alétheia revista de estudos sobre antiguidade e...

132
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011 ISSN: 1983-2087

Upload: trinhkien

Post on 09-Dec-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo

Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

ISSN: 1983-2087

2 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo

Volume 2/2, julho a dezembro de 2011 ISSN: 1983-2087

www.revistaaletheia.com

EXPEDIENTE

Conselho Editorial

Lyvia Vasconcelos Baptista (UFRGS) Rafael da Costa Campos (USP/Unipampa)

Conselho Consultivo

Ana Teresa Marques Gonalves (UFG)

Anderson Zalewski Vargas (UFRGS) Celso Silva Fonseca (UNB) Fbio Duarte Joly (UFOP) Fbio Faversani (UFOP)

Jacyntho Lins Brando (UFMG) Juliana Bastos Marques (UNIRIO)

Luciane Munhoz Omena (UFG) Marcelo Cndido da Silva (USP)

Margarida Maria de Carvalho (Unesp-Franca) Maria Beatriz Borba Florenzano (USP)

Maria Jos Coscolla (Universidad de Buenos Aires - UBA) Norberto Luiz Guarinello (USP)

Renata Senna Garraffoni (UFPR)

Imagem da capa: So Zeno exorcisando a filha de Galieno, de Fra Filippo Lippi (1455-60). Galeria Nacional de Londres, Reino Unido.

http://www.revistaaletheia.com/

3 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

Sumrio

Artigos

O Cristianismo e o Imprio Romano: tpicos sobre mobilidade espacial, identidade tnic a e hibridismo cultural Ludimila Caliman Santos ......................................................................... 4

Alexandre, uma viso plutarquiana a respeito dos bons costumes e de uma possvel verdade em histria Amanda da Cunha Conrado .............................................................................. 19

Estoicismo e magia em Media, de Sneca - Erick Messias Costa Otto Gomes e Suiany Bueno Silva ........................................................................................................................................ 27

Os perigos da navegao e a morte no mar: as representaes dos poetas (sculos VIII ao VI a.c) Camila Alves Jourdan .................................................................................................... 41

Romanitas e hibridismo cultural na tripolitnia romana: a civitas de Oea segundo o testemunho de Apuleio de Madaura - Belchior Monteiro Lima Neto ..................................... 50

El len y el asno en Phaed. 1.21: inversin o mantenimiento de prototipos? Beatriz Carina Meynet ................................................................................................................................... 58

Eusbio de Cesaria e a Histria Eclesistica: um discurso identitrio acerca da ortodoxia via alteridade de heresias Elisana Ribeiro Oliveira e Rosana Brito da Cruz ............................... 74

Tragdia, religiosidade, poltica e comunicao: uma anlise da representao heroica na plis Poliane da Paixo Gonalves Pinto............................................................................. 83

Concepes sobre o Oriente Medieval: a erudio histrica de Ibn Khaldun (1332-1406) e Michael Ducas (1400-1462) Elaine Cristina Senko................................................................ 96

Lies de Fisiologia pelo mdico-filsofo Empdocles de Agrigento Rodrigo Siqueira Batista, Andria P. Gomes e Romulo S. Batista .................................................................... 105

El lector de La Odisea: Memoria e Identidad en Benhard Schlink Marcela Ristorto y Clara Racca .................................................................................................................................... 112

Resenhas

ASSMAN, Jan. Religion and Cultural Memory: ten studies. Translated by Rodney Livingstone. Stanford: Stanford University Press, 2006 Dnis Correa .................................................... 125

SAILOR, Dylan. Writing and Empire in Tacitus. Cambridge: Cambridge University Press, 2008 - Willian Mancini .................................................................................................................... 129

4 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

O CRISTIANISMO E O IMPRIO ROMANO: TPICOS SOBRE MOBILIDADE

ESPACIAL, IDENTIDADE TNICA E HIBRIDISMO CULTURAL (SC. I-III)

Ludimila Caliman Santos1

Resumo: as temticas sobre mobilidade espacial, formao de identidades e hibridismo

cultural tm despertado, nos ltimos anos, bastante interesse no somente dos

pesquisadores do mundo ps-moderno, mas tambm daqueles que, como ns, se

debruam sobre a compreenso do contexto scio-cultural do mundo Antigo e

Medieval. Tendo isso em vista, nosso objetivo fazer um breve debate no que concerne

mobilidade espacial, etnicidade e hibridismo cultual no Imprio Romano. Para isso,

fizemos um estudo de caso do movimento cristo, em suas vrias facetas, a fim melhor

elucidar o contexto imperial romano seguindo uma datao que se inicia no final do

sculo I at fins do sculo III.

Palavras-chave: Imprio Romano; Cristianismo; Hibridismo; Etnicidade.

Rsum: La thmatique sur mobilit spatiale, la formation des identits et de l'hybridit

culturelle ont attir ces dernires annes, un intrt considrable non seulement par des

chercheurs de monde post-moderne, mais aussi ceux qui, comme nous, ont abord la

comprhension socio-culturel du monde ancienne et mdivale. Dans cet esprit, notre

objectif est de faire une brve discussion concernant la mobilit spatiale, l'ethnicit et de

l'hybridit de culte dans l'Empire romain. Pour cela, nous avons fait une tude de cas du

mouvement chrtien dans ses diffrentes facettes, afin de mieux lucider le contexte

impriale romaine aprs une rencontre qui dbute la fin du sicle jusqu' la fin du

troisime sicle.

Mots-cl: L'Empire romain; Le christianisme; L'hybridit; Ethnicit.

No espao geogrfico do Imprio, no tempo Alto Imperial, houve mais emigrao do

que imigrao (HARRIS, 1999, p. 71). Um dos motivos esta no fato de o Imprio

Romano ser visto por alguns como um El dourado. Com uma identidade bastante

positivada, o Imprio, principalmente durante Pax Romana, era identificado como um

local em que se podia prosperar e viver em paz. 2

De acordo com Nova (2010, p. 280) a deciso de imigrar basicamente a prova que

demonstra a capacidade que alguns indivduos apresentam para solucionar os problemas

cotidianos de sobrevivncia. Deste modo, a imigrao se apresenta como uma

1 Ludimila Caliman Campos doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Histria Social das

Relaes Polticas da Universidade Federal do Esprito Santo sob a orientao do Prof. Dr. Gilvan

Ventura da Silva. A doutoranda est desenvolvendo um projeto com o seguinte ttulo: Devoo popular,

hibridismo cultural e conflito religioso: a emergncia do marianismo no Imprio Romano (sc. II-V). O

projeto financiado pela Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES). 2 O sculo II ficou conhecido como um perodo de Pax Romana, definido por alguns autores como o

Sculo de Ouro ou como o Imprio Humanstico (PETIT, 1989).

5 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

ferramenta eficaz a qual alguns levam a cabo dado inexistncia de algum recurso

(NOVA, 2010, p. 280). possvel identificar diversos motivos especficos que levavam

as pessoas a se deslocar para o Imprio e dentro dele. As famlias podiam se mudar a

fim de buscar melhores terras para o cultivo; muitos indivduos saiam de suas terras a

fim de praticar a pirataria; alguns transitavam pelo Imprio por conta das prticas

comerciais que iam desde produtos alimentcios at agenciamento de escravos. Como

um impacto generalizado do imperialismo no sculo II, observou-se um grande

deslocamento espacial de pessoas das zonas rurais para as cidades (SCHEIDEL, 2004,

p. 64). Tais indivduos traziam consigo aspectos da memria de suas localidades e

identidades tnicas prprias. Tudo isso modificou cidades como Roma, Antioquia,

Alexandria e Atenas, ao se tornarem grandes centros cosmopolitas. Este contexto

expressa a complexidade da sociedade imperial na qual imperialismo e mobilidade

espacial tornaram-se indissociados.

Sobre esse assunto, Scheidel (2004, p. 66-67) pontua que o imperalismo abriu terras

para desapropriao; criou novas fronteiras tanto de controle quanto de integrao;

incentivou o reassentamento organizado; possibilitou a aquisio de milhes de

escravos estrangeiros, com verbas fruto das prprias conquistas militares e da

centralizao poltica.

Com a mobilidade espacial, a sociedade imperial tornou-se, de certa forma,

cosmopolita. O cosmopolitismo denota a ideia de uma comunidade mundial na qual as

relaes entre os indivduos transendem as fronteiras de um Estado (MATHISEN,

2006). Na sociedade cosmopolista, as pessoas devem seguir um conjunto de regras

bsicas para que todos os seus integrantes gozem daquilo que consideram como paz,

justia, equidade e dignidade. 3

A utilizao dos termos cosmopolitismo e cidadania mundial j estavam presentes

na Antiguidade nas filosofias helensticas dos seculos IV e III a.C. Digenes, por

exemplo, afirmou que ser um cosmopolita era ser um cidado do mundo. Os

esticos acreditavam que o mundo inteiro constituia-se em uma nica cidade verdadeira.

No Imprio Romano, no incio do seculo II d.C., o filsofo estico Epteto tambm

falou de ser um cidado do mundo (MATHISEN, 2006).

Uma das caractersticas de uma sociedade cosmopolista, a qual Roma pode ser

identificada, a presena de poliglotas. Segundo Mattingly e Hitchener (1995, p. 10), os

estudos onomsticos tm apontado para um aumento do nmero de poliglotas nas

colnias romanas do norte da frica, por exemplo.

Outro ponto digno de nota est no fato de que a maioria daqueles que circulavam

livremente no Imprio assim faziam pois eram cidados romanos. De fato, a mobilidade

espacial era uma caracterstica do cidado romano, sendo que a circulao de pessoas no

Imprio um estatuto de cidadania. Ao longo do tempo, a mdia de freqncia de

deslocamento dos cidados romanos aumentou notavelmente.

