte e

                                                            261 Danilo MARCONDES. Iniciação à história da filosofia : Dos pré-socráticos a Wittgenstein. (12ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008 [1997]. p. 110. 262 Citado em: Id. Op. cit. p. cit. e nota correspondente, n. 6, p. 288.

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bem inserido na sociedade, o autor da História Eclesiástica o apresentou como o

coroamento de uma tradição autêntica e mais antiga, subterraneamente inspiradora

de tudo o que de bom e justo já foi produzido pelos homens de todos os tempos e

lugares. A partir desta convicção nuclear, pôde recolher tudo o que pensou ser

bom e proveitoso nas demais tradições filosóficas e religiosas helênicas e

judaicas, assim como conciliar a fidelidade e amor ao passado com a factual

novidade do cristianismo, demonstrando-lhe, pela consideração de que as

religiões pagãs é que seriam mais recentes, o seu caráter legítimo e racional. Isto é

especialmente exposto por Eusébio nas obras que intitulou Preparação evangélica

(que quer mostrar a superioridade sobre o paganismo do judaísmo e as afinidades

desta religião com a filosofia) e Demonstração evangélica (que quer provar que o

mistério de Jesus Cristo é anunciado e conforme às escrituras sagradas dos

judeus), mas, elemento estruturante de toda a sua produção intelectual, também

consta, por exemplo, em um trecho do primeiro capítulo de sua História

Eclesiástica:

“(...) que ninguém pense que nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo é algo novo devido a sua época de vida em carne mortal. Mas, para que ninguém pense que sua doutrina é nova e estranha, como se tivesse sido criada por um homem recente e em nada diferente dos demais homens, explicaremos também brevemente este ponto. Não faz muito tempo, efetivamente, que brilhou sobre todos os homens a presença de nosso Salvador Jesus Cristo, e um povo, novo no conceito de todos, fez sua aparição assim, de repente, conforme as inefáveis predições dos tempos; um povo não pequeno, nem fraco, nem localizado em algum recanto da terra, mas ao contrário, o mais numeroso e o mais religioso de todos os povos, indestrutível e invencível por ser em todo momento objeto do favor divino, o povo ao qual todos honram com o nome de Cristo. (...) Mas se está claro que nós somos novos, e que este nome de cristãos só foi realmente conhecido entre todas as nações recentemente, ainda assim e apesar disto (...) nossa vida e o caráter de nossa conduta, adaptada aos próprios preceitos da religião, não é invenção nossa de ontem, mas que, por assim dizer, manteve-se em vigor desde a primeira criação do homem, graças ao bom senso daqueles antigos varões amigos de Deus. O povo hebreu não é um povo novo, pelo contrário, é sabido de todos que os homens sempre o reconheceram por sua antigüidade. Pois bem, seus documentos e escritos mencionam alguns homens antigos, escassos e espaçados no tempo, é certo, mas em troca, excelentes em religiosidade, em justiça e em todas as demais virtudes. Destes, alguns viveram antes do dilúvio, outros depois. Se, remontando desde Abraão até o primeiro homem, alguém dissesse que todos estes varões, cuja justiça está bem documentada, foram cristãos, ainda que não por nome, mas por suas obras, não estaria enganado. Porque este nome significa é que o cristão, devido ao conhecimento de Cristo e de sua doutrina, sobressai por sua sobriedade, por sua justiça, pela firmeza de seu caráter, pelo valor de sua virtude e pelo reconhecimento de um só e único Deus

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de todas as coisas, e a atitude daqueles homens em relação a estas coisas não era em nada inferior à nossa.”263

Neste mesmo âmbito, é que Eusébio pergunta-se: os numerosos cristãos,

identificáveis por sua doutrina e por sua conduta e não por traços étnicos ou pelo

seu idioma, seriam gregos, bárbaros (isto é, não-gregos), ou algum outro tipo de

homens? Não poucos apologistas anteriores a ele sustentaram a crença de que os

seguidores de Jesus constituíam um tertium genus, mas isto era necessariamente

contradito pela ausência de uma evidente e inequívoca diferença empírica entre

estes e os seus vizinhos não-crentes. Como observou Richard Sennett, “(...) O

cristão batizado era portador de um segredo incognoscível. Judeus do sexo

masculino poderiam ser identificados e seguidos, caso sua genitália fosse

examinada, mas ‘a circuncisão de Cristo’ não deixava sinais no corpo. De forma

mais genérica, pode-se dizer que um cristão não ostentava o significado do

cristianismo; sua aparência era irrelevante.”264 Isto considerado, a resposta do

bispo de Cesaréia para essa problemática é mais sutil: se os cristãos constituem

mesmo uma terceira raça, não renegam as outras duas. Gregos ou bárbaros de raça

e de espírito, recusam apenas a sua herança religiosa, não a positiva contribuição

de sua cultura, aquela também divinamente insuflada “brisa perfumada [que]

difundiu-se entre os homens”, ocasionando que “as mentes da maioria dos povos”

se fosse, “por influência de legisladores e filósofos daqui e d’acolá”,

“transformando em suavidade, ao ponto de chegarem a uma paz profunda,

amizade e trato de uns com os outros.”265 A fé cristã ultrapassa o que a precedeu,

completando-o, assumindo-o como providencial preparação a si mesma. Na

opinião deste prelado, a sucessão dos fatos mostrava como Deus, desde a origem,

pacientemente conduziu a educação do decaído gênero humano rumo ao seu re-

erguimento, e, com o advento da fé cristã, como teria emergido um tipo de pessoa

realizada, conforme a vontade de Deus, antes apenas prefigurada em uns poucos

homens e mulheres especialmente tocadas pelo divino. Mais ainda: “a ‘vitória’

providencial da Igreja sobre seus perseguidores é a confirmação notória desse

                                                            263 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 4, 1-2.4-5.6-7. pp. 25-26. 264 Richard SENNETT. Carne e pedra : O corpo e a cidade na civilização ocidental. (Trad. Marcos Aarão Reis). Rio de Janeiro: Record, 1997. p. 124. 265 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 2, 22. p. 20.

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fato; ela confere à esperança cristã um colorido novo; o Reino [de Deus] já se

edifica neste mundo.”266

Eusébio concebia a corrente cristã com a qual se identificava como uma

nação vitoriosa que era a um só tempo a mais antiga e a mais nova do mundo.

Dele não poderíamos esperar que escrevesse uma história em duas partes –

tratando, de um lado, da origem e desenvolvimento de sua fé, e, do outro, do

quadro sociopolítico na qual ela se encarnou e ganhou corpo – já que demonstrou

em todas as partes estar bem alicerçado na convicção de que a singular trajetória

da Igreja não poderia ser contada se não como a de uma instituição que fosse

levada por Deus ao triunfo contra os seus inimigos externos (os perseguidores) e

internos (os heréticos). A ortodoxia doutrinária e a sucessão apostólica eram os

pilares desta comunidade, e, “(...) Assim, a história eclesiástica substituiu as

batalhas da história política comum pelos desafios inerentes à resistência à

perseguição e à heresia.”267 Ao desenvolver tal concepção, Eusébio tinha diante de

si a Bíblia Judaica, os textos de Flávio Josefo e os Atos dos Apóstolos, que

também tratavam da luta contra os perseguidores, de um Deus que age na História

em favor dos seus, da idéia de uma nação santa, (e no caso específico da obra de

Lucas) da noção que o cristianismo havia assumido as prerrogativas de eleição

divina do povo hebreu e da miraculosa expansão da fé cristã por um amplo

espectro de lugares e povos bastante diversos entre si. Como escreveu Arnaldo

Momigliano, entretanto,

“(...) em cada caso as diferenças eram mais marcantes do que as similaridades. [De fato] (...) Mais de duzentos anos mais tarde [do que a redação dos Atos dos Apóstolos], Eusébio desencadeou um novo início em bases completamente diferentes: ele não estava preocupado em princípio com a difusão do cristianismo pela propaganda e pelo milagre, mas com a sua sobrevivência à perseguição e à heresia, de onde sairia vitorioso. (...) no conjunto, foi a partir da erudição helenística que Eusébio deu forma ao novo modelo de história eclesiástica. Nisto ele foi fiel à tradição helenística de seus mestres e ao seu próprio programa na Præparatio evangelica.”268

Esclareçamos o argumento. É moderando pela razão helenística a

agressividade apologética de sua fé que Eusébio de Cesaréia buscou dar combate,

                                                            266 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 151. 267 A. MOMIGLIANO. Op. cit. p. 197. 268 Id. Op. cit. p. cit.

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por exemplo, ao célebre filósofo neoplatônico Porfírio, autor de um Contra os

cristãos, respondido por aquele prelado em uma grande obra de teologia

sistemática, que infelizmente não chegou até nós. A produção historiográfica de

Eusébio é complementar e sucedânea a este mesmo movimento argumentativo, e é

neste sentido que deve ser compreendida como “filha da apologética”.269

Conformada pela fé e dotada desta combatividade aveludada que hoje

identificamos tão bem em nossas discussões universitárias, é que se apresenta a

imensa erudição de Eusébio, elemento que segundo Jacques Liébaert “faz de seus

livros uma verdadeira obra de historiador, que será plagiada durante séculos e que

continua a ser uma fonte de nosso conhecimento da alta Antiguidade.”270

O interesse do douto bispo palestinense pela narrativa histórica e pelo seu

uso apologético parece ter sido realmente precoce, além de conexo com seus

estudos sobre a filologia e a geografia da Bíblia Judaica e Cristã. Há indícios de

que o primeiro de seus escritos a ser difundido (em 303 ou 304) foi mesmo uma

Crônica, onde apresentou um resumo da história antiga dos caldeus e egípcios até

a expansão romana e o advento do cristianismo, elaborada de acordo com fontes

judaico-cristãs e helenísticas, ao qual anexou tabelas sincrônicas relacionando as

cronologias bíblica e profana. Esta tentativa de cronologia universal não é nova:

desde o século II a.C. pensadores judeus exercitaram-se nisto, e os cristãos mais

interessados nas coisas pretéritas também o fizeram, quase desde a primeira hora

do movimento de Jesus de Nazaré. Todos tinham um objetivo bem determinado –

“mostrar que a revelação mosaica é mais antiga e, portanto, mais venerável que a

filosofia grega, e que esta se inspirou nela”271 – e dentre eles se destaca Sexto

Júlio Africano, amigo de Orígenes e autor de uma Cronografia em cinco livros,

citado por Eusébio de Cesaréia como “executados com exatidão.”272 Sozômeno,

um continuador bem mais modesto do trabalho de Eusébio, aventou a

possibilidade de que o bispo de Cesaréia havia sido imediatamente precedido

como historiador eclesiástico também por um certo Clemente – que não foi nem o

bispo de Roma autor de uma Carta aos Coríntios, nem o filósofo cristão que

ensinou em Alexandria pouco antes de Orígenes – e por Hegesipo, mas não se

                                                            269 J. LIÉBAERT. 148 270 Id. Op. cit. p. cit. 271 Ibid. Op. cit. p. cit. 272 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VI : 31, 2. p. 217.

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trata de notícia das mais seguras. O Clemente ao qual o historiador cristão do

século V se referia era o suposto autor de um Evangelho de Pedro – que não é

uma história eclesiástica – e Hegesipo, personagem do qual se sabe bastante

pouco, quase que apenas pelas citações feitas pelo próprio Eusébio de Cesaréia,

parece ter sido não um historiador, mas um apologista anti-gnóstico do século II

de não excessiva formação literária, que se dedicou principalmente a compilar

uma rica série de tradições orais que circulavam entre as comunidades judeu-

cristãs da Palestina de seus dias.273

Em seguida e talvez como complemento de sua Crônica – assim como, por

certo ponto de vista, também da narrativa dos quatro Evangelhos e dos Atos dos

Apóstolos que considerava como dignos de confiança – foi que Eusébio de

Cesaréia compôs a História Eclesiástica, sua obra mais conhecida e valorizada, a

ponto de Liébaert escrever que “(...) A glória de Eusébio (...) é a memória que nos

deixou da Igreja dos três primeiros séculos.”274 O bispo historiador reuniu

material durante um bom tempo para compor este trabalho, e segundo autorizados

estudos filológicos e comparativos realizados com as diferentes versões desta obra

que nos restam da Antigüidade, apresentou dela uma primeira edição meses

depois de dar ao público sua Crônica, rejeitou-a e compôs nova versão divulgada

em 312, completou-a mais de uma vez entre 315 e 317 e, por fim, corrigiu-a em

324, depois da vitória de Constantino sobre seu antigo aliado Licínio, para apagar

tanto quanto possível a memória deste, oficialmente execrada pelo governo

romano.275

Nos primeiros dois parágrafos da História Eclesiástica, Eusébio enumera

as cinco matérias de que pretende tratar nesta obra:

1. “(...) as sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos

desde nosso Salvador até nós; o número e a magnitude dos feitos

registrados pela história eclesiástica e o número dos que nela se

sobressaíram no governo e presidência das igrejas mais ilustres, assim

                                                            273 Cf. A. MOMIGLIANO. Op. cit. p. 195. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. pp. 106-107, n. 181-182. 274 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. cit. 275 Cf. Id. Op. cit. p. cit. B. ALTANER e A. STUIBER. p. 224. C. CURTI. Op. cit. p. cit. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. pp. 41*-46*.

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como o número daqueles que em cada geração, de viva voz ou por

escrito, foram os embaixadores da palavra de Deus”;

2. “(...) quantos, quais e quando, absorvidos pelo erro e levando ao

extremo suas fantasias, proclamaram publicamente a si mesmo

introdutores de um mal chamado saber [gnose] e devastaram sem

piedade, como lobos cruéis, o rebanho de Cristo”;

3. “(...) as desventuras que se abateram sobre toda a nação judia depois

que concluíram sua conspiração contra nosso Salvador”;

4. “(...) o número, o caráter e o tempo dos ataques dos pagãos contra a

divina doutrina, e a grandeza de quantos por ela, segundo a ocasião,

enfrentaram o combate em sangrenta tortura; também os martírios de

nosso próprio tempo”;

5. “(...) e a proteção benévola e propícia de nosso Salvador.”276

O primeiro item mencionado por Eusébio de Cesaréia é de especial

interesse na medida em que destaca um dos principais pontos nevrálgicos da

história da Igreja dos primeiros séculos e depois: a sucessão dos líderes das

principais comunidades cristãs, fosse na administração pastoral e no culto, ou na

pregação falada e escrita.277 Segundo a sua versão da história – que veio a ser

hegemônica –, o movimento cristão aparece no primeiro momento como um

fenômeno de crescente agregação de novos fiéis ao grupo inicial dos seguidores

que conheceram pessoalmente Jesus de Nazaré, e a narrativa dos Atos dos

Apóstolos apresenta esta dinâmica como devedora explícita da pregação daqueles

que os quatro evangelhos intracanônicos apresentavam como especialmente

distinguidos por Cristo dentre o conjunto dos que o acompanhavam.278 Estes

pregadores estabeleceram logo entre o número dos que aderiam ao seu partido

algumas estruturas que assegurassem a continuidade de seu ensinamento, e para

tal propósito investiram alguns indivíduos como especialmente responsáveis pela

                                                            276 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 1, 1-2. p. 15. 277 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. p. 190. 278 Cf. p. ex. BÍBLIA. Ver. cit. Atos dos Apóstolos 2, 37-47; 5, 12-16; e 11, 19-24. ps. 1904-1905, 1909, e 1921-1922. Deve-se reconhecer que, sob este aspecto, Paulo é uma espécie de coringa, um personagem especialmente importante e difícil de ser integrado. Sua assimilação acabará se dando por um recorrente destaque de sua absoluta singularidade no conjunto dos membros do movimento de Jesus do primeiro século de sua existência.

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manutenção da doutrina e pelo dinamismo das comunidades. Não tardou muito

para que estas disposições apostólicas se cristalizassem na convicção de que há

um conjunto doutrinário a ser zelosamente conservado de distorções

idiossincráticas e na idéia de que para que os guias dos fiéis sejam legítimos em

seu exercício de autoridade deve haver entre eles uma sucessão que remonte em

alguma instância àqueles que com o Nazareno comeram a sua última ceia em

Jerusalém e O viram ressuscitado. As comunidades semeadas pelas palavras dos

Doze e, depois, por Paulo – que também reivindicava ter tido um contato pessoal

com o Ressuscitado – estariam, portanto, em comunhão entre si tanto pela origem

quanto pela organização e profissão de fé comum, laço sempre renovado na mútua

assistência espiritual e também material. Tal compreensão já está maduramente

formulada nos dias de Tertuliano de Cartago, que escreveu que:

“(...) Ora, os apóstolos (que significa ‘enviados’) desde o princípio afirmaram a fé em Jesus Cristo e estabeleceram igrejas pela Judéia, e, logo depois, dispersos pelo mundo, anunciaram a mesma doutrina e a mesma fé às nações e, portanto, fundaram igrejas em quase todas as cidades. Destas, depois, as outras igrejas derivaram a raiz de sua fé e a semente da doutrina, e ainda a derivam para serem justamente igrejas. Desta maneira, também estas são consideradas apostólicas, como descendências das igrejas dos apóstolos.”279

Conforme se manifestavam mais e mais grupos que alegavam possuir uma

revelação secreta de Jesus ou de algum de seus seguidores imediatos,

entrelaçaram-se ainda mais fortemente em algumas das comunidades cristãs as

idéias de tradição, legitimidade e sucessão apostólica, de modo que já durante o

século II consolidou-se entre estes a doutrina de que a continuidade era algo

essencial à existência da Igreja, concebendo-a como um “movimento de

comunicação da vida divina que, começando em Deus, se propagou pela terra,

através dos apóstolos e da sucessão dos bispos.”280 Pela necessidade apologética

de coligir provas contra os que eram considerados hereges, portanto, é que

nasceram as listas de bispos redigidas cronologicamente, provas documentais da

historicidade da sucessão apostólica e, desta forma, da ortodoxia do ensinamento

                                                            279 TERTULIANO DE CARTAGO. De præscriptione hæreticorum 20, 4-7. Apud: Angelo DI BERARDINO. “Listas episcopais”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 832. 280 Yves CONGAR. Mysterium Salutis. Petrópolis: Vozes, n. 12, vol. IV / 3, 1976. p. 160. Apud: A. DI BERARDINO. Op. cit. p. 833.

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de uma comunidade. Hegesipo281, Irineu de Lyon e Tertuliano de Cartago

buscaram a apostolicidade direta ou indireta de algumas das Igrejas de seu tempo

e o fizeram explicitamente para frustrar as pretensões de outros cristãos de serem

mais fiéis aos ensinamentos das origens. Mais uma vez, citemos o ardente teólogo

africano que registrou que

“(...) Pode ser que haja heresias que ousem referir-se à idade apostólica, de forma a parecerem ensinadas pelos apóstolos, por terem nascido no tempo deles. Pode-se replicar aos mesmos: apresentem então os documentos de nascimento de suas igrejas; exponham os catálogos de seus bispos, mostrando desde o princípio sua sucessão, para que se veja que aquele que foi o primeiro bispo recebeu a investidura e foi precedido por um dos apóstolos ou, ao menos, por um homem apostólico, que com os apóstolos mantivesse constantes relações. Este é o modo pelo qual as igrejas apostólicas exibem seus próprios títulos: assim a igreja de Esmirna mostra que Policarpo foi colocado sobre aquela sede por João; assim a de Roma mostra que Clemente ali foi ordenado por Pedro; e assim também as outras exibem seus bispos que, constituídos no episcopado pelos apóstolos, são para elas o veículo da semente apostólica.”282

Para esta mesma finalidade, que Eusébio muito bem poderia ter definido

como profilática, foi que o bispo de Cesaréia consultou e utilizou tais

documentos, elaborando ele mesmo o que cria ser as completas listas episcopais

das Igrejas paleortodoxas de Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Roma. Este

material é incorporado como parte constitutiva de sua História Eclesiástica - por

exemplo, em III : 4, 1-10; III : 37; IV : 21 e 22, 1-6; V : 5, 8-9 e 6; e VI : 9,1 – e

vai conformar a sua frente de ataque contra os que percebe como desviantes da fé

correta (ou seja, a sua). Eusébio compreendeu a conseqüência lógica do

argumento de não poucos dos Padres da Igreja que o precederam, e utilizou sua

erudição e espírito investigativo para provar através de documentos históricos que

toda heresia era de fato um pensamento posterior à reta fé (doxa), derivada de uma

independente e desautorizada – e, portanto, má – interpretação deste. Homem

afeito às letras, sensível à veneração helênica pelo passado, buscou alicerçar na

narrativa historiográfica o argumento patrístico de que a anterioridade

cronológica garantia a automática superioridade de conteúdo sobre todos os seus

pretensos dissidentes.283 Na contemporaneidade pudemos duvidar disto porque

                                                            281 Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IV : 22, 3. pp. 139-140. 282 TERTULIANO DE CARTAGO. De præscr. 32, 1ss. Apud: A. DI BERARDINO. Op. cit. p. cit. 283 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 192.

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“(...) Não só os manuscritos da Biblioteca de Nag-Hammadi e o Códex Tchacos

provam o contrário (o Evangelho de Tomé é o mais antigo evangelho de que se

tem notícia), como a pesquisa de Bauer sobre Edessa e Alexandria mostra que, lá,

os heréticos chegaram e dominaram muito antes [e] (...) Os retardatários foram os

ortodoxos.”284 Não temos, entretanto, condição de verificar se Eusébio submeteu

os dados empíricos inescrupulosamente às suas convicções e pretensões

religiosas, para de forma deliberada tentar criar uma verdade, ou se simplesmente

trabalhou com a documentação a que teve acesso e considerou mais autorizada.

Esta consideração, entretanto, não nos impede de valorizar o seu empenho

particular e as interessantes – e talvez perversas – conseqüências deste, como, por

exemplo, o fato de ter preservado os nomes e títulos das obras de tantos autores

com os quais não concordava e os quais hoje só conhecemos por estas suas

referências.285

Ao registrar em um relato historiográfico os enfrentamentos entre a Igreja

da qual se considerava membro e as inúmeras heresias que lhe desafiavam a

pretensão de ser a única depositária através dos tempos e espaços diversos da

verdade legada por Jesus Cristo aos homens, Eusébio teve de desenvolver uma

abordagem muito nova tanto em relação à Bíblia Judaica e a Josefo, onde,

obviamente, não está presente o pejorativo conceito cristão de heresia286, quanto

em relação ao livro canônico dos Atos dos Apóstolos, onde esta questão tem

                                                            284 Id. Op. cit. p. 191. Sobre a referida pesquisa do alemão Walter Bauer, ver: Ibid. Op. cit. pp. 186-189 e nota correspondente, n. 76, p. 272. 285 Cabe mencionar aqui a afirmação do crítico literário Harold Bloom de que, de certo modo, os rabinos foram mais argutos ao lidar com seus dissidentes do que os antigos Padres da Igreja – entre os quais certamente Eusébio de Cesaréia –, já que preferiram oferecer-lhes quase invariavelmente o silêncio do que registrar e examinar os seus argumentos para poder refutá-los. De um modo geral, a ortodoxia judaica se recusou “até mesmo a mencionar os hereges, esperando com isso sepultá-los para sempre. O silêncio rabínico, mais ainda que a denúncia patrística, foi imensamente bem-sucedido em seu plano de suprimir o que Idel chama de ‘controvérsia interna no pensamento judeu’. [De fato, devido a isto, por exemplo] (...) todos os textos gnósticos que hoje possuímos, em todo ou em parte, representam o gnosticismo cristão do século 2 da Era Comum.” Harold BLOOM. Presságios do Milênio : Anjos, Sonhos e Imortalidade. (Trad. Marcos Santarrita). Rio de Janeiro: Objetiva, 1996. p. 139. 286 Segundo Vittorino Grossi, o termo – que muito possivelmente é derivado de (“retirar”) ou (“escolher”) – provém do vocabulário das escolas filosóficas da época helenística, e em Fílon, Flávio Josefo e na Septuaginta foi usado para indicar as várias correntes existentes no judaísmo, sendo original e hegemonicamente empregado aí sem um sentido depreciativo. Apenas paulatinamente esta expressão começou a indicar os que se afastavam do judaísmo da grande corrente (rabínico ou – antes de 70 – saduceu), e neste sentido foi empregada pelos judeus em âmbito cristão (ou seja, para designar os seguidores de Jesus Cristo como judeus desviantes). Cf. Vittorino GROSSI. “Heresia – Herético”. In: VV. AA. Op. cit. p. 665.

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apenas um pequeno papel.287 Na historiografia pagã difundida em seu tempo,

contudo, havia um tipo de narrativa que o podia ajudar significativamente. Este

era a história das escolas filosóficas tal como ela foi escrita por Diógenes Laércio.

Nos dez volumosos livros de sua Historias de filósofos, Laércio recolheu uma

vertiginosa quantidade de citações, manancial de incalculável valor para os

estudiosos posteriores, e reuniu listas das sucessões de mestres, notas

doxográficas, apoftegmas e catálogos de livros. Há indícios de que para realizar

esta empreitada ele mesmo baseou-se na obra de João Estobeu (século V a.C.), um

literato macedônico que reuniu em uma Antologia de quatro livros passagens de

poetas e prosadores acompanhadas de uns seus de pequenos perfis bio-

bibliográficos.288 No âmbito das escolas filosóficas helenísticas a idéia de

continuidade sucessiva (diadoquia) era pelo menos tão importante quanto para o

cristianismo de Eusébio de Cesaréia – onde os bispos eram diadocos dos

apóstolos da mesma forma que os scolarchai o eram de Platão, Pirro, Zenão e

Epicuro. A idéia de sucessão nos estudos também foi essencial para o

estabelecimento do pensamento rabínico – como, mais tarde, viria a ser para os

cabalistas – mas este, por sua vez, se desenvolveu já sob o impacto do contexto

retratado pelos escritos de Diógenes. Como a Igreja Cristã, as correntes de

pensamento do helenismo também tinham suas ortodoxias e seus

desviacionismos. Uma outra afinidade entre a historiografia eusebiana e a de

Diógenes Laércio e seus pares é que, como o bispo de Cesaréia, “os historiadores

da filosofia na Grécia usaram métodos antiquários e citaram documentos com

muito mais freqüência e profundidade do que seus colegas, os historiadores

políticos. (...) documentação direta, original, era essencial para estabelecer a justa

reivindicação de autenticidade da ortodoxia contra perseguidores internos e

dissidentes externos.”289 Voltaremos ainda a isto.

Para Eusébio de Cesaréia, que não sabemos se foi leitor ou não do grande

historiador antigo da filosofia grega, entretanto, as diferentes adesões dos

diferentes homens a diferentes formas de pensar e regras de conduta não se dava

pela própria natureza vária destes, mas, muito diversamente do que poderia

afirmar Diógenes Laércio, pela maligna incitação demoníaca. É isto que Eusébio,                                                             287 Cf. A. MOMIGLIANO. Op. cit. p. 197. 288 Cf. A. LESKY. Op. cit. p. 890. 289 A. MOMIGLIANO. Op. cit. p. 198.

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citando um escrito de Justino Filósofo, demonstrou ao tratar de um heresiarca de

nome Simão, que identificava com aquele Simão, dito o Mago, que teria se

envolvido na Samaria em uma disputa com Pedro e João290:

“(...) havendo-se propagado a fé em nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo a todos os homens, o inimigo da salvação dos homens já tramava antecipar-se na captura da cidade imperial e para lá conduziu Simão (...). De fato, segundo as hábeis artes deste homem, ganhou para o erro muitos habitantes de Roma. Isto é demonstrado por Justino, que se distinguiu em nossa doutrina não muito tempo depois dos apóstolos e de quem exporemos oportunamente o que seja conveniente. Em sua primeira Apologia, dirigida a Antonino, em favor de nossa fé, escreve como segue: ‘E depois da ascensão do Senhor ao céu, os demônios levaram alguns homens a dizer que eram deuses, e estes não somente não foram perseguidos por vós [os romanos], mas até considerados dignos de honras. Um tal Simão, samaritano, originário da aldeia chamada Giton, que em tempos de César Cláudio realizou mágicos prodígios em vossa imperial cidade, Roma, por arte dos demônios que nele operavam, foi tido por deus, e como a um deus foi honrado por vós com uma estátua (...). E quase todos os samaritanos, além de uns poucos de outras nações, proclamaram-no e adoraram-no como ao Deus primeiro. E uma certa Elena, que na época andava com ele, e que primeiro estava num prostíbulo – em Tiro da Fenícia –, chamavam-na o Primeiro Pensamento nascido dele.’ (...) Recebemos pois por tradição que Simão foi o primeiro autor de toda heresia. Dele até hoje aqueles que, participando de sua heresia fingem a filosofia dos cristãos, sóbria e celebrada universalmente por sua pureza de vida, chegam de novo à superstição idólatra da qual pareciam estar livres, pois se prosternam diante de escritos e imagens do próprio Simão e de sua companheira, a já citada Elena, e se esforçam em render-lhes culto com incenso, sacrifícios e libações. Mas suas secretas práticas, das quais se diz que quem pela primeira vez as escuta fica estupefato e, segundo uma expressão escrita que corre entre eles, espantado, verdadeiramente estão cheias de espanto, de frenesi e de loucura, e são tais que não somente não podem ser colocadas por escrito, mas que nem sequer com os lábios pode um homem sensato pronunciar o mínimo, pelo exagero de obscenidade e costumes infames. Porque tudo quanto se possa pensar de mais impuro e vergonhoso fica bem superado pela abominável heresia destes homens, que abusam de mulheres miseráveis e carregadas verdadeiramente de males de todo tipo.”291

Prosseguindo a análise do antes referido plano que Eusébio de Cesaréia

anuncia nas primeiras linhas de sua História Eclesiástica, mais dois aspectos de

grande interesse podem ser destacados: o relativo à economia e o pertinente à

teologia de Cristo.292 Em linhas bastante significativas ele encerra a sua

                                                            290 Cf. BÍBLIA. Ver cit. Atos dos Apóstolos 8, 9-25. p. 1915. 291 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro II : 1-4.6-8. pp. 58-59. 292 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. p. 191.

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introdução à mencionada obra reafirmando a necessidade de começar esta

narrativa historiográfica através da economia e da teologia do Filho de Deus:

“(...) E começarei, como disse, pelas disposições [] e a teologia [] de Cristo, que em elevação e grandeza excedem ao homem. Já que, efetivamente, quem se disponha a escrever as origens da história eclesiástica deve necessariamente começar por remontar-se à primeira disposição de Cristo mesmo – pois foi d’Ele mesmo que tivemos a honra de receber o nome – mais divina do que possa parecer ao vulgo.”293

Como chamou a atenção Celso Taveira, “(...) Economia e teologia são dois

termos especialmente caros ao vocabulário cristão, diretamente ligados que estão

ao problema da natureza de Cristo.”294 No sentido mais geral oikonomia significa

“disposição”, ou, neste contexto, mais exatamente, “disposição providencial [de

Deus]”, aquilo que os Padres latinos traduziram por dispensatio (Jerônimo),

dispositio ou admnistratio (Agostinho de Hipona). Já na epístola de Paulo aos

Efésios (1, 9-10) este termo foi empregado em um sentido técnico para expressar

que em Jesus Cristo hão de se realizar todos os desígnios de Deus Criador e

Condutor de todas as coisas visíveis e invisíveis no dia previsto para a restauração

das criaturas no céu e na terra.295 Justino Filósofo usou oikonomia para fazer

referência às disposições de Deus relativas à Encarnação e a Paixão e Morte de

Jesus, mas também para tratar das determinações divinas em geral. Inácio de

Antioquia utilizou-o de forma bem mais restrita, apenas para lidar com a

concepção virginal do Filho de Deus no seio de Maria. Ireneu de Lyon foi quem

consagrou o uso deste vocábulo para designar a realidade externa da Encarnação e

da Redenção, ou seja, a crença de que o Verbo efetivamente se fez carne e

efetivamente foi torturado e morto na cruz para a redenção dos pecados de todos

os homens e mulheres de todos os tempos. Eusébio de Cesaréia, por sua vez,

empregou a palavra tanto no sentido mais geral de disposição providencial de

                                                            293 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 1, 7-8. p. 16. 294 C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit. 295 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. pp. 2039-2040: “(...) conforme decisão prévia que lhe aprouve [i.e., a Deus] tomar para levar o tempo à sua plenitude [eis oikonomíam tou pléromatos ton kairon]: a de em Cristo encabeçar todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra.” Celso Taveira anotou que “(...) O ‘pleroma’ é um conceito grego para ‘preenchimento’ (‘fulness’), podendo apresentar sentido ativo ou passivo. Assim, a Igreja completa Cristo ou é preenchida por Cristo, assim como Cristo pode estar acima da Igreja como sua cabeça, mas também dentro da Igreja, que é seu corpo.” Cf. W. R. F. BROWNING. A Dictionary of the Bible. Oxford: Oxford University Press, 1996. p. 297. Apud: C. TAVEIRA. Op. cit. p. 192, n. 44.

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Deus levada a cabo por Jesus Cristo, “ministro executor das obras paternas”296,

para ele o significado principal, como para se referir à Sua atividade salvífica – os

ensinamentos, milagres, morte e ressurreição, mas também as teofanias anteriores

à Encarnação.297

Ainda que na passagem acima citada da História Eclesiástica pareçam

estar contrapostos este termo e o teologia – que designa em nosso autor, assim

como em seu mestre Orígenes, o relacionamento eterno do divino Pai com o seu

divino Filho e destes com o divino Espírito Santo – no curso desta obra eles não

vão ser tratados em capítulos à parte, como se fossem matérias absolutamente

distintas. No artigo intitulado “La théologie d’Eusèbe de Césarée d’après

l’Histoire Ecclésiastique”, Gustave Bardy atribuiu ao bispo de Cesaréia uma

adesão estruturante a esta oposição, que ele percebeu como sendo referente à

compreensão de uma diferenciação verbalmente passível de ser marcada entre o

elemento humano de Cristo (oikonomia) e o sua divindade (teologia). Para chegar

a tal conclusão, ele se baseou na distinção feita por Gregório Nazienzo e

Severiano de Gabala (segunda metade do século IV, primeira metade do século V)

entre os evangelhos da oikonomia (os três sinóticos) e o da teologia (o atribuído a

João), aplicando-a retrospectivamente (de modo anacrônico, portanto) à obra

eusebiana. Fazendo isto ele não considerou com a devida importância a já

mencionada questão das teofanias pré-Encarnação do Filho, que ocupam um

espaço bastante considerável do primeiro Livro da História Eclesiástica e são

tomadas por Eusébio como parte da oikonomia de Cristo, ainda que, de acordo

com Bardy, este afirmasse que tais coisas pertenceriam à sua teologia.298

Em seguida à passagem antes transcrita, expressa-se Eusébio para

esclarecer em que sentido percebe a natureza de Cristo e como relaciona esta

problemática com o própria obra historiográfica que se dispôs a apresentar:

“(...) Sendo a índole de Cristo dupla: uma semelhante à cabeça do corpo, e por esta o reconhecemos como Deus, e outra, comparável aos pés, mediante a qual, e para a nossa salvação ele se revestiu de homem, sujeito ao mesmo que nós, nossa exposição a seguir será perfeita se iniciarmos o discurso de toda sua história partindo dos pontos principais e dominantes. Deste modo, a antigüidade e o

                                                            296 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 2, 5. p. 17. 297 Cf. p. ex. Id. Op. cit. Livro I : 2, 6-15. p. 16-19. Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 5, n. 10. C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit. 298 Cf. Id. Op. cit. p. 7, n. 14. Basilio STUDER. “Teologia”. In: VV. AA. Op. cit. p. 1346.

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caráter divino dos cristãos ficará patente aos olhos de todos que pensam que [o cristianismo] é algo novo, estranho, de ontem e não de antes.”299

Marcada esta distinção entre duas índoles em Jesus Cristo, é interessante

pensar que um pouco mais adiante, após piedosos salamaleques e constatações de

que nenhum homem é suficientemente instruído para dissertar sobre os inefáveis

mistérios da existência, anterior aos séculos, do Filho junto ao Pai, Eusébio

começa a sua narrativa da história dos cristãos daquilo que cria ser realmente o

começo de seu assunto. Para fazê-lo, cita (I : 2, 3) as primeiras linhas do

Evangelho de João (1, 1.3). Ao contrário do antes citado Severiano, bispo de

Gabala, localidade da Síria, exegeta morto ainda relativamente jovem em 430, que

foi amigo e vigário de João Crisóstomo (401) e depois se sentou entre os

acusadores deste arcebispo de Constantinopla no sínodo dito do Carvalho (403),

que distinguiu entre os evangelhos endereçados a todas as nações e adequados

para o uso missionário-pastoral (os sinóticos) e aquele que, aprofundando o

pensamento de Cristo sobre si mesmo, é adequado apenas aos batizados e à leitura

contemplativa (o de João) – acima já destacamos que ele identifica aqueles como

se ocupando da oikonomia e este como da teologia do Filho de Deus –, o bispo de

Cesaréia associa-os a um mesmo movimento humano e divino que se dá

concretamente no tempo e no espaço. 300 Na condição de ser humano, Jesus Cristo

foi um sujeito histórico: nasceu nos dias do reinado de Herodes Antipas, recebeu

um nome de José, esposo de Maria, aprendeu o ofício de carpinteiro, anunciou

que “(...) Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo”301, reuniu

discípulos e com eles conviveu por volta de três anos, subiu a Jerusalém por

ocasião de uma festa da Páscoa, e foi aí crucificado sob as ordens de Pôncio

Pilatos; como sujeito divino, Ele transcende a história, e, mais do que isso, a

dispõe, de acordo com os desígnios de seu Pai Todo-Poderoso. Ao fazer tais

afirmações, “(...) Além do propósito genérico de assentar num alicerce perpétuo as

honras divinas de Cristo”302 e do povo que recebe o seu nome – ou seja, os

cristãos –, e do intento apologético de refutar as proposições dos ebionitas (que

                                                            299 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 2, 1. p. 16. 300 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 192-193. Sever J. VOICU. “Severiano de Gabala”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 1276-1277. 301 BÍBLIA. Ver. cit. Marcos 1, 15a. p. 1760. 302 E. GIBBON. Op. cit. p. 345.

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consideravam Jesus o maior dos profetas, mas não Deus) e dos docetas (que

negavam a realidade da Encarnação de Jesus), Eusébio posicionou-se como

defensor de uma cristologia do alto, bem de acordo com a tradição joanina.

Antes de prosseguirmos, para maior clareza em nosso assunto, é necessário

que façamos alguma consideração a respeito desta importantíssima vertente

cristológica assumida pelo bispo de Cesaréia como o mais relevante fundamento

religioso de sua produção histórica. Uma boa e sucinta maneira de empreender tal

análise é observando a distância que há entre certos trechos especialmente

significativos do princípio do tardio Evangelho de João e do primitivo Evangelho

de Marcos, que, como já indicamos em outra ocasião, a pesquisa contemporânea

considera como sendo o mais antigo dos evangelhos intracanônicos.

Em Marcos, o começo da história de Jesus que deve ser conhecida pelos

fiéis e preservada pela consignação por escrito da ação destruidora do tempo é a

pregação de João Batista, encarada como cumprimento de certo trecho das

profecias de Malaquias e de Isaías.303 Não interessa saber a genealogia ou as

circunstâncias do nascimento do Nazareno: tudo o que importa saber é que

“(...) Aconteceu naqueles dias que Jesus veio de Nazaré da Galiléia e foi batizado por João no rio Jordão. E, logo ao subir da água, ele viu os céus se rasgando e o Espírito, como uma pomba, descer até ele, e uma voz veio dos céus: ‘Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo.”304

Estritamente, o trecho citado não permite inferir se Jesus passou a ser

“Filho de Deus” no momento em que, encharcado e amparado pelo Batista, teve

esta revelação ou se desde sempre o é. Para o redator do Evangelho de Marcos,

portanto, aparentemente tal circunstância não parece ser objeto de maior interesse.

Daí ao prólogo do Evangelho de João, dele apartado no máximo por algumas

décadas, há um verdadeiro abismo. Sem mais delongas, o redator do texto joanino

identifica Jesus a Deus Criador do mundo, anterior a este e seu Senhor. No

homem de Nazaré está, desde sempre a origem e conhecimento de todas as coisas.

                                                            303 Mais especificamente, de Malaquias 3, 1 – “Eis que enviarei o meu mensageiro para que prepare meu caminho diante de mim” – e de Isaías 40, 3 – “(...) Uma voz clama: ‘No deserto, abri um caminho para Iaweh, na estepe, aplainai uma vereda para o nosso Deus” –, trechos transcritos no corpo textual marcano logo após uma brevíssima introdução de uma única frase (Marcos 1, 1) – “(...) Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.” Cf. BÍBLIA. Ver. cit. ps. 1313, 1683 e 1759. 304 Id. Ver. cit. Marcos 1, 9-11. p. 1759.

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Em uma página de excepcional enlevo poético, João – nome que aqui usamos por

pura conveniência, ciente de que um evangelho não é uma peça literária autoral no

sentido moderno, mas uma espécie de coro polifônico de autoria realmente

anônima305 – retoma um hino mais antigo que faz referência à criação do mundo

apresentada no primeiro capítulo do livro do Gênesis306 e proclama que:

“(...) No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. (...) E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós; e nós vimos sua glória, glória que ele tem junto ao Pai, como Filho único, cheio de graça e de verdade. João dá testemunho dele e clama: ‘Este é aquele de quem eu disse: o que vem depois de mim passou adiante de mim, porque existia antes de mim’. Pois de sua plenitude todos nós recebemos graça por graça (...) a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. Ninguém jamais viu a Deus: o Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o deu a conhecer.”307

É lento e complexo o processo pelo qual a maioria significativa passa a

aceitar Jesus como sendo Deus: o fato de Ário, nos dias de Eusébio e com a

simpatia deste, incomodar-se com tal afirmação e encontrar tamanha ressonância

às suas idéias, por si só, é prova suficiente disto.308 No texto joanino, contudo, tal

convicção já está bem assentada, assumida como um a priori. De um ponto de

vista narrativo, o corolário desta identificação, adequadamente levado em

consideração o pressuposto judaico da soberania de Deus sobre todas as coisas

naturais – Ele é o que envia o trovão “pela vastidão dos céus, e seus raios aos

confins da terra”309; é quem “fechou com portas o mar, quando irrompeu jorrando

do seio materno”310 – e humanas – Ele é o que “(...) suscitou do Oriente aquele

que a justiça chama para segui-la, a quem ele entrega as nações e sujeita os reis

(...) Aquele que desde o princípio chamou à existência as gerações”311 – é o de

que homem de Nazaré desde antes do mundo conhece e controla todas as

situações de sua vida. Distante está incerteza do Jesus que hesita no horto e se                                                             305 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 173-174. 306 Cf. BÍBLIA. p. 1842, nota a. 307 Id. João 1, 1-3.14-16.17b.-18. pp. 1842-1844. 308 Cf. Karen ARMSTRONG. Uma história de Deus : Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. (Trad. Marcos Santarrita; rev. da trad. Hildelgarda Feist e Wladimir Araújo). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. pp. 147-150. 309 BÍBLIA. Ver. cit. Jó 36, 3. p. 848. 310 Id. Ver. cit. Jó 38, 8. p. 850. 311 Ibid. Ver. cit. Isaías 41, 2.4a. p. 1316.

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angustia na cruz312: como uma rocha, o Messias de João se mantém impassível

diante dos que o vão prender, intercedendo ainda pelos seus313; quase alheio aos

suplícios, não morre, mas entrega o espírito, cumprindo o que havia dito

anteriormente: “(...) dou minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas

eu a dou livremente.”314

Como registram John B. Gabel e Charles B. Wheeler, passar dos textos

sinóticos “ao evangelho de João sem tê-lo conhecido antes é uma espécie de

choque.”315 O estilo do texto e o tom de sua narrativa são radicalmente diversos

daqueles que caracterizam os de Marcos, Mateus e Lucas, e, como já

mencionamos, mesmo a figura de Jesus é aí um pouco estranha, não mais uma

personagem ativa e engajada, demasiado humana, mas alguém que está em um

patamar acima, que observa e intervém no reino dos assuntos humanos como

quem tudo enxerga de fora e sempre sabe o que irá acontecer.316 Ao que tudo

indica o Evangelho de João é produto de outra tradição cristã primitiva,

semelhante à que gerou os textos sinóticos, mas inicialmente independente

desta.317 Pouco depois de aparecer, oriunda de certa pregação apostólica e de seu

diálogo com o pensamento religioso samaritano, não centrado na espera de um

Messias de tipo davídico, com correntes gnósticas semi-cristãs e quase-cristãs,

com o judaísmo rabínico, com a filo-teologia de Fílon de Alexandria e com os

textos herméticos, esta peculiar versão de Jesus passou por uma revisão que a

aproximou das narrativas marcana, mateana e lucana. Isto teria se dado tanto pela

apropriação de histórias de milagres e relatos da Paixão, quanto pela aceitação da

autoridade de Pedro, a quem, ressuscitado, por três vezes o Nazareno teria dado o

encargo de cuidar do conjunto de seus seguidores.318 Cotejado pelas cartas ditas

                                                            312 Ver, respectivamente, Marcos 14, 33.35-36a – “(...) começou a apavorar-se e angustiar-se (...) caiu por terra, e orava para que, se possível, passasse dele essa hora. E dizia: ‘Abba (Pai)! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice” – e 15, 34 – “(...) deu um grande grito, dizendo: ‘Eloi, Eloi, lemá sabachtháni’ que, traduzido, significa: ‘Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?’”. Ibid. Ver. cit. ps. 1781 e 1784. 313 Cf. Ibid. João 18, 1-9. p. 1888. 314 Ibid. João 10, 17b-18a. p. 1869. 315 J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 180. 316 Id. Op. cit. p. 181. 317 Cf. John P. MEIER. Um judeu marginal : Repensando o Jesus histórico. (Trad. Laura Rumchinsky). (3ª ed.). Rio de Janeiro: Imago, 1992. v. 1. p. 53. 318 Cf. Raymond Edward BROWN. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 39. Charles Harold DODD. A Interpretação do Quarto Evangelho. (Trad. José Raimundo

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de João que também foram incorporadas ao cânone neo-testamentário, escritos

dedicados essencialmente a salvaguardar o texto do Quarto Evangelho de

interpretações espiritualistas e anárquicas319, esta narrativa levou para o seio da

Grande Igreja uma cristologia que realça o caráter de Jesus como personagem

divino, o que, para os oponentes judeus do movimento cristão era uma maneira

caracteristicamente helênica de infringir o Primeiro Mandamento da Lei

Mosaica.320 O pregador galileu, entretanto, foi compreendido pelos seus

seguidores como Deus de forma muito diversa da que os helênicos compreendiam

os diversos homens-deuses que povoavam a rede de sistemas religiosos

estruturada em torno da bacia do Mediterrâneo na Antigüidade e que com a sua

história possuíam tantos paralelos significativos. O caso é que este cristianismo

que professava que Jesus, sendo homem, também estava por sua própria natureza

muito além dos simples mortais, e que viria a se tornar o ortodoxo, “reunia em si a

atração de todas as religiões [que lhe eram] rivais.”321

Na figura do Filho de Deus, o divino dava-se a conhecer a todas as pessoas

e não apenas a um pequeno grupo de iniciados ou eleitos. Por amor das indignas

criaturas, Jesus teria se despojado de sua glória anterior ao mundo para se tornar

homem, e deste modo sofrer a morte de um criminoso com o paradoxal fim de

atrair para si todas as coisas: tratava-se de coisa mais radical do que poderiam

conceber os seguidores de Dioniso, os conhecedores da lenda de Prometeu, e

mesmo os seguidores do budismo Mahayana, centrado na figura do bodhisattva,

um iluminado que, por piedade pura e simples, deliberadamente adia a sua entrada

ou dissolução na beatitude do não-ser para ajudar os demais a encontrarem

também a libertação. Como o rei-mártir espartano Ágis e como Tibério Graco, o

Nazareno dedicara sua vida ao povo sem recorrer à força, nem mesmo para se

preservar da violência de seus inimigos; como estes e como Tibério, como Trifon,

o rei dos escravos sicilianos, e como o gladiador rebelde Espartáco teve um fim de

carreira tão abrupto quanto violento – o que só depunha a seu favor tanto junto                                                                                                                                                                    Vidigal). São Paulo: Teológica / Paulus, 2003. p. 181ss. Helmut KÖESTER. Introdução ao Novo Testamento. Vol. 2 : História e literatura do cristianismo primitivo. (2ª ed.). São Paulo: Paulus, 2005. ps. 194, 196 e 211. BÍBLIA. Ver. cit. João 21, 14-17. p. 1894. 319 Cf. p. ex.: Id. Primeira Epístola de João 2,22 e 4, 2-3. ps. 2127 e 2130. 320 Cf. Arnold Joseph TOYNBEE. Helenismo : História de uma civilização. (Trad. Waltensir Dutra; introd. Antonio Olinto). (5ª ed.). Rio de Janeiro: Zahar, 1983. (Col. “Biblioteca de cultura histórica”). p. 207. 321 Id. Op. cit. p. 200.

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aos que eram vítimas da brutalidade de seu tempo quanto diante dos que sofriam o

tédio de uma vida insípida, sem nenhuma oportunidade de se arriscar por uma

causa que considerassem que, sendo superior a si mesmos, realmente valia a pena.

Do mesmo modo que o deus da vegetação Osíris-Adônis-Átis-Tamuz vencera a

morte e voltara à vida; como Rômulo, como Héracles, como Empédocles, como

Alexandre Magno e como Enoque, ascendeu aos céus. Como Mitra, superou as

tentações que se lhe apresentaram, fosse a de realizar uma carreira como líder

político popular e revolucionário, ou a de fugir do suplício que lhe estaria

reservado desde sempre; como Hadad, deus da tempestade sírio, também

conhecido como Júpiter Dolichê, iria aparecer a qualquer momento sobre as

nuvens para auxiliar os seus fiéis e fustigar os inimigos destes; como Krishna,

como Augusto, como Alexandre e como todos os faraós, era filho de um deus com

uma mulher humana.322 O Pai de Jesus não seria, entretanto, apenas um membro

de um panteão celestial qualquer, ou mesmo o Deus sublime e bom do dualismo

zoroastriano, mas o próprio Verdadeiro Deus Único dos hebreus, figura religiosa

que havia evoluído muitíssimo de importância e escopo de atuação desde os

primórdios em que era apenas a ciumenta divindade protetora de seus clãs

preferidos.323

Assumindo tal posição cristológica, Eusébio podia incorporar à sua própria

versão do cristianismo uma vastíssima fatia do imaginário religioso eurasiano.

Dele bem poderia ser a frase que mais tarde escreveria Agostinho de Hipona: “o

deus do boné frígio [Átis] era cristão.”324 Ecclesia ab Abel: o conteúdo específico

da religião cristã já existia desde a origem do mundo, ainda que oculto em

imagens imperfeitas e desconexas; tudo pode ser reivindicado pelos cristãos como

seu na medida em que expresse aspectos daquilo que consideram correto e bom;

Cristo manifestou o que estava oculto, já presente de forma velada, ou, em uma

imagem esteticamente cara aos cristãos do tempo de Eusébio, recolheu as

diversas, desiguais, esparsas e insignificantes peças nas quais depositavam-se os

germes de verdade que indicavam a criação do homem por Deus e a participação

                                                            322 Em relação à sua filiação, Arnold Toynbee escreveu também que “(...) a mãe humana de Jesus, Maria, estava de reserva, esperando o momento de tomar o lugar de Ísis e Cibele como a Grande Mãe de Deus (a Theotókos, que significa ‘gestadora de Deus’).” Ibid. Op. cit. p. 201. 323 Cf. K. ARMSTRONG. Op. cit. pp. 25-104. 324 Citado em: Richard BERGERON. Fora da Igreja também há salvação. (Trad. Maria Stela Gonçalves; rev. Iranildo B. Lopes). São Paulo: Loyola, 2009. p. 69.

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de sua espiritualidade e racionalidade no Seu Espírito e no Seu Logos e reuniu-as

em um glorioso mosaico capaz de vislumbrar as gentes e guiar-lhes o pensamento

a Deus.325

Da mesma maneira, ao compreender como associada à natureza de Jesus

Cristo a do Criador e Todo-Poderoso Deus Único – em que pesem os pendores

arianos que mais tarde virá a manifestar, tendências que temos boas razões para

suspeitar que se devem mais a considerações de ordem político-administrativas do

que propriamente teológicas –, e a história eclesiástica como um desdobramento

de seu ministério salvador, Eusébio também pode fundamentar teologicamente a

transferência da eleição divina e da realeza do Velho Israel (a nação judaica) para

o Novo Israel (a sua Igreja), coisa que ele considerava como um fato histórico já

consumado:

“(...) Foi nesse tempo que assumiu o reinado sobre o povo judeu, pela primeira vez, Herodes, de família estrangeira, e cumpriu-se a profecia feita por meio de Moisés, que dizia: Não faltará chefe saído de Judá nem governante nascido de sua carne até que chegue aquele para quem está reservado, e sinaliza-o como esperança das nações. Esta predição efetivamente não havia sido cumprida durante o tempo em que ainda lhes era permitido viver sob governantes de sua própria nação, começando com o próprio Moisés e continuando até o império de Augusto. Nos tempos deste é que pela primeira vez um estrangeiro, Herodes, se vê investido pelos romanos com o governo dos judeus: segundo nos informa Josefo, era idumeu por parte de pai e árabe por parte de mãe. (...) Tendo pois o reino judeu vindo às mãos de tal pessoa, a expectativa das nações, conforme a profecia, estava também à porta; haviam desaparecido do reino os príncipes e mandatários descendentes por via de sucessão entre si do próprio Moisés. (...) Em seu tempo ocorreu visivelmente a vinda de Cristo e, segundo a profecia, seguiu-se a esperada salvação e vocação dos gentios. A partir deste tempo, efetivamente, os príncipes e mandatários originários de Judá, quero dizer, os que vinham do povo judeu, desapareceram, e em seguida naturalmente viram perturbados também os assuntos do sumo sacerdócio, que até então vinha sendo passado de modo estável de pais a filhos em cada geração. Encontramos importante testemunho de tudo isso em Josefo, que explica como Herodes, assim que os romanos lhe confiaram o reino, deixou de instituir sumos sacerdotes vindos da antiga linhagem, pelo contrário, distribuiu esta honra entre gente sem expressão. E diz ainda que na instituição dos sacerdotes Herodes foi imitado por seu filho Arquelau e depois dele pelos romanos, quando tomaram para si o governo dos judeus. O mesmo Josefo explica como Herodes foi o primeiro a fechar sob seu próprio selo as vestimentas sagradas do sumo sacerdote, não permitindo mais aos sumos

                                                            325 Cf. Id. Op. cit. pp. 69-70. Fernanda da S. M. SOARES. Mosaicos em procissão : A política de imagens de Justiniano em Ravena (527 – 565 a.D.). 2006. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de Brasília, Brasília (BR). pp. 14-15.

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sacerdotes levá-las sobre si, e que o mesmo foi feito por seu sucessor Arquelau, e depois deste pelos romanos. Tudo o que foi dito sirva também como prova do cumprimento de outra profecia referente à manifestação de Jesus Cristo nosso Salvador. No livro de Daniel, a Escritura determina clara e expressamente um número de semanas até o Cristo-Príncipe (...) e profetiza que, depois de cumpridas estas semanas, seria extinta por completa a unção entre os judeus. Agora, pois, demonstra-se claramente que também isto se cumpriu com o nascimento de nosso Salvador Jesus Cristo.”326

Lançando mão de uma circunstancial citação da narrativa do historiador

judeu Flávio Josefo, Eusébio pretendeu mostrar no tempo e no espaço como se

transferiu a preferência de Iahweh dos judeus para os cristãos através de Jesus de

Nazaré. Fazendo isto, de um só golpe refutou o judaísmo ao mesmo tempo em que

incorporou, junto com as genealogias do Messias, as suas antigas tradições

monárquica, sacerdotal e profética, considerado-as todas como referentes ao

Verbo feito carne e seus seguidores. Sem maiores tensões, podia então reafirmar o

quanto a religião dos hebreus era efêmera e contingente diante do Cristianismo

(Demonstração Evangélica), ao mesmo tempo em que firmava a posição de que,

diante dela, o paganismo greco-latino era uma superstição muito pobre

(Preparação Evangélica). Assumindo o patrimônio do judaísmo normativo e

templário – e significativamente ignorando as especulações hebréias de tipo

gnóstico – Eusébio podia repudiar com serenidade aqueles que rejeitavam no todo

ou em parte – como, por exemplo, Marcião – os princípios do pensamento vétero-

testamentário no qual se baseava a sua teologia da história. Ainda que não faça

especificamente referência ao autor que estamos analisando, cabe aqui mencionar

um trecho composto pelo historiador das religiões Mircea Eliade que pode

enriquecer a nossa presente reflexão. Na mencionada passagem, o estudioso

franco-romeno registrou que, com efeito,

“(...) Ninguém podia proclamar-se cristão sem partilhar as doutrinas do Antigo Testamento referentes à gênese do mundo e à natureza do homem: Deus iniciara a obra cosmogônica criando a matéria e concluiu-a criando o homem, corpóreo, sexuado e livre, à imagem e semelhança do seu Criador. Em outras palavras, o homem foi criado com as potencialidades de um deus. A ‘história’ é a duração temporal durante a qual o homem aprende a praticar a sua liberdade e a santificar-se; em suma, a fazer o aprendizado do seu ofício de Deus, pois o termo da Criação é uma humanidade santificada. Isso explica a importância da

                                                            326 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 6, 1-2.4.8-11. pp. 28-30.

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temporalidade e da história, e o papel decisivo da liberdade humana, porque o homem não pode ser convertido em deus contra a sua vontade.”327

Ora, cremos que é bastante evidente a afinidade que tal concepção

expressa na citação acima tem com a noção eusebiana de que a história

eclesiástica é uma parte de oikonomia de Cristo. É o Filho, a quem o Pai deu

tudo328, quem instaura a nova Criação, pois nele o mundo será salvo.329 É a

pertença à comunidade dos cristãos, que testemunha a redenção oferecida por

Jesus Cristo e continua no mundo a sua missão330 que conduz o homem ao novo

nascimento sem o qual não poderá entrar no Reino de Deus.331 Pertencer ao

conjunto de seus discípulos é estar em Cristo, ser parte de Seu Corpo332, e “(...) Se

alguém está em Cristo, é nova criatura.”333 Frente à diversidade de cristianismos

que reivindicam todos serem os únicos caminhos para a salvação, Eusébio de

Cesaréia responde enfatizando que a única Igreja legítima é a fundada pelos

Apóstolos que haviam recebido de Jesus mesmo os seus ensinamentos e pública e

efetivamente haviam transmitido sua autoridade aos bispos seus sucessores.

