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Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo
Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
ISSN: 1983-2087
2 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo
Volume 2/2, julho a dezembro de 2011 ISSN: 1983-2087
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3 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Sumrio
Artigos
O Cristianismo e o Imprio Romano: tpicos sobre mobilidade espacial, identidade tnic a e hibridismo cultural Ludimila Caliman Santos ......................................................................... 4
Alexandre, uma viso plutarquiana a respeito dos bons costumes e de uma possvel verdade em histria Amanda da Cunha Conrado .............................................................................. 19
Estoicismo e magia em Media, de Sneca - Erick Messias Costa Otto Gomes e Suiany Bueno Silva ........................................................................................................................................ 27
Os perigos da navegao e a morte no mar: as representaes dos poetas (sculos VIII ao VI a.c) Camila Alves Jourdan .................................................................................................... 41
Romanitas e hibridismo cultural na tripolitnia romana: a civitas de Oea segundo o testemunho de Apuleio de Madaura - Belchior Monteiro Lima Neto ..................................... 50
El len y el asno en Phaed. 1.21: inversin o mantenimiento de prototipos? Beatriz Carina Meynet ................................................................................................................................... 58
Eusbio de Cesaria e a Histria Eclesistica: um discurso identitrio acerca da ortodoxia via alteridade de heresias Elisana Ribeiro Oliveira e Rosana Brito da Cruz ............................... 74
Tragdia, religiosidade, poltica e comunicao: uma anlise da representao heroica na plis Poliane da Paixo Gonalves Pinto............................................................................. 83
Concepes sobre o Oriente Medieval: a erudio histrica de Ibn Khaldun (1332-1406) e Michael Ducas (1400-1462) Elaine Cristina Senko................................................................ 96
Lies de Fisiologia pelo mdico-filsofo Empdocles de Agrigento Rodrigo Siqueira Batista, Andria P. Gomes e Romulo S. Batista .................................................................... 105
El lector de La Odisea: Memoria e Identidad en Benhard Schlink Marcela Ristorto y Clara Racca .................................................................................................................................... 112
Resenhas
ASSMAN, Jan. Religion and Cultural Memory: ten studies. Translated by Rodney Livingstone. Stanford: Stanford University Press, 2006 Dnis Correa .................................................... 125
SAILOR, Dylan. Writing and Empire in Tacitus. Cambridge: Cambridge University Press, 2008 - Willian Mancini .................................................................................................................... 129
4 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
O CRISTIANISMO E O IMPRIO ROMANO: TPICOS SOBRE MOBILIDADE
ESPACIAL, IDENTIDADE TNICA E HIBRIDISMO CULTURAL (SC. I-III)
Ludimila Caliman Santos1
Resumo: as temticas sobre mobilidade espacial, formao de identidades e hibridismo
cultural tm despertado, nos ltimos anos, bastante interesse no somente dos
pesquisadores do mundo ps-moderno, mas tambm daqueles que, como ns, se
debruam sobre a compreenso do contexto scio-cultural do mundo Antigo e
Medieval. Tendo isso em vista, nosso objetivo fazer um breve debate no que concerne
mobilidade espacial, etnicidade e hibridismo cultual no Imprio Romano. Para isso,
fizemos um estudo de caso do movimento cristo, em suas vrias facetas, a fim melhor
elucidar o contexto imperial romano seguindo uma datao que se inicia no final do
sculo I at fins do sculo III.
Palavras-chave: Imprio Romano; Cristianismo; Hibridismo; Etnicidade.
Rsum: La thmatique sur mobilit spatiale, la formation des identits et de l'hybridit
culturelle ont attir ces dernires annes, un intrt considrable non seulement par des
chercheurs de monde post-moderne, mais aussi ceux qui, comme nous, ont abord la
comprhension socio-culturel du monde ancienne et mdivale. Dans cet esprit, notre
objectif est de faire une brve discussion concernant la mobilit spatiale, l'ethnicit et de
l'hybridit de culte dans l'Empire romain. Pour cela, nous avons fait une tude de cas du
mouvement chrtien dans ses diffrentes facettes, afin de mieux lucider le contexte
impriale romaine aprs une rencontre qui dbute la fin du sicle jusqu' la fin du
troisime sicle.
Mots-cl: L'Empire romain; Le christianisme; L'hybridit; Ethnicit.
No espao geogrfico do Imprio, no tempo Alto Imperial, houve mais emigrao do
que imigrao (HARRIS, 1999, p. 71). Um dos motivos esta no fato de o Imprio
Romano ser visto por alguns como um El dourado. Com uma identidade bastante
positivada, o Imprio, principalmente durante Pax Romana, era identificado como um
local em que se podia prosperar e viver em paz. 2
De acordo com Nova (2010, p. 280) a deciso de imigrar basicamente a prova que
demonstra a capacidade que alguns indivduos apresentam para solucionar os problemas
cotidianos de sobrevivncia. Deste modo, a imigrao se apresenta como uma
1 Ludimila Caliman Campos doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Histria Social das
Relaes Polticas da Universidade Federal do Esprito Santo sob a orientao do Prof. Dr. Gilvan
Ventura da Silva. A doutoranda est desenvolvendo um projeto com o seguinte ttulo: Devoo popular,
hibridismo cultural e conflito religioso: a emergncia do marianismo no Imprio Romano (sc. II-V). O
projeto financiado pela Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES). 2 O sculo II ficou conhecido como um perodo de Pax Romana, definido por alguns autores como o
Sculo de Ouro ou como o Imprio Humanstico (PETIT, 1989).
5 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
ferramenta eficaz a qual alguns levam a cabo dado inexistncia de algum recurso
(NOVA, 2010, p. 280). possvel identificar diversos motivos especficos que levavam
as pessoas a se deslocar para o Imprio e dentro dele. As famlias podiam se mudar a
fim de buscar melhores terras para o cultivo; muitos indivduos saiam de suas terras a
fim de praticar a pirataria; alguns transitavam pelo Imprio por conta das prticas
comerciais que iam desde produtos alimentcios at agenciamento de escravos. Como
um impacto generalizado do imperialismo no sculo II, observou-se um grande
deslocamento espacial de pessoas das zonas rurais para as cidades (SCHEIDEL, 2004,
p. 64). Tais indivduos traziam consigo aspectos da memria de suas localidades e
identidades tnicas prprias. Tudo isso modificou cidades como Roma, Antioquia,
Alexandria e Atenas, ao se tornarem grandes centros cosmopolitas. Este contexto
expressa a complexidade da sociedade imperial na qual imperialismo e mobilidade
espacial tornaram-se indissociados.
Sobre esse assunto, Scheidel (2004, p. 66-67) pontua que o imperalismo abriu terras
para desapropriao; criou novas fronteiras tanto de controle quanto de integrao;
incentivou o reassentamento organizado; possibilitou a aquisio de milhes de
escravos estrangeiros, com verbas fruto das prprias conquistas militares e da
centralizao poltica.
Com a mobilidade espacial, a sociedade imperial tornou-se, de certa forma,
cosmopolita. O cosmopolitismo denota a ideia de uma comunidade mundial na qual as
relaes entre os indivduos transendem as fronteiras de um Estado (MATHISEN,
2006). Na sociedade cosmopolista, as pessoas devem seguir um conjunto de regras
bsicas para que todos os seus integrantes gozem daquilo que consideram como paz,
justia, equidade e dignidade. 3
A utilizao dos termos cosmopolitismo e cidadania mundial j estavam presentes
na Antiguidade nas filosofias helensticas dos seculos IV e III a.C. Digenes, por
exemplo, afirmou que ser um cosmopolita era ser um cidado do mundo. Os
esticos acreditavam que o mundo inteiro constituia-se em uma nica cidade verdadeira.
No Imprio Romano, no incio do seculo II d.C., o filsofo estico Epteto tambm
falou de ser um cidado do mundo (MATHISEN, 2006).
Uma das caractersticas de uma sociedade cosmopolista, a qual Roma pode ser
identificada, a presena de poliglotas. Segundo Mattingly e Hitchener (1995, p. 10), os
estudos onomsticos tm apontado para um aumento do nmero de poliglotas nas
colnias romanas do norte da frica, por exemplo.
Outro ponto digno de nota est no fato de que a maioria daqueles que circulavam
livremente no Imprio assim faziam pois eram cidados romanos. De fato, a mobilidade
espacial era uma caracterstica do cidado romano, sendo que a circulao de pessoas no
Imprio um estatuto de cidadania. Ao longo do tempo, a mdia de freqncia de
deslocamento dos cidados romanos aumentou notavelmente.
3 Na sociedade atual este conjunto de regras, A Declarao Universal dos Direitos Humanos, foi criado
em 10 de dezembro de 1948 pela ONU.
