13 historias alfred hitchcok

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    ALFREDHITCHCOCK

    APRESENTA:

    13 HISTRIASDE ARREPIAR

    Traduo de

    A. B. Pinheiro de Lemos

    Editora Record

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    INTRODUO

    Eu gostaria de ocupar este espao para promover um projeto queme muito caro.

    Como todo mundo sabe, eu seria o lmo a reclamar de qualquercoisa que fomente o sangrento, o fantsco, o fantasmagrico, o horrvel.Sempre que chamado a colaborar com uma nova revista de horror ou aendossar um novo produto medonho, nunca me z de rogado. Por maiorque tenha sido meu sucesso, nunca hesitei em oferecer algumas pala-vrinhas de esmulo a algum humilde assassino de machadinha ou a umpobre coitado que gosta de pisotear suas vmas.

    Sendo assim, provavelmente ser uma surpresa para meus discpu-los saber que sou a favor da abolio do Halloween, o Dia das Bruxas (vs-pera de Todos os Santos). Surpresa ou no, o fato que tenho inuentesagentes em postos-chaves, lutando para que a fesvidade seja exrpadado calendrio e substuda por alguma outra coisa. Anal, nenhum adul-to em seu juzo perfeito pode deixar de concordar que o Dia das Bruxas setransformou numa chace insuportvel. Somente o Dia do Papai conse-gue super-lo em matria de tdio e hipocrisia.

    Embora as origens do Dia das Bruxas estejam mergulhadas nas tre-vas da pr-histria, de um modo geral todos concordam que as razes seencontram nos fesvais da colheita romana e druida. O momento de co-lher os frutos do vero assinalava o prenuncio do inverno, o qual, comoqualquer pessoa com um mnimo de pensamento poco capaz de ima-ginar, representa simbolicamente a morte da natureza.

    As Foras das Trevas, ocialmente, obnham assim a supremacia,

    no Dia das Bruxas, espalhando a confuso e o terror pelos campos. Duen-des e gnomos, harpias e megeras, fantasmas e espritos, bruxos e feicei-ros disseminavam o terror e a desolao entre os campnios. Esses es-

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    pritos das trevas desencadeavam sua virulncia na poca da Saturnlia,connuavam a manifestar-se pelos Idos de Maro e no se aquietavamat os dias ociais do renascimento da natureza, comemorado no Dia dasMes. As Foras do Mal voltavam ento para o fundo da terra, onde ca-vam a imaginar novos terrores para o outono seguinte.

    Essas terrveis incurses foram um tanto modicadas no Sculo VI,quando Bombazine, o Sereno, um patriarca druida, instuiu o Dia de Aode Graas, como uma fesvidade prevenva. Espertamente, ele pressen-u que esse feriado iria quebrar o impulso das fesvidades que duravamo inverno inteiro, de tal forma que somente alguns demnios mais em-pedernidos sobreviveriam para o aparecimento na Vspera do Ano Novo.A Walpurgisnacht (vspera de 1. de Maio) tambm est envolvida nessa

    histria, mas no posso deter-me agora para explicar como.O costume de pregar peas nos outros, no Dia das Bruxas, surgiu

    quando os humanos, ciumentos (como sempre) dos poderes possudospelos elementos sobrenaturais, desejaram semear o mesmo po de de-vastao e terror sobre pessoas e propriedades. Tal inveja, esmuladapela energia liberada com o m da colheita e lubricada pelos vinhos e be-bidas alcolicas feitas de cereais, abundantes naquela estao, inspirou apopulao rural a causar uma grande variedade de danos. Sobrepondo-sea todas as demais tropelias, havia a ameaa que hoje conhecida comoTrick or Treat (Travessuras ou Regalos).

    A palavra trick tem suas razes na palavra grega trichinos (de ca-belos), vem do lam tractare (tratar). Torna-se evidente, portanto, queo costume remonta a um tempo em que as pessoas iam visitar as casase gritavam Cabelos ou Traio para os moradores. No faz muito sendopara ns, verdade, mas, anal, muito pouca coisa daquele tempo o faz.

    Pois bem, as coisas transcorreram tranqilamente dessa maneira,durante mil e tantos anos, somente afetadas pelas Cruzadas e pela Guer-ra Sino-Japonesa. Mas esses dias alegres e despreocupados teriam umm abrupto, com o advento dos Estados Unidos. Nesse momento, o quede pior havia na natureza humana e merecidamente prevalecera durantequase toda a histria conhecida desgurou-se completamente, criando-se condies totalmente adversas ao orescimento das Foras das Trevas.No tenho a menor idia do que h com os Estados Unidos da Amricaque faz com que as fesvidades mais respeitveis se desvirtuem, ao che-gar s nossas bandas. Alm do mais, trata-se de um problema irrelevante

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    aos objevos do estudo que ora estou apresentando.No vou entrar em detalhes sobre as atrocidades que meus com-

    panheiros e eu costumvamos cometer, mas direi que, no meu tempo,os meninos demonstravam um gnio impressionante para aumentar ossofrimentos deste mundo e as variedades pelas quais podiam ser ini-gidos. Quando baamos na porta de uma casa e berrvamos Trick orTreat! espervamos ser tratados com nada menos que todo o contedodo cofre na parede ou o equivalente em balas e doces. Se tal no acon-tecia, perpetrvamos trlcks ou travessuras na mesma escala do ataquedos comandos a Dieppe ou o Mom dos Sipaios. Alabardas, arcos, clavas,cidos corrosivos, azagaias, boleadeiras e garrotes eram alguns dos ins-trumentos com que executvamos nossa vingana. Quando voltvamos

    para casa, deixvamos atrs de ns um cenrio que se parecia com o deuma comunidade costeira aps um maremoto, com carros aninhados emcima de rvores, trilhos de trens retorcidos como grampos, em torno dospostes telefnicos.

    Em contraste com isso, observe-se agora uma pica comunidademoderna no Dia das Bruxas.

    Com vrias semanas de antecedncia, os comerciantes locais co-meam a abastecer suas prateleiras tanto com os petrechos para o terro-rismo como com os meios para impedi-lo. Os comerciantes sempre foramoportunistas em tempos de distrbios civis e no agem de maneira dife-rente nessa ocasio. No favorecem a nenhum dos lados e encorajam aambos. Os supermercados so terra de ningum, onde os oponentes semisturam, em torno da fonte nica de suprimentos.

    No arsenal ofensivo, encontramos armas to temveis como tra-jes de gaze representando feiceiros, monstros, duendes; e irrelevncias

    como piratas, freiras e ratos do campo. H tambm mscaras de gaze devampiros, esqueletos, gatos pretos e as celebridades ora reinantes na te-leviso. E ainda h sacolas de compras, em cores alegres, para se recolhera pilhagem. Isso sem falar nas inevitveis caixas de giz, de cores suaves.

    No lado da defesa, h material desnado a assustar ou apaziguar osdiabinhos, como esqueletos de papelo e outros implementos semelhan-tes, abboras de papier-mch com ou sem lmpadas eltricas, imensosestoques de doces, fabricados com os formatos de personagens familia-res da demonologia, tais como Drcula, Quasmodo e o Pato Donald. Tudo exibido na maneira apropriada para a melhor venda das mercadorias.

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    Todos os produtos esto expostos de forma a se exigir o mnimo esforoda imaginao.

    Como so as mes que compram as coisas que as crianas usam noDia das Bruxas, no de admirar que a fesvidade se caracterize hoje porser totalmente inofensiva. Na verdade, a segurana a preocupao bsi-ca e todos conspiram para que ningum saia machucado, que assustadoou mesmo vagamente confuso.

    A Cmara de Comrcio local seleciona as paredes que as crianaspodem riscar com giz. Meninos e meninas so devidamente instrudospara o fato de que dar sustos em adultos pode provocar ataques card-acos. E como as crianas no querem carregar pelo resto de suas vidasa responsabilidade pela morte de um adulto, tratam de limitar sua as-

    sombrao a gemidos bem modulados, quase midos e envergonhados.Os motoristas so alertados a guiar com mais cautela do que o habitual,porque os pequenos terroristas podem no ver a aproximao dos carrospelos cantos de suas mscaras. Aumentando-se as precaues, as mestratam de costurar insgnias fosforescentes nas mangas ou pernas das cal-as das crianas. Os policiais so convocados em peso para a ocasio, masno para impedir a violncia e a pilhagem e sim para ajudar os saquea-dores a atravessarem as ruas. Organizam-se festas para mant-los intei-ramente longe das ruas, proporcionando-se brincadeiras como morder ama pendurada de um barbante, sem auxlio das mos, a m de que ascrianas possam dar vazo a seus impulsos diablicos.

    Um pequeno grupo de crianas mais ousadas, que no se deixaminmidar pelos pais preocupados, percorre as ruas, provocando uma con-fuso infernal peculiar s crianas americanas do sculo XX. Disfaradasem fantasmas, ratos do campo ou Ben Caseys, essas crianas vo de po-

    ria em porta a murmurarem Trick or Treat!, sempre esperando plenacooperao. No tm a menor idia do que possam fazer, caso encon-trem alguma resistncia. Mas jamais deparam com a mnima resistnciae a cooperao abundantemente oferecida. Mes e pais recebem ascrianas com grinhos de admirao e divermento diante das fantasias,apressando-se a entregar-lhes sacos de pipoca, doces e tostes. A opera-o rpida e bem organizada. Torna-se impossvel determinar se existeprazer ou sofrimento na troca efetuada. As crianas, encarando aquelasoferendas de paz como algo invarivel e roneiro, guardam o saque emsuas sacolas, indiferentes, parndo em busca da prxima vma.

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    Assim, podemos dizer que o Dia das Bruxas de fato muito peri-goso. Em nenhuma outra ocasio o perigo para uma juventude saudveltorna-se mais patente. Parece que esquecemos que os trs elementosprincipais da psicologia de uma criana so a imaginao, o desao e oinsnto de destruio. Dem a uma criana um dos chamados brinque-dos pedaggicos. Se a criana ver um mnimo de esprito, ir destruir ra-pidamente o brinquedo e encontrar coisas interessantes e variadas parafazer com a caixa que o connha.

    As crianas no querem cooperao e superviso no Dia das Bru-xas; querem ser desaadas a cada passo do caminho. No querem ganharguloseimas, a menos que isso custe alguma coisa ao doador, em angsamental. No querem festas controladas nem ruas bem iluminadas; no

    querem trajes pr-fabricados ou lugares especialmente designados ondepossam destruir propriedades sem valor. Elas querem, simplesmente,provocar uma confuso dos diabos, atemorizar de fato.

    No estou assumindo a posio de que as crianas so monstrospuros, porque sou sensato o bastante para saber que no existe nadapuro neste mundo. Mas creio que vital que reconheamos uma acen-tuada tendncia em toda criana normal e saudvel a ser rude e mal-educada. O Dia das Bruxas oferece uma excelente oportunidade para queas crianas dem vazo s suas atudes an-sociais, reprimidas durantetodo o resto do ano. Se suprimirmos completamente tal possibilidade,estaremos eliminando uma fonte vital de criavidade. Isso pode causaro aumento de alunos reprovados na escola secundria, problemas alco-licos, socialismo radical e uma incidncia 31 por cento mais elevada decries dentrias, botulismo e calvcie precoce. Vamos, portanto, devolvera essa fesvidade as suas caracterscas anteriores de indignidade e des-

    respeito. Ou ento encontremos uma alternava apropriada. J temos oDia das Mes e o Dia dos Pais. Assim, o melhor substuto seria o Dia dasCrianas, completando-se a tendncia para a idolatria das crianas, quevem aumentando desde que as leis do trabalho infanl libertaram a natada nossa juventude.

