alfabetizar letrando um caminho sem volta

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Devemos alfabetizar antes dos seis anos?

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  • Sandra BozzaArtigo Abril 2010

    Alfabetizar letrando: um caminho sem volta

    O bom ensino aquele que se adianta ao desenvolvimento.L.S. Vygotsky

    Devemos alfabetizar antes dos seis anos?No prejudicial ao desenvolvimento da criana introduzi-la

    muito cedo no mundo da escrita?Quando devemos iniciar o processo de alfabetizao?Depende de como concebemos a alfabetizao.Se o conceito que temos aquele no qual a alfabetizao to-

    mada como a aquisio do cdigo escrito, cujo princpio norteador est vinculado concepo estruturalista de linguagem e concep-o inatista e/ou ambientalista de aprendizagem, a resposta a esses quesitos, obviamente, seria no, pois antes dos seis anos as estrutu-ras mentais do indivduo no possibilitariam a ele a apropriao sig-nificativa das estruturas escritas da linguagem. Em outras palavras, as crianas, em funo de seu desenvolvimento cronolgico, no te-riam maturidade suficiente para aprender operaes to complexas.

    Se, em vez disso, entendemos a alfabetizao como aquisio da lngua escrita, a resposta bvia seria sim. Desde o nascimento! Essa seria a resposta mais coerente com a concepo scio-histrica de linguagem e aprendizagem que temos estudado e defendido.

    Se nossas crianas nascem em uma comunidade letrada, desde seus primeiros contatos (sistemticos ou no) com a escrita j esto sendo alfabetizadas e as noes adquiridas sobre a escrita contri-buem para que ela elabore conceitos fundamentais para a leituriza-o, tais como para que serve a escrita, o que a escrita representa e onde podemos utiliz-la.

    No entanto, conceber a aquisio da escrita por essa via pressu-pe o estabelecimento de uma definio do termo alfabetizao, aqui empregado como sinnimo de letramento, e no somente como aquisio do cdigo grfico.

    Na acepo aqui abordada, o termo alfabetizao tomado como a aquisio da lngua escrita, sendo, por esse motivo, a apro-priao escrita de uma unidade de sentido da linguagem que o texto. O texto em seu carter dialgico, atravs do qual o sujeito l, compreende e representa o mundo em suas relaes societrias. O texto em seu carter discursivo, por meio do qual o sujeito toma co-nhecimento e assume posies perante fatos sociais. O texto em seu carter literrio, onde tudo permitido e onde viver no obedece a regras pequenas como a dos homens. Enfim, o discurso produzido

  • Sandra BozzaArtigo Abril 2010

    historicamente e materializado atravs da palavra escrita. Ou, uma compreenso da linguagem escrita como algo vivo e eminente-mente poltico. A que assume a mesma importncia que a fala para Bourdieu: A linguagem no utilizada somente para veicular infor-maes (...). O poder da palavra o poder de mobilizar a autoridade acumulada pelo falante e concentr-la num ato lingustico.

    Dessa forma, dada a sua importncia e a sua necessidade, o que pretendemos defender que esse processo se inicie o mais cedo pos-svel, pois, nesta perspectiva, a aprendizagem precede o desenvolvi-mento, isto , para se desenvolver preciso aprender, inclusive a ler e a escrever, e no o contrrio: no h necessidade de se aguardar a maturidade, preciso produzi-la. E produzir maturidade significa mobilizar processos intencionais de mediao.

    Todavia, ainda so inmeras as vozes que se alteiam defendendo o fato de que preciso respeitar o tempo de cada criana, de que prejudicial iniciar um trabalho to complexo como esse sem antes preparar a criana com exerccios de psicomotricidade ou, ainda, que existem conceitos mais elementares a serem ensinados antes de se ensinar a ler e a escrever.

    O que temos percebido ao debatermos sobre essa polmica que existem duas vertentes daqueles que se declaram contrrios a al-fabetizar na educao infantil: ou as pessoas acreditam na matu-ridade como resultante do desenvolvimento bio-cronolgico e no admitem queimar etapas tidas como imprescindveis ao desenvol-vimento infantil ou concebem o desenvolvimento como construo espontnea e, portanto, sem necessidade de mediao, cuja atuao disvirtuaria o processo em andamento, pois o aluno deve aprender testando suas hipteses.

    De qualquer forma, o que preciso ficar registrado, neste mo-mento, que tambm condenamos a mecanizao de letras, slabas e palavras sem a compreenso por parte da criana do que elas re-presentam. Isso, de fato, seria exigir uma habilidade que pouco con-tribuiria para o desenvolvimento da competncia lingustica que se pretende e, consequentemente, para o desenvolvimento intelectivo da criana.