6 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Em Roma, o conceito de cidadania estava relacionado, quando referente a cidadania
individual, a capacidade de uma determinada pessoa de exercer direitos e cumprir
deveres polticos e civis, bem como a distino entre aquele que possuam essa
qualidade e os que no a possuam (GARDNER, 2002). Nos primeiros sculos do
Imprio Romano, a cidadania denotava o status ocupado por uma elite que gozava de
certos direitos (no ambito pblico e privado), privilgios e obrigaes asseguradas pela
lei. Os no-cidados, geralmente, permaneciam sujeitos aos sistemas legais das
comunidades provinciais provenientes. Com o tempo, a cidadania romana pde ser
adquirida, por meio da compra, na integrao do exrcito ou em conselhos municipais
(MATHISEN, 2006). Tal direito poderia ainda ser herdado. Ser cidado romano era
motivo de grande honra e mrito. De fato, o estatuto de cidadania pode ser
compreendido como um objeto portador de significados e identidades capaz de servir
eficazmente como fonte para a compreenso de um ethos. 4
O cosmopolitismo no Imprio foi legitimado politicamente com o Edito de Caracala
(Constitutio Antoniniana de Civitate) de 212 d.C. Elaborado pelo imperador Marco
Aurlio Antonino (121-180) a fim de simplificar a administrao pblica, com o
aumento da arrecadao dos impostos e a inscrio de soldados nas legies, tal decreto
concedeu cidadania romana a todos os moradores do orbe romano com exceo dos
brbaros vencidos, reinstalados no Imprio como colonos agrcolas e escravos
(GONALVES, 2006).
Vale frisar que todas as manifestaes de cidadania puderam fornecer elementos
unificadores. Tais promoveram cooperao social e de identificao a fim de evitar uma
diviso racial, religiosa, bem como filiaes tnicas (MATHISEN, 2006). A cidadania
romana, em especial, forneceu formas de identidade pessoal que no se restringiram a
populao de uma determinada localidade.
Deste modo, integrando uma multido de estrangeiros ao corpo de cidados romanos,
o Edito acabou por beneficiar os estrangeiros ao permitir-lhes imigrar livremente para
alm das fronteiras e viver sob a gide de Roma. Mais do que isso, quando, por
exemplo, um visigodo tornava-se cidado romano, este poderia migrar para a Sardenha
ou Egito e adquirir a cidadania local tambm. Assim, nenhum ncleo de habitao era
to pequeno que no pudesse abrigar o mundo romano inteiro, se fosse necessrio.
Alm disso, a cidadania romana, mesmo depois de 212, continuou a desempenhar um
papel vital na definio da identidade pessoal e legal, constituindo um fator importante
de integrao social, tnica e religiosa.
Com o fluxo de pessoas das mais variadas regies do o Imprio, havia trs tipos de
identificao com a cidadania romana. O primeiro grupo era de habitantes do orbe
romano, principalmente da elite provincial e romanos de etnia. Tais no se sentiam
cidados de determinada provncia, ou distrito, mas cidados do mundo. Unidos por
uma lealdade comum, eles compartilhavam o direito comum que os vinculavam a um
4 O conceito de ethos (advindo do grego tica, hbito, costume e harmonia), nos estudos sociolgicos, ,
basicamente, uma espcie de sntese dos costumes de um povo. Largamente utilizado para a compreenso
dos hbitos, sob o prisma social e cultural, tal conceito est presente nos estos das identidades sociais.
7 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
mesmo Imprio (HERSCHEL, 1909). O segundo grupo era composto por pessoas que
no se identificaram como cidados romanos, mas, como cidados de suas respectivas
cidades e provncias, pois, muitas vezes, o vnculo tnico local era mais forte que o
Imperial (MATHISEN, 2006). Normalmente, essas pessoas compunham as camadas
mdias e mais baixas da sociedade, muito ligadas aos aspectos tradicionais da cultura
regional. H ainda um terceiro grupo paradigmtico o qual transitou pelos dois
supracitados. Advindo da elite ou mesmo das camadas mdias e baixas da sociedade,
esses foram os cristos, caso quer ser analisado logo a seguir.
Em um contexto de cosmopolitismo, percebeu-se, tambm um aumento do
individualismo. Pensamento defendido pelos filsofos epicureus, o indivduo no era
mais considerado um membro inseparvel do Estado, mas independente dele. Em uma
sociedade cosmopolita e heterotpica, com e de intenso fluxo de filosofias e pessoas,
cada cidado poderia aderir quilo que mais lhe servia. No mbito religioso, isso pde
ser observado com bastante clareza.
Este momento foi caracterizado pela diversidade de religies e religiosidades, muitas
delas vivenciadas fora dos cultos oficiais do mos maiorum, expresso das novas
necessidades surgidas gradativamente em Roma e em seus domnios (SANZI, 2006). 3
De fato, foi um perodo de grande inquietao, marcado por um sentimento de
insuficincia das religies tradicionais (PETIT, 1989). Alm da consolidao do culto
ao imperador e da permanncia das antigas tradies religiosas, houve uma grande
proliferao de religies orientais, que coexistiram dentro do Imprio, entre elas o
cristianismo.5 Este, crena nascida na provncia da Judia, sobressaiu-se, em meio s
outras religies, entre outros fatores, por seu carter proselitista, o que determinou sua
expanso por todos os cantos do Imprio. Deve-se destacar que o contexto da Pax
Romana favoreceu o alargamento das fronteiras das religies estrangeiras de um modo
geral. fato que o cristianismo foi favorecido pela facilidade de contato entre as
provncias romanas e difundiu-se em meio ao livre trnsito de pessoas pelo Imprio.
Assim, as constantes e profcuas relaes entre as comunidades foram fator
determinante, tanto para o estabelecimento de redes de comunicao e inter-relao,
quanto para a perpetuao do prprio cristianismo. Alm disso, apesar da clara
heterogeneidade do Imprio, houve algumas tentativas de uniformizao poltica e
cultural, sendo que o cristianismo desempenhou, posteriormente, sua funo poltico-
social na integrao das massas (GUARINELLO, 2006).
A princpio, o Imprio Romano no se mostrou interessado nos cristos, at porque,
politicamente, alm da baixa capacidade de resistncia dessa religio ao poder de Roma,
no se tem notcia de qualquer ideologia de inspirao crist que tenha estimulado
algum tipo de ao subversiva contra o governo imperial (SILVA, 2006). Em sua carta
5 Opondo-se s celebraes religiosas ritualsticas empreendidas por Roma, os cultos orientais exerceram
um grande fascnio por todo o Imprio, porque, por meio de doutrinas bem elaboradas, estes forneciam
respostas a algumas inquietaes religiosas do homem romano. Os cultos de mistrio, em especial, assim
como o prprio cristianismo, representavam uma forma de religio muito mais voltada para a esfera do
pessoal, cultivada pela relao entre deuses e homens, diferentemente dos cultos tradicionais romanos.
8 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
comunidade de Roma, o apstolo Paulo, por volta do ano 57, j revelava seu anseio de
que os cristos no se rebelassem contra as autoridades institudas. Veja-se o trecho a
seguir:
Toda a alma esteja sujeita s potestades superiores; porque no h
potestade que no venha de Deus; e as potestades que h foram
ordenadas por Deus. Por isso quem resiste potestade resiste
ordenao de Deus; e os que resistem traro sobre si mesmos a
condenao. Porque os magistrados no so terror para as boas obras,
mas para as ms. Queres tu, pois, no temer a potestade? Faze o bem,
e ters louvor dela. Porque ela ministro de Deus para teu bem. Mas,
se fizeres o mal, teme, pois no traz debalde a espada; porque
ministro de Deus, e vingador para castigar o que faz o mal. Portanto
necessrio que lhe estejais sujeitos, no somente pelo castigo, mas
tambm pela conscincia. Por esta razo tambm pagais tributos,
porque so ministros de Deus, atendendo sempre a isto mesmo.
Portanto, dai a cada um o que deveis: a quem tributo, tributo; a quem
imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra (Rm
13:1-7).
O governo de Roma considerava os seguidores de Cristo como pertencentes a uma
das muitas correntes religiosas judaicas palestinas (CHEVITARESE, 2006). Alis,
Roma via o cristianismo sem muita expresso poltica. Entretanto, essa
despreocupao no garantiu a aceitao do movimento. Ao longo do sculo II, o
poder eclesistico foi grandemente perseguido e muitos mrtires foram feitos. Contudo,
apesar de haver um precedente legal na lei romana que podia ser usado contra os
cristos a acusao de superstitio illicita o governo demorou algum tempo para
distinguir os cristos dos judeus.6 At o governo de Nero (54-68), no se fazia qualquer
separao entre eles, por parte das autoridades. E, mesmo posteriormente, alguns
equvocos eram cometidos a esse respeito.7 Deve-se frisar ainda que a maior hostilidade
nos primeiros sculos provinha, em grande parte, no das autoridades romanas, mas da
populao local8.
6 Ao contrrio do cristianismo, o judasmo era uma religio muito antiga. Ento, quando os romanos
entraram em contato com os judeus, apesar dos confrontos que havia entre eles no que concerne ao
esprito de liberdade e ao estilo judaico de existncia sob o domnio imperial, estes foram considerados
uma religio licita pelos romanos uma postura tpica do tolerante paganismo vigente no Imprio (FELDMAN, 2008). 7 Pode-se afirmar que a associao feita entre as duas religies, nos sculos I e II, se dava, pois, alm de o
cristianismo estar ainda formando sua prpria identidade, havia, de fato, uma corrente judaizante dentro
da ekklesia, que motivava a manuteno de laos entre eles. Em algumas regies, especialmente no
primeiro sculo, os cristos, de um modo geral, conservavam fortes vnculos com os judeus, chegando a
utilizar at mesmo espaos judaicos como as sinagogas. 8 O cristianismo era visto como uma religio extica pelos adeptos das outras religies do Imprio. Isso se
deu tanto por seu monotesmo inflexvel, quanto pelo fato de as reunies terem um carter secreto, o que
fazia a populao em geral conjeturar que ocorressem atos como canibalismo, relaes promscuas,
prticas necromnticas e a invocao do esprito de um criminoso supliciado (SILVA, 2006).