3 Na sociedade atual este conjunto de regras, A Declarao Universal dos Direitos Humanos, foi criado

em 10 de dezembro de 1948 pela ONU.

6 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

Em Roma, o conceito de cidadania estava relacionado, quando referente a cidadania

individual, a capacidade de uma determinada pessoa de exercer direitos e cumprir

deveres polticos e civis, bem como a distino entre aquele que possuam essa

qualidade e os que no a possuam (GARDNER, 2002). Nos primeiros sculos do

Imprio Romano, a cidadania denotava o status ocupado por uma elite que gozava de

certos direitos (no ambito pblico e privado), privilgios e obrigaes asseguradas pela

lei. Os no-cidados, geralmente, permaneciam sujeitos aos sistemas legais das

comunidades provinciais provenientes. Com o tempo, a cidadania romana pde ser

adquirida, por meio da compra, na integrao do exrcito ou em conselhos municipais

(MATHISEN, 2006). Tal direito poderia ainda ser herdado. Ser cidado romano era

motivo de grande honra e mrito. De fato, o estatuto de cidadania pode ser

compreendido como um objeto portador de significados e identidades capaz de servir

eficazmente como fonte para a compreenso de um ethos. 4

O cosmopolitismo no Imprio foi legitimado politicamente com o Edito de Caracala

(Constitutio Antoniniana de Civitate) de 212 d.C. Elaborado pelo imperador Marco

Aurlio Antonino (121-180) a fim de simplificar a administrao pblica, com o

aumento da arrecadao dos impostos e a inscrio de soldados nas legies, tal decreto

concedeu cidadania romana a todos os moradores do orbe romano com exceo dos

brbaros vencidos, reinstalados no Imprio como colonos agrcolas e escravos

(GONALVES, 2006).

Vale frisar que todas as manifestaes de cidadania puderam fornecer elementos

unificadores. Tais promoveram cooperao social e de identificao a fim de evitar uma

diviso racial, religiosa, bem como filiaes tnicas (MATHISEN, 2006). A cidadania

romana, em especial, forneceu formas de identidade pessoal que no se restringiram a

populao de uma determinada localidade.

Deste modo, integrando uma multido de estrangeiros ao corpo de cidados romanos,

o Edito acabou por beneficiar os estrangeiros ao permitir-lhes imigrar livremente para

alm das fronteiras e viver sob a gide de Roma. Mais do que isso, quando, por

exemplo, um visigodo tornava-se cidado romano, este poderia migrar para a Sardenha

ou Egito e adquirir a cidadania local tambm. Assim, nenhum ncleo de habitao era

to pequeno que no pudesse abrigar o mundo romano inteiro, se fosse necessrio.

Alm disso, a cidadania romana, mesmo depois de 212, continuou a desempenhar um

papel vital na definio da identidade pessoal e legal, constituindo um fator importante

de integrao social, tnica e religiosa.

Com o fluxo de pessoas das mais variadas regies do o Imprio, havia trs tipos de

identificao com a cidadania romana. O primeiro grupo era de habitantes do orbe

romano, principalmente da elite provincial e romanos de etnia. Tais no se sentiam

cidados de determinada provncia, ou distrito, mas cidados do mundo. Unidos por

uma lealdade comum, eles compartilhavam o direito comum que os vinculavam a um

4 O conceito de ethos (advindo do grego tica, hbito, costume e harmonia), nos estudos sociolgicos, ,

basicamente, uma espcie de sntese dos costumes de um povo. Largamente utilizado para a compreenso

dos hbitos, sob o prisma social e cultural, tal conceito est presente nos estos das identidades sociais.

7 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

mesmo Imprio (HERSCHEL, 1909). O segundo grupo era composto por pessoas que

no se identificaram como cidados romanos, mas, como cidados de suas respectivas

cidades e provncias, pois, muitas vezes, o vnculo tnico local era mais forte que o

Imperial (MATHISEN, 2006). Normalmente, essas pessoas compunham as camadas

mdias e mais baixas da sociedade, muito ligadas aos aspectos tradicionais da cultura

regional. H ainda um terceiro grupo paradigmtico o qual transitou pelos dois

supracitados. Advindo da elite ou mesmo das camadas mdias e baixas da sociedade,

esses foram os cristos, caso quer ser analisado logo a seguir.

Em um contexto de cosmopolitismo, percebeu-se, tambm um aumento do

individualismo. Pensamento defendido pelos filsofos epicureus, o indivduo no era

mais considerado um membro inseparvel do Estado, mas independente dele. Em uma

sociedade cosmopolita e heterotpica, com e de intenso fluxo de filosofias e pessoas,

cada cidado poderia aderir quilo que mais lhe servia. No mbito religioso, isso pde

ser observado com bastante clareza.

Este momento foi caracterizado pela diversidade de religies e religiosidades, muitas

delas vivenciadas fora dos cultos oficiais do mos maiorum, expresso das novas

necessidades surgidas gradativamente em Roma e em seus domnios (SANZI, 2006). 3

De fato, foi um perodo de grande inquietao, marcado por um sentimento de

insuficincia das religies tradicionais (PETIT, 1989). Alm da consolidao do culto

ao imperador e da permanncia das antigas tradies religiosas, houve uma grande

proliferao de religies orientais, que coexistiram dentro do Imprio, entre elas o

cristianismo.5 Este, crena nascida na provncia da Judia, sobressaiu-se, em meio s

outras religies, entre outros fatores, por seu carter proselitista, o que determinou sua

expanso por todos os cantos do Imprio. Deve-se destacar que o contexto da Pax

Romana favoreceu o alargamento das fronteiras das religies estrangeiras de um modo

geral. fato que o cristianismo foi favorecido pela facilidade de contato entre as

provncias romanas e difundiu-se em meio ao livre trnsito de pessoas pelo Imprio.

Assim, as constantes e profcuas relaes entre as comunidades foram fator

determinante, tanto para o estabelecimento de redes de comunicao e inter-relao,

quanto para a perpetuao do prprio cristianismo. Alm disso, apesar da clara

heterogeneidade do Imprio, houve algumas tentativas de uniformizao poltica e

cultural, sendo que o cristianismo desempenhou, posteriormente, sua funo poltico-

social na integrao das massas (GUARINELLO, 2006).

A princpio, o Imprio Romano no se mostrou interessado nos cristos, at porque,

politicamente, alm da baixa capacidade de resistncia dessa religio ao poder de Roma,

no se tem notcia de qualquer ideologia de inspirao crist que tenha estimulado

algum tipo de ao subversiva contra o governo imperial (SILVA, 2006). Em sua carta

5 Opondo-se s celebraes religiosas ritualsticas empreendidas por Roma, os cultos orientais exerceram

um grande fascnio por todo o Imprio, porque, por meio de doutrinas bem elaboradas, estes forneciam

respostas a algumas inquietaes religiosas do homem romano. Os cultos de mistrio, em especial, assim

como o prprio cristianismo, representavam uma forma de religio muito mais voltada para a esfera do

pessoal, cultivada pela relao entre deuses e homens, diferentemente dos cultos tradicionais romanos.

8 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

comunidade de Roma, o apstolo Paulo, por volta do ano 57, j revelava seu anseio de

que os cristos no se rebelassem contra as autoridades institudas. Veja-se o trecho a

seguir:

Toda a alma esteja sujeita s potestades superiores; porque no h

potestade que no venha de Deus; e as potestades que h foram

ordenadas por Deus. Por isso quem resiste potestade resiste

ordenao de Deus; e os que resistem traro sobre si mesmos a

condenao. Porque os magistrados no so terror para as boas obras,

mas para as ms. Queres tu, pois, no temer a potestade? Faze o bem,

e ters louvor dela. Porque ela ministro de Deus para teu bem. Mas,

se fizeres o mal, teme, pois no traz debalde a espada; porque

ministro de Deus, e vingador para castigar o que faz o mal. Portanto

necessrio que lhe estejais sujeitos, no somente pelo castigo, mas

tambm pela conscincia. Por esta razo tambm pagais tributos,

porque so ministros de Deus, atendendo sempre a isto mesmo.

Portanto, dai a cada um o que deveis: a quem tributo, tributo; a quem

imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra (Rm

13:1-7).

O governo de Roma considerava os seguidores de Cristo como pertencentes a uma

das muitas correntes religiosas judaicas palestinas (CHEVITARESE, 2006). Alis,

Roma via o cristianismo sem muita expresso poltica. Entretanto, essa

despreocupao no garantiu a aceitao do movimento. Ao longo do sculo II, o

poder eclesistico foi grandemente perseguido e muitos mrtires foram feitos. Contudo,

apesar de haver um precedente legal na lei romana que podia ser usado contra os

cristos a acusao de superstitio illicita o governo demorou algum tempo para

distinguir os cristos dos judeus.6 At o governo de Nero (54-68), no se fazia qualquer

separao entre eles, por parte das autoridades. E, mesmo posteriormente, alguns

equvocos eram cometidos a esse respeito.7 Deve-se frisar ainda que a maior hostilidade

nos primeiros sculos provinha, em grande parte, no das autoridades romanas, mas da

populao local8.