    O que pretendemos esclarecer nesse espao o fato do ensino da linguagem escrita ser muito mais amplo do que o trabalho de ensi-nar a traar smbolos e a estabelecer a correspondncia grfico-so-nora (letra/som) entre os mesmos. A apropriao da lngua escrita, bem como a compreenso de seu funcionamento necessita muito mais do que o simples desenvolvimento da motricidade e da me-morizao. Muito antes de escrever ortograficamente, o aprendente da escrita precisa consolidar conceitos lingusticos bsicos, que ou-samos arrolar a seguir:

    Funo social: para que serve a escrita, onde utilizada, qual

  • Sandra BozzaArtigo Abril 2010

    sua importncia social, quem a utiliza, de que forma os diferen-tes segmentos sociais a utilizam...

    Relao oralidade/escrita: a escrita a representao da fala, isto , tudo que se fala pode ser escrito e vice-versa.

    Ideia de representao: possvel representar o mundo fsico e abstrato atravs de diferentes linguagens: gestos, desenhos, dobradura, fotografia, filme, escultura, modelagem etc. Enfim, explicitar o conceito de que representar utilizar um smbolo no lugar de algo.

    Sistema de representao: a escrita uma representao de se-gunda ordem. No representa diretamente o objeto (ou ideias). Ela uma representao dos sons que compem as palavras que nomeiam os objetos/ideias.

    Diferena entre as linguagens: apesar de uma ser representa-o de outra, cada linguagem tem leis prprias que devem ser respeitadas para que o ato interativo se efetive atravs da escrita.

    Direo escrita: escreve-se, no mais das vezes, da esquerda para a direita e de cima para baixo.

    Alfabeto como conjunto prprio da escrita: com apenas 26 le-tras, pode-se escrever qualquer palavra.

    Outros sinais grficos da escrita: apenas as letras, imposs-vel veicularem-se ideias. So necessrios sinais diacrticos (de acentuao, pontuao e grficos).

    Espaamento: embora seja a representao da fala, a escrita necessita de espaamento entre as palavras, fato que na ora-lidade no existe: fala-se em fluxos contnuos e os segmentos sonoros so determinados pela unidade de sentido, separados por pausas e no pelas palavras.

    Unidade temtica: todo texto se prope a discorrer sobre as-pecto especfico e com inteno determinada.

    Unidade estrutural: dependendo da inteno e do tema, a for-ma do texto tende a apresentar um estrutura especfica, deter-minando a tipologia especial do mesmo.

    Esses conceitos so tidos como imprescindveis para que o su-jeito elabore uma base slida para o letramento. Letrar-se uma condio indispensvel insero do sujeito em uma sociedade cujas bases se respaldam, principalmente, nas atividades escritas. Se a escola prima por uma aprendizagem significativa, viva e din-mica, no h como essa instituio se eximirde iniciar o processo de letramento desde a fase berria da criana. Ou seria impossvel cantarmos, lermos histrias, apresentarmos livros e materiais escri-tos para esses bebs? E o que seria isso que no a introduo deles no mundo letrado?

    Ah! Mas isso diferente! poderiam arguir alguns.

  • Sandra BozzaArtigo Abril 2010

    Por qu? Por acaso os bebs somente ouvem, so passivos, no agem sobre esse ato dialgico? Eis a mais um conceito a ser esclare-cido. Nenhum ouvinte passivo. Ainda que completamente calados ou lacnicos, sempre haver interao entre ouvinte/leitor, texto/discurso e falante/autor.

    O ato de ouvir (msicas, ordens, adivinhas, notcias ou uma his-tria) coloca em prontido e exerccio todas as capacidades superio-res do crebro: memria, ateno voluntria, inferncia, abstrao, generalizao e a prpria linguagem. Essas capacidades, uma vez ativadas, no s ampliam significativamente o potencial cerebral, como, acima de tudo, consolidam habilidades que serviro como base de referncia para a aquisio de habilidades mais complexas. E esse processo, de carter espiral e infinito, tende a se repetir e se aprofundar conforme o nvel de mediao nele presente.

    No somente pesquisas acadmicas, mas nosso acompanha-mento ao trabalho de babs, atendentes e educadores infantis, tm comprovado que as prticas de leitura e contao de histrias, de recitao de quadrinhas, adivinhas e parlendas e a cantoria de m-sicas de agradvel melodia tm se mostrado eficazes no que diz res-peito ao desenvolvimento da capacidade de ateno e comunicao de crianas cada vez mais novas. Da mesma forma, a intimidade das crianas com material escrito e o manuseio de diferentes portado-res de textos, sempre mediados por aqueles que leem ou escrevem por/para elas, servem de base para seus gestos quando em ativida-des grficas coletivas ou individuais.