9 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Nos primeiros duzentos anos, o cristianismo pde se expandir gradativamente,
favorecido pela clemncia imperial (SILVA, 2006). Entretanto, algumas mudanas vo
ocorrer no Imprio ao longo do sculo III. A Anarquia Militar (235-284) ser
instaurada, fruto de uma grande instabilidade, desencadeando uma srie de perseguies
aos cristos. Tal momento foi marcado por um agudo quadro de desequilbrio poltico,
caracterizado pelas vrias sucesses ao trono, bem como por um enfraquecimento da
imagem e do poder imperiais.
Da ascenso de Dcio ao poder, no incio do sculo III, at o incio do sculo IV,
quando o Imprio esteve sob o comando de Diocleciano, com exceo do perodo
chamado de Pequena Paz da Igreja (260-303), qualquer ameaa ordem imperial
passou a ser combatida vigorosamente, inclusive o cristianismo.9 A partir do governo de
Dcio, vrios pronunciamentos sero realizados com o propsito de coibir o
cristianismo, mesmo porque alguns responsabilizavam os cristos pela ruptura da pax
deorum. Em contrapartida, o culto aos deuses e ao imperador, bases simblicas do
poder imperial, sero um dos recursos para o fortalecimento do poder central, bastante
desgastado. Os imperadores buscavam a todo o custo se manterem fieis ao mos
maiorum.
No sculo III, com a promulgao do Edito de Caracala, a vida dos cristos sofrer
um impacto tangvel e duradouro mudando drasticamente. A partir desse decreto, muito
mais os cristos estariam livres para transitar no Imprio. No entanto, foram muito mais
perseguidos, pois, como cidados de Roma, no podiam mais apelar aos tribunais do
Imprio como humiliores (no-cidados) e, nem mesmo como a anttese honestiores
(cidados) dignos de privilgios (KERESZTES, 1970). Alm disso, como cidados,
foram, em muitos momentos, intimados a sacrificar aos deuses do Imprio. A igualdade
de direitos trouxe, de fato, muitos problemas para os cristos do mundo romano.
importante ressaltar que, no entanto, muito antes do Edito, qualquer cristo podia
transitar abertamente no Imprio. sabido que o apstolo Paulo, o qual era um cidado
romano, fez trs grandes viagens missionrias, visitando diversas localidades, a saber:
Jerusalm, Cesareia, Damasco, Antioquia (na Sria), Tarso, Chipre, Pafos, Derbe, Listra,
Icnio, Laodicia, Colossos, Antioquia (da Pisdia), Mileto, Patmos, feso, Trade,
Filipos, Atenas, Corinto, Tessalnia, Beria, Macednia, Malta e Roma. 10
Alm de
Paulo, sabido que muitos outros cristos, mesmo sem a cidadania, viajaram pelas mais
diversas provncias do Imprio.
9 Entre 260 a 303, temos a chamada Pequena Paz da Igreja, quando, por um breve momento, as perseguies no ocorreram. Nesse momento, o cristianismo pde ampliar suas bases livremente e
realizar grandes progressos no interior do Imprio. Sabemos que sob os governos de Cludio, o Gtico, e
de Aureliano houve alguns mrtires, contudo no podemos supor que isso tenha ocorrido devido a alguma
perseguio imperial, mas ao zelo excessivo de alguma autoridade provincial ou a alguma ao de
comunidades locais (SILVA, 2006). 10 Paulo foi, sem dvida, o pregador mais influente entre os no-judeus no sculo I, sendo tambm o
principal expoente teolgico do cristianismo gentlico. Segundo Mitchell (2008), quando Paulo fez sua
misso no mundo romano, este visitou e fundou diversas ekklesiae. Paulo no se detinha em cada pequena
cidade das vastas provncias do Imprio, mas buscava, passando pela rota romana da Via Sebaste, focar
sua ateno nos centros helenizados, ou seja, nos centros urbanos.
10 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
A complexa cartografia dos trajetos do apstolo fornece informaes acerca do
pblico alvo evangelizado e, assim, de quais foram os primeiros cristos fora da Judeia.
Ao se auto-intitular apstolo dos gentios, Paulo se props a exercer a tarefa de
reavaliar e de renegociar os critrios da diferena entre o judasmo e a cultura helnica,
a fim de levar o evangelho de Jesus aos no-judeus de fala grega, incircuncisos,
adoradores de dolos e moradores de terras fora da Judeia.11
Um judeu, a exemplo de
Paulo, deveria se mostrar capaz de ser, culturalmente, ambidestro para pensar em
termos do judasmo, do cristianismo e do helenismo.
Toda a mobilidade espacial prpria dos missionrios cristos justificada tendo por
base os seguintes mandamentos de Jesus: E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o
evangelho a toda criatura (Mc 16:15); Portanto ide, fazei discpulos de todas as
naes, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Esprito Santo (Mt 28:19);
Mas recebereis a virtude do Esprito Santo, que h de vir sobre vs; e ser-me-eis
testemunhas, tanto em Jerusalm como em toda a Judia e Samaria, e at aos confins da
terra (At 1:8).
O pensamento cristo dito primitivo, desde o incio, defendia a idia de
universidade e unidade tnica, cultural e social, algo nunca antes visto no Imprio. Na
polmica entre cristos judaizantes e cristos gentios, observamos Paulo asseverar o
seguinte: Onde no h grego, nem judeu, circunciso, nem incircunciso, brbaro, cita,
servo ou livre; mas Cristo tudo em todos (Col 3:11). Esse trecho traz as mais
importantes distines sociais do mundo antigo de uma maneira intercalada etnia,
religio ancestral e condio sociojurdica. Segundo o apstolo, os cristos no
deveriam ser identificados por tais classificaes, mas pela f em Jesus (WRIGHT,
1986). A ideia de se levar o evangelho aos gentios, na perspectiva paulina, era a de que
cada convertido se despisse do velho homem (Cl 3:9) seja ele qual fosse que
abrange as condutas consideradas pecaminosas a fim de aderir a uma religio que
recebia a todos, independentemente de sua origem tnica e do estrato sociocultural que
ocupasse. A viso geral do cristianismo gentlico estava, portanto, baseada na tica
segundo a qual o movimento de Jesus era uma religio para todos aqueles que
estivessem dispostos a abdicar de suas religies locais, bem como de suas prticas
pessoais que no se coadunassem com a doutrina crist (prostituio, feitiaria,
idolatria, embriaguez, ira, glutonaria, etc.) em prol de servir a Jesus pela simples f nele.
A conduta crist dos primeiros sculos ficou claramente expressa em um trecho da carta
de Diogneto no sculo II.
Os cristos, de fato, no se distinguem dos outros homens, nem por
sua terra, nem por lngua ou costumes. Com efeito, no moram em
cidades prprias, nem falam lngua estranha, nem tm algum modo
especial de viver. Sua doutrina no foi inventada por eles, graas ao
11 Vale destacar que, entre o pblico gentlico de Paulo, estavam vrios judeus da disperso. Contudo,
muitos dos que se convertiam no eram judaizantes (cristo-judeus) e, portanto, se inserem no
cristianismo gentlico (BLASI, TURCOTTE, DUHAIME, 2002).
11 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
talento e especulao de homens curiosos, nem professam, como
outros, algum ensinamento humano. Pelo contrrio, vivendo em
cidades gregas e brbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-
se aos costumes do lugar quanto roupa, ao alimento e ao resto,
testemunham um modo de vida social admirvel e, sem dvida,
paradoxal. Carta a Diogneto (5:1-4).
Observa-se neste testemunho um desapego a etnicidade. Quando nos referimos a
etnicidade, estamos lanamos mo de um conceito sociolgico que permite definir um
objeto cientfico. Segundo alguns autores, tal conceito esta relacionado s diferenas
culturais regionais, tais como lngua, religio, costumes (algo prximo a noo de
cultura ou ascendncia comum, que distinguem grupos de pessoas no que concernem as
suas identidades. (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998). 12
Sobre esse assunto
importante destacar que a etnicidade no esttica e pronta, mas dinmica. No valido
considerar que a etnicidade no tenha tido nenhuma relevncia nos crculos cristos
primitivos, mas, foi legada a segundo plano, no mbito de expanso do movimento.
Pensando na identidade crist como algo fluido, percebe-se que, assim como observou
Stuart Hall (2001) ao analisar as identidades culturais na ps-modernidade, as
identidades na Antiguidade no eram estveis e unificadas, mas bastante fragmentadas.
Isso porque o sujeito assumia diversos tipos de identidades nos mais diferentes
momentos. Vale destacar que o conceito de identidade uma construo dinmica, no
homognea, que se configura com o tempo (REGAZZONI, 2011). Alm da identidade
fluida e em construo, as comunidades migrantes sempre traziam consigo marcas de
hibridizao na sua prpria constituio, entendendo que o hibridismo cultural se
manifesta pelas interaes culturais estabelecidas por meio do contato entre realidades
diastrticas, os quais so constitudos por uma composio de elementos culturais
heterogneos, o que resulta em uma nova sntese cultural (HALL, 2003).