6 Ao contrrio do cristianismo, o judasmo era uma religio muito antiga. Ento, quando os romanos

entraram em contato com os judeus, apesar dos confrontos que havia entre eles no que concerne ao

esprito de liberdade e ao estilo judaico de existncia sob o domnio imperial, estes foram considerados

uma religio licita pelos romanos uma postura tpica do tolerante paganismo vigente no Imprio (FELDMAN, 2008). 7 Pode-se afirmar que a associao feita entre as duas religies, nos sculos I e II, se dava, pois, alm de o

cristianismo estar ainda formando sua prpria identidade, havia, de fato, uma corrente judaizante dentro

da ekklesia, que motivava a manuteno de laos entre eles. Em algumas regies, especialmente no

primeiro sculo, os cristos, de um modo geral, conservavam fortes vnculos com os judeus, chegando a

utilizar at mesmo espaos judaicos como as sinagogas. 8 O cristianismo era visto como uma religio extica pelos adeptos das outras religies do Imprio. Isso se

deu tanto por seu monotesmo inflexvel, quanto pelo fato de as reunies terem um carter secreto, o que

fazia a populao em geral conjeturar que ocorressem atos como canibalismo, relaes promscuas,

prticas necromnticas e a invocao do esprito de um criminoso supliciado (SILVA, 2006).

9 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

Nos primeiros duzentos anos, o cristianismo pde se expandir gradativamente,

favorecido pela clemncia imperial (SILVA, 2006). Entretanto, algumas mudanas vo

ocorrer no Imprio ao longo do sculo III. A Anarquia Militar (235-284) ser

instaurada, fruto de uma grande instabilidade, desencadeando uma srie de perseguies

aos cristos. Tal momento foi marcado por um agudo quadro de desequilbrio poltico,

caracterizado pelas vrias sucesses ao trono, bem como por um enfraquecimento da

imagem e do poder imperiais.

Da ascenso de Dcio ao poder, no incio do sculo III, at o incio do sculo IV,

quando o Imprio esteve sob o comando de Diocleciano, com exceo do perodo

chamado de Pequena Paz da Igreja (260-303), qualquer ameaa ordem imperial

passou a ser combatida vigorosamente, inclusive o cristianismo.9 A partir do governo de

Dcio, vrios pronunciamentos sero realizados com o propsito de coibir o

cristianismo, mesmo porque alguns responsabilizavam os cristos pela ruptura da pax

deorum. Em contrapartida, o culto aos deuses e ao imperador, bases simblicas do

poder imperial, sero um dos recursos para o fortalecimento do poder central, bastante

desgastado. Os imperadores buscavam a todo o custo se manterem fieis ao mos

maiorum.

No sculo III, com a promulgao do Edito de Caracala, a vida dos cristos sofrer

um impacto tangvel e duradouro mudando drasticamente. A partir desse decreto, muito

mais os cristos estariam livres para transitar no Imprio. No entanto, foram muito mais

perseguidos, pois, como cidados de Roma, no podiam mais apelar aos tribunais do

Imprio como humiliores (no-cidados) e, nem mesmo como a anttese honestiores

(cidados) dignos de privilgios (KERESZTES, 1970). Alm disso, como cidados,

foram, em muitos momentos, intimados a sacrificar aos deuses do Imprio. A igualdade

de direitos trouxe, de fato, muitos problemas para os cristos do mundo romano.

importante ressaltar que, no entanto, muito antes do Edito, qualquer cristo podia

transitar abertamente no Imprio. sabido que o apstolo Paulo, o qual era um cidado

romano, fez trs grandes viagens missionrias, visitando diversas localidades, a saber:

Jerusalm, Cesareia, Damasco, Antioquia (na Sria), Tarso, Chipre, Pafos, Derbe, Listra,

Icnio, Laodicia, Colossos, Antioquia (da Pisdia), Mileto, Patmos, feso, Trade,

Filipos, Atenas, Corinto, Tessalnia, Beria, Macednia, Malta e Roma. 10

Alm de

Paulo, sabido que muitos outros cristos, mesmo sem a cidadania, viajaram pelas mais

diversas provncias do Imprio.

9 Entre 260 a 303, temos a chamada Pequena Paz da Igreja, quando, por um breve momento, as perseguies no ocorreram. Nesse momento, o cristianismo pde ampliar suas bases livremente e

realizar grandes progressos no interior do Imprio. Sabemos que sob os governos de Cludio, o Gtico, e

de Aureliano houve alguns mrtires, contudo no podemos supor que isso tenha ocorrido devido a alguma

perseguio imperial, mas ao zelo excessivo de alguma autoridade provincial ou a alguma ao de

comunidades locais (SILVA, 2006). 10 Paulo foi, sem dvida, o pregador mais influente entre os no-judeus no sculo I, sendo tambm o

principal expoente teolgico do cristianismo gentlico. Segundo Mitchell (2008), quando Paulo fez sua

misso no mundo romano, este visitou e fundou diversas ekklesiae. Paulo no se detinha em cada pequena

cidade das vastas provncias do Imprio, mas buscava, passando pela rota romana da Via Sebaste, focar

sua ateno nos centros helenizados, ou seja, nos centros urbanos.

10 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

A complexa cartografia dos trajetos do apstolo fornece informaes acerca do

pblico alvo evangelizado e, assim, de quais foram os primeiros cristos fora da Judeia.

Ao se auto-intitular apstolo dos gentios, Paulo se props a exercer a tarefa de

reavaliar e de renegociar os critrios da diferena entre o judasmo e a cultura helnica,

a fim de levar o evangelho de Jesus aos no-judeus de fala grega, incircuncisos,

adoradores de dolos e moradores de terras fora da Judeia.11

Um judeu, a exemplo de

Paulo, deveria se mostrar capaz de ser, culturalmente, ambidestro para pensar em

termos do judasmo, do cristianismo e do helenismo.

Toda a mobilidade espacial prpria dos missionrios cristos justificada tendo por

base os seguintes mandamentos de Jesus: E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o

evangelho a toda criatura (Mc 16:15); Portanto ide, fazei discpulos de todas as

naes, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Esprito Santo (Mt 28:19);

Mas recebereis a virtude do Esprito Santo, que h de vir sobre vs; e ser-me-eis

testemunhas, tanto em Jerusalm como em toda a Judia e Samaria, e at aos confins da

terra (At 1:8).

O pensamento cristo dito primitivo, desde o incio, defendia a idia de

universidade e unidade tnica, cultural e social, algo nunca antes visto no Imprio. Na

polmica entre cristos judaizantes e cristos gentios, observamos Paulo asseverar o

seguinte: Onde no h grego, nem judeu, circunciso, nem incircunciso, brbaro, cita,

servo ou livre; mas Cristo tudo em todos (Col 3:11). Esse trecho traz as mais

importantes distines sociais do mundo antigo de uma maneira intercalada etnia,

religio ancestral e condio sociojurdica. Segundo o apstolo, os cristos no

deveriam ser identificados por tais classificaes, mas pela f em Jesus (WRIGHT,

1986). A ideia de se levar o evangelho aos gentios, na perspectiva paulina, era a de que

cada convertido se despisse do velho homem (Cl 3:9) seja ele qual fosse que

abrange as condutas consideradas pecaminosas a fim de aderir a uma religio que

recebia a todos, independentemente de sua origem tnica e do estrato sociocultural que

ocupasse. A viso geral do cristianismo gentlico estava, portanto, baseada na tica

segundo a qual o movimento de Jesus era uma religio para todos aqueles que

estivessem dispostos a abdicar de suas religies locais, bem como de suas prticas

pessoais que no se coadunassem com a doutrina crist (prostituio, feitiaria,

idolatria, embriaguez, ira, glutonaria, etc.) em prol de servir a Jesus pela simples f nele.

A conduta crist dos primeiros sculos ficou claramente expressa em um trecho da carta

de Diogneto no sculo II.

Os cristos, de fato, no se distinguem dos outros homens, nem por

sua terra, nem por lngua ou costumes. Com efeito, no moram em

cidades prprias, nem falam lngua estranha, nem tm algum modo

especial de viver. Sua doutrina no foi inventada por eles, graas ao

11 Vale destacar que, entre o pblico gentlico de Paulo, estavam vrios judeus da disperso. Contudo,

muitos dos que se convertiam no eram judaizantes (cristo-judeus) e, portanto, se inserem no

cristianismo gentlico (BLASI, TURCOTTE, DUHAIME, 2002).

11 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

talento e especulao de homens curiosos, nem professam, como

outros, algum ensinamento humano. Pelo contrrio, vivendo em

cidades gregas e brbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-

se aos costumes do lugar quanto roupa, ao alimento e ao resto,

testemunham um modo de vida social admirvel e, sem dvida,

paradoxal. Carta a Diogneto (5:1-4).

Observa-se neste testemunho um desapego a etnicidade. Quando nos referimos a

etnicidade, estamos lanamos mo de um conceito sociolgico que permite definir um

objeto cientfico. Segundo alguns autores, tal conceito esta relacionado s diferenas

culturais regionais, tais como lngua, religio, costumes (algo prximo a noo de

cultura ou ascendncia comum, que distinguem grupos de pessoas no que concernem as

suas identidades. (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998). 12

Sobre esse assunto

importante destacar que a etnicidade no esttica e pronta, mas dinmica. No valido

considerar que a etnicidade no tenha tido nenhuma relevncia nos crculos cristos

primitivos, mas, foi legada a segundo plano, no mbito de expanso do movimento.

Pensando na identidade crist como algo fluido, percebe-se que, assim como observou

Stuart Hall (2001) ao analisar as identidades culturais na ps-modernidade, as

identidades na Antiguidade no eram estveis e unificadas, mas bastante fragmentadas.