    Alfred Hitchcock

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    OUA-ME, POR FAVOR!

    Fletcher Flora

    Acorde! disse a voz.Freda abriu os olhos e tou o teto, esperando que a voz dissesse

    mais alguma coisa. Mas s houve o silncio. O que no era nada inquie-tante, pois havia ocasies em que a voz no lhe falava por horas e horas ao, voltando a faz-lo subitamente, em algum momento estranho e ines-perado, com instrues especcas para fazer isso ou aquilo, de uma ma-neira determinada e em tal ou qual momento. No princpio, Freda cara

    assustada com a voz. Mas s no princpio. No demorara a compreenderque no havia absolutamente movo algum para car assustada, mui-to pelo contrrio. Passara ento a aguardar ansiosamente a voz, sempremuito atenta, pois nunca sabia quando ela iria falar. Ocasies havia emque a voz lhe falava quando estava sozinha. Mas havia tambm muitasvezes em que lhe falava quando estava em companhia de outras pessoas,at mesmo conversando. Freda parava de falar no mesmo instante, s

    vezes no meio de uma frase, escutando atentamente o que a voz lhe dizia.O que era sempre desconcertante para a pessoa ou pessoas com quemFreda estava falando. Para Freda, tal situao era bastante diverda, umtanto cmica, algo de que poderia rir, embora secretamente.

    Um fato estranho era o de que a voz, embora falasse sempre commuita clareza, jamais era ouvida por qualquer outra pessoa, alm da pr-pria Freda. Outro fato estranho, cada vez mais estranho, era o de quejamais havia necessidade de responder voz falando alto. Bastava pen-

    sar as palavras que a voz queria ouvir, pois a voz escutava atentamentee respondia. Desse modo, Freda podia manter longas conversas com avoz, sem que qualquer outra pessoa porventura presente pudesse ouvir.

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    Mas tais coisas s eram estranhas na medida em que eram excepcionais,certamente alm da crena de algum que no as vesse experimentado.Mas eram realmente realidades admissveis. Nada havia de sobrenaturalnelas, como a presena de luz na escurido e um mundo de sons abaixodos nveis de audio.

    Fora a voz que levara Freda quela cidade, aonde chegara na noiteanterior, e quele quarto de hotel, onde acabara de despertar. A voz dis-sera a Freda o que fazer, exatamente quando e como. Mas Freda sabiaperfeitamente o que deveria fazer ao nal, depois de todas as pequenascoisas que deveriam ser realizadas antes. E era para fazer tal coisa queFreda viera quela cidade, naquela ocasio. Viera matar um homem cha-mado Hugo Weiss.

    melhor voc sair logo da cama disse a voz.Era um aviso genl. No havia na voz o menor vesgio de raiva

    diante da preguia de Freda, nem mesmo uma insinuao de impacincia.A voz era sempre genl, invariavelmente suave, de uma beleza pungen-te, com um sussurro de tristeza a impregnar a pronncia das vogais econsoantes, como uma brisa ligeira a murmurar por entre as rvores, aocrepsculo.

    Tem razo, est mesmo na hora, pensou Freda.Freda levantou-se e dirigiu-se ao banheiro, acendendo a luz. Seu

    rosto, reedo no espelho por cima da pia, parecia o rosto de outra pes-soa, no o de uma estranha, mas o de uma pessoa que Freda conhecerah muito tempo, em outro lugar, e da qual no conseguia lembrar-se mui-to bem.

    Senu pena daquele rosto e da pessoa a quem pertencia. Subita-mente, teve vontade de chorar e de dizer ao rosto como estava senndo

    pena. Em vez disso, porm, Freda rou o pijama e tomou um banho dechuveiro. Voltou ao quarto e vesu-se, comeando em seguida a escovaros cabelos. Sentou-se na beira da cama, escovando-os em movimentosrpidos e curtos, a cabea primeiro inclinada para um lado, depois parao outro. E, enquanto escovava os cabelos, Freda comeou a pensar navoz, que no lhe estava respondendo agora, e em Hugo Weiss, a quem iamatar.

    A voz lhe dissera que assim o zesse, na primeira vez em que lhefalara. Fora nessa ocasio que Freda compreendera, pela primeira vez,como Hugo Weiss era um demnio monstruoso. Freda esvera grave-

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    mente doente, com acessos de febre alta. Passada a doena, quase nohavia o que fazer durante o longo perodo de convalescena, exceto pen-sar, ler e esperar que os dias e noites compridos passassem. Na manhdaquele dia em parcular, Freda abrira o jornal que a me levara a seuquarto. E l estava, na primeira pgina, um retrato de Hugo Weiss. Fredaj nha ouvido falar nele antes, claro, pois no havia quem no soubes-se a respeito de Hugo Weiss. Mas era a primeira vez que Freda via umafotograa de Hugo Weiss ou pelo menos ao que se lembrava. Ele estavasendo invesgado por um grande jri, por sua ligao com uma organiza-o criminosa, supostamente internacional. Somente a cabea e os om-bros dele apareciam na fotograa, que certamente devia ser a ampliaode um instantneo rado na rua ou algum outro lugar, pois Hugo Weiss

    jamais iria sentar-se docilmente num estdio fotogrco ou permir vo-luntariamente que seu retrato fosse bado em qualquer outro lugar.

    Ele era incrivelmente feio, o que, por si s, nada nha ae conden-vel. Mas a feira dele era anormal, quase aterrorizante. O rosto de HugoWeiss uma obscenidade brutal, pensou Freda. Sentada em seu quarto,Freda estudara com ateno a fotograa do jornal, o nariz achatado, comas narinas mostra, parecendo buracos escuros abertos na carne comum ferro em brasa, a boca parecendo uma chaga em carne viva prestes asangrar, a pele spera, marcada pela varola. Os olhos estavam quase porcompleto ocultos pelas plpebras abaixadas. Freda senu, em sua prpriacarne, um calafrio sul, estranhando que um homem to monstruosa-mente marcado por uma feira diablica pudesse ter adquirido, sua ma-neira, um poder to grande sobre outros homens. No momento em queestava pensando nisso que Freda nha ouvido a voz pela primeira vez.

    Hugo Weiss deve morrer disse a voz. E voc que deve

    mat-lo.Freda compreendera, instantaneamente, que no se tratava de

    uma alucinao. A voz era real. Ela podia ouvi-la. A voz falava-lhe comextrema clareza, suavemente, de um ponto logo atrs de seu ouvido direi-to. Freda compreendeu que seria inl tentar convencer-se, mesmo queassim o desejasse, de que a voz no passava de um eco dos seus prpriospensamentos. Assim, depois do choque inicial de medo e espanto, Fredapassou a aceitar a voz com tranqilidade, quase como se a esvesse espe-rando, inconscientemente, ao longo de todos aqueles anos.

    Mas por que sou eu que devo mat-lo?, pensou Freda.

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    Porque foi voc quem nalmente me respondeu.Ningum mais quis escutar? No se trata de escutar, mas sim de ouvir.Somente eu, entre todas as pessoas do mundo, que posso ouvi-

    la? Pelo menos voc a primeira.O que me d a capacidade de ouvi-la e a voc o poder de fazer-me

    ouvir? Ser que minha doena recente tem algo a ver com isso? No sei as respostas s suas perguntas. Qual a explicao para

    qualquer milagre, a no ser que no se trata absolutamente de um mila-gre, mas apenas o efeito raro de causas naturais que no compreende-mos? Eu falo e voc ouve e isso o bastante.

    E quem est me falando? No posso dizer.Por qu? Porque eu tambm no sei. Como uma voz, sou meramente a

    expresso de um imperavo inconsciente. Expresso tal imperavo, masno posso ter conhecimento da fonte do qual deriva.

    No tenho muita certeza se consigo compreender. Isso no tem a menor importncia. Voltarei a lhe falar, mais tar-

    de.Fora assim o incio de seu relacionamento com a voz. Freda jamais

    pensara em matar algum antes e era realmente extraordinrio que elapudesse comear a pensar a respeito agora, com uma serenidade indi-ferente, como se fosse outra pessoa a pensar e planejar, outra pessoa aouvir a voz e a conviver inteiramente vontade com aqueles pensamen-tos de morte violenta. Aparentemente, no havia qualquer pressa. A voz

    jamais instara ou forara Freda a promessas e atos que ela no estavapreparada para assumir. Freda comeou, um tanto lentamente, a reunirtodas as informaes que podia encontrar, a respeito de Hugo Weiss. Ha-via bem poucas informaes, a maior parte no digna de muito crdito,pois Hugo Weiss era um personagem astucioso e sorrateiro, preferindoagir por intermdio de outros e sempre permanecendo nas sombras doanonimato. Era o lho de um operrio. Pela astcia, traio e crueldademaquiavlica, expressando-se atravs de uma personalidade estranha-mente compulsiva, num corpo horrendo e atroado, ele se transforma-ra no homem mais poderoso do Estado. Controlava a cidade onde vivia.

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    Controlava o governador do Estado e os legisladores. Havia gente inuen-te em Washington que escutava com ateno quando ele falava. E HugoWeiss sempre falava em sussurros, por trs das cornas, nos basdores.A invesgao do grande jri, evidentemente, no levara a nada. Uma dastestemunhas morrera em circunstncias misteriosas, outra havia perdidoa memria, uma terceira desaparecera. De qualquer maneira, era muitoduvidoso que o grande jri conseguisse indiciar Hugo Weiss.

    Tudo comeara na primavera. Naquele vero, a voz voltou freqen-temente, falando a Freda quando bem lhe aprazia, sem qualquer coern-cia de tempo ou lugar. No outono, Freda reiniciou suas avidades comoprofessora de uma turma do sexto ano, numa escola elementar perto desua casa. Ocasionalmente, a voz a visitava durante as horas de aula, o

    que s vezes era bastante embaraoso. Era necessrio car quieta porinstantes, completamente imvel, a m de ouvir o que a voz dizia, j que,ela falava baixinho. Tais momentos de sbito alheamento, quando Fredapermanecia sentada como uma esttua de pedra, eram percebidos pelosalunos, como no podia deixar de acontecer. Freda receava estar adqui-rindo a reputao de esquisita, mas era-lhe impossvel explicar que aque-les lapsos aparentes eram na verdade normais e necessrios, pois nin-gum compreenderia. Depois de algum tempo, Freda descobriu que nomais se importava com o que os outros pudessem pensar a seu respeito.

    A esta altura, Freda j no nha a menor dvida, se que algumdia vera, de que terminaria matando Hugo Weiss. No se sena messi-nica por causa disso. Era simplesmente algo que nha de ser feito. Poralgum tempo, Freda ainda se inquietou com as conseqncias possveisque teria de sofrer. Mas logo descobriu que era incapaz de pensar almdo ato de matar Hugo Weiss, como se sua vida tambm fosse terminar

    naquele instante, tornando-a eternamente invulnervel a qualquer ofen-sa terrena. De noite, deitada em sua cama, no quarto s escuras, Freda sedivera ao pensar em Hugo Weiss, onde quer que ele esvesse, fazendoo que esvesse fazendo, numa total inconscincia de que, em breve, iriamorrer pelas mos de uma mulher que nunca vira e que jamais chegariarealmente a conhecer. Era diverdo, muito diverdo mesmo. E Freda riabaixinho para si mesma, na escurido, um mero sussurro no quarto silen-cioso. O rosto de Hugo Weiss utuava acima dela como uma obscenidadeectoplsmica, horrendo e diablico.