Destacamos ainda o fato de que os missionrios cristos, logo no incio do
movimento, puderam evangelizar com relativa liberdade nas estradas e provncias do
Imprio sendo bem recebidos como irmos por todos os integrantes da ekklesia
espalhados pelo Imprio os quais no se apropriaram de um sistema de pertencimento
tnico-cultural, mas de pertencimento a um sistema religioso. Vale frisar que a prpria
sociedade romana, com sua caracterstica cosmopolita e universalizante, composta por
pessoas que tendiam ao individualismo e identidades fluidas, beneficiou
consideravelmente o movimento cristo.
12 Tomaz Tadeu da Silva (2000) junto a outros tericos prope diversas apreciaes acerca das oposies
binrias estabelecidas pelos conceitos sociolgicos de identidade e diferena. De acordo com Silva, a
diferena, tal como a identidade, simplesmente existe e so inseparveis. Ambos so conceitos
simblicos, ativamente produzidos e no podem ser compreendidas, pois, fora dos sistemas de
significao nos quais adquirem sentido (p. 78, 2000). Alm disso, a dinmica identidade e diferena
composta por relaes sociais sujeitas s relaes de poder, sendo ambas impostas e disputadas.
importante perceber que, para Hall (2000), a identidade um conceito estratgico e posicional que
emerge no jogo de poder e na excluso. A identificao esta sempre em processo, em construo, e
sempre operando por meio da diffrance.
12 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
De fato, favorecido principalmente pelo imperialismo, o cristianismo empreendeu
suas misses com uma larga mobilidade espacial e afrouxamento tnico, o que cooperou
para a criao de novas prticas e hbitos. O imigrante que deixava sua cidade em
direo as mais diversas urbs romanas j estava profundamente influenciado por uma
cultura hbrida de imediato antes mesmo de partir. No entanto, enquanto h uma
centralizao das identidades supra-locais, concomitantemente, ocorre um reforo das
identidades locais. Deste modo, em um contexto de negociao, surgem identidades
culturais em transio, ou seja, identidades hbridas (HALL, 2003). Em novas terras, os
imigrantes, em contato com a cultura local, resignificavam o seu prprio espao criando
diversos nichos tnicos formados por agregadores (HERSCHEL, 1909).
Vale destacar que os missionrios que migravam dentro e fora do Imprio se
utilizavam de um profcuo meio de comunicao para operacionalizar seus
empreendimentos e divulgar suas doutrinas: as cartas13
. Hbito comum no mundo
greco-romano e herdado dos prprios apstolos, a prtica de se enviar correspondncia
mantinha as comunidades em constante comunicao, mantendo vnculos mnemnicos
com aquele que escreveu. As cartas poderiam funcionar, para alguns imigrantes em
especial os judeus conversos como uma literatura de imigrao. Tais tornavam-se um
elo de identificao comunitria (BENEDUZI, 2008).
As correspondncias, por abarcarem vastas reas geogrficas, funcionavam ainda
como um eficaz instrumento de interao cultural no qual diversos lderes, com as mais
diversas identidades, vo cooperar para a formao de uma nica comunidade 14
. Alm
disso, as epstolas tero um carter poltico para o melhor exerccio do poder e da
autoridade dentro das congregaes, reforando a posio de liderana daqueles que as
enviam.
Assim, no contexto de expanso do cristianismo, houve diversas manifestaes
culturais hbridas, fruto da mobilidade espacial patrocinada pelo movimento. Entre
essas expresses, destacamos o culto mariano.
A histria da exaltao e da devoo a Maria foi marcada por algumas definies
particulares acerca da personagem: Maria, a virgem perptua; Maria, a mediadora da
graa; Maria, a me de Deus; Maria, a nova Eva; Maria, a assunta aos cus; Maria, a
13A epstola, em grego epistol, em latim epistula, um documento escrito e assinado, elaborado sob a
forma de carta e classificada, de acordo com Bardin (2006), como uma comunicao dual escrita.
Dependendo das circunstncias e do assunto, as cartas seguiam um modelo retrico comum, respeitando
regras precisas. Por esse motivo, grande parte das cartas na Antiguidade seguiu os termos gerais do modelo clssico romano. Podem-se distinguir dois tipos bsicos de cartas: as pblicas e as privadas.
Desde os tempos apostlicos, a literatura crist utiliza constantemente cartas pblicas. No contexto do
mundo grego-romano, no era comum a circulao de textos entre indivduos, mas, o habitual era que as
trocas de correspondncias se fizessem entre instituies. A atividade de reproduo e distribuio de
textos entre os cristos do sculo I e II era intensa. 14Sobre esse assunto, observamos, por exemplo, uma carta de Pedro endereada a uma determinada
comunidade, por ns desconhecida, a qual Paulo tambm havia escrito anteriormente. O trecho que atesta
esse fato diz o seguinte: Considerai a longanimidade do Senhor com a nossa salvao, conforme tambm
o nosso irmo Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada (2 Pedro 3:15)
13 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
imaculada conceio. Todos esses ttulos foram degraus de uma paulatina apoteose da
Maria que se forjou em dois nveis: o da piedade popular e o doutrinal-litrgico.
No que concerne ao primeiro nvel, no qual se manifestou um significativo
hibridismo cultural, transferiu-se a Maria muito do sentimento de devoo que se
expressava nos ambientes das culturas greco-romana e oriental. As origens da venerao
primitiva a Maria esto centradas na antiga adorao s deusas da fertilidade e mes da
terra, prpria de um perodo pr-cristo. Frequentemente, diz-se que Maria a
sobrevivncia das figuras de deusas das religies orientais. De fato, nas antigas culturas,
muitas figuras da deusa-me so encontradas. So pequenas esttuas esculpidas com
seus seios mostra e mulheres grvidas. Tais sociedades caadoras e coletoras no
detinham conhecimento de tcnicas agrcolas e de irrigao, estando, assim, sujeitas a
todas as intempries (BENKO, 2004). Destarte, o ato de dar luz era tido como um
momento sobrenatural durante o qual a mulher se revestia de um poder misterioso. A
concepo era um smbolo para todas as foras da vida. A mulher como deusa sempre
referida como "a me dos deuses e dos homens". A ideia do deus-rei dos cus associada
deusa-me remete ao leste do Mediterrneo entre 4000 e 2000 a.C. nas sociedades
urbanas do Egito, da Sria e da sia Menor, por exemplo, em figuras como sis e Ishtar
(RUETHER, 1977).
Na mitologia clssica greco-romana, tambm houve um significativo
desenvolvimento das figuras das deusas. Cada aspecto da grande deusa-me do Oriente
Mdio foi retratado como uma figura feminina prpria na religio clssica:
rtemis/Diana, a poderosa deusa-virgem caadora; Dmeter/Ceres, a deusa da colheita;
Afrodite/Vnus, a deusa do amor e da beleza; Hera/Juno, a deusa-esposa; e outras.
Desse modo, tais religies que traziam em seu panteo figuras como deusas-mes e
virgens tornaram-se representaes de Maria numa interpretatio das deidades. A
hibridizao delas na forma de uma interpretatio crist empreendida no imaginrio
cristo foi determinante tanto para a converso dos gentios quanto para a assimilao da
doutrina crist por eles.15
Ao tolerar a venerao a Maria, a ekklesia recebia mais
seguidores, agora identificados com a nova religio. Maria no foi, oficialmente, uma
deidade crist; todavia, alguns documentos tendem a consider-la com o poder e a
autoridade de uma divindade.
No sculo II, um autor cristo, cuja identidade desconhecida, escreveu uma obra
apcrifa denominada Proto-Evangelho de Tiago. O intrigante documento dedica-se
inteiramente a contar a histria de Maria, bem como a defender sua virgindade antes e
durante o parto de Jesus. Enquanto as histrias sobre o nascimento de Jesus traziam uma
mensagem escatolgica de proclamao de uma nova era, o Proto-Evangelho de Tiago
15 A interpretatio uma tendncia comum dos escritores do mundo antigo em igualar os deuses
estrangeiros aos membros de um determinado panteo local. Herdoto, por exemplo, refere-se aos antigos
deuses egpcios Amon, Osris e Ptah como Zeus, Dionsio e Festo, respectivamente (SMITH,
2001). Cunhamos o termo interpretatio crist para tratar o comportamento do populus recm-converso
dos crculos gentios ao equiparar Maria a deusas gregas, romanas e orientais.
14 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
tem um carter exclusivo de piedade pessoal, apontando para o ideal de perptua
virgindade de Maria (KOSTER, 2004).
O Proto-Evangelho de Tiago foi um texto mariano muito influente nos crculos
cristos, o que se observa, inclusive, nas representaes imagticas (KEARNS, 2008).
Muitos templos, ttulos e uma iconografia clssica, dedicados anteriormente s deusas
greco-romanas e orientais foram transferidos a Maria. A iconografia, em especial, esta
representada de forma recorrente em catacumbas que tambm apresentam cenas
marianas como as imagens abaixo:
Afresco de Maria e Jesus menino ( direta), Maria e o anjo (centro) e Maria e os magos ( esquerda). Catacumba de Santa Priscila. Via Salria, Roma. Sculo III.
A devoo pessoal tem seu lcus primrio na arte sob a forma de piedade visual. Os
cristos primitivos se expressavam artisticamente a fim de refletir sua opinio com
relao a Deus ao tentar comunicar mensagens com uma funo educacional, memorial,
cultural e evangelstica.