Também os demais grupos cristãos dissidentes da instituição da qual o próprio

Eusébio era epíscopo reivindicavam a origem apostólica, mas, como os demais

Padres Apologistas, ele rejeita essas pretensas sucessões por serem secretas e

documentalmente inverificáveis. Conforme a afirmação de Irineu de Lyon, este

historiador buscou atestar que “antes de Valentino, não havia valentinianos, nem

marcionistas antes de Marcião”334, e para ele isto constituía uma acusação

fundamental e definitiva, já que tinha bem claro para si como surgiam as opiniões

que identificava como diferentes das transmitidas pelos Apóstolos; a respeito do

surgimento dos montanistas, por exemplo, registrou que:

                                                            327 Mircea ELIADE. História das Crenças e das Idéias Religiosas. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983. (Tomo II : De Gautama Buda ao Triunfo do Cristianismo; Volume 2 : Das Provações do Judaísmo ao Crepúsculo dos Deuses). pp. 165-166. 328 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. João 10, 29a. p. 1870. 329 Cf. Id. Ver. cit. João 3, 17b. p. 1848. 330 Cf. Ibid. Ver. cit. Atos dos Apóstolos 1, 8. p. 1900. 331 Cf. Ibid. Ver. cit. João 3, 5b. p. 1847. 332 Cf. Ibid. Ver. cit. Primeira Epístola aos Coríntios 12, 12-27. pp. 2008-2009. 333 Cf. Ibid. Ver. cit. Segunda Epístola aos Coríntios 5, 17. p. 2022. 334 IRENEU DE LYON. Adverus Haereses III : 4, 3. Citado em: M. ELIADE. Op. cit. p. 167, n. 4.

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“(...) Como o inimigo da Igreja de Deus é em último grau avesso ao bem e amante do mal e de forma alguma deixa de lado qualquer maneira de conspirar contra os homens, fez com que de novo brotassem estranhas heresias contra a Igreja. Destes hereges alguns, como serpentes venenosas, rastejavam pela Ásia e pela Frígia, vangloriando-se de ter como modelo Montano e nas mulheres de sua companhia, Priscila e Maximila, as supostas profetisas de Montanho.”335

A manutenção da tradição episcopal que remonta aos apóstolos e a

indicação da origem indigna dos grupos cristãos que afirmou serem desviantes

são, duas faces de uma mesma estratégia de auto-afirmação e refutação das

críticas feitas pelos outros partidos do movimento cristão que não o seu, os

principais pontos recorrentes dos oito primeiros livros da História Eclesiástica.

Os dois últimos livros, acrescentados mais tarde pelo autor para dar conta do fim

das perseguições romanas contra os cristãos, da vitória de Constantino contra os

seus inimigos políticos mais imediatos e as ações deste estadista em prol da

Grande Igreja, são os que esboçam de modo especial a sua teologia política –

levada depois ao pleonasmo no texto de uma Vida de Constantino que lhe foi

atribuída. Podemos considerar ainda que em todos eles a questão da continuidade

da liderança desde as origens até os dias de Eusébio aparece enquanto garantia de

legitimidade da verdadeira Igreja – assunto do qual já tratamos acima com o

vagar adequado –, mas que também se presta a considerações que visam estruturar

as relações hierárquicas a serem estabelecidas entre as diferentes comunidades

que, mantendo um contato regular, professam uma mesma fé e mantém uma

organização pastoral e um conjunto de normas litúrgicas e disciplinares mais ou

menos comuns. Ela é, portanto, elemento classificatório mesmo no interior da

Grande Igreja,

“(...) uma Igreja que aparece no singular no título de uma História na qual desfilam, de fato, um grande número de igrejas locais que ainda lutariam pela supremacia ou pela autonomia durante muito tempo. A sucessão apostólica tornou-se um ponto essencial na questão da legitimidade, embora viesse a ser desprezada na precedência posteriormente dada à Sé de Constantinopla sobre Alexandria e Antioquia no Concílio de Constantinopla de 381 (...). Esse tipo de legitimação é ao mesmo tempo eficaz e flexível. Permite a abertura a interesses

                                                            335 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Livro V : 14. p. 172. A importância da referência à figura da serpente neste contexto é mais ou menos óbvia: remete de imediato o leitor judeu ou cristão ao relato da Queda do gênero humano e à figura do Diabo, Adversário de Deus. Cf. BÍBLIA. Ver. cit. Gênesis 3. pp. 37-39.

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políticos circunstanciais, ao mesmo tempo em que confere autoridade teológica vinculando-se ao Antigo e ao Novo Testamento.”336

É nesta rede de comunidades historicamente dispostas no espaço e

hierarquicamente umas em relação às outras, que Eusébio vai localizar o

patrimônio da orthodoxia, definida na maior parte das vezes na sua História

Eclesiástica por explícita oposição a cristianismos considerados inadequados. Das

cartas de Dionísio de Corinto, por exemplo, o historiador destaca em primeiro

lugar uma que teria sido remetida à Igreja de Esparta (Aos Lacedemônios) como

“uma catequese de ortodoxia e exortação à paz e à união.”337 Basta-nos esta

pequena citação para perceber como o bispo de Cesaréia vincula a comunhão

eclesial à conformidade doutrinária. No Livro sexto desta obra, amplamente

dedicado à vida, obra e idéias de Orígenes, Eusébio escreve que desde bem jovem

o genial alexandrino teve de conviver com um heresiarca de origem antioquena, e

que mesmo que por necessidade estivesse

“(...) habitualmente com ele [na casa em que foi acolhido após o martírio de seu pai e o confisco do que lhe caberia como herança], já desde aquela idade dava provas claras de sua ortodoxia na fé, pois ainda que uma multidão incontável, não apenas de hereges, mas também dos nossos, se reunia junto a Paulo (assim se chamava o homem), porque lhes parecia eloqüente, jamais se conseguiu que o acompanhasse na oração, guardando desde menino a regra da Igreja e abominando – como diz textualmente sobre si mesmo em alguma parte – os ensinamentos das heresias.”338

Não podemos anacronicamente procurar nestes trechos de Eusébio a

Ortodoxia definida pelos Concílios de Nicéia (325) e Constantinopla (381) e

depois da vitória do partido iconódulo (843), fundada no termo aristotélico

orthodoxéo – que na Ética a Nicômaco designa uma tendência doutrinal assumida

                                                            336 C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 193-194. Para o estabelecimento da primazia de Constantinopla sobre as bem mais antigas dioceses de Alexandria, Antioquia e Jerusalém – mas não sobre Roma – foi fundamental o fato de se ter descoberto que André Apóstolo, irmão de Pedro, o segundo a ser chamado por Jesus para integrar o grupo dos Doze (Mateus 10, 2; Lucas 6, 14), presente em Caná da Galiléia quando de Seu primeiro milagre público (João 2, 1-2), foi o primeiro evangelizador da região de Bizâncio, vindo a ele mesmo crucificado não muito longe dali, em Patras. Devido a tal circunstância fortuita, pôde a cidade declará-lo seu padroeiro – em 356 ou 357 o Imperador Constâncio fez com que os seus restos mortais fossem transladados à sua capital – e, assim, reivindicar o segundo local na hierarquia das Sés supostamente estabelecidas pela autoridade da missão dos próprios companheiros do Nazareno. Cf. Elio PERETTO. “André apóstolo”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 97-98. Ivan DUJCEV. “Constantinopla (Istambul)”. In: Id. Op. cit. pp. 331-332. 337 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Livro IV : 23, 2. p. 141. 338 Id. Livro VI : 2, 14-15. pp. 194-195.

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no âmbito de uma discussão filosófica – a partir das reflexões de Metódio de

Patara, de Atanásio de Alexandria e destas e outras indicações do próprio Eusébio,

em primeiro lugar porque todos ideológicos absolutamente coerentes são

raríssimos de serem encontrados na História da Humanidade e muito menos no

interior de mentes individuais, a não ser “naquelas de obsessivos e paranóicos”339

, substantivações que não poderiam ser atribuídas às características pessoais do

moderado e bem articulado autor da História Eclesiástica. O uso que ele faz do

termo como designativo de adesão a um conjunto de crenças e a uma concreta

instituição sociopolítica é muito relevante, e seria consolidado “em duas direções:

primeiramente nas relações da Igreja com o mundo externo, ao se ver confrontada

com correntes filosóficas ou gnósticas, tendo assim que defender de propagandas

externas e elaborar a sua própria; em segundo lugar, para fazer frente aos desvios

internos, ou seja, para definir tanto as heresias quanto a próprio Ortodoxia.”340

Curioso e irônico é que esta mesma Ortodoxia conformada enquanto instância de

poder não tardaria a impor restrições tanto a Orígenes – como já tivemos a ocasião

de examinar no primeiro capítulo deste trabalho – como ao próprio Eusébio, em

primeiro lugar porque suas considerações moderadas e moderadoras nos anos de

320-325 foram encaradas a partir da vitória do partido atanasiano como filoarianas

– dedicaremos ao posicionamento do bispo de Cesaréia na querela ariana um

considerável espaço no capítulo seguinte –, e, em segundo, porque a partir da

resolução da crise iconoclasta condenou-se de forma decisiva o seu

posicionamento contrário à representação do rosto de Cristo.341

                                                            339 Victor TURNER. Dramas, campos e metáforas : Ação simbólica na sociedade humana. (Trad. Fabiano de Morais). Niterói: UFF, 2008. (Col. “Antropologia e Ciência Política”, n. 42). p. 12. 340 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 196. 341 Cf. Id. Op. cit. 194-196 e notas correspondentes, n. 48-51. Sobre a problemática entre iconoclastia, iconodulia e Eusébio de Cesaréia, ver: Henri CROUZEL. “Imagem”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 708-709. Antonio Carlos do Amaral AZEVEDO. “Iconoclasmo”. In: Antonio Carlos do Amaral AZEVEDO e Paulo GEIGER. Dicionário histórico de religiões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. pp. 190-191. Henry CHADWICK e G. R. EVANS. “Ícones e iconoclastia”. In: Igreja Cristã. (Trad. port. Calos Noué e Francisco Manhães; rev. Carlos Noué e Meritxell Almarza). Barcelona: Folio, 2007. (Col. “Grandes civilizações do passado”). Carlo GINZBURG. Olhos de madeira : Nove reflexões sobre a distância. (Trad. Eduardo Brandão). São Paulo: Companhia das Letras, 2001. pp. 104-138 (caps. 4 – “Ecce : Sobre as raízes culturais da imagem cristã” – e 5 “Ídolos e imagens : Um trecho de Orígenes e sua sorte”).

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III.

“Depois disso, eis que vi uma grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé diante do trono e diante do Cordeiro, trajados com vestes brancas e com palmas na mão. E, em voz alta proclamavam: ‘A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro! (...) Amém! O louvor, a glória, a sabedoria, a ação de graças, a honra, o poder e a força pertencem ao nosso Deus pelos séculos dos séculos. Amém!”

APOCALIPSE 7, 9-10.12

Além das listas episcopais evocadas por Eusébio, inclusive na condição de

um espelho das genealogias nobiliárquicas e sucessões de reis do Oriente Antigo,

e dos catálogos de autores e obras heréticos e ortodoxos, se destacam na História

Eclesiástica também as enumerações de mártires. Há aí o relato das mortes dos

Apóstolos (II : 9; II : 23; II : 25; III : 5, 2; III : 31, 1-3), dos descentes de Davi e

dos parentes carnais de Jesus Cristo (III : 19; III : 20, 1-7), de Policarpo e outros

da cidade de Esmirna (IV : 15), de Justino Filósofo (IV : 16), dos mártires

mencionados por Justino em sua própria obra (IV : 17), dos cristãos germânicos

que foram assassinados nos tempos do Imperador Vero (V : 1), das perseguições

na Alexandria do tempo em que Orígenes era jovem (VI : 1 e 2, 12-13), dos

discípulos deste teólogo que vieram a dar testemunho de sua crença com a própria

vida (VI : 4 e 5), dos perseguidos sob Maximino César (VI : 28), dos alexandrinos

feitos mártires sob Décio (VI : 41), e tantos outros mais. Suas fontes de

informação e modelos são as bem conhecidas Atas e Paixões dos Mártires, textos

redigidos segundo o uso epistolar dos primeiros cristãos e que narram,

respectivamente, as decisões da autoridade judiciária romana condenando os

seguidores de Cristo à morte e os seus últimos dias e execução propriamente dita.

Seu eixo argumentativo é

“(...) a tese de que o martírio equivale a um combate, que os mártires são combatentes de Deus, que o diabo é o inimigo e os perseguidores, os seus sicários. Quando o inimigo crê tê-los aniquilado, então é que são vencedores, porque imitaram Cristo em sua humilhação e exaltação, e com ele se tornaram testemunhas fiéis e verazes.”342

                                                            342 Fabrizio BISCONTI. “Martírio”. In: VV. AA. Op. cit. p. 898.

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Eusébio reconheceu em tais documentos um substrato factual pelo menos

equivalente ao desejo de edificação espiritual que animou sua redação e difusão –

assim como o faz, aliás, uma significativa parcela da crítica mais contemporânea,

ainda que marcadas as devidas diferenças entre ambos os posicionamentos. Seja

como for, o fato é que progressivamente a forma epistolar destes textos foi

abandonada em favor do relato puro e simples, retoricamente moldado para

aproximar os sofrimentos dos cristãos das narrativas evangélicas sobre a tortura e

assassínio de Jesus – nos relatos de martírio consignados na História Eclesiástica

pode-se, inclusive, notar a influência de ambas as formas.

Tais escritos também são coloridos de tons nitidamente apologéticos, o

que é bastante evidente quando Eusébio de Cesaréia refere-se aos cristãos das

casas imperiais que foram perseguidos nos dias de Diocleciano e Galério:

“(...) Acima de todos quantos foram celebrados alguma vez como admiráveis e famosos por sua valentia, assim entre os gregos como entre os bárbaros, esta ocasião [i.e., a perseguição citada] fez destacar os divinos e excelentes mártires Doroteo e os servidores imperiais que o acompanhavam. Ainda que seus amos os tenham considerados dignos da mais alta honra e no trato não os deixavam atrás de seus próprios filhos, eles julgavam, com toda verdade, maior riqueza do que a glória e o prazer desta vida as injúrias, os trabalhos e os variados gêneros de morte inventados contra eles por causa de sua religião. (...) depois de passar por combates de todo o gênero, morreram enforcados e alcançaram o prêmio da divina vitória.”343

Segundo o programa apologético defendido por Eusébio, o cristianismo

assumiu tudo aquilo de melhor que havia tanto no judaísmo, quanto no

paganismo. Dado que a melhor forma de convencer os pagãos disto certamente

era oferecendo elementos que concretamente fossem equivalentes cristãos dos

mais importantes tipos de seu imaginário mítico (os heróis, no caso dos mártires),

evidencia-se a importância em sua História Eclesiástica de semelhantes

perícopes.

Discute-se ainda se os contadores de martírios consultaram os arquivos

judiciários dos romanos para colher detalhes dos processos aos quais se referiram,

mas, pelo menos no caso de Eusébio, presume-se que tenha compilado tradições                                                             343 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VIII : 6, 1. pp. 277-278.

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que já circulavam por escrito em sua própria comunidade além de ter redigido

suas próprias memórias sobre aquelas condenações públicas que teve a ocasião de

pessoalmente ver e ouvir. Com efeito, “(...) nada impedia que as próprias

testemunhas, senão talvez o risco de se traírem como cristãos, esteneografassem

as perguntas [feitas pelos juízes] e as respostas [dadas pelos réus] e as usassem em

seus relatos com mais liberdade do que um chanceler de ofício.”344

Quanto a isto, ainda há algo mais a ser ressaltado. A fé que tinham na vida

eterna e sua identificação com os sofrimentos de seu Senhor permitiram que os

membros do movimento cristão enfrentassem a violência e a morte com coragem,

mas também trouxe ao cristianismo paleortodoxo uma grave crise de

credibilidade. Quando começaram as esporádicas, mas violentas perseguições

promovidas pelas autoridades romanas, os cristãos naturalmente interpretaram isto

como sendo a “tribulação tal, como não houve desde o princípio do mundo que

Deus criou até agora, e não haverá jamais”345 de que Jesus havia falado. Ainda

que não haja consenso se feliz ou infelizmente, entretanto, o fato é que passou

muito tempo e simplesmente não veio “o Filho do Homem (...) entre nuvens com

grande poder e glória.”346 Os cristãos continuavam a ser eventualmente

hostilizados, presos, torturados e mesmo mortos por sua crença e atitude

diferenciada, e Deus simplesmente não se insurgiu contra isso. O Islã, por

exemplo, nunca enfrentou este problema porque a curva de crescimento que

conheceu já nos dias de Maomé, “freqüentemente mais por conquista do que por

conversão pessoal, não deu margem a desapontamento.”347 O fato de que alguns

dos mais destacados líderes dos cristãos tenham confiantemente se deixado abater

não obstante não se terem realizado as predições apocalípticas atribuídas à seu

Senhor, não só fez com que estas fossem de certa maneira relativizadas, mas

também impressionou bastante os de fora e ajudou a mitigar a problemática de se

constatar que a infra-estrutura do mundo empírico não tinha mudado “desde o

caminho do sacrifício ao Gólgota – e, por conseguinte, a comunidade de Jesus,

com os judeus, [ainda] roga em oração, por assim dizer na sala de espera da

                                                            344 F. BISCONTI. Op. cit. p. 899. 345 BIBLIA. Ver. cit. Marcos 13, 19. p. 1779. 346 Id. Ver. cit. Mc 13, 26. p. cit. 347 R. STARK. Op. cit. p. 205.

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história, a irrupção do Reino, no ‘Pai-nosso’ da Igreja e no Kadish da

sinagoga.”348

Não se pode apartar a referência eusebiana aos mártires, portanto, desta

sua funcionalidade apologética, edificante e, por assim dizer, paliativa. Do mesmo

modo, não há maneira de separá-la da veneração litúrgica que lhes era prestada,

assim como do contexto eclesial específico da segunda metade do século III e

primeira metade do século IV. Neste período foram realizadas as mais

sistemáticas perseguições aos cristãos por parte das autoridades romanas, mas

também houveram grandes interregnos de paz e crescimento entre elas. Já aí

começou a chamar a atenção o ingresso no cristianismo de “adeptos de ocasião e

bispos atraídos pelo prestígio social em grandes cidades, onde eram protegidos

por senhoras de riqueza e refinamento”349, e desenvolveu-se uma indignada crítica

de clérigos e laicos rigoristas do interior da própria Grande Igreja contra aquelas

autoridades eclesiásticas que vivam a freqüentar as casas dos ricos, indivíduos

nada úteis à sociedade civil ou eclesial, que cultivavam em nome de uma santa

pobreza a mais rigorosa indolência e oportunismo.350 Como destacou Richard

Sennett, foi justamente inter-relacionado com o processo de relativa

mundanização da instituição religiosa que cresceu a importância da memória e do

culto aos mártires como uma tentativa de preservar uma vinculação pessoal com o

divino: “(...) A basílica e o martirium representavam duas faces do cristianismo: o

Cristo Rei e o Cristo Salvador do martirizado e do fraco.”351 Se antes o caminho

para o martírio era a mais segura maneira de realizar a imitatio Christi, o fim das

grandes perseguições e o favorecimento de certa versão da fé cristã por

Constantino interpôs aos que a seguiam uma quase intransponível murada. Nem

todos foram os que podiam ou queriam seguir para o deserto e as grutas, em um

auto-exílio do mundo que de algum modo os tornaria mais próximos de Deus.

                                                            348 Schalom BEN-CHORIN. “Die Entstehung des Christentums aus dem Judentum”. In: E-L. KROLL (org). Neue Wege der Ideengeschichte, Festschr. K. Kluxen. Paderbörn: s.e., 1996. p. 135. Apud: Heinz-Josef FABRY e Klaus SCHOLTISSEK. O Messias. (Trad. Milton Camargo Mota). São Paulo: Loyola, 2008. (Col. “Bíblia Loyola”, n. 53). p. 19 e nota correspondente, n. 27. 349 Celso TAVEIRA. “Eusébio: da razão antiga à verdade cristã”. In: VII CICLOS DE ESTUDOS DA RELIGIÃO: FÉ E CONHECIMENTO, 2004, Mariana (MG). Anais Eletrônicos do VII Ciclo de Estudos da Religião: Fé e Conhecimento. Mariana: Núcleo de Estudos da Religião (NER) / UFOP, 2004, vol. 1. (CD-ROM). p. 2. 350 Cf. Id. Op. cit. p. 3. 351 R. SENNETT. Op. cit. p. 128.

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Pela mediação da prática cúltica e do relato histórico, portanto, era que a Igreja

Peregrina poderia continuar vinculada a estes “atletas da religião verdadeiramente

maravilhosos” que com “admirável paciência”, por intervenção “do poder divino

do próprio Jesus Cristo, nosso Salvador” haviam vencido todos os elementos da

natureza – o couro dos açoites, as presas, cascos e chifres das feras, o metal, o

calor dos ferros em brasa, a água das correntezas – para enfim, quase depois de

terem dado o seu consentimento para tanto, serem “degolados à espada”.352 Estes,

a um só tempo, eram testemunho tanto para os de dentro quanto para os de fora, e

com seu sangue tinham ajudado a conferir uma duradoura credibilidade à fé que

professavam.

                                                            352 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VIII : 8, 1-2.6. pp. 279-280.

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IV.

“(...) também é registrado pelo mais ilustre dos historiadores hebreus, Flávio Josefo, ao relatar outros feitos referentes (...). A estas indicações, acrescenta”.

EUSÉBIO DE CESARÉIA, História Eclesiástica I : 5,3-4

“(...) Quando um escritor saído dentre os próprios judeus transmite desde o começo em suas próprias obras estas coisas referentes a João Batista e a nosso Salvador, que subterfúgio resta aos que tramaram contra eles (...) sem que fique evidente o seu descaramento?”

EUSÉBIO DE CESARÉIA, História Eclesiástica I : 11, 9

Antes de passarmos à seção seguinte, onde nos dedicaremos à outra das

correntes que, juntamente com um conjunto específico de pressupostos religiosos

e um desígnio apologético, fluíram para constituir o lago intelectual gerador que é

a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, façamos uma digressão para

considerarmos o uso que este autor faz da obra de Flávio Josefo, historiador que

busca conciliar de modo bastante criativo a historiografia greco-latina e as

narrativas históricas dos livros sagrados dos judeus.

Os escritos de Josefo interessaram desde cedo os cristãos mais cultos e

cônscios de que não bastava para a legitimação de sua comunidade os

testemunhos redigidos em seu próprio âmbito como material normativo e de

edificação moral e prática. O autor de Antigüidades Judaicas e outros importantes

textos dissertou sobre personagens e eventos também citados nos escritos que os

cristãos aceitavam como sagrados, e isso ocasionou sua constante utilização como

uma espécie de complemento externo aos dados registrados nestas Escrituras.

Além disto, sua preocupação em mostrar a antiguidade da religião judaica foi ao

encontro da argumentação dos Padres da Igreja do século III que insistiam que a

filosofia era filha da legislação mosaica e que a pregação de Jesus era prefigurada

por ambas tanto quanto é o seu complemento substituto.353 Josefo também relatou

a destruição de Jerusalém, que significativo número de comunidades cristãs

                                                            353 Raciocínio, aliás, bem assentado em falas de Jesus consignadas nos evangelhos intracanônicos, como, por exemplo: “(...) Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado.” BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 5, 17-18. p. 1711.

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interpretou como cumprimento das profecias de Jesus registradas, por exemplo,

no Evangelho de Marcos354 e sina da caducidade do velho Israel, posto à margem

por Deus em favor de um novo Israel, um Israel espiritual: a Igreja Cristã.355

De diversos modos o amálgama entre as formas de narrar a história de

helenistas e judeus forjada por Flávio Josefo influenciou a narrativa eusebiana:

não à toa o bispo de Cesaréia designou-o sem nenhuma hesitação como “mais

ilustre dos historiadores hebreus”.356 Uma das maneiras mais evidentes em que se

manifesta esta relação é o fato de que vários trechos do controverso escritor judeu

são diretamente transcritos no corpo da História Eclesiástica. Como observa

Argemiro Velasco-Delgado, isto atesta o quanto Eusébio cria que a obra de Josefo

coincidia com a tradição cristã que considerava correta, corroborava-a, e o fazia

talvez até mesmo com algum adicional mérito, já que se tratava de um

personagem que estava fora da comunidade eclesial e que, portanto, não se

dedicaria a fazer a apologia desta, muito ao contrário.357 A autoridade de Flávio

Josefo aí invocada é aquela do material forasteiro que incidentalmente, apenas por

sua fidelidade às coisas como elas se deram, sustenta aquilo que já era

considerado verdadeiro pelos crentes graças aos testemunhos – absolutamente

engajados – daqueles que os precederam na fé.358 Com este explícito propósito o

judeu de Roma359 é citado em pelo menos vinte e uma ocasiões: para confirmar ou

                                                            354 Cf. Id. Ver. cit. Marcos 13, 1-23. pp. 1778-1779 e nota correspondente, n. d, p. cit. 355 Cf. VV. AA. Flávio Josefo : Uma testemunha do tempo dos apóstolos. (Trad. I. F. Leal Ferreira; Rev. Josué Xavier). São Paulo: Paulinas, 1986. (Col. “Documentos do mundo da Bíblia”, n. 3). pp. 5-6. Raymond P. SCHEINDLIN. História ilustrada do povo judeu. (Trad. Miriam Groeger). Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. pp. 98-99. 356 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 5, 3. p. 28. 357 Do mesmo modo Eusébio de Cesaréia utilizou Fílon de Alexandria e aqueles historiadores pagãos que designa apenas como os que “transmitiram por escrito os acontecimentos daquele tempo [em que terminou o reinado de Domiciano e iniciou-se o de Nerva].” Cf. A. VELASCO-DELGADO. p. 58*. A citação que transcrevemos nesta nota foi retirada de: EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro III : 20, 8. p. 93. 358 Tal coisa é explicitada no interior de um contexto de debate apologético no Livro I : 11, 9: “(...) Quando um escritor saído dentre os próprios judeus transmite desde o começo em suas próprias obras estas coisas referentes a João Batista e a nosso Salvador, que subterfúgio resta aos que tramaram contra ele as Memórias, sem que fique evidente o seu descaramento?” Este texto que Eusébio aí critica confrontando-o não apenas com dados evangélicos, mas principalmente com elementos extraídos da obra de Josefo, é mencionado pelo bispo de Cesaréia também no mesmo Livro I : 9, 3-4 e no Livro IX : 5 e 7, 1. Id. Op. cit. ps. 36, 39 e 302-303. 359 Expressão que consta no título de um livro de Mireille Hadas-Lebel que é uma apresentação geral bastante simples da vida e obra do mesmo historiador. Cf. Mireille HADAS-LEBEL. Flávio Josefo, o judeu de Roma. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

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complementar informações históricas contidas nos Evangelhos e Atos dos

Apóstolos que a Igreja da qual Eusébio é partícipe já assumiu como canônicos (I :

5, 3-6; I : 8, 1-16; I : 9, 1-2; I : 10, 1-6; I : 11, 1-9; II : 11; II : 12, 1-2), para

demonstrar como ao tempo do nascimento de Jesus de Nazaré terminaram os

monarcas por sucessão hereditária dos judeus e sobre eles começaram a reinar um

estrangeiro (I : 6, 2-10), para introduzir um breve comentário sobre a vida e a obra

de Fílon de Alexandria (II : 5, 1-5), para tratar dos infortúnios que se abateram

sobre a nação judaica após a crucificação do Nazareno, da guerra contra Roma e

dos sinais divinos que a teriam antecipado (II : 6, 3-8; II : 26; III : 5, 4-5; III : 6;

III : 8, 1-9), para registrar a estranha morte de Herodes (II : 10), para contar da

agitação na Judéia dos dias de Nero (II : 20 e 21), para tratar do martírio de Tiago

e de suas conseqüências (II : 23, 18-24)360, para oferecer dados acerca do próprio

Flávio Josefo, de sua obra e da maneira como este elenca os livros da Bíblia

Judaica (III : 9 e 10), e para mencionar a profecia que o historiador hebreu

proclamou diante de Vespasiano, dizendo que este governaria o mundo, e aplicá-

la a Jesus Cristo (III : 8, 10-11). Mesmo se considerarmos este autor apenas

quanto ao número de referências que lhe são explicitamente feitas na História

Eclesiástica, portanto, podemos perceber o quanto ele aí foi retomado por Eusébio

de Cesaréia. Tal enumeração, contudo, não esgota de forma alguma tudo que

podemos dizer de referente a este intercâmbio – na verdade, diz pouco além

daquilo que é evidente a leitores minimamente atentos. Para prosseguirmos a bom

termo, é necessário determo-nos um pouco mais neste assunto.

É quase supérfluo repetir aqui alguma coisa acerca do percurso biográfico

de Flávio Josefo, dado que este autor, menor dentro da constelação de

historiadores que lhe eram contemporâneos, foi resgatado do esquecimento,

sobrevalorizado e perscrutado quase à exaustão por numerosos pensadores da                                                             360 No Livro II : 23, 20 de sua História Eclesiástica, Eusébio de Cesaréia menciona um trecho de Flávio Josefo – “(...) Isto [o assédio de Jerusalém pelas legiões comandadas por Vespasiano] sucedeu como vingança por Tiago, o Justo, irmão de Jesus, o chamado Cristo, porque exatamente os judeus o mataram, ainda que fosse um homem justíssimo” – que os especialistas desconhecem constar nos manuscritos deste autor. O prelado cristão não cita neste ponto, ao contrário de seu costume, o título da obra à qual faz referência, de modo que fica em aberto a questão de decidir se Eusébio preservou uma valiosa frase de um trabalho de Josefo que não chegou até nós, se ele a recolheu de outro autor, como Hegesipo, Orígenes (que também diz utilizar notícias registradas pelo historiador judeu acerca da morte de Tiago) ou algum anônimo florilégio, ou se a inventou pura e simplesmente, uma interpolação cristã que buscou de maneira oportunista valer-se da autoridade que, no plano da obra, deu-se ao textus receptus. Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. p. 72 e nota correspondente, n. 167. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 111, n. 200.

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maior importância nos séculos que lhe separam de nós – e, curiosamente, de um

modo muito especial no mundo moderno, que se põe a buscar obras alternativas

para entender, para defender ou para criticar o legado que nos foi deixado pelos

primeiros séculos da Era Cristã. Por outro lado, considerando-se que não é tão

bem conhecido entre nós como Heródoto ou Tucídides, e que pode mesmo vir a

guardar algumas simetrias quanto à sua vida com Eusébio de Cesaréia, que é aqui

o foco de nossa reflexão, uma breve consideração acerca de sua trajetória pessoal

e obras faz-se necessário para que prossigamos a bom termo.

José ben Matias deve ter nascido em meados da década de 30 da Era

Cristã. Os mais marcantes eventos de sua formação foram possivelmente o

período que passou no deserto envolvido em rudes exercícios espirituais sob a

orientação de um asceta de nome Bannus – que certas pessoas erradamente viriam

a associar com João Batista e com os autores dos chamados Manuscritos do Mar

Morto – e uma visita que fez em tempos pacíficos à capital do Império. Com trinta

e tantos anos de idade liderou na Galiléia a revolta judaica contra os romanos.

Refugiado em uma cisterna, foi de algum modo convencido a se render e, através

de um macabro subterfúgio, conseguiu se desvencilhar de seus companheiros e o

fazer. Pouco a pouco passou de prisioneiro a aliado dos seus captores, e nesta

condição exortou (sem sucesso) seus antigos correligionários a deporem as armas,

afirmou que César Augusto era o Messias referido nas escrituras religiosas dos

judeus, e predisse que Vespasiano, general que o venceu, herdaria o Império.

Finda a guerra, mudou-se para Roma, foi feito cidadão, e acrescentou ao seu nome

já latinizado (Josefo) o da família de seus protetores (Flávio); parece também que

recebeu um estipêndio de um importante arquivo público romano e chegou a ser

homenageado ainda em vida com uma estátua na mesma cidade.361 É quase certo

que sobreviveu a Domiciano e faleceu durante o reinado de Trajano, no final da

segunda década do século II. Não renegou jamais o judaísmo – ao contrário, a

todo tempo afirmou orgulhosamente provir de uma família sacerdotal (por parte

                                                            361 A única referência que temos acerca desta estátua erguida pelos romanos para homenagear este autor que anteriormente os combateu como líder guerrilheiro é feita justamente por Eusébio de Cesaréia no Livro III de sua História Eclesiástica. Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro III : 9, 2. p. 88. Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 141, n. 73.

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de pai) e ser da linhagem dos Asmoneus (por parte de mãe) –, mas o releu à luz de

seu pragmatismo político.362

Como pensador dedicou-se, de maneira geral ao estudo e narrativa da

história dos judeus; em um primeiro momento, limitou-se a tratar dos eventos

relativos à guerra de 67-70, ampliando gradativamente a sua análise para cobrir

toda a história judaica que, em seus próprios termos, retrocede logicamente ao

Dilúvio, a Adão e Eva, moldados sem pecado a partir do pó do Éden, e aos seis

inequívocos dias hebreus, de ocaso a ocaso, nas quais, segundo o Gênesis, Deus

criou todas as coisas visíveis e invisíveis. Estando, como no dito popular, em

Roma como os romanos, compôs os sete livros de seu Bellum Judaicum, onde

afirmou que a desunião dos judeus foi o que os levou à destruição: por causa

desta, Deus os teria castigado, dando aos seus inimigos, vindos de outra margem

do Mediterrâneo, o poder de submetê-los. Neste trabalho, cuja edição original em

aramaico desapareceu, Josefo relatou principalmente os acontecimentos que

testemunhou e nos quais participou, mas remontou ao passado para esclarecê-los,

até tematizar a revolta dita dos Macabeus. Desgostoso do desprezo que a

intelligentsia greco-latina nutria em relação aos judeus e suas tradições363, redigiu

                                                            362 Cf. VV. AA. 1986. p. cit. Vicente DOBRORUKA. “Historiografia helenística em roupagem judaica: Flávio Josefo, história e teologia.” In: Fábio Duarte JOLY (org.). História e retórica : Ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007. pp. 119-121. 363 No tempo de Flávio Josefo – ou seja, na passagem do século I ao II, e daí em diante – é bom observar. Alguns autores gregos da época das conquistas de Alexandre Magno demonstraram admiração pelos judeus, comparando-os aos brâmanes do Hindustão e descrevendo-os como uma nação de filósofo, talvez porque as suas restrições alimentares lembrassem ao mundo helênico o ascetismo pitagórico e porque as leis da Torá impressionavam-nos como uma tentativa de concretizar pela codificação legal de todas as circunstâncias cósmicas e humanas uma utopia política e religiosa. Mais tarde, escritores romanos chegaram a elogiar os judeus por adorarem Javé, que, ao estilo da boa tradição herodotiana dos estudos comparativos da religião, achavam ser o mesmo que Júpiter; alguns enalteceram a sua elevada cultura jurídica (chegando ao ponto de destacarem Moisés como filósofo e legislador e o equipararem a Sólon) e o fato de proibirem imagens de cunho religioso. Alguns elementos intelectualizados mais independentes sentiram-se atraídos pelo judaísmo ao ponto de submeterem-se ao doloroso rito da circuncisão – inclusive um primo-irmão do imperador Domiciano – e não poucos outros adotaram alguns de seus costumes, como acender lamparinas em honra do Sabá, freqüentar as sinagogas e observar alguns de seus preceitos, sem, entretanto, excluir de suas vidas os deuses que foram ensinados a venerar e os rituais que lhes eram associados. Estes personagens singulares, às vezes ridicularizados pela conservadora e sofisticada elite cultural greco-latina, postos entre um mundo e outro em um sentido muito diverso daquele em que Josefo estava, vieram a ser conhecidos como sendo “tementes a Deus”. Até os mais tolerantes etnógrafos do helenismo tardio, entretanto, mencionam com desagrado certas práticas judaicas como a circuncisão, que encaravam como uma arbitrária e perigosa mutilação, e a recusa de comer porco, animal particularmente valorizado pelos romanos, tanto para a comida como para o sacrifício. No contexto das revoltas judaicas contra o governo romano e de um crescimento bastante considerável no número de simpatizantes que a fé hebraica conquistou entre a classe alta romana, estes tradicionais pontos de incompatibilidade tematizados

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uma obra em vinte volumes intitulada Antiguidades Judaicas, onde argumentou

que as crenças e costumes de seu próprio povo eram mais antigos que os dos

gregos, e pelo menos tão veneráveis quanto estes. Pelas mãos de Josefo, a história

dos judeus se tornou explicitamente um tipo de história universal364, não pela

abrangência geográfica e global relevância sócio-política, econômica e militar de

eventos interligados (como a definiria Políbio), nem pela exaustão cronológica

(como pretendia Éforo), mas pelo fato dela principiar com a criação do mundo e

se vincular com as origens de todos os povos existentes, ligando-se de modo cada

vez mais íntimo aos eventos ocorridos no resto do mundo após o Exílio

Babilônico, e insinuando-se até um ponto no horizonte escatológico onde pela

ação de Deus se tornaria o lócus da consumação ótima de toda a existência

humana.365 Consciente disto, o autor tem em alta conta a sua obra, e incorre mais

de uma vez na desagradável vanglória – também manifesta por Tucídides e por

                                                                                                                                                                   pela literatura helenística foram ampliados mais e mais pelos propagandistas políticos, até o ponto de a pregação antijudaica tornar-se um tema freqüente nos tratados da intelligentsia greco-latina. Mais ou menos na segunda metade do século II, por exemplo, já era senso comum entre os autores não-judeus que no Templo de Jerusalém se adorava uma cabeça de jumento ou de porco, e que quando de sua invasão pelo monarca selêucida Antíoco IV lá foi encontrado um cidadão grego que estava sendo engordado em preparação de um sacrifício humano anual. Cf. R. P. SCHEINDLIN. Op. cit. ps. 98 e 107-108. 364 Ainda que se deva lembrar que ele não foi o primeiro autor próximo do judaísmo a compor uma história universal: antes dele, o pagão Nicolau de Damasco, talvez um “temente a Deus", que alguns nos dão notícia de ter sido secretários de Herodes Antipas, escreveu uma em impressionantes cento e quarenta e quatro volumes. Infelizmente, esta sobrevive hoje só pelas citações que dela fez Flávio Josefo, e em verdade praticamente todo o material extra-bíblico que este historiador recolheu sobre a dinastia asmonéia e tudo o que ele mencionou sobre os herodianos foi extraído daí. Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 121-122 e nota correspondente, n. 5, p. cit. 365 Para chegar a esta última conclusão, Josefo, como em tantas outras coisas, se assenta em uma convicção judaica muito bem estabelecida, que pode ser auferida, por exemplo, nas belíssimas palavras do profeta Isaías, que se referindo a Jerusalém como símbolo de Israel, diz: “(...) Põe-te em pé, resplandece, porque tua luz é chegada, a glória de Iaweh raia sobre ti. Com efeito, as trevas cobrem a terra, a escuridão envolve as nações, mas sobre ti levanta-se Iaweh e a sua glória aparece sobre ti. As nações caminharão na tua luz, e os reis, no clarão do teu sol nascente. Ergue os olhos e vê: todos eles vêm a ti. (...) Então verás e ficarás radiante; o teu coração estremecerá e se dilatará, porque as riquezas do mar afluirão a ti, a ti virão os tesouros das nações. (...) Quem são estes que vêm deslizando como nuvens, como pombas de volta aos pombais? Em mim esperam as ilhas (...). Estrangeiros reedificarão teus muros, e os teus reis te servirão, pois que, se na minha cólera te feri, agora, na minha graça, me compadeci de ti. Tuas portas estarão sempre abertas, não se fecharão nem de dia nem de noite, a fim de que se traga a ti a riqueza das nações e seus reis sejam conduzidos a ti. (...) A glória do Líbano virá a ti, o zimbro, o plátano e o cipreste, todos juntos, para inundarem de brilho o lugar de meu santuário, e assim glorificarei o lugar em que pisam meus pés. Os filhos de teus opressores se dirigirão a ti humildemente; prostar-se-ão aos teus pés todos os que te desprezavam, e te chamarão ‘Cidade de Iaweh’, ‘Sião do Santo de Israel’. Em vez de seres abandonada e odiada, sem pessoa que passe pelo meio de ti, farei de ti eterno motivo de orgulho, motivo de alegria, de geração em geração. Sugarás o leite das nações, alimentar-te-ás das riquezas dos reis. E saberás que sou eu, Iaweh, que te salvo, que teu Redentor é o Poderoso de Jacó.” BÍBLIA. Ver. cit. Isaías 60, 1-4a.5.8-9a.10-11.13-16. pp. 1350-1351.

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Políbio – de afirmar em alto tom ter composto uma narrativa absolutamente

indispensável, que se detém naqueles eventos que são os mais singularmente

importantes e decisivos do curso da história humana.366

Escrevendo como propagandista, como político e como crente, este

pensador com os dois pés bem firmes em uma zona de interseção entre as visões

de mundo helenística e judaica conscientemente enveredou-se pela apologia de

sua obra e de si mesmo. Em um livro que chegou até nós sob o título de Contra

Apião – muito importante também por preservar grande quantidade de referências

e citações de autores que, em não poucos casos, só conhecemos pelas menções do

próprio Josefo – defendeu a precedência hebraica e o caráter seminal de sua

cultura contra os gregos de Alexandria que argumentavam que tais coisas eram

falsas, pois não eram atestadas nas fontes documentais helênicas. A partir disto,

aquele que fora José ben Matias se lançou em uma frenética busca e compilação

de documentação extra que atestasse a veracidade de tudo o que já havia

afirmado, registrando este esforço complementar em versões revisadas e

ampliadas de suas obras que fez circular ainda enquanto vivia – a isto

pretendemos fazer adiante nova referência. Como parte do mesmo movimento,

redigiu também uma sua Vida (Autobiografia) para responder às contestações

feitas por Justo de Tiberíades, antigo companheiro-de-armas e rival que afirmou

que a participação de Josefo nos combates contra os romanos travados nas vilas,

vales e montanhas da Galiléia fora insignificante e marcada pela atitude

covarde.367 São estas as quatro obras que dele conservamos notícias, mas é de fato

                                                            366 Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 128. 367 Vicente Dobroruka nos informa que embora Josefo não tenha sido o primeiro autor a nos fornecer dados autobiográficos, ele foi o primeiro a nos legar uma obra completa que tem por exclusivo tema a vida de quem a escreveu – e isso embora a biografia de si não ter sido jamais reconhecida na Antigüidade como um gênero literário autônomo. O mesmo autor observa também que pelos atuais padrões esta sua Vida seria considerada maçante e desigualmente proporcionada, centrada como está na experiência de José ben Matias como comandante de tropas guerrilheiras durante os estágios iniciais da revolta nacionalista de 67, e que, além disto, os fatos aí constantes realmente podem e devem ser lidos com cautela e mesmo colocados em xeque frente a outras fontes documentais que lhe eram contemporâneas, na medida em que “o personagem Flávio Josefo é notório por sua presunção e vanglória, o que coloca seus depoimentos sob suspeitas ainda mais fortes.” Posteriormente – mas ainda no final do século I, durante a vida do historiador hebreu – este texto foi acrescentado como um apêndice a uma nova edição das Antiguidades Judaicas. Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. pp. 119-120 e notas correspondentes, n. 3 e 4, p. cit. VV. AA. 1986. p. cit. Justo de Tiberíados compôs, além do panfleto contra Josefo – que conhecemos apenas pelas refutações tecidas por este autor – uma História da Guerra dos Judeus e uma Crônica dos Reis Judeus, hoje perdidas, às quais no século IX fez menção Fócio em sua obra intitulada Myriobiblon (ou Biblioteca). Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 144, n. 83.

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bem pouco provável que tenha se dedicado a redigir apenas estas, se não mais,

pela bem conhecida prolixidade dos historiadores e polemistas mediterrânicos dos

séculos I e II.368

Toda a sua obra pode ser interpretada como uma tentativa de traduzir, de

tornar aceitável a um público greco-latino culto e indiferente até o ponto da

ocasional hostilidade a compreensão judaica da história, seus pressupostos e

corolários, que ele mesmo de bom grado aceitava como parte da fé que havia

recebido de seus pais. Para fazê-lo, Josefo seguiu o consagrado método de análise

tucideano, ainda que divergisse deste em questões essenciais de pressuposto e de

procedimentos de apresentação e verificação das provas capazes de comprovar

(ou invalidar) sua narrativa. Em outros termos, como Tucídides, Josefo também

buscou as causas profundas e gerais que subjaziam e determinavam a

superficialidade e particularidade dos eventos, mas tal emulação esbarrou no

crucial problema das distintas origens culturais que tornavam tão diverso o

entendimento da natureza substantiva dos eventos e processos que se punham a

descrever e examinar. Para termos um exemplo de tal circunstância, consideremos

o fato de que

“(...) Na perspectiva grega, e ainda segundo o modelo hipocrático para o entendimento da história, a falência do tecido político da cidade tal como descrita em Tucídides é conseqüência de um desequilíbrio interno, semelhante às doenças que afligem o corpo. Inversamente, o entendimento judaico da dissensão civil assemelha-se ao de sua correspondente noção de medicina, sendo as afecções da sociedade e do corpo vistas como punição divina dos pecados.”369

                                                            368 O autor da História Eclesiástica menciona aí uma outra obra de Josefo além destas: “(...) Há também uma outra obra escrita por ele, não sem nobreza, Sobre a supremacia da razão, que alguns intitularam Macabeus, porque contém as lutas dos hebreus valentemente sustentadas em defesa da piedade para com Deus e referidas nos escritos assim chamados Dos Macabeus.” EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro III : 10, 6. p. 89. Argimiro Velasco-Delgado afirma, baseado em estudo de A. Dupont-Sommer, que Eusébio equivoca-se em atribuir esta autoria a Josefo, tendo sido o Sobre a supremacia da razão composto por algum outro autor mais ou menos contemporâneo à revolta judaica de 67-70, talvez já depois do falecimento do autor de Bellum Judaicum. Alguns fragmentos remanescentes desta obra – da qual hoje não dispomos de nenhuma versão completa – aparecem agrupados em algumas edições da Septuaginta sob o título de IV Livro dos Macabeus. 369 V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 122 e notas correspondentes, n. 6-8. Para um exemplo do entendimento judaico das origens da doença (e, por conseguinte, da cura), ver, por exemplo, Deuteronômio 28, 15-16.21-23.26-27-29a.34-35.45-46: “(...) Todavia, se não obedeceres à voz de Iaweh teu Deus, cuidando de pôr em prática todos os seus mandamentos e estatutos que até hoje te ordeno, todas estas maldições virão sobre ti e te atingirão: Maldito serás tu na cidade, e maldito serás tu no campo! (...) Iaweh enviará contra ti a maldição, o pânico e a ameaça em todo

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Dada esta divergência basilar, observemos, para empiricamente verificá-la,

por exemplo, como o historiador hebreu copia e re-significa o conceito

tucidideano de stasis como chave-de-leitura que possibilita a compreensão dos

eventos que levaram à guerra de 67 e ao desastre final judaico. Em Tucídides o

vocábulo stasis significa basicamente “discórdia” e é associado às noções de

degradação da comunidade política, sedição, convulsão popular, e,

ocasionalmente, guerra civil; vincula-se ainda às imagens do miasma e implica

uma degeneração coletiva, análoga a uma doença que se propaga até tomar conta

de um corpo em função de um desequilíbrio dos seus humores ou da permanência

do indivíduo em um ambiente demasiado hostil. Em Josefo inicialmente ele surge

para caracterizar a ação desagregadora que um determinado grupo de radicais e

exploradores tem no interior do tecido social hierosolimitano (Bellum Judaicum),

mas servirá também para que este autor tentasse tornar inteligíveis ao leitor

versado na historiografia greco-latina numerosas passagens dos livros históricos

da tradição judaica que abordam o tema da discórdia civil, da desordem jurídica

ou da conflagração entre nações próximas ou distantes. A sedição de Coré, Datã e

Abiram contra Moisés, e suas conseqüências – o chão que se abre para engolir

alguns dos rebeldes, o fogo que desce do céu para consumir outros, uma praga que

se alastra entre os que lamentam suas mortes e que mata catorze mil e setecentas

pessoas antes de cessar por ocasião de um oferecimento expiatório de incenso

(episódios narrados em Números 16, 1-35.17, 1-15) –, são, para nos atermos a um

único caso, um dos temas bíblicos que este autor (em Antigüidades Judaicas 4 :

13, 32) apresenta como stasis.370 Ora, não há nada mais distante do uso deste

                                                                                                                                                                   empreendimento de tua mão, até que sejas exterminado, até que pereças rapidamente por causa da maldade de tuas ações, pelas quais me abandonaste. Iaweh fará com que a peste se apegue a ti até que te elimine do solo em que estás entrando, a fim de tomares posse dele. Iaweh te ferirá com tísica e febre, com inflamações, delírio, secura, ferrugem e mofo, que te perseguirão até que pereças. O céu sobre tua cabeça ficará como bronze, e a terra debaixo de ti como ferro. (...) Teu cadáver será o alimento de todas as aves do céu e dos animais da terra, e ninguém os espantará. Iaweh te ferirá com úlceras do Egito, com tumores, crostas e sarnas que não poderás curar. Iaweh te ferirá com loucura, cegueira e demência; ficarás tateando ao meio-dia como o cego que tateia na escuridão, e nada será bem sucedido em teus caminhos. (...) Enlouquecerás com o espetáculo que os teus olhos irão ver. Iaweh te ferirá com uma úlcera maligna nos joelhos e nas pernas, de que não poderás sarar, desde a sola dos pés até o alto da cabeça. (...) Essas maldições todas virão sobre ti e te perseguirão e te atingirão, até que sejas exterminado, porque não obedeceste à voz de Iaweh teu Deus, observando os mandamentos e estatutos que ele te ordenou. Elas serão um sinal e um prodígio contra ti e tua descendência para sempre.” BÍBLIA. Ver. cit. pp. 292-293. 370 Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 124. Para uma exegese contemporânea deste episódio bíblico, ver: Vicente ARTUSO. A revolta de Coré, Datã e Abiram (Nm 16-17) : Análise estilístico-narrativa e interpretação. São Paulo: Paulinas, 2008. (Col. “Exegese”).

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conceito por Tucídides, onde as causas e o contexto da desagregação política são,

se não de forma absoluta, essencialmente leigos: ainda que na vida pólis religião e

política tenham sido sempre indissociáveis – pensemos no processo de Sócrates,

pensemos no episódio da mutilação das estátuas de Hermes postas nas

encruzilhadas, pensemos na eleição por todos os cidadãos dos oficiantes de certos

ritos dedicados à deusa Atenas – na obra deste historiador a ação divina de

qualquer ordem não é de forma alguma considerada como elemento ativo na

degradação da comunidade. Em Josefo, ao contrário, a questão da ofensa a Deus e

suas implicações é a pedra-de-toque que sustenta toda narrativa acerca das

instabilidades e rupturas políticas, de modo que ele aplica o conceito de statis para

fazer referência indiferentemente aos dias de Noé, ou de Abraão ou de si

próprio.371

As linhas mestras pelas quais se organiza a historiografia de Josefo, ou

seja, a maneira pela qual ele apreende, seleciona e organiza discursivamente os

eventos humanos são:

a. A crença de que o sentido da história humana é dado por Deus;

b. A convicção de que este sentido foi apreendido pelos profetas;

c. A opinião de que a interpretação errônea dos sinais dados por Deus

quanto ao sentido da história foi o que levou a desastres como a

destruição de Jerusalém em 70;

d. A percepção de que Deus, que ele acredita ser o Senhor da História,

tem o poder de deslocar conforme a sua vontade o foco de seu favor

dos judeus para outros povos, o que teria de fato, segundo este autor,

ocorrido em relação aos romanos.

Tais itens confundem-se, além disso, com a biografia do próprio

historiador, que encontrou neles, conscientemente ou não, justificativa para a sua                                                             371 Shimon Applebaum demonstrou que mesmo as causas econômicas mais chão-a-chão que Flávio Josefo apresentou como tendo precipitado o conflito aberto entre judeus e romanos nos anos de 67-70 foram apreendidas e formuladas por este autor sob o peso de tradicionais formulações de ordem religiosa. Cf. Simon APPLEBAUM. “Josephus and the Economic Causes of Jewish War”. In: Louis FELDMAN e Gohei HATA (orgs.). Josephus, the Bible and History. Detroit: Wayne State University Press, 1989. Apud: V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 126, n. 20.

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vantajosa acomodação ao jugo romano.372 Afora a heterodoxia de afirmar que os

judeus poderiam deixar de ser temporária ou definitivamente, de acordo com a

vontade de Deus, o Seu povo eleito – opinião que os seguidores de Jesus,

correndo em raias diversas, logo expandiriam até o pleonasmo ao conceberem a

Igreja como sendo efetivamente um “novo Israel” que pretende ter como limites

últimos todas as pessoas de todas as nações –, de um modo geral, a obra

historiográfica de Josefo se desenvolveu rigorosamente de acordo com os termos

da tradição judaica hegemônica de sua época, elaborada a partir da reforma

promovida por Rabi Jochanan ben Zaccai a partir da escola de Jabné, o que

significa dizer que ele resgata e revitaliza a concepção deuteronômica da história

como relação didática de Deus com o povo judeu dentro do padrão ensino-

aprendizagem-erro-punição-arrependimento-perdão, e harmoniza o papel da

Providência divina com o livre-arbítrio atribuindo as desgraças do mundo às

calamidades geradas pelo eterno conflito do homem contra o homem e por sua

desobediência à Lei que lhe foi dada pelo Criador.373 Ciente de que era um fiel

não obstante não tenha hesitado em argumentar diante de Vespasiano que era ele o

monarca que deveria partir do Oriente para governar todo o mundo – tema que

também aparece na obra de Virgílio e nos Oráculos sibilinos374 – pretendeu, além

de tudo o mais, apresentar-se aos seus correligionários como um profeta, ou seja,

como um daqueles homens que foram especialmente inspirados por Deus para

compreender os Seus sinais nos acontecimentos humanos, e, portanto, o

verdadeiro sentido destes, caóticos e arbitrários a um observador tão desatento

quanto profano. Em sua Autobiografia, são explícitos os paralelos com as vidas de

Isaías, Ezequiel, Eliseu, Daniel e Jeremias: “o episódio da pedrada recebida pelo

                                                            372 Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. pp. 128-129. A respeito disto, veja-se, por exemplo, Bellum Judaicum 3, 352-354: “(...) subitamente vieram à sua mente aqueles sonhos noturnos, nos quais Deus lhe tinha revelado o destino iminente dos judeus e dos soberanos romanos. Ele [Josefo] era um intérprete de sonhos e hábil em adivinhar os proferimentos ambíguos da divindade; ele mesmo era sacerdote, e descendente de sacerdotes, e ele não ignorava as profecias dos livros sagrados. Naquele momento teve e inspiração de ler seu significado, e, lembrando-se das imagens recentes de sonhos terríveis, rezou em silêncio a Deus. ‘Já que Te agrada’, ele disse, ‘a Ti que criaste a nação dos judeus, destruir a Tua obra, já que a fortuna passou para os romanos, e já que Escolheste meu espírito para anunciar o que está por vir, rendo-me de boa vontade aos romanos e me permitirei viver; mas És testemunha de que não vou como traidor, mas como teu ministro.” Citado em: Id. Op. cit. p. 130. 373 Solução que, aliás, é muito semelhante ao que seria depois postulado pela teologia rabínica e por um considerável número de Padres da Igreja. Cf. Ibid. Op. cit. p. 129. 374 Sobre os Oráculos Sibilinos, ver: B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. pp. 128-129. A. LESKY. Op. cit. p. 839 e notas correspondentes, n. 6-7, p. 844.

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historiador quando exortava os judeus à rendição do lado de fora das muralhas de

Jerusalém é deliberadamente interpretado por Josefo como paralelo entre ele

mesmo e Jeremias (Jr 38 : 3-4 ss).”375

Um erudito que de bom grado fez a apologia do status quo que o

beneficiava, Josefo, entretanto, buscou apresentar-se não exatamente como um

homem de letras, mas como um homem imbuído da autoridade de dissertar sobre

as coisas porque as presenciou e como uma voz que clamava no deserto.

Servindo-se da tradição leitora do mito dos impérios mundiais presente tanto

dentro (Livro de Daniel) quanto fora (Quarto Livro de Esdras, Livro III dos

Oráculos Sibilinos) do cânone da Bíblia Judaica e não ignorando os apocalipses e

textos pseudo-epigráficos compostos em seu próprio tempo, este historiador em

momento algum demonstrou ceticismo quanto à possibilidade de a história

humana ter um sentido redentor, mas, ao contrário, argumentou que a ação de

Deus em favor dos seus é perceptível justamente quando as conjunturas

contrariam – ou melhor, quando aparentam contradizer – os interesses imediatos

de seu povo eleito. Ao contrário dos autores de oráculos, entretanto, tratou da

análise específica de eventos particulares e não dos acontecimentos humanos em

termos gerais compreendidos quase que absolutamente por um esperançoso e

mobilizador viés escatológico. Acerca disto, deve-se considerar que “(...) Um

texto historiográfico, ainda que não tenha como se isentar de concepções

metahistóricas, religiosas ou seculares, apóia-se [ou pretende se apoiar] nas

evidências de que o historiador dispõe e que lhe impõem limites. Neste sentido,

não há como considerar Josefo, Daniel ou o Apocalispse siríaco de Baruch como

semelhantes.”376

                                                            375 Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 131. 376 Id. Op. cit. p. 133. Após isto, informa o mesmo autor que “(...) Uma tentativa particularmente desastrada nesse sentido [de aproximar sem maiores cuidados a obra de Flávio Josefo da literatura apocalíptica que lhe era contemporânea] foi feita por Pierre Vidal-Naquet, o qual afirma que o discurso de Eleazar bem Yair aos defensores de Masada (última fortaleza a ceder aos romanos), tema do último livro de Bellum Judaicum, seria um apocalipse. O discurso consiste em uma longa e erudita exortação ao suicídio, tido por Eleazar como preferível à desonra da captura; sob qualquer ângulo que se analise, um típico discurso da historiografia antiga. Não se tem como levar a sério a afirmação de Vidal-Naquet – a menos que esvaziemos o termo ‘apocalipse’ de qualquer significação precisa, e o utilizemos em sentido vulgar. Nesse caso, qualquer texto de tom mais sombrio passa a ser um ‘apocalipse’; tal é a conseqüência lógica do raciocínio de Vidal-Naquet, que, no entanto, admite a semelhança essencial do discurso de Massada com outros da historiografia antiga.” Ibid. Op. cit. pp. 134-135 e notas correspondentes, n. 35-36, p. cit.