    Em maro, Freda comprou um revlver, calibre 32, explicando ao

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    dono da loja que isso lhe daria uma sensao de segurana, embora ja-mais vesse disparado uma arma, em toda a sua vida. Alegou que, comomorava sozinha com a me numa casa grande, parecia-lhe uma insensa-tez no ter qualquer po de proteo. O comerciante concordou que erauma boa medida e sugeriu que Freda pracasse com o revlver, nos cam-pos ao redor da cidade, nas tardes de domingo. Ele vendeu diversas caixasde balas para o revlver. Freda levou a munio e o revlver para casa,guardando-os com cuidado numa gaveta da penteadeira em seu quarto.Mas no pracou ro ao alvo nas tardes de domingo, pois isso no era ne-cessrio. A necessidade que houvesse seria devidamente providenciada,quando chegasse a ocasio prpria.

    Em princpios de junho, logo depois que as aulas terminaram, para

    as frias de vero, o longo perodo de espera chegou ao m. E terminoubruscamente, sem qualquer aviso prvio, numa tarde de sol, na sala deleitura da biblioteca pblica. Freda nha ido at l sem nenhum mo-vo em parcular, exceto o de que a biblioteca pblica era um bom lugarpara se car, quieto e repousante, com os raios de sol entrando inclina-dos pelas janelas altas. Freda ia at l regularmente, at o mais longe deque conseguia lembrar-se. Estava sentada sozinha a uma mesa, junto janela, com um livro aberto sua frente. Mas no se estava concentrandono livro, mal percebendo as palavras escritas, entre os longos intervalosde devaneios. Mais tarde, no pde recordar-se do nome do livro ou dequalquer coisa que lera.

    Est na hora de entrar em ao disse a voz, sbita e suave-mente.

    Para fazer o qu?, pensou Freda. Est na hora de matar Hugo Weiss. J esperamos tempo su-

    ciente.Como? Com o revlver. No comprou o revlver?Comprei. O revlver e as balas. Isso mo. Vai ser muito simples. Voc ver.O que devo fazer? Em primeiro lugar, claro, voc tem de ir para a cidade onde ele

    est.E depois? V para um hotel. Mais tarde, na ocasio apropriada, ir at o

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    escritrio dele. Ele recebe l todos os pos de pessoas, a maioria procu-ra de favores. Ningum achar estranho que voc tenha ido tambm. Jsabe onde ca o escritrio dele?

    J. Fica na parte sul da cidade, perto da estao ferroviria. NaEuclid Street.

    isso mesmo. Pelo que estou vendo, andou preparando-se de-vidamente.

    No encontrarei a menor diculdade para v-lo? Provavelmente no. Ele faz questo de receber pessoalmente

    todas as pessoas que lhe vo pedir favores. uma fraude. Dessa forma que consegue manter seu poder.

    E o que acontecer comigo depois?

    No se preocupe com isso. No se preocupe com mais nada,alm daquilo que precisa fazer.

    Tendo formulado a pergunta, o que lhe iria acontecer posterior-mente, Freda senu por um instante um medo terrvel. No momento se-guinte, porm, o medo se desvaneceu. Ela se levantou, devolveu o livro prateleira e saiu da biblioteca. Chegando a casa, disse me que decidirapassar um ou dois dias na outra cidade, bem maior, coisa que fazia oca-sionalmente, desde que alcanara a idade suciente para viajar sozinha.Subiu para o seu quarto e arrumou uma mala pequena, com algumas rou-pas e o revlver carregado. No nha a menor sensao de ter chegado aum ponto crco de sua vida, de ser o incio de qualquer coisa ou o m dealguma coisa. Nem mesmo senu que era uma mudana radical em suavida, em relao ao que fora antes. Freda sabia que havia um trem quepara para a outra cidade s 5 horas da tarde. Depois de arrumar a malae despedir-se da me, ela pegou um txi e foi para a estao, chegando

    com vrios minutos de antecedncia.Isso acontecera no dia anterior. Agora, Freda estava num quarto do

    hotel em que se hospedara. Olhou para o relgio e viu que eram 9 horasda manh. Parou de escovar os cabelos e levantou-se, vesndo o casa-quinho leve que usara no trem. Ficou parada por um momento, a cabealigeiramente inclinada para a frente, numa atude de abstrao, comose, agora que estava preparada para parr, vesse esquecido para ondedevia ir e com que propsito. Depois, com sbita determinao, rou orevlver carregado da mala, guardou-o na bolsa e, saindo para o corredor,desceu. Foi pela escada, ignorando o elevador. Caminhava lentamente,

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    no como algum relutante em chegar a seu desno, mas como se fosseum passeio a esmo, sugerindo que no nha qualquer desno especco.

    Na verdade, Freda nha bastante tempo. Do hotel ao escritrio deHugo Weiss, a distncia era de quase dois quilmetros. No seria muitosensato, pensou ela, chegar l cedo demais. Do saguo do hotel passoupara a sala de caf, sentando-se a uma mesinha nos fundos. Uma garo-nete levou-lhe o cardpio do caf da manh, mas Freda no estava com amenor fome, embora nada vesse comido desde a hora do almoo do diaanterior. Pediu apenas uma xcara de caf. E tomou o caf to devagar queestava frio antes de chegar metade. Connuou sentada diante da xcarade caf frio por mais 10 minutos, antes de parr. quela altura, passavaum pouco de 9:30 horas.

    Chegando Euclid Street, com a boisa debaixo do brao e aindacaminhando como se passeasse sem nenhum desno especco, Fre-da virou para o sul, na direo do escritrio de Hugo Weiss. No podiarecordar-se com exado de como descobrira o endereo do escritrio.Provavelmente era algo que ela sabia h muito tempo. Anal de contas,era um local famoso e em vrias ocasies fora divulgado pelos jornais. Erao primeiro escritrio que Hugo Weiss vera e tambm o nico, duas salasescuras num prdio quase em runas, no bairro pobre da cidade. Era umaprova da vaidade dele o fato de ali ter permanecido, ao longo de todosaqueles anos, exercendo o seu poder cada vez maior e amealhando umafortuna fantsca, no mesmo lugar em que comeara. Era outra fraude,pensou Freda. Uma menra. Uma iluso de humildade, de um monstrode vaidade.

    Percorrendo a rua, Freda sena-se maravilhosamente bem dispos-ta, quase exultante. Tinha a impresso de que era gasosa, mal tocando

    a calada de concreto com os ps, prestes a se erguer e utuar a cadapasso. J se senra daquela maneira algumas vezes, quando era menina,especialmente bem cedo, nas manhs de primavera, quando se levantavaantes dos outros e saa sozinha para o quintal. Na vitrina de uma loja viuum vesdo leve do azul mais claro possvel, exatamente o po de ves-do para a garota exuberante que ela fora outrora e que j no era mais.Ficou parada diante da vitrina, contemplando o vesdo, por vrios minu-tos, apertando a bolsa debaixo do brao, senndo o revlver que estavadentro da bolsa. Depois, virou-se e afastou-se, chegando logo em seguidaa determinado prdio quase em runas do bairro pobre da cidade. Na rua,

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    diante do prdio, a voz voltou a lhe falar, pela lma vez. E, como sempre,era uma voz de pungente beleza, impregnada por um sussurro de tristeza.

    Aqui est voc nalmente. Demorou bastante a chegar.Tem razo, pensou Freda. Bastante tempo...Ela connuou a esperar, a cabea ligeiramente inclinada para o

    lado. Mas a voz no tornou a falar. Depois de um ou dois minutos, Fredafoi at a entrada do prdio e seguiu por um corredor escuro, do qual saauma escada estreita, imersa em sombras, que levava ao segundo andar.Freda subiu a escada, hesitando por um momento l em cima, virando-seem seguida na direo da rua e percorrendo um corredor estreito, ondehavia duas portas, com vidro fosco na parte de cima, sem nada escrito.Freda passou pela primeira porta e foi para a que cava mais perto da rua,

    abrindo-a e entrando numa sala pequena, que parecia exibir um certoorgulho por seu despojamento miservel. O cho era descoberto, escu-recido e engordurado por muitas camadas de cera. Encostadas em trsparedes, havia uma dzia de cadeiras de madeira. Numa cadeira estavasentado um velho, num terno listrado de algodo, sujo e amarrotado, asmos encarquilhadas cruzadas sobre o colo. Em outra cadeira, na paredeoposta, estava uma mulher de cabelos louros, lustrosos, usando uma pelecarssima a lhe envolver os ombros, com uma expresso entediada e cui-dadosamente distante.

    Aqueles dois pareciam ser as nicas pessoa na sala. Mas Freda viu,um instante depois, que havia uma terceira, um homem sentado atrsde uma mesinha, junto a uma porta, na quarta parede. Tinha um rostomagro, com um nariz comprido, por cima da boca quase sem lbios. Eraum homem perigoso, capaz de matar, o que era to percepvel quantoum cheiro ou um som. Embora ele esvesse ali servindo como recepcio-

    nista, era evidente que sua funo bsica era de guarda-costas. Fitando-o,Freda experimentou uma sensao de incomensurvel superioridade, umsenmento inebriante de exultao, que era o clmax da exaltao que ex-perimentara durante todo o caminho at aquele lugar. Ningum, pensouela, ningum poderia impedi-la de levar a termo o que ela fora fazer ali.Ningum, absolutamente ningum...

    Eu gostaria de falar com o Sr. Weiss disse Freda ao homem. Seu nome? Freda Bane.O homem levantou os olhos para t-la, com um brilho de desdm,

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    tornando a baix-los imediatamente, contemplando as mos bem aber-tas sobre a mesa, como se esvessem dedilhando cordas silenciosas deum teclado invisvel.

    Tem hora marcada? No. Mas vim de muito longe, de outra cidade. E gostaria de v-

    lo apenas por uns poucos minutos. muito importante. sempre importante, sempre...O homem deu de ombros, cruzando os dedos. Sente-se numa das cadeiras vagas. Ele a receber. Sempre rece-

    be todo mundo.Freda foi sentar-se na cadeira mais prxima. Ficou empergada, os

    tornozelos juntos. A bolsa estava no colo, debaixo de suas mos. Podia

    senr o revlver l dentro. Em determinado momento, chegou a entre-abrir a bolsa, o suciente para enar uma das mos e senr o ao frio.Foi um gesto extremamente nmo e excitante, como tocar a carne dapessoa amada. Freda quase gemeu de tanto excitamento. Ela deve tercado muito distrada e distante, pois levou algum tempo para perceberque o velho no mais se encontrava na sala e a mulher de cabelos lourose abrigo de peles estava cruzando a porta para a sala congua onde desa-pareceu. Freda connuou sentada na cadeira, sempre empergada, masno mais exultante como antes. Connuava serena e com um senmentoque era mais de resignao que outra coisa qualquer. Pouco depois, ohomem atrs da mesa tou-a e sacudiu a cabea ligeiramente, na direoda porta a seu lado.

    Pode entrar agora disse ele. Obrigada.Freda cou imaginando qual o sinal que ele recebera para saber

    que estava na hora de deix-la entrar. Talvez houvesse alguma pequenaluz na frente da mesa. Devia ser alguma coisa que no zesse o menorrudo. Levantando-se, segurando a bolsa com as duas mos, sua frente,Freda encaminhou-se para a porta e passou para a sala congua, da quala mulher de cabelos louros devia ter sado diretamente para o corredor.E dentro daquela sala, por trs de uma velha escrivaninha de carvalho es-curo, dois metros alm de cho sem tapete, estava sentado Hugo Weiss, aquem Freda iria matar a ros, exatamente dali a 16 segundos.