Isso porque o sujeito assumia diversos tipos de identidades nos mais diferentes

momentos. Vale destacar que o conceito de identidade uma construo dinmica, no

homognea, que se configura com o tempo (REGAZZONI, 2011). Alm da identidade

fluida e em construo, as comunidades migrantes sempre traziam consigo marcas de

hibridizao na sua prpria constituio, entendendo que o hibridismo cultural se

manifesta pelas interaes culturais estabelecidas por meio do contato entre realidades

diastrticas, os quais so constitudos por uma composio de elementos culturais

heterogneos, o que resulta em uma nova sntese cultural (HALL, 2003).

Destacamos ainda o fato de que os missionrios cristos, logo no incio do

movimento, puderam evangelizar com relativa liberdade nas estradas e provncias do

Imprio sendo bem recebidos como irmos por todos os integrantes da ekklesia

espalhados pelo Imprio os quais no se apropriaram de um sistema de pertencimento

tnico-cultural, mas de pertencimento a um sistema religioso. Vale frisar que a prpria

sociedade romana, com sua caracterstica cosmopolita e universalizante, composta por

pessoas que tendiam ao individualismo e identidades fluidas, beneficiou

consideravelmente o movimento cristo.

12 Tomaz Tadeu da Silva (2000) junto a outros tericos prope diversas apreciaes acerca das oposies

binrias estabelecidas pelos conceitos sociolgicos de identidade e diferena. De acordo com Silva, a

diferena, tal como a identidade, simplesmente existe e so inseparveis. Ambos so conceitos

simblicos, ativamente produzidos e no podem ser compreendidas, pois, fora dos sistemas de

significao nos quais adquirem sentido (p. 78, 2000). Alm disso, a dinmica identidade e diferena

composta por relaes sociais sujeitas s relaes de poder, sendo ambas impostas e disputadas.

importante perceber que, para Hall (2000), a identidade um conceito estratgico e posicional que

emerge no jogo de poder e na excluso. A identificao esta sempre em processo, em construo, e

sempre operando por meio da diffrance.

12 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

De fato, favorecido principalmente pelo imperialismo, o cristianismo empreendeu

suas misses com uma larga mobilidade espacial e afrouxamento tnico, o que cooperou

para a criao de novas prticas e hbitos. O imigrante que deixava sua cidade em

direo as mais diversas urbs romanas j estava profundamente influenciado por uma

cultura hbrida de imediato antes mesmo de partir. No entanto, enquanto h uma

centralizao das identidades supra-locais, concomitantemente, ocorre um reforo das

identidades locais. Deste modo, em um contexto de negociao, surgem identidades

culturais em transio, ou seja, identidades hbridas (HALL, 2003). Em novas terras, os

imigrantes, em contato com a cultura local, resignificavam o seu prprio espao criando

diversos nichos tnicos formados por agregadores (HERSCHEL, 1909).

Vale destacar que os missionrios que migravam dentro e fora do Imprio se

utilizavam de um profcuo meio de comunicao para operacionalizar seus

empreendimentos e divulgar suas doutrinas: as cartas13

. Hbito comum no mundo

greco-romano e herdado dos prprios apstolos, a prtica de se enviar correspondncia

mantinha as comunidades em constante comunicao, mantendo vnculos mnemnicos

com aquele que escreveu. As cartas poderiam funcionar, para alguns imigrantes em

especial os judeus conversos como uma literatura de imigrao. Tais tornavam-se um

elo de identificao comunitria (BENEDUZI, 2008).

As correspondncias, por abarcarem vastas reas geogrficas, funcionavam ainda

como um eficaz instrumento de interao cultural no qual diversos lderes, com as mais

diversas identidades, vo cooperar para a formao de uma nica comunidade 14

. Alm

disso, as epstolas tero um carter poltico para o melhor exerccio do poder e da

autoridade dentro das congregaes, reforando a posio de liderana daqueles que as

enviam.

Assim, no contexto de expanso do cristianismo, houve diversas manifestaes

culturais hbridas, fruto da mobilidade espacial patrocinada pelo movimento. Entre

essas expresses, destacamos o culto mariano.

A histria da exaltao e da devoo a Maria foi marcada por algumas definies

particulares acerca da personagem: Maria, a virgem perptua; Maria, a mediadora da

graa; Maria, a me de Deus; Maria, a nova Eva; Maria, a assunta aos cus; Maria, a

13A epstola, em grego epistol, em latim epistula, um documento escrito e assinado, elaborado sob a

forma de carta e classificada, de acordo com Bardin (2006), como uma comunicao dual escrita.

Dependendo das circunstncias e do assunto, as cartas seguiam um modelo retrico comum, respeitando

regras precisas. Por esse motivo, grande parte das cartas na Antiguidade seguiu os termos gerais do modelo clssico romano. Podem-se distinguir dois tipos bsicos de cartas: as pblicas e as privadas.

Desde os tempos apostlicos, a literatura crist utiliza constantemente cartas pblicas. No contexto do

mundo grego-romano, no era comum a circulao de textos entre indivduos, mas, o habitual era que as

trocas de correspondncias se fizessem entre instituies. A atividade de reproduo e distribuio de

textos entre os cristos do sculo I e II era intensa. 14Sobre esse assunto, observamos, por exemplo, uma carta de Pedro endereada a uma determinada

comunidade, por ns desconhecida, a qual Paulo tambm havia escrito anteriormente. O trecho que atesta

esse fato diz o seguinte: Considerai a longanimidade do Senhor com a nossa salvao, conforme tambm

o nosso irmo Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada (2 Pedro 3:15)

13 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

imaculada conceio. Todos esses ttulos foram degraus de uma paulatina apoteose da

Maria que se forjou em dois nveis: o da piedade popular e o doutrinal-litrgico.

No que concerne ao primeiro nvel, no qual se manifestou um significativo

hibridismo cultural, transferiu-se a Maria muito do sentimento de devoo que se

expressava nos ambientes das culturas greco-romana e oriental. As origens da venerao

primitiva a Maria esto centradas na antiga adorao s deusas da fertilidade e mes da

terra, prpria de um perodo pr-cristo. Frequentemente, diz-se que Maria a

sobrevivncia das figuras de deusas das religies orientais. De fato, nas antigas culturas,

muitas figuras da deusa-me so encontradas. So pequenas esttuas esculpidas com

seus seios mostra e mulheres grvidas. Tais sociedades caadoras e coletoras no

detinham conhecimento de tcnicas agrcolas e de irrigao, estando, assim, sujeitas a

todas as intempries (BENKO, 2004). Destarte, o ato de dar luz era tido como um

momento sobrenatural durante o qual a mulher se revestia de um poder misterioso. A

concepo era um smbolo para todas as foras da vida. A mulher como deusa sempre

referida como "a me dos deuses e dos homens". A ideia do deus-rei dos cus associada

deusa-me remete ao leste do Mediterrneo entre 4000 e 2000 a.C. nas sociedades

urbanas do Egito, da Sria e da sia Menor, por exemplo, em figuras como sis e Ishtar

(RUETHER, 1977).

Na mitologia clssica greco-romana, tambm houve um significativo

desenvolvimento das figuras das deusas. Cada aspecto da grande deusa-me do Oriente

Mdio foi retratado como uma figura feminina prpria na religio clssica:

rtemis/Diana, a poderosa deusa-virgem caadora; Dmeter/Ceres, a deusa da colheita;

Afrodite/Vnus, a deusa do amor e da beleza; Hera/Juno, a deusa-esposa; e outras.

Desse modo, tais religies que traziam em seu panteo figuras como deusas-mes e

virgens tornaram-se representaes de Maria numa interpretatio das deidades. A

hibridizao delas na forma de uma interpretatio crist empreendida no imaginrio

cristo foi determinante tanto para a converso dos gentios quanto para a assimilao da

doutrina crist por eles.15

Ao tolerar a venerao a Maria, a ekklesia recebia mais

seguidores, agora identificados com a nova religio. Maria no foi, oficialmente, uma

deidade crist; todavia, alguns documentos tendem a consider-la com o poder e a

autoridade de uma divindade.

No sculo II, um autor cristo, cuja identidade desconhecida, escreveu uma obra

apcrifa denominada Proto-Evangelho de Tiago. O intrigante documento dedica-se

inteiramente a contar a histria de Maria, bem como a defender sua virgindade antes e

durante o parto de Jesus. Enquanto as histrias sobre o nascimento de Jesus traziam uma

mensagem escatolgica de proclamao de uma nova era, o Proto-Evangelho de Tiago

15 A interpretatio uma tendncia comum dos escritores do mundo antigo em igualar os deuses

estrangeiros aos membros de um determinado panteo local. Herdoto, por exemplo, refere-se aos antigos

deuses egpcios Amon, Osris e Ptah como Zeus, Dionsio e Festo, respectivamente (SMITH,

2001). Cunhamos o termo interpretatio crist para tratar o comportamento do populus recm-converso

dos crculos gentios ao equiparar Maria a deusas gregas, romanas e orientais.

14 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

tem um carter exclusivo de piedade pessoal, apontando para o ideal de perptua

virgindade de Maria (KOSTER, 2004).

O Proto-Evangelho de Tiago foi um texto mariano muito influente nos crculos

cristos, o que se observa, inclusive, nas representaes imagticas (KEARNS, 2008).

Muitos templos, ttulos e uma iconografia clssica, dedicados anteriormente s deusas

greco-romanas e orientais foram transferidos a Maria. A iconografia, em especial, esta

representada de forma recorrente em catacumbas que tambm apresentam cenas

marianas como as imagens abaixo:

Afresco de Maria e Jesus menino ( direta), Maria e o anjo (centro) e Maria e os magos ( esquerda). Catacumba de Santa Priscila. Via Salria, Roma. Sculo III.

A devoo pessoal tem seu lcus primrio na arte sob a forma de piedade visual. Os

cristos primitivos se expressavam artisticamente a fim de refletir sua opinio com

relao a Deus ao tentar comunicar mensagens com uma funo educacional, memorial,

cultural e evangelstica.