Vale destacar que as imagens, como parte de um monumento material, so formas
fluidas de representao, na qual aspectos de uma divindade foram destrudos, alguns
mantidos e outros ainda foram preservados. Deste modo, a base da identidade est em
elementos imateriais que so compostos de uma materialidade (no caso, as imagens das
catacumbas).
Tanto o Proto-Evangelho de Tiago quanto a iconografia so importantes, pois
revelam um cristianismo que podemos considerar de fronteira, pois, apesar da
roupagem crist, ele apresenta expresses e valores hbridos, identificados com o
judasmo e, principalmente, com a cultura helenstica. 16
Muitos cristos, no ligados s
16 O culto hbrido que estava sendo formado se apresentava na fronteira. Nas palavras de Guarinello, as
fronteiras compem a ordem todas as dimenses da realidade que no so efmeras (2010, p. 120). na fronteira que observamos o jogo de negociaes e trocas. Nela, a ordem se altera ou se reproduz. O
ambiente de fronteira marcado tanto pela competio quanto pela negociao. H diversas fronteiras
cotidianas da ao social: as instituies, as crenas, as relaes sociais o conhecimento, entre outras.
Boyarin (2004) afirma que as fronteiras so impostas e construdas artificialmente. As pessoas no s
cruzam as fronteiras, mas fronteiras cruzam as pessoas. Em nosso caso, apesar de um Cristianismo
normativo zelar para que as fronteiras no sejam cruzadas, h contrabandos, a todo o momento, ao
longo dela como provimento do cotidiano. nas prticas difusas de hibridismo cultural que as fronteiras
so cruzadas. possvel notar que o culto mariano at o sculo IV encontrava-se na fronteira com um
suposto paganismo. Para que este culto sasse desta zona, foi preciso naturalizar a fronteira
empreendendo algumas negociaes e acomodaes como o Conclio de Efeso.
15 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
lideranas eclesiais, muitas vezes na fronteira entre o cristianismo e o paganismo,
inventavam histrias e faziam pinturas, expressando-se numa multiplicidade de meios
que davam vazo a demonstraes artsticas e culturais ligadas tradio e religio
greco-romanas. Assim, enquanto a literatura e a arte crist so influenciadas por
aspectos da sociedade pag, sua forma de culto tambm era modificada. E a exaltao
a Maria uma das transformaes, cujas expresses artsticas e literrias nos ajudam a
compreender a formao do cristianismo. O Proto-Evangelho de Tiago e as imagens
marianas nas catacumbas revelam que o hibridismo cultural foi um dos fatores
responsveis por forjar o culto mariano. O fato de tais ideias terem se expressado
primeiramente em textos apcrifos e na arte revela, acima de tudo, que o lcus de
nascimento desta piedade era alheio ambincia eclesistica episcopal.
Apesar de terem sido dedicados afrescos e obras literrias crists a Maria, o culto a
ela ainda no poderia ser comprovado no sculo II. Contudo, no sculo III, algumas
transformaes faro de Maria uma figura hibrida e de grande importncia para a
ekklesia.
De fato, a formao hbrida do culto mariano est imbricada ao cosmopolitismo do
Imprio Romano. Tal foi marcado por uma ampla mobilidade espacial dos seus
cidados, principalmente depois do Edito de Caracala. Esta mobilidade e
cosmopolitismo trouxeram consigo um crescimento do individualismo e um aumento
das identidades fluidas com a afirmao de identidades locais, entendendo que a
identidade cultural nunca fixa, mas sempre hbrida (HALL, 2003). No entanto, outro
processo paralelo e um tanto quanto indito, fruto em maior escala do cristianismo, mas
no desconsiderando o prprio processo de romanizao, foi a universalidade tnica.
O Imprio Romano agrupava sociedades bastante distintas em seu bojo. A grande
questo para o governo imperial romano era saber como lidar com a nascente
religiosidade crist e ainda integrar uma multido de imigrantes estrangeiros (chamados
brbaros) com valores culturais heterotpicos sob uma mesma esfera. Assim, o
cosmopolitismo trouxe uma busca mais acentuada das identidades tnicas, que agora se
identificavam com o Imprio e com a religio emergente o cristianismo. Vale ressaltar
que a identidade tnica era coletiva, pois, alm de no se manifestar isoladamente, se
supunha o reconhecimento da pertena a um grupo ou coletividade, mas tambm o
pertencimento individual, por significar a pessoa na sociedade (SEYFERTH, 2009;
POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998). No caso do cristianismo, como uma
religio de carter universalizante agremiava etnias sem distino, este trouxe consigo,
associado ao cosmopolitismo romano, uma hibridizao cultural, expressa, por
exemplo, na piedade popular com na venerao de Maria desde o sculo II, bem como
na formao do culto mariano a partir do sculo III.
16 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
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19 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
ALEXANDRE, UMA VISO PLUTARQUIANA A RESPEITO DOS BONS
COSTUMES E DE UMA POSSVEL VERDADE EM HISTRIA
Amanda da Cunha Conrado17
Resumo: Tendo como base as vises de Plutarco a cerca do mundo e de seus
biografados, pretende-se analisar a construo da biografia Alexandre, contida em
Vidas Paralelas do mesmo autor. Sendo historiador, assim definido por Maria
Aparecida de Oliveira Silva, carrega em si todos os atributos de um discurso
historiogrfico, bem como sua objetividade e subjetividade. Ao ler a obra remete-nos
questionamentos interessantes a cerca da verdade em Histria, destacando a questo
sobre moralidade destacada por Plutarco ao retratar o rei macednico, levando-nos
ainda a crer neste olhar plutarquiano a respeito da realidade ou questionando-nos sobre
seu fazer ver atravs de sua escrita.
Palavras-chave: Alexandre, Moralidade, Histria, Verdade.
Abstract: Based on Plutarchs views about the world and on those that he biographer, is
intended to analyze the construction of the biography Alexander, contained in Parallel
Lives by the same author. As a historian, so defined by Maria Aparecida de Oliveira
Silva, carries in himself all the attributes of a historiographic discourse, as well as his
objectivity and subjectivity. By reading his book it bring us interesting questions about
the truth in History, highlighting the question of morality highlighted by Plutarch when
he describes the Macedonian king, leading us so to believe on this plutarchs look about
the reality or questioning us about his way of see through his writing.
Key-words: Alexander, Morality, History, Truth.
Durante toda a existncia do homem na Histria, este quis deixar suas marcas e
leituras de sua ou de outras pocas; Plutarco de Queroneia um deles, nascido em 46 d.
C., durante o imprio romano de Claudio, foi ensasta grego, bigrafo e historiador,
sendo essas duas ltimas, alvo de grandes discusses, que mais a frente sero
abordadas. Viajou e conheceu muitos lugares, entre eles Roma e Egito, e foi sacerdote
de Apolo, em Delfos, no ano de 95 d. C. Sua idia compreende que para alcanar a
felicidade e a paz, necessrio controlar os impulsos e as paixes. Mais moralista que
at mesmo filsofo e historiador (a moralidade um ponto chave nas suas discusses e
na apresentao de suas personagens) foi um dos ltimos representantes do helenismo18
,
durante a segunda sofstica. Esta, por sua vez, foi um movimento de filsofos gregos, no
qual pretendiam fazer ver a cultura grega, resgatando-a, no contexto do Imprio
Romano. Nasce, luz de tal contexto, a retrica grega (durante os sculos II, III e IV).
17 Graduanda do curso de Histria pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail:
[email protected] 18 Legado da cultura grega clssica difundida principalmente por Alexandre Magno, para unir e
diferenciar-se em relao a outros povos.
20 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Plutarco ainda ocupou altos cargos pblicos em sua cidade natal e estudou
matemtica e filosofia em Atenas; participou, pois da Academia de Plato, fundada em
aproximadamente 387 a. C., em jardins localizados no subrbio de Atenas, caracterizou-
se inicialmente, pelos trabalhos desenvolvidos pelos pitagricos; considerada a
primeira escola de filosofia e sobressaa-se pelo ensinamento dialtico buscando
respostas no mbito individual atravs de constantes questionamentos; sendo muito
influenciado pelas idias de Plato, que aprendeu na Academia, sobre justia, virtude,
poltica, educao, ligando-as a moralidade tratada por aquele.
Escreveu mais de duzentos livros, sendo os mais famosos deles a coleo Vidas
Paralelas, no qual compara militares, legisladores, governantes gregos e romanos em
suas especificidades, todos personagens de destaque em sua prpria histria e
sociedade. So mais de vinte pares, como por exemplo, Slon e Valrio, Teseu e
Rmulo, Lisandro e Sila, Agesilau e Pompeu, Alexandre e Jlio Csar, Demtrio
Policete e Marco Antnio. Nestas biografias tem-se a seguinte estrutura: a biografia de
um grego, inicialmente, depois a de um romano, sucessivamente, aps a apresentao de
suas personagens, temos uma pequena comparao do escritor. Plutarco preocupa-se em
confrontar e equiparar os feitos e valores destes homens, emitindo suas prprias
concepes, como veremos mais a frente. Alm destes, escreveu sobre Filosofia,
religio, pedagogia, moral e crtica literria. Influenciou o mundo espiritual direta e
indiretamente defendendo o dualismo do bem e do mal, remetendo-nos as idias da
Academia. Faleceu em 126 d. C. na mesma regio onde nasceu que atualmente
corresponde a regio do Kaprena, na Becia.