    Ele era to baixo que apenas a cabea e os ombros eram visveisacima da escrivaninha. Mas quando Freda se encaminhou em sua dire-

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    o, Hugo Weiss levantou-se subitamente e contornou a mesa para cum-priment-la, o corpo raquco e atroado mostra, o rosto horrendo bemvisvel, quando ele parou, iluminado pela luz que entrava atravs da nicajanela da sala. Era o mesmo rosto que Freda vira no jornal e utuandocomo uma viso ectoplsmica no quarto escuro de sua casa, um rosto deuma feira obscena. Havia uma nica diferena, que Freda pde perceber luz fraca que entrava pela janela, uma diferena que a deteve por algunssegundos: a diferena estava nos olhos. Freda via sua frente olhos sua-ves e gens, os olhos de uma mulher oprimida pelo sofrimento.

    Meu nome Freda Bane disse ela, senndo, naqueles segun-dos nais, que era de uma importncia fundamental que se idencasse.

    E assim que acabou de falar, Freda teve a impresso de que os olhos

    suaves de Hugo Weiss se arregalaram com uma espcie de choque, paralogo depois se iluminarem com uma expresso de alvio innito. Fredateve a sensao de que Hugo Weiss subitamente reconhecera a voz dela,como se se vesse materializado de um sonho freqente, um sonho doqual ele jamais conseguira recordar-se nidamente ao acordar, at aquelemomento.

    Entre disse ele. Entre.A voz dele era genl, compavel com os olhos.A voz era sempre genl, invariavelmente suave, de uma beleza pun-

    gente, com um sussurro de tristeza a impregnar a pronncia das vogais econsoantes, como uma brisa ligeira a murmurar por entre as rvores, aocrepsculo.

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    UMA QUESTO DE TICA

    James Holding

    Naquela ocasio, seu contato no Rio era um homem chamado sim-plesmente Rodolfo. Talvez Rodolfo vesse outro nome. Mas, se tal acon-tecia, Manuel Andradas no o sabia. Ele devia encontrar-se com Rodolfona Rua do Rosrio, na esquina do Mercado das Flores. Enquanto espera-va, na calada estreita, as costas apoiadas na parede de um prdio, Ma-nuel cou contemplando, cheio de admirao, uma cesta de orqudeasroxas que estava sendo vendida num estande de ores, do outro lado da

    rua. Como sempre, nha o estojo da mquina fotogrca pendurado noombro esquerdo.

    Rodolfo apareceu pouco depois e passou rapidamente por Manuel,murmurando-lhe siga-me pelo canto da boca. Era um homem inden-vel, quase maltrapilho. Manuel seguiu-o, por entre a muldo que saas ruas na hora do almoo, at um pequeno caf nas proximidades. E ali,tomando um cafezinho, eles caram frente a frente. Manuel concentrou

    sua ateno no caf preto na pequena xcara. Rodolfo que iniciou a con-versa: Gostaria de fazer uma pequena viagem, Fotgrafo?Manuel deu de ombros. At Salvador, na Bahia, Fotgrafo. uma linda cidade. J me disseram isso. O servio tem prazo? No h prazo. Mas gostaramos que fosse executado o mais de-

    pressa possvel, Fotgrafo.

    Manuel era conhecido por seus contatos apenas como O Fotgrafo.E ele era de fato um fotgrafo. Dos melhores, diga-se de passagem.

    O preo?

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    Ao formular a pergunta, Manuel levantou os olhos castanhos paratar Rodolfo, ao mesmo tempo que tomava um gole do cafezinho.

    Trezentos mil cruzeiros. Manuel quase perdeu o flego. Seu chefe deve estar precisando desesperadamente do servio...Rodolfo sorriu, se que se podia chamar de sorriso o ligeiro arre-

    ganhar dos lbios. Talvez... Mas isso no da minha conta. O preo sasfatrio? Perfeitamente sasfatrio. E muito generoso, para dizer a verda-

    de. As despesas por fora, claro. E um tero adiantado. Est certo.O homem chamado Rodolfo rabiscou com um coto de lpis no ver-

    so do cardpio do caf, entregando-o a Manuel. Escrevera um nome e

    um endereo. Automacamente, Manuel decorou-os. Depois, dobrouo cardpio e rasgou-o em pedacinhos, os quais meteu no bolso do seuterno escuro impecvel. E franziu o rosto. Observando a expresso dele,Rodolfo perguntou:

    Qual o problema? uma mulher murmurou Manuel, em tom de desaprovao.Rodolfo soltou uma risada. Negcios so negcios, no mesmo? que eu prero quando so homens.Terminaram o caf e se levantaram, saindo para a rua. Ao se des-

    pedirem, Rodolfo apertou a mo de Manuel, deixando nela um mao denotas.

    No caminho de volta a seu estdio, Manuel parou num botequime tomou um copo de suco de caju. Achava que era muito melhor do quecaf para acalmar os nervos.

    Seis dias depois, Manuel desembarcou na Bahia, tendo viajadonum cargueiro velho e enferrujado, que ali fez escala, a caminho do norte,para pegar um carregamento de cacau, couro e mamona.

    Sem querer atrair ateno, Manuel seguiu a p, por entre o movi-mento intenso da Cidade Baixa, at o Elevador Lacerda, encostado numpenhasco alto. O elevador levou-o rapidamente at a Cidade Alta, deixan-do-o diante da praa principal. Dali, por cima dos amboyants vermelhosque cresciam na encosta, Manuel nha uma vista espetacular do porto,repleto de navios e fervilhante de avidade.

    No saguo escuro do Palace Hotel, na Rua Chile, ele se registrou

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    com o seu prprio nome, Manuel Andradas. E durante dois dias compor-tou-se exatamente como o faria um fotgrafo que vesse ido a Salvadora servio de uma revista. Levando sempre duas mquinas fotogrcas,visitou os pontos turscos de Salvador, rando inmeras fotograas detudo o que lhe chamava a ateno, desde a fachada da Igreja da OrdemTerceira at o mural em tons azuis, ao eslo Mondrian, do novo Hotel daBahia. No terceiro dia, depois de xar sua imagem como um fotgrafoinocente e inofensivo, Manuel preparou-se para executar o servio que olevara Bahia.

    Por volta de uma hora da tarde, ele ps um calo no estojo de cou-ro, juntamente com duas mquinas fotogrcas, saindo do hotel. Subiupela Rua Chile at a praa l em cima, onde estavam estacionados inme-

    ros nibus, suportando com uma indiferena mecnica o dilvio de pro-paganda e msica que se derramava de alto-falantes. Subiu num nibuscom o letreiro Rio Vermelho e Amaralina e sentou-se na parte de trs, umhomem plido e de ossos salientes, de aparncia bastante comum, excetopelas mos desproporcionalmente grandes e pelos antebraos extrema-mente musculosos. Nenhum dos passageiros barulhentos e apressados,que em seguida entraram no nibus, lotando-o a um ponto excessivo,lanou-lhe um olhar mais do que de passagem.

    Manuel fechou os olhos e pensou no trabalho que nha pela fren-te. Senu o nibus parr, ouviu os outros passageiros falando com ani-mao. Mas no abriu os olhos. Como era o nome? Ele se recordava per-feitamente. Eunicia Camarra. Exatamente. O endereo? Amaralina, Bahia.Exatamente.

    Eunicia Camarra... Uma mulher. Quem seria ela? O que teria feito,para que algum no Rio o cliente annimo e desconhecido de Ma-

    nuel desejasse que ela fosse anulada? Era essa a palavra que Manuelsempre usava, ao pensar no que fazia. Uma pessoa anulada... Seria elauma amante inel? Ou uma mulher que rejeitara uma proposta de casa-mento? Trezentos mil cruzeiros eram uma soma considervel. Seria umamulher da qual o cliente de Manuel nha cimes? E ser que o cliente deManuel no seria tambm uma mulher?

    Manuel, evidentemente, jamais sabia dos verdadeiros movospara os servios dos quais era incumbido. Depois de executado o servi-o, pelos meios que lhe parecessem mais apropriados e prcos, Manuelcava na ignorncia das razes por que haviam contratado seus servios

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    prossionais. E assim era melhor. Manuel preferia no se envolver emo-cionalmente com seu trabalho. Fazia cada trabalho ecientemente, semmuito alarde, evitando imiscuir-se nas questes morais ou cas.

    Manuel afastou Eunicia Camarra dos pensamentos e abriu os olhos.O nibus seguiu para o interior por algum tempo, proporcionando a Ma-nuel rpidos vislumbres de amplas extenses de terra vermelha, jardinscoloridos, matas tropicais luxuriantes. O nibus inverteu a direo e nova-mente se aproximou do mar. Manuel senu a brisa fresca que soprava domar entrando pelas janelas do nibus e secando completamente o suorque lhe escorria pelo rosto.

    Manuel saltou na parada do nibus em Amaralina, ao lado de umabrigo circular, de teto de colmo, a poucos metros da praia. sua frente

    havia um caf, a nta das paredes inteiramente removida, pela ao in-terminvel do vento e da areia da praia. Ali perto, um homem sorridente,exibindo dentes muito brancos, vendia cocos para meia dzia de cole-giais. Cortava a parte de cima dos cocos com um faco, para que pudes-sem tomar a gua adocicada.

    As vozes das crianas, extremamente alegres porque as aulas ha-viam terminado por aquele dia, soavam joviais aos ouvidos de Manuel,enquanto ele passava lentamente pelo caf, encaminhando-se para umapavilho de banhistas, quase em runas, onde vesu o calo. Pegando oestojo com as cmaras, encaminhou-se para a praia.

    No havia muita gente na praia. Ele viu um casal deitado na areia,por trs de alguns rochedos, completamente alheio ao que se passavaem volta. direita, havia um pequeno grupo de banhistas, mergulhadosna gua at a cintura, que soltavam gritos estridentes de prazer quan-do eram angidos pelas ondas espumantes. esquerda, mais ao longe,

    Manuel podia ver os prdios de Ondina, quase mergulhando na baa corde sara. E frente dele, perto da gua, brincavam na areia as mesmascrianas que pouco antes estavam comprando cocos.

    Manuel foi sentar-se na areia, perto das crianas, com o estojo dascmaras nas mos. As meninas usavam uniforme colegial azul e branco eeram todas mais ou menos da mesma idade, 12 ou 13 anos. Manuel sor-riu para elas e cumprimentou-as com uma expresso muito sria:

    Boa-tarde, senhoritas.No fez mais do que isso. No se adiantou, no tentou forar o con-

    tato. Manuel era sul demais para isso. Ao retriburem o cumprimento,

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    as meninas viram o estojo das cmaras nas mos dele. Imediatamente,demonstraram intenso interesse, em especial a menina loura que pareciaser a lder do grupo.

    Ela se aproximou de Manuel e perguntou: Isso um estojo de mquina fotogrca? Ser que poderia mos-

    tr-la? Quer rar uma fotograa de ns? Bate fotos a cores? Qual opo de lme que acha melhor? Poderia mostrar para mim como ajustar alente, a m de que eu possa rar uma fotograa tambm?

    Ela falou to esbaforida e suplicante, com uma curiosidade infan-l to intensa, que Manuel no pde deixar de rir, contra a sua prpriavontade.

    Mais devagar, senhorita, por favor. Fez perguntas demais, ao

    mesmo tempo. De fato, o estojo tem uma cmara. Mais de uma, alis. Epodem dar uma olhadela nelas, mas tomem todo cuidado para no deixarentrar nenhum gro de areia.

