alfred hettner - a essência e as tarefas da geografia

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    NOSSOS CLSSICOS1

    A ESSNCIA E AS TAREFAS DA GEOGRAFIA2 [Das Wesen und die Aufgaben der Geographie]

    ALFRED HETTNER

    1. O Sistema das Cincias3

    Muitos, precisamente aqueles pesquisadores mais capazes consideram inteis todas as investigaes metodolgicas sobre as tarefas e as fronteiras das cincias, quase que como uma brincadeira; eles pensam que a sistemtica das cincias tem apenas uma significao formal eu quase poderia dizer esttica e que mesmo indiferente para o funcionamento das cincias. Essa concepo unilateral e mope, um resduo daquele tempo em que o esprito filosfico estava inteiramente atrofiado e em que apenas o trabalho cientfico bruto era apreciado, tambm este principalmente para finalidades prticas. Quando ela levada a srio, deve resultar no abandono da necessria diviso do trabalho cientfico e no dispndio de energia. O pesquisador especializado pode bem ultrapassar as fronteiras produzidas entre as diferentes cincias e atuar de maneira mais vlida nas reas de fronteiras; porm, a apresentao e o

    1 Dando prosseguimento ao nosso projeto de traduzir a grande obra do gegrafo alemo

    Alfred Hettner intitulada A Geografia, sua histria, sua essncia e seus mtodos [Die Geographie, ihre Geschichte, ihr Wesen und ihre Methoden], de 1927, apresentamos por

    ora a parte que antecede imediatamente o primeiro fragmento por ns publicado nesse

    mesmo peridico, vol.13, n25. Tradutor: Leonardo Arantes 2 Com base no meu artigo: A essncia e os mtodos da Geografia. Peridico de Geografia

    [Geographische Zeitschrift] XI (1905), p. 545. Veja tambm Expedies metodolgicas

    II, Peridico de Geografia [Geographische Zeitschrift] XIII (1907), p. 694 e a unidade da

    Geografia (Geographische Abende, primeiro caderno.) 3 Veja meu artigo nos Anais Prussianos [Preuischen Jahrbchern] Vol. 122 (1905), p.

    251.

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    ensino de cada cincia deve partir de determinado ponto de vista, simplesmente o seu prprio, diferente do das demais cincias, se ela no quiser se perder no ilimitado e nem sacrificar toda economia do pensamento. A cincia no todo uma, mas sua extenso crescente conduziu lentamente a uma diviso e diferenciao. No deveria existir entre as cincias individuais uma muralha da China que interrompesse cada ligao entre elas; todavia, cada uma deve ter seu prprio contedo determinado, que ela trabalhe com seus prprios mtodos e ensine por seu prprio modo determinado. A identificao dessa rea de pesquisa e ensino no pode ficar abandonada ao acaso, mas deve, sim, ser determinada atravs do mtodo cientfico.

    A sistemtica das cincias em si uma tarefa da filosofia da cincia [philosophischen Wissenschaftslehre], contudo, tambm as cincias especializadas tm o maior interesse na [p.111] soluo desse problema e precisam cooperar com ela, pois apenas elas podem julgar claramente sua prpria essncia.

    A Geografia no esmoreceu nas tentativas de determinar sua essncia, sua tarefa e seu lugar no sistema das cincias. Especialmente no perodo de sua reforma, quando ela se voltou unicamente para o modo de concepo antropolgico e teleolgico de Ritter e retomou a investigao da natureza das regies [Lnder]

    4, uma verdadeira enxurrada de tratados

    metodolgicos provenientes da pena de especialistas competentes e, mais ainda, de diletantes incompetentes, veio mostrar os caminhos para uma nova cincia formada

    5. Eles eram de diferentes tipos. Alguns buscavam

    determinar a essncia da Geografia do ponto de vista lgico; porm, porquanto careciam do conhecimento real da coisa e se encontravam presos superfcie, chegavam a definies que estavam em contradio com o desenvolvimento histrico da cincia e no traziam nenhuma contribuio s necessidades reais da diviso do trabalho cientfico ou somente podiam mesmo estar mais ou menos de acordo com isso atravs de uma salutar falta de consistncia. Esse juzo tambm vlido para a maioria das determinaes conceituais da Geografia oriundas do mbito filosfico, dado que elas no so congruentes com o desenvolvimento factual da Geografia. Infelizmente, tais tentativas, que apenas causam

    4 A respeito de toda problemtica acerca da traduo deste vocbulo, veja nossas

    consideraes na traduo de outro fragmento dessa mesma obra, publicada no volume

    anterior deste peridico. [N.T.] 5 A esse respeito, os relatrios de Hermann Wagner no Anurio Geogrfico [Geogr.