Vale destacar que as imagens, como parte de um monumento material, so formas

fluidas de representao, na qual aspectos de uma divindade foram destrudos, alguns

mantidos e outros ainda foram preservados. Deste modo, a base da identidade est em

elementos imateriais que so compostos de uma materialidade (no caso, as imagens das

catacumbas).

Tanto o Proto-Evangelho de Tiago quanto a iconografia so importantes, pois

revelam um cristianismo que podemos considerar de fronteira, pois, apesar da

roupagem crist, ele apresenta expresses e valores hbridos, identificados com o

judasmo e, principalmente, com a cultura helenstica. 16

Muitos cristos, no ligados s

16 O culto hbrido que estava sendo formado se apresentava na fronteira. Nas palavras de Guarinello, as

fronteiras compem a ordem todas as dimenses da realidade que no so efmeras (2010, p. 120). na fronteira que observamos o jogo de negociaes e trocas. Nela, a ordem se altera ou se reproduz. O

ambiente de fronteira marcado tanto pela competio quanto pela negociao. H diversas fronteiras

cotidianas da ao social: as instituies, as crenas, as relaes sociais o conhecimento, entre outras.

Boyarin (2004) afirma que as fronteiras so impostas e construdas artificialmente. As pessoas no s

cruzam as fronteiras, mas fronteiras cruzam as pessoas. Em nosso caso, apesar de um Cristianismo

normativo zelar para que as fronteiras no sejam cruzadas, h contrabandos, a todo o momento, ao

longo dela como provimento do cotidiano. nas prticas difusas de hibridismo cultural que as fronteiras

so cruzadas. possvel notar que o culto mariano at o sculo IV encontrava-se na fronteira com um

suposto paganismo. Para que este culto sasse desta zona, foi preciso naturalizar a fronteira

empreendendo algumas negociaes e acomodaes como o Conclio de Efeso.

15 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

lideranas eclesiais, muitas vezes na fronteira entre o cristianismo e o paganismo,

inventavam histrias e faziam pinturas, expressando-se numa multiplicidade de meios

que davam vazo a demonstraes artsticas e culturais ligadas tradio e religio

greco-romanas. Assim, enquanto a literatura e a arte crist so influenciadas por

aspectos da sociedade pag, sua forma de culto tambm era modificada. E a exaltao

a Maria uma das transformaes, cujas expresses artsticas e literrias nos ajudam a

compreender a formao do cristianismo. O Proto-Evangelho de Tiago e as imagens

marianas nas catacumbas revelam que o hibridismo cultural foi um dos fatores

responsveis por forjar o culto mariano. O fato de tais ideias terem se expressado

primeiramente em textos apcrifos e na arte revela, acima de tudo, que o lcus de

nascimento desta piedade era alheio ambincia eclesistica episcopal.

Apesar de terem sido dedicados afrescos e obras literrias crists a Maria, o culto a

ela ainda no poderia ser comprovado no sculo II. Contudo, no sculo III, algumas

transformaes faro de Maria uma figura hibrida e de grande importncia para a

ekklesia.

De fato, a formao hbrida do culto mariano est imbricada ao cosmopolitismo do

Imprio Romano. Tal foi marcado por uma ampla mobilidade espacial dos seus

cidados, principalmente depois do Edito de Caracala. Esta mobilidade e

cosmopolitismo trouxeram consigo um crescimento do individualismo e um aumento

das identidades fluidas com a afirmao de identidades locais, entendendo que a

identidade cultural nunca fixa, mas sempre hbrida (HALL, 2003). No entanto, outro

processo paralelo e um tanto quanto indito, fruto em maior escala do cristianismo, mas

no desconsiderando o prprio processo de romanizao, foi a universalidade tnica.

O Imprio Romano agrupava sociedades bastante distintas em seu bojo. A grande

questo para o governo imperial romano era saber como lidar com a nascente

religiosidade crist e ainda integrar uma multido de imigrantes estrangeiros (chamados

brbaros) com valores culturais heterotpicos sob uma mesma esfera. Assim, o

cosmopolitismo trouxe uma busca mais acentuada das identidades tnicas, que agora se

identificavam com o Imprio e com a religio emergente o cristianismo. Vale ressaltar

que a identidade tnica era coletiva, pois, alm de no se manifestar isoladamente, se

supunha o reconhecimento da pertena a um grupo ou coletividade, mas tambm o

pertencimento individual, por significar a pessoa na sociedade (SEYFERTH, 2009;

POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998). No caso do cristianismo, como uma

religio de carter universalizante agremiava etnias sem distino, este trouxe consigo,

associado ao cosmopolitismo romano, uma hibridizao cultural, expressa, por

exemplo, na piedade popular com na venerao de Maria desde o sculo II, bem como

na formao do culto mariano a partir do sculo III.

16 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

AFRESCO DE MARIA E JESUS MENINO. Catacumba de Santa Priscila. Sculo III.

In: International Catacomb Society. Disponvel em: <

http://www.catacombsociety.org/> Acesso em: 24 set. 2010.

AFRESCO DE MARIA E O ANJO. Sculo III. In: International Catacomb Society.

Disponvel em: Acesso em: 24 set. 2010.

AFRESCO DE MARIA SENDO VISITADA PELOS MAGOS. Sculo III. In:

International Catacomb Society. Disponvel em: < http://www.catacombsociety.org/>

Acesso em: 24 set. 2010.

BENEDUZI, Luis Fernando. Memria, mito e identidade: visitando a imigrao

italiana pelas mos de Nanetto. IV Simpsio Nacional de Histria Cultural. Goinia,

UCG, 2008.

BBLIA. Portugus. Trad. da cole Biblique de Jerusalm. Bblia de Jerusalm revista e

ampliada. So Paulo: Paulus, 2006.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 2005.

BENKO, Stephen. The virgin goddess: studies in the pagan and Christian roots of

mariology. Leiden; New York: BRILL, 2004.

BLASI, Anthony J; TURCOTTE, Paul-Andr; DUHAIME, Jean. Handbook of early

Christianity: social science approaches. Oxford: Altamira, 2002.

CHEVITARESE, Andr. Cristianismo e Imprio Romano. In: Repensando o Imprio

Romano: perspectiva socioeconmica, poltica e cultural. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

FELDMAN, S. Alberto. Entre o Imperium e a Ekklesia: os judeus no Baixo Imprio.

Anais do XIX Encontro Regional de Histria: poder, violncia e excluso.

ANPUH/SP USP, So Paulo, 2008.

GARDNER, Jane. Being a Roman Citizen. Londres: Routledge, 2002.

GONALVES, M. T. Os Severos e a Anarquia Militar. In: SILVA, G. (Org),

MENDES, N. M. Repensando o Imprio Romano: Perspectiva Socioeconmica, poltica

e cultural. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

GUARINELO. N. O Imprio e Ns. In: Repensando o Imprio Romano: Perspectiva

Socioeconmica, poltica e cultural. Rio de Janeiro: Mauad, 2006, p. 241-266.

HALL, S. A identidade cultural na ps-modernidade. Traduo Toms Tadeu da Silva,

Guaracira Lopes Louro. 6. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

_______. Da dispora: Identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: Editora

UFMG, 2003.

HARRIS, W.V. Demography, Geography and the Sources of Roman Slaves. The

Journal of Roman Studies. Society for the Promotion of Roman Studies. v. 89, 1999, p.

62-75.

HAVERFIELD, F. The Romanization of Roman Britain. Oxford: Clarendon Press,

1912.

HERSCHEL, C. Individualism and Religion in the Early Roman Empire. The Harvard

Theological Review. Cambridge University Press, v. 2, n 2, 1909, p. 221-234.

17 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

KERESZTES, P. The Constitutio Antoniniana and the Persecutions under Caracalla.

The American Journal of Philology. The Johns Hopkins University Press, vol. 91, n. 4,

1970, p.446-459.

KEARNS, Cleo McNelly. The Virgin Mary, monotheism and sacrifice. New York:

Cambridge University Press, 2008.

KOSTER, Helmut. Ancient Christian gospels: their history and development.

Harrisburg: Continuum International Publishing Group, 2004.

MATHISEN, R. Peregrini, Barbari, and Cives Romani: Concepts of Citizenship and the

Legal Identity of Barbarians in the Later Roman Empire. The American Historical

Review. The University of Chicago Press on behalf of the American Historical

Association, 111, n. 4, 2006, p. 1011-1040.

MATTINGLY, D; HITCHNER, B. Roman Africa: An Archaeological. The Journal of

Roman. Studies. Society for the Promotion of Roman Studies, v. 85, 1995, p. 165-213.

PETIT, Paul. A Paz Romana. So Paulo: Pioneira (Edusp), 1989.

MITCHELL, Margaret M. Gentile Christianity. In. Cambridge History of Christianity.

v. 1, Nova York: Cambrigde University Press, 2008.

NOVA, Leslie Nancy Hernndez. De hija a madre: la negociacin de La identidad de

gnero em uma historia de migracin dede Per hacia Europa. Histria Oral: Revista da

Associao Brasileira de Histria Oral, v. 12, n. 1-2, jan.-dez. 2009, p. 249-283.

POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias de Etnicidade. Seguido de

Grupos tnicos e suas Fronteiras de Fredrik Barth. So Paulo: UNESP, 1998.

REGAZZONI, Susanna. Italia Argentina uma historia compartida: Syria Poletti

inmigrante italiana, escritora argentina. Dimenses - Revista de Histria da UFES, n

26, 2011.