    Ele entregou o estojo com as cmaras menina loura e todas asoutras se reuniram ao redor dela, falando animadamente. A menina quepedira o privilgio de ver as cmaras abriu o estojo.

    Mas que maravilha exclamou ela. uma Leica! No umamquina muito cara? Minha av tem uma.

    Ela remexeu o estojo mais um pouco. Ei, tambm tem uma mquina minscula! disse ela, erguendo

    a Minox de Manuel. Eu nunca nha visto uma mquina to pequenaassim!

    Manuel connuou sentado na areia, calmamente, deixando queas meninas examinassem seu equipamento, embora as observasse comateno, para evitar qualquer ameaa de dano. S depois de algum tem-

    po que ele disse: Vou rar agora uma fotograa de vocs.Elas caram imveis, muito compenetradas, sorrindo no momento

    em que Manuel rou a fotograa. A menina loura perguntou: Vai nos mandar a fotograa? Minha av gostaria de v-la. Claro que vou. E nada cobrarei por ela, embora eu seja um fot-

    grafo prossional e costume cobrar alto pelos meus servios. Muito obrigada.Manuel sacudiu a cabea para a menina, compreendendo, com sa-

    sfao, que conquistara a amizade daquelas meninas e elas teriam agora

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    o maior prazer em responder a todas as perguntas que zesse. E Manuelnha muitas perguntas a fazer, sobre Amaralina, sobre as casas em queelas moravam, os vizinhos, os amigos dos pais, sobre uma mulher cha-mada Eunicia Camarra. Mas no havia pressa. A menina loura perguntou:

    No vai dar um mergulho, moo? Se for, pode deixar que toma-remos conta de suas mquinas. E que tranqilo que nada acontecercom elas.

    A menina apelou para as companheiras, que concordaram em coro. uma boa idia disse Manuel. Muito obrigado por carem

    guardando minhas mquinas.Ao se levantar para entrar na gua, Manuel cometeu seu primeiro

    erro. Mas estava senndo muito calor, com o corpo suado, e um mergu-

    lho seria um alvio, apesar de ele no ser um bom nadador. Quanto scmaras, poderia car tranqilo, pois as meninas tomariam conta, at suavolta.

    Tome cuidado junto daquelas pedras, pois tem uma correntezamuito forte ali avisou a menina loura.

    Manuel mal a ouviu, pois estava pensando em outras coisas. So-mente depois que mergulhou e deu algumas braadas, afastando-se dapraia, que compreendeu plenamente a advertncia da menina. Nessemomento, porm, j era quase tarde demais. Manuel senu-se impelidopor uma correnteza forte demais, qual nem suas mos grandes e osbraos musculosos podiam resisr. A cabea afundou e ele engoliu gua.E pensou, estupidamente, que teria sido melhor connuar com calor esuado, do que refrescar-se a tal preo. E logo em seguida ele deixou depensar inteiramente.

    Ao abrir os olhos, Manuel cou ofuscado com o azul intenso do

    cu. Estava deitado de costas na areia. Ao desviar os olhos doloridos, elefocalizou o corpo esquelco e nu da menina loura, parada ali perto, pres-tes a enar o uniforme sujo pela cabea, a m de cobrir a pele molhada.Perto dela estavam duas outras meninas, tambm vesndo os uniformessobre os corpos molhados. Manuel deixou escapar um grunhido abafadoe sentou-se bruscamente.

    As meninas soltaram grinhos nervosos e terminaram rapidamen-te de se meter nos vesdos.

    No olhe, moo! gritou a menina loura, alegremente. Espe-re que a gente termine de se vesr. Camos na gua sem mais.

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    As vozes alegres das outras meninas juntaram-se dela, como peri-quitas irrequietas. Manuel sacudiu a cabea, tossindo e cuspindo gua naareia. A menina loura explicou:

    Ns avisamos, moo, que h uma corrente submarina muito for-te naquele ponto! Mas no nos deu ateno!

    A menina censuravam de maneira genl, mas Manuel percebeuque ela estava profundamente sasfeita por ele ter ignorado a advertn-cia, proporcionando-lhe a oportunidade maravilhosa e excitante de salv-lo, juntamente com as amigas.

    Todas ns somos excelentes nadadoras, moo, porque moramosaqui em Amaralina. Mas o senhor no sabe nadar muito bem.

    Ela sorriu alegremente e acrescentou:

    Mas conseguimos r-lo da gua, Maria, Lecia e eu. As outrasfugiram.

    Manuel Andradas senu-se invadido por uma emoo intensa,pouco familiar.

    Senhoritas, eu lhes devo minha vida. E agradeo do fundo domeu corao.

    As meninas caram embaraadas. Manuel olhou para a meninaloura, que estava passando os dedos pelos cabelos molhados, e pergun-tou, com uma premonio de desastre:

    Como se chama? Eunicia Camarra. E qual o seu nome?Manuel despachou as outras meninas, com seus agradecimentos,

    mas convenceu Eunicia a car mais um pouco na praia, em sua compa-nhia.

    Gostaria de rar novamente uma fotograa sua explicou ele.

    Mas sozinha. Quero ter um bom retrato da moa que salvou minhavida.

    Pela primeira vez em sua carreira, Manuel descobriu que estavaencarando uma vma em perspecva com um senmento que ia almda objevidade fria. Ao olhar para Eunicia, ele sena o corao palpitar,algo a que no estava acostumado. Era uma emoo feita de grado,admirao, simpaa e, estranhamente, de ternura. Como se ela fosse suaprpria lha, pensou Manuel, vagamente. Depois de rar diversas fotosda menina, em poses infans e encantadoras, Manuel lhe disse, num im-pulso sbito:

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    Agora, mostre-me como eu estava parecendo quando me rouda gua e arrastou-me at a areia.

    Rindo deliciada, a menina estendeu-se na areia, assumindo a posede uma boneca de trapos. Os braos caram cados ao longo do corpo,inertes, as pernas escadas, os olhos fechados, voltados para o cu, aboca entreaberta. Manuel inclinou-se e, usando a Minox, rou uma foto-graa dela assim.

    E durante todo o tempo, eles no pararam de conversar. Mora aqui com seu pai e sua me? perguntou Manuel. Oh, no! Minha me e meu pai j morreram. Vivo com minha

    av, naquela casa grande l no alto da colina.Ela apontou para a casa.

    uma casa realmente grande. Sua av deve ser uma mulher rica.Sendo assim, de admirar que voc tenha salvado a vida de um pobrefotgrafo.

    A menina cou indignada e declarou veementemente: Minha av antes de tudo uma grande dama. Mas, como o se-

    nhor disse, tambm muito rica. Anal de contas, quando estava vivo,meu av era o maior negociante de diamantes do Brasil.

    mesmo? o que minha av sempre diz. Ento tenho certeza de que verdade. E mora sozinha naque-

    la casa com sua av? Manuel tou a menina por um momento, emsilncio, antes de connuar: No tem irmos ou parentes que faamcompanhia a vocs duas?

    Ningum disse ela, com tristeza, para logo depois acrescentar,subitamente animada: Mas tenho um meio-irmo no Rio. Ele j um

    homem idoso agora, acho que tem mais de 30 anos. Apesar disso, meumeio-irmo. Nossa me era a mesma, embora vssemos pais diferentes.Est entendendo?

    Na verdade, Manuel estava comeando a entender tudo. E sua av no gosta muito do seu meio-irmo, no ? No. Ela diz que ele um homem mau. Um menroso e trapa-

    ceiro, uma desgraa para a famlia. Minha me fugiu de casa e casou-se,quando era ainda muito jovem. Meu irmo Lus nasceu desse casamento.Tenho pena dele, porque seu pai est morto, assim como o meu. De vezem quando eu escrevo para ele, mas no conto para a minha av.

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    perfeitamente compreensvel que no queira que ela saiba concordou Manuel, gravemente.

    Minha av se recusa a ajud-lo por qualquer meio que seja. Nemmesmo lhe d dinheiro. E eu sei que ele est sempre pedindo. Mas minhaav sempre nega.

    Talvez ela deixe algum dinheiro para ele, em seu testamento. No, senhor, no vai deixar nada. Eu que vou car com tudo.

    Minha av diz que Lus no car com um s tosto, enquanto houveruma pessoa viva na famlia. Ela no tem a menor pacincia com meu ir-mo Lus. Coitado do Lus! Eu acho que ele muito simpco. Irei ao Rio,para visit-lo e cozinhar para ele, assim que minha av me der dinheirobastante.

    Nunca se encontrou com ele? Nunca. S o conheo de fotograa. No ano passado, ele me man-

    dou uma carta com uma fotograa sua. Foi a carta em que perguntava seminha av j havia mudado de atude com relao a ele. E eu lhe envieiuma fotograa minha. Lus um homem muito bonito.

    Como o nome todo dele? Lus Ferreira. E ele trabalha? Claro que trabalha. No escritrio do Hotel Aranha. Depois de

    trocar de roupa, Manuel levou Eunicia para o caf e, num impulso de ge-nerosidade a que no estava habituado, comprou-lhe uma garrafa de re-frigerante de laranja. A menina bebeu rapidamente. Depois foi para casa,explicando que a av caria preocupada, se demorasse mais. Ao despedi-rem-se, Manuel disse:

    No sabe como lhe sou grato pelo que fez, Eunicia. E talvez eu

    lhe possa prestar um pequeno servio, em retribuio.Manuel connuou sentado no caf, sozinho, depois que a menina

    se foi, num banco sem conforto, ao lado de uma mesinha, contemplandoo mar encapelado. Pediu trs doses de Cinzano e tomou-as rapidamente,uma depois da outra, pensando no problema inesperado. Trezentos milcruzeiros! Mas o problema todo, pensou ele, sombriamente, reduzia-seagora a uma simples questo de ca.

    Como ele gostaria de tomar naquele momento um copo de sucode caju!

    Manuel Andradas voltou para o Rio de avio, naquela mesma noi-

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    te. Seguiu do aeroporto diretamente para o seu estdio, revelando o l-me da Minox, que batera na Bahia. Examinou com cuidado os minsculosnegavos, com uma lente de aumento, antes de selecionar um e fazeruma ampliao. Ligou para o telefone annimo que o poria em contatocom Rodolfo e marcou um novo encontro para a manh seguinte, na Ruado Rosrio. Depois, foi deitar-se e teve um sono tranqilo.

    No dia seguinte, ele mostrou a fotograa ao homem chamado Ro-dolfo, comentando com desaprovao:

    No era uma mulher, mas uma criana.Rodolfo examinou a foto de Eunicia. A menina estava cada na areia

    da praia de Amaralina, inerte, indubitavelmente morta. Ele assenu, sa-sfeito.

    Creio que esta fotograa prova suciente. Rodolfo connuou atar a fotograa por mais algum tempo e depois sorriu.

    Posso car com esta fotograa? Vou entreg-la a quem de di-reito. E se esver tudo bem, tornaremos a nos encontrar amanh, aquimesmo, s 3 horas da tarde.

    Ele foi embora com a foto. E no dia seguinte, s 3 horas da tarde,encontrou-se novamente com Manuel, na esquina do Mercado das Flo-res, parando apenas o tempo suciente para apertar-lhe a mo e dizer:

    Bom trabalho. Foi sasfatrio.Desta vez, ele deixou na mo de Manuel um mao de notas ainda

    maior do que no primeiro encontro.Manuel embolsou as notas quase que distraidamente e fez sinal

    para um txi. Mandou que o motorista o levasse praia de Copacabana,saltando um quarteiro antes do Hotel Aranha, na Avenida Atlnca. De-pois de pagar o txi, ele contemplou a praia larga, povoada quela hora

    da tarde por uma muldo de banhistas, to numerosos quanto formi-gas num torro de acar derrubado no cho. Depois, atravessou a ruae entrou numa cabina telefnica pblica, ligando para o Hotel Aranha.Um momento depois estava falando com o Senhor Lus Ferreira, um dosfuncionrios do hotel, numa voz deliberadamente abafada.