    Jahrbuch] (VII-X, XII, XIV) oferecem uma boa orientao.

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    confuso, tambm no perodo mais recente so feitas novamente. Por outro lado, encontram-se determinaes que so derivadas a partir do desenvolvimento histrico da cincia, mas que em contrapartida no possuem nenhum lugar fixo no sistema lgico das cincias. Se aquelas so desde o princpio condenadas infertilidade e por isso prejudiciais ao progresso das cincias, a estas falta ainda a faculdade lgica de convencimento. Ento, a tarefa pode apenas ser considerada como resolvida, se for provado o direito lgico da cincia historicamente formada e a partir disso for determinada sua relao com as cincias comuns bem como a especificidade de seus mtodos cientficos.

    As necessidades da vida prtica no podem decidir sobre a diviso da cincia. A prxis rene a matria do saber que ela necessita, e tambm as preparaes de aula, que servem s finalidades especiais prticas como, por exemplo, as escolas de negcio e de guerra, encontram tambm a escolha de sua matria de ensino segundo as necessidades fluentes a partir da competncia de seus alunos. Todavia, somente consideraes internas e o contedo da cincia enquanto tal podem ser determinantes para a cincia em geral. A Geografia foi por muito tempo uma dis- [p.112] -ciplina prtica ou aplicada, mas no decorrer do tempo ela se elevou cincia pura. Karl Ritter quis conotar isso com a expresso Geografia [Geographie] ou Cincia da Terra [Erdkunde] Geral, e se hoje ns usamos a expresso geral de maneira diferente, com isso no se perdeu de modo algum aquela ideia: a Geografia uma cincia pura e tem que ser fundada sobre os princpios da cincia pura, sobre a autonomia e a conexo interna de seu contedo.

    Tambm, como se pensa, no a pesquisa o determinante, mas sim o ensino, no o mtodo, mas sim o contedo do saber. Algumas cincias, a Geologia, por exemplo, certamente cresceram a partir de determinados mtodos de pesquisa. Todavia, tambm se formam pouco a pouco na direo de um determinado contedo do conhecimento: a partir de cincia de martelo, que bate examinando as rochas, a Geologia transforma-se pouco a pouco em Histria da Terra

    6 [Erdgeschichte], em cujo servio

    comparece o conhecimento das rochas e petrificaes. J para a pesquisa, a restrio em determinados mtodos grave. A cincia certamente no fomentada pelo fato de os gelogos terem fundado o estudo dos terraos dos vales apenas pelo exame dos cascalhos e alguns morflogos apenas

    6 Histria da Terra, em alemo Erdgeschichte, constitua-se em um ramo do saber no

    interior da chamada Histria Natural Naturgeschichte.[N.T.]

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    pelo exame das formas; o conhecimento seguro s possvel atravs da unio de ambos os mtodos. E isso vlido, praticamente ainda mais do que para investigaes individuais, para a totalidade de uma rea do saber. O que ns aspiramos sempre o conhecimento de determinados crculos de fatos. Mas estes so acessveis a um determinado mtodo de pesquisa apenas de modo excepcional e exigem, sim, na maioria das vezes, a aplicao de diferentes mtodos.

    Por outro lado, colocou-se como fundamento da diferenciao das cincias o seu mtodo lgico. Dois eminentes filsofos, Windelband e, de forma semelhante, Rickert, diferenciaram entre nomottico e idiogrfico ou com outras expresses: cincias das leis e dos acontecimentos ou [cincias] da natureza e da cultura; com os primeiros [termos dos pares] dirigiu-se o conhecimento do tipo conceitual e para o conhecimento de leis, com os segundos, [o conhecimento] individualizante e para o conhecimento das singularidades valiosas

    7. A diferenciao com certeza no ntida; ao

    contrrio, encontrava-se em algumas cincias ambos os mtodos lgicos. Na verdade, Rickert inferiu a partir da um dualismo da Geografia Fsica e da Geografia do Homem