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Louvável foi o esforço do autor de Antiguidades Judaicas em fazer

apresentar uma série de obras historiográficas que atendessem às exigências do

culto público helênico (e judeu-helênico, inclusive), tentando para este intento

fazer dialogar a autoridade do informante de primeira-mão, a referência erudita a

provas documentais e conceitos tão diversos como stasis, Providência Divina e

messianismo. Apesar disto, entretanto, foi virtualmente ignorado tanto pelos

leitores oriundos do mundo greco-latino – a citação que Suetônio faz a Josefo na

sua Vida dos Doze Césares ao tratar do governo de Vespasiano é definitivamente

a exceção, não a regra – quanto pelos que estavam bem assentados na tradição

judaica, que ou o consideraram um traidor indigno de crédito e mesmo de atenção,

ou o receberam de modo muito imprevisto (e mesmo enviesado), como se tivesse

sido um redator de panfletos que exortavam os remanescentes de Israel à piedade

religiosa e à resistência cultural. A respeito deste último juízo, deve-se considerar

que ele ocasionou fenômenos editoriais de difícil explicação, como o fato de o

único manuscrito completo do Apocalipse siríaco de Baruch de que dispomos

atualmente estar apresentado em um códice (dito Ambrosiano) junto do Livro VI

do Bellum Judaicum, que trata da queda de Jerusalém e que aí está intitulado de

Quinto Livro dos Macabeus. Com o mesmo espanto, pode-se constatar de que um

dos mais populares textos que circulavam entre os judeus da Europa do Medievo

era o chamado Sefer Iosippon, um comentário anônimo e piedoso da obra de

Flávio Josefo redigido no estilo das interpretações esotéricas compostas por

numerosos rabinos pelo menos desde a primeira metade do século II sobre o

primeiro capítulo do Livro do Gênesis (as Ma’aseh Bereshit) e sobre o primeiro

capítulo do Livro de Ezequiel (as Ma’aseh Merkabah). Sua posteridade como

historiador, sua divulgação universal, e mesmo sua respeitabilidade, foi garantida

e catapultada quase que unicamente pelo uso que fez de sua obra o pensamento

patrístico. Muitos foram os pesquisadores modernos que enfatizaram os limites

dos trabalhos de Josefo – seu pouco rigor cronológico, seu exagero nos números

referentes a pessoas, seus evidentes preconceitos de classe, seus férreos

compromissos políticos, e seu ímpeto irrefreável e constante de se justificar, se

defender e se valorizar, mesmo que a expensas de provas documentais forjadas,

ou ao menos de procedência um tanto quanto duvidosa –, mas importa-nos

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considerar aqui não estes, e sim como certos pressupostos e estratégias discursivas

deste autor influenciaram decisivamente a historiografia cristã posterior.377 Por

tudo que já afirmamos anteriormente, tal coisa pode estar suficientemente

evidente para alguns; para evitar equívocos quaisquer, entretanto, recorramos a

um exemplo comparativo que é quase eloqüente em si mesmo.

Em primeiro lugar, tomemos um exemplo de Flávio Josefo citado por

Eusébio. Escreve o bispo de Cesaréia ainda no Livro II de sua História

Eclesiástica:

“(...) é conveniente dar uma olhada na resposta pelo atrevimento de Herodes contra Cristo e os meninos de sua idade. Imediatamente depois, sem a menor demora, a justiça divina o perseguiu quando ainda transbordava de vida e lhe mostrou o prelúdio do que o aguardava para depois de sua saída desta vida. Não é possível resumir agora as sucessivas calamidades domésticas com que se enevoou a suposta prosperidade de seu reino (...) O que se pode supor a respeito disso deixa à sombra qualquer representação trágica. Josefo o explica extensamente em seus relatos históricos. Mas sobre como um flagelo divino o arrebatou e ele começou a morrer já desde o momento em que conspirou contra nosso Salvador e contra os demais meninos, será bom escutar as palavras do próprio escritor, que no livro XVII de suas Antigüidades Judaicas descreveu o final catastrófico da vida de Herodes como segue: ‘A doença de Herodes fazia-se mais e mais virulenta. Deus vingava seus crimes.

                                                            377 Cf. Ibid. Op. cit. p. 134 e notas correspondentes, ns. 37-38, p. cit. Roland GOETSCHEL. Cabala. (Trad. Myriam Campbello). Porto Alegre: L&PM, 2009. (Col. “L&PM Pocket”, n. 780; Sub-col. “Encyclopædia”, n. 2). pp. 16-30. VV. AA. 1986. p. cit. Esta influência, contudo, não foi nada inocente e envolveu mesmo adulterações: os textos do historiador judeu preservados dentro das estruturas culturais da Cristandade divergem muito entre si e estão bastante corrompidos por interpolações. Parece os copistas cristãos responsáveis por toda sorte de pequenos rearranjos textuais que nos mencionados escritos podem ser verificados acharam o testemunho de Josefo um pouco sóbrio demais, talvez um pouco insuficiente, e resolveram enriquecê-lo. Assim devidamente cristianizada, a obra de Flávio Josefo foi amplamente difundida na Idade Média, tanto na sua antiga versão em grego quanto na célebre versão latina que foi preparada sob a direção de Cassiodoro. Levando-se em consideração a quantidade de manuscritos da Bellum Judaicum e das Antigüidades Judaicas que chegaram a nós que foram redigidos entre os séculos VIII e XVIII na região do norte da França e de Flandres, podemos auferir que se tratavam de trabalhos particularmente conhecidos e valorizados nesta região e período. Cf. F. BLATT (org.). The Latin Josephus. Aarhus: s.e., 1958. Vol. I. pp. 15-16. G. N. DEUTSCH. Iconographie et illustration de Flavius Josèphe au temps de Jean Fouquet. Leiden: s.e., 1968. p. IX (mapa). Apud: C. GINZBURG. Op. cit. p. 213 e nota correspondente, n. 6 ao cap. 11, p. 406. Deve-se notar ainda que a relevância – se não a autoridade – de Josefo também se fez sentir ocasionalmente em alguns ambientes devocionais cristãos, especialmente em meios monásticos. Temos notícias de que, por exemplo, extratos de seus textos faziam parte das leituras pessoais e litúrgicas prescritas durante a Quaresma no mosteiro de Corbie por volta de 1050. Cf. A. WILMART. “Le couvent et la bibliothèque de Cluny vers le milieu Du XIè siècle”. In: Revue Mabillon, s.l., n. 11, 1921. pp. 89-124 (especialmente ps. 93 e 113) Apud: C. GINZBURG. Op. cit. p. cit. e nota correspondente, n. 7 ao cap. 11, p. cit.

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Com efeito, era um fogo suave que não denunciava ao tato dos que o apalpavam um abrasamento como o que por dentro aumentava sua destruição; e logo uma vontade terrível de comer algo, sem que nada lhe servisse, ulcerações e dores atrozes nos intestinos, e sobretudo no ventre, com inchaço úmido e reluzente nos pés. Em torno do baixo-ventre tinha uma infecção parecida; mais ainda, suas partes pudentas estavam podres e criavam vermes. Sua respiração era de uma rigidez aguda e extremamente desagradável pela carga de supuração e por sua forte asma; em todos os membros sofria espasmos de uma força insuportável. O certo é que os adivinhos e os que têm sabedoria para predizer estas coisas diziam que Deus estava fazendo-se pagar pelas muitas impiedades do rei.’ Isto é que o autor citado anota na mencionada obra.”378

Agora, consideremos um trecho que Eusébio redige na qualidade de

testemunha dos acontecimentos de seu próprio tempo.379 No décimo sexto

capítulo do nono Livro de sua História Eclesiástica, este autor descreve como se

foi atenuando até se encerrar a perseguição aos cristãos iniciada por Diocleciano e

continuada por Galério:

“(...) assim que a graça divina e celestial começou a mostrar uma preocupação benévola e propícia para conosco, também nossos governantes, aqueles mesmo que nos haviam feito a guerra, mudaram milagrosamente de pensamento (...), extinguindo mediante editos favoráveis e ordens cheias de suavidade a fogueira da perseguição, que havia alcançado tal amplidão. Mas a causa desta mudança não foi algo próprio dos homens, nem como alguém poderia dizer, compaixão ou humanidade dos governantes, nem muito menos, já que eles mesmos eram os que cada dia, desde o começo até esse momento, imaginavam mais e piores suplícios contra nós, renovando constantemente, umas vezes de um modo e outras de outro, com diversas invenções, os maus-tratos que nos infligiam. Foi mais evidentemente uma visita da própria providência divina, que reconciliou o povo consigo, atacou o perpetrador de nossos males [i.e., César Galério] e descarregou sua ira sobre [este] líder da maldade e de toda a perseguição, já que, ainda que isto houvesse de ocorrer por juízo de Deus, não obstante a Escritura diz: Ai daquele por quem venha o escândalo! Alcançou-o, pois, um castigo divino que, começando por sua própria carne, avançou até a sua alma. Efetivamente, de repente saiu-lhe um abcesso em meio às partes secretas de seu corpo, e logo uma chaga fistulosa em profundidade. Sem possibilidades de cura, foram-lhe corroendo até o mais fundo das entranhas. Dali brotava um ninho de vermes e exalava um fedor mortal, já que a massa de suas carnes, produzida pela abundância de alimento e transformada já antes da enfermidade em uma quantidade excessiva de gordura, ao apodrecer então, oferecia o aspecto mais insuportável e espantoso aos que se aproximavam.”380

                                                            378 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 8, 3-8. p. 34. 379 Cf. Id. Op. cit. Livro VIII : Prólogo. p. 273. 380 Ibid. Op. cit. Livro VIII : 16, 1-4. p. 293.

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Estamos inequivocamente diante de textos parecidos. Os padecimentos de

Herodes e Galério aí retratados são semelhantes tanto quanto ao estilo de sua

redação – estilo que remete a um procedimento vétero-testementário comum, que

é o da enumeração ou conglobação – quanto no relativo a seus conteúdos

objetivos e causa primeira. Um e outro cometeram violência contra determinado

grupo de pessoas querido por Deus, e assim perpetraram um crime contra Ele

mesmo; a resposta divina, muito longe das preleções sobre misericórdia e amor

desinteressado mesmo aos inimigos, é rápida, brutal e inescapável. Intermináveis

agonias os esperam no outro mundo, mas isto não basta: é necessário que eles

sofram ainda em vida, na carne, as primícias do que serão os seus sofrimentos -

espirituais post-mortem, não – ou não apenas – por uma disposição sádica de uma

Inteligência Infinita ou por uma Inefável raiva, mas para que este suplício seja

testemunho do que ocorre com os maus aqui e além, para que antes que passem

para os sofrimentos eternos fique evidente a todos os que foram por ele ultrajados

e todos os que com ele colaboraram o quão torpe e horrendo é o destino dos que

se dispõem a fazer guerra contra o Senhor. Tudo neles recende a dor a asco:

reaparecem os divinos castigos lançados contra os egípcios e aqueles males que o

Deutoronomista reconhece como sinal certo do desagrado de Deus contra o que

deles padece; aquelas partes de suas anatomias que os raios do sol nunca tocaram

são tomadas por feridas e podridão e delas brotam miríades de vermes e

insuportáveis cheiros; seus corpos já inchados pelos prazeres da boa mesa, em um

caso, exigem ser saciados, em vão, com mais e mais alimento, e, em outro,

deformam-se e oferecem horrível espetáculo aos que o vêem: parecem estar a

ponto de rebentarem-se em calor, em sangue e pus, com se de repente esses

tivessem se tornados porosos e começassem a deixar passar, em matéria, as trevas

que antes apenas continham dentro de si mesmo, como se o próprio inferno

estivesse em seus estômagos e forçasse a saída. A carne de Herodes e Galério não

é apenas uma referência necessária por tratar-se de seres humanos – e, portanto,

seres corpóreos –, não é um artifício retórico, mas o local onde se concretiza de

modo inequívoco um juízo divino. Com a naturalidade de um Clive Barker – mas

com distintos propósitos – Eusébio de Cesaréia apresenta estas verdadeiras

liturgias punitivas, que não pretendem purgar crime algum – são antecipações,

não atenuações –, mas traçar no corpo destes condenados

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“(...) sinais que não se deve apagar; a memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da exposição, (...) do sofrimento devidamente constatado. E pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como seu triunfo. O próprio excesso das violências cometidas é uma das peças de sua glória: o fato de o culpado gemer ou gritar (...) não constitui algo de acessório ou vergonhoso, mas é o próprio cerimonial da justiça que se manifesta em sua força. Por isso sem dúvida é que os suplícios se prolongam ainda depois da morte [neste caso, em sentido percebido como muito literal] (...). A justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível.”381

Como interpretar a existência de tantas analogias significativas entre o

texto de Eusébio e o texto de Josefo transcrito por Eusébio? Disto devemos supor

pura e simplesmente uma convergência dos fatos? Ora, não há nada que nos

impeça de fazê-lo, a não ser probidade intelectual e um ceticismo demasiado

cultivado. Afora o inverificável fator transcendente envolvido em ambas as

narrativas – e que é enfatizado na segunda delas pela paráfrase que combina Lucas

16, 1 e 22, 21 –, uma pesquisa poderia ser empreendida para que, na análise de

outras séries documentais do período, pudéssemos estabelecer a verossimilhança

da morte de Galério segundo Eusébio de Cesaréia (e de Herodes Antipas segundo

Flávio Josefo). Isto, contudo, exigiria um tempo e erudição de que definitivamente

não dispomos e, além do mais, não é absolutamente importante para os nossos

propósitos atuais: basta-nos verificar a presença de um topos historiográfico

comum sobre o qual se articulam ambas passagens.382 Disto não decorre

necessariamente que o bispo de Cesaréia tenha simplesmente urdido uma mentira,

ou coisa assim. Acerca disto o melhor que temos a fazer é suspender os juízos de

valor mais contundentes, seguramente ditados mais pelos preconceitos que pelos

textos, e nos atermos ao que no momento tivemos a ocasião de verificar: a

influência, tanto ao nível dos conteúdos narrados quanto no do estilo da narrativa,

                                                            381 Michel FOUCAULT. Vigiar e punir : Nascimento da prisão. (Trad. Raquel Ramalhete). (31ª ed.). Petrópolis: Vozes, 1987 (2006). pp. 31-32. 382 A hipótese de que em inúmeras passagens de sua obra Josefo se utilizou mais de topoi narrativos recorrentes na tradição historiográfica tanto greco-latina quanto judeu-helênica e tradicional judaica do que de testemunhos em primeira mão ou pesquisas documentais foi aguda e cautelosamente formulada por Pierre Vidal-Naquet, que chegou a tal conclusão, grosso modo, partindo de uma análise comparada das narrativas consignadas na Bellum Judaicum sobre a capitulação dos sobreviventes de Jotapata e a captura dos de Massada. Cf. Pierre VIDAL-NAQUET. “Flavius Josèphe et Masada”. In: Les Juifs, la mémoire, le présent. Paris: s.e., 1981. Apud: C. GINZBURG. ps. 212 e nota correspondente, n. 5 ao cap. 11, p. 406.

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das obras históricas de Flávio Josefo sobre a História Eclesiástica de Eusébio de

Cesaréia.383

                                                            383 Não se pode dar por bem resolvida, ainda que muito modesta e provisoriamente, nenhuma discussão sobre a influência de Flávio Josefo na obra de Eusébio de Cesaréia sem mencionar o ilustre testimonium flavianum, transcrito no Livro I (11, 7-8) da História Eclesiástica. A controversa passagem, que consta em todas as cópias das Antigüidades Judaicas produzidas em meios cristãos depois da difusão da História Eclesiástica, é a seguinte: “Depois de [Josefo] explicar tudo isto a respeito de João [Batista], na mesma obra histórica menciona também nosso Salvador nos seguintes termos: ‘Por este mesmo tempo viveu Jesus, homem muito sábio se é que de homem devemos chamá-lo, porque realizava obras portentosas, era mestre dos homens que recebiam com prazer a verdade e atraiu não somente muitos judeus, mas também muitos gregos. Este era o Cristo. Havendo-lhe infligido Pilatos o suplício da cruz, instigado por nossos líderes, os que primeiro o haviam amado não cessaram de amá-lo, pois ao fim de três dias novamente apareceu-lhes vivo. Os profetas de Deus tinham dito estas mesmas coisas e outras incontáveis maravilhas sobre ele. A tribo dos Cristãos, que dele tomou o nome, ainda não desaparece até hoje.” (pp. 38-39 na edição em português que utilizamos). Para Argimiro Velasco-Delgado a inserção desta passagem no conjunto do texto da História Eclesiástica é coerente, mas marcada por sinais inequívocos da insegurança de Eusébio quanto à sua autenticidade. De um modo geral, ela seria uma resposta às problemáticas sobre a vida de Jesus postas na ordem do dia pelas chamadas Memórias de Pilatos – em seguida explicitamente mencionadas (I : 11, 9) –, e também um apêndice às referências que Josefo faz em sua obra a João Batista. De fato, para o cristianíssimo Eusébio seria uma indignidade que tão estimado autor seu tivesse mencionado o primo menos importante do Salvador e não o próprio. Estritamente não há condições de avaliar de forma precisa se o bispo de Cesaréia inventou pura e simplesmente esta referência, ou se a encontrou no texto das Antigüidades Judaicas que consultou. Sobre esta segunda hipótese, deve-se considerar que a terminologia aí aplicada para retratar Cristo é muito arcaica, não utilizada em virtualmente em nenhum ambiente cristão dos séculos III e IV, e também o fato de que Orígenes, sem o citar in extenso, mencionou Flávio Josefo como um dos não cristãos que testemunhavam o ministério, as condições da morte e a ressurreição de Jesus Cristo em seus escritos. Estas duas circunstâncias bem poderiam ser tomadas como provas que deve ter havido manuscritos de Josefo datados de meados do século II ou começo do século III que de fato continham a menção ao Nazareno. Considerando-se que se referir ao Nazareno como o Messias (em grego, Cristo) era demasiado inadequado para um judeu afeito às suas tradições como Josefo, não se pode, entretanto, excluir a possibilidade de um copista cristão que, antes de Eusébio e de Orígenes, tenha contribuído para corrigir esta distração do historiador judeu. Outros autores aventaram a possibilidade de que o próprio ex-guerrilheiro tenha se tornado em algum momento do final de sua vida simpático aos cristãos – o que é muito improvável – e chegaram a defender que a menção às obras portentosas e a ressurreição do pregador galileu foram inseridas pelo próprio Josefo em uma segunda edição de suas obras, realizadas em contexto bem diverso da primeira. Usando as técnicas da crítica textual mais rigorosa nos mais antigos escritos de Josefo disponíveis na contemporaneidade, certos especialistas chegaram ao seguinte trecho, idealmente expurgado dos acréscimos cristãos posteriores: “Por este mesmo tempo viveu Jesus, um homem sábio, que realizava obras portentosas e era mestre de homens que recebiam com prazer a verdade, atraindo a si não apenas muitos judeus, mas também muitos gregos. Havendo-lhe infligido Pilatos o suplício da cruz, instigado por nossos líderes, os que primeiro o haviam amado não cessaram de amá-lo. A tribo dos Cristãos, que dele tomou o nome, ainda não desaparece até hoje.” No século X, um anônimo tradutor verteu para o árabe um escrito de Agapitus, bispo da Frígia, chamado O Livro do Título, uma crônica do mundo desde o seu primeiro dia até o ano de 941 ou 942, que também reproduz esta polêmica passagem de Josefo citada por Eusébio. Como registrou Marilia Fiorillo, a paráfrase islâmica tomou o cuidado de acrescentar indicadores de dúvida substanciais àquilo que o seu redator considerava incerto: “Similarmente, Josefo, o hebreu (...) escreveu sobre o governo dos judeus: ‘Naquele tempo, havia um homem sábio que era chamado Jesus. Seu comportamento era bom e conheciam-no por ser virtuoso. E muitas pessoas entre os judeus e de outras nações tornaram-se seus discípulos. Pilatos condenou-o a ser crucificado e morrer. Mas aqueles que haviam se tornado seus discípulos não abandonaram sua escola. Eles disseram que ele lhes havia aparecido três dias depois da crucificação e que estava vivo; assim, ele era talvez o

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V.

“Para o amor não satisfeito o mundo é um mistério, um mistério que o amor satisfeito parece compreender.”

R. BRADLEY, Appearance and Reality, XV

“Considerai cada detalhe da Escritura. Para quem sabe cavar fundo, cada um deles encerra um tesouro. Talvez, onde não se espere encontrar quase nada, é que estejam ocultas as preciosas jóias do mistério.”

ORÍGENES, Oitava Homilia sobre o Gênesis

“Há um mistério, há um conteúdo escondido na história...O mistério é o das obras de Deus, que constituem no tempo a realidade autêntica, escondida detrás das aparências.”

JEAN DANIÉLOU, “Saggio sul mistero della storia”

Já mencionamos anteriormente neste nosso trabalho como Eusébio

formou-se intelectualmente – de modo muito literal, aliás – à sombra da reflexão

de Orígenes e como se fez um dos guardiões e perpetuadores de seu legado

intelectual. Uma das intuições que orienta a redação do presente texto é a de que

Eusébio de Cesaréia aplicou aos eventos históricos o mesmo método de leitura

criado e exercitado pelos chamados Padres Alexandrinos em suas considerações

exegéticas, o que teve implicações das mais relevantes para a sua obra

historiográfica. Aí a letra remete ao espírito, a imanência é aberta à transcendência

e o puro materialismo é ferido de morte, dando espaço a uma nova forma de ver e

narrar as trajetórias dos homens no mundo. Talvez tenha razão o juízo de que

Eusébio não era grande teólogo, ainda que notável historiador384, mas é mister

reconhecer que, situado dentro da tradição teológica alexandrina, o bispo de

Cesaréia encarou a história universal e eclesiástica, não só na qualidade de “bispo

político, apoiado pelo Estado e devotíssimo ao imperador”385, mas também como

crente e pensador da fé cristã. Consideremos arbitrariamente um trecho que, como

tantos outros, parece corroborar esta nossa hipótese. No quinto capítulo do quinto

Livro de sua História Eclesiástica, escreveu Eusébio:                                                                                                                                                                    Messias, a cujo respeito os profetas contaram maravilhas.” Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 50, n. 171. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 153-155. 384 Cf. A. STUIBER e B. ALTANER. Op. cit. p. 223. 385 Id. Op. cit. p. cit.

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“(...) Marco Aurélio César, estando em ordem de batalha frente aos germânicos e aos sármatas, passava grande dificuldade por causa da sede que castigava seu exército. Mas os soldados que serviam sob a assim chamada legião de Metilene – que por sob sua fé subsiste desde então até hoje –, formados frente ao inimigo, puseram seus joelhos no chão, segundo nosso familiar costume de orar, e dirigiram suas súplicas a Deus. Tal espetáculo pareceu, na verdade, muito estranho aos inimigos, mas outro documento conta que no mesmo instante foram surpreendidos por outro espetáculo ainda mais estranho: um furacão punha em fuga e aniquilava os inimigos, enquanto que a chuva caía sobre o exército dos que haviam invocado o socorro divino e o reanimava quando já estava todo ele a ponto de perecer pela sede. O relato conserva-se inclusive entre os escritores alheios a nossa doutrina que se preocuparam em escrever sobre aqueles tempos. Também os nossos o dão a conhecer. No entanto, os historiadores de fora, alheios a nossa fé, expõe o prodígio, mas não confessam que estes se realizou pelas orações dos nossos; já os nossos, como amantes da verdade, transmitem o ocorrido com simplicidade e sem malícia. Destes poderá ser também Apolinário, que afirma que a legião autora do prodígio por sua oração recebeu do imperador, a partir de então, um nome adequado ao sucedido, que em língua latina se diz Fulmínea. Testemunha destes fatos, digno de crédito, poderia também ser Tertuliano, que dirigiu ao senado a Apologia latina em favor da fé, da qual fizemos menção mais acima, e confirma o relato com uma demonstração mais ampla e clara. Escreve, pois também ele e diz que até agora conservam-se as cartas de Marco, o imperador mais sábio, nas quais ele mesmo atesta que, estando seu exército a ponto de perecer na Germania por falta de água, salvou-se pelas orações dos cristãos. E segue dizendo Tertuliano que o imperador ameaçou inclusive com a pena de morte aos que tentassem acusar-nos. A tudo isso o mesmo autor junta o seguinte: ‘Que tipo de leis são estas então, ímpias, injustas e cruéis, seguidas somente contra nós? Vespasiano não as observou, apesar de ter vencido os judeus; Trajano teve-as em parte como nada, ao impedir que se perseguissem os cristãos, e Adriano, apesar de ocupar-se com muita curiosidade das coisas, não as sancionou, como tampouco o que é chamado Pio.’”386

Nesta passagem bem podemos verificar três distintos níveis de leitura da

realidade que se sobrepõem e complementam mutuamente, formando uma

singular unidade significativa. Em primeiro lugar, dois eventos aparentemente

díspares: um grupo de legionários capadócios que reza por suas vidas e talvez

pelo sucesso nas armas, e uma intempérie que se abate sobre o campo, saciando a

sede de uns e dispersando outros. Não nos são transmitidas informações precisas

sobre a disposição das tropas, nem quaisquer uma sobre o clima e o relevo locais,

que nos permitiriam julgar com mais discernimento o ocorrido – de fato, isto é o

menos relevante: importa ao redator que reconheçamos a atitude moral dos

                                                            386 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro V : 5, 1-7. pp. 164-165.

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soldados e a existência de uma conexão entre a sua humilde oração e a tempestade

que os socorre salvando-os da sede e livrando-os do combate. Outros autores,

cristãos e não-cristãos, são invocados para atestar a veracidade do ocorrido, ainda

que estes últimos sejam desprestigiados justamente por não reconhecerem o que

para Eusébio é o fulcro significativo do evento.387

Da narrativa de tal prodígio, emerge um significado muito prático sob a

forma de questionamento, exposto pela transcrição do trecho de Tertuliano: se os

cristãos servem nos exércitos do Imperador, intercedem a favor deste ao seu Deus

e são por Ele atendidos, se são pelo supremo magistrado de Roma ornados com

um novo e prestigioso nome e pela sua proteção pessoal, que razão poderiam ter

os que os acusam de impiedade e subversão, declarando-os ateus e

revolucionários perigosos à paz do Império? Não bastasse isso, mais ainda um

outro nível é insinuado: o Deus adorado pelos cristãos é compreendido como um

deus eficaz – diversamente das deidades louvadas pelos romanos e pelos

germânicos e sármatas que os deixaram, respectivamente, padecer sob a agonia da

sede e sob a força dos ventos e da chuva –, o Deus que antes dera seu favor aos

judeus, e que agora intervém na História, segundo a sua vontade, em favor do

Novo Israel.388 As coisas não são apenas as coisas: tudo o que acontece e subsiste

no universo é parte de um texto imutável escrito por Deus desde a eternidade

numa língua que o homem tem se decifrar se quiser sobreviver e buscar estar em

                                                            387 Ou por lhe darem um outro sentido. Eusébio não cita nenhum dos autores dos quais discorda quanto a isto, mas, por exemplo, sabemos que Dion Cássio em sua Historia (72, 8-10) e em sua Vida de Marco Aurélio (Historia Augusta, c. 24) trata com algum vagar deste episódio da “chuva milagrosa”, ainda que o situe à iminência de uma batalha contra uma coalizão de cuados e marcomanos e o atribua – assim como fazem Claudiano em sua crônica do desenvolvimento das instituições romanas e o reitor Temistio (Orationes, c. 15) – à piedade e méritos pessoais de Marco Aurélio. Outros autores antigos atribuem este fato extraordinário a uma intervenção de Júpiter Capitolino, a um artifício do mago egípcio Arnúfis, a uma divindade desconhecida (que – Tertuliano bem o destaca – poderia ser o Deus dos cristãos), ou ao simples acaso. Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 291, n. 136 e 138. Ver também: Victor SAXER. “Fulminata (Legião XII)”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. p. 593. 388 Na narrativa de Eusébio talvez ecoem, conscientemente ou não, passagens vétero-testamentárias tais como Jó 38, 12-13.22-27, em que Iaweh, “do seio da tempestade” (Jó 38, 1), responde com rispidez ao sofrido personagem que questionava os Seus desígnios: “(...) Alguma vez deste ordens à manhã, ou indicastes à aurora um lugar, para agarrar as bordas da terra e sacudir dela os ímpios? (...) Entraste nos depósitos de neve? Visitastes os depósitos do granizo, que reservo para os tempos da calamidade, para os dias da guerra e da batalha? Por onde se divide o relâmpago, ou se difunde o vento leste sobre a terra? Quem abriu um canal para o aguaceiro e o caminho para o relâmpago e o trovão, para que chova em terras despovoadas, na estepe inabitada pelo homem, para que se sacie o deserto desolado e brote erva na estepe?” BÍBLIA. Ver. cit. pp. 850-851.

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bons termos diante do julgamento Dele.389 Os acontecimentos são sumamente

importantes, dotados em si mesmo de uma grandeza religiosa própria, por serem a

um só tempo invólucro e via de acesso da manifestação providente e redentora de

Deus, que os dispõem conforme os seus inefáveis critérios. No caso de Eusébio de

Cesaréia, tal concepção é diretamente oriunda de sua fé cristã, apreendida não

apenas por sua prática comunitária e suas leituras das escrituras que considerava

sagradas, mas também mediada e enriquecida pelos comentários que sobre estas

fizeram Orígenes e seus predecessores. Sendo tal o caso, devemos considerá-los

aqui com o vagar e a riqueza de detalhes que são exigidos por sua importância,

tanto direta, como fontes, fornecendo material que Eusébio recolhe fartamente,

muitas vezes o citando in extenso, quanto como no referente aos fundamentos

metahistóricos da narrativa eusebiana.

Nos primeiros dias do cristianismo, Alexandria era sob muitos aspectos a

principal cidade do Mediterrâneo Oriental, a segunda cidade politicamente mais

importante do Império Romano, um centro intelectual prestigioso e cosmopolita,

ornado com instituições célebres – o Muséon, ou Biblioteca de Alexandria,

espécie de academia em que, financiados pelo Estado, trabalhavam miríades de

copistas-arquivistas e pensadores dedicados às mais diversas reflexões físicas e

metafísicas – e um porto onde circulavam em grande quantidade bens, pessoas e

idéias provindas de regiões tão distantes quanto a Ibéria, a Bretanha e o

Hindustão. Então, “Atenas já não contava muito [e] (...) Paradoxalmente, a capital

cultural do helenismo se transportara para o Egito, entre os pântanos e o mar.”390

Nesta pulsante metrópole se desenvolveu uma comunidade judaica muito

importante por volta do século III a.C., notável por ter empreendido a difícil tarefa

de traduzir as suas Sagradas Escrituras para o grego, idioma corrente do Império

Greco-Latino; seis séculos depois aí viria a se desenvolver também o

neoplatonismo de Plotino, que a tantos conquistou por seus conceitos filosóficos e

exercícios místicos refinados. Tal ambiente deve ter sido tocado muito cedo pela

missão cristã, tanto por sua proximidade dos primeiros núcleos de irradiação do                                                             389 Cf. Braulio TAVARES. “Postfácio: Contos Borgianos”. In: VV.AA. Contos Fantásticos no labirinto de Borges. (Org. e apr. Braulio Tavares; il. Romero Cavalcanti; trad. Julio Silveira et al.). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. p. 283. 390 Georges S UFFERT. Tu és Pedro : Santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A história dos primeiros 20 séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Trad. Adalgisa Campos). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.p. 44.

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movimento de Jesus – estava localizada, por exemplo, a 350 km de Jerusalém391 –

, quanto pelo significativo número de judeus e simpatizantes que compunham a

sua população.392 Em que pese a atestada influência da teologia alexandrina na

obra de Eusébio, é significativo, entretanto, que ele quase não registre notícias da

situação dos cristianismos egípcios dos séculos I a III, mencionando apenas

eventos ou personagens muito dispersos no tempo: a pregação de Marcos nas

terras irrigadas pelo Nilo e a fundação de uma tão numerosa quanto rigorosa

comunidade cristã (II : 16), o testemunho que Fílon teria redigido sobre estes fiéis

(II : 17), um falso profeta daí originário que causou perturbações políticas na

Palestina (II : 21), a enumeração sem muito mais dos bispos de Alexandria (III :

14; IV : 1; IV : 5; IV : 11, 6; V : 9), e a pregação de Basílides e a sua refutação

por Agripa (IV : 7, 3-8). Apenas ao compor resumos bio-bibliográficos sobre

Panteno, o filósofo, e Clemente, “homônimo do discípulo dos apóstolos que

antigamente regeu a igreja de Roma”393 (V : 10; V : 11), que percebemos uma

mudança na abordagem eusebiana sobre o bastante particular movimento cristão

desta área. Para Marilia Fiorillo esta curiosa circunstância se deu pelo fato de os

mais antigos cristãos do Egito serem considerados por Eusébio como heterodoxos,

de tal forma que, para evitar mentir sobre eles, o autor da História Eclesiástica

simplesmente optou por ignorar as suas realizações, escritos e práticas – para ele

constrangedores – e omiti-los quase integralmente de sua volumosa obra.394

Com mencionamos, o primeiro escritor eclesiástico não apostólico e não

herético atuante em Alexandria do qual Eusébio trata com algum vagar é Panteno,

que deve ter aparecido na cidade por volta de 180 e cuja morte se deu por volta de

200.395 O bispo de Cesaréia nos informa que se tratava de um cristão, formado no

estoicismo, que se destacava entre os “homens eloqüentes e estudiosos das coisas

divinas” que formavam uma “escola das sagradas letras”, instituída na metrópole                                                             391 Rodney STARK. O crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. (Trad. Jonas P. dos Santos). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 153. 392 Rodney Stark comprovou admiravelmente que foi no âmbito das redes sociais formadas por estes agrupamentos humanos que pelo menos até os dias de João Crisóstomo se desenvolveu prioritariamente e com maior sucesso a missão cristã. V. Rodney STARK. “A missão junto ao povo judeu: as razões de seu provável sucesso”. In: R. STARK. Op. cit. pp. 61-84. 393 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro V : 11, 1. p. 170. 394 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 193-203. (em especial, ps. 193-195 e 200-203). 395 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 195. Salvatore LILLA. “Panteno”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. p. 1073.

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egípcia “por costume antigo”. 396 (Certamente esta é a “escola” na qual Orígenes

mais tarde viria a ensinar, e aqui temos um interessante indício de que poderia se

tratar de uma estrutura anterior ao próprio cristianismo que foi re-significada por

este; talvez originalmente fosse mesmo um centro de ensino associado a uma

sinagoga). Panteno em determinado momento pôs-se em missão rumo à Índia,

onde teria encontrado alguns rastros da pregação apostólica e um antigo

evangelho redigido em caracteres hebraicos. Junto dele, Clemente recebeu a mais

importante parcela de sua formação, ainda que não se tenha estabelecido se isto se

deu antes da partida do ex-filósofo estóico para o Oriente ou depois de um seu

eventual retorno.397

Clemente de Alexandria, nascido Titus Flavius Clemens, muito

possivelmente na cidade de Atenas, personagem que Jacques Liébaert destaca

como o primeiro humanista cristão, assume integralmente a “dupla fidelidade dos

Padres: ao mesmo tempo, à tradição cristã e à cultura de seu tempo (...). Ele é

grego e cristão com naturalidade, com serenidade, sem se questionar”.398

Compreendeu agudamente que os cristãos tinham necessidade de se fazer

compreender no mundo cultural greco-latino se aí quisessem obter algum êxito

missionário, e que isto era tornado verdadeiramente urgente na proporção em que

as suas exigências cada vez mais imperiosas conduziam os seguidores de Jesus de

Nazaré a também “assumir as responsabilidades desta civilização que tinham

desejado e pretendido poder rejeitar.”399 Foi tomado também pela certeza de que

haviam muitas coisas no helenismo que eram francamente opostas ao ideal

evangélico, mas que seu legado não era possível de ser rejeitado: a famosa

diatribe de Tertuliano contra a cultura clássica – “(...) Que há de comum entre

                                                            396 Todas as citações desta frase foram extraídas de: EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro V : 10, 1. p. 169. 397 Eusébio parece associar Clemente a Panteno, se não por mais, ao tratar daquele logo depois de se referir a este. Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro V : 10-11. pp. 169-170. No manual de Berthold Altaner e Afred Stuiber, entretanto, levantam-se dúvidas quanto a esta relação que a tradição eclesial atestou durante longo período: “(...) Cerca de 180, Panteno, oriundo da Sicília, apareceu em Alexandria, como primeiro mestre cristão de renome. Clemente seria o segundo mestre desse gênero, não como discípulo de Panteno, nem como sucessor seu à frente de uma escola; talvez haja mesmo ensinado simultaneamente com Panteno e outros.” B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. cit. 398 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 87. 399 H. I. MARROU. Op. cit. p. 843.

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Atenas e Jerusalém, entre a Academia e a Igreja?”400 –, que, aliás, nunca foi um

consenso, não era para Clemente passível de ser sustentada. Mais ainda, o salto do

horizonte de pensamento semítico para um panorama conceitual indo-europeu,

grego e filosófico oferecia ao cristianismo com generosidade magnífica

ferramentas mentais para que ele compreendesse melhor a si mesmo e elaborasse

em mais refinadas bases a sua pregação, exegese e teologia.401

Bom observador e bom crítico dos estilos de vida, foi um homem total

como depois o seriam Isidoro de Sevilha na Idade Média, Della Mirandola e Da

Vinci no Renascimento, e Sir Richard Burton na Era Vitoriana; imensamente

erudito, conhecia em detalhes não somente os textos judaicos e cristãos da Bíblia,

mas toda a literatura paleortodoxa e herética de então, assim como praticamente

todos os mais relevantes produtos intelectuais da tradição greco-latina clássica e

tardia, as polêmicas filosóficas e os estudos científicos, assim como os florilégios

e compêndios de curiosidades – as mais de trezentos e sessenta citações tiradas de

escritores profanos que constam na parte sua obra conhecida pelos modernos o

atestam muito bem. Quando louvou àquela sabedoria que Cristo teria revificado e

completado, mais do que por sua pregação, por seu sacrifício, e apresentou o

nome dos sábios que teriam anunciado e preparado à sua Encarnação, ainda que

não o soubessem, é que Clemente dá mostras do caráter enciclopédico de seu

pensar, mencionando não apenas os filósofos gregos e os astrólogos persas de que

nos dão notícia o Evangelho de Mateus, mas também “os sábios desconhecidos da

Caldéia, do Egito, da Gália (...), os magos da Arábia e os místicos hindus.”402

Ainda que não tenha sido bispo, ou mesmo clérigo – aliás, como seu antecessor

Panteno –, Eusébio o assinalou como entre os mais “célebres da sucessão

apostólica”403, justificando esta afirmação com uma citação de Clemente no qual

este afirma que recebeu a fé de “varões bem-aventurados e realmente eminentes

(...) que conservaram a verdadeira tradição do ensinamento bendito proveniente

em linha reta dos santos apóstolo, de Pedro e de Tiago, de João e de Paulo,

                                                            400 TERTULIANO DE CARTAGO. De praescr. 7, 9. Apud: H. I. MARROU. Op. cit. p. 844. 401 Cf. Id. Op. cit. pp. 843-844. 402 G. SUFFERT. Op. cit. p. 46. 403 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro V : 6, 1. p. 170.

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recebendo-a o filho do pai”.404 Autor entusiasta e muito religioso, não obstante o

seu mau juízo da palavra escrita405, deixou uma série de trabalhos tão variados

quanto originais, redigidos em um estilo elegante que é culto sem nunca cair no

pedantismo ou no preconceito puro e simples; por vezes, chega mesmo às alturas

da poesia e se aproxima muito da fôrma homérica. Segundo Georges Suffert, nele

já “(...) Passamos sem choque das palavras dos gigantes da Ilíada às bem mais

desorientadoras de Cristo e de seus apóstolos.”406 Espécie de antítese de

Tertuliano e pleonasmo de Justino, parece ser bastante simpático à nossa

contemporaneidade pós-moderna, não só por seu manifesto espírito aberto,

disposto a levar até as últimas conseqüências o mandato paulino de examinar tudo

e tomar para si o que é bom407, mas pela sua desconcertante – e talvez consciente

– falta de sistematicidade e clareza.408

De Clemente de Alexandria conservamos notícias de três obras principais,

que se presume terem originalmente feito parte de um único bloco argumentativo,

talvez destinado ao uso na instrução catequética. Em primeiro lugar temos uma

Protreptikòs pròs Héllenos (“Exortação aos gentios”), que é um chamado à

conversão e uma apologia da adesão ao seguimento de Jesus Cristo, redigida no

                                                            404 Id. Op. cit. Livro V : 6, 3.5. p. cit. A menção a um “bem-aventurado presbítero Clemente, varão virtuoso e probo” feita por Alexandre de Jerusalém em uma carta transcrita na História Eclesiástica não é prova suficiente para que se deduza com certeza que Clemente de Alexandria recebeu o sacramento da Ordem. Ibid. Op. cit. Livro VI : 11, 6. p. 202. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 197. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 369, n. 78. 405 Jorge Luis Borges no já citado ensaio “Do culto dos livros” registra o receio de Clemente de Alexandria para com as idéias consignadas por escrito e indica que este tem sua origem na tradição filosófica grega (Pitágoras, Platão) e na atitude de Jesus “o maior dos mestres orais, que apenas uma vez escreveu algumas palavras na terra e nenhum homem as leu”. Para exemplificar tal coisa, o literato argentino cita dois trechos por ele redigidos a este respeito: “(...) O mais prudente é não escrever, mas aprender e ensinar de viva voz, porque o escrito fica”, e “(...) Escrever num livro todas as coisas é deixar uma espada nas mãos de uma criança”. J. L. BORGES. Op. cit. pp. 131-132. 406 G. SUFFERT. Op. cit. p. 45. 407 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. Primeira Epístola aos Tessalonicenses 5, 21. p. 2064. 408 Para Jacques Liébaert tal circunstância impediu que Clemente assumisse um lugar que realmente fizesse jus à sua genialidade no rol dos grandes autores cristãos da Antigüidade. Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 88. Por outro lado, causam constrangimentos entre os fundamentalistas de todos os tempos palavras como “(...) Não há, por certo, senão um caminho da verdade, mas ele é como um rio inesgotável, para o qual correm os outros cursos d’água, vindos um pouco de cada lugar. Daí estas palavras inspiradas: ‘Escuta, meu filho, e recebe as minhas palavras para teres muitos caminhos para a vida. Eu te ensino as vias da sabedoria, para que não te faltem fontes’, as fontes que jorram (todas) da mesma terra. E não há somente para um único justo que ele diz haver vários caminhos de salvação; acrescenta que há para multidões de justos, multidões de outros caminhos; faz com que se entenda assim: ‘os atalhos dos justos brilham como a luz’.” Citado em: Id. Op. cit. p. cit.

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estilo que é, deliberadamente, o da discussão filosófica e cultura erudita de seu

tempo.409 Neste texto, a exemplo de outros apologistas judeus e cristãos

primitivos, esboçou um quadro verdadeiramente horripilante da loucura e

imoralidade dos mitos pagãos e dos cultos de mistério – afirmação nossa que deve

ser matizada pelo curioso fato de que as mais recentes pesquisas históricas sobre o

tema acabaram por comprovar que este Padre da Igreja se ateve mais à narração

objetiva dos fatos do que se poderia imaginar. Alinhavando algumas idéias de

Platão e de alguns poetas que acreditava serem também inspiradas por Deus,

voltou-as contra as doutrinas das mais populares escolas filosóficas helênicas

sobre a essência divina; usando os argumentos da alta cultura helenista, atacou

com refinamento o paganismo popular, afirmando a indignidade de suas

representações do transcendente e a bestialidade de suas formas cultuais. Com

palavras que transpiram sincero fascínio, apresentou aos seus leitores Jesus Cristo,

“cantor e mestre do novo mundo (...) a sublimidade da revelação do Logos e a

maravilhosa riqueza da graça divina, que satisfaz plenamente toda nostalgia do

homem pela luz, pela verdade e pela vida.”410

Em segundo, temos um trabalho de nome Paidagogós (“O pedagogo”),

dirigido aos batizados, onde é apresentada uma maneira de viver o mandato

evangélico na sociedade ambiente, mudando-a desde dentro naquilo que ela tem

de mau e preservando e enriquecendo com o cristianismo aquilo que ela tem de

bom. Aí são oferecidos apontamentos concretos para que os cristãos pudessem

atender ao imperativo apostólico de “dar razão da vossa esperança a todo aquele

que vo-lo pede (...), com mansidão e respeito”.411 Clemente não conclamou os

fiéis a um ostentoso comportamento ascético, nem exigiu de forma alguma que

renunciassem os crentes às suas alegrias e satisfações mundanas, mas, lembrando

que é imperativo que o cristão guarde sua plena independência em relação aos

                                                            409 J. Quaest (Patrologia, v. I, Turim, 1967, p. 289) observou que esta obra de Clemente de Alexandria se insere no gênero literário das dissertações do jovem Aristóteles (entre as quais constava também um Protreptikòs), continuado por trabalhos análogos compostos por Epicuro, Cleantes, Crisipo, Posidônio, Cícero, e, mais tarde, no século IV d.C., Jâmblico. Cf. Salvatore LILLA. “Aristotelismo”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. p. 155. 410 B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 198. 411 BÍBLIA. Ver. cit. Primeira Epístola de Pedro 3, 15b-16a. p. 2117. Jacques Liébaert escreve a respeito desta obra, comparando-a com os vários textos de Tertuliano que se dispunham a fazer o mesmo, ainda que de maneira muito diversa, que “se este último é mais profeta, Clemente é mais educador”. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. cit.

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bens passageiros, pediu-lhes apenas que não se deixassem subjugar pela

necessidade de gozá-las de forma desenfreada, e mantivessem tudo em justa

medida. Se considerarmos tal obra contra o pano de fundo da opulenta

Alexandria, onde subsistiam indissociáveis o luxo e – do ponto de vista cristão, é

mister ressaltar – a degradação moral, salta à vista o inusitado bom sendo do seu

autor, que insiste naquele tipo de postura que nossa sabedoria popular codificou

no dito nem tanto à terra, nem tanto ao mar.412 Composto em três livros, o

Paidagogós se encerra com um hino a Cristo que é muito belo; o segundo e o

terceiro volumes contêm pormenorizadas prescrições, dispostas aparentemente

sem nexo lógico, sobre o comer e o beber, o cuidado do corpo, a vida conjugal, o

descansar e a recreação, o vestuário, a habitação, as relações sociais, o estudo e

tantas outras coisas, notas que remetem-nos a códigos similares compostos em

ambientes bastante diversos por sábios hebreus (a Mishnah, ou Comentário à Lei)

e chineses (o Liji, ou Livro dos ritos).413

Por fim, temos a vertiginosa coletânea de oito livros intitulada Stromata

(“Tapeçaria”), que aborda temas os mais diversos e o faz de maneira de tal monta

desordenada que ou se trata de peça inconclusa que se dedicava a tratar de modo

sintético de toda a Criação ou está organizada de acordo com uma lógica que os

especialistas antigos e modernos ainda não conseguiram apreender. Tais hipóteses

são apenas aproximações a um texto que, com efeito, mais parece ter saído da

imaginação de um Jorge Luis Borges. Já que nada se pode afirmar de muito

seguro sobre trabalho tão peculiar, ao menos aparentemente o público para o qual

ele se dirige é o heterogêneo e exigente conjunto dos gentios que se interessam

por querelas filosóficas; em não pouco número de trechos, parece que o seu                                                             412 Compõe talvez uma unidade de propósito com este trabalho também o Tís ho sozómenos ploúsios (“Que rico se salvará?”), homilia sobre o texto de Marcos 10, 17-31 que só conhecemos em versão latina (sob o título de Quis dives salvetur?). Aí Clemente tenta demonstrar que os ricos também podem chegar à felicidade eterna, já que não é a posse ou não de quaisquer bens materiais que definem a sua salvação (ou danação) do ser humano, mas a sua consciência de ser pecador, sua confiança em Deus e o seu bom (ou mau) comportamento. Para argumentar neste sentido, o autor invoca a lenda sobre o encontro do apóstolo João com um jovem de família abastada que se tornara chefe de um bando de ferozes salteadores, e de como aquele, por fim, consegue converter e reintegrar este à Igreja. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 200. 413 Cf. Id. Op. cit. p. 199. No começo do conto “O Zahir”, Jorge Luis Borges escreveu que: “(...) Os hebreus e os chineses codificaram todas as circunstâncias humanas; na Mishnah se lê que, iniciado o crepúsculo do sábado, um alfaiate não deve sair na rua com uma agulha; no Livro dos ritos, que um hóspede, ao receber a primeira taça, deve assumir um a grave, e, ao receber a segunda, um ar respeitoso e feliz.” Jorge Luis BORGES. O Aleph. (Trad. David Arrigucci Jr.). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 94.

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principal propósito é comprovar que a sabedoria cristã é síntese qualitativa e

complemento de todas as formas de sabedoria. Ao contrário dos gnósticos, que

consideravam o conhecimento profano e de Deus incompatível com a fé,

Clemente parece propor na Stromata que o seguidor de Jesus Cristo deve conciliar

ambos, numa relação sincera e harmoniosa. Seja como for, é nesta obra complexa

e ainda pouquíssimo estudada que Clemente de Alexandria apresenta a sua visão

fortemente providencialista da História associada à noção de que a filosofia foi

uma preparação para que os helênicos recebessem a mensagem cristã tanto quanto

teria sido para os judeus a observância da Lei Mosaica:

“(...) Antes da vinda do Senhor, a filosofia era indispensável aos gregos para conduzi-los à justiça; agora se torna útil para conduzi-los à veneração de Deus. Ela serve de forma preparatória aos espíritos que querem chegar à fé pela demonstração. ‘Teu pé não tropeçará’, como diz a Escritura, se atribuis à Providência tudo o que é bom, tanto grego quanto cristão. Deus é a causa de todas as coisas boas, umas imediatamente e por si mesmas, como o Antigo e o Novo Testamento; outras por corolário. Mesmo a filosofia talvez também tenha sido dada como um bem direto aos gregos, antes que o Senhor tivesse ampliado até eles o seu chamado, pois realizava a educação deles, exatamente como a Lei dos judeus, para ir até Cristo. A filosofia é um trabalho preparatório; ela abre caminho àquele que Cristo depois torna perfeito...”414

De Panteno e Clemente, entretanto, o autor da História Eclesiástica parece

destacar que o mais importante foi terem contribuído para a formação de

Orígenes, de quem foi um dos herdeiros – inclusive do ponto de vista material –,

conforme já tivemos a ocasião de assinalar anteriormente: “(...) Tendo sucedido a

Panteno, Clemente vinha regendo a catequese de Alexandria até aquele mesmo

tempo, de maneira que também Orígenes foi um de seus discípulos.”415 Já tivemos

antes a ocasião de tratar de alguns aspectos da vida e obra deste extraordinário

personagem que “(...) Já em vida, (...) foi considerado o mais insigne teólogo da

                                                            414 Citado em: J. LIÉBAERT. Op. cit. p. cit. Deve-se destacar que o juízo de Clemente sobre o pensar helênico era respeitoso e mesmo entusiasta, mas não ingênuo: de acordo com este autor (Stromata I : 7, 37), “(...) A filosofia (...) tem de se radicar no ensino da justiça e da piedade para ser uma educação preparatória para o conhecimento espiritual (...) [e se assim não fosse] reduzir-se-ia a silogismos, a entinemas e a definições ocas, que tentam conseguir créditos para uma afirmação, e jamais descobrir as linhas da verdade.” Antonio QUACQUARELLI. “Paideia”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. p. 1061. 415 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VI : 6, 1. pp. 198-199.

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Igreja grega”416, de modo que agora passaremos em revista apenas algumas suas

considerações que nos parecem ter sido especialmente influentes no

desenvolvimento da historiografia eclesiástica conforme esta se deu na mais

conhecida obra de Eusébio de Cesaréia e na produção intelectual de seus

continuadores.

As primeiras obras de Orígenes, dentre as quais constam também muitas

produções de improviso, como pequenas notas e sermões e discursos que foram

esteneografados, datam de seu período alexandrino, ou seja, dos anos de 215 a

230.417 De notável importância é um tratado então composto que foi intitulado

Dos Princípios, onde, sob um título recorrente na produção filosófica greco-latina

clássica (em grego Peri Archôn), tratou Orígenes, em quinze volumes bastante

independentes entre si, de expor os pontos basilares da fé cristã, cunhando uma

primeira apresentação metódica e acessível ao público culto de sua cidade de sua

visão como crente do homem, do mundo e de Deus.418 Lidou nesta obra de modo

especialmente sensível com a problemática do mal em um mundo que seria criado

e guardado por uma divindade supostamente boa, ou seja, dedicou-se à

composição de uma teodicéia, esforço que Max Weber reconheceu como sendo a

questão central e mais espinhosa da ética das religiões de redenção.419 Deve-se,

compreendê-la, sob o pano de fundo de um grande atrito de palavras: recordemo-

nos que, para lidar com tal incerteza, “(...) Os gnósticos haviam proposto uma

solução dualista: o combate de dois princípios. (...) Orígenes percebe que se trata

de uma armadilha intelectual. Não existem, face a face, um Deus bom e outro mal.

Para ele, as almas divididas podem encontrar novamente a pureza original. Então,

a história do mundo estará realmente terminada.”420 Partindo do conjunto de

escrituras que tinha como sagradas e da tradição da comunidade eclesial da qual

se sentia partícipe, o teólogo buscou dialogar de espírito aberto com os seus

                                                            416 B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit 205. 417 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 91. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. cit. 418 Cf. Id. Op. cit. pp. 209-210. 419 Cf. Max WEBER. “Rejeições religiosas do mundo e suas direções.” In: Textos selecionados. (Trad. Maurício Tragtenberg, Waltensir Dutra et al.). (3ª ed.). São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Col. “Os Pensadores”). p. 265: “(...) A necessidade metafísica respondeu à consciência de tensões existentes e insuperáveis, e, através da teodicéia, ela tentou encontrar um sentido comum apesar de tudo.” 420 G. SUFFERT. Op. cit. p. 47.

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interlocutores externos e internos ao movimento de Jesus; Jacques Liébaert

destaca que “Orígenes está, aqui, no extremo do esforço de compreensão da fé em

seu tempo; às vezes ele se lança em hipóteses audaciosas, que lhe custarão

problemas póstumos. A amplitude da visão é algo inédito no pensamento

patrístico; o livro não terá equivalentes entre os Padres posteriores.”421

Paralelamente à composição do que veio a ser o seu mais conhecido

trabalho expositivo, mas vinculado a este de forma intestina – lembremos que o

Peri Archôn é concluído com um pequeno tratado de exegese –, o jovem teólogo

alexandrino iniciou suas pesquisas sobre a Bíblia Judaica e começou a redigir

numerosos trabalhos sobre os textos sagrados dos cristãos, dentre os quais se

destaca um, tão vasto em seu número de páginas quanto sumamente denso em seu

conteúdo, sobre o Evangelho de João, que era uma deliberada réplica a uma obra

similar composta gnóstico Heracleão.422 É notável este relevo que Orígenes dá ao

texto joanino: é neste, já considerado por Clemente de Alexandria como mais

notável que os Evangelhos Sinóticos, e nas epístolas paulinas que ele encontraria

o método de leitura das Escrituras que exercitou em suas obras e legou aos seus

inúmeros leitores – dentre os quais Eusébio de Cesaréia, que, sem o explicitar em

sua História Eclesiástica, o usará com naturalidade para apreender, selecionar,

interpretar e apresentar narrativamente os eventos humanos que se dispôs a

registrar em sua vasta obra.

Já estabelecido em Cesaréia da Palestina, sob a proteção do bispo local,

Teotito, e de seu confrade Alexandre de Jerusalém, dedicou-se ainda mais –

certamente com a ajuda de uma equipe de auxiliares – a redigir numerosas

homilias e comentários à Escritura. Por volta de 248, quase certamente com mais

de 60 anos, escreveu sua importante refutação ao Alethès lógos do filósofo

                                                            421 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 92. Esta amplitude de visão foi uma espécie de realização da já mencionada indicação clementina de que também o saber clássico está semeado de boas coisas, de elementos que provém de Deus, e que justamente por isso pode e deve ser aplicado ao entendimento de Sua Palavra e Vontade: em uma carta a Gregório, dito o Taumaturgo, escreveu Orígenes que era o seu desejo que este tirasse “da filosofia grega tudo o que pode servir como ensinamento encíclico ou propedêutico de introdução ao cristianismo; e igualmente da geometria e da astronomia, tudo o que for útil à interpretação da Sagrada Escritura. E assim, o que dizem os filósofos da geometria e da música, da gramática, da retórica e da astronomia, chamando-as auxiliares da filosofia, nós o aplicaremos, de nosso lado, à própria filosofia com relação ao cristianismo...” Citado em: Id. Op. cit. p. 93. 422 Sobre este personagem, discípulo de Valentino, ver: Claudio GIANOTTO. “Heracleão”. In: VV. AA. Dicionário patrístico...Op. cit. pp. 663-664.

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platônico Celso, na qual incidentalmente veio a preservar por meio de suas

citações considerável parte do argumento anticristão do filósofo. Nos oito livros

que passaram à posteridade com o banal título de Contra Celso, Orígenes, com

serenidade e erudição, respondeu às invectivas que apresentavam Cristo como

impostor vulgar, atribuíam os aspectos extraordinários de sua vida à liberdade

poética ou falsidade de seus primeiros seguidores, e afirmavam que a rápida

difusão do seu movimento se deveu à forte impressão que produziu nos mais

simples os aterradores panoramas do Juízo Final e do fogo do inferno

apresentados nos discursos de seus arautos. Em contrapartida a isto, ressaltou o

teólogo alexandrino a inverdade de alguns dos eventos referidos por Celso, e

alegou que as curas de enfermos e expulsões de demônios que se faziam ainda nos

seus tempos sob a autoridade de Jesus de Nazaré, assim como a união e a pureza

dos costumes dos cristãos era mais do que suficiente para comprovar a verdade de

sua crença.423 Continuou a viajar, a responder às críticas de seus detratores e a

manter significativa correspondência com seus amigos e alunos. Mais de uma vez

atendeu ao chamado de bispos que o consultavam sobre questões especialmente

ásperas de exegese e dogmática: uma coleção de documentos achados em um

rincão egípcio no ano de 1941 trouxe à luz também o relato de um destes serviços

de consultoria na forma de uma resposta dada a um grupo de bispos do sul da

Palestina.424 Em sua obra de especialista nos textos sagrados de judeus e cristãos,

Orígenes aliou com quietude preocupações que – anacrônica, mas acertadamente

– poderíamos classificar como próprias de um moderno espírito científico a uma

atitude profundamente religiosa, que se assentava na convicção de que a oração

tanto quanto a disciplinada dedicação são os principais instrumentos do estudioso

deste tema, admoestando ao que se dispõe a sê-lo que siga as palavras do

Evangelho que dizem: “(...) Pedi e vos será dado; buscai e achareis; batei e vos

será aberto; pois todo aquele que pede, recebe; o que busca, acha, e ao que bate, se

lhe abrirá.”425 Postulando tal comportamento, introduziu a exploração sistemática

                                                            423 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 209. 424 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. ps. 92 e 94. A mencionada coleção de documentos passou a ser conhecida como Papiros de Tura (nome da cidade em que foi descoberta) e revelou pelo menos dois outros textos de Orígenes até então desconhecidos: a Disputa com Heráclides e os escritos Sobre a Páscoa. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. pp. 205-206. 425 BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 7, 7-8. p. 1715. (Trecho que é idêntico a: Lucas 11, 9-10. p. 1809). Na mística origenista esta passagem está estreitamente vinculada a João 14, 13-17: “(...) E o que pedirdes em meu nome, eu o farei a fim que o Pai seja glorificado no Filho. Se pedirdes algo em

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do texto bíblico, valorizando “sua leitura por si mesma, e a leitura meditada para

interiorizar e se apropriar da Palavra de Deus”.426

Partindo da crença de que o Antigo e o Novo Testamento são a eterna

encarnação em caracteres do Logos que se oferece continuamente a todos os

homens do seu presente e de todos os tempos vindouros até o dia do Juízo,

percebeu com agudeza que o estudo de tais escritos supunha antes de qualquer

outra coisa o acesso e o profundo entendimento de uma versão correta, distante

das traduções falhas e contendo o mínimo possível de adulterações piedosas.