    Trouxe-lhe um recado da Bahia, Sr. Ferreira. Encontre-se comigona praia, em frente ao hotel, dentro de 10 minutos. Ao lado do vendedorde pipas.

    Manuel no esperou por uma resposta, desligando imediatamentee saindo da cabina. Depois, caminhou pela praia at a altura do hotel, es-

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    gueirando-se por entre os milhares de adoradores do sol e do mar, espa-lhados pela areia. Foi postar-se nas proximidades do homenzinho morenoque vendia pipas em forma de gaivotas para as crianas, apenas mais umintegrante annimo daquela muldo de feriado. Pelo canto dos olhos,cou observando a entrada do hotel.

    No demorou muito para que visse saindo pela porta do hotel umhomem ligeiramente encurvado, o queixo pequeno, os cabelos lourosbem ralos. O homem atravessou a avenida, desviando-se dos carros, eaproximou-se do vendedor de pipas. Parou ali, olhando para as pessoasao redor, com uma expresso preocupada. A praia estava apinhada. Qual-quer uma das milhares de pessoas podia ser o mensageiro que lhe trou-xera um recado da Bahia. Ele olhou para o relgio de pulso, vericando se

    j haviam passado os 10 minutos a que Manuel se referira. Manuel tevecerteza ento de que aquele homem era de fato Lus Ferreira, o meio-irmo de Eunicia Camarra.

    Manuel encaminhou-se na direo dele, por entre a confuso debanhistas. No caminho, rou a mo do bolso, onde estava escondido umdardo cortado ao meio, com uma ponta de metal na e comprida, do poque ele costumava lanar contra um alvo de cora. A ponta do dardo es-tava muito aada, quase como uma agulha. Metade da haste de madeirafora serrada, a m de que pudesse caber facilmente na mo de Manuel,cando de fora apenas cinco cenmetros da ponta de metal, na qual elepassara uma substncia escura e pegajosa.

    Havia diversos fregueses reunidos em torno do vendedor de pipas.Quatro rapazes jogavam bola a poucos metros de distncia. Um homemgordo e uma mulher magra estavam deitados na areia, quase aos ps deFerreira.

    Aproximando-se de Ferreira, Manuel pareceu tropear no p es-tendido do homem gordo. Cambaleou um pouco e pisou com toda forano p de Lus Ferreira. Manuel escou os braos para a frente, como seprocurasse recuperar o equilbrio. E, nesse momento, espetou a ponta dodardo no pulso de Ferreira, logo abaixo da manga do casaco.

    Ferreira nem senu. A picada da agulha foi ignorada diante da dorintensa da pisadela no p. Ele pulou para trs, esbravejando. Manuel pe-diu desculpas por sua falta de jeito e afastou-se, perdendo-se na muldoalguns segundos depois.

    No se apressou em demasia, para que o notassem, mas tambm

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    no perdeu tempo em sair dali. No olhou para trs. Nem mesmo quandosaiu da praia, alguns quarteires depois, caminhando rapidamente pelaAvenida Atlnca, na direo do centro da cidade. Em nenhum momen-to, ele olhou para o lugar em que deixara Ferreira. Para qu? No havianecessidade. Ele sabia perfeitamente o que estava acontecendo l atrs.

    O curare da ponta do dardo j deveria ter concludo sua ao fatal.O corpo de Ferreira devia estar cado na praia, ainda despercebido, pro-vavelmente, por entre tantos corpos estendidos na areia. Os terminaisnervosos dos msculos de Ferreira j deviam estar paralisados e inteis. Ocorao dele logo deixaria de bater para sempre, paralisado pelo venenomortal. Em trs minutos ou at menos, Ferreira estaria morto. Isso erainevitvel. A menina loura da Bahia, que de forma to estranha desper-

    tara a capacidade de afeto de Manuel Andradas, h muito adormecida,estava agora a salvo de qualquer perigo.

    Manuel permiu-se uma risadinha, a caminho do centro da cidade.Se algum salva sua vida, pensou ele, ento voc lhe deve uma vida emtroca. E se algum paga por uma morte, ento voc lhe ca devendo umamorte pelo dinheiro que recebeu.

    Ele sorriu, os olhos castanhos xados diretamente sua frente.Aquela questo de ca, no nal das contas, no nha sido to

    dicil assim.

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    A ARMADILHA

    Stanley Abbo

    Os Emory Sinclair deveriam ser felizes. Eram donos da casa em quemoravam, na Rua 70-Leste, em Nova York, possuam uma suntuosa casade veraneio em Palm Beach e mal podiam contar todo o dinheiro quenham.

    Mas Emory Sinclair, depois de ter ganhado uma fortuna antes decompletar 35 anos, estava procurando dobr-la, antes de chegar aos 45anos. Helen Sinclair, negligenciada e entediada, passava os dias em dis-

    pendiosos sales de beleza, sendo massageada, embelezada e posta emforma. Embora ela vesse 36, parecia ainda no ter chegado casa dos30 anos.

    Tudo poderia ter corrido bem, se Emory Sinclair no vesse des-pedido a sua secretria. Mas ele a despediu, convencido de que todas asmulheres eram idiotas congnitas, contratando Paul Fenton para subs-tu-la. A Sra. Sinclair no demorou a descobrir que o jovem era solteiro e

    muito atraente.De um quarto no terceiro andar da casa da Rua 70-Leste, a quechamava de gabinete, Emory Sinclair negociava com moedas estrangei-ras. Movimentando seu imenso capital ao redor do mundo, ele jogavanas nocias de um governo prestes a cair, um ditador assassinado, umacolheita fracassada. E insisa para que seu secretrio parcular morassena mesma casa.

    Alm de seu trabalho normal, Paul Fenton cuidava tambm das

    contas parculares da Sra. Sinclair. Como era um jovem bem-apessoado eque sabia vesr-se, era freqentemente convidado a preencher um lugarvago, nos jantares oferecidos pelos Sinclair. Em outras ocasies, ele sena

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    o maior prazer em acompanhar Helen Sinclair a um teatro ou outro es-petculo qualquer, quando Emory Sinclair estava ocupado demais para ir.

    No se passou muito tempo antes que o insnto feminino de HelenSinclair lhe revelasse o que estava acontececendo. Paul era um compa-nheiro diverdo e agradvel. Helen sabia o risco que estava correndoao enganar Emory, mas o perigo tornava a aventura ainda mais saborosa.

    Mas o que comeara como um romance tranqilo transformou-senuma paixo abrasadora, que pegou a ambos de surpresa, subjugando-osinteiramente. Ficaram convencidos de que no mais poderiam viver umsem o outro. Paul teria ido procurar Emory Sinclair e lhe contado tudo,mesmo que isso signicasse a perda do emprego, se Helen no o ves-se condo. Embora ela parecesse apenas uma mulher bonita, havia uma

    rmeza extraordinria naquele queixo delicado e uma astcia sempre espreita por trs dos olhos muito azuis. Helen no nha a menor ilusoquanto reao de Emory, caso ela lhe pedisse o divrcio. Ela no nhadinheiro seu e Paul dispunha apenas do salrio, que s teria enquantoconservasse o emprego. E o amor numa gua-furtada no era algo queatrasse a Helen. Alm do mais, ela no nha o menor desejo de separar-se de uma fortuna que sabia elevar-se a mais de um milho de dlares .

    Durante as semanas seguintes, Helen pensou bastante no proble-ma. Para dizer a verdade, no lhe saiu da cabea por um instante sequer.Havia ocasies em que ela julgava perceber um sorriso zombeteiro norosto gordo e rosado de Emory Sinclair, perguntando-se ento se ele nosaberia de tudo e se estava diverndo com a situao. Seria prprio deEmory brincar de gato e rato. Foi isso, somado sua prpria frustrao,que a lanou numa fria silenciosa. Descobriu-se imaginando idias paralivrar-se dele (no gostava da palavra assassinar). Mas no conseguia ima-

    ginar um meio que no fosse violento e, ao mesmo tempo, fosse total-mente seguro. Mas Helen Sinclair no era mulher de desisr facilmente eacabou por engendrar um plano realmente engenhoso.

    Mas a oportunidade s se apresentou no dia em que eles estavamfechando a casa da Rua 70-Leste para irem passar o inverno fora. Helenestava sentada no gabinete de Emory, no terceiro andar, esperando que omarido terminasse de despachar alguns papis com Paul. Estariam parn-do em menos de uma hora. J estava tudo pronto, os mveis cobertos porcapas, a bagagem no vesbulo, os empregados todos pagos.

    Paul aproximou-se dela.

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    Aqui esto as suas passagens de avio, Sra. Sinclair.Ela percebeu que Emory a estava observando. Como odiava aquele

    sorriso diverdo e zombeteiro dele! Jamais poderia saber o que ele esta-va pensando. Era um enigma indecifrvel.

    Paul tem de ir ao centro da cidade para levar alguns documen-tos disse Emory. Mandei que Johnson o levasse no carro, pois noiremos mais precisar. Tomaremos um txi at o aeroporto.

    Ele se virou para Paul e ordenou: Diga a Barton para pedir um txi para ns, daqui a 15 minutos.Enquanto Paul falava pelo telefone interno com o mordomo, Helen

    Sinclair pensava rapidamente. Assim que Paul sasse, ela caria sozinhaem casa com Emory. Helen levantou-se e caminhou at a porta. O cora-

    o baa descompassado, mas exteriormente ela parecia muito calma,ao dizer:

    Neste caso, vou dizer a Barton que pode ir embora tambm. Noprecisaremos mais dele, depois que ver chamado o txi.

    Helen foi para o seu quarto, no andar de baixo, onde cou sentada,escutando. E enquanto esperava, repassou mentalmente mais uma vezo que teria de fazer assim que Paul sasse. Estava acertado para que elae Emory seguissem juntos para o aeroporto. Ela pegaria um avio paraa Flrida, onde passaria um ms com os Henderson, antes de abrirem acasa que possuam em Palm Beach. Emory ia para Chicago, onde passariatrs semanas no Monahan Club, indo depois ao encontro dela, na casados Henderson. Paul seguiria para Filadla, passando as frias com afamlia. O plano era perfeito. Ningum saberia de nada durante trs se-manas. Quando Emory no aparecesse no Monahan Club, eles pensariamsimplesmente que mudara seus planos na lma hora. No momento em

    que vericassem que Emory estava desaparecido, j seria tarde demais.O que ela nha de fazer agora era bem simples, apenas uma questo decalcular o tempo com toda exado. Quando tudo terminasse, bastariaapenas dar um telefonema. O plano era infalvel.

    A bada da porta da frente f-la levantar-se. O carro estava come-ando a arrancar quando ela chegou janela. Agora Paul j se fora e tudoo que ela precisava fazer era livrar-se de Barton. Apressou-se, pegando ocasaco, a bolsa e as luvas. Depois de uma lma olhada no espelho, ajei-tando o pequeno chapu de pele para que assentasse melhor, ela pegouo elevador e desceu para o andar trreo.

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    O Sr. Sinclair alterou um pouco seus planos, Barton; disse elaao mordomo. S vai embora mais tarde. Deixe as malas dele aqui novesbulo e ponha as minhas no txi. Diga ao motorista que irei dentro depoucos minutos.