Plutarco tornou-se cada vez mais um autor grego sujeito de muitas pesquisas e
inmeras possibilidades. No tocante as suas obras, so elencadas, como as tratadas pela
historiadora Maria Aparecida de Oliveira Silva 19
no seu livro Plutarco Historiador 20
,
onde mostra que, ao longo do tempo, pesquisadores colocam em xeque a posio de
Plutarco acerca da Histria, devido a suas obras e ao que ele disse e viu. Seria ele um
historiador, ou um bigrafo? Ou ainda um mero autor importante para outras cincias
(associado filosofia, pedagogia, religio, literatura, retrica)? Principalmente
com o Iluminismo, a obra de Plutarco passa a ser mais vista como obra literria,
ahistrica, at mesmo citando Wardman que avalia a vida de Alexandre, retratada pelo
autor grego, de acordo com suas virtudes.
A partir disso, pode-se questionar o que seria a verdade para Plutarco, j que
notrio, pelo menos no retrato sobre Alexandre, em que h somente a exaltao do
personagem remetendo-nos justamente a questo da moralidade 21
, seria a inteno do
fazer ver aquilo que somente interessa a ele, condicionando nosso olhar aos olhos de
Plutarco; h nele a necessidade de persuadir seu leitor a cerca do que escreve, a fim de
19 Doutora pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas USP. 20 SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Plutarco Historiador: Anlises das Biografias Espartanas. So
Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2006. 21 palavra que vem do grego thica, a qual possui dois sentidos: o de interioridade do ato humano e do
mago do agir, para a inteno.
21 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
que seus registros sejam verdade. Baseando-se nisso, Pelling ainda refora a idia de
que Plutarco apenas bigrafo, afirmando estar alheio a veracidade de seus
registros.22
Trata-se, pois de - deformando a realidade - caractersticas muito mais
filosficas e literrias, com o objetivo de transmitir a moral para as geraes futuras.
Mais a frente, contudo, em seu texto, a historiadora Maria Aparecida de Oliveira
Silva apresenta fatores que provam o contrrio. Segundo a autora, Plutarco deve sim ser
considerado um historiador. nesta afirmao que os estudiosos do sculo XX se
detm, haja vista que por trs da biografia, h uma histria do contexto, da cidade-
estado em que est inserido o seu personagem, mais que isso, h um mtodo a ser
empreendido e desenvolvido. Vem-se ento historiadores como Hani propor uma nova
viso sobre a obra e a narrativa de Plutarco, afirmando que sua escrita uma tentativa
de manter viva a religiosidade grega. Outros, como Delvaux, tm o autor grego com um
historiador regional, tendo seus escritos limitados a um cerco espao, geralmente, como
a autor mesmo prope um local do nascimento. Para Maria Aparecida de Oliveira Silva,
na prpria obra de Alexandre, Plutarco deixa clara a diferena entre biografia e Histria,
sendo por ele considerado Histria os grandes fatos, como as guerras vividas por
Alexandre. Sua definio sobre Histria assemelha-se, pois, ao pensamento dos antigos
historiadores gregos. O principal aspecto do gnero histrico sublinhado por Plutarco
foi a importncia dada busca da verdade dos fatos narrados. (SILVA, 2006, p. 57) J
o conceito de biografia, temos em Plutarco a idia de procedimentos metodolgicos de
busca, h pois uma coleta, seleo e registro das informaes.
E mais uma vez esbarramos na questo do que verdade em Histria, e mais, do que
retratar a verdade para Plutarco. Remete-nos a questo da verdade na Escola
Metdica, do sculo XIX, que nos fala de uma verdade absoluta, sem subjetividades,
repetindo os fatos como eles so exatamente, fatos objetivamente corretos. Ou ento nos
referimos a Nietzsche e sua verdade construda poltica e socialmente, uma verdade que
nega que o que verdadeiro possa ser um elemento da linguagem, uma verdade que
contesta noes de verdadeiro e falso. Ou ainda Foucault, com a sua verdade
relacionada s relaes de poder, um conceito que acaba por produzir, conduzir e
reproduzir efeitos novamente ligados ao poder. Sabemos que inserido em sua poca,
Plutarco, consoante a Tucdides e Herdoto, destaca que o saber histrico
exclusivamente o ver.
Proponho-me ento, atravs da leitura da fonte, Vidas Paralelas, referente
biografia de Alexandre, tratar da questo da moralidade destacada por Plutarco,
retratando como este relatou a vida do rei macednico, levantando questionamentos a
respeito do olhar deste sobre a vida dos seus biografados e, do que realmente ele nos
queria fazer ver atravs de sua escrita.
VIDAS PARALELAS, ALEXANDRE E O OLHAR DE PLUTARCO
22 SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Plutarco Historiador: Anlises das Biografias Espartanas. So
Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2006. p. 41.
22 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Vidas Paralelas uma compilao de biografias de homens ilustres da Grcia Antiga
e de Roma. Alm dos vinte e trs pares feitos por Plutarco, ainda h quatro biografias
sem pares. Esta obra muito importante, no s pela informao, mas tambm pelos
dados da poca retratados. Sendo esta a principal fonte que nos deu a viso atual de
Alexandre, h em Plutarco a inteno de revalorizao de uma cultura grega, no s
atravs da vida deste rei, como tambm tendo como base o que o autor grego declarou
dele.
Antes de destacar pontos interessantes da obra de Plutarco sobre Alexandre,
importante saber minimamente quem ele foi. Alexandre nasceu em 356 a. C. e faleceu
em 323 a. C. Foi prncipe e rei da Macednia (com apenas vinte anos) alm de um
grande conquistador da antiguidade, principalmente quando se tratava daquilo que os
helnicos entendiam como mundo, tendo Aristteles como seu preceptor, foi tido por
muitos, como algum de personalidade instvel. Mesmo tendo influenciado todo o
mundo ocidental.
Plutarco o definiu como homem de virtudes, um ser invencvel e de carter reto,
aponta:
[...] sua temperana nos prazeres fez-se notar desde os primeiros
tempos da mocidade. Impetuoso e ardente em tudo o mais, era pouco
sensvel a volpia, qual s se entregava com moderao. O amor
glria, ao contrrio, j se revelava nele, com uma fora e uma
elevao de sentimentos bastante superiores sua idade. No amava,
porm, uma glria qualquer [...] (PLUTARCO, p.29).
Trata ento um Alexandre que cheio de retas intenes era ainda corajoso para
enfrentar e conquistar o mundo que o rodeava, e mais o esperava. V-se neste trecho
tambm caractersticas de Plutarco de que preciso controlar seus impulsos para o
alcance da felicidade, anteriormente abordada, o comedimento um ponto bastante
abordado pelo autor em sua obra, tendo em vista que a todo momento remete-se a este
ponto. Um homem de virtudes para Plutarco refere-se a algum que no se deixa levar
pelos seus desejos e concupiscncias. Outro ponto interessante de se notar a fora e o
carter difcil de governar de Alexandre, tratado por Plutarco. Tem-se ai a questo da
educao dada ao rei macednico, que se deixava conduzir facilmente pela razo. Foi
educado, pois por Aristteles, o qual no o amava menos dizia que a seu pai,
porque devia a este apenas a vida, ao passo que a Aristteles devia a possibilidade de
uma vida superior,23
destaca Plutarco. Segundo a fonte, Alexandre estudou msica,
artes liberais, filosofia, poltica, medicina, moral, cincias secretas e literatura, seria,
pois um homem completo e cheio de atributos.
Outro ponto que merece destaque :
No momento em que iam para a mesa, foi-lhe anunciado que, entre os
cativos, estavam conduzindo a me e a esposa de Dario, com suas
23 PLUTARCO. Alexandre e Csar. In: Hlio Veja [tradutor]. So Paulo: Ediouro.[19--?] p.32.
23 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
filhas que, ao verem o arco e o carro de Dario, prorromperam em altas
lamentaes desnudando os seios, na crena de que Dario tivesse
perecido. Alexandre, mais sensvel desventura delas que sua
prpria felicidade, depois de alguns momentos de silncio, enviou
Leonato para comunicar-lhes que Dario no estava morto, e que elas
nada tinham que temer da parte de Alexandre; que este no fazia
guerra contra Dario seno pelo imprio, e que nada lhes faltaria das
honras com as quais estavam acostumadas enquanto Dario reinava.
[...] Mas o benefcio mais belo e mais real que podiam receber em seu
cativeiro mulheres de corao nobre que sempre viveram castamente,
foi o de nunca terem ouvido uma s palavra desonesta, nem terem tido
ocasio de temer ou mesmo suspeitar algo da parte de Alexandre, que
soasse desrespeito a seu pudor. Encerradas num santurio virginal,
protegido por sentimentos de piedade, viveram, no meio do
acampamento inimigo, uma vida de completo isolamento e longe dos
olhares da multido. Todavia, a esposa de Dario era, pelo que se
assevera, a mais bela das rainhas que existiram no mundo, assim como
o prprio Dario era o mais belo e bem feito de todos os homens; e
suas filhas eram parecidas com os pais. 24
Tratando mais uma vez da questo que envolve o carter do rei e de seu bom
corao, remetendo-nos especificamente a moralidade (encontrada em todos os trechos
do autor, exaltando as virtudes de Alexandre), um questionamento pode ser feito: ser
mesmo esta a verdade sobre o conquistador do mundo ocidental? Ou apenas uma face
da qual Plutarco quer nos fazer acreditar e enxergar? At onde esta verdade retrata a
realidade de uma poca ou apenas de um pensamento? Ou o autor nos condiciona a
sempre ver a moral e a tica para concordarmos com ele nesta discusso?