Discutindo com os judeus sobre suas próprias escrituras sagradas, percebeu a

existência de não poucas divergências entre a versão hebraica e a da Septuaginta

da Lei e dos Profetas, assim como diferenças significativas entre esta e outras

traduções gregas também de origem judaica, e até o fato de que mesmo os

manuscritos da LXX apresentavam numerosas variações entre si. Abordou tal

problemática de forma original, abrindo mão de considerar tais desigualdades

entre os textos como maldosas falsificações anti-cristãs urdidas em tempos

recentes pelos filhos dos hebreus que pérfida e obstinadamente se mantinham

atrelados ao tão vazio quanto cego seguimento da Lei mosaica, para tomar sempre

o texto hebraico como o original e, portanto, como historicamente prioritário. Não

se escusou de assumir o labor conseqüente a esta opinião: trabalhou com rabinos e

considerou suas opiniões427, iniciou-se no seu idioma sagrado e começou a reunir

todo o material documentário então existente para elaborar um instrumento de

trabalho através do qual pudesse lidar a contento com os livros vétero-

testamentários. Empenhado neste propósito, compilou a Hexapla, obra

monumental de formato muito curioso, onde o texto da Bíblia Hebraica era

apresentado de maneira sinótica em seis colunas: (1) o texto hebraico preservado                                                                                                                                                                    meu nome, eu o farei. Se me amais, observareis meus mandamentos, e rogarei ao Pai e ele vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê nem o conhece. Vós o conheceis, porque permanece convosco.” Id. ver. cit. p. 1880. Cf. Carta de Orígenes a Gregório, o Taumaturgo. Citado em: J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 93. 426 Id. Op. cit. p. 96. 427 Uma passagem da Homilia sobre o Êxodo (V, 5) talvez ateste isto, caso os “anciãos” a que Orígenes se refere sejam mesmo, como se pode conjecturar, estudiosos judeus da Bíblia: “(...) Eu ouvi os anciãos dizerem que, nessa passagem do mar [Vermelho, que se teria aberto ao comando de Moisés], as águas se dividiram em tantas frações quantas são as tribos de Israel e que cada tribo teve seu próprio caminho aberto no mar; a prova estaria nestas palavras do salmo: ‘Aquele que dividiu o Mar Vermelho em frações’... Pensei ser piedoso não omitir essa observação dos anciãos sobre as divinas Escrituras.” Citado em: Ibid. Op. cit. p. 102.

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nas sinagogas da Palestina e na região do Delta do Nilo; (2) a transcrição sem

mais do texto hebraico em caracteres gregos; (3) a tradução grega de Áquila,

muito literal, composta talvez na primeira metade do século II d.C.; (4) a tradução

grega de Símaco, caracterizada por lançar mão de paráfrases e mesmo de alguns

resumos, que sucede em algumas décadas a de Áquila; (5) a tradução grega da

Septuaginta, ou dos LXX, que data de algum momento entre os séculos III e I a.C.

e já era adotada como canônica pela Igreja grega nos tempos de Orígenes; (6) a

tradução grega de Teodocião, que talvez tenha sido feita no século I de nossa era e

em ambiente judeu-cristão. Em alguns livros dissecados na Hexapla as

descobertas pessoais do teólogo permitiram que se alinhassem sete, oito ou até

nove colunas de textos diversos entre si – foi o caso dos Salmos, por exemplo,

onde ele lidou com edições dos textos bíblicos provenientes de outros ambientes

judaicos – o babilônico, o romano, o essênio, o saduceu – que hoje estão

indisponíveis tanto aos fiéis quanto aos pesquisadores. Jacques Liébaert registrou

que “(...) Esse instrumento de trabalho foi conservado, provavelmente em um

único exemplar, em Cesaréia, aonde iam consultá-lo; depois desapareceu, para

grande prejuízo da ciência bíblica.”428 Não é difícil notar sua imensa influência

nos já mencionados trabalhos exegéticos empreendidos por Eusébio.

A partir do uso da Hexapla, Orígenes, que nunca se permitiu corrigir o

texto que já estava estabelecido como de uso corrente, normativo e litúrgico, em

sua comunidade eclesial, extraiu uma apresentação da Septuaginta em que as

variações, acréscimos ao original hebraico ou lacunas em relação a este foram a

ele adequados ou preenchidos por outras traduções gregas mais fiéis ao sentido

primeiro do texto; junto do próprio corpus textual, completamente marcado por

sinais críticos – tomados de empréstimo das edições dos clássicos greco-latinos

compilados no Muséon alexandrino – que indicavam todas as divergências

existentes entre as suas versões conhecidas, haviam ainda muitas notas

explicativas, comentários histórico-literários429, moralmente edificantes ou de

                                                            428 Ibid. Op. cit. p. 96. 429 Jacques Liébaert chamou a atenção para o fato de que nestas notas Orígenes aventou a possibilidade de que o autor da Epístola aos Hebreus, que a tradição designou com sendo o próprio Paulo de Tarso, não fosse o Apóstolo dos gentios, mas um camarada de missão ou discípulo próximo, a quem seu pensamento fosse familiar, e que isto é justamente o que diz a exegese contemporânea, que incluiu este referido escrito no rol daqueles denominados “deutero-paulinos”. Cf. Ibid. Op. cit. p. 99.

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cunho espiritualizante, que exploravam o sentido alegórico dos trechos ali

consignados. Como fica evidente nesta edição da qual infelizmente só nos restam

vestígios parciais, a principal preocupação de Orígenes é com a interpretação da

Bíblia. Em mais de uma ocasião ele considerou a problemática de maneira

explícita, confrontando a leitura cristã paleortodoxa de suas próprias escrituras

com a que delas faziam judeus e gnósticos. Com comovente solicitude de bom

homem de Igreja, o organizador da Hexapla insistia que o povo cristão tinha

necessidade de ser esclarecido na compreensão da Bíblia para não se deixar

enredar em fábulas adventícias elaboradas por aproveitadores e nem padecer em

leituras ingênuas que, tomando tudo ao pé da letra, sem nenhum distanciamento,

acabavam por serem pouco adequadas à dignidade de Deus e danosas à fé – além

de ofensivas à razão, o que também cria um pecado na medida em afirmava que a

razão humana participa de algum modo da Inefável Razão divina.430 Dada esta

opinião, não deixa de ser curioso, entretanto, que este homem tão atencioso com

seus irmãos menos esclarecidos e que deveria chamar tanta atenção por suas faces

glabras e voz aguda em uma época em que o filósofo e o erudito eram

caracterizados justamente pela voz firme e barba longa (sinal de sabedoria), tenha

se castrado não por inspiração do neurótico repúdio ao sexo que caracterizaria

alguns teólogos ocidentais, como Jerônimo e Agostinho de Hipona, mas

justamente por entender literalmente aquele trecho dos Evangelhos em que Jesus

comenta que alguns indivíduos se faziam eunucos por amor ao Reino de Deus.431

Como os autores do Novo Testamento e os integrantes da tradição

rabínica, Orígenes interpretou e apresentou as Escrituras em uma perspectiva

unificadora e edificante, através do qual olha para o passado da comunidade,

percebe aí a ação de Deus em favor dos seus, e, diante das problemáticas do

                                                            430 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 196. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 99. 431 K. ARMSTRONG. Op. cit. p. 140. Citando o historiador britânico Peter Brown, Karen Armstrong menciona que talvez Orígenes tenha lançado a faca à sua genitália também para empiricamente verificar ou “demonstrar sua doutrina da indeterminação da condição humana, que a alma logo deveria transcender [para se elevar do material ao divino]. Fatores aparentemente imutáveis como a distinção entre os sexos cairiam por terra no longo processo de divinização, pois em Deus não há macho nem fêmea.” Id. Op. cit. p. cit. Dado que a leitura que Orígenes fez das Sagradas Escrituras foi prioritariamente alegórica, outra coisa que muito nos chama atenção é o fato de que tenha mobilizado todas as não poucas ferramentas intelectuais de que dispunha para refutar o marcionita Apeles que afirmava – aliás, com razão – que as dimensões que o Gênesis indica para a Arca de Noé não permitiriam que nela fosse acolhido um número grande de animais como o suposto no mesmo texto. Cf. Henri CROUZEL. “Orígenes”. In: VV. AA. Dicionário patrístico… Op. cit. p. 1047.

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presente, reconhecendo a responsabilidade dos fiéis na edificação destas, confia

que Ele novamente intervirá na História em favor dos que sinceramente o buscam.

Na qualidade de reverente fiel, nunca chegou ao ponto de confrontar criticamente

os textos basilares de sua religião, mas, com as qualidades da precisão, da

simplicidade e da clareza, tão raras de serem encontradas nos clérigos de todos os

tempos e latitudes, assumiu e explicitou os princípios básicos de toda a leitura

cristã antiga da Escritura. Em primeiro lugar, afirmou que o conjunto heterogêneo

de materiais que a forma é todo igualmente inspirado pelo Espírito Santo, e,

portanto, possui uma unidade de sentido em vistas desta comum origem divina.

Em segundo, percebeu ou postulou que os textos bíblicos são estruturalmente

diversos dos demais textos, escondendo sentidos profundos sob a literalidade dos

significados presentes na superfície de suas linhas. Por fim, professou que a Bíblia

não é apenas um documento histórico ou normativo, mas um instrumento pelo

qual Deus continua a falar algo aos cristãos – tratar-se-ia de um livro vivo e um

livro da vida, conforme o que afirmou o Apóstolo: “(...) tudo o que se escreveu no

passado é para nosso ensinamento que foi escrito, a fim de que, pela perseverança

e pela consolação que nos proporcionam as Escrituras, tenhamos esperança.”432

Assentado nestes princípios norteadores, Orígenes se esforçou para pesquisar

todas as significações dos escritos bíblicos que se pôs a analisar, mesmo partindo

do suposto de que estas são inesgotáveis em todos os seus detalhes, uma vez que

nada foi inspirado por Deus ao acaso, e que não é dado à finita inteligência

humana perscrutar os insondáveis desígnios do Todo-Poderoso. Como

mencionamos anteriormente, é na distinção paulina entre “letra” e “espírito” que

Orígenes foi buscar seu método de exegese433, assim como na interpretação

                                                            432 BÍBLIA. Ver. cit. Epístola aos Romanos 15, 4. p. 1989. 433 Id. Ver. cit. Segunda Epístola aos Coríntios 3, 6. p. 2019: “(...) Foi ele [i.e., Deus] que nos tornou aptos para sermos ministros de uma Aliança nova, não da letra e sim do Espírito, pois a letra mata, mas o Espírito comunica a vida.” Cf. ORÍGENES, Homilias sobre o Êxodo. Citado em: J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 100: “(...) A lei é espiritual e deve ser compreendida em sentido espiritual. Quanto a nós, sabemos que a Escritura não foi redigida para nos contar histórias antigas, mas para nossa instrução salutar; assim, compreendemos que o que acabaram de nos ler é sempre atual, e não somente neste mundo, representado pelo Egito, mas em cada um de nós. Vejamos a regra de interpretação que nos legou o Apóstolo Paulo. Escrevendo aos Coríntios, disse ele em certo ponto [1Cor 10, 1-4]: ‘Sabemos que nossos antepassados estiveram todos sob a nuvem, que todos foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar, que todos comeram o mesmo alimento espiritual e todos tomaram a mesma bebida espiritual; bebiam do rochedo espiritual que os acompanhava: ora, esse rochedo era Cristo.’ Vós vedes a diferença entre a leitura puramente histórica e o ensinamento de Paulo. À travessia do mar, para os judeus, Paulo chama de batismo; no que eles acreditavam ser uma nuvem, Paulo vê o Espírito Santo. Convém aproximar desta passagem a palavra do Senhor no Evangelho [Jo 6, 49-50]: ‘Vossos pais comeram o maná no

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profunda que o redator do Evangelho de João ressaltou estar presente em não

poucas das falas de Jesus que registrou.434 Não saciado em aprofundar a leitura da

Bíblia através do prisma da fé comunitária, da crítica histórico-literária e da

experiência, recorreu sistematicamente também ao sistema da alegoria, onde se

apoiou para mapear um universo de significações simbólicas em todos os

pormenores do texto. Tal leitura deste variado conjunto de obras, entretanto, não é

absolutamente original dentro do ambiente intelectual alexandrino de meados do

século III d.C. e, conforme antes assinalamos, não se restringia de modo algum

àquelas interpretações cristãs da Bíblia Judaica, que tinham como pressuposto que

a única leitura realmente correta desta era a que fosse feita à luz das verdades de

fé da Encarnação, da Paixão redentora e da Ressurreição de Jesus Cristo. Em

última instância, ela se vincula à visão platônica de mundo, que atribuía à

qualquer realidade duas faces – uma perecível, visível e contingente e outra

imutável, invisível e eterna – , e já encontramo-la na obra de alguns dos filósofos

gregos, que a empregavam para interpretar os poemas e mitos da tradição

homérica, e de judeus eruditos como Aristóbulo e Fílon435, também alexandrino,

autor bastante citado por Eusébio de Cesaréia, que efetivamente o trata como um

protocrisão.

No início do século I d.C., Fílon era um líder estimado da comunidade

judaica de Alexandria e suas interpretações da Torah se assemelhavam de modo

surpreendente às que dezoito séculos depois iriam influenciar a redação da

Plataforma de Pittsburgh, o documento fundador do Judaísmo Reformado nos

                                                                                                                                                                   deserto e morreram; mas quem comer o pão que eu dou jamais morrerá’. E acrescenta [Jo 6, 51]: ‘Eu sou o pão descido do céu’. Depois, Paulo fala claramente do rochedo que os acompanhava e diz [1Cor 10, 3b]: ‘O rochedo era Cristo’. O que vamos, pois, fazer, nós que recebemos de Paulo, mestre da Igreja, tais regras de interpretação? Não é justo aplicar aos outros casos a regra que ele nos transmitiu por meio de semelhante exemplo? Ou, segundo a opinião de alguns, desprezando o que nos transmitiu tão grande e excelente apóstolo, vamos voltar às ‘fábulas judaicas’?... Tendo, pois, recebido do bem-aventurado apóstolo Paulo os germes da inteligência espiritual, cultivemo-los na medida em que, graças às vossas orações, o Senhor se dignará a nos iluminar.” 434 Cf. p. ex. BÍBLIA. Ver. cit. João 2, 18-22. p. 1847: “(...) Os judeus interpelaram-no, então, dizendo: ‘Que sinal nos mostras para agires assim?’ Respondeu-lhes Jesus: ‘Destruí esse santuário, e em três dias eu o levantarei’. Disseram-lhe, então, os judeus: ‘Quarenta e seis anos foram precisos para se construir este santuário, e tu o levantarás em três dias?’ Ele, porém, falava do santuários do ser corpo. Assim, quando ele ressuscitou dos mortos seus discípulos lembraram-se de que dissera isso, e creram na Escritura e na palavra dita por Jesus.” Ver também: Id. Ver. cit. p. 1847, n. a. 435 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 196. G. SUFFERT. Op. cit. p. 45. Manlio SIMONETTI. “Alegoria (tipologia)”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. pp. 66-67.

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EUA.436 O fato de ter sido encarado pelos seguidores de Jesus como um

antecipador de algumas de suas doutrinas mais caras tornou suas obras muito

populares entre os Padres da Igreja (que, com efeito, foram os que as conservaram

para a posteridade), e há quem sugira que ele possa ter prenunciado e mesmo

influenciado uma considerável parcela dos argumentos presentes nas epístolas

paulinas; sobre isto, Henri Crouzel escreveu que Fílon era “um judeu que muitas

vezes em sua teologia está próximo de um cristão: é de se notar a afirmação de

que Deus opera na alma a ação virtuosa e que o homem deve dar-lhe graças; a

distinção do criador e da criatura substitui aquela mais grega do incorpóreo e do

corpóreo; enfim, a importância dada à caridade.”437 Tal fato pode ter realmente

concorrido para criar entre os judeus da diáspora um consenso receptivo àquilo

que Gerd Theissen definiu como sendo nada mais do que uma forma de “judaísmo

adaptado”438, mas isto não é o principal tema de nossa presente consideração;

importa-nos mais ressaltar aqui alguma das mais evidentes afinidades de seu

método de exegese com o desenvolvido pela escola teológica alexandrina, de

modo especial por Orígenes.

Exatamente como os rabinos que compuseram o movimento reformista

dos séculos XIX e XX, Fílon estava preso entre dois mundos, não pertencendo

integralmente a nenhum deles: “(...) Como poderia ele ser totalmente helenizado,

se de certa forma permanecida judeu?”439 Nutrido do sincero apego à fé de seus

pais e da melhor formação enciclopédica que a cultura helenista podia oferecer –

tratava-se de homem solidamente versado em gramática, retórica, dialética,

jurisprudência comparada, música, geometria, astronomia, física e medicina –

empenhou-se em lidar com os textos que venerava como sagrados e com o que

considerava as anomalias presentes neles. A solução que propôs para tal

                                                            436 Cf. R. STARK. Op. cit. ps. 66-67 e 74. Alan UNTERMAN. “Reformista, judaísmo”. In: Dicionário judaico de lendas e tradições. (Trad. Paulo Geiger). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p. 219. 437 Henri CROUZEL. “Fílon de Alexandria”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. p. 577. 438 Gerd THEISSEN. The Social Setting of Pauline Christianity : Essays on Corinth. Philadelphia: Fortress Pressm 1982. p. 124. Apud: R. STARK. Op. cit. p. 73. Cf. também: K. ARMSTRONG. Op. cit. ps. 109-110, 113-114, 124-125. A mesma autora registra que as primeiras doutrinas cristãs foram consideradas validamente judaicas por ninguém menos do que o insigne Gamaliel, neto de Hilel, um dos mais importantes sábios judeus do período formativo do judaísmo rabínico. Cf. Id. Op. cit. p. 105. 439 R. STARK. Op. cit. p. 74.

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problemática existencial teve uma influência que ele talvez jamais tenha podido

intuir; muito possivelmente este pensador não podia imaginar quais mecanismos

de raciocínio estava acionando quando sujeitou à autoridade divina à razão e à

interpretação alegórica, considerando a Lei mosaica “exclusivamente por meio do

espelho da filosofia grega”440, e, desta forma tentando propor explicações que

considerava mais dignas e razoáveis para todo o sistema de normas e crenças

sobre o qual se assentava a religião judaica. Zelosamente, Fílon buscou extrair

dali tudo o que fosse demasiado sensível ou arbitrário, ou reformulá-lo como

símbolos de realidades ocultas. Seu objetivo inicial parece ter sido modesto e

mesmo limitado – mostrar os caracteres arcaicos e os fundamentos

transcendentes, e, portanto, eternamente válidos, de certas regras jurídicas –, mas

o que realizou foi muito mais notável. Afirmou que Iaweh proibiu aos judeus o

consumo de carne de aves de rapina e de mamíferos carnívoros para exaltar a

virtude da paz; que o Templo de Jerusalém era um símbolo do mundo, e suas

diversas partes análogas às regiões do cosmo, da mesma forma que também o

eram as vestes do sumo-sacerdote que uma vez por ano penetrava no recinto do

Santos dos Santos para se pôr diante de Deus; que os animais são na Escritura e

nos sonhos a forma visível das paixões invisíveis; que os casais Adão e Eva e

Abraão e Sara correspondem não a pessoas de carne e osso existentes em qualquer

tempo ou lugar, mas ao constitutivo par inteligência e sensação; que Abraão, Jacó

e Isaac são três tipos de adquirentes de Sabedoria, respectivamente, pelo estudo,

pelo exercício ascético e pelo amadurecimento espontâneo das capacidades

naturais.441

Na tentativa de Fílon de conciliar sua crença em um Deus pessoal com a

demonstração da harmonia cósmica, o evidente significado histórico, dogmático e

normativo de boa parte da Torah perdeu substância em favor de sentimentos

morais e espirituais que lhe estariam implícitos, ocultos sob os caracteres. É certo

que pessoalmente ele tinha uma acentuada propensão mística, mas seu

compromisso com a filosofia platônica o levou a afastar drasticamente o divino do

mundo, postulando que o sobrenatural só podia de fato ser apreendido em meio a

                                                            440 W. H. C. FREND. The Rise of Christianity. Philadelphia: Fortress Press, 1984. p. 35. Apud: R. STARK. Op. cit. p. 74. 441 Cf. R. STARK. Op. cit. p. cit. H. CROUZEL. Op. cit. pp. 576-577. G. SUFFERT. Op. cit. p. cit.

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camadas e camadas de abstração e esforço intelectual sucessivo.442 Dois circuitos

de idéias – aparentemente conflitantes, mas de fato encadeados – são ativados na

obra de Fílon e de seus pares, e é importante que os mencionemos com clareza. 443

Em um determinado plano, a intervenção direta de Deus na História é transladada

do plano sensível para o inteligível: o raivoso e patologicamente ciumento Iahweh

do Antigo Testamento ganha os ares de um remoto Ser Absoluto; o Criador que

no terceiro capítulo do livro do Gênesis passeava no primevo jardim no frescor da

tarde, conversando com as suas criaturas e sendo por elas enganado, acaba por ser

considerado onipotente, dotado de conhecimento infinito e posto fora do tempo,

“en un presente inmóvil y abrasador de siglos, ajeno de vicisitudes, horro de

sucesión, sin principio ni fin.”444 Em outro plano, não são apenas os escritos

sagrados que ganham significados transcendentes, mas também os fatos que eles

narram – e potencialmente todos os fatos que dizem respeito àqueles que

procuram Deus. Textos e contextos são inflados de uma dignidade religiosa difícil

de conceber agora no final da primeira década do século XXI: determinados até

nas mínimas coisas por Deus, que nada dispõe de forma leviana, os

acontecimentos passam a ser encarados como saturados de Providência,

concretizações astuciosamente veladas do supremo Poder e de sua toda-poderosa

Vontade. Seguindo por caminhos nem tão diversos dos de Fílon, os Padres

Alexandrinos iriam chegar a conclusões semelhantes às suas, ainda que

significativamente matizadas por sua crença na Encarnação; não surpreende,

portanto, que tenham utilizado tão amplamente a obra deste homem que partiu de

um pensamento filosófico para chegar a um encontro místico com a divindade e,

neste, a uma sacralização das próprias realidades criadas e uma decisiva

valorização da História enquanto palco da atuação da Providência.

Inspirado nos procedimentos exegéticos de tal pensador judeu-helenístico,

Orígenes buscou sistematizar suas intuições de fiel cristão e elaborar uma teoria

dos diversos sentidos da Escritura que tomasse como analogia os três elementos

ou distintos níveis que cria comporem o ser humano: corpo, mente e espírito. Em

princípio, portanto, distinguiu três graus de crescente profundidade a serem                                                             442 Cf. D. WINSTON. “Whas Philo a Mystic?” In: J. DAN e F. TALMAGE (orgs.). Studies in Jewish Mysticism. Cambridge: AJS, 1982. pp. 15-19. 443 Cf. R. STARK. Op. cit. p. 75. 444 Jorge Luis BORGES. Inquisiciones. Madri: Alianza, 2002 [1998]. p. 163.

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assinalados na leitura dos textos bíblicos - um corporal / literal, um psíquico /

moral e um espiritual / místico –, ainda que não pudesse se ater estritamente a

estes na medida em que reconhecia que os escritos que considerava sagrados

estariam sempre abertos a atualizações e novas leituras divinamente inspiradas, e

em que era perfeitamente cônscio de que na experiência cristã é a adesão

espiritual ao movimento de Jesus de Nazaré que comanda a vida moral do

crente.445

Orígenes recusou em numerosas ocasiões a tentação de volatizar o texto

que se punha a analisar e construir sobre a interpretação deste teias e arabescos de

divagações, ressaltando sempre que é o sentido literal do escrito a base de toda a

sua interpretação, ainda que este não esgote o seu alcance, da mesma maneira que,

para o fiel, o sofrimento de Jesus de Nazaré em sua tortura e assassínio não foram

um fim em si mesmos, mas parte de um projeto de redenção enquanto meio para

que a humanidade pecadora fosse reapresentada a Deus.446 Tal expediente

interpretativo, muito divulgado, logo deu origem às mais diversas ficções e

excêntricas conjecturas, que chegavam ao ponto de mencionar um passagem

bíblica e retorcê-la até que o significado oculto que lhe fosse atribuído

contradissesse o que ela com todas as letras comunicava; Orígenes intuiu este mal

do qual logrou esquivar-se, e estabeleceu a normativa de que a literalidade da

Escritura deve ser objetivamente levada em conta ao se estabelecer algo a partir de

sua mensagem, que ela deve ser explicada necessariamente por si própria , e que

os sentidos que dela podem ser depreendidos precisam lhe ser coerentes para que

possam ser válidos. Como registra Liébaert, (...) sem se identificar com a exegese

patrística, a interpretação origenista da Escritura representa assim mesmo a sua

tendência dominante, e o que se diz sobre ela vale amplamente para o todo.”447

                                                            445 Isto significa, em outros termos, que em certos ensaios exegéticos Orígenes passou com tranqüilidade do sentido literal de um texto ao conteúdo místico que ali acreditava repousar, e que se referia a coisas relativas aos planos divinos de salvar o gênero humano, a Cristo, à Igreja... E daí à aplicação moral-práxica destes conteúdos. Sua teoria, portanto, englobava também variações aplicáveis a alguns casos especiais, às vezes especialmente problemáticos, e justamente por esta sua extraordinária flexibilidade foi logrou tamanha popularidade e sobrevivência nos meios cultos cristãos. Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 99. 446 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. Epístola aos Hebreus 9, 15b.26b. p. 2094: “(...) Sua morte aconteceu para o resgate das transgressões cometidas no regime da primeira aliança; e, por isso, aqueles que são chamados recebem a herança que foi prometida. (...) uma vez por todas, agora, no fim dos tempos, que ele se manifestou para abolir o pecado por meio do seu próprio sacrifício.” 447 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 104.

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Não tardaria a se opor ao sistemático alegorismo dos auto-proclamados

herdeiros do insigne teólogo alexandrino toda uma estirpe de exegetas, formados

sob os auspícios da Sé de Antioquia, que se caracterizariam pelo reverente

respeito à literalidade do texto bíblico e pela veemente recusa de proceder à

arbitrária exumação de sentidos supostamente escondidos pela Inefável Razão sob

ou entre as linhas dos sacros manuscritos que gerações de fiéis tinham atestado

como divinamente inspirados. Estes homens, verdadeiros apóstolos do senso

comum dos crentes, desconfiados de inovações, proverbialmente sóbrios e

dotados de um olhar tão crítico que às vezes chega a transmitir-nos um aroma de

ceticismo, segundo a fórmula de Teodoro de Mopsuéstia, abstiveram-se

resolutamente de “ver Cristo por toda parte nas Escrituras”.448 Foram, contudo,

um pequeno conjunto de comentadores, limitados a um não muito vasto ambiente

eclesial (a região de Antioquia dos séculos IV e V), que não conseguiram fazer

frente à transformação do texto bíblico em uma “floresta de símbolos”.449

Devemos notar que – fato capital para a nossa reflexão – a interpretação alegórica

do texto bíblico era então absolutamente indissociável de sua extensão aos

eventos por ele referidos, e logo a crença na Divina Providência foi ativada para

transformar toda a realidade em um imenso texto que também é uma comunicação

de Deus.

Extraordinário é o alcance de tal concepção na história intelectual das

regiões culturais cuja matriz civilizadora foi o cristianismo. Já fora do ambiente

patrístico, mas ainda na Alta Idade Média, o gaulês Amalário de Metz, falecido

por volta de 837, inspirando-se talvez em práticas orientais que lhe eram

contemporâneas e das quais hoje não temos notícias, aplicou um símile da leitura

alegórica das Escrituras à vida ritual da Igreja. “(...) Amalário se manteve na

tradição dos Padres e da Liturgia no que se refere ao aspecto sacrificial da

eucaristia (...) Mas foi justamente partindo da afirmação da presença do sacrifício

da cruz na celebração que ele procurou mostrar em todas as passagens da

                                                            448 Citado em: Id. Op. cit. p. 104. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 196. 449 A expressão foi retirada de: J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 101.

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celebração um aspecto da paixão do Senhor e até de toda a sua vida.”450 Seus

desdobramentos seriam ainda mais notáveis.

A idéia a um só tempo singela e astuta de que a divindade teria escrito um

livro prenhe de tantos sentidos que era ele mesmo vivo acabou ainda por conduzir

os cristãos à piedosa asserção de que ele escrevera dois, e que o outro era a

Criação ou a História. Desejando reunir argumentos justificativos da verdade

simultânea da Bíblia e da teoria copernicana, Galileu Galilei apresentou aos seus

detratores uma explicação engenhosa das aparentes discrepâncias entre as palavras

do corpus escriturístico e os fatos observados na natureza, onde afirmava que só

existia uma Verdade, mas que esta é comunicada sob duas formas,

complementares; que são ambas linguagens de Deus, ainda que em uma Ele tenha

sido mais explícito do que na outra: “(...) tanto as Sagradas Escrituras como a

Natureza procedem do Verbo Divino, as primeiras como a fala do Espírito Santo e

a segunda como a executora mais vigilante das ordens de Deus.”451Em seu

Advancement of Learning, composto no início do século XVII, Francis Bacon

afirmou que Deus ofereceu aos homens dois livros – o volume das Sagradas

Escrituras, onde está minuciosamente consignada a Sua Vontade, e o volume das

coisas criadas, que atesta o Seu Poder e seria como que uma chave-de-leitura do

outro – para que não pudéssemos nos escusar de crer n’Ele e nem incorrêssemos

em nenhum tipo de erro. Por volta de 1624, Sir Thomas Browne escreveu que dois

eram os livros em que costumava a aprender teologia – a Bíblia e a natureza,

manuscrito universal e público, posto sempre à contemplação de todos os viventes

– e que todas as coisas eram artificiais, porque todas as coisas subsistentes eram

obra de Deus. No ensaio A educação do gênero humano, de 1780, G. Ephraim

Lessing apresentou a história da humanidade como estruturada por um desígnio

pedagógico da parte de Deus, que, passo a passo, orquestra os diversos e

aparentemente díspares acontecimentos e excita a razão dos povos para que eles

se ponham mais e mais no caminho do cumprimento de Sua Vontade, ou seja,

                                                            450 Salvador MARSILI et al. A Eucaristia : Teologia e História da Celebração. (Trad. Benôni Lemos; rev. téc. José J. Sobral). São Paulo: Paulus, 1986. (Col. “Anámnesis”, n. 3). p. 101. O grifo é nosso. Comparemos isto com o que já havia afirmado, por exemplo, Clemente de Alexandria (Paidagogós 2, 19s): “(...) O sangue do Senhor tem um duplo sentido: um, carnal, resgata-nos da perdição; outro, espiritual, unge-nos. Beber o sangue de Cristo significa participar da imortalidade do Senhor.” Citado em: B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 202. 451 Citado em: D. J. BOORSTIN. Op. cit. p. 298.

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diante de Sua Presença. Em 1833 o escocês Thomas Carlyle superou todas as

conjecturas anteriores e declarou que a história universal – à qual os homens

devem decifrar e onde todos eles estão inscritos – é uma Escritura Sagrada da qual

somos co-autores, ainda que, como afirmaria tal autor um ano mais tarde, o

sejamos de diferentes formas (as pessoas de gênios seriam verdadeiros

evangelhos, enquanto os meramente talentosos e os demais são comentários,

glosas, anedotas, traduções e sermões). Contra a visão cristã providencialista, de

um Deus que orienta a História e manipula os homens, fazendo com que,

repousando na ignorância pessoal e coletiva, eles cumpram os Seus desígnios, um

“Deus que tece como aranha”452, é que Nieztsche se insurgiu, proclamando-a,

mais a modo de profeta do que de filósofo, como “uma das mais corruptas

concepções de Deus a que sobre a terra se tem apresentado”.453

No começo do século XX, Léon Bloy retomou a convicção registrada em

um catecismo distribuído às crianças de França, “depois do Antigo e do Novo

Testamento, o mais belo dos livros do mundo”454, de que nada no mundo acontece

sem a expressa ordem ou, pelo menos, a tácita permissão do Criador. Este autor

afirmou explicitamente que

“(...) Quando se diz que é uma lástima que tal acontecimento tenha sucedido em lugar de tal outro, a gente considera sempre a si mesmo, não a Deus... É preciso dizer, pelo contrário, que tudo o que acontece é adorável, tanto na história dos povos como na história dos indivíduos, e que nada deve ser suposto melhor ou mais feliz do que sucede hoje ou sucedeu a cem anos – mesmo as mais terríveis catástrofes.”455

Para o responsável por esta singular observação, a história humana é um

imenso texto litúrgico, prenhe de significados, ainda que a importância de cada

evento e personagem seja indeterminável e esteja profundamente oculta naquilo

                                                            452 Friedrich NIEZTSCHE. O Anticristo. (Trad. Pietro Nassetti). São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 51. 453 Id. Op. cit. pp. 51-52. 454 Octávio de FARIA. Léon Bloy. Rio de Janeiro: Record, 1968. (Col. “Profetas do Mundo Moderno : O Pensamento Pelos Textos”, n. I). p. 144. 455 Id. Op. cit. p. cit.

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que é a inconcebível mente do Senhor.456 Dá-nos verdadeira sensação de vertigem

constatar que tais muito influentes concepções sobre o divino e o humano,

determinantes durante muitos séculos no âmbito do debate metahistórico e

historiográfico já estão apresentadas – ainda que implicitamente ou em gérmen –

no pensamento origenista e, como tais, orientam o plano e a redação da História

Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia.

                                                            456 Cf. J. L. Op. cit. 2007. pp. 135-136. Jorge Luis BORGES. Prólogos : Com um prólogo dos prólogos. (Trad. Ivan Junqueira). Rio de Janeiro: Rocco, 1985. p. 39. G. Ephraim LESSING. “La educación del genero humano”. In: Escritos filosóficos e teológicos. (Org., trad. esp., introd. e notas Augustín Andreu Rodrigo). Madri: Nacional, 1982.

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VI.

“Os sacerdotes procederam para com ele como depois fizeram comigo, embora eu nada lhes tivesse dito sobre minha família. Conduziram-me a uma das dependências do templo, onde me mostraram colossais estátuas de madeira que lhes haviam legado os grandes sacerdotes, pois cada um destes não deixa, em vida, de ali colocar sua estátua. Enumerando-as todas na minha presença, provaram-me, pela do último morto, que cada um daqueles sacerdotes era filho de seu predecessor, mas sem admitir, todavia, que eles tivessem sua origem em algum deus, como Hecateu quisera fazê-los acreditar falando-lhes de sua genealogia. A essa afirmativa do historiador, eles opuseram a genealogia daqueles pontífices, limitando-se a dizer-lhe que cada um deles representava um piromis (termo egípcio correspondente a bom e virtuoso) gerado por outro piromis, continuando assim até o último daquela geração de sacerdotes. Sua origem, eles não deviam a nenhum deus ou herói. Os sacerdotes provaram-me, assim, que todos aqueles representados pelas estátuas, longe de serem deuses, haviam sido piromis, e acrescentaram ser verdade que, em tempos anteriores à existência desses homens, os deuses tinham reinado no Egito e privado com os mortais. (...) Os Egípcios consideram esses fatos incontestáveis, pois têm o hábito de anotar rigorosamente o transcurso dos anos.

HERÓDOTO, História, II : 63-65

“¿Quién se resigna a buscar pruebas de algo no creído por él o cuya prédica no le importa?”

JORGE LUIS BORGES, “Tres versiones de Judas”

Além da singular mistura de pregação e demonstração especulativa, de

pathos e logos, que marca a narrativa da História Eclesiástica, deve ser levada em

conta a já destacada erudição de Eusébio, e como esta conforma a sua escrita.

Uma vez mais, usemos um exemplo como referência empírica.

No décimo terceiro capítulo do primeiro Livro desta sua obra, o bispo de

Cesaréia registrou a história de como o rei Abgaro, “que reinava excelentemente

sobre os povos do outro lado do Eufrates e tinha seu corpo destroçado por uma

doença terrível e incurável pelo poder humano”457, ouviu falar de um homem

chamado Jesus, de quem se dizia que fazia milagres, e lhe enviou uma carta por

um mensageiro, pedindo que este fosse até a sua presença e o livrasse de sua

enfermidade. O curandeiro não atendeu seu pedido de imediato, mas o respondeu,

fazendo-lhe “a honra de uma carta de próprio punho e letra”458 na qual prometia

enviar mais tarde um de seus seguidores até a monárquica presença, para salvar os

                                                            457 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 8, 2. p. 40. 458 Id. Op. cit. Livro I : 8, 3. p. cit.

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corpos e almas do rei e de seus súditos. Assim sendo, não muito depois da

crucificação de seu mestre, “Tomás, um dos doze apóstolos, movido por Deus,

enviou à região de Edessa Tadeu – que também era um dos setenta discípulos de

Cristo – como arauto e evangelista da doutrina de Cristo, e por meio dele se

cumpriu o que se havia prometido.”459

Eusébio relatou que, estando Tadeu em Edessa, ele se pôs a curar todo tipo

de enfermidades, e o rei Abgaro, lembrando-se da promessa feita por Jesus em sua

carta, o fez vir aos pés do seu trono. Nesta ocasião, diante de sua corte reunida,

“uma grande visão apareceu a Abgaro no rosto do apóstolo Tadeu”460 e o monarca

se prosternou diante do andarilho – que o curou, aos grandes de seu reino e à

outros de seus concidadãos. Após isso, pediu que Abgaro reunisse em assembléia

todos os moradores de seus domínios, e a eles pregou sobre a vida e as obras, o

caráter divino e a missão, a humilhação, a morte, a ressurreição e a ascensão aos

céus de Jesus; o rei fez como foi pedido e ordenou também “que lhe dessem ouro

e prata sem poupar”461 – agrado do qual Tadeu declinou.

Tal narrativa dos primeiros tempos, heróicos, do movimento dos

seguidores de Jesus é demasiado problemática, e muito possivelmente fictícia.

Para mencionarmos um único ponto em que se evidencia a sua falta de

verossimilhança, Eusébio data a troca de afabilidades entre Abgaro e Jesus nos

anos 28 ou 29 de nossa Era, período em que o Nazareno, mais um pregador

itinerante entre tantos pregadores itinerantes da Palestina do século I,

possivelmente não era conhecido nem mesmo em Jerusalém.462 Esta consideração,

entretanto, é de pouca importância para a nossa presente reflexão. Importa-nos

muito mais considerar aqui a forma como o autor da História Eclesiástica narra

                                                            459 Ibid. Op. cit. Livro I : 8, 4. p. cit. 460 Ibid. Op. cit. Livro I : 8, 14. p. 42. 461 Ibid. Op. cit. Livro I : 8, 21. p. 43. 462 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 222-223. J. P. MEIER. Op. cit. Richard A. HORSLEY e John S. HANSON. Bandidos, profetas e messias : Movimentos populares no tempo de Jesus. (Trad. Edwino Aloysius Royer). (2ª ed.). São Paulo: Paulus, 2007. (Col. “Bíblia e sociologia”). Ver também: M. FIORILLO. Op. cit. pp. 214-228. Jacinto GONZÁLEZ NUNEZ (Tr. e anot.). La leyenda del Rey Abgar y Jesus : Origenes del cristianismo em Edessa – Seguido de “La Ensenanza del apostol Addai”. Madri: Ciudad Nueva / Fundación San Justino, 1995. (Col. “Apocrifos cristianos”, n. 1). Celso Taveira evidenciou as ligações entre a história da cura e conversão de Abgar por Tadeu com a da cura e conversão de Constantino por Silvestre. Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. 2002. pp. 208-212, e notas correspondentes, n. 64-66.

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este evento: no centro desta historieta breve, que pode ser colocada junto com

outros atos apócrifos dos apóstolos – literatura recreativa popular nos diversos

meios cristãos dos séculos I e II, que tem como principal pretensão completar a

narrativa de Lucas “pela narração dos destinos pessoais de alguns apóstolos”463 –

Eusébio interpola a transcrição das cartas de Abgar e Jesus. Chegamos a um ponto

nevrálgico. Não se trata apenas de citar uma passagem bíblica e interpretá-la como

apoio a um determinado argumento, expediente usado deste o começo do

movimento de Jesus e que, em última instância, de acordo com os textos

intracanônicos, remete à sua própria pregação.464 Não se trata da menção de um

autor ou documento para refutá-lo unicamente, recurso presente nas obras de

outros escritores cristãos antes da História Eclesiástica, e que quase

invariavelmente, pela ferocidade e parcialidade demasiadas de sua argumentação,

incapaz de considerar a racionalidade própria e as motivações dos adversários,

mas apenas os efeitos nocivos e desagregadores de suas idéias no interior da vida

comunitária e do sistema doutrinal cristão hegemônico, produziu sobre os trechos

citados “mais faíscas que luz.”465 Os expedientes de convencimento usados por

Eusébio não são aí apenas evidentemente autorais, relacionados tanto à coerência

de seu raciocínio quanto à capacidade intra-textual de seduzir do leitor, mas

remetem este a uma autoridade outra, não-bíblica:

“(...) Temos de tudo isto testemunho escrito, tirado dos arquivos de Edessa, que naquele tempo era a corte. Nos documentos públicos que neles se guardam e que contém os feitos antigos e dos tempos de Abgaro, encontra-se também o referido testemunho, conservado deste então e até hoje. (...) nada melhor do que ouvir as próprias cartas que tiramos dos arquivos e que, traduzidas do siríaco, dizem textualmente como segue”.466

Dos primeiros aos últimos Livros da História Eclesiástica tal recurso é

utilizado: Eusébio cita, entre outros, trechos não pequenos de Flávio Josefo, Sexto

                                                            463 B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 141. 464 Cf. p. ex. BÍBLIA. Ver. cit. Lucas 4, 14-27. pp. 1794-1795. 465 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 36. Eusébio também o faz em muitas ocasiões, veja-se, por exemplo: EUSÉIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IX : 5. p. 302. Relevante é pensar que em certas oportunidades ele não fez tal coisa, ou ao menos tentou fazê-la em um nível argumentativo bastante diverso, por exemplo, de Inácio, de Tertuliano ou de Irineu. 466 Id. Op. cit. Livro I : 8, 5. p. 40. O grifo é nosso.

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Júlio Africano, Fílon e Clemente de Alexandria, Tertuliano de Cartago, Irineu de

Lyon, Fileas de Tmuis, Sabino, e muitos mais, além de transcrever editos e cartas

imperiais romanos referentes aos cristãos. Não é crível que tais ocorrências sejam

apenas a marca de um repetido erro estilístico: de fato, é inconcebível que

semelhante cacofonia seja acidental na precisa e cônscia redação eusebiana. Ao

contrário, suas referências explícitas e citações de documentos não apenas apóiam

a sua narrativa, conforme já havíamos mencionado, mas em pontos não

desimportantes a estruturam. Não são apenas interrupções ocasionais, incômodos

necessários para legitimar uma dissertação eloqüente de façanhas dignas de serem

lembradas e corroborar os significativos discursos registrados – ou melhor,

recriados de forma verossímil, como deveriam ter sido pronunciados – pelos

redatores tanto da grande história política greco-romana (Tucídides, Políbio,

Tácito, Suetônio, Plutarco) quanto dos primeiros tipos de escritos cristãos (hinos e

fórmulas litúrgicas, símbolos e profissões de fé, cartas pastorais, catecismos,

evangelhos, atos e apocalipses). Na História Eclesiástica tais excertos são

elementos vitais que fazem de Eusébio de Cesaréia, se não o primeiro, o patrono

de uma venerável linhagem de historiadores dedicados à menção dos mais

diversos documentos escritos e à discussão minuciosa de problemas específicos a

respeito de sua veracidade, datação e sentido.467

As origens deste tipo de preocupação e uso “são muito antigas e, por isso,

obscuras”.468 Sua busca nos remete a um período muito anterior à Cristandade e

mesmo à História de Heródoto; talvez possamos situá-la nos mais áureos tempos

do Império Persa, cujos soberanos faziam conhecer sua vontade em seus vastos

domínios subdivididos em numerosas satrapias por meio de editos gravados em

pedra e metal – alguns dos quais foram reproduzidas nas crônicas de seus

súditos.469 De qualquer forma, foi no mundo helenístico, durante os séculos III e II

a.C., que essa forma de história fartamente documentada, insuflada pela pretensão                                                             467 Anthony GRAFTON. As origens trágicas da erudição : Pequeno tratado sobre a nota de rodapé. (Trad. Enid Abreu Dobránszky). Campinas: Papirus, 1998. ps. 129-130 e 135. E isto não obstante o próprio Eusébio de Cesaréia ter sido um pouco crédulo demais em relação as fontes às quais teve acesso, como mostra o próprio caso mencionado da suposta troca de correspondências entre Abgaro (também Abgar) e Jesus. Cf. M. FIORILLO. Op. cit. pp. 220-221 e nota correspondente, n. 90, p. 273. 468 A. GRAFTON. Op. cit. p. 135. 469 Como, por exemplo, os judeus. Cf. p. ex. BÍBLIA. Ver cit. Esdras 1, 1b-4. p. 628 e nota correspondente, n. f.

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de se referir a episódios – além de dignos de serem lembrados – verdadeiros,

tomou forma.

Podemos, unicamente para fins analíticos, isolarmos e mencionarmos

como duas as suas matrizes principais. A primeira destas remete-nos aos

sacerdotes, administradores, juristas e cientistas da Síria, da Mesopotâmia, do

Egito e de Israel.470 A existência destes homens de letras (e números) tinha como

pressuposto sistemas culturais refratários à idéia de progresso, que concebiam as

mudanças apenas no interior de um sistema temporal cíclico, e que se assentavam

na – e se legitimavam pela – gestão e transmissão de certos dados escritos. Os

sinais laboriosamente gravados em tabuletas de argila, na pedra e no bronze, na

madeira, no couro, no vellum e no papiro organizavam de algum modo a entropia

das vivências cotidianas e dos eventos extraordinários (mas previstos) ao fazer

uma distinção entre o que deveria ser registrado e rememorado (ou não), criando

assim uma “imagem lingüística e inteligível do cosmos.”471

Tal ordem de coisas sustentava e era decorrente de modelos sócio-políticos

que, baseados em um lastro cultural e mental largamente comum, entretanto, eram

bastante distintos entre si: “Estado omnipotente e cidadão em potência no Egipto

clássico, iniciativa privada e individualismo na Mesopotâmia semítica, monarquia

                                                            470 Cabe lembrar que nas antigas culturas semitas e no Egito faraônico, em não poucos momentos – ou melhor, na maior parte do tempo – as funções sacerdotais, administrativas, jurídicas e científicas, tais como as compreendemos na Contemporaneidade, se sobrepunham e se articulavam em uma prática e em um discurso integrados. Pensar em uma divisão entre ciência e religião, tão típica do Ocidente hodierno – e que talvez não seja empiricamente verificável nem aí – e projetá-la no mundo pré-moderno é um anacronismo crasso. Cf. José Nunes CARREIRA. Introdução à História e Cultura Pré-Clássica : Guia de Estudo. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1992. (Col. “Biblioteca Universitária”). pp. 31-33. Paul GARELLI. O Oriente Próximo Asiático : Das origens às invasões dos povos do mar. (Trad. Emanuel O. Araújo). São Paulo: Pioneira / USP, 1982. pp. 80-81. 471 José Nunes CARREIRA. Filosofia antes dos gregos. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1994. p. 12. Além do mundo público – doméstico, agrícola, templário ou estatal – é interessante ter em mente que esta imagem do mundo determinava, por exemplo, a devoção religiosa dos homens e mulheres daquilo que se convencionou chamar na historiografia de região do Crescente Fértil: “(...) Em quase todos os setores (...), em quase todas as épocas verifica-se a existência de antropônimos inteligíveis, que consistem em nomes determinados do tipo ‘servidores do deus N.’ ou em curtas frases verbais ou nominativas que atribuem a um determinado deus um certo número de acções ou de propriedades que acabam todas por significar que o deus em questão protege (cura, salva, faz viver, gera, etc.) o portador do nome. Esta constância da antropologia semítica não é absolutamente específica, sendo no entanto reveladora de uma certa constância de devoção.” Pierre LÉVÊQUE. As primeiras civilizações. Volume III : Os indo-europeus e os semitas. (Trad. Antonio J. P. Ribeiro). Lisboa: Edições 70, 1990. (Col. “Lugar na História”, n. 43). p. 155.

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representativa e ‘democrática’ em Israel.”472 Muitos destes sacerdotes,

administradores, juristas e cientistas – assim como os herdeiros imediatos dos

saberes altamente especializados dos quais eram detentores – viveram para serem

repentinamente submetidos a potências estranhas à seu horizonte sócio-político e

intelectual, ou marginais a ele: primeiro, vieram os gregos com Alexandre da

Macedônia, e depois os romanos, de certa forma seus sucessores. Estas novas

forças conquistadoras atuaram de modo decisivamente diverso de seus

antecessores, tanto sumério-babilônicos (permitiram que os povos conquistados se

mantivessem em suas pátrias), quanto persas (permitiram que os povos

conquistados assimilassem algo da cultura de seus novos senhores), e o

estabelecimento do grego como uma língua franca permitiu que os representantes

mais cônscios de culturas que antes só se haviam encontrado em campo de batalha

ou esporadicamente e em seus próprios termos idiossincráticos lidassem

diretamente uns com os outros, dentro de um padrão idiomático – e, portanto,

epistemológico – comum.

Oriundos de tradições diversas, ainda que interligados por seu passado

remoto e por sua submissão presente a outros, estes quadros intelectuais derivados

daquilo que a teoria marxista enquadrou na rubrica comum de Modo de Produção

Asiático não tardaram a se encararem como rivais uns dos outros, assim como de

seus dominadores. Como seus correspondentes acadêmicos da atualidade, não

poucos dentre estes experimentaram a trágica necessidade de se afirmarem

superiores aos demais que se encontravam em igual situação e de “vingar no

arquivo suas derrotas no campo de batalha.”473 Quando no século III a.C. o

egípcio Manetho e o caldeu Berossus verteram para o grego relatos míticos e

crônicas de suas respectivas culturas, eles já estavam empenhados em demonstrar

a antiguidade e a respeitabilidade destas, em salvaguardar o que podiam lá onde as

armas greco-romanas não o poderiam alcançar: no passado. Em outros termos, a

sedução do outro conquistador e a ameaça da assimilação – mais do que a de

desterro ou extermínio – quando somada a uma drástica aproximação de modos

tão distintos de ser no mundo fez com que se tornasse urgente para outros letrados

como Manetho e Berossus “mostrar que vieram de um antigo Estado, que

                                                            472 J. N. CARREIRA. Op. cit. 1994. p. 273. 473 A. GRAFTON. Op. cit. p. cit.

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possuíam uma tradição política e social há muito estabelecida, registrar sua

história em uma longa série de documentos, preferivelmente inscritos em pedra,

assim como sua religião venerável.”474

Os judeus seguiram este mesmo caminho por volta, no máximo, do século

II a.C. Merecem ser tratados à parte já que “(...) O encontro do helenismo com o

judaísmo (...) foi o maior acontecimento isolado da história helênica.”475 As

medidas de helenização levadas a cabo pelos selêucidas na parte judaica da

Celessíria não apenas foram politicamente pouco prudentes como chegaram às

raias da catástrofe. Tentativas de coagir os judeus e mudar à força alguns de seus

mais arraigados preceitos religiosos provocaram não apenas proclamações

exaltadas – “e sobre a nave do Templo estará a abominação da desolação”476 –,

mas também martírios e uma rebelião liderada pela família Hasmoneana, que

logrou ser vitoriosa. Os Hasmoneanos – também conhecidos como Asmoneus ou

Macabeus – construíram um principado guerreiro independente a partir do antigo

Estado-Templo de Jerusalém, atacaram e destruíram algumas colônias gregas ou

filo-helênicas instaladas a leste do rio Jordão, conquistaram e converteram pela

força as regiões vizinhas da Iduméia e da Galiléia à sua fé, e talvez tenham criado

a primeira forma combativa de nacionalismo judaico.477 Esta reviravolta política

foi ao encontro das já mencionadas angústias de alguns letrados: era necessário

afirmar que era legítima a existência de um reino judaico independente. Tal

necessidade de algum modo se expressou nas formas articuladas e mutuamente

dependentes de um revival religioso, de uma hipertrofia da importância de

Jerusalém, do seu Templo e do sistema cúltico para o qual este havia sido erguido,

e da re-elaboração de dados históricos na forma de novas crônicas, mais

adequadas aos novos tempos. Quando a expansão da autoridade romana –

primeiro, pelos seus colaboradores locais e, depois, pela marcha de suas próprias

legiões – pôs fim à autonomia conquistada na guerra macabéia, o anseio de auto-

afirmação e a escolha da discussão erudita como campo de batalha (possível) foi

inflacionado em proporções correspondentes a esta nova vicissitude. As gerações

                                                            474 Id. Op. cit. p. cit. Cf. A. LESKY. Op. cit. p. 808. 475 A. TOYNBEE. Op. cit. p. 173 476 BÍBLIA. Ver. cit. Daniel 9, 27b. p. 1573 e nota correspondente, n. l. 477 A. TOYNBEE. Op. cit. p. 172.

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de cristãos que ficaram com o encargo pouco gratificante de se verem com a não

ocorrência da parusia que criam iminente e de enfrentarem as críticas disparadas

contra seu partido por judeus e gentios seriam decisivamente impactados por tais

circunstâncias.

O primeiro espécime acabado e genuinamente judeu deste gênero de

escrito do qual temos conhecimento é a chamada Carta de Aristeas a Filocrato.

Esta epístola explica as origens da tradução grega da Bíblia hebraica, a

Septuaginta, e nesta narrativa o autor insere uma grande quantidade do que

parecem ser documentos oficiais: memorandos do século III a.C. nos quais

Ptolomeu Fidelfo (ou Sóter), rei do Egito, e Demétrio de Falero, um suposto

bibliotecário de Alexandria, discutem a necessidade de acrescer tal versão dos

textos sagrados dos judeus ao maior acervo de conhecimento escrito da

Antigüidade, assim como quais os procedimentos usariam para obtê-la. Ainda não

se chegou a um consenso acerca de sua data de redação, mas não é improvável

que seja apenas pouco anterior, ou mesmo contemporânea, aos primórdios do

movimento de Jesus – de qualquer forma, ela evidentemente se refere a um objeto

cuja existência lhe é significativamente anterior. A Carta de Aristeas, com todos

os preciosos documentos que ela menciona, “tem a desvantagem de ser uma

fraude, mas também as virtudes da brevidade e da clareza.”478 O modelo que

forneceu teve uma imensa ressonância: de fato seu autor acabou por determinar os

contornos principais pelos quais o gênero viria a se desenvolver. Seus objetivos

apologéticos e o tipo de debate no qual se insere determinam sua forma: “(...) não

a prosa despojada, clássica dos historiadores políticos, mas uma mistura de

argumentos técnicos e documentos de apoio, os últimos citados literalmente no

próprio texto.”479

Aristeas é um ilustre precursor daqueles trechos mais incômodos de seu

correligionário Flávio Josefo. Já vimos antes como este autor se aproximou da

historiografia política conforme esta foi redigida por Tucídides e Políbio, mas, ao

contrário destes, ele usou farta documentação para conferir eficácia discursiva à

alguns de seus relatos – como prova, por exemplo, de que o erudito grego Apiano

                                                            478 A. GRAFTON. Op. cit. p. 136. 479 Id. Op. cit. p. cit.

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e o egípcio Manetho haviam incitado violências de todo tipo contra a comunidade

judaica de Alexandria. Ele cita diretamente no corpo de sua narrativa grandes

fragmentos documentais ou mesmo escritos in extenso, enveredando não raro em

minuciosas discussões sobre onde os havia encontrado e porque eram dignos de

crédito. Parece que a maior parte destes textos Josefo simplesmente leu, já

vertidos para o grego, em obras mais antigas, hoje perdidas, mas, no entanto, este

historiador menciona ter localizado alguns deles em arquivos de cidades reais. Em

Contra Apião (1, 73) e nas Antigüidades Judaicas (8, 50-55), inclusive, fez

referências a documentação fenícia que remontava a milhares de anos antes de sua

época.480 Argumentou que estes eram autorizados porque tinham sido

“preservados [em sua maior parte] por sacerdotes, e não meros historiadores”481, e

declarou com argúcia que os documentos que sustentavam as reivindicações

judaicas não obstante tenham sido escritos por inimigos dos judeus mereciam

especial consideração. Suas afirmações são muito inteligentes, mas a natureza

curiosa dos documentos que citou de maneira tão segura ainda hoje é discutida

pelos pesquisadores, fazendo sua narrativa parecer “mais uma fonte de problemas

críticos do que de métodos para solucioná-los.”482 As relações deste

procedimento, o poder de tais afirmações e o raciocínio erudito que os justifica é

muito similar ao que podemos perceber na obra de Eusébio de Cesaréia. Não é

mesmo vão afirmar que foi tanto aqui como em Diógenes Laércio que o primeiro

historiador eclesiástico pode ter se nutrido para elaborar a sua narrativa sobre a

caminha histórica de uma única legítima Igreja Cristã. Esta, aliás, podia ser

compreendida tanto como uma espécie de nação – superiora a qualquer outra –

como uma espécie de escola filosófica – a mais sublime delas –, e o douto prelado

assumiu a tarefa de, escrevendo como polemista e crente, provar a factualidade da

prioridade de sua doutrina e da transcendência de sua instituição.

Há ainda, como anunciamos antes, uma outra matriz historiográfica com a

qual dialoga intimamente este esforço. Por volta do século V a.C. no máximo,

mesmo antes de caírem sob a dominação das forças estrangeiras dos macedônicos

e dos romanos, os gregos já haviam enveredado também por esta preocupação

                                                            480 Cf. Ibid. Op. cit. p.141 e notas correspondentes, n. 24-25. 481 Ibid. Op. cit. p. 141. 482 Ibid. Op. cit. pp. 141-142.