    Barton voltou e Helen disse-lhe que no precisaria car esperando.Assim que ele saiu, Helen vericou se a porta da frente estava realmentetrancada.

    Ela olhou para o relgio. Deveriam parr s 10:30 horas. Ainda fal-tavam seis minutos. No corredor que levava do vesbulo para a cozinha,nos fundos da casa, Helen acendeu a luz e abriu um armrio. Na pare-de, estava o quadro de luz. Numa prateleira por baixo havia uma caixade papelo, cheia de fusveis. Helen examinou-os rapidamente. Alguns

    estavam bons, outros queimados. Pegou um que estava queimando ecolocou-o em cima da prateleira, voltando em seguida ao vesbulo, ondecou esperando pelo barulho do elevador. Ao seu redor, a casa estava friae silenciosa. Ela teve a impresso de estar ali pela vida inteira. Tentavano pensar, mas sua imaginao voava desenfreada. Quando comeou atremer, perguntou-se se conseguiria chegar ao nal.

    Subitamente empergou-se, ao ouvir bater a porta do gabinete deEmory e depois os passos dele, a caminho do elevador. Assim que ouviu ozumbido distante do motor do elevador, Helen seguiu rapidamente parao corredor, abriu a caixa de luz e rou o fusvel onde estava escrito Eleva-dor, substuindo-o pelo outro que separara, o j queimado. Deixou cairo fusvel bom na caixa de papelo. Depois, respirou fundo. Vinha agora aparte que ela mais temia.

    Ao atravessar apressadamente o corredor, ela pde ouvi-lo baten-do na porta do elevador, parado l em cima. Quando saiu para o vesbu-

    lo, o barulho era ainda maior, ecoando pelo poo do elevador, trovejandoem seus ouvidos, deixando-a beira do pnico. No momento em que ossaltos de seus sapatos reuniram sobre o cho de mrmore, as badas naporta do elevador cessaram subitamente. Ela j estava quase chegando porta da frente quando o barulho recomeou, ecoando com violnciapela casa, acompanhado por gritos frencos, que lhe provocaram um ca-lafrio. Helen esgueirou-se rapidamente pela porta da rua e bateu-a assimque saiu. Parou no alto da escada, respirando ofegante, para descobrirque o motorista a tava atentamente. Ser que ele ouvira alguma coisa?Ela cou ouvindo atentamente, ngindo estar procurando alguma coisa

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    na bolsa. No era possvel ouvir qualquer coisa e a porta cara abertaapenas por um instante. Helen recuperou rapidamente o controle, des-ceu a escada e entrou no txi.

    Por favor, motorista, vamos depressa ou perderei o avio.No avio, ela tomou uma plula para dormir e disse aeromoa que

    no queria ser incomodada. Quando acordou, o avio j estava sobrevo-ando a Flrida. Os Henderson receberam-na no aeroporto e levaram-napara a casa deles, beira-mar. O sol brilhava no cu.

    Nos dias seguintes, Helen Sinclair procurou no pensar. Nadou, jo-gou tnis, fez compras. Nunca cava sozinha. De noite, sempre havia umafesta. Ao ir para a cama, ela tomava plulas para dormir. Assim, conseguiumanter a conscincia a distncia. Na sexta noite, sonhou que algum es-

    tava batendo na porta do quarto. Cambaleou at a porta, para abri-la.Mas quando puxou, a maaneta saiu em sua mo. As badas connua-ram, incessantemente. Aterrorizada, ela chutou e socou a porta. Mas aporta permaneceu imvel, como um slido bloco de mrmore.

    Helen acordou gritando, contorcendo o corpo banhado em suor.Ficou sentada na cama por algum tempo, escutando. A casa estava emsilncio. Ningum nha ouvido. A pergunta que h dias ela se vinha re-cusando a fazer, subitamente lhe surgiu mente. Ser que ele j estavamorto? Por mais que tentasse, Helen no conseguiu evitar os pensamen-tos. Sua mente parecia dotada de vida prpria alm do seu controle. Comuma nidez apavorante, ela viu Emory aprisionado dentro do elevador,gritando por socorro, sentado no cho, chutando a porta... e morrendo,lentamente, inexoravelmente.

    Helen no conseguia mais agentar. Se ao menos pudesse falarcom algum... Olhou para o telefone na mesinha de cabeceira, pergun-

    tando-se se deveria ou no falar com Paul. Pegou o telefone e discou parao Servio Interurbano, mas desligou antes que a telefonista atendesse.Era perigoso demais. Helen compreendeu que teria de guardar aquilopara si mesma, pelo resto da vida. medida que os dias foram passando,a mente de Helen Sinclair se foi acalmando. Trs semanas depois, o acon-tecimento j pertencia ao passado e no mais a perturbava.

    Os Henderson lhe estavam oferecendo uma festa naquela noite.Era o aniversrio dela. Estava a caminho do cabeleireiro, quando LoisHenderson, que ia junto, perguntou:

    A que horas Emory vai chegar?

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    Helen estremeceu. Havia quase esquecido que era naquele dia queEmory deveria vir encontrar-se com ela.

    Acho que na parte da tarde. No sei a que horas. Se ele for como o meu marido, s vai lembrar-se de que o seu

    aniversrio no ano que vem.Helen riu. Emory tambm assim.Ela se recordou, estranhamente diverda, como admirara um lindo

    colar de esmeraldas, exposto numa joalheria em Nova York. Mas Emoryachara-o caro demais. Helen prometeu a si mesma que compraria o colar,assim que voltasse a Nova York. De tarde, Helen subiu para o seu quarto,a m de descansar um pouco, antes da festa. Pensou no que iria fazer

    quando Emory no aparecesse. Deixaria que os Henderson vissem queestava preocupada, mas no tomaria qualquer providncia at o dia se-guinte. Telefonaria ento para o Monahan Club, em Chicago, e para Paul,em Filadla. Diria a Paul que estava voltando para Nova York. Telefonariatambm para Barton e lhe pediria que abrisse a casa da Rua 70-Leste.E pediria a Paul que comunicasse s autoridades o desaparecimento deEmory. No haveria a menor diculdade. Quando chegasse a Nova York,toda a parte desagradvel j estaria terminada. Helen entregou-se a de-vaneios pensando na Europa e em Paul, num casamento discreto.

    Mais tarde, vesu-se e desceu. Ao entrar no living, deparou, ines-peradamente, com Emory Sinclair. Ficou paralisada por um instante, sen-ndo o sangue desaparecer de seu rosto. Tinha certeza de que ia des-maiar. Tentou falar. Os lbios mexeram-se, mas no saiu qualquer som.Emory estava de p, com um copo na mo, tando-a com aquele seusorriso diverdo e zombeteiro.

    Ol, Helen. Voc parece que viu um fantasma. Ela se limitou at-lo, incapaz de falar, perguntando-se o que acontecera. Ele no po-dia ter conseguido sair sozinho. Devia ter sido ajudado pelo motorista dotxi... ou por Barton, que era o nico que nha uma chave da casa. TalvezBarton vesse esquecido alguma coisa, voltando para buscar. Helen desa-bou numa cadeira.

    No me estou senndo bem ela tentou dizer, conseguindoapenas emir um dbil sussurro.

    Emory foi at o bar, sem nada dizer, serviu um drinque e levou-opara Helen. Era scotch puro. Ela o tomou.

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    No tente falar disse ele, sentando-se em frente a Helen eacendendo um charuto.

    Helen cou imvel, senndo suas foras retornarem lentamente,observando-o por baixo das pestanas, tentando decifrar-lhe a expresso.Ele vai deixar que eu procure adivinhar, pensou Helen.

    Voc j est parecendo melhor, Helen disse Emory, depois dealgum tempo. Ser que pode aguentar uma surpresa?

    Ele estava inclinado para a frente, observando-a atentamente. MasHelen nada disse. Emory ps o charuto num cinzeiro e meteu a mo nobolso.

    Desta vez eu no esqueci, Helen. Ele rou do bolso uma caixapreta, estendendo-a para Helen, ao mesmo tempo em que abria a tampa.

    Para voc, Helen.Ela estendeu a mo, hesitante. Sobre uma base de cem branco,

    estava um colar de esmeraldas. Helen olhou para o colar, depois para orosto do marido, perplexa, sem entender mais nada.

    Quando foi que voc... Comprei-o quando fui ao centro da cidade, na manh em que

    parmos de Nova York. Queria resolver tudo, antes de pegar o avio paraChicago.

    Voc foi ao centro?Helen ouviu suas palavras, como se fossem formuladas por outra

    pessoa. Emory sorriu. Foi por isso que no fui com voc para o aeroporto. Pedi a Paul

    que lhe dissesse que eu nha ido levar aqueles documentos para o cen-tro, no lugar dele. Eu no queria que voc desconasse de nada. Queriaque a sua surpresa fosse completa.

    Helen deixou escapar um grito angusado. Paul cou l em cima? Ficou. Eu o deixei tomando umas providncias nais.Helen levantou-se, cambaleante, segurando-se numa cadeira, em

    busca de apoio. Emory sorriu-lhe novamente, diverdo, zombeteiro. Voltei a casa para pegar minhas malas e Paul ainda estava l.Helen tou-o, de olhos arregalados, incapaz de falar, o rosto extre-

    mamente plido. E connuava l quando eu fui embora acrescentou Emory

    calmamente.

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    UM HBITO PERIGOSO

    Robert Edmond Alter

    No momento exato em que pisou a bordo do navio, Krueger experi-mentou uma vaga sensao de que havia alguma coisa errada. Ele nuncacompreendera o atavismo por trs desses alertas insnvos, mas j osvera antes e geralmente nham sido certos.

    Ele parou no alto da prancha de embarque, sobre a pequena pla-banda com uma grade de ferro, no convs da popa, de onde se podiaver o poro. L embaixo, os esvadores brasileiros estavam acabando de

    arrumar a carga. O camareiro estava parado junto a uma porta onde se liaSegunda Classe, com a mala surrada de Krueger na mo. Ele olhou paraKrueger, com um ar de impacincia indiferente .

    Krueger deu uma lma olhada ao redor, sem nada ver de inco-mum, caminhando em seguida para o lugar onde se encontrava o cama-reiro.

    E aconteceu novamente, uma premonio de perigo na lma fra-

    o de segundo, to intensa que ele se encolheu todo. Depois, no instanteem que uma massa escura e indisnta surgiu no seu campo de viso, elese jogou para um lado. O objeto, o que quer que fosse, caiu no convs,com um estrondo assustador, bem a seus ps.

    Krueger lanou apenas um rpido olhar para o objeto. Era um baldede metal, cheio at a borda de parafusos e porcas, alm de uma innida-de de outras miualhas sujas de graxa. Ele se moveu novamente, avan-ando rpido para a direita, enando a mo por baixo da capa de chuva

    para pegar a pistola de cano cortado que estava no bolso de trs da cala.Olhava para cima, para o convs superior imerso em sombras, para a gra-de de metal do local em que cavam os escaleres.

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    No viu ningum. No havia o menor movimento. O camareiroaproximou-se dele, chocado, sem querer acreditar no que acabara deacontecer.

    Deus do cu, senhor! O que aconteceu?Krueger percebeu que os esvadores tambm estavam observan-

    do, l de baixo. Rerou a mo rapidamente de debaixo da capa, vazia. Algum idiota quase me matou com aquele balde! Foi isso o que

    aconteceu!O camareiro olhou para o balde, espantado. Esses marinheiros so uns miserveis descuidados!Krueger estava recuperando o controle. O camareiro estava certo,

    claro. Fora apenas um acidente.