    8. Deixo para examinar isso em nossas prximas

    consideraes sobre [p.113] a formao de conceito e de ideia na Geografia, se essa diferenciao dos mtodos lgicos em geral correta e encontra aplicao na Geografia; aqui se trata apenas da questo, se ela [a diferenciao] pode ser determinante para a classificao e fragmentao das cincias. E isso eu preciso problematizar. Uma classificao empreendida a partir da resultaria de todo modo inteiramente diferente da diferenciao e fragmentao reais da cincia, tal como ela se desenvolveu historicamente. Ela desencadearia investigaes que seguem juntas segundo seu contedo. Tambm o prprio Rickert

    9 explicou mais tarde que

    foi mal compreendido e que sua diferenciao no objetiva a diviso factual das cincias, que um fato puramente histrico. Devemos acrescentar apenas que o desenvolvimento histrico no coincidente e

    7 W. Windelband. Histria e cincia natural. Discurso de reitorado. Estrasburgo, 1894.

    Heinrich Rickert. Os limites da formao de conceito nas cincias naturais. 6 e 7 edio, Tbingen, 1926. 8 Naturwissenschaft und Kulturwissenschaft, 6 e 7 edio, p. 128.

    9 Os limites da formao conceitual nas cincias naturais, p. 465; mas seus detalhamentos

    sobre a Geografia acima citados me parecem mesmo estar em certa contradio com isso.

    Todavia, ao que me parece, Otto Grafs (Do conceito de Geografia, Munique, 1925) fez

    novamente uma tentativa equivocada de determinar o conceito e mbito da Geografia

    partindo do mtodo lgico no sentido de Windelband e de Rickert.

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    arbitrrio, mas sim tem seu fundamento interior profundo, quando no tambm lgico em sentido estrito.

    A diferenciao real das cincias refere-se aos objetos. Mas tambm aqui ela pode trilhar diversos caminhos.

    Antigamente, colocava-se exclusivamente como fundamento dos sistemas das cincias a afinidade material ou a diferencialidade dos objetos enquanto tais, dividindo-as apenas segundo suas relaes materiais. Alguns sistematizadores ingnuos, especialmente aqueles que provm das cincias individuais e que no se esforam em se ater fundamentalmente no panorama do sistema das cincias, fazem isso ainda hoje. Todavia, os sistematizadores da Filosofia reconheceram e superaram essa concepo restrita e unilateral de que a concepo das coisas sob os pontos de vista de suas relaes materiais unilateral, de que, ao lado disso, sua concepo sob outros pontos de vista possvel e necessria e de que as cincias individuais da resultam. Com certeza, em sua maioria, eles tambm no pensaram essa nova concepo at o fim e certamente no viram o ponto de vista que determinante para o enquadramento da Geografia. Na maioria das vezes, eles se deixaram prender primeira vista pela to evidente determinao de conceitos da Geografia [Geographie] ou Cincia da Terra [Erdkunde] enquanto cincia, classificando-a dessa forma no sistema, de modo que a Geografia do Homem fica inteiramente de fora; alguns no reconheceram a Geografia de modo algum como cincia verdadeira, e sim dividida sob diver- [p.114] -sas parties de seu sistema. Eles no conseguiram conceber a diviso real das cincias sua concepo tem que ser complementada.

    No que diz respeito aqui apenas primeira diferenciao fundamental no mbito das cincias empricas tericas, a diferenciao bem ressaltada por Comte entre as cincias abstratas e concretas vem em primeiro lugar. Essa diferenciao no quer dizer naturalmente que aquelas tenham a ver com objetos corpreos menos concretos no sentido de reais, sensivelmente perceptveis, mas sim que as cincias abstratas despem os objetos de todos os marcos particulares e individuais, e concebem apenas os processos e estados gerais, sempre enquanto propriedades de determinado corpo. A diferenciao no com certeza ntida. Contudo, h uma ordem sequencial das cincias abstratas como um todo, como da Matemtica enquanto cincia formal pura e, por conseguinte, da Fsica, Qumica e Psicologia; atravs de tais cincias certos marcos particulares so levados em considerao, tais como eles se do a partir do pertencimento comum a um dos grandes reinos da natureza ou do esprito

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    por exemplo, a Mineralogia geral, a Botnica geral, a Psicologia, a Sociologia, a Economia Nacional Geral, at as concretas, cincias direcionadas para os singulares conceitos individuais e coletivos.