    Quanto s crianas de quatro a seis anos, quando tm suas ati-vidades sobre a escrita organizadas em torno do eixo USO > REFLE-XO > USO, isto , quando o objeto de estudo retirado do cotidiano social, refletido em suas diferentes instncias (cdigo/forma e sig-nificado/ideia) e devolvido sociedade sob a forma de escrita, mes-mo que coletivamente, estaro formando um bom lastro para a caminhada infinda da aprendizagem da lngua escrita. Em outras palavras: em qualquer fase da educao infantil (como de resto de todo ensino) podemos ler e escrever pela criana, para a criana e com a criana. At que ela consiga fazer isso sozinha.

    Nesse sentido, os Parmetros Curriculares Nacionais (vol. 2) afirmam que para aprender a ler preciso: pensar sobre a escrita; pensar sobre o que a escrita representa; pensar como a escrita re-presenta graficamente a fala. Para isso, o aluno precisa ler, embora ainda no saiba ler, e escrever, apesar de ainda no saber escrever. Talvez se origine desse conceito a insistncia que se percebe em al-

    OUVINTE ou LEITOR

    DISCURSOORAL ouESCRITO

    FALANTEou

    AUTOR

  • Sandra BozzaArtigo Abril 2010

    gumas propostas curriculares quanto prtica do texto coletivo (a professora como escriba do aluno) e prtica intensa da leitura oral, feita pelo professor, com ritmo, fluncia e entonao adequados.

    Em nenhuma das atividades supracitadas exigido da criana que ela escreva ortograficamente ou leia com fluncia. O que est proposto que ela viva mergulhada no mundo da escrita para que possa perceber sua importncia, sua utilidade na sociedade e v compreendendo, com o uso, seu funcionamento.

    Dessa forma, sensibilizada para a importncia da escrita e para a possibilidade de interagir socialmente atravs dela, da criana que parte a necessidade (por muitos tida como curiosidade natural) de perguntar cada vez mais frequentemente sobre os fatos lingusticos: Como eu fao tal letra? Como se escreve tal palavra? com x ou com ch? Como se escreve o nome da vov? O que est escrito aqui (alguns rabiscos ou letras traadas aleatoriamente pela criana no papel)?

    A nosso ver, elas s chegam a esse estgio de questionamento se consolidaram os conceitos supracitados e sentem a necessidade de avanar. Percebem a possibilidade e a riqueza de ampliarem seus do-mnios e horizontes por meio da leitura e da escrita. Esse fato trar como resultado um progresso intenso do processo alfabetizador, bem como a ampliao intelectiva facilmente constatada pela capacidade de estabelecer relaes, da rapidez no raciocnio lgico, da facilidade de abstrao e da memorizao e a ampliao da linguagem oral.

    Por essas e por outras questes que no puderam ser contem-pladas neste espao de discusso (como o ingresso e a permanncia da criana na escola) que no consideramos precoce se alfabetizar na Educao Infantil. E a prxis com essa faixa etria nos compro-va que todas as outras habilidades, atitudes e necessidades podero ser trabalhadas simultaneamente s aes de alfabetizar.

    Para finalizar, interessante salientar que o Referencial Curricu-lar Nacional para a Educao Infantil (vol. 3, pg 131) aponta para essa direo, principalmente em seus objetivos, no s para crian-as de quatro a seis anos, como tambm para os de zero a trs anos de idade. Da mesma forma, sua concepo de aquisio da lingua-gem escrita, reitera essas questes quando afirma:

    ... a aprendizagem da linguagem escrita concebida como:A compreenso de um sistema de representao e no somen-

    te como aquisio de cdigo que transcreve a fala;Um aprendizado que coloca diversas questes de ordem con-

    ceitual, e no somente perceptivo-motoras, para a criana;Um processo de construo de conhecimento pelas crianas

    por meio de prticas que tm como ponto de partida e de che-gada o uso da linguagem e o livre trnsito pelas diversas prticas sociais de escrita.

  • Sandra BozzaArtigo

    Sandra Bozza professora de Metodologia de Ensino, autora de livros tcnicos e didticos na rea de Lngua Portuguesa *

    Assim, o que gostaramos que ficasse claro a possibilidade, bem como a necessidade, colocada pela sociedade e pelos avanos teri-cos nas reas da Psicologia e da Lingustica a respeito desta desne-cessria celeuma: possvel e necessrio se alfabetizar na Educao Infantil. Outro intento nosso, que subjaz ao primeiro, seria a con-clamao dos educadores, agora tambm do Fundamental I, para uma grande e coerente mobilizao para a melhor compreenso de que seja, de fato, ensinar a ler a escrever. Para tanto, respaldamo-nos mais uma vez em Vygotsky quando afirma: Se quisssemos resumir todas essas demandas prticas e express-las de uma for-ma unificada, poderamos dizer que o que se deve fazer ensinar s crianas a linguagem escrita e no apenas a escrita de letras.