    Krueger era um poliglota. Falava uentemente sete lnguas, o queera muito importante em seu ocio. Assim, pode falar com o camareirona lngua dele:

    Leve-me a meu camarote.O camareiro assenu e levou-o, por um corredor mal-iluminado,

    para um camarote da segunda classe. Ficava a boreste e no era muitogrande. Tinha uma vigia enferrujada, uma pia do lado direito, um peque-no guarda-roupa esquerda e um beliche que no parecia muito confor-tvel. E mais nada.

    Krueger deu uma pequena gorjeta ao camareiro e sentou-se nobeliche com um suspiro, como se se preparasse para relaxar e desfrutara viagem. Ele sempre procurava manter uma aparncia calma e comumna presena dos serviais. Camareiros, garons, recepcionistas de hotel,todos possuam uma capacidade irritante de se recordar de certos peque-nos maneirismos dos fregueses, ao serem interrogados posteriormente.

    Depois de agradecer a gorjeta, o camareiro saiu, fechando a porta.Krueger connuou sentado no beliche por mais algum tempo levantando-se depois para trancar a porta. Mas no havia qualquer tranca. Ainda sepodia ver as marcas dos parafusos na madeira da porta, mas a tranca foraremovida.

    Era esse o problema em viajar de segunda classe. No havia coisaalguma que esvesse inteira, nada havia que funcionasse perfeitamente.Os beliches eram sempre cheios de protuberncias, o mximo que saa datorneira quente era gua morna, as vigias, sempre emperradas. Kruegervera de se acostumar a todos esses incmodos, aturando-os ao longo

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    de toda a sua vida. O Pardo acreditava piamente que tosto poupadoera tosto ganho, cricando Krueger freqentemente, por despesas quejulgava desnecessrias. Mesmo assim, o Pardo ainda era o seu melhorcliente.

    Ele rou do bolso uma caixa de fsforos de papel e ajustou-a comouma cunha por baixo da porta. Era o bastante para mant-la fechada. De-pois, abriu a mala e rou um rolo de esparadrapo, cortando oito pedaos,com 20 cenmetros de comprimento cada um. De joelhos, prendeu a pis-tola por baixo da pia. Os camareiros de segunda classe nham o pssimohbito de revistar a bagagem dos passageiros quando estes no estavamem seus camarotes.

    Krueger jamais recorria a armas de fogo em seus trabalhos. Eram

    bvias demais, bastante arriscadas. Preferia arrumar acidentes de apa-rncia inocente. A pistola era apenas uma arma de autodefesa, para ocaso de ser descoberto e ter que escapar fora, o que j acontecera maisde uma vez, em sua atribulada carreira.

    Estava com 53 anos, quase totalmente calvo, com propenso a en-gordar. Tinha um rosto to suave e inocente quanto o de um escrituradode terceira classe, a menos que a pessoa olhasse diretamente para seusolhos. Mas Krueger dicilmente permia que algum o tasse assim. Tra-balhava em seu ocio h 30 anos. Era um assassino prossional.

    Voltou a sentar-se em seu beliche e pensou no homem que ia ma-tar, a bordo daquele navio.

    Inconscientemente, a mo direita subiu para a orelha e ele come-ou a puxar genlmente o lbulo. Surpreenden-do-se no ato, baixou amo rapidamente. Era um pssimo hbito, um hbito perigoso, que pre-cisava controlar. Os hbitos eram perigosos em seu trabalho, perigosos

    demais. Serviam para idenc-lo, serviam para denunci-lo, proporcio-navam ao agente inimigo uma oportunidade de localiz-lo. Era como seele sasse a passar por entre uma muldo, com um cartaz pendurado nopeito, escrito Sou Krueger, o Assassino.

    Ele se recordou, nidamente demais, do que acontecera com seuvelho amigo Delchev. Inconscientemente, Delchev desenvolvera um ps-simo hbito, um cacoete horrvel: o gesto simples e involuntrio de afas-tar a gravata e o colarinho do pomo-de-ado, com o dedo indicador. Aolongo dos anos, a informao se espalhara. O hbito fora observado e de-vidamente anotado. Passara a constar de todos os dossis sobre Delchev,

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    nos arquivos de todos os servios secretos do mundo. Delchev tornara-se um homem facilmente idencado, pelo seu hbito. No importavacom que disfarce, nome falso ou qualidade ele se apresentasse, mais maiscedo ou mais tarde era denunciado por seu hbito. E, ao nal, o haviamapanhado por causa disso.

    Krueger soubera de outro agente que costumava parr cigarros aomeio, de um que costumava beliscar a orelha, sempre a mesma. Ambosestavam mortos, tendo sofrido acidentes previamente arrumados.

    E havia tambm um prossional de grande avidade, que j seapresentara sob tantos pseudnimos que passara a ser conhecido na pro-sso simplesmente como Mister M.

    Krueger sempre achara que poderia descobrir M, em seis meses,

    se algum lhe zesse uma proposta que tornasse a busca interessante. que havia uma anotao nos dossis sobre M de um mau hbito dele,capaz de atrair a ateno de qualquer um. M nha a mania de marcar ascaixas de fsforos de papel com a unha do polegar, fazendo recortes regu-larmente espaados, nos quatro lados.

    Puxar o lbulo da orelha no era to grave assim. Mas Krueger sa-bia que, no obstante, era um hbito perigoso. No futuro, deveria sermais cuidadoso com essas pequenas manias. Tinha de eliminar todos ospequenos hbitos de sua personalidade, at se tornar completamenteapagado e inexpressivo .

    Ele ouviu o repicar distante do sino do navio. Depois, ouviu os api-tos. O convs comeou a vibrar. Os motores entraram em funcionamento,com um estrpito que Krueger senu subindo por sua espinha. Uma pau-sa rpida e o navio comeou a se deslocar, lento, as mquinas pulsandomais regularmente.

    Estava na hora de comear o trabalho. Estava na hora de comeara procurar a futura vma.

    O refeitrio cava ao lado do salo e ambos eram sujos. Alm demuito apertados. Podiam-se ver rachaduras enferrujadas nas paredesbrancas, nos cantos das janelas. A comida gordurosa, muito temperadae mal preparada, combinava com o ambiente. Mas Krueger permaneceucalmo e afvel. Na sua prosso, no se devia atrair a ateno desneces-sariamente, queixando-se das coisas.

    Espremido entre uma mulher gorda e um padre, ele pegou o guar-danapo e j ia prend-lo no colarinho, quando se conteve a tempo e ps

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    o guardanapo no colo.Tome cuidado, tome muito cuidado com essas coisas. Foi o homem

    que punha o guardanapo pendurado no colarinho, no lmo servio. Nun-ca repita o mesmo maneirismo! Ele sorriu para o homem que estava dooutro lado da mesa, dizendo:

    Poderia passar-me o cardpio, por genleza?O homem a quem se dirigira nha uma aparncia apagada. Andava

    na casa dos 40 anos, os cabelos escassos, usava culos. O nome dele eraAmos Bicker e deveria sofrer um acidente fatal... devidamente providen-ciado por Krueger.

    Krueger estudou-o, disfaradamente. No parecia ser o po de ho-mem que fosse necessrio matar. Aparentava ser um funcionrio pblico

    subalterno. Contudo, por um movo ou outro, inocente ou no, ele mes-mo se colocara na posio de perigo de vida, ao meter-se no caminho doPardo. As instrues de Krueger eram para providenciar uma EliminaoImediata. E assim teria de ser. Quanto ao meio...

    Ele surpreendeu a mo na metade do caminho para a orelha. Dia-bo! Mas ele connuou com o gesto, apenas desviando o curso e coandoa nuca. Depois, examinou o cardpio. Ali estavam dois dos seus pratosprediletos: coquetel de ostras e l. Pediu ambos. Virou-se ento paraconversar com o padre, experimentando dirigir-lhe a palavra em espa-nhol. Acertou em cheio. Era a lngua do padre. Mas enquanto conversava,estava na verdade pensando no homem do outro lado da mesa, em AmosBicker e na sua remoo permanente.

    Krueger sempre preferia os acidentes que pareciam normais. As-sim, a bordo de um navio, o melhor esquema ainda era o velho homemao mar. Poderia providenciar por inmeros meios o acidente. Poderia

    fazer amizade com a vma, sugerindo um passeio noturno pelo convs.Um rpido golpe de jud e... Ou, se a vma gostasse de beber, depois deentabular amizade para faz-lo beber at cair, para em seguida... Haviaum terceiro mtodo, que atraa bastante Krueger, pois evitava uma ob-servao pblica de qualquer contato seu com a vma. Poderia entrar nocamarote de Bicker nas horas mortas da madrugada, derrubando-o comuma injeo, que induzia inconscincia total e rapidamente. Depois... Odepois seria bastante simples. Homem ao mar...

    O camareiro trouxe o coquetel de ostras de Krueger. Krueker pegouo garfo pequeno e j ia comear a comer. Mas parou no meio do mo-

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    vimento, estremecendo. Alguma coisa se estava esfregando contra suaperna, por baixo da mesa. Ele se inclinou ligeiramente e levantou a pontada toalha. Um gato sarnento, provavelmente o gato do navio, estava ab-sorvido a se esfregar em sua perna.

    Vem c, ganho murmurou Krueger.Ele adorava animais. Se levasse uma vida mais sedentria, teria

    uma casa cheia de animais de esmao. E com uma esposa tambm, claro.

    Um marinheiro apareceu neste momento na porta de boreste eperguntou em voz alta:

    Onde est o Sr. Werfel? Sou eu! disse Krueger prontamente.

    Era uma coisa em que ele jamais se enganava. Nunca esquecia opseudnimo que estava usando no momento.

    O capito deseja v-lo, senhor.Uma muldo de porqus invadiram a mente de Krueger. Mas ele

    logo compreendeu a explicao bvia e levantou-se, sorrindo. Era porcausa do acidente com o balde. Era muito desagradvel, porque o aciden-te atrara uma ateno indevida para ele, do camareiro, dos esvadores,daquele marinheiro, de todos os demais passageiros e do capito.

    Krueger encontrou-se com o capito na ponte de comando. O ca-pito, uma mistura heterognea de sangues mediterrneos, derramou-seem desculpas, por causa do acidente. Krueger riu, delicadamente. Ora,no nha sido nada. Coisas assim podem acontecer em qualquer navio.Ele gostaria que o capito esquecesse todo o desagradvel incidente. Eleapertou a mo do capito e aceitou o charuto que lhe foi oferecido. Atmesmo deixou que o capito lhe permisse examinar a ponte de coman-

    do.Voltou para o refeitrio com o sorriso prossional inspido. Mas

    algo acontecera durante a sua ausncia.Os passageiros estavam de p, junto s paredes do refeitrio. O co-

    zinheiro, seus assistentes e o camareiro formavam um crculo no meio dorefeitrio. Mas o destaque da cena estava no cho, bem no meio da sala.Era o gato do navio, o corpo escado num comprimento inacreditvel,sacudido pelas mais grotescas convulses, a boca espumando.

    Oh, Sr. Werfel! gritou a mulher gorda que esvera sentada aolado de Krueger, ao v-lo. Fiz uma coisa terrvel! No! Pensando bem,

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    at que z bem! E foi muita sorte para o senhor que eu vesse feito! Mas o que aconteceu? indagou Krueger asperamente, sem

    rar os olhos do gato a se contorcer. O que fez anal? Aquele pobre animal pulou em cima de sua cadeira assim que