A questo abordada por Hani a respeito da tentativa de resgate de uma religiosidade
grega presente sim atravs dos aspectos religiosos, quando Plutarco discorre a respeito
das consultas aos orculos, ou quando descreve o fato de Alexandre ter sido chamado
por Jpiter de filho, ou pelo menos quer acreditar ter sido chamado assim. H ento uma
forte presena da religiosidade junto ao contexto e, por conseqncia, ao personagem,
havendo muito mais, com isso, o envolvimento das camadas populares. Outra questo a
ser destacada nesta anlise refere-se presena de fontes orais, as quais so usadas por
Plutarco para a construo de sua histria, sua obra que base nos fatos em que ele
presenciou, ou afirma ter presenciado, e aos relatos de pessoas que teve contato para
estruturar seus estudos a respeito no s do rei macednico, mas de seus biografados.
Merece destaque ainda a relao entre Alexandre e os persas em vrios trechos da
obra, no qual notrio o reconhecimento destes povos quanto ao poder e carter do
conquistador macednico, suas virtudes e de como trata seus inimigos de guerra e de
conquista, como vemos no trecho:
24 Idem. p. 44.
24 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Dario voltou, ento, para junto de seus amigos e, com as mos
levantadas para o cu, dirigiu aos deuses esta prece. Deuses que
presidis ao nascimento dos homens e ao destino dos imprios,
concedei-me a graa de transferir a meus sucessores a grandeza dos
Persas ressurgida aps a queda e devolvida ao esplendor em que
estava quando subi ao trono, a fim de que eu possa, vencedor de meus
inimigos, reconhecer os benefcios com os quais me cumulou
Alexandre em minha desgraa, com seu comportamento para com os
seres que eram para mim os mais queridos! Mas, se estivermos no
termo fixado pelo destino para a realizao das vinganas divinas, se o
imprio dos Persas chegou a seu fim e se devemos adaptar-nos
vicissitude dos acontecimentos humanos, no permitais que outro
seno Alexandre se sente no trono de Ciro. 25
Mostra tambm, Alexandre sendo aos poucos absorvido pela cultura persa, os
brbaros, assim chamados por Plutarco (abrindo a outra discusso aqui no
desenvolvida, j que no o objetivo desta comunicao, a respeito da viso gregos e
brbaros, identidade e alteridade no mundo antigo, como trata Hartog em seu livro O
espelho de Herdoto: ensaio sobre a representao do outro26
), chega inclusive a casar-
se com uma persa - interessante destacar que h uma mistura das culturas atravs do
rei macednico, mas tambm sua difuso da cultura grega ao longo de todo o seu
territrio conquistado, um que diretamente influenciado pelo outro, o grego que deixa
traos de seu legado clssico aos persas e estes por sua vez tratam de adentrar nessa
cultura grega - , como pode ser visto neste trecho extrado da fonte:
Ento Alexandre aproximou-se ainda mais dos costumes dos brbaros,
que ele tambm se esforou em modificar mediante a introduo de
hbitos macednios, com a ideia de que essa mistura e essa
comunicao recproca de costumes dos dois povos, cimentando sua
mtua benevolncia, contribuiria mais do que a fora para solidificar
seu poder, quando se afastasse dos brbaros. Por isso, escolheu entre
eles trinta mil crianas e mandou que lhes ensinassem o grego e as
instrussem nos exerccios militares macednios. Encarregou vrios
professores de dirigir a sua educao. Quanto ao casamento com
Roxana, s o amor foi seu mvel. Conheceu-a em um festim, em casa
de Cortano e apaixonou-se por sua beleza e seus encantos. Essa
ligao pareceu bastante conveniente ao estado presente dos negcios:
inspirou aos brbaros muito maior confiana em Alexandre; passaram
a estim-lo, vendo-o seguir to rigorosa continncia que s se
25 Idem. p. 53. 26 HARTOG, Franois. O Espelho de Herdoto: ensaio sobre a representao do outro. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1999.
25 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
aproximou da nica mulher pela qual se apaixonara, em virtude de
legtimo casamento. 27
A historiadora Maria Aparecida de Oliveira Silva, a fim de provar a idia de que
Plutarco historiador e de que seus fatos narrados so verdades, cita ainda a
importncia que ele d a organizao cronolgica de seus escritos, havendo uma
preocupao com a veracidade dos relatos e com a cronologia temporal. O outro ponto
relatado a insero que Plutarco faz aos seus personagens, no diferente com
Alexandre, num contexto social, concordando com a historicidade necessria a sua
escrita, transformando-a, como diz aquela, em Histria.
Remontando, uma viso plutarquiana vemos que ao mesmo tempo que o autor tenta
mostrar uma face idealizadora de Alexandre, isto , o seu carter comedido, ressalta que
em alguns momentos ele inverte esse comportamento e tem atitudes consideradas
desregradas, apesar de se arrepender depois. Como vemos no trecho abaixo:
talo, tio de Clepatra, tendo bebido demais durante o festim,
convidava os Macednios a rogar aos deuses o nascimento de um
herdeiro legtimo da realeza, filha de Clepatra e de Filipe. E eu,
ento, oh celerado gritou Alexandre, enfurecido pelo ultraje seria
para ti apenas um bastardo? E, assim dizendo, atirou-lhe a taa na
cabea [...] Depois desse insulto, feito sob a ao do vinho, levou sua
me Olimpada para o Egito e se retirou para a Ilria [...] Diante dessa
censura, Filipe caiu em si e enviou Demarato a Alexandre, que, em
virtude das razes do amigo, voltou para a casa paterna28
.
Remete-nos a historiadora Snia Regina Rebel de Arajo, a falta de um
comportamento regrado vai de encontro a Plutarco. Nesse contexto, Alexandre
construdo e desenvolvido em sua narrativa.
No quero, no entanto, voltar novamente s questes levantadas sobre a opinio de
verdade em Histria, afinal surgem muitas lacunas e perguntas as quais, requer um
maior aprofundamento, j que o trabalho discorrido apenas remetido a leituras de
pequenos trechos interessantes da obra. O moralismo de Plutarco tambm visto, mas
sabendo que no poderia ser diferente, devido ao contexto em que se encontra nosso
autor e toda a formao recebida por ele na Academia de Atenas.
Ao longo deste artigo, pretendo demonstrar o valor dos escritos de Plutarco nos
estudos sobre a vida da sociedade grega e romana durante o Imprio Romano. Sua
articulao entre as personagens seja Alexandre ou qualquer outro, remete-nos a um
importante quadro para o vislumbre de toda uma poca, seja ela verdade objetivamente
ou subjetivamente, fruto de um tempo ou de um pensamento idealizado e como so
vistos os bons costumes, a moralidade e as virtudes.
27 Idem. p. 66-67. 28 Idem. p. 33-34.
26 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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ARAJO, Snia Renina Rebel de [org.]; JOLY, Fbio Duarte [org.]; ROSA, Claudia
Beltro da. [org]. Intelectuais, poder e poltica na Roma antiga. Rio de Janeiro: Nau:
FAPERJ, 2010.
DOSSE, Franois. O Historiador: um mestre de verdade. In: A Histria, Bauru,
EDUSC, 2003
HARTOG, Franois. O Espelho de Herdoto: ensaio sobre a representao do outro.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
MAGALHES, Luiz Otvio de. Plutarco: historiografia e biografia na cultura greco-
romana. Revista Histria da historiografia, Ouro Preto, n.03, p.181-187, set. 2009.
NETSABER BIOGRAFIAS. Biografia de Plutarco de Queronia. Disponvel em:
Acesso em 06
de dezembro de 2010, s 16h20.
PLUTARCO. Alexandre e Csar. In: Hlio Veja [tradutor]. So Paulo: Ediouro.[19--?]
p.32.
REIS, Jos Carlos. Histria e teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e
verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Plutarco Historiador: Anlises das Biografias
Espartanas. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2006.
http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_2937.html
27 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
ESTOICISMO E MAGIA EM MEDIA, DE SNECA
Erick Messias Costa Otto Gomes29
Suiany Bueno Silva30
Resumo: Sneca foi um dos principais divulgadores da filosofia estica na Roma
imperial do primeiro sculo. O autor escreveu quatorze obras filosficas, uma stira
menipeia e nove tragdias. Apesar de se inspirarem nos autores gregos, as tragdias
senequianas apresentam um trao peculiar, isto , encerram em si os preceitos esticos
defendidos pelo autor. A tragdia Media um exempla das consequncias advindas da
falta do cuidado de si, ou seja, o furor sentido por Media faz com que a protagonista
ceda ao impulso de usar a magia com fins malficos, o que denota sua falta de domnio
da razo, ato contrrio tica estica. Nesse sentido, observamos que a tragdia
senequiana assume uma funo pedaggica, na medida em que emite uma mensagem
estica aos seus ouvintes.
Palavras-chave: Sneca; estoicismo; Media; magia; pedagogia.