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com as coisas efetivamente antigas. Enquanto alguns historiógrafos de cultura

helênica continuaram a se preocupar com a narrativa dos grandes acontecimentos

públicos e elaboravam as bases intelectuais de uma história universal, uma

miríade de pensadores seus correligionários se dedicava a produzir infindáveis

monografias históricas nas quais se tratava de uma imensa esfera de assuntos

altamente especializados, como o estabelecimento de datas precisas nas quais

acontecimentos importantes haviam ocorrido, a formulação de cronologias

comparadas entre o metro olímpico e as diversas formas bárbaras de medir o

tempo, a reconstrução discursiva de antigas e semi-perdidas práticas religiosas e

instituições políticas, de rituais públicos, de processos judiciários e das vidas

privadas de seus ancestrais. Às vezes, tais laboriosos homens transitavam de um

gênero a outro sem maiores problemas: Nínfis de Heracléia, por exemplo, compôs

uma densa obra de vinte quatro volumes estritamente vinculada ao modelo

tucideano que narrava das conquistas de Alexandre Magno até o seu próprio

nascimento (em meados do século III a.C.) e também um pequeno e igualmente

denso tratado sobre a história de sua cidade. Demorou muito pouco para que os

próprios gregos começassem a competir com os já mencionados autores que

escreviam na língua dos Helenos as histórias de suas próprias pátrias, refutando

algumas de suas pretensões: mencionemos o caso de Menandro de Éfeso, que

tentou provar o quanto as tradições fenícias eram derivadas das helênicas e como

os seus mitos e titulações nobiliárquicas eram o fruto deformado de um processo

mimético mais ou menos explícito que havia sido dificultado por diversos

desencontros lingüísticos. Nestas dissertações técnicas poderíamos ir buscar as

raízes clássicas do folclorismo, da numismática, da paleografia, da diplomática, da

filologia, da história do direito e de tantas outras disciplinas que os historiadores

dos século XIX candidamente designaram como auxiliares.483

O historiógrafo siciliano Timeu de Tauroménio (final do século III ou

início do século IV a.C.), cuja obra lembra a de Heródoto – ao que consta o seu

trabalho mais conhecido também tinha o título de Histórias, e a seção introdutória

deste, composta em cinco livros, expunha a geografia do Ocidente ao Mar Cáspio

e da Etiópia até o extremo Norte, os costumes de algumas centenas de povos,

hipóteses sobre as suas genealogias, além de provérbios e lendas de todo gênero –                                                             483 Ibid. Op. cit. p. 144. A. LESKY. Op. cit. p. cit.

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foi um digno herdeiro desta tradição monográfica grega. Reconheceu a

importância crescente de Roma no contexto mediterrânico e se dedicou à sua

arqueologia e expansão militar, foi muito cuidadoso com a cronologia, e citou

amplamente um tratado intitulado Sobre a Sicília, de Lico de Régio, que, sob este

despretensioso título, era uma ampla história estruturada a partir do antagonismo

entre Gregos e Bárbaros. Parece que realizou ou estava prestes a realizar a fusão

da tradição historiográfica herodoto-tucideana com a preocupação antiquaria de

um muito considerável número de escritores gregos, e para isto parece ter

contribuído a sua formação específica: “Timeu tornou-se historiador não nos

cenáculos da actividade política e militar, mas sim nas bibliotecas de Atenas.”484

Não nos restaram senão uns poucos fragmentos e citações em outros autores de

seus escritos, de modo que não podemos avaliar muito precisamente qual foi a sua

influência sobre a historiografia posterior. Conhecemo-lo mais através das

considerações de Políbio, que, chegando “à história por um caminho

completamente diferente, censurou-lhe a erudição teórica e livresca.”485 Depois

dele, a fecunda escrita antiquaria enveredou por uma tendência a fazer

recompilações de tudo aquilo que se podia extrair de proveitoso ou bizarro da

literatura anterior. Um produto típico deste momento é a vastíssima obra de

Agatárquides de Cnido (século II a.C.), que tratou em dez livros da história

asiática e em quarenta livros da história européia. Os estudiosos modernos o

conhecem relativamente bem devido a um grande extrato de uma sua obra

intitulada Sobre o Mar Vermelho (que para ele é o Golfo Pérsico) que foi

transcrita e comentada pelo Patriarca Fócio de Constantinopla. Há indícios de que

seus trabalhos foram relativamente difundido entre os pensadores romanos do

período imperial tardio. Nele a citação documental chega à verdadeira hipertrofia

e, associada a miríades de considerações de ordem absolutamente técnica, chega a

tornar não poucas passagens simplesmente ininteligíveis aos não-iniciados.486

Antes de Agatárquides, entretanto, outro autor daria um uso bastante

diverso para esta erudição. Hecateu, que relutantemente assumiu a liderança da

rebelião jônia contra os persas entre 500 a.C. e 494 a.C., escreveu antes de iniciar

                                                            484 Id. Op. cit. p. 809. 485 Ibid. Op. cit. p. cit. 486 Ibid. Op. cit. p. 814.

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sua vida de guerreiro profissional sobre a geografia da terra e as genealogias dos

gregos, e usou extensivamente os resultados de suas pesquisas em terras orientais

para afirmar que os mitos gregos eram inverídicos, já que iam contra aqueles fatos

bem atestados pelas cronografias fenícias e egípcias.

“(...) A história mais conhecida sobre ele é registrada por Heródoto: ele se vangloriava diante dos sacerdotes de um templo egípcio que podia contar dezesseis ancestrais e o décimo sexto era um deus. Isso significava colocar a idade heróica dezesseis gerações antes de 500 a.C. A resposta dos sacerdotes egípcios foi a de introduzir Hecateu às imagens de 345 gerações de seus predecessores – sacerdote após sacerdote sem qualquer traço de deus ou de herói no começo da lista. Um homem que desejasse aderir à tradição de sua própria família não teria qualquer dificuldade em aceitar o desafio dos sacerdotes egípcios. Teria respondido que evidentemente os deuses teriam mantido um contato mais prolongado com os gregos do que com os egípcios. Mas este não foi o ponto de Hecateu. A lição que aprendeu ficou registrada na introdução de uma de suas obras – as Genealogias. Em palavras que ainda não perderam a sua força depois de 2.500 anos, ele proclamou: ‘Eu, Hecateu direi o que acredito ser a verdade: as histórias dos gregos são muitas e são ridículas.’ A nova atitude em relação à tradição é clara.”487

Hecateu forjou um instrumento de combate formidável contra a religião

grega ao apontar a sua pequenez frente aos antiqüíssimos e muito elaborados

outros sistemas de crenças da região do Crescente Fértil. De forma depreciativa,

mencionou a multiplicidade das histórias dos helenos e parece ter afirmado “que

as tradições gregas, já que eram muitas, contradiziam umas às outras e

acrescentavam ao seu próprio absurdo.”488 Pouco antes deste milésio sumamente

cético, houve Herodoro do Ponto (também dito de Heracléia) que escreveu um

Mito dos Argonautas na qual “o cordeiro de ouro, por que lutavam Atreu e

Tiestes, transforma-se numa figurinha de ouro no meio duma bandeja”489, ou seja,

onde já se pode notar “claramente a secularização e a banalização do mito”.490

Segundo algumas posteriores compilações de escritos seus, entretanto, ele

valorizou as histórias tradicionais através de interpretações moralizantes –

retratando, por exemplo, “Héracles como filósofo da virtude que derruba as                                                             487 A. MOMIGLIANO. Op. cit. 57. 488 Id. Op. cit. p. 58. 489 A. LESKY. Op. cit. 359. 490 Id. Op. cit. p. cit.

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paixões com a maça do espírito”491 – e, de qualquer forma, ainda que tenha

apresentado a religião grega a partir de elementos tomados da erudição histórica e

etnográfica e da ciência natural jônica, em parte nenhuma de seus fragmentos que

foram preservados até a contemporaneidade notamos a beligerante acidez

característica de Hecateu. Como continuador deste, podemos com muita

propriedade destacar Evémero, originário da colônia grega de Messina e amigo de

Cassandro, que à época (meados do século IV a.C.) era Rei da Macedônia,

pensador que pretendeu explicar a mitologia grega pela mitificação de fatos

históricos acontecidos em um passado remoto. Evémero escreveu um tratado em

três volumes intitulado Narrativa sagrada no qual afirmava ter visitado uma ilha

do Oceano Índico de nome Panchaio onde encontrou antigas inscrições que

provavam que os deuses e deusas da Grécia eram reis, príncipes, filósofos,

legisladores, guerreiros e heróis humanos que foram considerados divinos por

seus pares e súditos em tempos muito antigos. Haveria na origem dos mitos,

portanto, um fundamento histórico, obscurecido por sucessivas gerações de

ignóbil veneração; e caso se achasse os documentos adequados era possível

provar o quão vazias eram as práticas cúlticas então vigentes.

“(...) Tudo, enfim, se conterá nos limites das possibilidades humanas. Júpiter, ou Zeus, que castiga os gigantes com seus raios, era um monarca reprimindo uma sedição. A chuva de ouro de Dânae era o dinheiro com que seus guardas foram subornados. A forja onde Prometeu fabricava homens de barro não passava de um atelier onde um artista modelava estatuetas de forma humana. Quando se conta de Dédalo, que fazia estátuas que marchavam, isto queria apenas significar que êle aperfeiçoou a arte da estatuária, separando as pernas das figuras humanas. E assim por diante: Éolo, o deus dos ventos, não passava de um antigo marinheiro muito hábil em predizer o tempo. Os Ciclopes seriam uma raça de selvagens que habitavam a Sicília. Os Centauros eram cavaleiros que realmente existiram. Atlas, a personagem mítica que sustenta o globo nos ombros, não era mais do que um grande astrônomo consultando um globo em miniatura. Todos os deuses, gregos e romanos, as narrações mitológicas, tudo se reduz, para esta escola, a personagens e acontecimentos históricos. Júpiter teria realmente reinado em Creta. Hércules seria um cavaleiro errante ou um general belicoso, Aquiles, um valente campeão que se teria salientado no sítio de Tróia...”492

                                                            491 Ibid. Op. cit. p. cit. 492 Arthur RAMOS. Estudos de Folk-Lore : Definição e limites. Teorias de interpretação. (Pref. Roger Bastide). (2ª ed. rev.). Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1958 [1951]. pp. 41-42.

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Muito poucas pessoas aderiram à tese de Evémero, e logo não tardou para

que este autor se visse enredado em justas acusações de ateísmo; de fato, “(...) A

idéia de que divindades haviam sido anteriormente pessoas comuns,

transformadas depois da morte em seres superiores, implicava dessacralizar a

essência da religião grega.”493 Ele deu um passo que mesmo o duro Hecateu não

ousou dar e, se pessoalmente pagou o preço por isto, sua obra, entretanto, foi

preservada e muito utilizada séculos depois, em um contexto outro, pelos

apologistas do cristianismo contra os seus debatedores pagãos. Esta hermenêutica

histórica dos mitos é muito utilizada, por exemplo, por Eusébio de Cesaréia na sua

Preparação Evangélica.

Neste tratado apologético já acima referido, o escritor eclesiástico

reivindicou os argumentos de Hecateu e de Evémero, e mostrou como as várias

interpretações que os pagãos davam aos seus próprios mitos se destruíam

mutuamente: Hélio, Apolo, Hércules, Dioníso e Asclépio eram todos considerados

indistintamente o sol, o que não poderia ser; um sistema fazia de Zeus a

personificação da razão, outro o tinha como sendo o nome dado ao poder anímico

do fogo (ou do ar), enquanto um terceiro, mais crível porque alicerçado em provas

documentais verificáveis, o reduzia a uma personagem histórica cuja importância

foi inchada por homens que não queriam abandonar as velhas superstições de seus

pais e, portanto, inventaram para esta uma miríade de confusas explicações

morais, físicas ou de outros tipos. Tudo o que havia de bom e justo nestes

sistemas de crenças já era cristão desde o começo do mundo e, mais ainda, o

bispo de Cesaréia indicou uma farta documentação para atestar que “tôda a

teologia pagã fôra tomada de Moisés, apresentado como o protótipo dos deuses

gentios, assim como sua irmã Miriam e sua mulher Zippora teriam servido de

modelo para as deusas pagãs.”494

Não há nenhum argumento estritamente semelhante a este consignado na

redação da História Eclesiástica, mas devem-se apontar os traços comuns que

podem ser identificados entre ele e aquela narrativa historiográfica, dentre os

quais o mais notável é que em ambos os textos Eusébio usa sua erudição para

                                                            493 A. C. A. AZEVEDO. “Evemerismo”. In: A. C. A. AZEVEDO e P. GEIGER. Op. cit. p. 154. 494 A. RAMOS. Op. cit. pp. 43-44.

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sustentar as prerrogativas de sua instituição eclesial – seja contra os pagãos,

contra os judeus ou contra os cristãos que não fazem parte do adequado redil.

Além de exercer a vital função de apoiar as teses desenvolvidas pelo autor, os

documentos aí citados também estendiam uma ponte para um passado não muito

distante onde era muito difícil ser cristão.495 Ao mesmo tempo em faziam isto,

excitavam a auto-estima do crente e incitavam o seu sentimento de pertença a uma

organização que não apenas possuía um futuro que se estendia para além da

história, mas concretamente se enraizava nesta de maneira a mais gloriosa

possível. Tanto a História Eclesiástica quanto a Preparação Evangélica –

composta ao que parece entre os anos de 313 e 325 – são ofensivas e defensivas e

não apenas um inocente relato historiográfico e uma inocente apresentação

doutrinária. Foram redigidas para lidar com as concretas acusações de que o

cristianismo se fundava apenas em uma convicção cega, de que era uma seita

oportunista aparecida apenas no undécimo instante e uma massa confusa de

grupos desconexos em perpétua discordância uns com os outros. A linha de

raciocínio sobre a qual se alicerçam, em outras palavras, é a mesma:

“(...) a realização das profecias de Cristo e dos hebreus é uma prova do cristianismo; o próprio sucesso do cristianismo, que implica a assistência divina, é uma prova, particularmente quando se verifica que esse sucesso se dá lado a lado com a paz romana; o ensinamento de Cristo teve o poder inédito de civilizar os costumes das nações, de conduzir os homens a verdades mais nobres e a uma vida mais filosófica; graças a esse ensinamento até mesmo as mulheres, os bárbaros e as pessoas destituídas alcançaram uma atitude altamente filosófica e uma doutrina sã; mas o maior serviço foi talvez o de conduzir os homens da idolatria para a verdadeira piedade.”496

Eusébio revelou uma grande originalidade ao fazer um grande esforço para

pensar como seu adversário ideal – o homem inteligente, seja judeu, cristão de

outra estirpe ou bárbaro, que submete a sua fé cristã a uma perscrutação

minuciosa – e tentar lhe responder em termos que lhe fossem convincentes. Para

lidar com aqueles de pendores mais especulativos, afirmou que a fé, além de

indispensável para os ignorantes que não podem seguir uma demonstração

                                                            495 A. GRAFTON. Op. cit. p. 136. 496 C. TAVEIRA. Op. cit. 2004. p. 4.

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racional, é também uma convicção bem fundada naquilo que subjaz às mais

elevadas motivações da atividade humana e um pressuposto para o acesso a

verdades mais beneméritas do que as da própria filosofia.497 Para confrontar os

céticos mais chão-a-chão, compilou e organizou em relato uma série de

documentos que podem lhe provar preto-no-branco a validade das afirmações dos

cristãos, como eles historicamente teriam assumido o patrimônio da antes piedosa

nação dos hebreus e da virtude helênica, suplementando-o ainda com a sua divina

doutrina, mantida incólume através dos tempos e dos espaços pela sucessão

apostólica.

O que podemos observar neste esforço é a formulação de um método de

pensamento que alicerçado em comprovações materiais, históricas, “transforma as

questões da moral e da verdade em doutrinas dogmáticas de caráter a-priorístico e

punitivo (...) [aquilo] que Eusébio de Cesaréia, em sua vasta Preparação

Evangélica, chamou de ‘nova ciência cristã’ e de ‘verdade da esperança.’”498 Este

a priori é justamente a convicção de que, seja de onde for considerada, a

mensagem cristã é auto-evidente. É apenas para os hesitantes e rebeldes que se

deve demonstrá-la. Alicerçando nas sutilezas do raciocínio lógico-especulativo e

histórico-crítico a experiência religiosa do seguimento de Jesus Cristo, entretanto,

o raciocínio à moda de Eusébio enveredou em uma labiríntica e – em um termo

sincero – insolúvel problemática entre o senso de um mysterium terrible et

fascinans, algo que choca o homem ao lhe privar das consolações da normalidade

ao mesmo tempo que exerce sobre ele irresistível atração, uma experiência onde

não há nada de racional, geradora de um arrebatamento que pode ser comparável

ao causado pela música e pelo erotismo, e a explicação do transcendente

minuciosamente estruturada em termos lógicos e mobilizada pela retórica

demonstrativa / dialogal.499 Dadas as diferentes maneiras pelas quais os seres

humanos apreendem a realidade empírica com a qual são forçados a se defrontar

gostando disto ou não, um conjunto doutrinal teoricamente coerente e

padronizado, e em essência imutável, só pode se impor a um grande número de

pessoas se conseguir de algum modo se adaptar “às realidades da percepção

                                                            497 Id. Op. cit. p. 5. 498 Ibid. Op. cit. p. 1. 499 Ibid. Op. cit. p. 2. K. ARMSTRONG. Op. cit. p. 60 e nota correspondente, n. 2, p. 501.

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metafísica e moral locais e mesmo individuais.”500 Por outro lado, o confronto

entre esta necessária flexibilidade e a identidade ou pretensão cristã de conter uma

diretiva imperativamente revelada por Deus à humanidade, à qual não se podia em

momento algum perder de vista, conduziu a uma tensão fortíssima, que no caso do

que antes designamos como a Grande Igreja propiciou diretamente à formação de

uma estrutura dogmática cristalizada e uma ordem hierárquica supostamente

estabelecida por determinação divina que envolvia “inextricavelmente celibato e

autoridade, mosteiros e episcopado, episcopados e patriarca, e, finalmente,

patriarca e imperador.”501

Deriva daí o paradoxo de uma verdade que se cria auto-evidente ao menos

para quase todos ter de ser propagada e divulgada por mecanismos específicos de

caráter punitivo da Igreja e do Estado, a saber, a pregação de não existente

possibilidade de salvação extra ecclesiam – o inverso lógico de se afirmar que

todas as coisas virtuosas do mundo já eram cristãs desde o seu surgimento ainda

que não se soubesse antes disto – e a sustentação política e jurídica de tal

conceito, manifesta primeiro no favorecimento de um determinado partido

religioso e, em seguida, coerentemente, na exclusão e perseguição aos que se

presume que teimem em permanecer no erro. Como escreveu Celso Taveira em

um texto intitulado “Eusébio : Da razão antiga à verdade cristã”, estamos ao

mencionar tais questões fazendo referência essencialmente a uma tautologia ou

circuito auto-alimentado, pois ao afirmarmos as bases político-jurídicas deste

constrangimento especificamente religioso também estamos aludindo aos

alicerces de sustentação ideológica de um método estritamente racional “de

imposição de um tipo de verdade sobre outros então vigentes e concorrentes. (...)

[Acerca desta] nova forma de expor a verdade queremos propor o seguinte: entre

os séculos IV e VI, o triunfo desse novo método injetou na vida da sociedade um

igualmente novo tipo de comportamento abrumadoramente condicionado pelo

temor abafado e pelo conformismo psicológico.”502

                                                            500 C. GEERTZ. Op. cit. p. 28. 501 C. TAVEIRA. Op. cit. 2004. p. 3. 502 Id. Op. cit. p. 1. O grifo é nosso.

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Conclusão

DA PAX ROMANA À PAX CHRISTI (OU VICE-VERSA)

I.

“Rugido de leão é a ira do rei, orvalho sobre a terra o seu favor.”

PROVÉRBIOS 19, 12

Em meados de 324, as tropas de Constantino dispersaram as de Licínio,

imperador do Oriente e outrora um seu aliado, diante dos muros de Crisópolis,

tornando-o governante único do Império Romano. Juntos estes dois soberanos

oriundos dos ásperos campos de batalha das fronteiras do mundo greco-latino

haviam proclamado em 313 a concessão da liberdade de culto a todas as religiões

submetidas ao domínio temporal dos romanos, o chamado “Edito de Milão” –

medida que favoreceu de modo especial os mais bem organizados e ambiciosos

dentre os cristãos. Ao fazê-lo, mais confirmavam do que contradiziam a prática

latina tradicional, afinal “(...) Roma havia tolerado [sempre] as antigas religiões

tribais, desde que não importassem sacrifícios humanos, por serem, em essência,

tão conservadoras quanto a sua própria; todas subscreviam estruturas humanas

hierárquicas.”503 Já no ano de 314, entretanto, despontaram hostilidades entre os

dois, fundadas sobre divergências de ordem político-religiosa: ao que parece,

Constantino favorecia abertamente os cristãos, talvez almejando conscientemente

ter “a oportunidade de controlar a política eclesiástica quanto à ortodoxia e o

tratamento da heterodoxia”504, e se orgulhava de deixar os pagãos aos seus

próprios cuidados; enquanto Licínio, a princípio abertamente favorável à

integração dos diversos grupos de cristãos na vida religiosa do Império, buscara

para si sempre mais o apoio de militantes anti-cristãos da pars Orientis. Tais

querelas prolongaram-se por um decênio e não tardaram muito a irromper em uma

                                                            503 Paul JOHNSON. História do cristianismo. (Trad. Cristina de Assis Serra). Rio de Janeiro: Imago, 2001. pp. 106-107. 504 Id. Op. cit. p.107.

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nova onda de violência generalizada.505 Vencido, “Licínio solicitou e aceitou o

perdão de suas ofensas, prostrou sua própria pessoa aos pés de seu senhor e amo,

foi erguido do solo com insultosa piedade, admitido no mesmo dia ao banquete

imperial e enviado para Tessalônica, escolhida como local de seu

confinamento.”506 Executado mais tarde não se sabe bem porque motivo, foi

postumamente acusado e manter correspondência com os inimigos do Império;

sua memória foi coberta de infâmia, “suas estátuas foram derrubadas e por um

édito açodado, tão nocivo e tão tendencioso que teve de quase imediatamente ser

corrigido, suas leis e todos os procedimentos legais de seu reinado foram de

pronto abolidos.”507

Pouco depois da vitória sobre seu antigo correligionário, em setembro de

324, Constantino convocou os bispos diretamente submetidos à sua autoridade

para um concílio, evento algo semelhante aos comitia das ordenações civis do

Império.508 Já o havia feito antes no Ocidente para buscar resolver a questão

donatista, convocando reuniões semelhantes em Roma (311) e em Arles (314).

Lidou nestas ocasiões, entretanto, com assunto regionalmente circunscrito e de

âmbito quase que exclusivamente administrativo e disciplinar. No Norte da

África, Ceciliano e Donato envolveram-se em uma acre disputa sobre o comando

da Igreja de Cartago. A maioria dos cristãos locais acreditava que as ordens da

Igreja eram conferidas essencialmente a uma pessoa, ou seja, invalidadas por uma

sua desonra, enquanto outros, mimetizando a posição da Igreja de Roma, que viria

                                                            505 Marcella FORLIN PATRUCCO. “Licínio”. In: VV. AA. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo Di Berardino). Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. p. 831. 506 Edward GIBBON. Declínio e queda do Império Romano. (Org. e introd. Dero A. Saunders; Pref. Charles A. Robinson. Jr.; Trad. e notas suplem. José P. Paes). Ed. abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 234. 507 Id. Op. cit. p. cit. 508 Sobre os sínodos, Edward Gibbon observou que já no fim do segundo século da Era Cristã os líderes das Igrejas da Grécia e da Ásia Menor haviam adotado o costume de se reunirem periodicamente, talvez tomando emprestado o modelo de um conselho representativo dos exemplos de sua própria história pátria, como os anfictiões, a liga acaia ou as assembléias das cidades jônicas. Suas deliberações eram assistidas pelo conselho de pensadores especialmente considerado e assistidas por crescente número de populares; seus decretos, chamados canons, eram regulamentos referentes a toda matéria de fé e disciplina e considerados inspirados na medida em que se impusesse “a crença de que uma generosa efusão do Espírito Santo se derramasse sobre a assembléia unida dos delegados da gente cristã.” Para o célebre historiador inglês, foi pelo estabelecimento de sínodos regulares e pela intensificação dos contatos entre estes encontros regionais que “a Igreja católica logo assumiu a forma e adquiriu a solidez de uma grande república federativa.” Cf. Ibid. Op. cit. p. 266.

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a se tornar a ortodoxa, afirmavam todos os atos sacramentais como sempre e

universalmente eficazes desde que administrados intra ecclesiam: esta divergência

acabou por ocasionar a contestação da validade da sagração do novo pastor dos

cartagineses. Reunidos em sínodo, cerca de oitenta bispos númidas declararam

inválido o episcopado de Ceciliano pelo fato de a cerimônia que o conferiu ter

sido conduzida por um bispo traditor, ou seja, que durante as perseguições

renegara a sua fé e entregara peças do mobiliário litúrgico e livros sagrados

cristãos para serem queimados pelos emissários governamentais, e elegeram para

o seu cargo Donato. Ceciliano, entretanto, recusou-se a renunciar, alegando antes

de qualquer outra coisa que uma boa de seus acusadores eram eles mesmos

traditores. Ambos os partidos apelaram para Constantino, que já havia se

mostrado tão favorável aos cristãos em seus domínios, e lhe pediram que os

bispos da Gália arbitrassem a questão. O imperador consentiu e na Basílica do

Latrão em Roma reuniram-se Ceciliano, Donato, bispos africanos simpáticos à

causa de um e de outro, quinze bispos italianos e três gauleses, presididos pelo

Papa Milcíades. Depois de muita investigação e hesitação, o conciliábulo

reafirmou a legitimidade da eleição de Ceciliano, e tal decisão tornou-se a opinião

oficial do Imperador. Os partidários de Donato, entretanto, rejeitaram tal

resolução e encararam a ainda incipiente aliança entre a Igreja e o Estado

constantiniano com horror; acidamente indagavam que tinha o imperador a ver

com os seguidores de Cristo. Os donatistas exploraram pelo rigorismo religioso o

nacionalismo púnico e o sentimento anti-romano e antiimperialista, e quando

Ceciliano e seus adeptos tentaram efetivamente ocupar a Sé de Cartago

enfrentaram a resistência, às vezes violenta, de forças bem-organizadas. O

historiador inglês Paul Johnson fez um agudo diagnóstico da conjuntura que então

se estabeleceu:

“(...) A ortodoxia feroz e tradicional da igreja africana, fortalecida pela perseguição pagã, foi rotulada de um dia para outro como heresia – identificada e atacada pelo mesmo poder que perseguira anteriormente em nome de um Estado pagão. O que estava em jogo não era apenas o protesto de uma seita particularista, mas a sobrevivência de uma tradição provincial de cristianismo em um império universal e (para os africanos) parasítico. Constantino convidara o problema ao alinhar o império com a Igreja Católica universal; (...) os donatistas

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avançavam e punham em risco os interesses do Estado tanto quanto os da Igreja.”509

Basicamente idênticos aos cecilianos quanto ao ritual e à doutrina, os

partidários de Donato eram uma igreja plenamente organizada, com mais de

quinhentos bispos (a maioria dos quais, deve-se notar, chefiava pequenas e

interioranas sedes episcopais). Os sacerdotes donatistas propositadamente

retomaram algumas atitudes dos antigos Macabeus e dos zelotes e passaram a se

organizar em “israéis”, pequenos grupos armados com bastões com os quais

atacavam o clero pró-romano. Recrutaram bandos de homens sem terra e

desesperados entre os “berberes selvagens e semicivilizados, submetidos a uma

tradicional e flagrante exploração por parte dos proprietários rurais romanos, a

maioria dos quais ausentes”510, e os constituíram em exércitos particulares – os

“circunceliões” – que vivam nos cemitérios cristãos ou nas suas adjacências,

guardando as relíquias dos mártires de preferência da facção e realizando de

tempos em tempos incursões para vingá-los.511 Quando logravam capturar um

edifício de culto “ortodoxo”, purificavam-no com baldes de cal antes de se

reunirem ali para celebrarem seus próprios sacramentos. Os donatistas rejeitavam

o mundo, em um sentido político e econômico, algo incompatível com o projeto

constantiniano de um campo religioso pacificado, onde as crenças mais

colaborativas não seriam apenas toleradas, mas favorecidas – e talvez controladas

– por um Estado forte. Não era possível que consentir que continuassem a sua

pregação, ganhassem ainda mais influência e se tornassem um fator de

instabilidade no interior do Império Romano novamente unificado a duras penas

trinta e sete anos depois de Diocleciano ter divido o poder e as províncias com o

seu associado Maximiano.512

Como os donatistas rejeitavam a sentença de Milcíades sobre a

problemática referente à Sé de Cartago e não aceitavam a interferência do clero

                                                            509 P. JOHSON. Op. cit. p. 103. 510 Id. Op. cit. p. cit. 511 O termo “circuncelião” surge da expressão latina circum cellas, literalmente “os que rondam celeiros”. Cf. Antonio Carlos Amaral do AZEVEDO. “Donatismo”. In: Antonio Carlos Amaral do AZEVEDO e Paulo GEIGER. In: Dicionário histórico de religiões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. p. 134. 512 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. p. 103.

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romano em um assunto que consideravam de interesse e jurisdição

exclusivamente regional, o próprio Constantino condescendeu em reavaliar as

suas reivindicações e convocar um novo sínodo para lidar com elas. No dia 1º de

agosto de 314, grande número de bispos do Ocidente, expressamente convocado

pelo Imperador, reuniu-se na cidade gaulesa de Arles, então chamada Constantina

ou Constantia, onde no ano anterior havia sido estabelecida uma Casa da Moeda.

Sob a presidência de Cresto, bispo de Siracusa, a questão donatista foi novamente

examinada; diante dele se apresentou Ceciliano de Cartago e seus acusadores, que

não lograram, entretanto, provar suas acusações. As decisões do sínodo de 311

foram assumidas pela maioria dos prelados reunidos em Arles, e os donatistas

presentes foram expulsos ou presos. Após isto, as reuniões sinodais foram

dedicadas às deliberações sobre numerosos pontos disciplinares importantes, e

algumas de suas decisões mais relevantes são sintomáticas do novo modus vivendi

que estava sendo então gestado entre Igreja e Império. As pretensões de Donato

ao episcopado foram consideradas inválidas e a violência de “israéis” e

“circunceliões” duramente condenada; rejeitou-se a opinião de Cipriano de

Cartago de que o batismo conferido pelos hereges não era válido, e estabeleceu-se

como correta a de Estevão de Roma, para quem um segundo batismo era tão

desnecessário quanto absurdo (cânon 9); declarou-se que os traditores que se

arrependessem deveriam, após cumprirem a adequada penitência, ser reintegrados

sem mais no seio da comunidade cristã, e que os sacramentos que recebessem ou

viessem a administrar daí em diante eram todos válidos (cânones 22 e 14);

proibiu-se aos clérigos sob pena de deposição de seu ministério eclesial mudar de

Igreja, viajar sem comunicar aos seus confrades e fazer empréstimos a juros

(cânones 2, 21 e 13); recomendou-se a presença de sete bispos para realizar uma

consagração episcopal, impondo-se um número mínimo de três prelados para que

esta fosse considerada válida (cânon 20); regulamentou-se o estilo de redação e o

uso das cartas de recomendação concedidas pelas autoridades civis e eclesiásticas

aos sacerdotes itinerantes (cânon 10); reduziu-se a quantidade e a importância dos

diáconos, a quem foi vedada a celebração da eucaristia (cânones 18 e 16);

especificaram-se as condições para que se entrasse no catecumenato na iminência

da morte (cânon 6); recomendou-se aos maridos abandonados ainda jovens pelas

esposas que não contraíssem novo matrimônio enquanto ainda vivesse a adúltera

(cânon 11); proibiu-se aos leigos que exercessem as profissões de auriga e de ator,

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e negou-se que eles pudessem exercer funções no serviço público sem a estrita

autorização e controle de um bispo (cânones 4, 5 e 7); e ameaçou-se de

excomunhão os cristãos que recusassem ou desertassem do serviço militar (cânon

3).513

De maneira pouco surpreendente, dada a arraigada popularidade dos

donatistas, a recepção das decisões de Arles na África do Norte foi fria. Os

circunceliões cresciam em número e, autodenominados “Capitães dos Santos”,

retomavam a tradição escatológica judeu-cristã mais militante para promover um

ajuste de contas que precederia aquele do Dia do Juízo. Em um império em que o

porte de lâminas era restrito para certas categorias privilegiadas de pessoas e, em

termos estritos, ilegal, andavam insolentemente armados com as aduelas que

utilizavam na colheita das azeitonas. Protegiam os camponeses nativos

endividados e os escravos na medida em que aterrorizavam os credores e

senhorios convertidos ao cristianismo pró-romano; queimavam todos os

documentos escritos em latim, dentre os quais os relacionados aos escravos, e não

raro providenciavam que o fogo se estendesse às safras e casas de seus

“inimigos”. O espectro da dissensão religiosa aliada à revolução social continuou

a assombrar os católicos ortodoxos da África do Norte até bem depois de

Ceciliano de Cartago, Milcíades de Roma e Agostinho de Hipona, que mobilizou

boa parte de sua genialidade para dar-lhes digno combate no plano das idéias; os

donatistas de fato só desapareceram da África do Norte – aliás, literalmente e

como a imensa maioria dos demais cristãos daquela área – trezentos anos depois,

quando os muçulmanos invadiram aquela região do mundo.514 Importa-nos,

contudo, considerar menos o destino dos partidários de Donato do que a resposta

                                                            513 Ulpia DIONISI et al.. “Roma”. In: VV. AA. Op. cit. p. 1230. Basilio STUDER. “Milcíades, papa”. In: Id. Op. cit. p. 936. Victor SAXER e Charles MUNIER. “Arles”. In: Ibid. Op. cit. pp. 160-161. 514 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. pp. 104-105. Este desaparecimento após quase quatro séculos de ininterrupta militância pontuada por períodos de extrema violência, deve ser visto com alguma desconfiança: não é provável que um movimento bem organizado e forjado justamente na perseguição tenha simplesmente perdido fôlego diante da ameaça que lhe poderia significar a nova ordem político-religiosa estruturada sob o domínio árabe. Talvez no rigorismo donatista e na intensa veneração que os seus adeptos prestavam aos mártires de seu movimento estejam as raízes do intrincado fenômeno do marabutismo, marcante na África do Norte até a contemporaneidade. Ver: A. C. A. AZEVEDO. “Marabutismo”. In: Op. cit. pp. 238-239. Também as referências sobre a religiosidade marroquina em: Clifford GEERTZ. Observando o Islã : o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. (Trad. de Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. (Coleção “Antropologia Social”: dir. Gilberto Velho).

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constantiniana ao desafio que eles lançavam. Eusébio de Cesaréia a registra nos

capítulos quinto e sexto do décimo livro de sua História Eclesiástica,

transcrevendo sucessivamente uma carta imperial a Milcíades, bispo de Roma, a

Cresto, bispo de Siracusa, e a Ceciliano, bispo de Cartago.

Na primeira delas somos informados de que Constantino tomou

conhecimento da vetusta querela entre cecilianos e donatistas pelos informes de

Anulino, procônsul da África, e que à Sua Majestade Augusta parecia

“sumamente grave que nestas províncias, que a divina providência

voluntariamente confiou a minha solicitude e nas quais é muito numerosa a

população, encontre uma multidão persistindo no pior, como se estivesse dividida,

e que entre os próprios bispos existam diferenças.”515 Na segunda, sabemos quais

medidas tomou “quando alguns, com ânimo vil e perverso, começaram a dividir-

se acerca do culto e do santo e celestial poder e da religião católica”516: no intento

de reprimir tais discussões, determinou que se cumprissem “umas disposições de

tal natureza que, enviando alguns bispos da Gália aos das partes contrárias que

lutavam entre si obstinada e ferozmente, e achando-se também presente o bispo de

Roma, aquilo que parecia estar em litígio pudesse solucionar-se por efeito de sua

presença unida a um cuidadoso exame.”517 Feito isto, entretanto, alguns

“esquecendo-se de sua própria salvação e da veneração devida à santíssima

religião, ainda hoje não cessam de prolongar suas peculiares inimizades e não

querem conformar-se com a sentença já ditada (...); disto veio a resultar que os

mesmos que deveriam ter uma concórdia fraterna e unânime, separaram-se uns

dos outros vergonhosamente, e mais, abominavelmente, deram motivo de

zombaria aos homens cujas almas são alheias à santíssima religião.”518 Assim

sendo, Constantino convocou nova reunião para lidar com esta divergência e

ordenou que a Cresto de Siracusa que, “mediante a tua firmeza”519, conduza-a de

                                                            515 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria Aparecida Salmeron). São Paulo: Fonte, 2005. Livro X : 5, 18. p. 339. 516 Id. Op. cit. Livro X : 5, 21. p. 340. 517 Ibid. Op. cit. Livro X : 5, 21. p. cit. 518 Ibid. Op. cit. Livro X : 5, 22. p. cit. 519 Ibid. Op. cit. Livro X : 5, 24. p. cit.

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modo a encerrar esta “vergonhosa disputa entre companheiros [que] tem se

mantido até agora de forma errada”.520

Na terceira carta transcrita por Eusébio – onde é mencionado pela primeira

vez o nome de Ósio, bispo de Córdoba, relacionado ao de Constantino521 – o

Imperador se dirige diretamente a Ceciliano, nomeando-o bispo de Cartago, e o

informa de que outorgou uma considerável soma de recursos destinados a suprir

“os gastos de alguns ministros da legítima e santíssima religião católica”.522

Solícito aos desígnios deste prelado, acrescenta que deu ordens a Heráclides, seu

procurator rei privatæ – ou seja, o administrador de seus bens pessoais – “para

que se preocupasse de pagar-te sem a menor vacilação, no caso de que tua firmeza

lhe pedisse algum dinheiro.”523 Mais ainda, escreveu a Ceciliano que

“(...) como tenho informes de que alguns homens de pensamento inconstante estão querendo afastar o povo da santíssima e católica Igreja com perverso engano, saiba que dei ordens semelhantes ao procônsul Anulino e também ao representante dos prefeitos, Patrício, que se achavam presentes, para que, além do mais, dediquem também a isto a devida preocupação e não se permitam descuidar deste assunto. Portanto, se virdes que alguns homens assim persistem nesta loucura, apela sem a menor vacilação aos juízes acima citados e apresenta-lhes este assunto para que eles, como lhes ordenei quando estavam presentes, os convertam ao bom caminho.”524

Para Argimiro Velasco-Delgado, tradutor para o espanhol e comentador da

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, ver nesta última correspondência

referida a inauguração da perseguição imperial aos donatistas é ir demasiado

longe525, mas não se pode deixar de observar que, além de uma proximidade

temporal, há uma coerência discursiva entre estas disposições comunicadas a

Ceciliano e o posterior acréscimo que Constantino fez à excomunhão, única

maneira que os bispos tinham para impor a disciplina eclesiástica ou manter a                                                             520 Ibid. Op. cit. Livro X : 5, 24. p. cit. 521 Cf. Argimiro VELASCO-DELGADO. Nota n. 170 ao Livro X. In: EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiastica. (Texto bilíngüe; ver. espanhola, introd. e notas de Argimiro Velasco-Delgado). (2ª ed. rev.). Madri: BAC, 1997. (2 vol.). p. 635, n. 170. 522 EUSÉBIO DE CESAREIA. Op. cit. Livro X : 6, 1. p. 341. O grifo é nosso. 523 Id. Op. cit. Livro X : 6, 3. p. cit. 524 Ibid. Op. cit. Livro X : 6, 4-5. p. cit. 525 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 636, n. 174.

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uniformidade da doutrina antes da guinada histórica da segunda e terceira décadas

do século IV. Em 317, o imperador ordenou a supressão dos donatistas por

perturbarem a paz, mandou prender e exilar seus bispos, confiscou suas

propriedades e entregou-as aos cecilianos . Sem dúvida, “(...) Foi um momento

decisivo: pela primeira vez na história do movimento cristão, um governador

cristão usava a violência da força para tentar subjugar um partido cristão

discordante.”526 A isto seguiram-se vários anos de crescente violência de parte a

parte, até que diante da determinação inabalável dos donatistas, do extraordinário

incremento do número de seus fiéis (no final de 319 havia por volta de duzentos e

cinqüenta bispos partidários de Donato a oeste do Nilo), e do constrangedor fato

de que aqueles dentre eles que eram mortos imediata e ardentemente eram

reverenciados como mártires, a administração constantiniana abandonou a política

do porrete para lidar com esta situação já no ano de 321. Desde então, optou por

uma solução de compromisso entre o Estado e os seguidores de Donato, e

providenciou um substancial aumento do apoio financeiro do tesouro romano aos

bispos e presbíteros que continuavam leais à causa de Ceciliano. A primeira

preocupação de Constantino era então, explicitamente, a unidade da religião

cristã, da qual esperava que integrasse – e não dividisse ainda mais! – os seus

súditos, e a necessidade de obter uma solução moderada que não contradissesse as

suas ações anteriores e não inflamasse ainda mais o ânimo dos muito populares e

já agressivos donatistas o levou a mediar uma vez mais novas negociações entre

uma parte e outra. De fato, as igrejas que seguiam Donato foram autorizadas

oficiosamente a continuar ordenando clérigos à margem da explícita sanção

imperial, o que do ponto de vista institucional conduziu à formação de duas

igrejas paralelas, cujos sacerdotes “presidiam liturgias quase idênticas e

celebravam quase os mesmos sacramentos. Seus edifícios sagrados e suas vestes

eram as mesmas; [e] os arqueólogos e estudiosos ainda não conseguem distinguir

as ruínas das suas igrejas umas das outras na região.”527 Concessões relevantes

                                                            526 Dale T. IRVIN e Scott W. SUNQUIST (orgs.). História do movimento cristão mundial. Vol. I : Do cristianismo primitivo a 1453. (Trad. José Raimundo Vidigal). São Paulo: Paulus, 2005. p. 217. Um sermão donatista desta época queixava-se de que “os juízes locais receberam ordens imperiosas para agir e colocar em movimento o poder secular; os [nossos] prédios foram cercados por tropas; nossos seguidores abastados ameaçados de proscrição e os sacramentos profanados; uma turba de pagãos atirou-se sobre nós e nossos edifícios sagrados tornaram-se cenários de festins profanos.” Citado em: P. JOHNSON. Op. cit. pp. 108-109. 527 D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. 218.

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foram feitas à este duplo que também reivindicava – talvez até com mais

propriedade que os cristãos pró-romanos – a herança espiritual de Tertuliano,

Cipriano, Perpétua e Felicidade. Na segunda metade de 321, os donatistas

ocuparam uma igreja recém-construída pelos paleortodoxos em Cirta (também

chamada então de Constantina), e para evitar um novo motivo de confronto

Constantino barganhou o abandono deste templo pela posse do amplo edifício da

Alfândega da cidade. No mesmo período, resolveu-se validar a disposição do

sínodo de 314 que determinava que quando a cátedra episcopal de uma área

dividida entre os dois partidos ficasse vaga, o bispo seguinte na linha de

precedência, já consagrado, fosse ele donatista ou pró-romano, iria assumir o

posto. Isto realmente nunca funcionou muito bem, e estabeleceu no máximo um

incômodo estado de coexistência entre as partes em litígio, mas o sistema

degringolou-se de fato apenas depois da morte de Constantino em 337.528

No âmbito de nossa reflexão, o relevante disto tudo é a constatação de que

já alguns antes da convocação de um grande sínodo para lidar com a problemática                                                             528 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. ps. 103 e 108. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. pp. 216-219. Em 346, quando faleceu o bispo de Cartago, o próprio Ceciliano apresentou-se para o cargo, amparado na determinação sinodal e imperial, já que era o próximo na linha de precedência. Constante, filho de Constantino, que era então imperador do Ocidente, entretanto, recusou-se a reconhecê-lo como válido ocupante do cargo e mandou uma delegação à África do Norte para rever a situação. No ano seguinte o governante exilou o idoso combatente eclesiástico e ordenou, sob a ameaça de tortura e exílio, que as igrejas se unissem sob a autoridade de Grato, o bispo recém-consagrado que tinha o seu favor. Mais martírios se seguiram, assim como retaliações violentas contra o clero e os fiéis pró-romanos e as autoridades e edifícios estatais. Passados alguns anos ficou novamente claro que não havia uma outra solução senão abandonar a perseguição – que só tinha feito consolidar nos donatistas a decisão de resistir aos católicos, identificados a um poder político perseguidor – e estabelecer algum tipo de trégua. A disputa original entre antigos partidários de Donato e os antigos seguidores de Ceciliano foi caindo no esquecimento à medida que classe, raça e nacionalidade cerravam fileiras de lado a lado, até o ponto de que passou a fazer parte quase que com naturalidade da vida diárias das pessoas nos centros urbanos do África do Norte. Durante o século IV e começo do século V periodicamente esta controvérsia degenerava em violência nas ruas, mas muito mais comum foi que ela se cristalizasse em rivalidades arraigadas e tão pequenas quanto incômodas provocações mútuas – lembremos daquele episódio dos tempos do episcopado de Agostinho quando os padeiros donatistas de mais de uma cidade simplesmente passaram a se recusar a vender pão aos pró-romanos. Relações mais cordiais só foram estabelecidas entre membros das duas facções depois da invasão da região pelos Vândalos (Hipona foi conquistada em 431 e Cartago em 439). Estes germânicos, que confessavam uma outra forma de cristianismo, estabeleceram um reino independente na África do Norte durante mais de um século (o imperador romano só recuperou o controle da região na metade da década de 530), e sob sua autoridade correligionários de Donato e de Ceciliano tiveram igualmente suas igrejas profanas e destruídas e foram às vezes enviados juntos para o exílio, o trabalho forçado nas minas ou o patíbulo. Na esteira destes danos é que houve uma moderação mútua das atitudes, e após os generais constantinopolitanos libertá-los de tal poder opressor os católicos começaram a permitir que os sacerdotes donatistas celebrassem os sacramentos em suas igrejas, ao passo que os donatistas passaram a convidar também os bispos católicos para participarem de suas ordenações. Cf. Id. Op. cit. pp. 218-219. P. JOHNSON. Op. cit. p. 103.

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ariana Constantino não apenas favorecia abertamente um determinado grupo

cristão – que antes chamamos de Grande Igreja –, mas agia como o seu provedor

material, braço armado e grão-chanceler. De acordo com o que escreveu a

Milcíades, estava dispensando à Igreja legítima um respeito tão grande que por

nada no mundo permitiria que em seu seio se estabelecesse cisma ou divisão

alguma529; incidentalmente assegurava a unidade religiosa no interior de seus

domínios e lidava com aqueles inimigos da ortodoxia que também eram os de

Roma. O mesmo tipo de atitude – talvez friamente manipulador, talvez

genuinamente bem intencionado – é o que determinaria o seu curso de ação

naquele outono de 324, quando convocou uma reunião de bispos em Ancira para

tentar dirimir os litígios entre os bispos orientais que se digladiavam por causa de

algumas especulações de um presbítero alexandrino sobre a natureza eterna de

Deus. O cursus publicus – a rede de hospedagens, cavalos e navios estruturada

para que pudessem transitar com rapidez pelos vastos domínios de Roma os

oficiais do serviço público, os emissários imperiais, os mensageiros e suas

mensagens – foi posto à disposição dos padres conciliares, e por motivos de

comodidade a reunião foi transferida para a embelezada cidade de Nicéia, situada

nas imediatas vizinhanças da residência imperial de Nicomédia (onde alguns

prelados acabaram por se hospedarem, inclusive) e com um inverno e um verão

mais toleráveis do que os da Anatólia Interior.530

“(...) Nicéia. Um nome bem conhecido de todos os cristãos, que, no entanto, dificilmente saberiam localizar essa cidade num mapa. Contudo, a localização é precisa: a maioria dos acontecimentos que agitam o século III se origina nesse pequeno pedaço de terra espremido entre a Europa e a Ásia. Nicéia é uma cidade situada a leste do estreito de Bósforo. Constantino escolherá estabelecer sua capital entre dois continentes e na passagem entre o Mediterrâneo e o Mar Negro.

                                                            529 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 5, 20. p. 339. 530 Cf. Marcella FORLIN PATRUCCO e Charles KANNENGIESSER. “Nicéia”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 997-998. G. SUFFERT. Georges SUFFERT. Tu és Pedro : Santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A história dos primeiros 20 séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Trad. Adalgisa Campos). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 74. Para mais informações sobre este uso cristo-constantiniano do cursus publicus – já antes utilizado pelos bispos, seus assessores e criados para chegar ao Concílio de Arles (cf. História Eclesiástica, Livro X : 5, 23) – ver o mais completo tratado redigido até o momento sobre o assunto: Denys GORCE. Les voyages, l’hospitalité et le port dês lettres dans le monde chrétien des IVe et Ve siècles. Paris / Wépion-sur-Meuse: A. Picard / Monastère du Mont-Vierge, 1925.

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Será Constantinopla. Na abertura do concílio de Nicéia, a criação do que virá a ser Bizâncio ainda é um simples sonho do imperador.”531

Será necessário que dediquemos à seção seguinte de nosso trabalho a uma

mais ou menos minuciosa divagação revisando panoramicamente quais as

principais questões que motivaram a convocação da reunião de Nicéia e como elas

entraram na pauta do dia, ou, em outros termos, como se precipitou a constituição

do Credo Niceno: neste esforço pretendemos pôr em relevo tanto o

relacionamento de Constantino com a fé cristã quanto a postura pró-imperial de

considerável número de prelados – assim como, na medida do possível, qual o

significado história desta, o que ela efetivamente poderia representar. Antes de

qualquer outra coisa, entretanto, é mister ressaltar, devemos deixar de lado as

teorias conspiratórias à moda de Dan Brown, onde “Constantino e o Concílio de

Nicéia (...) são postos como culpados por forjarem a Bíblia e declararem a

divindade de Jesus (...) [algo] ‘fundamental para o funcionamento da Igreja e do

Estado.’”532 Trabalhar com tais pressupostos é deixar-se guiar por uma

ingenuidade sem tamanho. De acordo com suas crenças, entendimentos,

necessidades e interesses contingentes, os eclesiásticos reunidos pelo Imperador

em Nicéia – como os redatores da Torah e dos Evangelhos fizeram antes deles –

recolheram uma tradição que lhes é anterior e a explicitaram, sintetizando-na em

uma fórmula que tem a precisa eficácia de marcar quem está dentro e quem está

fora da comunidade dos fiéis. É evidente que se lidava aí com uma questão

eclesial mais relevante do que antes; Edward Gibbon observou isso já no século

XVIII no seu Declínio e queda do Império Romano, fazendo-o, aliás, com

bastante precisão: “(...) O cisma dos donatistas se confinou à África; [enquanto]

os males mais difusos da controversa trinitária penetraram sucessivamente todas

as partes do mundo cristão. Aquele era uma disputa acidental, ocasionada por

abuso de liberdade; esta era um elevado e misterioso debate originado do

desmando da filosofia.”533 Para a grande tristeza dos redatores de jornais, revistas

e livros sensacionalistas, entretanto, a maior parte dos indícios e comentadores

                                                            531 G. SUFFERT. Op. cit. pp. 73-74. 532 Darrell L. BOCK. Quebrando o Código Da Vinci : Respostas às perguntas que todos estão fazendo. (Trad. Eduardo Rado). Osasco: Novo Século, 2004. pp. 112-113. 533 E. GIBBON. Op. cit. pp. 342-343.

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apontam como quase certo que, ao menos em princípio, de fato “Constantino não

estava preocupado com a verdade doutrinária.”534

                                                            534 P. JOHNSON. Op. cit. p. 107.

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II.

“Sobretudo, foi graças à crise ariana que a Igreja fixou o preciso conteúdo da fé. De agora em diante, está terminado o tempo das confusões. Há algo de fascinante em reler ou recitar esse símbolo dos apóstolos que o Credo passou a ser para todos os povos cristãos: vem das profundezas de nossa História; em 17 séculos, permaneceu intacto, e é em torno desse texto que a Igreja, como sociedade e como mistério, se constrói.”

GEORGES SUFFERT, Tu és Pedro

“(...) uma confusão e justaposição impenetrável do fervor teológico-dogmático, com intrigas na corte do imperador, de revoltas de monges e massas subversivas, ações e contra-ações de todo tipo, fizeram do Concílio de Nicéia um teste para provar a impossibilidade de separar, na realidade histórica, motivos e objetivos religiosos e políticos como dois âmbitos determináveis substancialmente.”

CARL SCHMITT, Teologia Política (II, 6.5)

Segundo uma interpretação mais liberal da história dos dogmas cristãos, o

grupo dos crentes que viria a ter a sua fé identificada como a Ortodoxa teria

formulado sua teologia trinitária hegemonicamente em termos subordinacionistas,

ou seja, considerando o Pai como Deus por excelência, e subordinando ao Criador

o Filho-Verbo e o Espírito Santo, tidos ao menos no início como realidades

inferiores na essência, na potência e na divindade. Fundamentando esta tendência

estariam as afirmações evangélicas nas quais o próprio Jesus Cristo nota sua

inferioridade em relação ao Pai.535 De modo progressivo, esta linguagem triádica,

que foi quando muito transcrição e paráfrase de algumas passagens

representativas de um conjunto de narrativas evangélicas que certa tradição

eclesiástica assumiu como canônicos, teria sido substituída por uma outra de

cunho metafísico-trinitária, onde se garantia a transcendência e a imutabilidade do

Pai considerando-se o Logos como um demiurgo, mediador entre Deus e o

mundo, e o Pneuma (Espírito) como energia vital da Criação, inspirador das

Escrituras divinas e fortalecedor-esclarecedor dos fiéis. Para Adolf von Harnack,

estaria nesta compreensão se consumando o processo de helenização da crença

cristã, ou seja, de sua incorporação de certos instrumentos lógicos e topoi

                                                            535 Cf. p. ex. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Coordenação editorial de José Bortolini; Tradução de Euclides Martins Balanci et al. São Paulo: Paulus, 2002 (4ª impressão: 2006). João 14, 28. p. 1881. Marcos 10, 17-18 e 13, 32. ps. 1774 e 1780.

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discursivos da filosofia (neo) platônica e pitagórica para a construção de uma

narrativa auto-reflexiva. Isso teria se dado pela ação no cristianismo dos primeiros

três séculos de influências extrínsecas ao monoteísmo estrito da primeira

comunidade judeu-cristã, tais como a piedade popular oriunda de contextos

politeístas, as crenças paleo-gnósticas e gnósticas e as antropologias e disciplinas

de vida características das várias escolas filosóficas helenísticas com as quais

estava em constante discussão.536

Em conflituoso diálogo com este “desvio” potencialmente tristeizante,

gestado pelos pensadores cristãos situados na órbita de influência da Sé de

Alexandria, é que se teria desenvolvido, nas comunidades eclesiais da Ásia, uma

linguagem teológica monarquianista, sob forte influência do ebionitismo judeu-

cristão. Este monarquianismo, que em suas últimas conseqüências lógicas levaria

a uma teologia dual, desdobrou-se, por exemplo, tanto no adocianismo de Teódoto

– para quem Jesus fora um homem, nascido de Virgem por vontade do Criador,

que viveu como os outros homens até que o Espírito se uniu a ele no momento de

seu batismo para fazê-lo Cristo, mais venerável das criaturas, mas nunca

verdadeiro Deus – quanto no modalismo de Noeto – para quem o Pai, o Filho e o

Espírito Santo eram apenas três nomes ou máscaras do mesmo Deus, sendo que

destas identidades apenas o Pai preexiste, encarnando-se no Filho e padecendo na

cruz (patripassianismo). Na dupla contraposição aos modelos subordinacionistas e

monarquianistas é que se teria originado uma formulação trinitária de meio-termo

– como, por exemplo, a de Irineu de Lyon, que frisou a unidade divina frente às

idéias da primeira corrente aqui referida, e insistiu na sua distinção real em

pessoas frente à segunda –, que passo a passo foi tornando-se hegemônica e sendo

aceita como ortodoxa.537

Tal explicação da problemática considerada, entretanto, não leva em conta

os mais antigos fundamentos do trinitarismo considerado ortodoxo pelo Concílio

                                                            536 Cf. Fêlix Alexandre PASTOR. “Semântica do Mistério (Gênesis e tipologia da linguagem da ortodoxia trinitária) .” In: Carlos PALÁCIO (org.). Cristianismo e História. São Paulo: Loyola, 1982. (Col. “Fé e Realidade”, n. 10). pp. 173-175 e notas correspondentes. Manlio SIMONETTI. “Subordinacionismo”. In: VV. AA. Op. cit. p. 1315. 537 Cf. F. A. PASTOR. Op. cit. pp. 175-179 e notas correspondentes. Manlio SIMONETTI. “Monarquianos”. In: VV. AA. Op. cit. p. 955. Id. “Adocianismo”. In: Id. Op. cit. p. 43. Ibid. “Patripassianos”. In: Ibid. Op. cit. p. 1102. Basilio STUDER. “Trindade”. In: Ibid. Op. cit. pp. 1386-1390.

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de Nicéia. Segundo os que sustentam a venerável antiguidade e primazia deste,

tais bases podem ser encontrados já na mensagem apostólica do kerygma, nas

profissões de fé neotestamentárias que associam ao Pai as missões do Filho e do

Espírito Santo e nas fórmulas triádicas sobre a salvação do homem e a natureza de

Deus, abundantemente utilizadas na catequese e nas liturgias de considerável

número das comunidades cristãs de primeira hora, em anáforas eucarísticas, ritos

batismais, hinos, exorcismos e orações de bênção, cartas pastorais, atos

penitenciais e mesmo em inscrições mortuárias e epitáfios, especialmente os

encontrados nos sepulcros dos mártires.538

De qualquer forma, desconsiderando aqui a questão de exatamente onde se

situam as raízes da linguagem trinitária ortodoxa, a crise que levou à sua

definitiva formulação foi a que se seguiu às proposições racionalistas do

arianismo. Como um postulado teológico para salvaguardar em definitivo a

natureza transcendental de Deus, Ário afirmou uma radical subordinação do

Verbo em relação ao Pai, considerado o único unigênito, princípio eterno e

imutável; o Filho, por sua vez, seria criatura, ainda que oriunda da eternidade e

instrumento de Deus para a criação de todas as coisas visíveis e invisíveis, a mais

importante e abençoada entre todas, essencialmente diverso do Criador, e divino

não por geração, mas por participação na grandeza deste. Estas proposições

tornaram-se bastante difundidas, mas acabaram sendo rejeitadas como heréticas

(i.e., errôneas) pelo consenso niceno em seus anátemas e símbolo de fé. Os padres

conciliares terminaram por distinguir a natureza divina (ousia) das suas três

concretas formas de subsistência (hypostaseis), chegando à definição mia ousia

treis hipostaseis (em latim una substantia in tribus personis), na qual Deus era

caracterizado como simultaneamente uno e trino, dotado de uma única substância

e três pessoas circunscritas por caracterizações distintivas (o Pai inasciado, o Filho

encarnado e o Espírito Santo de divina procedência). Esta formulação nicena,

composta, composta pelos teólogos cristãos através da apropriação de

instrumentos semânticos oriundos tanto da linguagem técnica do judaísmo

helenizado quanto da filosofia religiosa genuinamente greco-latina, afirmou a

consubstancialidade do Pai e do Filho (homousia), como expressão da unidade na

distinção constitutiva do Deus cristão, em contraposição tanto à distinção sem                                                             538 Cf. F. A. PASTOR. Op. cit. p. cit. B. STUDER. Op. cit. pp. 1386-1387.