    No conhecimento mesmo da realidade dividem-se as cincias concretas. Elas tm a ver com ela conforme a diversidade de suas propriedades materiais e conforme sua diferencialidade no tempo e no espao. A realidade como que um espao tridimensional que ns temos que considerar a partir de trs pontos de vista distintos, para conceb-lo inteiramente; a investigao partindo de cada uma individualmente unilateral e no cria a realidade. Partindo de um primeiro ponto de vista ns vemos as relaes de afinidade, de um segundo, o desenvolvimento no tempo, de um terceiro, o arranjo e a distribuio no espao. A realidade no se deixa captar completamente nas cincias sistemticas ou materiais, como muitos metodlogos ainda acreditam. Acertadamente, outros fundaram o direito das cincias histricas na necessidade de uma concepo particular do desenvolvimento temporal. Todavia, tambm desse modo a cincia ainda permanece como que bidimensional; ns [p.115] ainda no a reconhecemos completamente, se no concebermos tambm, partindo do terceiro ponto de vista, a distribuio e o arranjo no espao.

    Kant j havia pronunciado muito bem essa ideia em suas prelees sobre a Physische Geographie

    10: Ns podemos, porm, dar um lugar [Stelle] a nossos conhecimentos empricos, tanto de acordo com os conceitos [Begriffen], como com o tempo [Zeit] e o espao [Raum], onde eles realmente podem ser encontrados. A classificao dos conhecimentos segundo os conceitos a classificao lgica

    11; aquela segundo o tempo e

    o espao a diviso fsica. Por meio da primeira ns obtemos um sistema da natureza, como, por exemplo, o de Lineu; por meio da segunda obtemos, ao contrrio, uma descrio geogrfica da natureza [geographische Naturbeschreibung]. Essa ideia, ento, prossegue: Mas ns podemos denominar ambas, histria e geografia, do mesmo modo, como uma descrio, mas com a diferena de que a primeira uma

    10

    Kants Werke, editado por Schubert e Rosenkranz, vol. II, p.425. Por muito tempo essas

    exteriorizaes me escaparam; de modo que eu fico mais satisfeito com a concordncia da

    minha concepo alcanada autonomamente com a [concepo] dos grandes filsofos. 11

    Tambm essa diviso, segundo a nossa atual concepo com fundamento na teoria da

    origem do homem, uma fsica.

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    descrio no tempo [Zeit] e a segunda, uma descrio no espao [Raume].12

    A histria [Geschichte] se refere aos acontecimentos que, em relao ao tempo, sucederam-se um aps o outro [nacheinander]. A geografia [Geographie] se refere aos fenmenos que, em relao ao espao, acontecem ao mesmo tempo [zu gleicher Zeit]. A Histria uma notcia de acontecimentos que se sucedem um aps o outro e tm relao no tempo. A Geografia no seno uma notcia dos acontecimentos que caminham um ao lado do outro [neben einander] no espao. A histria uma narrativa [Erzhlung]; a geografia, uma descrio [Beschreibung].13

    Uma grande parte, provavelmente a maioria das cincias concretas que se pode denominar de cincias sistemticas, renuncia s relaes temporais e locais e encontra sua unidade na homogeneidade ou afinidade dos objetos com os quais elas se ocupam. A diferenciao comum em cincias naturais e do esprito essa diferenciao sistemtica. Dentre as cincias naturais, desenvolveram-se primeiramente enquanto cincias individuais as cincias dos minerais e rochas (Mineralogia e Petrografia), das plantas (Botnica), dos animais (Zoologia) e, ao seu lado, das plantas e dos animais fossilizados do mundo primitivo (Paleontologia) a partir de fundamentos externos. Apenas mais tarde o estudo dos corpos da Terra e de seu crculo de fenmenos das disciplinas especiais empreendido. Cincias sistemticas do esprito [systematische Geisteswissenschaften] so a Lingustica [Spachwissenschaft], a cincia da religio [Religionswissenschaft], a cincia do Estado Nacional [Stattswissenschaft] e a Economia [p.116] nacional [Nationalkonomie], entre outras. Todavia, com os princpios da diviso sistemtica cruza-se um outro, o princpio da diviso representando a passagem a ambos os grupos principais das cincias concretas: a partir da diferencialidade das lnguas e crculos culturais do-se as diferentes Filologias que no tm mesmo como objeto apenas as lnguas, mas sim a vida espiritual completa de um povo, e a