RUETHER, Rosemary Radford. Mary: The Feminine Face of the Church. Philadelphia:

The Westminster Press, 1977.

SANZI, Ennio. Cultos orientais e magia no mundo helenstico-romano: modelos e

perspectivas metodolgicas. Fortaleza: EdUECE, 2006.

SCHEIDEL, Walter. Human Mobility in Roman Italy, I: The Free Population. The

Journal of Roman Studies. Society for the Promotion of Roman Studies. v. 94, 2004, p.

1-26.

SEYFERTH, Giralda. Memria Coletiva, identidade e colonizao: representaes da

diferena cultural no sul do Brasil. XIV Congresso Brasileiro de Sociologia. Rio de

Janeiro, UFRJ, 2009.

SILVA, G. V. A relao Estado/Igreja no Imprio Romano (sc III e IV) In:

Repensando o Imprio Romano: Perspectiva Socioeconmica, poltica e cultural. Rio de

Janeiro: Mauad, 2006, p. 241-266.

SMITH, Mark. God in Translation: Deities in Cross-Cultural Discourse in the Biblical

World. Cambridge: Eerdmans Publishing 2001.

THE PROTEVANGELIUM OF JAMES. In: ELLIOT, J.K. The Apocryphal New

Testament: a collection of Apocryphal Christian. New York: Oxford University Press,

2005.

18 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

WRIGHT, Nicholas Thomas. The Epistles of Paul to the Colossians and to Philemon:

an introduction and commentary. Michigan: Grand-Rapids, 1986.

19 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

ALEXANDRE, UMA VISO PLUTARQUIANA A RESPEITO DOS BONS

COSTUMES E DE UMA POSSVEL VERDADE EM HISTRIA

Amanda da Cunha Conrado17

Resumo: Tendo como base as vises de Plutarco a cerca do mundo e de seus

biografados, pretende-se analisar a construo da biografia Alexandre, contida em

Vidas Paralelas do mesmo autor. Sendo historiador, assim definido por Maria

Aparecida de Oliveira Silva, carrega em si todos os atributos de um discurso

historiogrfico, bem como sua objetividade e subjetividade. Ao ler a obra remete-nos

questionamentos interessantes a cerca da verdade em Histria, destacando a questo

sobre moralidade destacada por Plutarco ao retratar o rei macednico, levando-nos

ainda a crer neste olhar plutarquiano a respeito da realidade ou questionando-nos sobre

seu fazer ver atravs de sua escrita.

Palavras-chave: Alexandre, Moralidade, Histria, Verdade.

Abstract: Based on Plutarchs views about the world and on those that he biographer, is

intended to analyze the construction of the biography Alexander, contained in Parallel

Lives by the same author. As a historian, so defined by Maria Aparecida de Oliveira

Silva, carries in himself all the attributes of a historiographic discourse, as well as his

objectivity and subjectivity. By reading his book it bring us interesting questions about

the truth in History, highlighting the question of morality highlighted by Plutarch when

he describes the Macedonian king, leading us so to believe on this plutarchs look about

the reality or questioning us about his way of see through his writing.

Key-words: Alexander, Morality, History, Truth.

Durante toda a existncia do homem na Histria, este quis deixar suas marcas e

leituras de sua ou de outras pocas; Plutarco de Queroneia um deles, nascido em 46 d.

C., durante o imprio romano de Claudio, foi ensasta grego, bigrafo e historiador,

sendo essas duas ltimas, alvo de grandes discusses, que mais a frente sero

abordadas. Viajou e conheceu muitos lugares, entre eles Roma e Egito, e foi sacerdote

de Apolo, em Delfos, no ano de 95 d. C. Sua idia compreende que para alcanar a

felicidade e a paz, necessrio controlar os impulsos e as paixes. Mais moralista que

at mesmo filsofo e historiador (a moralidade um ponto chave nas suas discusses e

na apresentao de suas personagens) foi um dos ltimos representantes do helenismo18

,

durante a segunda sofstica. Esta, por sua vez, foi um movimento de filsofos gregos, no

qual pretendiam fazer ver a cultura grega, resgatando-a, no contexto do Imprio

Romano. Nasce, luz de tal contexto, a retrica grega (durante os sculos II, III e IV).

17 Graduanda do curso de Histria pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail:

[email protected] 18 Legado da cultura grega clssica difundida principalmente por Alexandre Magno, para unir e

diferenciar-se em relao a outros povos.

20 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

Plutarco ainda ocupou altos cargos pblicos em sua cidade natal e estudou

matemtica e filosofia em Atenas; participou, pois da Academia de Plato, fundada em

aproximadamente 387 a. C., em jardins localizados no subrbio de Atenas, caracterizou-

se inicialmente, pelos trabalhos desenvolvidos pelos pitagricos; considerada a

primeira escola de filosofia e sobressaa-se pelo ensinamento dialtico buscando

respostas no mbito individual atravs de constantes questionamentos; sendo muito

influenciado pelas idias de Plato, que aprendeu na Academia, sobre justia, virtude,

poltica, educao, ligando-as a moralidade tratada por aquele.

Escreveu mais de duzentos livros, sendo os mais famosos deles a coleo Vidas

Paralelas, no qual compara militares, legisladores, governantes gregos e romanos em

suas especificidades, todos personagens de destaque em sua prpria histria e

sociedade. So mais de vinte pares, como por exemplo, Slon e Valrio, Teseu e

Rmulo, Lisandro e Sila, Agesilau e Pompeu, Alexandre e Jlio Csar, Demtrio

Policete e Marco Antnio. Nestas biografias tem-se a seguinte estrutura: a biografia de

um grego, inicialmente, depois a de um romano, sucessivamente, aps a apresentao de

suas personagens, temos uma pequena comparao do escritor. Plutarco preocupa-se em

confrontar e equiparar os feitos e valores destes homens, emitindo suas prprias

concepes, como veremos mais a frente. Alm destes, escreveu sobre Filosofia,

religio, pedagogia, moral e crtica literria. Influenciou o mundo espiritual direta e

indiretamente defendendo o dualismo do bem e do mal, remetendo-nos as idias da

Academia. Faleceu em 126 d. C. na mesma regio onde nasceu que atualmente

corresponde a regio do Kaprena, na Becia.

Plutarco tornou-se cada vez mais um autor grego sujeito de muitas pesquisas e

inmeras possibilidades. No tocante as suas obras, so elencadas, como as tratadas pela

historiadora Maria Aparecida de Oliveira Silva 19

no seu livro Plutarco Historiador 20

,

onde mostra que, ao longo do tempo, pesquisadores colocam em xeque a posio de

Plutarco acerca da Histria, devido a suas obras e ao que ele disse e viu. Seria ele um

historiador, ou um bigrafo? Ou ainda um mero autor importante para outras cincias

(associado filosofia, pedagogia, religio, literatura, retrica)? Principalmente

com o Iluminismo, a obra de Plutarco passa a ser mais vista como obra literria,

ahistrica, at mesmo citando Wardman que avalia a vida de Alexandre, retratada pelo

autor grego, de acordo com suas virtudes.

A partir disso, pode-se questionar o que seria a verdade para Plutarco, j que

notrio, pelo menos no retrato sobre Alexandre, em que h somente a exaltao do

personagem remetendo-nos justamente a questo da moralidade 21

, seria a inteno do

fazer ver aquilo que somente interessa a ele, condicionando nosso olhar aos olhos de

Plutarco; h nele a necessidade de persuadir seu leitor a cerca do que escreve, a fim de

19 Doutora pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas USP. 20 SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Plutarco Historiador: Anlises das Biografias Espartanas. So

Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2006. 21 palavra que vem do grego thica, a qual possui dois sentidos: o de interioridade do ato humano e do

mago do agir, para a inteno.

21 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

que seus registros sejam verdade. Baseando-se nisso, Pelling ainda refora a idia de

que Plutarco apenas bigrafo, afirmando estar alheio a veracidade de seus

registros.22

Trata-se, pois de - deformando a realidade - caractersticas muito mais

filosficas e literrias, com o objetivo de transmitir a moral para as geraes futuras.

Mais a frente, contudo, em seu texto, a historiadora Maria Aparecida de Oliveira

Silva apresenta fatores que provam o contrrio. Segundo a autora, Plutarco deve sim ser

considerado um historiador. nesta afirmao que os estudiosos do sculo XX se

detm, haja vista que por trs da biografia, h uma histria do contexto, da cidade-

estado em que est inserido o seu personagem, mais que isso, h um mtodo a ser

empreendido e desenvolvido. Vem-se ento historiadores como Hani propor uma nova

viso sobre a obra e a narrativa de Plutarco, afirmando que sua escrita uma tentativa

de manter viva a religiosidade grega. Outros, como Delvaux, tm o autor grego com um

historiador regional, tendo seus escritos limitados a um cerco espao, geralmente, como

a autor mesmo prope um local do nascimento. Para Maria Aparecida de Oliveira Silva,

na prpria obra de Alexandre, Plutarco deixa clara a diferena entre biografia e Histria,

sendo por ele considerado Histria os grandes fatos, como as guerras vividas por

Alexandre. Sua definio sobre Histria assemelha-se, pois, ao pensamento dos antigos

historiadores gregos. O principal aspecto do gnero histrico sublinhado por Plutarco

foi a importncia dada busca da verdade dos fatos narrados. (SILVA, 2006, p. 57) J

o conceito de biografia, temos em Plutarco a idia de procedimentos metodolgicos de

busca, h pois uma coleta, seleo e registro das informaes.