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unidade (heteroousia) apregoada pelos arianos, quanto à unidade sem distinção

real (tautousia) proclamada pelas diversas matizes de teólogos modalistas.539

Busquemos situar, pois, este complexo processo que mencionamos acima

apenas do ponto de vista da história das idéias na carnadura concreta das tramas

de poder político-religioso que antecederam, impuseram o tom e sucederam

imediatamente a grande reunião convocada por Constantino naquela cidade

próxima à sua própria residência. Antes do mais, deve-se ter em mente que há

uma pré-história não-teológica do Concílio de Nicéia, que é a das tentativas

prévias e prioritariamente intra-eclesiais de estabelecer algum tipo de

concordância, algum acordo de cavalheiros entre Ário – sacerdote que afirmava

que o Filho foi criado pelo Pai e deriva deste a sua divindade – e seu bispo e

primeiro detrator Alexandre de Alexandria – que cria que o Filho é coeterno ao

Pai e sua arché é ontológica, e já havia excomungado o articulado presbítero em

um sínodo que reuniu uma centena de bispos oriundos da Líbia e das margens do

Nilo. Registrou Edward Gibbon que Ário contava, “entre seus seguidores

imediatos, dois bispos do Egito, sete presbíteros, doze diáconos e (o que pode

parecer quase inacreditável) setecentas virgens”540; expulso de sua pátria, o

clérigo de idéias polêmicas encontrou mais defensores no Oriente, dentre os quais

o mais articulado era Eusébio de Nicomédia, “que adquirira a reputação de

estadista sem perder a de santo.”541 Levando estas conversações preliminares a

lugar nenhum, a violenta disputa das “duas orientações teológicas (políticas,

portanto) antagônicas”542 ganhava fôlego e alastrava-se.

Ósio de Córdoba, que já como bispo desta cidade havia tomado parte no

Concílio de Elvira no ano 300, e que antes de abril de 313 muito possivelmente já

fazia parte do corpo de conselheiros de Constantino Augusto, por ordem deste

mesmo imperador tentou mediar algum tipo de compromisso entre as partes em

litígio, não obtendo, entretanto, sucesso neste intento. Sob a presidência deste

prelado, já feita a convocação da reunião em Ancira, um considerável número de

                                                            539 Cf. F. A. PASTOR. Op. cit. pp. 185-186 e notas correspondentes. 540 E. GIBBON. Op. cit. p. 347. 541 Id. Op. cit. p. cit. 542 Marilia Pacheco FIORILLO. O Deus exilado : Breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 129.

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bispos orientais – provenientes da Palestina, Síria e Ásia Menor (a ata sinodal que

se conservou possui 59 signatários, a imensa maioria de origem grega e siríaca) –,

realizou entre o fim de 324 e o começo de 325 uma reunião para lidar com a

inefável querela que se impunha. Ao que parece, a finalidade desta era compor um

lobby, uma bancada regional forte o suficiente para influir de maneira eficaz no

interior da assembléia reunida dos chefes dos cristãos, tornando-a tão mais breve

quanto concordante com suas próprias opiniões. Neste encontro confirmou-se a

condenação de Alexandre contra Ário, publicou-se uma fórmula de fé antiariana e

suspendeu-se temporariamente de sua comunhão os bispos que se recusaram a

assiná-la: Teódoto de Laodicéia e Narciso de Nerônias, pró-arianos de primeira

hora, e Eusébio de Cesaréia, que jamais compartilhou do subordinacionismo

radical de Ário, mas, explicitamente para estabelecer a concórdia entre as partes

beligerantes, sustentou o quanto pode uma posição intermediária entre a deste e a

de Alexandre.543

Em 20 de maio de 325 realizou-se a primeira sessão do Concílio de Nicéia,

no dia seguinte do encerramento da grande festa que celebrou em Nicomédia a

vitória do Imperador do Ocidente contra Licínio. Já uma ou duas semanas antes

estavam presentes nas redondezas todos os padres conciliares, dentre os quais

Ário e Alexandre: podemos apenas imaginar as obscuras controvérsias, correntes

de sussurros e combates noturnos que se desenrolaram naqueles longos dias de

espera passados na Bitínia. O próprio Constantino presidiu a grande assembléia

reunida, sentado em um trono de ouro, de onde se reconheceu incapaz de lidar

com tão complexas questões e, porque ainda não era batizado, recusou-se a

participar dos debates e mesmo de pôr-se diante dos bispos. Alguns dos

participantes haviam vivido o inferno da grande perseguição ordenada por

Diocleciano e sustentada por alguns de seus sucessores imediatos, e não poucos

destes traziam na carne as marcas causadas pelos torturadores romanos: mal

podiam crer no singular espetáculo de um Imperador reverentemente postado no

centro da Igreja reunida, a ensimesmar-se em suas problemáticas mais intestinas.

O bispo de Roma, Silvestre, não compareceu pessoalmente, fazendo-se

representar apenas por dois de seus legados, presbíteros de sua assistência: é                                                             543 Cf. Manlio SIMONETTI. “Ario – Arianismo”. In: VV. Op. cit. pp. 149-150. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 635, n. 170. Manlio SIMONETTI et al. “Antioquia da Síria”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 112-113. M. FORLIN PATRUCCO e Ch. KANNENGIESSER. Op. cit. p. cit.

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anacrônico falar em cesaropapismo para descrever a atitude deste imperador que

convoca e preside o primeiro Concílio Ecumênico – por meio de seu delegado

Ósio de Córdoba na maior parte do tempo, mas também pessoalmente em

algumas ocasiões – simplesmente porque não há neste período nenhum indício de

que haja qualquer fenômeno que possa vir a ser caracterizado como papismo, este

construto tão medieval que, desenvolvendo-se no segundo milênio, alcançará o

seu ápice apenas na proclamação do Dogma da Infabilidade Papal no Concílio do

Vaticano I (1869-1870). A grande verdade é que o Ocidente – que, grosso modo,

já havia “adotado a formulação de Tertuliano de um só Deus subsistindo em três

pessoas”544 – estava sub-representado nesta primeira reunião considerada como

ecumênica pela tradição eclesiástica: há apenas quatro bispos, incluindo-se Ósio.

Sem dúvidas muitos foram os que hesitaram diante da duração e dos eventuais

perigos da viagem: mesmo com a especial anuência, proteção e providência do

poder imperial a viagem da Bretanha ou de Trier até Nicéia deveria parecer

realmente impressionante àquela época. Dois bispos de fora do Império também

participaram da reunião: Jacó de Nísibis e um outro identificado apenas como

João, bispo da Índia e da Pérsia – o que é uma jurisdição vasta e genérica demais

para qualquer epíscopo de qualquer tempo. Pouco mais de três centenas de

prelados se fizeram presentes.545

Falaram primeiro os representantes de Ário, depois de um breve discurso

de boas-vindas do imperador, proferido em latim e transcrito em tradução grega

por Eusébio de Cesaréia em sua Vida de Constantino. Propôs-se uma fórmula de

fé que foi lida por Eusébio de Nicomédia, mas esta foi sumamente rejeitada. O

bispo de Cesaréia apresentou também a fórmula de fé de sua diocese, a título de

declaração pessoal. Tentava assim livrar-se da suspeita de heresia que sobre ele

pesava com força desde a censura que havia recebido no sínodo de Antioquia, mas

também, “(...) Percebendo talvez o sentido da reunião”546, buscava com

sinceridade ajudar os padres conciliares a encontrarem uma definição de tipo

“guarda-chuva”, que fosse conveniente a todos e encerasse com o máximo de

rapidez possível o litígio; conseguiu apenas ser restituído à plena comunhão com                                                             544 D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. 226. 545 Cf. G. SUFFERT. Op. cit. p. 74. M. FORLIN PATRUCCO e Ch. KANNENGIESSER. Op. cit. p. cit. 546 D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. cit.

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seus pares. Representava ele a imensa maioria dos indecisos, daqueles que

“gostariam de reconciliar todo mundo.”547 Manifestou-se a seguir, Marcelo de

Ancira, antiariano feroz que se aferrava ao princípio de uma monarquia divina,

mas ele não logrou atrair a atenção dos sinodais para as suas idéias teológicas.

Duas décadas e meia depois, o teimoso Atanásio de Alexandria narraria na carta

De decretis Nicænæ Synodi que as discussões travadas em Nicéia foram longas,

laboriosas e não raro quase chegaram às vias de fato.548 Incitados por singular

odium theologicum, os partidos beligerantes não demoraram a acusar problemas

disciplinares e falhas de caráter em seus opositores, e começou a vigorar entre eles

uma sinistra Lei de Goebbels, estabelecendo que quanto maior a difamação, maior

a mentira, e que verdadeiro era o que estava eficazmente a serviço do que era

correto.549 À título de ilustração disto, recorramos a dois exemplos. Em primeiro

lugar, um termo com que foram apelidados ofensivamente por Eustácio de

Antioquia (e depois por Atanásio) os seguidores de Ário: ariomanitas. Tal

vocábulo era um neologismo baseado na afinidade entre os nomes Ário e Ares,

deus greco-latino da guerra e da fúria homicida, contíguo a um trocadilho que

transformava areimanés (ou seja, “tomado pelo furor de Ares”) em areiomanítes

(“tomados pelo furor de Ário”).550 Em segundo, uma carta redigida por Alexandre

de Alexandria no princípio de 324 sobre Ário e os seus partidários, texto que

ainda estava a circular entre os bispos durante as tempestuosas conversações em

Nicéia e talvez tenha sido publicamente apresentado neste grande sínodo:

“(...) Movidos pela avareza e ambição, esses tratantes estão constantemente conspirando para apropriar-se das dioceses mais ricas (...) são enlouquecidos pelo diabo que neles age (...) enganadores habilidosos (...) planejaram uma conspiração (...) propósitos vis (...) equiparam bandos de ladrões (...) organizaram uma quadrilha para combater Cristo (...) incitaram desordeiros contra nós (...) persuadem as pessoas a perseguirem-nos (...) suas mulheres imorais (...) as seguidores mais jovens correm pelas ruas em trajes indecentes e desacreditam o cristianismo (...).”551

                                                            547 G. SUFFERT. Op. cit. p. cit. 548 Cf. M. FORLIN PATRUCCO e Ch. KANNENGIESSER. Op. cit. p. cit. G. SUFFERT. Op. cit. p. cit. Charles. KANNENGIESSER. “Marcelo de Ancira”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 879-880. 549 Justamente o quê é o correto é que, entretanto, era problemática em questão. 550 Cf. Manlio SIMONETTI. “Ariomanitas”. In: Id. Op. cit. p. 153. 551 Citado em: P. JOHNSON. Op. cit. p. 67.

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Não se sabe bem por que composição de forças, a grande maioria dos

reunidos tornou-se pouco a pouco opositora das proposições arianas. Ao que

parece, cerraram fileiras triteístas e monarquianistas moderados, dispostos com

todas as suas forças a obterem uma condenação de Ário e suas doutrinas. O

presbítero alexandrino tentou se defender e não conseguiu; prudentemente evocou

as virtudes da humildade, caridade e moderação cristãs, “que, na fúria das

dissensões civis e religiosas, raramente são praticadas ou sequer louvadas, a não

ser pela parte mais fraca.”552 Seus defensores incitaram-no a fazerem concessões

as mais liberais, propostas de tal modo que satisfizessem os adversários sem

renunciar à integridade de seus próprios princípios, e repudiaram terminantemente

o uso de quaisquer termos ou definições que não pudessem ser explicitamente

localizados nas Sagradas Escrituras. A facção constituída por seus opositores,

numerosos e bem-organizados, firmou posição e preparou cuidadosamente sua

ofensiva: “recebeu todas as propostas deles com altaneira suspicácia e

ansiosamente as esmiuçou em busca de algum sinal irreconciliável de

discriminação cuja rejeição lograsse envolver os arianos no pecado e nas

conseqüências da heresia.”553

Com a fadiga permeando o ambiente e se tornando quase palpável, propõe-

se a elaboração e a votação do texto de uma profissão de fé. A estrutura do

“resumo da Fé” lido por Eusébio de Cesaréia e as formas tradicionais do símbolo

antiariano estabelecido nos sínodos de Alexandria e Antioquia foram retomadas e

mais bem determinadas por sucessivos acréscimos, até que se inserisse nele o

atributo homoousios (consubstancial) para qualificar a unidade de essência entre

Pai e Filho.554 Não se sabe exatamente quem teve a iniciativa de propor o uso de

                                                            552 E. GIBBON. Op. cit. p. 348. 553 Id. Op. cit. p. cit. 554 Jacques Liébaert registrou que a confissão oferecida por Eusébio de Cesaréia aos padres conciliares era: “Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, e em um só Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus, Deus nascido de Deus, luz nascida da luz, vida nascida da vida. Filho único, unigênito de toda criatura, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, por quem tudo foi feito. Por nossa salvação Ele se encarnou e habitou entre nós. Sofreu a paixão, ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao Pai e voltará na sua glória para julgar os vivos e os mortos. Cremos também em um só Espírito Santo.” A profissão de fé nicena, por sua vez, ficou: “Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, e em um só Senhor Jesus Cristo, Filho único gerado pelo Pai, isto é, da substância do Pai, Deus nascido de Deus, luz nascida da luz, Deus verdadeiro nascido de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai, por quem tudo foi feito no céu e na terra. Por nós, homens, e por nossa salvação, ele desceu, Ele se fez carne e se fez homem. Sofreu a paixão, ressuscitou ao

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tal vocábulo, palavra que não consta de nenhuma parte da Bíblia Cristã e que,

mesmo retomada em sentido positivo nos debates que precederam imediatamente

o concílio, ainda era assinalada com uma significativa restrição mental.555 Fonte

na posteridade de inúmeros problemas doutrinais mesmo para aqueles que

condenavam Ário, a dita palavra serviu para unir as várias matizes de antiarianos

presentes em Nicéia:

                                                                                                                                                                   terceiro dia, subiu ao céu, de onde voltará para julgar os vivos e os mortos. É no Espírito Santo.” As fórmulas destacados em itálico são as que foram introduzidas com o específico fim de refutar as proposições de Ário. Tal profissão de fé era ainda blindada com a seguinte declaração: “Quanto aos que dizem: houve um tempo em que ele não era, ou: ele não era antes de ser gerado, ou então: Ele saiu do nada, ou que o Filho de Deus é de outra substância ou essência, ou que ele foi criado ou que não é imutável, mas sujeito à mudança, a Igreja os anatematiza.” Todas estas citações foram, como dito, extraídas de: Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). p. 141. Cabe registrar ainda que um dos pouquíssimos documentos autênticos que nos restam de Eusébio de Cesaréia sobre o Concílio de Nicéia é uma carta que este prelado teve de escrever aos seus diocesanos desde a reunião justificando porque subscreveu um credo diferente do de sua comunidade, modificado pela intervenção de bispos que sobre ela não tinham nenhum tipo de jurisdição. Nesta importante correspondência, indício da verdadeira paixão teológica que animava os cristãos orientais de então, Eusébio quase certamente supervalorizou o papel de sua proposição, além de ter afirmado que somente depois de muita resistência sua é que se pôde fazer nela algumas pequenas alterações que afastavam as mais radicais proposições de Ário, coisa concedida unicamente para que os padres conciliares não corressem o perigo de enveredar por proposições de cunho modalista. Trata-se de circunstância que não é atestada em nenhuma outra fonte. Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 29*. Para uma avaliação muito completa e autorizada acerca da “verdadeira origem”, significado histórico-teológico e uso do Credo de Nicéia, ver: J. N. D. KELLY. Primitivos credos cristianos. (Trad. Severiano T. Tovar). Salamanca: Secretariado Trinitario, 1980. pp. 247-313. 555 A história do termo homoousios pode ser definida no mínimo como confusa; de modo geral, serve bem para ilustrar a afirmação de Edward Gibbon de que “(...) Os mais doutos dos pais da Igreja, por uma condescendência assaz estranha, imprudentemente admitiram os sofismas dos gnósticos.” (Op. cit. p. 243). Já familiar às especulações religiosas dos platônicos, foi empregado no seu sentido mais estrito ( : “igual, o mesmo”; : “essência, substância”) por alguns grupos gnósticos, especialmente pelos valentinianos, para expressar a noção de que algo no espírito homem participa do divino, ou seja, que sua alma é consubstancial com Deus – da mesma forma que seu entendimento (psiqué) seria consubstancial com o Demiurgo, e sua matéria com o diabo. A primeira segura atestação do uso de seu uso para expressar uma noção acerca da Trindade consta na obra de Dionísio de Alexandria, que reconheceu a origem não-escriturística do termo e, no entanto, declarou-a válida de ser aceita no sentido genérico de “do mesmo gênero, do mesmo tipo”. Há uma notícia não muito segura de que em um sínodo reunido em Antioquia no ano de 268 os adversários de Paulo de Samósata o condenaram não apenas por seu comportamento tido como não aprovável, mas também por proclamar o Logos homoousios com o Pai. Seus adeptos, que constituíram uma seita à parte ainda viva por ocasião do Concílio de Nicéia, eram numericamente pouco significativos, mas uma incômoda lembrança do uso passado deste termo que se tornaria a pedra-de-toque da ortodoxia nicena. Existe também um informe sobre o seu uso tanto entre moderados origenistas da Pentápole, quanto entre os monarquianos asiáticos – cujo líder era Eustácio de Antioquia e o mais exaltado propagandista Marcelo de Ancira –, empenhados em negar à doutrina trinitária das três hipóstases, que tendiam a distinguir em Deus também três ousia (a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo). Cabe ressaltar que sempre tratou em meios cristãos ortodoxos de termo muito ambíguo, e não apenas por que não se tinha exatamente uma definição do que exatamente era ortodoxo (ou não), dado a polissemia de ousia, que podia apresentar significações demasiado materialistas e designar tanto uma substância genérica quanto uma caracterização individual. Cf. Manlio SIMONETTI. “Homoousios”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 695-696. Id. “Paulo de Samósata”. In: Id. Op. cit. pp. 1116-1117.

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“(...) O interesse da causa comum os levava a unir suas hostes e a esconder suas diferenças; a mútua animosidade foi abrandada pelos salutares ditames da tolerância e suas disputas suspensas pelo uso do misterioso Homoousiano, que cada um dos partidos tinha a liberdade de interpretar em conformidade com seus princípios privativos. (...) Dentro destes limites, permitia-se que o quase invisível e vacilante pêndulo da ortodoxia balouçasse com segurança. De ambos os lados, para além desse terreno consagrado, emboscavam-se os hereges e demônios para surpreender e devorar o desditoso andarilho. (...) A autoridade de um conselho ecumênico, a que os próprios arianos foram obrigados a submeter-se inscrevia nas bandeiras do partido ortodoxo as letras misteriosas da palavra ‘homoousiano’, a qual contribuía (...) para manter e perpetuar a unidade da fé, ou pelo menos da linguagem. Os consubstancialistas, que por seu triunfo mereceram e obtiveram o título de católicos [i.e., universais], exaltavam na simplicidade e firmeza de seu próprio credo e insultavam as repetidas variações de seus adversários, destituídos de qualquer norma certa de fé.”556

Têm-se informes de que alguns padres conciliares intuíram logo os

problemas que podia gerar – e gerou – a inclusão de tal expressão na basilar

fórmula de fé do cristianismo, mas o cansaço e a ansiedade imperial pesaram

fortemente para que rápido se chegasse a um texto aceitável. O concílio precisava

se encerrar antes de 25 de julho do mesmo ano: nesse dia, Constantino festejaria o

20º aniversário de sua elevação a César, e o Imperador demonstrava vividamente

que não iria tolerar que então continuassem a existir divisões entre os cristãos.

Publicamente foi lida uma declaração de Eusébio de Nicomédia, patrono dos

arianos, onde ele confessava de forma quase ingênua que a admissão do

homoousios para expressar o mistério da Trindade era incompatível com os

princípios de seu sistema filosófico. Este escrito foi ignominiosamente rasgado

pelos exaltados padres consubstancialistas. Eusébio de Cesaréia, “o mais douto

dos prelados cristãos”557, mostrava-se disposto a ceder, e seu exemplo conduzia

muitos dos relutantes a fazerem o mesmo. Ao final dos debates, somente o

presbítero Ário e dois bispos amigos seus, Segundo de Ptolemaida e Teonas de

Marmárica, recusaram-se a subscrever o credo niceno. Os dois bispos foram

depostos de suas Sés, e todos os três clérigos foram exiladas para a Ilíria; apenas

três meses depois seriam enviados para as mais ermas regiões da Gália Teógnis de

                                                            556 E. GIBBON. Op. cit. pp. 349-350. O grifo é do autor. 557 Id. Op. cit. p. 347.

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Nicéia e Eusébio de Nicomédia, que ocupava a cátedra episcopal da capital

oriental de Constantino na época.558

Além de aplanar a questão ariana, o Concílio de Nicéia também elaborou

alguns importantes decretos disciplinares, como o relativo à celebração da Páscoa,

fixada segundo o uso romano e alexandrino no primeiro domingo imediatamente

posterior ao aparecimento da lua cheia logo depois do equinócio da primavera

(obviamente no Hemisfério Norte). O restante das definições, em número de

vinte, versavam sobre as estruturas hierárquicas da Igreja e os seus fundamentos

(cânones 4, 5, 6, 7, 15 e 16), sobre a disciplina do clero (cânones 1, 2, 3, 9, 10 e

17), sobre a penitência pública (cânones 11, 12, 13 e 14), sobre a readmissão dos

cismáticos e dos hereges (cânon 19) e sobre a liturgia (cânones 18 e 20). Nestas,

afirmou-se o conjunto do Novo Testamento que até a Contemporaneidade compõe

a Bíblia Cristã, estabeleceram-se regras uniformes para a eleição dos bispos e o

exercício de sua autoridade, e fez-se coincidir as fronteiras das jurisdições

episcopais com as fronteiras administrativas civis e militares do Império. Com um

faustoso banquete e uma magnânima oferta de presente aos prelados reunidos,

Constantino encerrou pessoalmente o concílio559; para o autor da História

Eclesiástica, este festim suntuoso “(...) Era sem dúvida uma imagem do reino de

Jesus Cristo e parecia que estávamos sonhando.”560 Uma anônima Vitæ

Constantinii, muito distinta da atribuída à Eusébio de Cesaréia e composta em um

latim burocrático possivelmente na cidade de Constantinopla na segunda metade

do século IX, preservada hoje em muitas versões que divergem ligeiramente umas

das outras – dispomos de uma do século XI, outra do XII e mais de quatro

dezenas dos séculos XIV e XV – afirma que o documento final desta solene

reunião, após a expulsão de Ário e daqueles que permaneciam na perfídia de o

apoiarem, recebeu precisamente trezentas e dezesseis assinaturas, uma vez que

dos trezentos e dezoito padres conciliares que teriam apoiado a condenação do

arianismo e a formulação do símbolo trinitário que informava que o Filho de Deus

                                                            558 Cf. G. SUFFERT. Op. cit. p. 95. E. GIBBON. Op. cit. p. cit. M. FORLIN PATRUCCO e Ch. KANNENGIESSER. Op. cit. p. cit. 559 Cf. M. FORLIN PATRUCCO e Ch. KANNENGIESSER. Op. cit. p. cit. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. 226. 560 Citado em: Henri Irenée MARROU. “A Igreja no seio de uma civilização helenística e romana”. In: CONCILIUM : Revista internacional de teologia. Ed. em língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, v. 67, n. 7. 1971. p. 849.

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era co-eterno, consubstancial e indivisível do Pai, todos capazes de operar

prodígios e milagres, dois – de nomes Crisanto e Musônio – haviam falecido de

morte natural antes do término de sua redação. Numa homenagem póstuma a estes

homens que gastaram a sua última velhice refletindo sobre tão relevantes

questões, o rolo de papiro que continha o Credo, antes de ser apresentado ao

Imperador, foi selado e colocado durante a noite ao lado do túmulo dos dois

santos. Ao amanhecer, quando o rolo foi desenrolado, constatou-se em seu verso a

presença de uma mensagem da parte dos dois bispos falecidos e suas assinaturas

junto das dos demais signatários.561

O homoousios niceno, entretanto, não aplacou os ânimos: estabelecido por

um consenso antiariano que se mostrou demasiado efêmero, desagradou tanto aos

partidários de Ário quanto a seus opositores demasiado moderados ou demasiado

radicais, que parecem ter se desagradado da fórmula de fé que subscreveram ainda

quando percorriam o caminho de volta para suas Sés. Depois de terminado o

Concílio de Nicéia, também Constantino começou a ter dúvidas sérias sobre a

correção e prudência da posição que havia tomado subscrevendo sem reservas a

definição que afirmava que o divino Filho era homoousios do divino Pai. Mais do

que isso: quase imediatamente o pêndulo político-teológico do Oriente greco-

latino-cristão oscilou daquela inflexível posição que mais tarde seria personificada

por Atanásio de Alexandria para um arianismo moderado. Dentro de pouco mais

de um ano, a muitos dos que foram condenados e mandados para o exílio,

incluindo Eusébio de Nicomédia, personagem a quem era afeiçoado o próprio

Imperador, acenou-se com a possibilidade de negociarem suas posições teológicas

mais controversas em troca do retorno a seus postos e funções eclesiásticas.

Simultaneamente, por meio de emissários e cartas expressas, Constantino

começou a pressionar todos os que haviam subscrito a profissão de fé de 325 para

que fosse arranjada uma maneira de se restabelecer em plena comunhão os que se

recusaram a aceitá-la, e ordenou que se buscasse uma maneira de reintegrar na

Igreja o próprio Ário. Como nenhuma posição pode ser afirmada apenas pela

força em matéria de religião – pensemos na obstinação dos donatistas que acima

mencionamos –, é evidente que Constantino possuía uma ampla base de apoio                                                             561 Cf. Id. Op. cit. p. cit. Celso TAVEIRA. O modelo político da autocracia bizantina : Fundamentos Ideológicos e Significado Histórico. 2002. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo (BR). ps. 161 e 164.

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para alternar de tal maneira suas preferências. O consenso de que era proveitoso e

bom que se chegasse a algum tipo de compromisso com a posição ariana, de fato,

era bastante forte entre as principais igrejas do Oriente, e contava entre seus mais

destacados defensores com o erudito Eusébio de Cesaréia, agora um elemento

bem treinado na fina arte da intriga de corte e ligado à Augusta Pessoa por laços

que bem podem ter sido de sincera amizade e admiração mútua. Pela intervenção

do bispo palestino, de Constância, irmã de Constantino, e talvez de outros

membros da família imperial com os quais ainda mantinha regular

correspondência, em 328 Eusébio de Nicomédia foi chamado do exílio e

reabilitado, sendo seguido pouco depois por Teógnis.562

A esta altura dos acontecimentos Constantino já estava mais do que

convencido de que a paz e a unidade duradoura entre os cristãos só poderia ser

obtida pela hegemonia de uma concentração de elementos moderados que, como

tinham sido antes avessos ao radicalismo dos arianos, agora rejeitavam a

exaltação de seus adversários mais contumazes. O que mais desejava era que a

Igreja fosse universalista e inclusiva o mais possível. Desagradavam-lhe homens

como Atanásio de Alexandria, que havia participado do Concílio de Nicéia como

diácono de Alexandre e foi feito sucessor deste em 328, um personagem

“violento, que chicoteava regularmente os clérigos novatos e aprisionava ou

expulsava bispos”563, e – do ponto de vista imperial, pior do que tudo isto –

inflexível, que se recusava a fazer qualquer concessão em matéria de fé e

disciplina, não à toa comparado por Gregório Nazienzo em um panegírico a uma

coluna de pedra.564 No ano em que este foi elevado ao episcopado, aliás,

Constantino remeteu-lhe uma carta, que Atanásio mesmo atestava ter sido

redigida de próprio punho pelo imperador, na qual alertava de forma ameaçadora:

“(...) como você conhece meus desejos, ore para admitir livremente todos que desejarem ingressar na igreja. Caso chegue aos meus ouvidos a notícia de que

                                                            562 Cf. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. pp. 226-227. Cf. Manlio SIMONETTI. “Ario – Arianismo”. In: VV. AA. Op. cit. p. 150. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 31* e nota correspondente, n. 117. 563 P. JOHNSON. Op. cit. p. 107. 564 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 163.

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você impediu alguém de tornar-se membro, imediatamente enviarei um oficial para depô-lo e enviá-lo para o exílio.”565

Definitivamente não era o tipo de Igreja representado pelas proverbiais

teimosia e exaltação do bispo de Alexandria o que desejava Constantino, para

quem o cristianismo “(...) tinha de refletir o melhor do império – harmonia,

serenidade, multiplicidade na unidade.”566 Constantino pode não ter influído

significativamente no conteúdo dos debates do Concílio de Nicéia, mas não se

escusou de assumir ali e sempre um papel de mediador entre os diversos cristãos

contentores, evitando o máximo que pudesse que uma mínima divergência no

tocante a uma minúcia teológica por demais sublime e abstrusa, ou uma rixa de

outra ordem que fosse transposta para o plano dos debates eclesiásticos, se

degenerasse em um conflito inflamado por uma irredutível oposição de princípios,

e, caso isto fosse inevitável, providenciando uma solução para a problemática que

fosse o máximo honrosa e agradável a todos os envolvidos. Consta que ele insistiu

para que fosse incluído no credo niceno o homoousio, mas que o fez apenas para

precipitar o fim da desgastante reunião. Em sua Vida de Constantino, Eusébio de

Cesaréia afirma quanto à declaração final do Concílio de Nicéia que o Imperador

“aconselhou todos os presentes a concordar e a subscrever seus artigos e assentir-

lhes, com a inserção da palavra ‘consubstancial’, que, além disso, ele mesmo

interpretou.”567 Trata-se de um testemunho improvável, pois além de muito pouco

verossímil – o mais provável é que Constantino não alimentasse nenhum tipo de

simpatia pelos debates doutrinários cristãos, que em verdade não compreendia ou

podia compreender inteiramente – é contradito por trecho anterior da mesma obra

do referido autor, onde se atesta que a primeira reação de Constantino diante da

controvérsia ariana foi afirmar que tratava-se de “um ponto de polêmica (...)

sugerido pelo espírito contencioso e fomentado pelo lazer mal orientado (...) um

mero exercício intelectual” sobre uma questão que quase certamente não se

poderia definir com certeza e que, se pudesse ser estabelecida, estaria de qualquer

forma muito além do entendimento da grande maioria das pessoas.568 Interessante

                                                            565 Citado em: P. JOHNSON. Op. cit. p. cit. 566 Id. Op. cit. p. cit. 567 Citado em: Ibid. Op. cit. p. 108. 568 As citações e o argumento foram extraídos de: Ibid. Op. cit. p. cit.

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é notar que esta opinião que Eusébio de Cesaréia atribui ao Imperador no tocante

ao arianismo, ao que tudo indica, também era a sua própria. Como faz na sua

História Eclesiástica, também ao relatar esta problemática a apresentação que faz

dos acontecimentos é prenhe de indícios da rede de juízos de valor pelos quais

eles foram apreendidos pelo douto prelado. Não é nenhum acaso que tanto o bispo

de Cesaréia quanto o primeiro imperador pró-cristão dos romanos segundo o

bispo de Cesaréia usem o mesmo tom – irenista, conciliatório, urbano – para lidar

com a crise ariana, os debates nicenos e os seus descontentes. A militância de

Eusébio no pós-concílio, aliás, atesta o quanto subscrevia a postura de seu herói,

com quem afirmou ter sido “honrado com a convivência íntima e social”.569

Já no final de 325, Eusébio interveio eficazmente a favor da deposição de

Asclépio (ou Asclepas) de Gaza, um dos adversários de primeira hora de Ário,

que havia excomungado o bispo de Cesaréia no concílio antioquieno que precedeu

em alguns meses o de Nicéia. Sob a presidência do historiador – que o conduziu

“com mais paixão e menos habilidade do que seria de esperar de sua erudição e de

sua experiência”570 – e a aprovação do Imperador Constantino, no ano de 327 um

sínodo reuniu-se em Antioquia da Síria para julgar o bispo local, Eustácio,

intransigente opositor dos arianos. O motivo de sua acusação não está claro para

os estudiosos modernos, ainda que seja certo de que, óbvio signatário de Nicéia,

não tenha sido propriamente de cunho doutrinal – Manlio Simonetti especula que

possa esta ter sido referente à imoralidade ou a um suposto excesso de poder. Não

retrocedendo o cada vez mais confiante partido dos moderados nem diante de uma

verdadeira tempestade de calúnias proferidas desde Alexandria e de algumas Sés

do Ocidente mais inteiradas da questão, Eustácio foi condenado e deposto pelos

clérigos reunidos, e, ato contínuo, exilado pelo poder secular na cidade de

Trajanópolis, na Trácia. Dele os especialistas não registram mais notícia alguma.

Eliminado este incômodo clérigo de uma das mais prestigiosas sedes diocesanas

do Oriente – aquela onde os seguidores de Jesus receberam pela primeira vez o

nome de cristãos –, Eusébio de Cesaréia viu-se enredado na espinhosa questão de

determinar quem o iria suceder. Pode ser que tenha sido ele mesmo indicado de

pronto sucessor de Eustácio, honraria da qual declinou em favor de um seu amigo,

                                                            569 Citado em: Ibid. Op. cit. p. 83. 570 E. GIBBON. Op. cit. p. 363.

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Paulino de Tiro, que considerava tão mais apto quanto mais merecedor desta

honraria, e que veio a morrer menos de seis meses depois de ocupar o posto. Uma

considerável parte do povo cristão de Antioquia não estava nada satisfeito pela

deposição de Eustácio e começou a se agitar, pedindo o retorno do bispo exilado.

Há uma ou duas manifestações mais exaltadas que são de pronto reprimidas pela

mão forte do Império, e sucede a Paulino, talvez como recurso de compromisso,

um tal Eulálio, do qual sabemos muito pouco, dado que era desconhecido antes de

ser feito bispo e faleceu muito pouco depois disto. O partido que rejeitava as

decisões do sínodo presidido por Eusébio se fazia mais e mais forte, mas não só

não concordava quanto a quem seria o seu próprio candidato à cátedra como ia

contra o explícito parecer do Imperador. Este, por fim, insinuou que seria bom se

o próprio Eusébio se transferisse para esta diocese, e mesmo entre os que

apoiavam Eustácio parece haver tido certa aprovação a tal nome. O prelado

conhecido por sua assombrosa erudição e inesgotável disposição em buscar

conciliar todos com todos, já bastante famoso por sua História Eclesiástica,

hesitou. Tal eleição representava sem sombra de dúvida o maior triunfo de sua

carreira como homem de Igreja, ainda que fosse muitíssimo tensa a situação entre

os cristãos de Antioquia. Reconheceu por fim os seus limites humanos – tal

nomeação o afastaria de seus tão amados livros, o que não poderia suportar – e

declinou deste encargo e prenda, apelando ao cânon 15 do Concílio de Nicéia.

Constantino confirmou sua aceitação desta decisão em uma carta reproduzida no

famoso panegírico escrito em sua honra pelo próprio Eusébio, juntamente com

outras referentes ao assunto da aventura antioquena. Em meio ao tom

extremamente laudatório do Imperador, emerge mal disfarçado o seu significativo

desagrado pela atitude assumida pelo bispo de Cesaréia.571

Após o retorno de Eusébio de Nicomédia do exílio, sua influência cresceu

junto ao imperador, e sua retórica conciliatória e fama de santidade acabaram por

torná-lo uma verdadeira eminência parda nos círculos cortesãos. Mais militante do

que o outro Eusébio, explicitamente promoveu uma campanha que visava

desprestigiar e colocar às margens os mais conhecidos adversários de Ário,

acusando-os junto a Constantino de diversas infrações às ordens civis e                                                             571 Manlio SIMONETTI. “Eustácio de Antioquia”. In: VV. AA. Op. cit. p. 543. Id. “Asclepas de Gaza”. In: Id. Op. cit. p. 175. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. pp. 30*-31* e notas correspondentes, n. 115-126.

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eclesiásticas, mas sem recolocar de pé, entretanto, a questão doutrinal que

pessoalmente o opunha a estes prelados. Após conseguir que o piedoso Lúcio de

Adrianópolis fosse retirado de sua casa preso em cadeias em pleno meio-dia,

avançou contra Atanásio de Alexandria e Marcelo de Ancira. O primeiro,

empenhado em lidar com os melicianos – facção rigorista cujo nome derivava do

presbítero que a liderou, que tinha características comuns com os donatistas de

Cartago e que recusava terminantemente a autoridade do bispo de Alexandria –

foi vítima de um acordo entre estes e os bispos de Nicomédia e Cesaréia. Atanásio

foi acusado junto ao imperador de corrupção, traição, violências e do assassinato

do bispo meliciano Arsênio, que, no entanto, conseguiu fazer localizar escondido

em um mosteiro do Alto Egito e apresentar vivo aos seus adversários. Convocado

à Sé Titular da Palestina para ser julgado em um sínodo por este suposto

assassinato, percebeu tratar-se de uma armadilha e recusou-se a comparecer; logo

depois disto, uma comissão imperial apresentou um relatório acusando-o de ter

incitado distúrbios civis em Mareótis e, por fim, de ter ameaçado interromper os

abastecimentos de trigo do Egito para Roma. Uma nova reunião foi convocada em

335, na cidade de Tiro, e Atanásio foi obrigado a apresentar-se por ordem

expressa de Constantino. Dela participaram cerca de sessenta bispos orientais e

vários egípcios, vindo de suas dioceses para acompanharem o seu irascível

patriarca, e o prelado que conduziu os trabalhos foi Flacilo de Antioquia,

nomeado para esta diocese após a recusa de Eusébio de Cesaréia em assumir o seu

governo. Foram apresentadas as acusações tanto dos melicianos quanto da

comissão – formado por seis filoarianos – que havia acusado Atanásio diante do

Imperador; os egípcios presentes protestaram contra a parcialidade das conclusões

do debate, mas sem obter resultado. Antecipando que aquele sínodo era apenas

uma forma de legitimar uma ordem de ação já estabelecida nos bastidores por

seus inimigos, Atanásio saiu às escondidas da Fenícia e seguiu para

Constantinopla, onde pretendia advogar sua causa diretamente junto da Augusta

Pessoa. Encerrados os trabalhos em função desta escapada cinematográfica, por

vontade de Constantino, os padres conciliares transferiram-se para Jerusalém, para

ali celebrarem a festa da Dedicação da Basílica do Santo Sepulcro e também o

trigésimo ano do governo imperial daquele especial “amigo de Deus”.572

                                                            572 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 9, 2. p. 346.

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Antes do início da Divina Liturgia celebrada em torno do local onde se

acredita ter sido sepultado Jesus Cristo, foi lida uma carta do Imperador – da qual

possuímos um resumo feito pelo historiador grego Sozômeno, contemporâneo de

Sócrates Escolástico (final do século IV ou começo do V) – onde este sustentava

ter interrogado os arianos, atestado a sua ortodoxia (confirmada por uma profissão

de fé anexa), e convidava os eclesiásticos ali reunidos a readmitirem Ário na

Igreja, pedindo que lhes dessem provas de sua boa vontade e empenho em

restabelecer a paz entre os cristãos. Os bispos reunidos obedeceram e remeteram

no mesmo dia cartas às dioceses do Egito, da Líbia e da Pentápole comunicando a

sua decisão; como concreto sinal disto, Ário receberia na manhã seguinte a

comunhão das mãos do presente bispo da capital do Império. O polêmico

presbítero, entretanto, não gozou de seu triunfo, vindo a falecer, segundo algumas

notícias, ainda naquela noite. Fazendo referência a uma consideração de Edward

Gibbon sobre o assunto, Marilia Fiorillo destaca o quanto as circunstâncias

estranhas que envolveram a morte de Ário excitam a nossa desconfiança de que os

santos ortodoxos contribuíram para livrar a Igreja do mais temível de seus

inimigos com instrumentos bem mais mundanos – e eficazes – que suas preces.

Há mesmo índicos de que suspeitas foram lançadas neste sentido especialmente

pelos contemporâneos destes fatos que encaravam Ário como um homem inocente

que fora vítima da má compreensão ou da inveja; Paulo de Constantinopla,

importante prócer dos consubstancialistas, chegou a ser acusado, deposto e banido

em função destas talvez caluniosas reticências cortesãs.573

Enquanto um clérigo alexandrino singrava o Mediterrâneo para defender-

se diante de um César e outro era reabilitado por seus pares – e morria antes de

poder com eles celebrar os mistérios de sua fé –, das profundezas do deserto

egípcio o semi-lendário abade Antão teria escrito a Constantino em favor de

Atanásio, mas ou esta correspondência nunca foi entregue ou ela não teve

nenhuma eficácia. Em 30 de outubro de 335 o inflexível prelado apresentou-se

diante de um determinado imperador, disposto a confrontá-lo. Mal disfarçando

sua admiração por esta coluna da ortodoxia nicena, Gibbon escreveu que, como

“(...) a solicitação de uma audiência poderia ter sido obstada ou burlada, Atanásio                                                             573 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 158. E. GIBBON. Op. cit. p. 355. Sobre o Credo subscrito pelos bispos participantes deste concílio dito da Dedicação (do Santo Sepulcro), ver: J. N. D. KELLY. Op. cit. pp. 315-328.

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ocultou (...) sua chegada, ficou à espera do momento do retorno de Constantino de

uma vila próxima e audazmente saiu ao encontro de seu irado soberano quando

este passava a cavalo pela rua principal de Constantinopla.”574 Talvez assombrado

com aquela coragem ou atrevimento inauditos, Constantino, depois de ter cedido

ao “involuntário respeito”575, ouviu com “atenção imparcial e até mesmo

benevolente as [suas] queixas”576, mas por fim confirmou as suas sucessivas

condenações, pô-lo a ferros e mandou-o exilar em Trier. Distante o maior flagelo

dos arianos, Marcelo de Ancira, duramente acusado por Eusébio de Cesaréia

como herege – por suas afirmações poderem dar a entender que o Cristo era

apenas uma forma de manifestar-se da eterna divindade do Pai – e como agitador

– por supostamente semear a discórdia entre os cristãos –, pôde ser afastado sem

maiores resistência por um sínodo reunido em Constantinopla no ano de 336.577

A morte de Constantino em 337, e, muito pouco depois, de Eusébio de

Cesaréia578, o substancial alargamento dos horizontes da militância pró-ariana de

Eusébio de Nicomédia para além das próprias fronteiras imperiais579, e a profunda

modificação política ocasionada pela divisão do Império entre Constantino II,

Constâncio e Constante, influíram significativamente no prosseguimento da

controvérsia ariana, mas, de fato, já registramos aqui elementos mais do que

suficientes para expor o nosso argumento de maneira conveniente. Eusébio de

Cesaréia e seu admirado imperador, motivados por considerações diversas, mas

convergentes, trabalharam juntos – talvez apenas de modo parcialmente

consciente – para estabelecer uma determinada tônica desejável de ser mantida

nos debates eclesiais – a ênfase na unidade vista como obrigatória concordância, o

irenismo avesso a quaisquer formas de radicalismo, o argumento imparcial e

seguro da erudição contra a invectiva apaixonada, a crença de que a Providência

manifesta-se no consenso dos representantes reunidos dos cristãos – e,

propositada e formalmente longe daqueles furiosos tempos em que se batiam                                                             574 Id. Op. cit. p. 363. 575 Ibid. Op. cit. p. 364. 576 Ibid. Op. cit. p. cit. 577 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 165. Christopher George STEAD. “Atanásio”. In: VV. AA. Op. cit. p. 189. Manlio SIMONETTI et al. “Tiro”. In: Id. Op. cit. p. 1368. Carlo NARDI. “Dedicação (concílio da)”. In: Ibid. Op. cit. p. 386. M. SIMONETTI. “Ario – Arianismo”. Op. cit. p. cit. 578 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 35*. 579 Cf. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. pp. 229-231.

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Pedro, Paulo e Tiago ou em que bradavam João Batista ou Tertuliano, criaram o

ritual e o espetáculo da prática conciliar cristã, inclusive efetivamente

“organizando cerimônias elaboradas, procissões e entradas dramáticas e serviços

[de culto] esplêndidos.”580 Pela prática de uma miríade de clérigos e estadistas do

século IV, entre os quais destacamos aqui apenas Constantino e Eusébio de

Cesaréia, aquele grupo que a partir de determinado momento deste trabalho

passamos a designar como a Grande Igreja, que havia conseguido estabelecer a

sua versão da mensagem cristã como correta, ortodoxa – contra, as dos ofitas,

novacianos, tomesinos e tantos outros –, revisitava a sua prática litúrgica para

adaptá-la aos novos tempos:

“(...) O cristianismo era, agora, uma religião com passado glorioso, bem como futuro ilimitado. (...) A estrutura básica da missa já existia em meados do século II, quando foi descrita por Justino Mártir. Consistia em leituras das memórias dos apóstolos e do Antigo Testamento; um sermão; uma oração, seguida do beijo da paz, e a distribuição do pão e água bentos. (...) Algumas das respostas da congregação também eram muito antigas. O efeito do processo de mudança (...) foi transformar uma cerimônia essencialmente simples em outra muito mais extensa e formal, envolvendo um elemento de grandeza. Os fragmentos das Escrituras tornaram-se mais longos e foram padronizados, com orações inseridas em intervalos fixos. (...) Alguns dos aspectos cerimoniais foram extraídos de cultos pagãos, outros, da prática cortesã, que ganhara muito em elaboração após a transferência para Constantinopla. O impulso para tornar a liturgia mais longa, impressionante, menos espontânea e, dessa forma, hierática, era, em essência, grego (...) verificou-se a explosão espetacular de cor nas vestimentas e tapeçarias, o uso de vasos de ouro e prata e elaboradas pias de mármore, dosséis de prata sobre o altar, uma miríade de velas de cera (...) e um elaborado incensamento. Tudo isso foi acompanhado por um embelezamento proposital dos procedimentos no altar e na procissão que para este ia e dele vinha (...) e tornou-se costumeiro velá-lo com cortinas. (...) a partir dessa época, ou pouco depois, encontra-se a prática de erguer uma tela ou iconóstase, cujo efeito era ocultar todas as operações no altar da congregação como um todo e aprofundar o abismo entre clero e leigos. Essas mudanças foram introduzidas, claro está, com consideráveis apreensões e em um contexto de crítica constante. Entretanto, eram populares: parte do processo pelo qual a Igreja estava conquistando a sociedade. (...) a Igreja [narrada e celebrada por Eusébio de Cesaréia] não apenas se tornara a religião oficial predominante do império romano, tendendo a ser considerada a oficial, como, na verdade, era a única. Ela havia, da mesma forma, adquirido muitas das características externas apropriadas de seu novo status: hierarquia e privilégios oficiais, integração com a hierarquia social e econômica, um cerimonial esplendoroso e sofisticado, elaborado para atrair as massas e salientar o apartamento da casta sacerdotal. Ela chegará lá. Foi bem lançada em sua carreira universalista. Tinha, por assim dizer, correspondido ao gesto de Constantino, e

                                                            580 P. JOHNSON. Op. cit. p. cit.

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fora ao encontro do império na metade do caminho. O império se tornara cristão. [Na primeira metade do século IV] (...) A Igreja tinha se tornado imperial.”581

As já indicadas mudanças na disciplina, na prática litúrgica e na

eclesiologia decerto não seriam as únicas a serem demandadas por esta nova

situação.

                                                            581 Id. Op. cit. ps. 121 – 123-125. Os grifos e interpolações entre colchetes são nossos. Cf. também: Hans KÜNG. Religiões do mundo : Em busca dos pontos comuns. (Trad. Carlos Almeida Pereira). Campinas: Verus, 2004. pp. 230-231. Richard SENNETT. Carne e pedra : O corpo e a cidade na civilização ocidental. (Trad. Marcos Aarão Reis). Rio de Janeiro: Record, 1997. pp. 124-126.

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III.

“Se um trecho do metrô de Moscou não pode ser construído numa região do subsolo de Moscou, pior para o subsolo.”

DITO STALINISTA

Para prosseguirmos a bom termo, empreenderemos por via complementar

o retorno a um tema tratado apenas muito rapidamente na primeira dezena e meia

de linhas deste último capítulo de nosso trabalho. Em 1925, Shirley Jackson Case

foi eleito presidente da American Society of Church History, e em seu discurso de

posse, proferido no mesmo ano e publicado pouco depois, apresentou a tese de

que as tentativas do imperador Diocleciano no sentido de utilizar a perseguição

(303) para obrigar os cristãos a apoiarem de modo inequívoco o novo aparelho

estatal romano que suas reformas haviam forjado, levadas adiante (305) por

Galério, seu sucessor imediato, falharam porque em algum momento um pouco

antes do início do século IV o movimento de Jesus tornara-se tão numeroso e

amplamente aceito que cooptá-lo pela violência ou exterminá-lo tornou-se algo

simplesmente inviável. O resultado disto, segundo Case, foi que já no ano 311

Galério César mudou de tática e fez cessar a violência estatal indiscriminada

contra os seguidores do Cristo, reservando a brutalidade de seus emissários e

torturadores para aqueles que teimavam em perpetuar em novas formas o

radicalismo dos zelotes e pedindo aos demais apenas que rogassem “a seu Deus

por nossa salvação, pela do Estado e por sua própria, com o fim de que, por todos

os meios, o Estado se mantenha são e possam eles viver tranqüilos em seus

próprios lares.”582 O edito de tolerância dito “de Milão”, promulgado apenas dois

                                                            582 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VIII : 17, 10. p. 295. A argumentação de S. J. Case é impecável do ponto de vista do pragmatismo da cultura política latina, e tanto mais verossímil dado que não há formas de se confirmar – ou refutar – absolutamente a ligação que Eusébio de Cesaréia faz entre uma terrível doença que teria afligido César Galério por castigo divino e o fim da perseguição entre os cristãos (Cf. História Eclesiástica VIII : 16-17 e Apêndice ao Livro VIII, 1). Além disso, deve-se considerar também que se grandes problemas internas e externos afligiram o Império Romano enquanto Diocleciano e Galério faziam ameaçar, constranger, prender, torturar e executar cristãos, é bem provável que os imperadores – assim como Eusébio – tenham percebido tais circunstâncias como sinal de desagrado de potências de ordem divina. Tal coisa estaria absolutamente de acordo com tudo aquilo que sabemos da teoria e prática religiosas comuns do Império Romano. Verrius Flaccus, citado por Plínio, o Velho (História Natural, Livro XXVIII, cap. 2, parágrafos 18-19), afirmou que era muito comum que os romanos ao prepararem o cerco de uma cidade invocar a divindade que os locais criam protetora daquela área ou povo e suborná-la,

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anos depois (transcrito na História Eclesiástica no Livro X : 5, 2-14), portanto,

seria – ao menos inicialmente – apenas um prolongamento da política costumeira

do Estado romano.583

Constantino e Licínio reuniram-se em Milão em fevereiro de 313 para

celebrar o casamento da irmã do primeiro com o segundo, e nesta ocasião

resolveram estabelecer uma política comum para lidar com os cristãos, cuja

situação era tão diversa na parte ocidental e oriental do Império – de um lado, as

medidas condescendentes dos últimos dias de Galério tinham permitido que em

pouco tempo a Igreja se recuperasse e emergisse no cenário público como uma

força importantíssima (lembremos, por exemplo, que o bispo Ósio de Córdoba

muito possivelmente então já fazia parte da corte de Constantino); do outro, ainda

que significativamente mais numerosos, os cristãos continuavam a ser acuados

por uma cada vez mais sistemática ação de autoridades pró-pagãs, especialmente

naquelas área sob a jurisdição de Maximino, “único sobrevivente dos inimigos da

religião e que manifestou ser o pior de todos.”584 Pelo consenso dos dois cunhados

redigiu-se e promulgou-se este que não é mais do que um re-escrito visivelmente

baseado no edito de Galério sobre o mesmo tema, distinto deste essencialmente

por esclarecer alguns conceitos e disposições antes ambíguas e suprimir certas

condições restritivas de modo a fazê-lo mais favorável aos – membros de certa

facção dos – cristãos.585 Como lembrou o sociólogo Rodney Stark em seu

interessante ensaio sobre as taxas e padrões de crescimento do cristianismo nos

seus primeiros três séculos, a avaliação feita por Case do edito de Licínio e

Constantino de 313 – transformado em apenas de Constantino pelos                                                                                                                                                                    prometendo maiores honras do que ela então recebia, para que, assim lisonjeada, ela traísse seus adeptos e favorecesse o esforço dos conquistadores, se não mais, apenas pela omissão de socorro aos seus velhos amigos. Para que os inimigos da República não pudessem de algum modo atrair os seus serviços é que o nome da divindade protetora de Roma era mantido sob o máximo sigilo, sendo a sua revelação considerada uma blasfêmia e uma traição condenáveis com a morte (acreditava-se que uma divindade não poderia ser contatada – e cortejada – a não ser que a ela se dirigissem nominalmente). Macróbio transmitiu-nos uma cópia desta fórmula ritual – usada, por exemplo, no sítio a Cartago – e diz tê-la extraído dos segredos coligidos por Samônico Sereno; o autor da História Natural afirmou que ela havia sido conservada até sua época, e que uma sua paráfrase constatava entre as orações do ritual de sagração dos bispos cristãos da capital do Império. Cf. David HUME. História natural da religião. (Trad., apres. e notas de Jaimir Conte). São Paulo: UNESP, 2005. pp. 75-76 (primeira nota). 583 Cf. Rodney STARK. O crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. (Trad. Jonas P. dos Santos). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 20. 584 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IX : 11, 1. p. 315. 585 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 625, n. 143.

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desenvolvimentos políticos posteriores e a re-elaboração da memória que estes

impuseram – ressaltou argutamente o impacto exercido pelo grande número e

refinada organização dos cristãos nessa política. Afirmou o historiador norte-

americano que

“(...) Nesse documento, percebe-se muito claramente o verdadeiro fundamento da concessão de Constantino ao cristianismo. Em primeiro lugar, há a típica atitude de um imperador que está buscando apoio sobrenatural para o seu governo; em segundo lugar, existe um reconhecimento do fato de que o elemento cristão na população agora é tão amplo, e seu apoio a Constantino e a Licínio, em seu conflito com adversários que ainda se opunham ao cristianismo, é tão altamente apreciado, que os imperadores estão dispostos a creditar ao Deus cristão o exercício de uma medida de poder sobrenatural em pé de igualdade com outros deuses do Estado.”586

Ao contrário do que às vezes ingenuamente somos levados a acreditar pela

repetição acrítica de máximas do senso comum, conforme já mencionamos

anteriormente, a legislação de 313, ainda que nitidamente mais favorável aos

cristãos, não constitui o cristianismo como religião de Estado. Uma coisa é

observar que Constantino passou muito cedo a agir como o grão-chanceler da

Igreja e quis que esta “esposa de Cristo” contraísse um casamento de

conveniência com o seu Império, fazendo-a uma vitalizante escora de seu

patrimônio civilizacional; outra coisa é fazer remontar a estatização do

cristianismo há uma década antes do Concílio de Nicéia. As palavras da

disposição promulgada em Milão, registradas por Eusébio de Cesaréia, são

bastante claras neste sentido:

“(...) por um saudável e retíssimo arrazoamento que [nós, Constantino e Licínio] decidimos tomar esta nossa resolução: que a ninguém se negue em absoluto a faculdade de seguir e escolher a observância ou religião dos cristãos, e que a cada um se dê a faculdade de entregar sua própria mente à religião que creia se adapta a ele, a fim de que a divindade possa em todas as coisas outorgar-nos sua habitual solicitude e benevolência.”587

                                                            586 Shirley Jackson CASE. “The Acceptance of Christianity by the Roman Emperors”. In: Papers of the American Society of Church History. Nova Iorque: G. P. Putnam’s Sons, 1928. p. 62. Apud: R. STARK. Op. cit. p. 21. 587 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 5, 5. p. 337.

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A posição de tolerância imperial generalizada, entretanto, não se sustentou

por muito tempo e talvez a grande verdade seja que não tenha havido lugar para o

equilíbrio e o diálogo religioso no mundo antigo da maneira que esperamos que

haja na contemporaneidade. À medida que se tornava menos liberal e exigia mais

a empatia e a participação de seus súditos, o Império Romano achara difícil não

perseguir os cristãos; agora, tendo aceitado favoravelmente determinado partido

do movimento de Jesus disposto a com ele compactuar, ficava cada vez mais

difícil não perseguir seus inimigos – externos também, mas principalmente

internos. Segundo Edward Gibbon,

“(...) de par com o conhecimento da verdade, o imperador [Constantino] assimilou as máximas da perseguição; e as seitas que dissentiam da Igreja católica eram importunadas e perseguidas pelo cristianismo triunfante (...) [ele] não tinha dificuldade em acreditar que os heréticos, os quais presumivelmente questionavam as suas opiniões ou se opunham às suas ordens, fossem culpados da mais absurda e criminosa obstinação, e que uma aplicação de medidas moderadamente austeras poderia salvar aqueles infelizes do risco de uma eterna condenação.”588

O mesmo autor, entretanto, ressalta que então “a mente de Constantino

ainda não fora corrompida de todo pelo espírito de fanatismo e intolerância.”589 O

Imperador havia cerrado fileiras com uma determinada facção cristã que ao menos

aparentemente reconheceu como depositária da única versão verdadeira desta fé, e

posicionou-se contra os hereges e cismáticos sempre que assim o exigiam aqueles

bispos que, na defesa da herança que haviam recebido dos apóstolos, aprovavam e

aplaudiam a adaptação dos regulamentos persecutórios de Diocleciano – que

outrora proporcionaram tanto sofrimento a eles mesmos – para lidar com estes

pérfidos e indisciplinados desviantes. Tudo indica, deve-se ressaltar, que o

propósito de Constantino era unir os seus súditos sob um único diadema e um

único credo cristão, não importando muito em verdade qual fosse este. Em outros

termos, não se tratava de um fanático religioso. Uma Igreja inclusiva, de debates

regulados por canais estabelecidos, de ordenamentos unívocos, de hierarquias

claras, que pudesse achar lugar em seu seio para todos aqueles dispostos a

                                                            588 E. GIBBON. Op. cit. p. 340. 589 Id. Op. cit. p. 341.

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obedecer, um cristianismo, enfim, que fosse, como já mencionamos, um duplo de

tudo aquilo que o Império Romano tinha de mais funcional e que convergisse

explicitamente com as suas determinações era tudo o que podia haver de melhor

na opinião do Imperador. Para que isto se viabilizasse, era necessário evitar os

extremismos morais que degenerassem em ascetismo ou libertinagem e as paixões

teológicas que fechassem as portas da comunhão eclesial ao invés de escancará-

las.