    12

    Aqui ele salta uma sentena e no faz a indicao disso. (Histria e geografia ampliam, portanto, os nossos conhecimentos em relao ao tempo e ao espao.) [N.T.] 13

    A referida passagem, tal como ela se encontra na obra de Kant editada por Rink: A histria [Historie] diferente, portanto, da geografia [Geographie] somente do ponto do

    vista do espao e do tempo. A primeira , como j dito, uma notcia de acontecimentos

    que se sucedem um aps o outro e tm relao no tempo. A outra seno uma notcia dos

    acontecimentos que caminham um ao lado do outro [neben einander] no espao. A

    histria uma narrativa [Erzhlung]; a geografia, uma descrio [Beschreibung]. [N.T.]

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    Etnografia [Vlkerkunde] que se poderia denominar praticamente enquanto Filologia dos povos da natureza

    14 [Philologie der Naturvlker].

    Para as cincias histricas as relaes materiais de seus objetos so secundrias. Ao contrrio, elas unificam em sua investigao uma quantidade de coisas de pertencimento sistemtico totalmente diverso e recebem sua unicidade atravs do ponto de vista do decorrer temporal das coisas. Se estes seguissem uns aos outros coincidentemente e o decorrer das diferentes sries de fenmenos fosse independente um do outro, assim, a cincia poderia se contentar com a investigao sistemtica. Todavia, a conexo dos diferentes tempos, que ns expressamos atravs da palavra desenvolvimento, e a conexo no mesmo tempo tornam necessria uma investigao histrica especial. As investigaes sobre o desenvolvimento de uma srie individual de fenmenos, que contribuem, portanto, apenas a um dos dois pontos de vista, mais ou menos como a histria do mundo animal ou a histria da arte ou histria da literatura ou a histria da constituio, ocupam posio mediana entre as cincias sistemticas e histricas. As cincias autenticamente histricas compreendem o mundo fenomnico completo. Elas se decompem em trs diferentes cincias. A primeira a Histria da Terra [Erdgeschichte] ou Geologia Histrica [historische Geologie], que no de modo algum apenas uma histria da crosta terrestre firme, mas sim ao mesmo tempo uma [histria] do clima e do mundo vegetal e animal. O segundo a Vorgeschichte ou Pr-histria, que por muito tempo foi uma cincia sistemtica, porm, recebeu carter realmente histrico por meio da periodizao dos vestgios arqueolgicos realizada pela pesquisa moderna. A terceira a Histria pura e simples ou a Histria da Humanidade Culturalizada [Geschichte der Kulturmenschheit], que comeou a ultrapassar recentemente tanto a limitao unilateral do crculo cultural sudoeste-asitico e europeu, quanto a limitao unilateral das relaes estatais, mas luta ainda com a formao de um mtodo histrico-mundial.

    O ordenamento das coisas no espao requer especial investigao com o mesmo direito que o desenvolvimento no tempo. Ao lado das cincias sistemticas ou materiais, ou das cronolgicas, histricas ou temporais, devem seguir as cincias corolgicas ou espaciais.

    [p.117] Devem existir duas.

    14

    Hettner desenvolveu o seu conceito de povos da natureza (Naturvlker) em contraposio aos povos de cultura ou civilizados (Kulturvlker) em sua obra Der Gang der Kultur ber die Erde (O marcha da cultura sobre a Terra).[N.T.]

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    Uma tem a ver com o ordenamento das coisas no espao do mundo; a Astronomia que se concebeu sem razo como uma Mecnica aplicada, isto , como uma cincia das leis, cujo objeto autntico , contudo, apenas a constelao de astros reais existentes e o arranjo dos astros individuais conectados causalmente com ela.

    A outra a cincia do ordenamento espacial na Terra, ou, j que no conhecemos o interior da Terra, podemos mesmo dizer: na superfcie terrestre [Erdoberflche]. Se no existisse nenhuma relao causal entre diferentes lugares da Terra [Erdstellen], e se os diferentes fenmenos fossem independentes um do outro em um e mesmo lugar da Terra [Erdstelle], no seria necessria nenhuma concepo corolgica particular. J que, contudo, existem tais relaes que no so concebidas de modo algum ou apenas acessoriamente pelas cincias sistemticas e pelas histricas, necessria uma especfica cincia corolgica da Terra ou da superfcie terrestre.