E mais uma vez esbarramos na questo do que verdade em Histria, e mais, do que

retratar a verdade para Plutarco. Remete-nos a questo da verdade na Escola

Metdica, do sculo XIX, que nos fala de uma verdade absoluta, sem subjetividades,

repetindo os fatos como eles so exatamente, fatos objetivamente corretos. Ou ento nos

referimos a Nietzsche e sua verdade construda poltica e socialmente, uma verdade que

nega que o que verdadeiro possa ser um elemento da linguagem, uma verdade que

contesta noes de verdadeiro e falso. Ou ainda Foucault, com a sua verdade

relacionada s relaes de poder, um conceito que acaba por produzir, conduzir e

reproduzir efeitos novamente ligados ao poder. Sabemos que inserido em sua poca,

Plutarco, consoante a Tucdides e Herdoto, destaca que o saber histrico

exclusivamente o ver.

Proponho-me ento, atravs da leitura da fonte, Vidas Paralelas, referente

biografia de Alexandre, tratar da questo da moralidade destacada por Plutarco,

retratando como este relatou a vida do rei macednico, levantando questionamentos a

respeito do olhar deste sobre a vida dos seus biografados e, do que realmente ele nos

queria fazer ver atravs de sua escrita.

VIDAS PARALELAS, ALEXANDRE E O OLHAR DE PLUTARCO

22 SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Plutarco Historiador: Anlises das Biografias Espartanas. So

Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2006. p. 41.

22 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

Vidas Paralelas uma compilao de biografias de homens ilustres da Grcia Antiga

e de Roma. Alm dos vinte e trs pares feitos por Plutarco, ainda h quatro biografias

sem pares. Esta obra muito importante, no s pela informao, mas tambm pelos

dados da poca retratados. Sendo esta a principal fonte que nos deu a viso atual de

Alexandre, h em Plutarco a inteno de revalorizao de uma cultura grega, no s

atravs da vida deste rei, como tambm tendo como base o que o autor grego declarou

dele.

Antes de destacar pontos interessantes da obra de Plutarco sobre Alexandre,

importante saber minimamente quem ele foi. Alexandre nasceu em 356 a. C. e faleceu

em 323 a. C. Foi prncipe e rei da Macednia (com apenas vinte anos) alm de um

grande conquistador da antiguidade, principalmente quando se tratava daquilo que os

helnicos entendiam como mundo, tendo Aristteles como seu preceptor, foi tido por

muitos, como algum de personalidade instvel. Mesmo tendo influenciado todo o

mundo ocidental.

Plutarco o definiu como homem de virtudes, um ser invencvel e de carter reto,

aponta:

[...] sua temperana nos prazeres fez-se notar desde os primeiros

tempos da mocidade. Impetuoso e ardente em tudo o mais, era pouco

sensvel a volpia, qual s se entregava com moderao. O amor

glria, ao contrrio, j se revelava nele, com uma fora e uma

elevao de sentimentos bastante superiores sua idade. No amava,

porm, uma glria qualquer [...] (PLUTARCO, p.29).

Trata ento um Alexandre que cheio de retas intenes era ainda corajoso para

enfrentar e conquistar o mundo que o rodeava, e mais o esperava. V-se neste trecho

tambm caractersticas de Plutarco de que preciso controlar seus impulsos para o

alcance da felicidade, anteriormente abordada, o comedimento um ponto bastante

abordado pelo autor em sua obra, tendo em vista que a todo momento remete-se a este

ponto. Um homem de virtudes para Plutarco refere-se a algum que no se deixa levar

pelos seus desejos e concupiscncias. Outro ponto interessante de se notar a fora e o

carter difcil de governar de Alexandre, tratado por Plutarco. Tem-se ai a questo da

educao dada ao rei macednico, que se deixava conduzir facilmente pela razo. Foi

educado, pois por Aristteles, o qual no o amava menos dizia que a seu pai,

porque devia a este apenas a vida, ao passo que a Aristteles devia a possibilidade de

uma vida superior,23

destaca Plutarco. Segundo a fonte, Alexandre estudou msica,

artes liberais, filosofia, poltica, medicina, moral, cincias secretas e literatura, seria,

pois um homem completo e cheio de atributos.

Outro ponto que merece destaque :

No momento em que iam para a mesa, foi-lhe anunciado que, entre os

cativos, estavam conduzindo a me e a esposa de Dario, com suas

23 PLUTARCO. Alexandre e Csar. In: Hlio Veja [tradutor]. So Paulo: Ediouro.[19--?] p.32.

23 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

filhas que, ao verem o arco e o carro de Dario, prorromperam em altas

lamentaes desnudando os seios, na crena de que Dario tivesse

perecido. Alexandre, mais sensvel desventura delas que sua

prpria felicidade, depois de alguns momentos de silncio, enviou

Leonato para comunicar-lhes que Dario no estava morto, e que elas

nada tinham que temer da parte de Alexandre; que este no fazia

guerra contra Dario seno pelo imprio, e que nada lhes faltaria das

honras com as quais estavam acostumadas enquanto Dario reinava.

[...] Mas o benefcio mais belo e mais real que podiam receber em seu

cativeiro mulheres de corao nobre que sempre viveram castamente,

foi o de nunca terem ouvido uma s palavra desonesta, nem terem tido

ocasio de temer ou mesmo suspeitar algo da parte de Alexandre, que

soasse desrespeito a seu pudor. Encerradas num santurio virginal,

protegido por sentimentos de piedade, viveram, no meio do

acampamento inimigo, uma vida de completo isolamento e longe dos

olhares da multido. Todavia, a esposa de Dario era, pelo que se

assevera, a mais bela das rainhas que existiram no mundo, assim como

o prprio Dario era o mais belo e bem feito de todos os homens; e

suas filhas eram parecidas com os pais. 24

Tratando mais uma vez da questo que envolve o carter do rei e de seu bom

corao, remetendo-nos especificamente a moralidade (encontrada em todos os trechos

do autor, exaltando as virtudes de Alexandre), um questionamento pode ser feito: ser

mesmo esta a verdade sobre o conquistador do mundo ocidental? Ou apenas uma face

da qual Plutarco quer nos fazer acreditar e enxergar? At onde esta verdade retrata a

realidade de uma poca ou apenas de um pensamento? Ou o autor nos condiciona a

sempre ver a moral e a tica para concordarmos com ele nesta discusso?

A questo abordada por Hani a respeito da tentativa de resgate de uma religiosidade

grega presente sim atravs dos aspectos religiosos, quando Plutarco discorre a respeito

das consultas aos orculos, ou quando descreve o fato de Alexandre ter sido chamado

por Jpiter de filho, ou pelo menos quer acreditar ter sido chamado assim. H ento uma

forte presena da religiosidade junto ao contexto e, por conseqncia, ao personagem,

havendo muito mais, com isso, o envolvimento das camadas populares. Outra questo a

ser destacada nesta anlise refere-se presena de fontes orais, as quais so usadas por

Plutarco para a construo de sua histria, sua obra que base nos fatos em que ele

presenciou, ou afirma ter presenciado, e aos relatos de pessoas que teve contato para

estruturar seus estudos a respeito no s do rei macednico, mas de seus biografados.

Merece destaque ainda a relao entre Alexandre e os persas em vrios trechos da

obra, no qual notrio o reconhecimento destes povos quanto ao poder e carter do

conquistador macednico, suas virtudes e de como trata seus inimigos de guerra e de

conquista, como vemos no trecho:

24 Idem. p. 44.

24 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

Dario voltou, ento, para junto de seus amigos e, com as mos

levantadas para o cu, dirigiu aos deuses esta prece. Deuses que

presidis ao nascimento dos homens e ao destino dos imprios,

concedei-me a graa de transferir a meus sucessores a grandeza dos

Persas ressurgida aps a queda e devolvida ao esplendor em que

estava quando subi ao trono, a fim de que eu possa, vencedor de meus

inimigos, reconhecer os benefcios com os quais me cumulou

Alexandre em minha desgraa, com seu comportamento para com os

seres que eram para mim os mais queridos! Mas, se estivermos no

termo fixado pelo destino para a realizao das vinganas divinas, se o

imprio dos Persas chegou a seu fim e se devemos adaptar-nos

vicissitude dos acontecimentos humanos, no permitais que outro

seno Alexandre se sente no trono de Ciro. 25

Mostra tambm, Alexandre sendo aos poucos absorvido pela cultura persa, os

brbaros, assim chamados por Plutarco (abrindo a outra discusso aqui no

desenvolvida, j que no o objetivo desta comunicao, a respeito da viso gregos e

brbaros, identidade e alteridade no mundo antigo, como trata Hartog em seu livro O

espelho de Herdoto: ensaio sobre a representao do outro26

), chega inclusive a casar-

se com uma persa - interessante destacar que h uma mistura das culturas atravs do

rei macednico, mas tambm sua difuso da cultura grega ao longo de todo o seu

territrio conquistado, um que diretamente influenciado pelo outro, o grego que deixa

traos de seu legado clssico aos persas e estes por sua vez tratam de adentrar nessa

cultura grega - , como pode ser visto neste trecho extrado da fonte:

Ento Alexandre aproximou-se ainda mais dos costumes dos brbaros,

que ele tambm se esforou em modificar mediante a introduo de

hbitos macednios, com a ideia de que essa mistura e essa

comunicao recproca de costumes dos dois povos, cimentando sua

mtua benevolncia, contribuiria mais do que a fora para solidificar

seu poder, quando se afastasse dos brbaros. Por isso, escolheu entre

eles trinta mil crianas e mandou que lhes ensinassem o grego e as

instrussem nos exerccios militares macednios. Encarregou vrios

professores de dirigir a sua educao. Quanto ao casamento com

Roxana, s o amor foi seu mvel. Conheceu-a em um festim, em casa

de Cortano e apaixonou-se por sua beleza e seus encantos. Essa

ligao pareceu bastante conveniente ao estado presente dos negcios:

inspirou aos brbaros muito maior confiana em Alexandre; passaram

a estim-lo, vendo-o seguir to rigorosa continncia que s se

25 Idem. p. 53. 26 HARTOG, Franois. O Espelho de Herdoto: ensaio sobre a representao do outro. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 1999.