Deixar as portas abertas: foi exatamente o que Constantino fez em relação

aos novacianos, diante da constatação de que suas divergências com os cristãos

que ele favorecia de modo especial eram unicamente referentes a aspectos

disciplinares internos, não doutrinários, e, tão importante quanto, sem nenhuma

ressonância política. Insistindo na via da integração possível, isentou também a

seus clérigos das penalidades gerais da lei, determinou que eles possuíssem sem

inquietação seus próprios edifícios eclesiásticos, locais de enterro e demais

propriedades adquiridas comunitariamente, respeitou as relíquias e milagres de

seus santos, deu-lhes uma igreja no interior da cidade de Constantinopla e, antes

disto, convidou o seu bispo, Acésio, para participar do Concílio de Nicéia. A

igreja cismática a que seus inimigos atribuíam um nome derivado do de seu

fundador, o sacerdote Novaciano, teve seu início em Roma na metade do século

III e, divergente dos católicos também quanto à questão dos lapsi ou traditores,

pode ser definida como a versão itálica do mesmo impulso que gerou os

donatistas na África púnico-latina e os melicianos no Egito. Os novacianos

negavam o perdão aos apóstatas, proclamando que ninguém a não ser Deus os

podia perdoar, e, por um bem articulado movimento missionário junto aos

descontentes com o que percebiam como sendo demasiado liberalismo da parte

dos bispos estabelecidos, conseguiram constituir consideráveis enclaves de fiéis

nas mais variadas regiões do Império: Roma – onde chegaram a eleger um

antipapa –, Cartago e África do Norte – onde preparam a seara dos donatistas –,

Gália, Hispânia, Alexandria, Síria, Anatólia – onde absorveram os remanescentes

dos montanistas – e, mais tarde, Constantinopla. Ainda que em 390 Ambrósio de

Milão tenha tido de escrever um De pænitentia contra os novacianos de sua

diocese, o esforço de Constantino foi parcialmente bem sucedido, o que deve ter

justificado em si mesmo a manutenção de sua política para com estes dissidentes

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que não lhe pareciam muito incômodos: no Concílio de Nicéia, Acésio acatou sem

problemas o homoousios, conduzindo consigo para dentro da ortodoxia que se

constituía a maior parte das comunidades novacianas da Península Itálica centro-

meridional – incluindo a de Roma – e do Oriente.590 Favorecer os moderados e

manter os canais de comunicação pelos quais se podiam construir a unidade: não

deixa de ser uma tremenda ironia da História o fato de que a Igreja constantiniana

tornou-se violenta justamente na tentativa de forçar encontros e promover

fórmulas doutrinárias onde todos pudessem se acomodar.

Sobre esta afirmação anterior, é necessária alguma explicação mais

minuciosa. Em primeiro lugar, devemos observar que ainda se passariam mais de

meio século antes que o cristianismo ortodoxo, tão favorecido por Constantino,

viesse a se tornar efetivamente uma Igreja estatal e que os não-cristãos, assim

como os cristãos errados, fossem legalmente proscritos. Para constatar isto,

comparemos a natureza da intervenção do Imperador que convocou o Concílio de

Nicéia tanto no referente às questões donatista, ariana e novaciana, sobre as quais

já tecemos anteriormente demoradas considerações, assim como o texto do edito

de 313, com os decretos religiosos do Imperador Teodósio, o Cunctos populos e o

Nullus haereticus, promulgados respectivamente em 380 e 381, que viriam a

integrar o corpus do chamado Código Theodosiano:

“(...) Queremos que as diversas nações sujeitas à nossa Clemência e Moderação continuem professando a religião legada aos romanos pelo apóstolo Pedro, tal como a preservou a tradição fiel e tal como é presentemente observada pelo pontífice Dâmaso e por Pedro, bispo de Alexandria e varão de santidade apostólica. De conformidade com a doutrina dos apóstolos e o ensino do Evangelho, creiamos, pois, na única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo em igual majestade e em Trindade santa. Autorizamos os seguidores desta lei a tomarem o título de Cristãos Católicos. Referentemente aos outros, que julgamos loucos cheios de tolices, que sejam estigmatizados com o nome ignominioso de hereges, e que não se atrevam a dar a seus conventículos o nome de igrejas. Estes sofrerão, em primeiro lugar, o castigo da divina condenação e, em segundo lugar, a punição que nossa autoridade, de acordo com a vontade do céu, decida infringir-lhes. (...) Sejam absolutamente excluídos dos edifícios eclesiásticos, pois não estão autorizados a celebrar suas assembléias ilegais dentro dos povoados. Se tentarem qualquer distúrbio, ordenamos eliminar e expulsar das cidades a esses frenéticos,

                                                            590 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. p. 97. E. GIBBON. Op. cit. p. 342. Russel J. DE SIMONE. “Novacianos”. In: VV. AA. Op. cit.p. 1013.

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de modo que as igrejas possam ser restauradas, no mundo inteiro, e recolocadas em mãos dos bispos ortodoxos que confessam o credo de Nicéia.”591

Talvez não seja vão retomar aqui a afirmação de Paul Johnson de que esta

ferocidade é menos fruto de uma disposição intolerante e totalitária do que de um

elemento de progressiva exasperação – e concordar com ela.592 De fato, as

atitudes dos imperadores romanos para com suas responsabilidades religiosas com

o cristianismo tenderam a seguir desde Constantino um padrão regular:

subestimando sempre a tenacidade com que alguns grupos de fiéis aferravam-se a

algumas mínimas distinções que supostamente os fariam mais esclarecidos e mais

santos do que seus vizinhos, tentavam ser mediadores privilegiados e porta-vozes

autoconfiantes de um espírito ecumênico que quase invariavelmente degenerou

em furiosa repressão. Até 1453 os imperadores romanos via de regra avaliaram

que em matéria de disputa teológica deveriam apoiar o partido que parecesse mais

inclusivo, capaz de deixar o máximo de satisfeitos com o mínimo de discussão,

atribuindo-lhe um status oficial e buscando eliminar os demais simplesmente para

manter a paz: foi assim, por exemplo, no Concílio de Nicéia e no momento que o

seguiu imediatamente, assim como na chamada questão monotelista.593 Esta

escolha de uma facção favorita, entretanto, nem sempre – e talvez nunca – se

mostrou realmente previdente pelo fato de que a violência em suas diversas

formas também é uma forma mentis, e não se pôde jamais impor a concórdia pela

brutalidade da repressão. No fim das contas, o império não solucionou problema

teológico algum, mas apenas abafou o coro dos descontentes na medida em que

lhe foi possível fazer. Mais ainda: trocou um ritual de Estado já muito esvaziado

por uma religiosidade dinâmica e paradoxal, sulcada de elementos que muito

facilmente poderiam ser tomados como motivação para subverter a ordem

estabelecida, que tinha um pendor para rejeitar o mundo e, no seu louvor da

simplicidade, não aceitava nenhum tipo de definição fácil porque seu fundamento

último era o Mistério infinito e insondável de um Deus eterno que se manifestou

no tempo e no espaço. As controvérsias cristológicas que fascinaram o Oriente e o                                                             591 Citados a partir de: Henry BETTENSON (sel., trad., introd. e notas). Documentos da Igreja Cristã. (Trad. Helmuth Alfredo Simon). São Paulo: ASTE, 1967. pp. 51-52. 592 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. p. 109. 593 Sobre esta última problemática, ver: A. C. A. AZEVEDO. “Monotelismo”. In: Op. cit. pp. 263-264. Manlio SIMONETTI. “Monoenergismo – Monotelismo”. In: VV. AA. Op. cit. p. 956.

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Egito dos séculos IV, V e VI só fizeram criar mais divisões entre os seguidores de

Jesus e azucrinar os imperadores, que não concebiam a Igreja como possível de

subsistir fragmentada, assim como não aceitariam uma divisão qualquer no seu

próprio poder soberano. Motivada pelo mais óbvio dos cálculos políticos – a

discordância pode levar à divisão – e pelo mais elevado dos sentimentos eclesiais

– Jesus não havia então rezado ainda sentado à mesa da sua última ceia que os

seus discípulos deveriam ser “perfeitos na unidade”?594 –, a repressão do diferente

no interior do cristianismo, entretanto, só fez arraigar como um hábito o

descompasso entre a pregação das beatitudes e a imposição violenta de uma

determinada crença.595

Não podemos, entretanto, cometer o anacronismo de interpretar estas

intervenções do poder temporal em favor de certo ramo do movimento cristão à

luz do comportamento dos Estados modernos e suas relações com as diversas

religiões. Para não ser leviano neste ponto, é necessário ser bastante preciso. Um

Imperador romano do século IV era um homem essencialmente religioso,

preocupado antes de qualquer outra coisa com suas relações com o divino. Não

havia, aliás, nada de novo em o soberano intervir em matéria de religião: boa parte

das magistraturas dos romanos possuía funções exclusiva ou eminentemente

cúlticas; os sacerdotes pagãos eram funcionários estatais pagos, que se reuniam

em reuniões semanais como um ato de governo e freqüentavam o camarote

imperial durante os jogos; o Imperador fora Pontifex Maximus e, em verdade, o

culto ao soberano – que também é adoração da unidade sociológica (clã, etnia,

Império ou Estado) a qual pertence ou se submete o fiel – é um fenômeno tão

difundido, nas suas mais diversas formas, quanto é antigo, remetendo-nos àqueles

momentos da aurora do mundo em que Homo Sapiens começou a edificar suas

primeiras cidades.596 Como seus predecessores, por exemplo, Constantino e

Teodósio viam no transcendente a fonte direta de seu poder, fazendo-o, entretanto,

através de uma lente bastante diversa daqueles. No século IV de nossa Era, “(...) O

                                                            594 BÍBLIA. Ver. cit. João 17, 23. p. 1888. 595 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. p. 109. 596 Cf. Id. Op. cit. p. 94. Christian DRÖGE. “Culto ao soberano”. In: Hans WALDENFELS (ed.) e Franz KÖNIG (org.). Léxico das religiões. (Trad. Luiz M. Sander et al.). Petrópolis: Vozes, 1998. A. C. A. AZEVEDO. “Culto imperial”. In: Op. cit. pp. 122-123. Id. “Romanos”. In: Op. cit. pp. 312-315.

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Império Romano pensava, com alguma ilusão, ser uma monarquia universal [e]

(...) O monoteísmo cristão fornecia-lhe naturalmente uma interpretação, uma

legitimação teológica. Um só Deus, um só Logos, um só imperador Senhor do

mundo!”597 Este se sente diretamente responsável pela salvação de seus súditos

que se encontram fora da Igreja e, mais ainda, por guardar do erro e da divisão os

cristãos que lhe foram confiados, já que, “senhor do mundo junto a Deus, é a ele

que cabe garantir a boa marcha das instituições eclesiásticas.”598 Ao que parece,

Constantino não adquiriu nenhum conhecimento mais profundo da teologia

paulina mas, segundo Eusébio de Cesaréia, assimilou algumas das mais

grandiosas idéias cristãs do século III e “secularizou-as”, vendo-se como

instrumento divino. Esta conexão, o teólogo Hans Küng observou com argúcia, ao

afirmar que “(...) Grandes teólogos, como os alexandrinos Clemente e Orígenes,

criaram no terceiro século, um vínculo entre fé e ciência, teologia e filosofia,

igreja e cultura. Esse vínculo constitui o pressuposto para uma associação entre

cristianismo e império”.599

Considerando os relatos do autor da História Eclesiástica como

verossímeis, assim como o peso de sua própria opinião, impossível de ser apartada

dos eventos que narra, dos documentos que transcreve, das falas que registra, e,

mais claramente, dos comentários introdutórios ou complementares que os

acompanham, fica evidente que Constantino cria-se um importante agente no

processo de salvação do mundo, pelo menos tanto quanto os apóstolos

(isapostole). Daí ele ter feito edificar uma grandiosa Igreja dos Doze Apóstolos

em Constantinopla, onde constavam treze monumentos funerários: dispostas as

efígies e as relíquias de seis apóstolos de cada lado, seu ataúde deveria ser

colocado no centro, tornando-o o décimo terceiro – e talvez o mais importante. –

deles. Saindo com chave-de-ouro da vida, ainda veio a morrer em um Domingo de

Pentecostes.600

Sua santificação não tem data definida, mas parece ter começado logo

depois de sua morte, quando, segundo a expressão do historiador Filostórgio, foi o

                                                            597 H. I. MARROU. Op. cit. p. 848. 598 Id. Op. cit. p. cit. 599 H. KÜNG. Op. cit. pp. 222-223. 600 Cf. P. JOHSON. Op. cit. pp. 85-86.

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objeto de “homenagens quase divinas” – curiosamente, mais pela espontânea ou

muito sutilmente incitada devoção popular do que pelo aplauso agradecido do

clero e seu explícito empenho em consagrar “a memória de um príncipe que lhe

favoreceu as paixões e lhe promoveu os interesses.”601 Há indícios de que esta

veneração, caracterizada por peregrinações ao seu túmulo, foi inicialmente

sustentada pela adesão de fiéis filoarianos, versão do cristianismo que havia

contado com especial proteção do Imperador nos seus últimos anos de vida.

Superadas as controvérsias cristológicas dos séculos IV a VII, o culto a

Constantino permaneceu na Igreja ortodoxa do Oriente, que, desconsiderando o

seu estado privado de santidade, as ações moralmente dúbias de sua vida pública e

sua bem conhecida associação com um partido que mais tarde seria consensual e

inequivocamente circunscrito como herético, proporcionou ao primeiro Imperador

cristão a apoteose antes restrita aos mártires, virgens e confessores. Relíquias de

Lucas Evangelista, de Paulo Apóstolo e dos Doze foram descobertas ou

providenciadas e transladadas para os lugares que lhes eram destinados no interior

da grande igreja que Constantino fez edificar às margens do Bósforo; no tempo do

Imperador Arcádio, uma inumerável procissão acompanhada por senadores e

bispos trouxe até ali – segundo Jerônimo, desde a Palestina até o interior de

Constantinopla! – as cinzas de Samuel, profeta e juiz de Israel, que

significativamente foi quem ungiu o primeiro rei dos hebreus.602 A festa de São

Constantino, celebrada pela Igreja Grega em 21 de maio, retoma temas de Eusébio

de Cesaréia extraídos do Antigo e do Novo Testamento, e seu texto litúrgico

apresenta-nos a figura do Imperador vinculada à de Moisés, de Davi, de Salomão

e do Apóstolo dos Gentios, destacando que como este teria ele sido convertido

diretamente por um apelo de Cristo, e não por uma preleção humana.603

                                                            601 E. GIBBON. Op. cit. p. 340. A expressão de Filostórgio foi citada em: C. TAVEIRA. p. 213. Não se pode deixar de esquecer que mesmo tendo favorecido desde muito cedo os cristãos e vindo ele mesmo a ser batizado – no leito de morte, possivelmente por Eusébio de Nicomédia – Constantino também foi considerado divino pelo Senado Romano após a sua morte e adorado com as honras habituais prestadas aos precedentes imperador-deuses. Trata-se de evidente demonstração de poder do sobrevivente culto imperial romano no qual ele ainda figurava, mas também sinal do quão polissêmica foi à pessoa de Constantino para seus contemporâneos. Cf. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. p. 212. E. GIBBON. Op. cit. p. 382. 602 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. Primeiro Livro de Samuel 16, 1-13. pp. 411-412. 603 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 212-215 e nota n. 69, p. 215. O cristianismo latino assumiu diante da santidade do primeiro imperador cristão uma atitude muito mais reservada do que sua contraparte grega. Gregório de Tours em sua Historia Francorum, por exemplo, mesmo tendo

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Incitadas pelo exemplo que vinha do alto da estrutura da sociedade romana

e por tudo aquilo que então as tornava mais fáceis e mais proveitosas, as

conversões ao cristianismo ortodoxo se multiplicaram dia a dia, até o ponto em

que esta versão da mensagem cristã chegou a cobrir quase a mesma realidade

humana do Império. Com a Roma cristã – prolongada durante séculos naquilo que

foi chamado com depreciação de Império Bizantino – apareceu o ideal de uma

sociedade inteiramente sacral, onde, com a exceção de grupos quase

insignificantes, todas as pessoas e instituições eram ao menos nominalmente

cristãs, onde todas as técnicas se subordinariam ao ideal evangélico e tudo

convergiria para facilitar a execução do propósito de a um só tempo salvar as

almas e transfigurar o mundo.604 Tal processo teve ressonâncias no movimento

cristão para muito além de sua composição étnica e de classe, de sua dimensão

organizacional e do escopo de atuação de suas comunidades. O seu epicentro

sacro deslocou-se de Jerusalém a Roma e, logo sem seguida, a Constantinopla, a

nova capital imperial erguida à toque-de-caixa no lugar da antiga cidade grega de

Bizâncio. O próprio fato de o cristianismo passar a ter um epicentro sacro, uma

cidade ou território qualquer que lhe fosse de especial importância, aliás, já é algo

bastante sintomático de como os tempos tinham mudado.

Personagem de palavras ardentes, segundo nos contam os textos dos

evangelhos intra-canônicos, Jesus afirmou que era preciso que os seus discípulos

rompessem os laços emocionais com tudo o que os mantinha presos a certos

espaços, negou a seus discípulos licença para que fizessem erguer monumentos

                                                                                                                                                                   utilizando tão amplamente a História Eclesiástica de Eusébio como fonte de informações e modelo estilístico, registra ainda no Livro I, lado a lado com o relato da descoberta da verdadeira cruz por Helena, mãe de Constantino, que este Imperador mandou executar seu filho Crispo e sua esposa Fausta – assuntos que o bispo de Cesaréia simplesmente optou por omitir em seus escritos. É por uma iluminação muito diversa – através da forjada “Doação de Constantino” – que sua pessoa será invocada a partir do século VIII pela diplomacia pontifícia. Nesta chave particular, seria instado a intervir repetidas vezes na história política da Europa medieval, tanto para sustentar a primazia eclesiástica do Papa, quanto suas pretensões de domínio temporal, frente aos monarcas cristãos de estirpe germânica e o imperador bizantino. É curioso notar que esta prerrogativa inventada nos dias do pontificado de Estevão II (752-757) ou Paulo I (757-767) foi usada mesmo no âmbito interno do Império Romano do Oriente – a saber, por Kinnamos, no tempo do governo de Manoel I Comneno, para criticar o uso da titulação imperial romana no Ocidente “bárbaro”, e, antes dele, por Miguel Cerulário ,para defender a sua autonomia em relação ao Estado, assim como pelo canonista Theodore Balsamon, para justificar as posturas deste prelado. Cf. Id. Op. cit. pp. 213-214. 604 Cf. H. I. MARROU. Op. cit. p. 849.

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em sua homenagem e prometeu arrasar o Templo de Jerusalém.605 Desde uma

geração após a sua morte até meados do século II, o local de culto cristão foi

prioritariamente a casa dos fiéis, situação só consolidada pelas grandes

perseguições romanas: “(...) entre quatro paredes, os crentes sentiam-se protegidos

contra as agressões do Estado que proibia a prática pública da religião. (...) Ao

abrigo do teto, sua jornada de fé começava na sala de jantar.”606 Conforme a

religião se expandia e se arraigava, crescia o seu patrimônio, e ainda que os seus

ministros nada ou muito pouco possuíssem individualmente, a instituição tornava-

se um poder econômico relevante no mundo mediterrâneo; sobre isto, destaca o

autor de Declínio e queda do Império Romano que

“(...) No tempo do imperador Décio, era opinião do magistrado de Roma que os cristãos possuíam riquezas consideráveis, que usavam vasos de ouro e prata em seu culto religioso, e que muitos de seus prosélitos haviam vendido suas terras e casas para aumentar as riquezas públicas da seita – em prejuízo certamente de sua infortunada prole, que se tornou mendiga porque seus pais tinham sido santos. (...) Quase no mesmo período, o bispo de Cartago, governante de uma comunidade menos opulenta que a de Roma, arrecadou 100 mil sestércios (mais de 850 libras esterlinas), numa súbita campanha de caridade para redimir os irmãos da Numídia, os quais haviam sido levados como cativos pelos bárbaros do deserto.”607

O direito romano de muito determinava que nenhuma propriedade

fundiária poderia ser doada ou legada a qualquer pessoa jurídica a não ser com

anuência específica da parte do Senado – que certamente não estaria disposto a

concedê-la a uma seita estrangeira que era alvo de desconfianças, ressentimentos e

mesmo temores. Já no tempo de Alexandre Severo, entretanto, esta restrição foi

suspensa ou burlada de tal maneira descarada e eficaz que criou um precedente

forte o suficiente para que a infração emergisse à luz do dia como coisa normal;

então a comunidade cristã de Roma já reivindicava a posse de terras no interior da

própria capital imperial. Talvez realmente a tão intrincada quanto desordenada

administração do Império tardio tenha contribuído “para afrouxar a severidade das

leis; [de modo que] antes do fim do século III, consideráveis propriedades foram

                                                            605 E. GIBBON. Op. cit. p. 115. 606 Id. Op. cit. p. 119. 607 Ibid. Op. cit. p. 271.

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outorgadas às opulentas Igrejas de Roma, Milão, Cartago, Antioquia, Alexandria e

outras cidades da Itália e das províncias.”608 Além destas posses urbanas, quase

sempre adquiridas por legado de conversos ou disposição testamentária de fiéis

falecidos, os ecônomos das comunidades eclesiais também investiram na compra

de terrenos extramuros para a construção de cemitérios e de antigos e semi-

abandonados edifícios públicos para a sua transformação em locais de encontro

dos membros da nova religião. Subjazendo a esta transformação – que foi, deve-se

assinalar, bem vagarosa e muito desigual de região para região –, talvez se

encontrem motivos de ordem essencialmente prática, como a necessidade de

frente ao aumento exponencial do número de fiéis participantes da Ceia

Eucarística se instalar a mesa focal do rito em um lugar mais elevado e demolir as

paredes das salas onde se realizava o ágape de modo que todos os congregantes

pudessem avistar ao menos a Fracção do Pão consagrado. Muito possivelmente é

nestas mudanças que se encontram os pressupostos para as já mencionadas

grandes alterações ou complementações litúrgicas pós-nicenas. O caso é que ainda

na primeira metade do século IV este processo assumiu extensão de tal monta que

os locais de culto dos cristãos se tornaram mais e mais verdadeiros monumentos

comemorativos à conversão e às atribuições salvíficas do Imperador.609 Não se

deve esquecer, aliás, que de um ponto de vista jurídico os edifícios sagrados

construídos no tempo de Constantino eram isso mesmo: financiados pelo tesouro

estatal, “nasceram no terreno que fazia parte daquilo que estava à livre disposição

do imperador, entre mansões e jardins, propriedades espremidas, todas ou quase

todas nos limites da cidade.”610

No âmbito do mesmo processo de construção do que viria a ser a primeira

Cristandade, o paradigma judeu-cristão daqueles seguidores de Jesus de Nazaré

que com ele conviveram, já numericamente sobrepujado pelo cristianismo greco-

helenístico nascido nas comunidades semeadas pela pregação de Paulo de Tarso,

foi ferido de morte na região mediterrânica; há então um estiolamento que faz

diminuir e cessar a ligação antes tão marcante que havia entre Sinagoga e Igreja e

se aprofunda ainda mais a helenização das concepções helenistas de fé e normas

                                                            608 Ibid. Op. cit. pp. 271-272. 609 Cf. R. SENNETT. Op. cit. p. 126. 610 Apud: Id. Op. cit. p. 125 e nota correspondente, n. 34 ao cap. 4, p. 314.

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de vida cristãs.611 Inquirir se o mundo greco-latino havia se tornado cristão ou se o

cristianismo havia sido alterado pelo seu contato mais íntimo com o mundo greco-

latino é persistir em uma falsa questão: nem do ponto de vista didático, analítico

ou tipológico estes processos podem ser apartados, sob a pena de trabalharmos

com quadros severamente deformados da consciência-experiência das pessoas que

protagonizaram e vivenciaram este processo histórico. Deve-se ter

necessariamente em mente que “(...) as igrejas puderam transformar as culturas e

os ambientes políticos porque se tornaram parte deles. A cooptação foi um perigo

sempre presente, mas o risco é inerente à prática da encarnação.”612

Também a orientação escatológica das comunidades cristãs sofreu uma

inflexão e elas progressivamente não mais contaram com a iminente chegada do

fim do mundo, admitindo a sua postergação para um futuro muito remoto. O

esforço para antecipar, para concretizar o “Reino de Deus”, absorvendo energias e

preocupações, é o baque que produz necessariamente este eco, que faz recuar para

um segundo plano a ansiedade, o desejo, a expectativa e a esperança do Juízo

sobre os vivos e os mortos.613 Nas palavras do teólogo Leonardo Boff,

“(...) esta perspectiva terrena desencadeou por sua vez um vasto processo de eclesialização do Reino de Deus e de institucionalização da esperança cristã. O Reino de Deus é a própria Igreja na terra, dizia-se. Os sacramentos encarnam as forças do futuro e instauram a parusia presente. Os Padres Lactâncio, Eusébio, Cesário de Arles e outros viram no surgimento do Império cristão sob Constantino o aparecer da plenitude dos tempos. O Reino de Deus é pensado na linha da criação: com Cristo, com a Igreja e com o Sacro Império recebeu sua forma cabal. Criticar a Igreja e rebelar-se contra os atos do Sacro Império é pecado contra Deus e o Seu Reino.”614

                                                            611 Cf. H. KÜNG. Op. cit. p. 220. 612 D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. 198. 613 Cf. H. KÜNG. Op. cit. p. 221. H. I. MARROU. Op. cit. p. cit. 614 Leonardo BOFF. Vida para além da morte. O presente: seu futuro, sua festa, sua contestação. (22ª ed.). Petrópolis: Vozes, 2004 [1973]. (Col. “Teologia”, n. 5; coord. Arcângelo R. Buzzi e Leonardo Boff). p. 29. Logo em seguida, ainda na mesma página, o mesmo autor cita o teólogo Fulgêncio, que no seu De fide (r. 35) formulou como regra que “não somente os pagãos senão também todos os judeus, todos os hereges e cismáticos que morrerem fora da Igreja Católica, irão para o fogo eterno, preparado para o diabo com todos os seus anjos.” Para Leonardo Boff, a “inaudita ousadia” de afirmar tal coisa, querendo “saber os juízos de Deus”, é exemplo de um pensamento onde a identificação entre Reino de Deus-Igreja-Império foi levada ao seu extremo lógico. Id. Op. cit. p. cit.

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Cada facção e etapa do movimento cristão privilegiaram uma figura de

Jesus em torno do qual elaboraram uma espiritualidade própria: o profeta dos

seguidores galileus; o Messias da comunidade dos adeptos de Jerusalém; o

solitário dos tomesinos; o Filho de Deus que, por intermédio do Espírito, liberta o

homem de suas limitações e o apresenta ao Pai, das comunidades judeu-

helenistas; o logos dos filósofos convertidos e dos alexandrinos; o general e kýrios

dos cristãos de Roma. Até o século IV, a filiação divina de Jesus – conforme

atestam já os diferentes inícios dos quatro evangelhos recolhidos no cânone

ortodoxo – foi compreendida de maneiras muito diversas: afirmou-se deste

personagem extraordinário, por exemplo, que era um taumaturgo e um agitador,

que tinha sido um judeu eleito por Deus para ser redentor de seu povo e luz para

os gentios, que era um homem divinizado, filho adotivo ou natural de Deus, que

era um éon da suprema Sabedoria e revelador do verdadeiro conhecimento da

Fonte do Bem, que era o Filho preexistente, eternamente engendrado pelo Pai,

igual ou subordinado a Ele, que era intermediário entre a Causa Primeira e o

mundo criado, que era o modelo e protótipo de uma nova humanidade. Uma das

coisas que ocorreu nos grandes concílios da era constantiniana foi a redução desta

polissemia da pessoa de Jesus de Nazaré à unidade de uma formulação dogmática

estabelecida pela autoridade eclesiástica e decretada pelo poder imperial.

Definições complementares e aparentemente contraditórias sobre quem era – ou

havia sido – aquele pregador galileu circulavam nas diversas comunidades judeu-

cristãs e cristãs-pagãs, em tensões dinâmicas umas com as outras e com as

concepções religiosas e opiniões sobre o Nazareno expressas por aqueles de fora

do plural grupo de seus seguidores – até que o Concílio de Nicéia “impôs uma

formulação dogmática exclusiva encouraçada de anátemas antiarianos.”615

Entendido como um membro pleno, mas distinto, da Trindade inefável, Jesus

Cristo passou a ser cada vez mais definido e representado iconograficamente e em

contextos litúrgicos como o Pantokrátor, o senhor universal, uma espécie de

reflexo ampliado em seu poder ao infinito do autokrátor Constantino.616 Como

                                                            615 Richard BERGERON. Fora da Igreja também há salvação. (Trad. Maria Stela Gonçalves; rev. Iranildo B. Lopes). São Paulo: Loyola, 2009. p. 71. 616 Richard Senett mencionou no capítulo de seu livro Carne e Pedra sobre o “corpo cristão” um trabalho de Thomas Mathews que questiona o argumento que acima apresentamos e problematiza a conclusão fácil de que Cristo passou a ser compreendido apenas como um arquétipo ou pleonasmo de Imperador. Para este autor, a memória de Jesus como um mágico capaz de operar prodígios era forte demais para ser descartada e acabou garantindo que este permanecesse um

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ressalta o historiador Celso Taveira, de fato “(...) Os mosaicos representando o

Cristo Pantokrátor constituem um tema por excelência da iconografia imperial e

religiosa bizantina.”617 Em um peculiar jogo de correspondências e analogias, a

realeza divina passou a ser definida pelos cristãos cada vez mais pelos termos da

vida político-administrativa romana, enquanto o imperador romano passou a ser

visto como exercendo no microcosmo humano um governo equivalente ao que o

Filho entronizado na Glória por Sua Ressurreição exerceria sobre o macrocosmo

do universo.

“(...) Temos aqui um formidável complexo de relações envolvendo governantes e governados, braço secular e braço eclesiástico na organização da cúpula do Estado [que viria a ser conhecido como] bizantino, onde a face de Cristo expressa magnificamente a dupla função de proteção e autoridade, ambas estabelecidas também duplamente: na massa física da imagem e no olhar que nunca contempla o espectador diretamente, dirigindo-se antes para algum ponto situado fora da esfera da representação. (...) Sabemos que o cerimonial e a etiqueta da côrte próprios das monarquias orientais mantinham o imperador isolado e distante para valorizar sua representação do divino, o mesmo se dando nos cerimoniais religiosos bizantinos da liturgia divina ou da coroação, com isolamento dos celebrantes e uma grave solenidade aportada pela arquitetura, pela rebuscada ornamentação interior (espaço privilegiado pela arquitetura religiosa bizantina, por oposição ao mundo exterior) e pelo ofício cantado. (...) Sabemos também da função pedagógica da arte na [Antigüidade Tardia e na] Idade Média, época duramente marcada pelo analfabetismo. Mas não podemos nos esquecer que esta foi sempre uma postura defendida pela elite intelectual (...). Henry Maguire chama a atenção para o fato de que os sermões e hinos da Igreja influenciavam diretamente os meios pelos quais os artistas bizantinos ilustravam as igrejas, o que dava a elas um papel privilegiado para desenvolver um tipo específico e ideológico de pedagogia. Além disto, as imagens existentes em livros eram pouco acessíveis, devido ao alto custo dos mesmos. É verdade que em Bizâncio os temas recomendados para a ornamentação das igrejas eram com freqüência próprios do catecismo: as vidas de santos, a anunciação, a natividade, o batismo, a vocação dos discípulos, os milagres, a traição de Judas, a crucificação, a deposição, a ressurreição e a metamorphosis (transfiguração). Mas os grandes espaços disponíveis nas cúpulas eram sempre reservados às representações da eternidade, estampadas na Virgem mãe de Deus (theotokos), ou da Virgem guia,

                                                                                                                                                                   personagem enigmático, intermediário entre o mundo cotidiano e o maravilhoso. Mathews defende que teria sido em virtude dos lugares em que o Deus cristão passara a ser reverenciado, agora publicamente, e do desenvolvimento da liturgia aí executada é que se pode compor um ícone de um Cristo superior por natureza dos demais homens, nascido para governar, quase indiferente à lida das pessoas comuns, que demandava ser adorado e apaziguado mais do que amado e seguido. Teria sido desta forma específica que o cristianismo teria sido lançado na órbita das velhas formas e comportamentos reverentes antes típicos do mundo pagão. Cf. R. SENNETT. Op. cit. p. 125. 617 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 89.

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condutora (hodegetria), do Cristo Pantokrátor ou do casal imperial. São imagens voltadas para evocar o sentimento da autoridade ou da consternação.”618

Deste modo a teologia, a prática cúltica e a arte cristãs da grande corrente

chegaram a atuar mesmo em algumas ocasiões como um simples anexo do

domínio estabelecido pelo poder político, militar e econômico e pelo costume,

justificando e mesmo prescrevendo o governo do Imperador sobre o Estado

Romano e a Igreja Cristã.619 Antes do término deste trabalho, teremos a ocasião

de voltar a estes fundamentos religiosos que o cristianismo fornece ao Império

Romano já no alvorecer do século IV.

No difícil exercício da busca pela honestidade intelectual e na tentativa –

de algum modo necessariamente fadada ao fracasso, mas nem por isso menos

sincera – de tentar manter a compostura em nossa análise, identificando com o

máximo possível de clareza os nossos partidarismos e buscando contê-los

metodicamente, imprescindível é que designemos as coisas às quais nos referimos

em termos inteligíveis e apresentemos sem mais os conceitos que estamos

utilizando para estruturar a nossa reflexão. O modelo constantiniano de

relacionamento harmônico entre o poder estatal e a Igreja Cristã afigura-se, de

fato, uma submissão desta àquele, ou melhor, uma colaboração criativa entre estas

instâncias, no âmbito de uma dinâmica ou jogo na qual a religião justifica e apóia

as ações do Estado – mesmo às que se apresentam mais impiedosas e mesmo

desumanas às nossas sensibilidades – e o Estado protege e privilegia – assim

como tenta em quase tudo cooptar ou dominar – a religião. Devidamente

assinaladas às mudanças de propósito e tônica que antes destacamos ao ressaltar

um hiato entre os favores e as determinações eclesiais de Constantino e os

decretos de Teodósio, foi dentro deste circuito auto-alimentado ou sob suas

sombras que se desenvolveu a maior parte da vida cristã posterior ao século IV:

indiretamente, ele subjaz ou ressoa nas diversas teologias imperiais, integristas e

de conformismo político que se desenvolveram no Ocidente cristão620;

                                                            618 Id. Op. cit. pp. 87-89. 619 Cf. H. KÜNG. Op. cit. p. 223. 620 E estas se desenvolveram em quase toda a parte pelo menos até a Revolução Francesa de 1789 – e em não poucos locais, inclusive na própria França, também depois desta data. Não se justifica, portanto, a opinião daqueles que eventualmente acreditem que o relacionamento íntimo entre cristianismo e autoridade governamental, de acordo com um modelo constantiniano, tenha ficado

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estritamente, tal modelo de relacionamento permaneceu vivo e funcional na

Rússia Ortodoxa até a execução do último Czar pelos vitoriosos da Revolução de

1917.621

                                                                                                                                                                   restrito no mundo ocidental ao cenário dos reinos germânicos recém-cristianizados da Alta Idade Média, às catolicíssimas monarquias ibéricas do tempo das Grandes Navegações e da primeira colonização européia das Américas, à Inglaterra de Henrique VIII e Elizabeth I, à França galicana dos Luizes, aos estados luteranos dos séculos XVI a XVIII, à Espanha de Francisco Franco e à Itália de Mussolini. Um exemplo bem pouco lembrado entre nós, talvez por ser bastante constrangedor para certos setores católicos de nosso país, é o do Brasil Imperial dos anos da Guerra do Paraguai. Este conflito foi deflagrado em um momento em que aumentava mais e mais a tensão entre o Estado brasileiro oficialmente católico e a Igreja Católica no Brasil. De um modo geral, os grandes problemas que iriam culminar na ruptura que passaria à história como “Questão religiosa” já estavam então mais ou menos dispostos nos mesmos termos que mais tarde levariam D. Vital a ser preso por lesa-majestade e condenado à trabalhos forçados, mas ainda assim o episcopado brasileiro apoiou entusiasticamente os esforços militares do Império do Brasil, fazendo-o em termos tão ou mais colaboracionistas que os usados por Eusébio em seus momentos de maior louvor a Constantino e seu papel supostamente providencial. De fato, “a Igreja abençoa os combatentes e participa da guerra. O arcebispo da Bahia dirigiu a todos os párocos uma circular onde pede aconselharem eles os seus paroquianos com mais de 18 e menos de 50 anos para que se alistem como voluntário, ‘no que fazem juntamente um serviço a Deus, visto como o amor da pátria é também um serviço religioso, gravado no coração do homem pelo dedo do Onipotente Senhor dos Exércitos e das vitórias’. Esta mesma atitude do metropolita foi seguida por quase todos os bispos do Brasil. É interessante como se desenvolve toda uma liturgia da paz através da vitória de nossas armas. O vigário capitular do Rio de Janeiro ordenou ‘que se fizessem preces por três dias em todas as matrizes e confrarias desta cidade a fim de a Providência Divina nos conceder a paz, tornando a vitória favorável às nossas armas nas guerras com o Uruguai e Paraguai’. E acrescentava D. Manuel Silveira que ‘se pedirmos bem... Ele nos há de livrar dos nossos inimigos... Sim! Que a vitória da guerra não está na multidão dos exércitos, mas do céu é que vem a fortaleza, e por isso devemos igualmente pelejar com as armas espirituais. A oração que o metropolita compôs para ser rezada pelos voluntários pedia ao Deus dos Exércitos: ‘Dignai-vos de nos livrar das mãos dos nossos inimigos, e injustos perseguidores: ponde-nos ao abrigo de sua malicia, enfraquecei e destruí os seus insidiosos planos e pérfidas obras contra nós’. Não ocorria o pensamento de uma paz que não fosse pela vitória sobre os inimigos.” João Fagundes HAUCK, Hugo FRAGOSO et al. História da Igreja no Brasil : Ensaio de interpretação a partir do povo. Segunda época : Século XIX. (4ª ed.). Petrópolis: Vozes, 2008. p. 252 e notas correspondentes, n.24-27, p. 253. O grifo é do autor. 621 Cf. Philip SERRARD. Bizâncio. (Trad. José Laurênio de Melo). Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. (Col. “Biblioteca de História Universal”; ed. consul. Leonard Kriger). p. 170. Muito corretamente se associa o legado religioso da autocracia bizantina principalmente ao Império Russo Ortodoxo, mas é uma grande imprecisão histórica sustentar que ele simplesmente desapareceu daqueles territórios que antes estavam submetidos à dominação do Imperador Romano do Oriente. Quando os turco-otomanos tomaram Constantinopla em 1453, o trono patriarcal estava vago, já que o seu ocupante oficial, Gregório Mammas, havia fugido para Roma tão logo lhe foi possível. O Sultão Maomé II, que já havia decidido que política seguir em relação aos seus recém-adquiridos súditos não-islâmicos, reuniu todos os bispos que conseguiu encontrar e os incitou a eleger para a Sé Constantinopolitana Jorge Scolarius, que depois de alguma hesitação assumiu o cargo com o seu nome monástico de Genádio. O rito de entronização do novo Patriarca Ecumênico seguiu estritamente o antigo modelo bizantino: o sultão recebeu o novo patriarca em audiência pública, lhe entregou as insígnias do cargo, os paramentos, o báculo e a cruz peitoral (como esta havia sido perdida no saque da cidade ou indevidamente apropriada por Mammas, foi necessário que o governo otomano providenciasse uma nova peça). O campeão do Crescente saudou o alto prelado com a seguinte fórmula, especialmente criada para a ocasião e proferida em grego: “Sê patriarca, com boa sorte, e confia em nossa amizade, mantendo todos os privilégios que os patriarcas antes de ti desfrutaram.” Depois disto, Genádio montou um belo cavalo que também lhe foi dado, a título de oferta pessoal, por Maomé II, dirigiu-se à Igreja dos Santos Apóstolos – a segunda mais veneranda da cidade, preservada da pilhagem turca por expressa determinação do

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Foi no âmbito desta duradoura estrutura de relacionamento entre Igreja e

Império que, como já assinalamos de muitas formas antes, se desenvolveu o

dogma cristão, com sua “pretensão de encerrar o mistério insondável numa

fórmula objetiva, imutável, irreformável e infalível, imposta de maneira

autoritária.”622 Não queremos aqui criar polêmica, ou enveredar por teorias

conspiratórias – às quais já renunciamos explicitamente ainda na primeira seção

deste capítulo final –, mas apenas destacar que a religião cristã recebeu a partir de

sua adoção e favorecimento pelo Imperador romano certas ênfases e contornos

que só são compreensíveis de modo adequado justamente se dimensionados

dentro daquilo que enunciamos na expressão modelo constantiniano de

relacionamento entre Igreja e Estado, o que também poderíamos denominar de

primeira Cristandade. Não é vão afirmar também aqui o uso da noção de processo

histórico, dentro de concretas relações sociais, e, portanto, de conflitos de poder,

para lidar com um período onde se transformaram tanto o dogma cristão quanto o

ethos da chamada Antigüidade Tardia. Aquele, tornado uma problemática de

interesse estatal, necessitou ser definido o mais precisamente possível, para que se

distinguisse com clareza entre os crentes e os hereges, que do ponto de vista do

soberano em pouco seriam equivalentes a nada mais do que os seus partidários e

os seus opositores e inimigos políticos – e isto não porque tal ou qual imperador

                                                                                                                                                                   sultão e destinada a ser igreja patriarcal, já que Santa Sophia fora transformada em mesquita –, foi aí consagrado, segundo o antigo costume, pelo Metropolita de Heracléia, celebrou a Divina Liturgia – na qual orou publicamente por seu novo benfeitor –, e percorreu a cidade em procissão antes de ir assumir sua nova residência. Entre sultão e patriarca criou-se um modus vivendi no qual o clero ficou isento dos impostos e serviços públicos e recebeu autorização para usar barba (seriam os únicos não-turcos a fazê-lo em Constantinopla até a década de 1920), as cortes eclesiásticas receberam o poder de julgar todos os litígios entre cristãos que tivessem algum significado religioso (casamento, divórcio, testamento e guarda de menores), o patriarca teve sua inviolabilidade pessoal garantida, em troca da manutenção da ameaça de excomunhão ou outras penalidades religiosas para aqueles seus seguidores que se recusassem a pagar os impostos ou que, de alguma outra forma, não obedecessem às regras do Estado. Mesmo sem um sucessor direto de Constantino ocupando o trono, as vigas mestras da cristandade constantiniana continuaram a subsistir em um estado não-cristão. Ao contrário de seus sucessores menos condescendentes, os primeiros sultões otomanos foram bem mais benevolentes do que poderiam esperar os cristãos orientais ortodoxos a eles submetidos, e inclusive agiram ativamente para livrar-lhes daqueles eclesiásticos pró-papistas. Considerando como exemplo o mesmo Maomé II, é bem evidente pela documentação da época que ele se via como herdeiro dos Imperadores Cristãos de Bizâncio “e, como tal, estava cônscio de seus deveres.” Steven RUNCIMAN. A Queda de Constantinopla : 1453. (Trad. Laura Rumchinsky). Rio de Janeiro: Imago, 2002. p. 134. (Todas as considerações anteriores são cf. Id. Op. cit. pp. 133-136). Na segunda metade do século XVIII, Voltaire registrou que os sultões otomanos usavam a seguinte fórmula para nomear os bispos de algumas das ilhas da Grécia: “Eu lhe ordeno que vá residir como bispo na ilha de Quios, segundo o antigo costume e seus cerimoniais inúteis.” VOLTAIRE (François-Marie Arouet). Tratado sobre a tolerância : Por ocasião da morte de Jean Calas. (Trad. William Lagos). Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 31. 622 R. BERGERON. Op. cit. p. 72.

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estivesse “fortemente compreendido com (...) [alguma] opinião teológica

particular no meio das várias disputas doutrinárias de seu tempo”623, mas antes

pelo “anseio de que preces unidas se elevassem a Deus na sua intenção,

acreditando que Deus não haveria de coroá-lo com vitórias se as igrejas

estivessem desunidas pelo cisma.”624

Esta apropriação paternalista da fé cristã pelo Império ressoou muito além

do seu próprio limes. Quando Constantino assumiu a responsabilidade de ser o

defensor e o responsável pela unidade da fé cristã em todo o mundo – propósito

muito de acordo com suas convicções de estar imbuído de uma missão imperial

universal – certamente havia na base desta também um genuíno componente de

preocupação com os cristãos para além de seus domínios, manifesta, entretanto,

de modo um tanto quanto desastrado. O Imperador, por exemplo, ouviu falar que

as províncias a leste das fronteiras romanas estavam repletas de cristãos e sentiu

que deveria fazer algo por eles, de modo que redigiu uma carta a Shapur II, o Xá

dos Xás da Pérsia, pedindo que – como ele mesmo o havia feito – reconhecesse e

protegesse os cristãos. O resultado mais imediato disto foi que os seguidores

persas de Jesus de Nazaré começaram a enfrentar pela primeira vez não só a

oposição dos magos zoroastristas, que eram os sacerdotes da religião estatal, mas

também questionamentos sobre sua lealdade ao Grão-Xá. Amigos do inimigo de

Shapur, e, portanto, do Estado persa, os cristãos foram postos sob observação e

afastados de todas as funções públicas que porventura eles ou seus simpatizantes

ocupassem, tiveram de pagar uma dupla taxa para manterem as suas crenças, e

seus edifícios de culto e reunião confiscados ou queimados. Em 339, determinou-

se que todos os cristãos da Pérsia – e em especial os convertidos de famílias

zoroastristas – deveriam adorar o sol, um rito central da religião daquele Estado, e

os que se recusaram a fazê-lo foram de pronto exilados ou mortos. Estima-se que

dezenas de milhares de cristãos persas tenham sido assassinados por suas próprias

autoridades civis, e a perseguição foi tão severa que Selêucia-Ctesifonte, então

capital daquele Império, ficou várias décadas sem um bispo principal, pois cada

eleição episcopal aí realizada ocasionava uma imediata execução. Enquanto os

teólogos gregos e latinos estavam reunidos no Concílio de Calcedônia (451), o

                                                            623 D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. 209. 624 Id. Op. cit. p. cit.

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patriarca persa de Selêucia-Ctesifonte, Dadieshu, ainda tinha de se ver com uma

sociedade hostil que julgava os cristãos simpáticos aos seus inimigos romanos e

com a perspectiva de tornar-se um mártir de uma hora para a outra.625 Mesmo no

interior do Império Romano, a vinculação entre Estado e Igreja nunca foi aceita

integralmente e com inteira tranqüilidade, mesmo entre os mais altos prelados da

corrente cristã hegemônica – basta-nos evocar aqui o exemplo de João

Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla, do qual já pudemos tratar (ainda que

tangencialmente, em uma nota de rodapé no primeiro capítulo deste trabalho).

Retomemos uma ponta que propositadamente havíamos deixado meio

solta e que merece mais uma consideração. A mais notável das muitas coisas

notáveis que este relacionamento entre Igreja e Império, que hoje estamos

demasiado de pronto dispostos a considerar de forma anacrônica como

incestuoso626, propiciou foi que os cristãos buscassem interpretar cada vez mais

minuciosamente, dentro das categorias intelectuais já assimiladas e re-significadas

da física e da metafísica helênica, a sua crença em Jesus Cristo. De fato, a querela

ariana foi apenas a primeira de tantas outras sobre esta mesma temática. Uma

linguagem que visa a apreender e expor de maneira inteligível a arrasadora e

irresistível experiência do sagrado, que engendra no homem emoções que ele não

pode compreender e expressar de modo inteiramente adequado em palavras e

conceitos627, a teologia desenvolve-se grandemente quando mobilizada na tarefa

de Sísifo de definir com precisão sua crença e, com ela, uma identidade cristã –

que também é a do Império Romano Cristão. Como todos os saberes, em todos os

tempos, a teologia do cristianismo constantiniano alicerça-se então em certos

pressupostos que são ao mesmo tempo seus limites e possibilidades de existência,

e estes não só fundamentam como direcionam – e condicionam – seu

desenvolvimento reflexivo específico.628 A necessidade de verbalizar, ou seja, de

circunscrever, uma experiência necessariamente não-definível, de entender,                                                             625 Cf. Ibid. Op. cit. pp. 248-250. 626 Cf. H. I. MARROU. Op. cit. p. 847. 627 Cf. Karen ARMSTRONG. Uma história de Deus : Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. (Trad. Marcos Santarrita; rev. da trad. Hildelgarda Feist e Wladimir Araújo). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 60 e nota correspondente, n. 2 ao cap. 2, p. 501. 628 Cf. Rubem ALVES. Filosofia da ciência : Introdução ao jogo e suas regras. (11ª ed.). São Paulo: Loyola, 2006 [2000]. (Col. “Leituras filosóficas”, n. 7). ps. 31, 77, 93, 115-125, 129-132, 173-174, 206-217.

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arranjar e expor conceitualmente aquilo que por definição é mistério, e de

desenhar os contornos de uma ortodoxia a partir de tão abstratas bases envolveu

os teólogos cristãos em problemas intelectuais quase insolúveis, mas que contudo

clamavam por algum tipo de resposta a partir do momento em que foram

vislumbrados – para o bem da Igreja Cristã e do Imperador e Império Cristãos.

Sob o patrocínio de Constantino e seus sucessores do Oriente e do Ocidente, e

visando antes de qualquer outra coisa a unidade dos crentes, a teologia

especulativa cedo dividiu os pensadores cristãos e as comunidades eclesiais – e

em um giro voltamos ao cerne de nosso argumento. As únicas soluções possíveis

para as vetustas querelas sobre coisas que não podem ser empiricamente

verificáveis por todos, nas quais passa a estar em jogo também a unidade do

Império, são a aceitação indiferente da ruptura – foi o que, por exemplo, fez

Juliano, dito o Apóstata629 - ou o estabelecimento a todo custo de um consenso –

com sua eventual imposição pela autoridade e violência estatal à todos aqueles

que, mais convictos de suas doutrinas, não estivessem dispostos a ceder aos que

criam diferente.630

                                                            629 Cf. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. pp. 231-232. P. JOHNSON. Op. cit. pp. 105-106. Maria Luisa ANGRISANI SANFILIPO. “Juliano o Apóstata”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 791-792. 630 Cf. H. KÜNG. Op. cit. pp. 223-224. Sabendo que este argumento pode se prestar tão bem a especulações anti-católicas, é importante ressaltar e deixar bem claro aqui, uma vez mais, que não estamos nos referindo ao paradigma medieval do cristianismo, mas à circunstâncias e processos bem distintos. O desenvolvimento de uma estrutura monárquica de Igreja independente do Estado ou mesmo com pretensões de ter a ascendência sobre este, ou assumir-lhe algumas das funções, centrada na plenitudo potestatis do bispo de Roma, é por uma série de motivos políticos e teológicos, paralela e posterior à guinada constantiniana da fé cristã. Ainda na segunda metade do século IV e na primeira do seguinte o Ocidente cristão é apenas um apêndice da Cristandade grega do Império Romano Oriental. A estrutura eclesiástica encontrava-se então efetivamente organizada em torno não do sucessor de Pedro, mas de um César, que era quem fazia edificar e consagrar os templos cristãos, protegia e subsidiava seus clérigos dedicados em tempo integral ao serviço das coisas sacras e convocava desde Constantinopla os Concílios Ecumênicos que forjaram a fé da maior parte dos cristãos da posteridade ao deliberarem sobre a correta forma de crer e celebrar a crença em Jesus Cristo. Id. Op. cit. p. 232 (também pp. 233-237).

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IV.

“Os leopardos irrompem no templo e bebem o vinho dos cálices; isso acontece repetidamente; ao cabo prevê-se que acontecerá e se incorpora à cerimônia do templo.”

FRANZ KAFKA

Em 1935, foi publicado em Leipzig sob a edição de Jakob Hegner um

tratado filológico e historiográfico, não muito amplo, de Erik Peterson, com o

título de O monoteísmo como problema político : uma contribuição à história da

Teologia Política no Império Romano. O título e o subtítulo indicam que o escrito

limita-se a lidar com o monoteísmo e a monarquia nos primeiros séculos da Era

Cristã, seu material são fontes literárias e atestados epigráficos dos séculos III a.C.

a IV d.C., mas, nas suas páginas finais, é explicitamente anunciada como tese

central da obra a resolução de toda a Teologia Política, conforme esta havia sido

delimitada no texto homônimo da autoria de Carl Schmitt, publicado em Munique

no ano de 1922: “(...) Fizemos, aqui, a tentativa de comprovar, com um exemplo

concreto, a impossibilidade teológica de uma ‘Teologia Política’.”631 Este texto

sobre a fórmula aclamatória e analógica Um Deus – um monarca, ao chamar seu

monarca eventualmente de Führer (líder) foi sentido como uma alusão arguta e

bem escamoteada à ascensão do Nazismo, ao sistema de um partido e ao

totalitarismo, contendo em si um alerta de que o cristianismo era incompatível

com o seguimento dos ídolos da raça, da nação e da guerra. Sua epígrafe

contribuiu para tal entendimento: “era uma frase de Santo Agostinho que adverte

quanto ao falso esforço de unidade surgido da ânsia mundial pelo poder.”632

Na obra de Peterson, Constantino é sutilmente comparado com Hitler e

Stálin, coisa duramente criticada por Carl Schmitt no texto em que este pensador

propôs a refutar as conclusões e a recepção acrítica de O monoteísmo como

problema político: “(...) A atualidade do ano de 1935 comparada a paralelos

históricos do ano de 325 nem é científica, nem teologicamente permitida; de toda

forma, não sem uma explicação da exemplificação pretendida in concreto do

                                                            631 Carl SCHMITT. Teologia política. (Trad. Elisabeth Antoniuk; coord. e superv. Luiz Moreira). Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 68. 632 Id. Op. cit. p. 70.

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material comprobatório.”633 O grande “vilão” de Peterson, entretanto, não é o

Imperador Cristão, mas Eusébio de Cesaréia, tido como consciente, mal-

intencionado e perigoso ideólogo do aparelho estatal romano, que teria tentado em

toda a sua tão abrangente quanto erudita produção intelectual situar o

Cristianismo como uma espécie de florescimento da filosofia judaico-helenística

de Josefo e de Alexandria. Ao fazer tal coisa, o bispo historiador intentaria

integrar a fé cristã à história romana de maneira servil, ao mesmo tempo em que

pretendia legitimar a monarquia como uma resposta providencial aos riscos de

fracionamento da comunidade política greco-latina, também ela determinada por

expressa vontade de Deus. O autor da História Eclesiástica figura neste tratado de

1935 como o representante de uma inadmissível teologia política que pretende

politizar a noção de Reino de Deus retorcendo-a de tal modo que a faz contrária

mesmo à pregação de Jesus registrada nos quatro evangelhos canônicos. Mais do

que isto, o bispo de Cesaréia é tomado como um protótipo geral de todos os

pensadores que se dedicaram a afastar o potencial revolucionário do movimento

cristão e o teorizar como uma religião completamente dócil aos desígnios

políticos dos príncipes deste mundo.

“(...) A Eusébio e ao arianismo que desenvolveram a noção de monarquia divina projetando nesse mundo temporal os modelos de paz e de monarquia cristã (que apenas podem se realizar em Deus), Peterson opôs o dogma trinitário, que para ele combate tal tendência ao situar a religião de Cristo precisamente além do Judaísmo. Á escatologia equivocada de Eusébio Peterson opôs a proclamação libertadora do Deus único e tríplice, libertada da importância do Império na história da salvação.”634

No seguir da referida obra, Gregório Nazienzo é valorizado contra

Eusébio, por “elevar toda a reflexão a uma ordem real colocada além de toda

desordem caracterizada pelos conceitos de anarquia, poliarquia e monarquia”635, e

Gregório de Elvira é destacado como o mais eloqüente crítico das tentativas de

realizar na terra a monarquia celeste ao comparar ao anticristo o que tentasse fazê-

                                                            633 Ibid. Op. cit. p. 94. 634 C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 295-296. 635 Citado em: C. SCHMITT. Op. cit. p. 92.

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lo. 636. Por fim, Peterson abandona o material comprobatório no qual se edifica o

restante de sua obra para realizar uma confrontação tipológica entre as teologias

de Eusébio de Cesaréia e Agostinho de Hipona, sobrelançando à estrutura

científica que havia construído argumentativamente o juízo faccioso de que, sendo

o primeiro um mero cortesão, uma versão cristã dos antigos sacerdotes pagãos, o

segundo “com seu conceito cristão da ‘paz’, realizou o que os pais eclesiásticos

gregos, especialmente Gregório de Naziano [i.e., Gregório Nazienzo], teriam

realizado com seu conceito de Deus e a doutrina da trindade: a libertação da fé

cristã ‘do acorrentamento do Império Romano’.”637

Além de todos os problemas destacados por Carl Schmitt em sua refutação

a este texto – dentre os quais os mais graves certamente são o uso leviano do

pensamento analógico para estruturar argumentos de raiz e o descompasso entre a

tese apresentada e os materiais comprobatórios selecionados e analisados –

podemos chamar a atenção para mais dois. Em primeiro lugar, como bem chamou

a atenção Gilbert Dragon em seu livro Empereur et prêtre : Études sur le

‘césaropapisme’ byzantin (Paris, 1996), Erik Peterson alicerça seu discurso em

uma confrontação preconceituosa entre um imaginário Ocidente que sabe bem dar

a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, e por isto é capaz de preservar

um núcleo religioso duro e independente, avesso à mácula dos interesses políticos,

e um inventado Oriente secreta e naturalmente filoariano e totalitário, onde

Império Bizantino, Autocracia Russa e Comunismo Stalinista se desdobrariam no

processo histórico mais como continuidade e sucessão do que como ruptura e

mudança. Faz, em outros termos, uma divisão valorativa muito clara entre

cesaropapismo-totalitarismo oriental e a tipicamente ocidental separação

agostiniana das duas cidades, que não passam, aliás, de quimeras por ele

entusiasticamente nutridas.638

                                                            636 Cf. Id. Op. cit. p. 93. 637 Ibid. Op. cit. p. cit. 638 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. p. 296. É realmente uma pena que Edward Said, que tão astuciosamente percebeu e destacou as inúmeras construções preconceituosas do oriental – para ele, por excelência, o islâmico – na arte, na ciência, no pensamento geopolítico e geoestratégico, e mesmo, incidentalmente, na religião européia, não tenha se detido em seu admirável Orientalismo na visão de políticos e letrados da Europa sobre o Oriente cristão em si mesmo, e em como isto gera não só a sensação de estranheza e exotismo diante daquilo que deveria constituir o patrimônio comum de todas as culturas nutridas no legado greco-latino tardio, mas também desentendimentos mútuos e incompreensões dos auto-designados ocidentais sobre sua própria história anterior ao

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Em segundo lugar, como viemos argumentando até agora, não é

exatamente no conteúdo objetivo da teologia cristã – partindo do reverente

pressuposto de que há algum –, mas na relação que com o seu desenvolvimento

teve o Império Romano – demandando formulações e buscando constituir e impor

consensos – e como isto ressoou no interior da instituição eclesial, conformando

práticas cúlticas e imperativos éticos, normas disciplinares e gêneros discursivos,

imagens do divino e formas de auto-compreensão – que se encontra o cerne da

problemática da aliança entre Altar e Trono. Com uma paixão notável, Richard

Bergeron, professor emérito da Faculdade de Teologia da Universidade de

Montreal, fundador e ex-presidente do Centre d’Information sur les Nouvelles

Religions, explicitamente engajado em reler a história do cristianismo para

estabelecer as bases de uma espiritualidade do diálogo e do pluralismo religioso,

afirmou que há uma relação necessária entre os dogmas, conforme eles foram

formulados por Nicéia e pelos outros seis grandes Concílios Ecumênicos, e os

anátemas, e que tanto das disputas de poder de ordem não-religiosa quanto destas

formulações consensuais nascem os cismas e as ditas heresias, “as intermináveis

querelas e as penosas excomunhões.”639 A formulação de fé de tipo conciliar,

portanto, que devia assegurar o solo comum dos cristãos, a base de sua unidade,

segundo o mesmo autor, graças à intervenção imperial, ter-se-ia degenerado em

princípio e fator de divisão entre eles. Os parâmetros de cálculo da política seriam

incompatíveis com os dos debates doutrinais, e a tentativa de direcionar o tom e o

alcance destes para que tivessem um bom termo é justamente o que, de modo

perverso, os tornaria inexauríveis minas de pedras-de-tropeço para a verdadeira

concórdia e comunhão eclesial.