Abstract: Seneca was one of the most important spreaders of Stoic philosophy in
Imperial Rome of the first century. The author wrote fourteen philosophical works, one
Menippean satire and nine tragedies. Though inspired in Greek authors, Senecas
tragedies have a peculiar trace, that is, they show the Stoic precepts defended by the
author. The tragedy Medea is one exemplum of the consequences caused by the lack of
attention with oneself, in other words, the furor felt by Medea leads the protagonist to
give in to the impulse of using magic with evil purposes, what shows her lack of
mastership over reason, act which opposes Stoic ethics. In this sense, we notice that
Senecas tragedies acquire a pedagogical function, as they send a Stoic message to their
listeners.
Keywords: Seneca; Stoicism; Medea; magic; pedagogy.
O objetivo do artigo pauta-se em analisar a tragdia Media atravs de uma leitura
dos princpios estoicos e desta forma pensar o teatro senequiano como detentor de uma
funo didtica, ou seja, Sneca escreveu a tragdia com intuito de transmitir uma
mensagem estoica, sobretudo referente moral. O artigo divide-se em trs momentos: o
primeiro diz respeito a uma discusso sobre a filosofia estica, para a qual, segundo a
interpretao de Cardoso, a virtude humana seria a identificao com a natureza, a
integrao perfeita no mundo natural. O equilbrio, necessrio manuteno da ordem,
29 Aluno de graduao em Histria da Universidade Federal de Gois (UFG). Participa do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciao Cientfica PIBIC , financiado pelo CNPq. Pesquisa sob orientao
da Profa. Dra. Luciane Munhoz de Omena. E-mail: [email protected] 30 Aluna de graduao em Histria da Universidade Federal de Gois (UFG). Participa do Programa
Institucional de Voluntrio de Iniciao Cientfica PIVIC , sob orientao da Profa. Dra. Luciane
Munhoz de Omena. E-mail: [email protected]
mailto:[email protected]:[email protected]
28 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
consistiria no controle do irracional, dos impulsos e das paixes (CARDOSO, 1999:
130). A partir dessas questes nos apoiamos na proposta de Florence Dupont, acerca da
conjugao dolor-furor-nefas, para analisarmos os comportamentos de Media. No
terceiro momento traamos uma reflexo a respeito da magia praticada pela
protagonista, alm de percebermos o porqu de essa prtica ser contrria aos preceitos
estoicos defendidos por Sneca. Por fim, desenvolveremos uma percepo da tragdia
senequiana como dotada de um carter pedaggico por referimo-nos s peas de Sneca
como um exempla que ilustram as conseqncias do descontrole dos sentimentos e das
paixes. E as peas se prestam realmente a esse tipo de exemplificao (CARDOSO,
1999: 130).
A filosofia proposta por Sneca pretendia ultrapassar os limites da eloquncia, para
s assim alcanar a prtica da uirtus: o homem deveria retirar os preceitos da filosofia e
ocupar-se de temas vlidos, para enfrentar as vicissitudes e combater os vcios, esse era
o caminho para atingir a felicidade, pois feliz era aquele quem confia razo a gerncia
de toda a vida (OMENA, 2009: 44). Agir de acordo com a razo e em conformidade
com a natureza, isto , aceitar a ordem dos acontecimentos que expressam a vontade dos
deuses, era um princpio fundamental da filosofia estoica, a qual se apresentava como
um sistema integrado, mas dividido, por questes didticas, em Lgica, Fsica e tica.
A Lgica estoica determina a existncia de uma lei que rege a vida humana, haja
vista que o racionalismo estoico estabelece implicaes de relaes temporais, alm do
fato de que so estas relaes que definem a sabedoria. Para a escola da stoa, o tempo
no apenas a demonstrao da sabedoria divina, mas tambm a expresso do dinamismo
da vida universal e de sua harmonia. A sabedoria , dessa forma, submisso ao tempo,
vida, ao mundo, aos deuses, e se apia sobre o conhecimento da necessidade (BRUN,
1962: 21). Nesse sentido, a sabedoria implica a aceitao, fundada na razo, do
desenvolvimento dos acontecimentos, o que ocorre com a ajuda da dialtica, a qual
ensina as implicaes entre os acontecimentos, ou seja, todos os fatos tm uma razo
de ser, devido interdependncia entre o fato que o antecede com o que o segue
(GONALVES, 1996: 48). Assim, a Lgica pressupe uma teoria da simpatia universal
segundo a qual todos os indivduos se encontram em uma mtua interao, mostra o
modo como os acontecimentos implicam-se mutuamente, alm de uma teoria do destino
que justifica os laos temporais de casualidade (BRUN, 1962: 26).
A Fsica ensina que as coisas e os seres esto ligados uns aos outros pela vontade dos
deuses. O mundo estoico um sistema divino, isto , o mundo um ser vivo animado,
racional e inteligente, no qual todas as partes so distribudas divinamente. Deste modo,
quando os filsofos da stoa falam acerca da divinizao da natureza, seu objetivo
oferecer ao homem a possibilidade de dar a sua vida uma significao ordenada. A
Fsica estoica tem a preocupao de nos fazer representar, pela imaginao, um mundo
que dominado pela razo: no se encontra neste mundo nem a irracionalidade nem a
desordem.
O mundo composto de indivduos entre os quais no se encontram seres idnticos,
rigorosamente semelhantes; cada um possui uma qualidade prpria. A partir de tal ponto
29 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
que os estoicos defendem a individualidade como uma noo fundamental e
constitutiva do ser, na medida em que todo individuo um corpo que se define por suas
prprias qualidades e tenses interiores. O mundo estoico essencialmente um universo
de corpos que se acham em uma mutua interao; o universo , pois, uno e contnuo.
Nesse sentido, o homem pode e deve formar uma unidade com o universo em que se
encontra, respeitando o destino e seguindo as vontades divinas, porque a razo humana
nada mais que parte do esprito divino envolvido no corpo humano.
Diante do exposto acima podemos compreender o significado de destino para o
estoicismo. Para a filosofia do Prtico, destino significa uma realidade natural, tica e
teolgica que se inscreve na estrutura do mundo, na vida que anima o universo e nos
seres (BRUN, 1962: 33). Dito de outro modo, o destino no o encadeamento das
causas e dos efeitos, mas sim a causa nica, uma realidade natural que se traduz em um
poder que anima a simpatia universal, atravs da qual todas as coisas e seres encontram-
se em uma relao recproca e equilibrada. O destino se refere a uma ordem natural que
jamais pode ser rompida, tudo o que acontece est de acordo com a natureza universal,
tudo transcorre numa sequencia implacvel, no havendo, pois, acaso (ULLMANN,
2008: 9).
A leitura do destino feita pelos estoicos estabelece de imediato um problema: o
homem pode ser livre? Como conciliar a liberdade humana com o destino inexorvel
imposto pela vontade divina? A questo respondida pelos filsofos da stoa da seguinte
forma: em primeiro lugar preciso reconhecer a existncia da fora do destino em todas
as coisas e, a partir disso, o homem pode e deve viver com obedincia e aceitao,
submetendo-se quilo que lhe preparado pelas divindades. O homem deve ter
sabedoria, visto que somente atravs desta e guiando-se pela razo, o homem possui a
faculdade de apreciar o tempo e submeter-se aos acontecimentos, pois o tempo
representa a vontade divina. Dessa forma, somente o sbio livre e feliz: aceita com
sabedoria o que o destino lhe ofereceu. De modo sucinto, se o homem no quer
obedecer, ser forado a fazer o que o destino lhe preparou (ULLMANN, 2008: 11).
Em resumo, a Moral estoica ensina as regras de conduta do sbio, se direciona aos
indivduos em crescimento. Os seres vivos podem distinguir, desde que nascem, o que
conforme com a natureza e o que lhe contrrio, ou seja, as primeiras inclinaes
(instinto de conservao, sade, bem estar e tudo a que isso pode servir) so a marca da
imanncia da natureza em todos os seres, a expresso da simpatia universal e o signo da
harmonia das partes com o todo (BRUN, 1962: 45). Dessa forma, viver de acordo com
as primeiras tendncias viver de modo perfeitamente racional. O estoicismo afirma
que o bem o til, sendo este ltimo, segundo Jean Brun (1962: 46), tudo o que se
orienta no sentido da vida, no sentido do destino, da vontade dos deuses.
Bem e virtude so, na filosofia estoica, inseparveis, pois a virtude a presena do
bem em uma pessoa, o viver de acordo com a natureza. A virtude no suscetvel de
progresso, una, pois quem tem uma virtude tem todas: ela tem um fim em si mesma,
no depende de algo exterior, apenas da conduta do homem, completamente interna e
de acordo com si.
30 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
As paixes turvam a alma e impedem a virtude e a felicidade, haja vista que se
opem razo e so contrrias natureza. Por um lado, elas tm uma origem interna ao
homem, por outro, surgem na medida em que o meio social corrompe a criana, fazendo
com que suas inclinaes primitivas se transformem em paixes. As paixes so
enfermidades da alma, as quais desviam o homem de uma conduta reta. Os estoicos
insistiram no fato de que as paixes dependem de ns, nascem do juzo e das opinies
que temos das coisas. Por exemplo, quando algum te entristece ou te irrita, sabe que
no ele que o faz, mas tua opinio (BRUN, 1962: 50). Por isso o homem tem que se
esforar para no se deixar dominar pela imaginao, deve-se rechaar a opinio para se
libertar das paixes, e isso se faz atravs de uma meditao preventiva de tais juzos.
Tal conduta s possvel se o homem fizer uso c