    A investigao do desenvolvimento histrico da Geografia [Geographie] nos mostrou que, hoje, abstradas pequenas divergncias, duas concepes principais de Geografia [Geographie] se contrapem: por um lado, sua concepo enquanto Cincia Geral da Terra [allgemeine Erdkunde] ou Geocincia [Erdwissenschaft], na qual a Geografia Geral [allgemeine Geographie] tem anterioridade diante da Geografia Especial [spezielle Geographie] ou Geografia Regional [Lnderkunde] que em geral includa dentro da Geografia [Geographie] apenas de maneira inconsequente em extenso restrita; por outro lado, sua concepo como cincia da superfcie terrestre [Wissenschaft von der Erdoberflche] em sua formao diferenciada, na qual a Geografia Regional [Lnderkunde] a base e a Geografia Geral [allgemeine Geographie] tem o sentido de uma Geografia Regional Geral Comparativa [allgemeine vergleichende Lnderkunde]. Enquanto a sistemtica das cincias retirava sua diferenciao apenas do ponto de vista da diferencialidade material dos objetos, ela podia reconhecer a Geografia [Geographie] apenas enquanto uma Geocincia Geral [allgemeine Erdwissenschaft]. Todavia, uma investigao abrangente da sistemtica das cincias mostra a unilateralidade desse ponto de vista; mostra que a investigao cronolgica ou histrica e a corolgica ou espacial esto justamente ao lado da investigao sistemtica ou material, e que com isso uma cincia corolgica da superfcie terrestre [chorologische Wissenschaft von der Erdoberflche] tem no apenas direito de existncia, como tambm requisito de um sistema das cincias completo. Assim, essa concepo

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    entra na arena no apenas com o maior direito histrico, mas tambm com mesmo e maior direito lgico.

    [p.118] 2. possvel uma Geocincia Geral?

    As definies apriorstico-lgicas da Geografia [Geographie] tratam de partir do nome da cincia, junto ao qual, na maioria das vezes, o antigo nome Geografia [Geographie] ou Descrio da Terra [Erdbeschreibung] deixado de lado em favor do nome Cincia da Terra [Erdkunde], em parte por motivos de pureza da lngua, em parte porque ele expressa melhor o carter de cincia no apenas descritivo, mas tambm explicativo. A Geografia [Geographie] ou Cincia da Terra [Erdkunde] deve ser a partir disso a cincia da Terra [Wissenschaft von der Erde]. Em primeiro lugar, a Terra enquanto um todo em todas as suas relaes, tanto segundo sua posio no universo quanto segundo sua figura e tamanho e segundo suas propriedades fsicas e qumicas, forma o seu objeto; em seguida, os reinos da natureza individuais: o interior da Terra, a crosta terrestre firme, a gua, a atmosfera, o mundo vegetal e animal e tambm a humanidade, cuja concepo, porm, restringida atravs do adendo imediato: em sua dependncia da natureza da Terra; por que para a se amplia bem, igualmente, a determinao dos conceitos da Cincia da Terra [Erdkunde], de modo que ela seja a cincia da Terra [Wissenchaft von der Erde] em si e enquanto morada do homem [Wohnplatz des Menschen].

    O desejo de tratar a Terra em uma cincia provm das ideias em si mesmas corretas de que os diferentes reinos da natureza no esto ligados apenas espacialmente sobre a Terra, mas sim procederam da esfera terrestre originalmente similar e esto rigorosamente ligados de modo causal, de modo que se pode ver a Terra enquanto um grande mecanismo ou organismo. Na medida em que as relaes dos reinos naturais so diferentes em diferentes lugares [Stellen] da Terra, elas fazem parte da Geografia tambm enquanto cincia corolgica. Na medida em que elas se transformaram no decorrer do tempo, passaram a ser tratadas pela Geologia Histrica, que no de modo algum apenas uma histria da crosta terrestre, mas sim de toda a natureza da Terra. A questo , porm, se podemos tornar a conexo dos diferentes reinos da natureza o objeto de uma cincia individual ou se, por causa dessa conexo, podemos resumir em uma cincia uma poro de cincias que trabalham separadamente e com diferentes mtodos de pesquisa, mesmo quando a despimos das especificidades locais e das transformaes temporais ou quando a

  • 146

    negligenciamos; quando, portanto, voltamos a ateno apenas aos fenmenos universalmente iguais ou ao menos igualmente pensados sobre a superfcie terrestre.