Em verdade, é bastante interessante o argumento de Bergeron, baseado

também em uma confrontação. Este autor opõe a busca da verdade que “(...) Não

se ordena nem se força (...) [que] não conhece fronteiras e se recusa a qualquer

compromisso caso sua liberdade e seu poder de libertação sejam entravados de

algum modo (...) [que] se enraíza mais no maravilhamento do que na convenção,

                                                                                                                                                                   século V (ou XI-XIII, se tomarmos como marca de ruptura entre os mundos culturais provenientes dos dois lados do cristianismo mediterrânico as excomunhões mútuas de 1054 e a cruzada de 1204). Ver: Edward W. SAID. Orientalismo : O Oriente como invenção do Ocidente. (Trad. Rosaura Eichenberg). (2ª ed. rev.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

639 R. BERGERON. Op. cit. p. 72.

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antes na atenção ao outro do que na pertinência erudita a uma comunidade bem

definida”640 ao “reino da religião cristã imperial”641, no qual “(...) Todas as

concepções de Deus e de Cristo não conformes à posição ortodoxa, tal como

definida pelos concílios e defendida pelo Imperador, são desqualificadas e

condenadas como heterodoxas, e seus defensores são perseguidos e

excomungados.”642 Partindo deste contraste é que ele constatou que as relações

entre o movimento cristão de primeira hora e o Império Romano são tão

complexas e desconhecidas para nós como foram de fato os seus relacionamentos

com os judaísmos e paganismos dos séculos I a III. Dispomos, de fato, de não

muitos materiais para investigar tal problemática, e somos tão aferrados às nossas

próprias posições ideológicas que acabamos tendo necessariamente uma

compreensão absolutamente equivocada do que se passou.643 Talvez isto seja

inevitável na medida em que a objetividade científica é apenas um ideal e não

podemos escapar de nós mesmos para assumir as lentes de um observador tão

imparcial quanto onisciente. Diante disto podemos cair na ironia do deixar estar

ou então, nos angustiarmos com uma alma sensível como a de Simone Weil,

pensadora de origem judaica que era fascinada pela figura e pelo ensinamento de

Jesus de Nazaré, enquanto nos questionamos por que e como, depois de os

cristãos serem perseguidos como ímpios e ateus por Roma,

“(...) o império adotou o cristianismo como religião oficial? E em que condições? Que degradação teve ele de sofrer em troca? Como se realizou essa colusão entre a Igreja e a Besta? Pois a Besta do Apocalipse designava sem dúvida alguma o império.”644

                                                            640 Id. Op. cit. p. 11. 641 Ibid. Op. cit. p. 72. 642 Ibid. Op. cit. p. cit. 643 Edward Gibbon já observou esta variável de deformação na pesquisa sobre o cristianismo antigo há bem mais de duzentos anos atrás: “(...) A direção da Igreja tem sido amiúde o objeto bem como o prêmio das disputas religiosas. Os contentores hostis de Roma, de Paris, de Oxford e de Genebra forcejaram cada qual a seu modo por reduzir o primitivo modelo apostólico aos respectivos padrões de sua própria política.” E. GIBBON. Op. cit. p. 263. 644 Simone WEIL. Ouvres. Paris: Gallimard, 1999. (Col. “Quarto”). p. 1013. Apud: R. BERGERON. Op. cit. p. 73.

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Por outro lado, também podemos enfrentar a nós mesmos e buscar

prosseguir apesar das dificuldades. De algum modo, operou-se, talvez com a

melhor das intenções, “um enrijecimento das estruturas nas quais a espiritualidade

cristã encontrara seu lugar de inscrição até o começo do século IV (...) e o

movimento cristão transformou-se em instituição sociopolítica solidamente

ancorada no quadro jurídico do império.”645 Dado este a priori, podemos ir buscar

materiais que nos ajudem a entender mais precisamente quais foram os caminhos

trilhados por determinado ramo do movimento cristão para que seus interesses

convergissem com os do Império, e a partir daí pensar de maneira mais

esclarecedora a relação entre estas duas instituições.

Talvez a mais importante coisa a se considerar neste trabalho é que ao

favorecer a Igreja, sem, contudo, torná-la efetivamente religião de Estado,

Constantino percebeu que um determinado cristianismo “já possuía muitas das

características de uma religião imperial.”646 No decorrer das operações anticristãs

promovidas em larga escala pelo Império Romano na segunda metade do século

III, as autoridades governamentais foram forçadas a admitir que não estavam

lidando com mais uma religião helenística da qual pudessem se livrar com uma

sacudidela. As formas de ser cristão que se tornariam ortodoxas já haviam se

adaptado muito bem à ordem romana, deixando de lado, por exemplo, aquelas

aspirações nacionais tão características do judaísmo palestinense e assumindo

uma postura a-política, levemente marcada de conformismo. Mais ainda, na longa

batalha pela criação e manutenção da unidade e na codificação da doutrina em

termos que favorecessem tanto o trabalho missionário quanto o duro trabalho de

auto-compreensão, um ramo da Igreja havia se tornado uma imagem do próprio

Império: “católico, universal, ecumênico, ordenado, internacional, multiracial e

cada vez mais legalista (...) administrado por uma classe profissional de eruditos

que, sob determinados aspectos, faziam as vezes de burocratas, e seus bispos,

como governadores imperiais, legados ou prefeitos, detinham amplos poderes

discricionários para interpretar a lei.”647 Os inequívocos sinais desta acomodação,

talvez ditada inicialmente pela convicção de que o Fim estava muito próximo e

                                                            645 Id. Op. cit. p. cit. 646 P. JOHNSON. Op. cit. p. 94. O grifo é nosso. 647 Id. Op. cit. p. 93.

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não havia tempo para mudar nada além de si mesmo – e nem necessidade disto, já

que o Juízo corrigiria as injustiças ao exaltar os bons e eliminar os maus –, e

candidamente confirmada pela simples necessidade de seguir vivendo em paz648,

já estão presentes em documentos cristãos antigos – como o Novo Testamento – e

fornecerão a mais sólida base da argumentação pró-imperial da Igreja Triunfante.

Enquanto Paulo deu sinais de resistir a uma relação de patronato entre ele

e a florescente comunidade cristã de Corinto – “(...) Paulo teria sido crucificado

em vosso favor? Ou fostes batizado em nome de Paulo? Dou graças a Deus por

não ter batizado ninguém de vós a não ser Crispo e Caio”649 – e insistia em tão

constrangedoras quanto subversivas afirmações de igualdade radical entre os

cristãos – “(...) Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem

nem mulher; pois todos vós são um só em Cristo Jesus”650 –, seus sucessores na

liderança das igrejas oriundas de sua pregação plasmaram os fundamentos mais

sólidos daquilo que se tornaria o cristianismo ortodoxo. Nas cartas por eles

redigidas, chamadas pelos especialistas de deutero-paulinas – como as Epístolas

aos Colossenses e aos Efésios e as ditas “pastorais” (a Tito, a Filêmon e primeira e

segunda a Timóteo) –, adaptaram sua fé à família patriarcal escravagista – “(...)

Durante a instrução que a mulher conserve o silêncio, com toda submissão. Não

permito que a mulher ensine ou domine o homem”651; “(...) Todos os que estão

sob o jugo da escravidão devem considerar os próprios senhores como dignos de

todo respeito; para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados”652 –

e estabeleceram uma atitude geral diante dos debates religiosos – “(...) Evita

controvérsias insensatas, genealogias, dissensões e debates sobre a Lei, porque

para nada adiantam, e são fúteis. Depois de a primeira e da segunda admoestação,

                                                            648 Para a consideração adequada disto, pode ser útil lembrar um trecho de Edward Thompson, onde este historiador inglês escreveu que “(...) Muito raramente – e, neste caso, apenas por pouco tempo – uma classe dominante exerce, sem mediações, sua autoridade por meio da força militar e econômica direta. As pessoas vêm ao mundo em uma sociedade cujas formas e relações parecem tão fixas e imutáveis quanto o céu que nos protege. O ‘senso comum’ de uma época se faz saturado com uma ensurdecedora propaganda do status quo, mas o elemento mais forte dessa propaganda é simplesmente o fato da existência do existente.” Edward Palmer THOMPSON. “Folclore, Antropologia e História Social.” In: As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. (Org. e trad. Antonio L. Negro e Sergio Silva). Campinas: UNICAMP, 2001. p. 239. 649 BÍBLIA.Ver cit. Primeira Epístola aos Coríntios 1, 13b-14. p. 1994. 650 Id. Ver. cit. Epístola aos Gálatas 3, 28. p. 2035. 651 Ibid. Ver. cit. Primeira Epístola a Timóteo 2, 11-12a. p. 2070. 652 Ibid. Ver. cit. Primeira Epístola a Timóteo 6, 1. p. 2073.

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nada mais tens a fazer com um homem faccioso, pois é sabido que o homem

assim se perverteu e se entregou ao pecado, condenando-se a si mesmo.”653

A obra de dois volumes composta pelo Evangelho de Lucas e pelo Atos

dos Apóstolos, embora ainda tenha representado o movimento cristão como uma

alternativa ao Império Romano, o fez em uma perspectiva majoritariamente não-

conflitiva, o que vale dizer, “suaviza as implicações subversivas dos ensinamentos

proféticos de Jesus e responsabiliza explicitamente os judeus por suas

dificuldades, enquanto isenta os oficiais romanos”.654 O Evangelho de Mateus,

mais contundente, culpa os judeus, ou pelo menos os seus dirigentes sacerdotais,

pela morte de Jesus, apresentando ainda a destruição de Jerusalém e de seu

Templo como castigo de Deus por esta perfídia. O texto dito de João, por fim,

marca uma ruptura ainda mais profunda entre os espirituais cristãos e os

politizados judeus, afirmando que estes são filhos do diabo655 e destacando que o

reino de Jesus não é deste mundo.656 Além disto, a origem última do poder

romano, personificada no hesitante Pôncio Pilatos, está não na astúcia dos Césares

ou na força das suas legiões, mas em Deus: “(...) Não terias poder algum sobre

mim, se não te fosse dado do alto”.657

Dentre estas antigas referências que podem ser tomadas como testemunho

de que os cristãos nunca conceberam a autoridade do Imperador Romano como

puramente secular – aliás, como os devotos das divindades olímpicas, os

seguidores dos cultos de mistério, os judeus das mais diversas correntes,

palestinenses ou da diáspora e os adeptos das escolas filosóficas da época

helenística658 – duas podem ainda ser especialmente destacadas. De um lado

temos um trecho que teria sido redigido por Pedro, a quem a tradição eclesiástica

sempre atribuiu a primazia do colégio apostólico, onde o antes pescador teria

apresentado, emoldurando uma prescrição de conduta associada à uma                                                             653 Ibid. Ver. cit. Epístola a Tito 2, 9-11. pp. 2080-2081. 654 Richard HORSLEY. Jesus e o Império : O Reino de Deus e a nova desordem mundial. (Trad. Ecluides Luiz Calloni). São Paulo: Paulus, 2004. (Col. “Bíblia e Sociologia”, n. 16). p. 139. 655 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. João 8, 44. p. 1866. 656 Cf. Id. Ver. cit. João 18, 36. pp. 1889-1890. 657 Ibid. Ver. cit. João 19, 11. p. 1890. 658 Cf. Ghislain LAFONT. História teológica da Igreja Católica : Itinerário e formas da teologia. (Trad. Mariana N. R. Echalar). São Paulo: Paulinas, 2000. (Col. “Pensamento teológico”). ps. 71-72 e 91.

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preocupação pastoral muito concreta, toda uma regra geral do relacionamento

entre os cristãos e o status quo:

“(...) Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor, seja ao rei, como soberano, seja aos governadores, como enviados seus para a punição dos malfeitores e para o louvor dos que fazem o bem, pois esta é a vontade de Deus que, fazendo o bem, tapeis a boca à ignorância dos insensatos. Comportai-vos como homens livres, não usando a liberdade como cobertura para o mal, mas como servos de Deus. Honrai a todos, amai os irmãos, temei a Deus, tributai honra ao rei.”659

Do outro, consta certa passagem de uma epístola na qual escreveu o

Apóstolo dos Gentios aos cristãos da capital do Império que

“(...) Cada um se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e às que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação. Os que governam incutem medo quando se pratica o mal, não quando se faz o bem. Queres então não ter medo da autoridade? Pratica o bem e dela receberás elogios, pois ela é instrumento de Deus para te conduzir ao bem. Se, porém, praticares o mal, teme, porque não é à toa que ela traz a espada: ela é instrumento de Deus para fazer justiça e punir quem pratica o mal. Por isso é necessário submeter-se não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência.”660

Como bem observou Celso Taveira sobre esta última passagem, “(...) Não

deixa de surpreender a força psicológica desse existir e simultaneamente estar

instituído”661, fator que será explorado pelos teólogos e estadistas até se tornar um

sólido fundamento das prerrogativas de intervenção da autoridade governamental

no âmbito da vida interna da Igreja. Nestes dois textos atribuídos às duas grandes

colunas da Igreja e na célebre passagem em que segundo a narrativa do Evangelho

de Mateus Jesus teria prescrito aos judeus seu interlocutores dar “o que é de César

a César, e o que é de Deus, a Deus”662 é que encontramos os mais repetidamente

                                                            659 BÍBLIA. Ver. cit. Primeira Epístola de Pedro 2, 13-17. p. 2115. 660 Id. Ver. cit. Epístola de Paulo aos Romanos 13, 1-5. p. 1987. 661 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 65. 662 BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 22, 21b. p. 1743.

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invocados princípios básicos da fundamentação propriamente religiosa da lei e do

poder do Império nas Sagradas Escrituras cristãs.663 É leviano afirmar pura e

simplesmente, entretanto, que tinham os apóstolos, os evangelistas, seus

secretários escribas ou seus seguidores imediatos a convicção de que era divino o

poder dos imperadores romanos. Deve-se lembrar que, via de regra, os cristãos

recusavam-se a cultuá-lo como entidade sobre-humana, e que seus escritos

visavam primordialmente a organização das suas comunidades em formação,

ameaçadas em sua própria sobrevivência pelas perseguições e pelas dissidências,

sendo, por assim dizer, “testemunhos de uma época ainda indefinida na vida da

Igreja”664 A valorização destas máximas conformistas do Novo Testamento teve

início sobretudo a partir dos séculos III e IV, quando o movimento cristão,

bastante transformado em muitos aspectos e sacudido por conflitos internos cada

vez mais amplos e profundos, começou a ter um motivo concreto para aceitar a

própria “intervenção imperial direta nos assuntos da Igreja, através da convocação

dos concílios.”665

Mais ou menos contemporâneo à redação do quarto evangelho e das mais

tardias epístolas incorporadas ao cânone neo-testamentário, é o texto da carta de

Clemente de Roma aos Coríntios. Um dos sucessores de Pedro na chefia da

comunidade cristã da capital do Império, Clemente escreveu oficialmente a seus

                                                            663 Uma exegese alternativa do trecho citado do Evangelho de Mateus – que também está presente na narrativa dita de Marcos –, que tem o mérito de situá-lo em seu contexto original de formulação (a Jerusalém da primeira metade do século I) e, deste modo, expõe o seu caráter retórico e de provocação política, consta em: Marcus J. BORG e John Dominic CROSSAN. A última semana : Um relato detalhado dos dias finais de Jesus. (Trad. de Alves Calado). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. pp. 81-86. 664 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 66. O grifo é nosso. Alicerçado quase sobre o mesmo esteio argumentativo, o filósofo esloveno Slavoj Žižek escreveu a respeito de Paulo que “(...) O que lhe interessa não é Jesus como figura histórica, mas apenas a sua morte na cruz e a sua ressurreição de entre os mortos; uma vez estabelecida a morte e ressurreição de Jesus, dedica-se à sua verdadeira tarefa, um autêntico empreendimento leninista: a organização de um novo partido chamado comunidade cristã... São Paulo como leninista: não foi ele, como Lenine, o grande ‘organizador’ e, como tal, não foi caluniado pelos partidários do cristianismo-marxismo das origens? A temporalidade paulina – a do ‘já, mas não ainda’ – não corresponderá também à situação de Lenine entre a revolução de fevereiro e a da outubro de 1917? A revolução já ficou para trás, o antigo regime morreu, a liberdade foi conquistada, mas o verdadeiro trabalho ainda está por fazer.” Slavoj ŽIŽEK. A Marioneta e o Anão : O Cristianismo entre Perversão e Subversão. (Trad. Carlos C. M. de Oliveira). Lisboa: Relógio D’Água, 2006. (Col. “Argumentos”). pp. 14-15. Imaginamos que esta consideração e imagem aplicadas ao fariseu antes perseguidor dos cristãos podem ser genericamente estendidas ao grupo – ou à maior parte do grupo – dos Doze, assim como à quase todos os líderes de primeira hora do movimento dos seguidores de Jesus dos quais temos notícias, fosse entre os judeus da diáspora em meio aos gentios. 665 C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit.

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correligionários de Corinto, então assolados por um conflito intestino de tal ordem

grave que levou a um surpreendente coup d’état: a deposição do epíscopo e

presbíteros então instituídos e a indicação de substitutos para suas funções de

guias da assembléia e presidentes da liturgia. Não havia então na Igreja de Corinto

nenhum problema de ordem doutrinal, de modo que esta correspondência tratou

apenas de questões de estrita ordem relacional / disciplinar. Neste antigo

testemunho, há em primeiro lugar o vigoroso chamado à unidade e à ordem, onde

Clemente apresenta aos coríntios inúmeros exemplos edificantes extraídos das

Escrituras dos judeus e dos cristãos, e também da cultura greco-latina da época.

Inclusive da cultura político-militar romana, deve-se observar:

“(...) Reparemos nos soldados alistados sob as bandeiras de nossos imperadores, como cumprem as ordens com disciplina, prontidão e submissão. Nem todos são comandantes, nem todos tribunos, nem centuriões, nem prepostos a cinqüenta e assim por diante, mas cada qual em seu próprio posto cumpre as ordens dadas pelo chefe supremo e demais autoridades. Os grandes não podem sem os pequenos, nem os pequenos sem os grandes. Em tudo existe alguma mistura e nela está a vantagem.”666

Tal alusão é de especial relevo se considerarmos que este documento

muito possivelmente foi escrito logo após o fim da grande perseguição promovida

pelas ordens de Domiciano (anos 80-81). Recolocada em seu contexto, esta

referência afigura-se ainda mais notável como símbolo de estruturas mentais já

bastante arraigadas. Não bastasse isto, a carta se encerra com uma belíssima prece,

talvez a mais antiga oração universal de que tenhamos notícias, direta antepassada

das litanias logo depois incorporadas na liturgia cristã do Oriente e do Ocidente,

na qual se expressa em pleonasmo a declaração neo-testamentária sobre a

procedência do poder imperial:

“(...) Torna-nos submissos a teu nome todo-poderoso e todo santo e aos que nos governam e dirigem sobre a terra. Tu, Senhor, lhes deste o poder da autoridade

                                                            666 CLEMENTE DE ROMA. Carta aos Coríntios. (Trad. do original, introd. e notas de Paulo Evaristo Arns). (3ª ed.). Petrópolis: Vozes, 1984 [1970]. c. 37, vs. 2-4. p. 45. A idéia da vida cristã como serviço militar e da Igreja como exército cujo general (cabeça) é Cristo depende diretamente dos escritos paulinos. Cf. p. ex. BÍBLIA. Ver. cit. Segunda Epístola aos Coríntios 10, 3-6. p. 2026. Epístola aos Efésios 4, 15. p. 2044. Epístola aos Colossenses 1, 24 e 2, 19. ps. 2055 e 2057.

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por tua força magnífica e inefável, para que soubéssemos que por ti lhes foi dada a glória e honra, e a eles nos submetêssemos, em nada contrariando a tua vontade. Dai-lhes, pois, Senhor, saúde, paz, concórdia e estabilidade, a fim de que exerçam sem tropeços a soberania que lhes confiaste. Pois tu, Senhor dos céus, Rei dos Séculos, dás aos filhos dos homens glória, honra e poder sobre o que existe na terra. Tu, Senhor, dirige sua vontade no sentido do que é bom e agradável a teus olhos em tua presença, a fim de que exerçam a autoridade que lhes deste na paz e mansidão, e obtenham tua graça!”667

Ao que tudo indica, a terminologia que os autores do Novo Testamento, e

especialmente Paulo empregaram contra o próprio Império – quando este, por

exemplo, afirmou que “o Senhor [Kýrios] é Jesus Cristo”668 efetivamente

sustentava ao mesmo tempo que não o era o Imperador de Roma, designado entre

os gregos pelo mesmo termo (Kýrios)669 – facilmente poderia ser revertida, se

entendida em sentido seletivamente literal, de modo a apoiar a mesma instituição

que havia sido, no mínimo, ironizada pelo Apóstolo. Em pouco, “Cristo se tornou

não o Senhor e Salvador antiimperialista, mas o Rei imperial que autorizava o

imperador e a ordem imperial”670 – ainda que, como já tivemos a ocasião de

observar, esta imagem do Nazareno nunca tenha se tornado absolutamente

consensual entre os fiéis de todas as áreas atingidas pela pregação cristã.671 Tal

coisa se deu antes do Edito de Milão e dos decretos de Teodósio, ou seja, não foi

parte de uma inescrupulosa negociação entre bispos e governantes para manter o

povo alienado de sua opressão. Em retrospecto é fácil considerar a possibilidade

de que, geração após geração, houve uma política deliberada, incansavelmente

observada, pensada e executada unicamente para criar um sistema religioso

autoritário baseado em uma classe clerical privilegiada e na violência estatal, mas

isto não pode ser auferido das análises de nenhum dos documentos da

Antigüidade cristã dos quais temos hoje conhecimento. Como bem observou Paul

Johnson, “(...) Estes sugerem, pelo contrário, uma série de respostas ad hoc a

                                                            667 CLEMENTE DE ROMA. Op. cit. c. 60, vs. 1-4a. pp. 62-63. Sobre Clemente de Roma, ver: Paulo Evaristo Arns. “Introdução”. In: CLEMENTE DE ROMA. Op. cit.. Pier Franco BEATRICE. “Clemente Romano”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 305-306. Alfred STUIBER e Berthold ALTANER. Patrologia : Vida, Obras e Doutrina dos Padres da Igreja. (Trad. Monjas Beneditinas). (2ª ed.). São Paulo: Paulinas, 1988. (Col. “Patrologia”, n. 3). pp. 55-57. J. LIÉBAERT. Op. cit. pp. 22-23. 668 BÍBLIA. Ver. cit. Epístola aos Filipenses 2, 11a. p. 2050. 669 R. HORSLEY. Op. cit. p. 137. 670 Id. Op. cit. p. 139. 671 Cf. Ibid. Op. cit. p. 138 e notas correspondentes, n. 4-5.

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situações reais e, então, uma tendência a lançar mão de tais respostas como

precedentes ou plataformas sobre as quais erigir estruturas mais ambiciosas.”672 O

caso parece ser que, antes de mais nada,

“(...) a Igreja estava lutando por sua própria sobrevivência. E, em seu seio, havia uma luta contínua e multifacetada entre filosofias e sistemas antagônicas. (...) O ministério de Jesus foi conduzido em uma atmosfera de dissensão, debates irritados e espírito partidário; terminou em uma morte por meio de violência. O espírito da Igreja primitiva foi bem transmitido pelas epístolas de Paulo, que sugerem acridez doutrinária e controvérsias irresolutas; não houve um período de tranqüilidade na história da Igreja (...) [mas ela] sobreviveu e foi penetrando com perseverança todas as posições sociais ao longo de uma área imensa por meio da evitação ou absorção de extremos, da conciliação, do desenvolvimento de um temperamento urbano e da construção de estruturas análogas às seculares, a fim de preservar sua unidade e conduzir seus negócios. Houve, em conseqüência, uma perda da espiritualidade, ou, como Paulo teria dito, da liberdade. Ocorreu um ganho de estabilidade e força coletiva. No final do século III, o cristianismo (...) estava se tornando o Doppelgänger do império.”673

Na obra de Eusébio de Cesaréia, por exemplo, encontramos já plena

expressão desta afinidade entre a Igreja Cristã e o Império, compreendido também

– ao menos na pessoa do Imperador Constantino – como uma instituição dotada

de uma grandeza religiosa própria. A Vida de Constantino, um monumento em

quatro livros ao Imperador que convocou o Concílio de Nicéia e haveria de se

tornar amigo do bispo de Cesaréia, é um documento evidentemente comprometido

com o modelo do panegírico, já totalmente inserido no contexto do cristianismo

como uma religião efetivamente tornada de Estado. Bernard Altaner e Alfred

Stuiber destacam que é quase certa a veracidade dos documentos aí transcritos,

ainda que sua descrição “excessivamente enfática” do Imperador como protetor

dos cristãos seja de “veracidade (...) fortemente discutida.”674 Os estudos do

bizantinista belga Henri. Grégoire questionaram fortemente não a sua

autenticidade, mas a sua autoria, e este especialista concluiu por fim “que, embora

essa vida, tal como chegou até nós, contenha talvez um ‘núcleo eusebiano’, partes

muito grandes são certamente de uma época posterior (...) [e ele bem pode ter sido

                                                            672 P. JOHNSON. Op. cit. p. 79. 673 Id. Op. cit. os. 79-80 e 93. O Doppelgänger é uma espécie de duplo fantasmagórico de um vivo. Cf. Ibid. Op. cit. p. 93 (nota). 674 A. STUIBER e B. ALTANER. Op. cit. p. 225.

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redigido por] um compilador do fim do século IV ou do começo do século V.”675

Como antes já mencionado, os sete primeiros livros de sua História Eclesiástica

foram publicados já antes de 303, sendo depois sucessivamente complementados

e editados até alcançarem a sua forma final – que chegou até nós tanto em cópias

gregas quanto através de traduções siríacas e armênias ainda do século IV – em

algum momento entre a derrota de Licínio por Constantino e a ordem por este

dada para que seu filho Crispo fosse assassinado. Considerando-se que eles não

fazem nenhuma alusão à controvérsia ariana ou ao Concílio de Nicéia, não é

leviano acreditar que antes destes eventos a História Eclesiástica tenha chegado à

forma que mais tarde (em 403) Rufino traduziria, complementando a exposição

até 395.676 Antes ou durante a intervenção de Constantino em matéria

propriamente doutrinal, portanto, é que Eusébio redigiu linhas como as seguintes,

nas quais narrou a batalha conhecida como sendo da “Ponte Mílvia” (final de

outubro de 312):

“(...) Constantino, que, como já dissemos anteriormente, é imperador filho de imperador e varão piedoso, filho de um pai piedoso e prudentíssimo em tudo, foi levantado contra os ímpios tiranos pelo Imperador supremo, o Deus do universo e Salvador. E quando determinou-se a lutar segundo a lei da guerra, combatendo como aliado dele, Deus da maneira mais extraordinária, Maxêncio caiu em Roma ao impacto de Constantino, enquanto o outro, sobrevivendo muito pouco tempo no Oriente, sucumbiu nas mãos de Licínio, que ainda não estava transtornado. Constantino foi o primeiro dos dois – primeiro também em honra e dignidade imperiais – que mostrou moderação com os oprimidos pelos tiranos em Roma. Depois de invocar como aliado em suas orações ao Deus do céu e a seu Verbo, e ainda ao próprio Salvador de todos, Jesus Cristo, avançou com todo o seu exército, tentando alcançar para os romanos sua liberdade ancestral. Maxêncio, sabemos, confiava mais nos artifícios da magia do que na benevolência dos súditos, e na verdade não se atrevia a dar um passo fora das portas da cidade, apesar de que, com a multidão de hoplitas e com as inumeráveis companhias de legionários, cobria todo lugar, toda região e toda cidade, todas as que tinha escravizadas, em torno de Roma e em toda a Itália. O imperador, aferrado à aliança de Deus, ataca o primeiro, o segundo e o terceiro exército do tirano, e depois de vencê-los a todos com facilidade, avança o mais que pode pela Itália até muito perto de Roma.

                                                            675 Paul LEMERLE. História de Bizâncio. (Trad. Marilene P. Michael). São Paulo: Martins Fontes, 1991. (Col. “Universidade hoje”, n. 30). p. 8. A interpolação entre colchetes é nossa, inserida para explicitar o sentido do texto aqui mutilado pelo nosso ato de extraí-lo de seu contexto original e transcrevê-lo. 676 Cf. A. STUIBER e B. ALTANER. Op. cit. p. 224. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. pp. 41*-46*. No sexto versículo do nono capítulo do décimo Livro da História Eclesiástica, o último da obra, Crispo ainda era descrito como “imperador amado de Deus e semelhante em tudo ao pai”. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 9, 6. p. 346.

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Logo, para que não se visse forçado a lutar contra os romanos por causa do tirano, Deus mesmo arrastou o tirano, como em cadeias, o mais longe das portas. E o que já antigamente estava escrito nos sagrados livros contra os ímpios, incrível para a maioria como se se [sic] tratasse de contos de fábula, mas bem digno de fé por sua própria evidência, ao menos para os fiéis, para dizer pouco, fez-se crível para todos quantos, fiéis e infiéis, viram o prodígio com seus próprios olhos. Da mesma forma que, nos tempos de Moisés e da antiga piedosa nação dos hebreus, precipitou no mar os carros do faraó e seu exército, a flor de seus cavaleiros e capitães, – o mar Vermelho os tragou, o mar os cobriu, na profundeza como uma pedra quando, dando as costas ao exército que vinha da parte de Deus com Constantino, atravessava o rio que lhe cortava o caminho e que ele mesmo havia unido e bem pontoneado com barcas, construindo assim uma máquina de destruição contra si mesmo. Dele se poderia dizer: cavou um fosse e tirou-lhe a terra; e cairá na vala que fez. Seu trabalho se voltará contra sua cabeça, e sua injustiça recairá sobre sua moleira. Assim, pois, desfeita a ponte estendida sobre o rio, a passagem afunda e as barcas se precipitam de um golpe no abismo com todos seus homens; e ele mesmo em primeiro, o homem mais ímpio, e logo os escudeiros que o rodeavam afundaram como chumbo nas águas impetuosas, como já predisse o oráculo divino; de forma que, se não com palavras, como é natural, mas pelo menos com as obras, os que com a graça de Deus haviam se alçado à vitória, poderiam junto com os seguidores do grande servo Moisés entoar o mesmo hino que contra o ímpio tirano de então e dizer: Cantemos ao Senhor porque gloriosamente cobriu-se de glória. Cavalo e cavaleiro lançou ao mar. Minha ajuda e proteção, o Senhor; se fez meu salvador; e Quem como tu entre os deuses, Senhor? Quem como tu, glorificado nos santos, admirável na glória, operador de maravilhas?”677

Trecho por demais significativo, cuja interpretação ocupa em nosso

argumento um papel crucial. Nele podemos destacar elementos dos mais

relevantes para comprovar a tese que antes de se estabelecer alguma forma de

cesaropapismo havia cristãos que de fato encaravam como sendo de origem

nitidamente divina o poder do Imperador Romano e com ele estavam dispostos a

colaborar de bom grado. Em primeiro lugar, uma narrativa de base, recorrente

com pequenas diferenças em Lactâncio, em Sexto Aurélio Vítor, em Eutrópio, em

                                                            677 Id. Op. cit. Livro IX : 9, 1-8. pp. 308-309. Argimiro Velasco-Delgado chama a atenção para o fato de a oração “Licínio, que ainda não estava transtornado” (IX : 9, 1) obviamente não consta nas edições da História Eclesiástica anteriores ao conflito aberto entre este personagem e Constantino, sendo de certo uma re-escritura depreciativa feita por Eusébio depois de 324. Edições anteriores à “damnatio memoriæ” que transformou Licínio de co-herói em vilão – como a que serviu de base a uma tradução siríaca do começo do século V, da qual há uma cópia, de abril de 462, guardada na Biblioteca de São Petesburgo – trazem em seu lugar “Licínio, que vinha depois dele [i.e., Constantino], honrado por sua inteligência e sua piedade.” Nesta mesma edição, o parágrafo continua, sem interrupção com o seguinte: “os suscitou o Salvador, e quando os dois amigos de Deus se lançaram contra os dois muito ímpios tiranos e se alinharam em ordem de batalha, segundo as leis da guerra, Deus combativa com eles como aliado...” Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. ps. 62* e 574, n. 62.

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Praxágoras e em Zósimo.678 Constantino saiu com suas tropas da Gália e venceu

as guarnições fiéis a Maxêncio estacionadas nas imediações de Turim e de Bréscia

e em Verona, o que deixou livre sua passagem pela chamada Via Flamínia até

Saxa Rubra, localidade situada a menos de duas dezenas de quilômetros de Roma,

onde lhe esperavam os legionários estacionados na própria capital do Império. Por

algum motivo – segundo Lactâncio, um levantamento popular que ameaçou o

próprio palácio imperial679 – Maxêncio abandonou a cidade e juntou-se ao

acampamento militar, ficando nas intermediações da Ponte Mílvia, situada a meio

caminho entre Saxa Rubra e os muros de Roma, distante o suficiente do

conturbado interior da urbe para manter a segurança de sua Augusta Pessoa, mas

próxima o bastante para permitir uma rápida retirada caso Constantino não

pudesse ser detido. Além do mais, a ponte poderia ser destruída para impedir o

acesso do inimigo ao refúgio fortificado de Maxêncio, com sorte afundando com

seus destroços alguns dos soldados de Constantino, ou talvez o próprio; Eusébio

afirma que uma outra passagem, de barcos amarrados uns aos outros sobre a

correnteza, foi edificada, talvez com este explícito propósito. As tropas que

avançavam, entretanto, o fizeram muito rápido, chegando ao acampamento

inimigo antes do que era esperado, e logrando fazer os guerreiros leais a

Maxêncio recuarem, empurrando-os, além do próprio, dentro do Rio Tibre, onde

morrem afogados.680

Em segundo lugar, o destaque a uma motivação não ressaltada em nenhum

documento da historiografia pagã sobre o episódio: Constantino teria lutado pelo

interesse dos cristãos contra o tirano que os oprimia, mas não contra o povo

romano e seu venerável legado, sua “ancestral liberdade”. Este, ao contrário,

também se encontrava escravizado, e é por isto que Deus, contra a vontade de

Maxêncio, o arrastou para fora da cidade, tornando-o vulnerável ao direto ataque

do inimigo, ou seja, entregando-o à morte. Em terceiro lugar, a narrativa é

construída como um explícito símile de um trecho bíblico que narra um evento da

                                                            678 Cf. Id. Op. cit. p. 574, n. 64. C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 152-156. 679 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 575, n. 71. 680 Na Vida de Constantino (1, 38), Eusébio – ou o pseudo-Eusébio – explica melhor a sua consideração sobre a ponte de barcas montada como uma armadilha contra Constantino e a derrota de Maxêncio, afirmando que ela providencialmente se rompeu antes do tempo, para prejuízo deste. Cf. Id. Op. cit. p. 576, n. 74.

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história da saída dos hebreus do Egito, quando Iaweh fecha o Mar Vermelho

exterminando “os carros e cavaleiros do Faraó”.681 Há pelo menos cinco citações

explícitas ao Livro do Êxodo (15, 4-5; 15, 10; 14, 31; 15, 1-2; e 15, 11), e outras

tantas analogias: “Maxêncio, que confia mais na magia” é talvez uma

correspondência com o Faraó que confia nos encantamentos e sortilégios de seus

magos mais do que nos prodígios realizados por Moisés (14, 11-12a); o

assombroso portento de um Imperador derrotado por outro Imperador é um sinal

“para todos quantos, fiéis ou infiéis”, o viram, assim como é um sinal da glória de

Deus para os egípcios a saída dos israelitas de sua terra (7, 5); e daí por diante.

Uma citação de um Salmo (7, 16-17) é usada como paráfrase dos eventos

acontecidos, e tal coisa só confirma que estes são compreendidos como repetindo

ou concretizando um padrão da qual a narrativa bíblica já apresentava o tipo ou a

profecia.

Em quarto lugar, há uma titulação de Constantino que indica não apenas

ser ele um personagem especial por suas realizações pessoais, de cunho político-

militar, mas por possuir um destacado papel no plano salvífico de Deus: não é

apenas mais um César, mas um novo Moisés, “aferrado à aliança de Deus”, sinal

da afeição e compromisso do “Deus do céu” e do “Salvador de todos, Jesus

Cristo” com o seu povo; um estadista e legislador que não fala e age em seu

próprio nome, mas em nome de Deus. No seu combate, “foi levantado contra os

tiranos ímpios pelo Imperador supremo, o Deus do universo e salvador”, que

milita como seu aliado. Seu exército vem até quase as portas de Roma combater

Maxêncio não por cálculo político e estratégico ou simples ambição, mas “da

parte de Deus” – o que de forma alguma é um juízo evidente: em sua Historia

Nova Zósimo (segunda metade do século V ou início do século VI) afirmou que o

derrotado era o único soberano legítimo e que o mesmo ímpeto desmedido que o

levou a padecer seria aquele sob o qual mais tarde cairia Licínio.682 Para Eusébio,

o heróico Constantino é menos um ator do que um instrumento, empregado por

“Deus da maneira mais extraordinária”. No Bhagavad-Gita, encontramos um deus

que incita um homem ao combate justamente porque este lhe deve ser

                                                            681 BÍBLIA. Ver. cit. Êxodo 14, 28. p. 122. 682 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 155-156.

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indiferente683; aqui estamos em um plano radicalmente outro, onde o que combate

o faz justamente por obediência a Deus, em favor da obra deste: é a obediência e a

paixão que o movem, não a compreensão e a paz de espírito. No trecho acima

transcrito da História Eclesiástica se pode ver um Deus triunfalista e imperial,

pouco afim ao Jesus de Nazaré descrito em alguns trechos dos evangelhos

canônicos como compassivo, amável com as crianças, com suas crateras de vinho,

pássaros, lírios do campo e lágrimas de sangue; não lhe basta resistir o mal com o

bem, oferecer a outra face, deixar-se entregar como vítima inocente: é necessário

brandir a espada contra o ímpio, feri-lo, vencê-lo, proteger os seus pela força e

pelo combate exaltar o Seu Nome.

Para Karen Armstrong, este trecho acima transcrito seria mais um exemplo

confirmatório de que “a sangrenta história do Êxodo continuaria inspirando

perigosos conceitos do divino e uma teologia vingativa.”684 Segundo esta autora, o

mito do Povo Eleito e da escolha divina, que um determinado ramo do movimento

cristão assumiu ao considerar-se o legítimo herdeiro da história e da tradição de

Israel – ver a este respeito a História Eclesiástica de Eusébio, Livro I : 2-4 e 6

(pp. 16-30), Livro II : 6 (pp. 53-54), 23 (pp. 69-72) e 26 (p. 74), e Livro III : 5-8

(pp. 80-88) – e que seria incorporado pela ortodoxia imperial em sua confissão de

que há um só Igreja, identificada tanto com uma comunidade espiritual como com

uma instituição sociopolítica, “tem inspirado teologias tacanhas, tribais, desde a

época do deuteronomista até nossos dias, em que convivemos com o nefasto

                                                            683 KRISHNA. Bhagavad Gita : A Sublime Canção. (Trad. do original, introd. e notas de Huberto Rohden). São Paulo: Martin Claret, 2005. c. 2, vs. 1.11-18. pp. 20-22: “(...) Neste momento decisivo, ó Arjuna, por que te entregas a semelhante desânimo, indigno de um Ariano, e que te fechas os céus? (...) Andas triste por algo que a tristeza não merece – e tuas palavras carecem de sabedoria. O sábio, porém, não se entristece com nada, nem por causa dos mortos, nem por causa dos vivos. Nunca houve tempo em que eu não existisse, nem tu, nem algum desses príncipes – nem jamais haverá tempo em que algum de nós deixe de existir em seu Ser real. O verdadeiro Ser vive sempre. Assim como a alma incorporada experimenta a infância, maturidade e velhice dentro do mesmo corpo, assim passa também de corpo a corpo – sabem os iluminados e não se entristecem. Quando os sentidos estão identificados com objetos sensórios, experimentam sensações de calor e frio, de prazer e de sofrimento – essas coisas vêm e vão; são temporárias por sua própria natureza. Suporta-as com paciência! Mas quem permanece sereno e imperturbável no meio de prazer e sofrimento, somente esse é que atinge a imortalidade. O que é irreal não existe, e o que é real nunca deixa de existir. Os videntes da Verdade compreendem a íntima natureza tanto disto quanto daquilo, a diferença entre o Ser e o parecer. Compreende como certo, ó Arjuna, que indestrutível é aquilo que permeia o Universo todo; ninguém pode destruir o que é imperecível, a Realidade. Perecíveis são os corpos, esses templos do espírito – eterna, indestrutível, infinita é a alma que neles habita. Por isso, ó Arjuna, luta!” 684 K. ARMSTRONG. Op. cit. p. 35.

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fundamentalismo de judeus, cristãos e muçulmanos.”685 Imaginamos que seja

também algo tão relevante, e bem mais específico, que isso. Consideremos a tão

particular questão das raízes ideológicas da autocracia de tipo bizantino. A

conversão de Constantino, ou pelo menos o seu crescente interesse na fé cristã

“além de obrigar a Igreja a unificar-se mais, abriu um problema temível: o que

seria um Estado cristão?”686 Pregando um mundo ordenado desde fora e lidando

com suas problemáticas doutrinárias baseada em um mecanismo que vincula de

forma estreita tradição, eficácia e verdade, a facção cristã que viria a triunfar

demandou a intervenção do Imperador como árbitro e conciliador em suas

intermináveis querelas e assumiu a sua pessoa e função como símbolo na terra da

ordem estabelecida por Deus, invocando em seu favor, devidamente relidos à luz

da peculiar situação sociopolítica do mundo greco-latino da primeira metade do

século IV, “elementos judaico-cristãos (Velho e Novo Testamento), helenísticos e

romanos, embora numa dosagem muito difícil de ser estabelecida categoricamente

quanto à efetiva contribuição de cada um deles.”687

A emanação divina do poder era um pressuposto incontestável dos

modelos sociopolíticos da Mesopotâmia, da Pérsia, do Egito (onde o faraó era o

próprio Deus), do antigo Israel, da Índia, da China, das grandes ilhas do Pacífico

(entre as quais o Japão, Bali, Java e as do Havaí), dos Astecas e dos Incas, assim

como nas arcaicas culturas da Grécia (o ânax) e de Roma (o rex). A introdução

nestas duas últimas – e, mais tarde, em Bizâncio – de um fator jurídico que iria

desenvolver-se grandemente, até tomar a forma de um aparato legal gigantesco de

organização do mundo social – tanto a nível imperial (direito público e privado)

quanto eclesiástico (direto canônico) –, entretanto, ocasionaria reflexões

contestatórias de tal ordem, que levariam a concepções do poder como algo cheio

de matizes e diferenciado em si mesmo, condições sine qua non de um sistema

coletivo e constitucionalmente alicerçado de gestão do Estado. Buscando resolver

seus problemas de relacionamento interno e externo e precisar qual o seu estatuto

dentro do mundo cultural greco-latino, a Grande Igreja conferiu ao Imperador o

                                                            685 Id. Op. cit. p. cit. 686 Louis DUMONT. “Do Indivíduo-fora-do-Mundo ao Indivíduo-no-Mundo”. In: O individualismo : Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. (Trad. Álvaro Cabral). Rio de Janeiro. p. 53. 687 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 65.

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papel de instrumento e imagem de Deus, ao passo que, outra face de uma mesma

moeda, não se pode negar que “(...) A adoção do Cristianismo [por Constantino]

forneceu um instrumento novo e eficaz de aperfeiçoamento [no mundo cultural

greco-latino] da concepção da origem divina do poder monárquico.”688 De fato, o

ramo do movimento de Jesus privilegiado pelos soberanos “agiu ativamente na

legitimação do poder imperial [romano-oriental ou bizantino] nos mecanismos de

titulatura e também naqueles do cerimonial da coroação, das festas do calendário

litúrgico e, após 1204, da unção.”689

                                                            688 Id. Op. cit. p. 71. 689 Ibid. Op. cit. p. 64.

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V.

“Não há história inocente. (...) Temos a história que merecemos.”

THÉODORE TARCZYLO, “Da erudição lasciva à história das mentalidades”

“O destino guia os predispostos e arrasta os que lhe resistem”

SÊNECA, Epistulæ Morales (107,11)

Como vimos acima, é entre os anos de 313 e 380 que devemos situar os

dramas históricos que possibilitaram que a Igreja Cristã se acomodasse como uma

instância jurídico-institucional legítima no interior do cosmos político romano, um

Imperium in Imperium. No autêntico labirinto intelectual do mundo greco-latino

deste período, os que escreveram a história, salvo exceções, produziram

concepções universalistas que procuraram estabelecer algum tipo de coerência

entre os diversos acontecimentos que recolhiam e testemunhavam, e, “(...) No

caso [da maioria] dos autores cristãos, (...) [esta] ordenação do mundo [se deu]

através da conjugação da monarquia divina com a monarquia terrestre.”690

Durante os primeiros três séculos do movimento cristão, os pensadores a ele

filiado “introduziram não apenas um novo tipo de escrito portador de uma

mensagem finalista e engajadas numa literatura de combate a posições contrárias,

seja de autores pagãos que os perseguiram, seja em meio a suas muitas

subdivisões, mas introduziram também, com Eusébio, o novo gênero da história

eclesiástica enquanto história da salvação da humanidade”.691

Isto considerado, é significativo relembrar e deixar em evidência uma vez

mais que no escrito realmente fundador desta nova vertente historiográfica, o

bispo de Cesaréia afirmou uma Igreja, apresentando quase a contragosto as várias

e diferentes interpretações da mensagem de Jesus de Nazaré que interagiam e se

entrechocavam no período em que ele se detém.692 Mesmo tendo vivido e

                                                            690 Ibid. Op. cit. p. 131. 691 Ibid. Op. Cit. pp. 131-132. 692 Cf. Ibid. Op. cit. p. 140. E isto também no nível das fontes e documentos citados em sua obra. Argimiro Velasco-Delgado afirma “(...) Es de notar que Eusebio nunca utilizó a sabiendas como fuente un escrito apócrifo, herético, pagano o judío, si dicho escrito no coincidía con las fuentes de la tradición cristiana ortodoxa. Porque piensa que coinciden con ellas, cita a Filón y a Josefo. Lo

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registrado as divisões políticas dos romanos, referiu-se sempre a um Império, e

também selecionou o Constantino pro-christianos, isolando-o do representante

típico do sincretismo religioso do mundo mediterrânico dos século III e início do

século IV d.C., afeito ao henoteísmo pagão, ou seja, ao culto de um deus superior

que preside um colegiado de deuses inferiores, que outras fontes contemporâneas

nos indicam que tenha sido, e apresentou-o como uma personagem unívoca,

sempre o mesmo “amado por Deus” em todos os momentos.693 Estas omissões são

sintomáticas e indicam para o olhar experimentado do crítico a trilha de

“estranhas e vastas praias de silêncio.”694 Com estes brancos podemos desenhar

uma “geografia do esquecido”695 que nos permita compreender em sua grandeza e

funcionalidade particular aquilo que está registrado nos caracteres do erudito

tratado de Eusébio.

O cristianismo constantiniano oscilou entre o trinitarismo e o arianismo

neste período, mas aferrou-se ao projeto de aliar uma Igreja a um Estado e, para

fazê-lo, ao de retomar o patrimônio conceitual político helênico da basileia, ainda

que em uma chave muito distinta. A teoria platônica da necessidade dos

Guardiães da República se uniu o imperativo apostólico da submissão ao Estado,

testemunhado antes de todos os outros pelos apóstolos Pedro e Paulo e, segundo o

Evangelho de João, pelo próprio Jesus de Nazaré em seu diálogo com o

procurador romano na Judéia que o viria a condenar à morte. Ao ser fundada não

                                                                                                                                                                   mismo ocurre cuando apela a los historiadores ‘de fuera’ o paganos (…) ni siquiera al tratar la historia de los personajes o de los movimientos heréticos acude a los autores heréticos directamente, sino que utiliza los escritos de los que han combatido la herejía. Así, todo el material histórico que nos ofrece sobre el montanismo lo toma de los anti-montanistas Cayo, Apolinar de Hierápolis, Milcíades, Apolonio, Serapión y el Anónimo. Y para informarnos del gnosticismo acude a Ireneo, a Dionisio de Alejandría y a un tal de Agripa Castor. En general, Ireneo, Serapión, Clemente y Orígenes son los que le informan sobre las herejías.” A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 58*. 693 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit. A este respeito é significativo lembrar que na História Eclesiástica Eusébio de Cesaréia surpreendentemente não trata em momento algum da conversão de Constantino ao cristianismo, coisa sobre a qual o texto da Vida de Constantino dá uma grande ênfase, situando-a antes da vitória sobre Maxêncio e, em verdade, como imediata causa humana desta. No trecho acima transcrito em que o bispo historiador trata deste episódio na primeira obra (História Eclesiástica IV : 9), ele retrata o Imperador já como um cristão, que invoca antes da batalha “como aliado ao Deus do céu e seu Verbo, e ainda ao próprio Salvador de todos, Jesus Cristo” (IV : 9, 2). Cf. Id. Op. cit. pp. 196-197. 694 Jacques REVEL, Michel de CERTAU e Dominique JULIA. “A beleza do morto: o conceito de ‘cultura popular’.” In: J. REVEL. A invenção da sociedade. (Trad. Vanda Anastácio). Rio de Jsneiro / Lisboa: Bertrand / DIFEL, 1990. p. 67. 695 Id. Op. cit. p. cit.

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no Plano das Idéias, mas na própria disposição da Inteligência Infinita que

governa todas as coisas por sua Providência, a basileia adquire um novo conteúdo

sob a pressão do entendimento cristão acerca do que precisamente seria. A pietas

e a fides de Enéas são também re-significadas por serem tomadas à uma nova luz,

e a memória romana adquire um novo sentido na medida em que ser cidadão do

Império passou a significar ser partícipe não só de uma comunidade política, mas

de uma comunidade eclesial que transcende as fronteiras da vida e da morte, ser

não só súdito da majestade terrena, herdeira de Augusto, mas também do lugar-

tenente de Deus entre os homens.696 De forma específica, Eusébio de Cesaréia é o

mais sereno urdidor destas apropriações e re-significações:

“(...) na relação entre o Pai e o Logos (...) descobre a imagem da relação entre o Logos-Cristo e o imperador, onde vê um laço entre a obra de Cristo, que prepara o Reino definitivo para o Pai, e a ação do imperador, que contribui para a expansão do Reino de Cristo na terra. O bispo de Cesaréia releva ainda que o Império romano realizou, desde sua fundação, uma função providencial em favor do cristianismo; realça também a continuidade entre Augusto e Constantino (...). Enfim, Eusébio está convencido de que o Império romano-cristão é ao mesmo tempo imagem da sociedade cristã celeste e imagem da Igreja peregrina, ou, por outra, que o Império, tornado reino de Cristo sobre a terra, e o cristianismo, tornado de fato Igreja universal, dão azo a uma unidade substancial.”697

Levando-se em conta não apenas os interesses de Constantino, mas a

aceitação e a demanda de um certo cristianismo de sua intervenção intra e pro

ecclesiam, condições que antecedem a esta tanto na cronologia quanto a nível das

motivações e princípios ideológicos da ação, o que estava em jogo era uma

maneira de evitar a ruptura interna pelo apelo a uma instância de poder externa,

uma manobra política análoga àquele artifício discursivo pelo qual Eusébio de

Cesaréia invocava Flávio Josefo e miríades de outros autores cristãos e não-

cristãos para alicerçar em uma autoridade que não a sua as opiniões que na

narrativa que redigia expunha como corretas. Pensando o mais

desapaixonadamente possível, podemos afirmar que se tratava de fazer da forma

mais segura e rápida possível a transformação de minoria em maioria, de crença                                                             696 Cf. G. LAFONT. Op. cit p. cit. Fernanda da S. M. SOARES. Mosaicos em procissão : A política de imagens de Justiniano em Ravena (527 – 565 a.D.). 2006. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de Brasília, Brasília (BR). p. 3. 697 Paolo SINISCALCO. “Igreja e Império”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 703-704.

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quando muito permitida a organismo estatal, de fragmentos unidos apenas pelos

instáveis laços do afeto e da comum profissão de fé em um esplendoroso edifício

coerente ao qual se deveria olhar e obedecer. É verdade maior parte do trabalho

havia sido feita gerações antes pelos combates discursivos que os Padres

Apologistas travaram com o objetivo não apenas de desmascarar, mas de ferir

fundo, decisivamente, os seus mais notáveis inimigos, mas em meados do século

IV as coisas já haviam tomado proporções outras com o empenho dos recursos, da

violência e da autoridade imperial em incessante apoio a uma determinada facção

cristã.698 As preferências dos sucessores de Constantino entre um ou outro

cristianismo iriam variar e gerar toda ordem de instabilidades, mas não deixaram

de estar bem calcadas na convicção de que se uma facção estava certa, as demais

estavam necessariamente emaranhadas no erro, no pecado, na desobediência, na

indisciplina e em todas as conseqüências disto tudo, constituindo, portanto,

ameaças potenciais ao bom andamento dos assuntos imperiais. Como escreveu o

antropólogo Louis Dumont,

“(...) Voluntariamente ou não, a Igreja estava colocada frente a frente com o mundo. (...) O Estado tinha, em suma, dado um passo para fora do mundo, na direção da Igreja, mas, ao mesmo tempo, a Igreja tornou-se mais mundana do que fora até aí. (...) Os conflitos não estavam excluídos, mas seriam doravante internos, tanto para a Igreja quanto para o império.”699

Assumindo as questões de fé como problemas do Estado, e dada a simetria

já ressaltada entre o Império e a facção do movimento cristão que o cativou, deve-

se observar que, convergindo em tantas coisas, “(...) Os atritos que se produziram

em seguida entre o imperador e a Igreja (...) envolveram principalmente pontos

de doutrina (...) [porque] os imperadores, ciosos da unidade política, insistiam

para que fossem proclamadas concessões mútuas, [enquanto] por seu lado a

Igreja, seus concílios ecumênicos e [mais tarde] especialmente o Papa queriam

definir a doutrina como fundamento da unidade ortodoxa e não viam com bons

                                                            698 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. ps. 95-97 e 179-180. 699 L. DUMONT. Op. cit. p. 53.

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olhos a intrusão de um príncipe nos domínios [que criam restritos à jurisdição] da

autoridade eclesiástica.”700

Esta dificuldade entre aqueles prelados e intelectuais cristãos que

afirmariam, como o Papa Gelásio, que as autoridades civis deveriam “curvar uma

cabeça submissa perante os ministros das coisas divinas”701 e os Imperadores que,

preocupados com a formação de um consenso em torno de sua autoridade e com a

consolidação da ideologia que passou a ser o mais importante princípio de

sustentação de seu poder, incitariam opiniões teológicas moderadas capazes de

congregar diversos partidos inicialmente divergentes, constitui uma história

ulterior para a qual apenas apontamos, já que está para além do âmbito de nosso

presente trabalho. O que pretendemos demonstrar mais do que qualquer outra

coisa é que se não fosse o esforço e a atuação mais ou menos explícita de

pensadores e eclesiásticos como Eusébio de Cesaréia, motivado talvez pela

previdência política apenas tanto quanto – ou muito menos que – por suas sinceras

compreensões da mensagem de Jesus de Nazaré, nunca se poderia ter

desenvolvido o cristianismo como uma religião imperial, com todas as

implicações a que isto levou: a definição da crença dentro de um preciso conjunto

de categorias jurídico-normativas; a mundanização do conceito de Reino de Deus;

a estruturação de uma hierarquia férrea que concentra o poder eclesial, media o

acesso ao mistério, organiza a devoção e assume o ônus da renúncia ao pecado e

do testemunho da santidade; o anseio por uniformidade e regulamentação

minuciosa; a crítica ao radicalismo que constrange ou subverte a ordem

estabelecida; o afastamento da utopia para o além-túmulo; o elogio do

conformismo e da erudição tomada como critério imparcial; a estruturação e

manutenção de uma ortodoxia. Não se tratava apenas de fazer a peruca teológica

do Imperador, mas de definir a identidade do movimento cristão frente à

assustadora circunstância de um César que se quer fazer seguidor daquele que foi

crucificado sob a autoridade de um outro César. No âmbito desta verdadeira

batalha travada para se definir o que é o cristianismo – questão que é ao mesmo                                                             700 Id. Op. cit. p. cit. Segundo Paolo Siniscalco, na auto-afirmação da Igreja do Ocidente contra o poder imperial – tema que irá conflituosa se fazer presente em quase toda a Idade Média e que irá dar origem à teoria dita “dos dois poderes” – encontram-se tanto “a influência de uma forma de judaísmo apocalíptico que opõe o rei ao profeta” como a viva lembrança “da crítica senatorial pagã ao culto do imperador”. P. SINISCALCO. Op. cit. p. 704. 701 L. DUMONT. Op. cit. p. 55.

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tempo de identidade, de projeto, de incorporação e de exclusão – o relato histórico

não foi nunca inocente (ou é). A análise dos conteúdos e delimitações da História

Eclesiástica mostra que “nenhuma delas é indiferente, [já] que qualquer

organização pressupõe uma repressão.”702 Humana, demasiado humana, esta obra

traz, impregnada de estruturantes juízos de valores, uma visão do que foi o

passado e do que deve ser o presente e o futuro, de como Deus atua na História e

o que deve o fiel esperar Dele, e ainda que não se possa ignorar que um ato escrito

não pode “pretender seriamente fundar um novo tipo de relação”703, suas páginas

inspiraram e continuar a inspirar “el terror de lo que es muy antiguo y nos obligan

a sentir el incalculable peso del Tiempo.”704

                                                            702 J. REVEL, M. CERTEAU e D. JULIA. Op. cit. p. 75. 703 Id. Op. cit. p. cit. 704 Jorge Luis BORGES. “Bhagavad-Gita, Poema de Gilgamesh”. In: Biblioteca personal (prólogos). Madri: Alianza, 1998. p. 101. 

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