    Evidentemente que os diferentes reinos da natureza esto em conexo causal. Se a Terra fosse de massa maior, a crosta terrestre firme teria outra forma e outra composio material; o movimento do ar e todos os fenmenos atmosfricos seriam diferentes; [p.119] outras plantas e outros animais viveriam na Terra e se existissem seres humanos em geral, eles teriam provavelmente um outro esprito. Com outro distanciamento da Terra em relao ao Sol tambm as relaes de todos os reinos da natureza se transformariam. Essas conexes tm que ser concebidas pela cincia. possvel ponderar sobre isso de modo oportuno; um livro como o Kosmos de Humboldt ser sempre considerado como o mais belo constructo de ideias da cincia, e tais livros deveriam ser reescritos de tempos em tempos. Mas essas conexes poderiam se tornar o objeto de uma cincia individual apenas em comparao com outros corpos do mundo, se soubssemos o suficiente a seu respeito.

    J a natureza inorgnica da Terra to rica e mltipla que ela teria que ser fragmentada em uma poro de cincias. Os movimentos da Terra, como o de todos os outros astros, fazem parte da Astronomia, pois eles podem ser entendidos apenas em conexo com os movimentos dos outros astros e fornecem tambm a chave para a sua compreenso. A determinao da figura da Terra tornou-se o objeto de uma cincia individual, a Geodsia. O pouco que sabemos ento da Terra como um todo e do interior da Terra tratado pela Geofsica, que se transforma cada vez mais numa cincia independente. A Mineralogia, Petrografia, a Pedologia e tambm a Geologia Geral ocupam-se com a crosta terrestre firme do ponto de vista material. Pouca independncia tem, ao menos at agora, o estudo das formas da superfcie terrestre, qual se dedica a Geomorfologia. Os processos mecnicos e fsicos da crosta terrestre so postos cada vez mais de lado pela Geofsica. A ela cabe tambm a parte principal na pesquisa das geleiras atuais, bem como dos rios e mares, at o ponto em que j no se quer considerar o estudo das geleiras, rios e mares enquanto cincias independentes, o que passou a ser a Cincia dos Mares (Oceanografia) graas grande multiplicidade de seus pontos de vista e da particular significao prtica de sua pesquisa. A fsica da atmosfera, a Meteorologia, pode hoje, sem dvida, reivindicar o grau de cincia independente.

  • 147

    Com base na homogeneidade dos objetos e dos modos de trabalho, uma poro dessas disciplinas se deixa englobar por unidades superiores, somente por meio das quais sua representao nas universidades em geral se torna possvel. Isso vale nomeadamente para uma Geofsica Geral pela unificao da Geofsica

    15 em sentido estrito, a fsica da crosta terrestre

    firme, a fsica da gua e do gelo e a fsica da atmosfera. Mineralogia, [p.120] Petrografia e Pedologia, enquanto ramos principais de uma Geoqumica se defrontam com ela. Mas uma unificao desses dois grupos de cincia um com o outro e com a assim chamada Geografia Astronmica ou Matemtica para uma Cincia Geral da Terra [allgemeine Erdkunde] tem baixo valor junto grande diferencialidade de mtodos cientficos, tambm quando seus resultados tm de ser, oportunamente, englobados sob pontos de vista comum.

    A Cincia Geral da Terra [allgemeine Erdkunde] deve se estender aos mundos vegetal e animal. Evidentemente que a natureza orgnica em sua formao total depende da caracterstica da Terra. Ratzel acentuou com isso principalmente o tamanho; Gerland, o peso e o calor da Terra. Essa dependncia tem um papel, ainda que na maioria das vezes implicitamente, em cada investigao botnica e zoolgica, j que se pode pensar cada caracterstica individual dos organismos apenas sob as relaes determinadas da natureza da Terra. Ela pode ser tambm objeto de investigaes oportunas mais ou menos espirituosas, mas apenas poderia tornar-se objeto de uma cincia individual se pudssemos comparar os mundos vegetal e animal da Terra com os dos outros planetas.

    Com certeza no se atribui comumente Cincia Geral da Terra [allgemeine Erdkunde] a planta ou o animal individualmente, mas sim os mundos vegetal e animal. Mas, do mesmo modo, contra isso se revolta o refletir lgico e prtico. As pesquisas botnica e zoolgica do cada vez mais ateno s comunidades vegetais e sociedades animais, de modo que sua investigao em uma cincia individual torna-se desnecessria. Segundo a concepo de hoje, a Botnica e Zoologia sistemticas, que se apoiam mesmo na Filogenia, nada mais so do que a concepo dos mundos vegetal e animal sob os pontos de vista das relaes de afinidade. A histria dos mundos vegetal e animal tratada com a histria da crosta terrestre firme e dos climas na Geologia Histrica. Depois, resta apenas a formao diversa dos mundos vegetal e animal em diferentes espaos 15

    A denominao Geofsica prefervel ao antigo nome Geografia Fsica [physikalische Geographie], que sempre favorece crena em uma subordinao

    Geografia.

  • 148

    terrestres. Mas com essa limitao surge o ponto de vista corolgico inteiramente estranho Cincia da Terra [Erdkunde] enquanto Geocincia Geral [allgemeine Erdwissenschaft] que, ao contrrio, instrui a outra concepo de Geografia [Geographie].

    As mesmas dvidas devem ser levantadas na investigao do homem [Mensch] e, neste caso, so ainda maiores, devido formao rica e mltipla da vida espiritual. Nenhum metodlogo ainda ousou tratar o gnero humano em sua totalidade dentro da Cincia da Terra [Erdkunde]. Representantes individuais da Cincia Geral da Terra [allgemeine Erdkunde], como Gerland, querem deixar totalmente de fora da Cincia da Terra [Erdkunde] at mesmo o homem, apelando para a sua caracterstica espiritual e de sua liberdade de vontade eles deveriam ento chegar mesma concluso para os mundos vegetal e animal e limitar a Cincia da Terra [Erdkunde] natureza inorgnica da Terra! Muitos deles abandonam seu ponto de vista lgico pelo homem, como j fizeram, mesmo inconscientemente, pelos mundos vegetal e animal, e ainda querem levar em considerao apenas a influncia da Terra sobre seus habitantes humanos, em que se trata no da influncia do todo terrestre, mas sim apenas das diferencialidades locais da superfcie terrestre, entrando novamente, portanto, no ponto de vista corolgico. Essa concepo em geral apenas uma adaptao no desenvolvimento histrico da cincia, na qual ento o homem esteve contido apenas uma vez, tendo mesmo um lugar privilegiado. Desse modo, a estrutura logicamente uniforme da cincia dinamitada. Nessa concepo a Geografia [Geographie] , segundo o dizer de Hermann Wagner, dualstica. Isso significa em alemo que ela , segundo sua essncia, ambivalente, com mtodos inteiramente diferentes em suas diferentes partes, um complexo inorgnico de duas ou mais diferentes cincias.

    A determinao da Geografia [Geographie] enquanto Geocincia Geral [allgemeine Erdwissenschaft] no se deixa realizar de modo algum de forma consequente; ela conduz a uma forca fatal. Se, no decorrer do desenvolvimento histrico, ela crescesse naturalmente, teramos que admiti-la e apenas nos esforar para, gradualmente, purific-la. Mas ela na verdade um produto da arte, que apenas mais tarde foi artificialmente injetada na Geografia [Geographie] de dentro da mescla de diferentes tendncias, e atua apesar de toda salutar falta de consistncia como um grilho. Ela carrega a culpa da expanso da Geografia [Geographie] sobre reas desconhecidas, de um nivelamento frequentemente ligado a isso e tambm de uma averso e resistncia das cincias vizinhas contra a

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    Geografia [Geographie]. Logicamente impossvel, historicamente infundada, praticamente nociva, ela um absurdo [Unding].

    A Geofsica enquanto cincia autnoma pode se salvar apenas a partir da Geocincia Geral [allgemeine Erdwissenschaft]. Todavia, ela no o cerne da Geografia [Geographie], nem mesmo uma parte dela, mas sim est, de maneira autnoma, a seu lado. A Geografia [Geographie], em sua essncia enquanto conhecimento dos espaos terrestres solidamente determinados de modo histrico, deve encontrar sua habilitao lgica sob um outro ponto de vista, diferente do de uma Geocincia [Erdwissenschaft].