25 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

aproximou da nica mulher pela qual se apaixonara, em virtude de

legtimo casamento. 27

A historiadora Maria Aparecida de Oliveira Silva, a fim de provar a idia de que

Plutarco historiador e de que seus fatos narrados so verdades, cita ainda a

importncia que ele d a organizao cronolgica de seus escritos, havendo uma

preocupao com a veracidade dos relatos e com a cronologia temporal. O outro ponto

relatado a insero que Plutarco faz aos seus personagens, no diferente com

Alexandre, num contexto social, concordando com a historicidade necessria a sua

escrita, transformando-a, como diz aquela, em Histria.

Remontando, uma viso plutarquiana vemos que ao mesmo tempo que o autor tenta

mostrar uma face idealizadora de Alexandre, isto , o seu carter comedido, ressalta que

em alguns momentos ele inverte esse comportamento e tem atitudes consideradas

desregradas, apesar de se arrepender depois. Como vemos no trecho abaixo:

talo, tio de Clepatra, tendo bebido demais durante o festim,

convidava os Macednios a rogar aos deuses o nascimento de um

herdeiro legtimo da realeza, filha de Clepatra e de Filipe. E eu,

ento, oh celerado gritou Alexandre, enfurecido pelo ultraje seria

para ti apenas um bastardo? E, assim dizendo, atirou-lhe a taa na

cabea [...] Depois desse insulto, feito sob a ao do vinho, levou sua

me Olimpada para o Egito e se retirou para a Ilria [...] Diante dessa

censura, Filipe caiu em si e enviou Demarato a Alexandre, que, em

virtude das razes do amigo, voltou para a casa paterna28

.

Remete-nos a historiadora Snia Regina Rebel de Arajo, a falta de um

comportamento regrado vai de encontro a Plutarco. Nesse contexto, Alexandre

construdo e desenvolvido em sua narrativa.

No quero, no entanto, voltar novamente s questes levantadas sobre a opinio de

verdade em Histria, afinal surgem muitas lacunas e perguntas as quais, requer um

maior aprofundamento, j que o trabalho discorrido apenas remetido a leituras de

pequenos trechos interessantes da obra. O moralismo de Plutarco tambm visto, mas

sabendo que no poderia ser diferente, devido ao contexto em que se encontra nosso

autor e toda a formao recebida por ele na Academia de Atenas.

Ao longo deste artigo, pretendo demonstrar o valor dos escritos de Plutarco nos

estudos sobre a vida da sociedade grega e romana durante o Imprio Romano. Sua

articulao entre as personagens seja Alexandre ou qualquer outro, remete-nos a um

importante quadro para o vislumbre de toda uma poca, seja ela verdade objetivamente

ou subjetivamente, fruto de um tempo ou de um pensamento idealizado e como so

vistos os bons costumes, a moralidade e as virtudes.

27 Idem. p. 66-67. 28 Idem. p. 33-34.

26 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

ARAJO, Snia Renina Rebel de. Plutarco de Queroneia: entre a tica e a histria. In:

ARAJO, Snia Renina Rebel de [org.]; JOLY, Fbio Duarte [org.]; ROSA, Claudia

Beltro da. [org]. Intelectuais, poder e poltica na Roma antiga. Rio de Janeiro: Nau:

FAPERJ, 2010.

DOSSE, Franois. O Historiador: um mestre de verdade. In: A Histria, Bauru,

EDUSC, 2003

HARTOG, Franois. O Espelho de Herdoto: ensaio sobre a representao do outro.

Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

MAGALHES, Luiz Otvio de. Plutarco: historiografia e biografia na cultura greco-

romana. Revista Histria da historiografia, Ouro Preto, n.03, p.181-187, set. 2009.

NETSABER BIOGRAFIAS. Biografia de Plutarco de Queronia. Disponvel em:

Acesso em 06

de dezembro de 2010, s 16h20.

PLUTARCO. Alexandre e Csar. In: Hlio Veja [tradutor]. So Paulo: Ediouro.[19--?]

p.32.

REIS, Jos Carlos. Histria e teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e

verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Plutarco Historiador: Anlises das Biografias

Espartanas. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2006.

http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_2937.html

27 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

ESTOICISMO E MAGIA EM MEDIA, DE SNECA

Erick Messias Costa Otto Gomes29

Suiany Bueno Silva30

Resumo: Sneca foi um dos principais divulgadores da filosofia estica na Roma

imperial do primeiro sculo. O autor escreveu quatorze obras filosficas, uma stira

menipeia e nove tragdias. Apesar de se inspirarem nos autores gregos, as tragdias

senequianas apresentam um trao peculiar, isto , encerram em si os preceitos esticos

defendidos pelo autor. A tragdia Media um exempla das consequncias advindas da

falta do cuidado de si, ou seja, o furor sentido por Media faz com que a protagonista

ceda ao impulso de usar a magia com fins malficos, o que denota sua falta de domnio

da razo, ato contrrio tica estica. Nesse sentido, observamos que a tragdia

senequiana assume uma funo pedaggica, na medida em que emite uma mensagem

estica aos seus ouvintes.

Palavras-chave: Sneca; estoicismo; Media; magia; pedagogia.

Abstract: Seneca was one of the most important spreaders of Stoic philosophy in

Imperial Rome of the first century. The author wrote fourteen philosophical works, one

Menippean satire and nine tragedies. Though inspired in Greek authors, Senecas

tragedies have a peculiar trace, that is, they show the Stoic precepts defended by the

author. The tragedy Medea is one exemplum of the consequences caused by the lack of

attention with oneself, in other words, the furor felt by Medea leads the protagonist to

give in to the impulse of using magic with evil purposes, what shows her lack of

mastership over reason, act which opposes Stoic ethics. In this sense, we notice that

Senecas tragedies acquire a pedagogical function, as they send a Stoic message to their

listeners.

Keywords: Seneca; Stoicism; Medea; magic; pedagogy.

O objetivo do artigo pauta-se em analisar a tragdia Media atravs de uma leitura

dos princpios estoicos e desta forma pensar o teatro senequiano como detentor de uma

funo didtica, ou seja, Sneca escreveu a tragdia com intuito de transmitir uma

mensagem estoica, sobretudo referente moral. O artigo divide-se em trs momentos: o

primeiro diz respeito a uma discusso sobre a filosofia estica, para a qual, segundo a

interpretao de Cardoso, a virtude humana seria a identificao com a natureza, a

integrao perfeita no mundo natural. O equilbrio, necessrio manuteno da ordem,

29 Aluno de graduao em Histria da Universidade Federal de Gois (UFG). Participa do Programa

Institucional de Bolsa de Iniciao Cientfica PIBIC , financiado pelo CNPq. Pesquisa sob orientao

da Profa. Dra. Luciane Munhoz de Omena. E-mail: [email protected] 30 Aluna de graduao em Histria da Universidade Federal de Gois (UFG). Participa do Programa

Institucional de Voluntrio de Iniciao Cientfica PIVIC , sob orientao da Profa. Dra. Luciane

Munhoz de Omena. E-mail: [email protected]

mailto:[email protected]:[email protected]

28 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

consistiria no controle do irracional, dos impulsos e das paixes (CARDOSO, 1999:

130). A partir dessas questes nos apoiamos na proposta de Florence Dupont, acerca da

conjugao dolor-furor-nefas, para analisarmos os comportamentos de Media. No

terceiro momento traamos uma reflexo a respeito da magia praticada pela

protagonista, alm de percebermos o porqu de essa prtica ser contrria aos preceitos

estoicos defendidos por Sneca. Por fim, desenvolveremos uma percepo da tragdia

senequiana como dotada de um carter pedaggico por referimo-nos s peas de Sneca

como um exempla que ilustram as conseqncias do descontrole dos sentimentos e das

paixes. E as peas se prestam realmente a esse tipo de exemplificao (CARDOSO,

1999: 130).

A filosofia proposta por Sneca pretendia ultrapassar os limites da eloquncia, para

s assim alcanar a prtica da uirtus: o homem deveria retirar os preceitos da filosofia e

ocupar-se de temas vlidos, para enfrentar as vicissitudes e combater os vcios, esse era

o caminho para atingir a felicidade, pois feliz era aquele quem confia razo a gerncia

de toda a vida (OMENA, 2009: 44). Agir de acordo com a razo e em conformidade

com a natureza, isto , aceitar a ordem dos acontecimentos que expressam a vontade dos

deuses, era um princpio fundamental da filosofia estoica, a qual se apresentava como

um sistema integrado, mas dividido, por questes didticas, em Lgica, Fsica e tica.

A Lgica estoica determina a existncia de uma lei que rege a vida humana, haja

vista que o racionalismo estoico estabelece implicaes de relaes temporais, alm do

fato de que so estas relaes que definem a sabedoria. Para a escola da stoa, o tempo

no apenas a demonstrao da sabedoria divina, mas tambm a expresso do dinamismo

da vida universal e de sua harmonia. A sabedoria , dessa forma, submisso ao tempo,

vida, ao mundo, aos deuses, e se apia sobre o conhecimento da necessidade (BRUN,

1962: 21). Nesse sentido, a sabedoria implica a aceitao, fundada na razo, do

desenvolvimento dos acontecimentos, o que ocorre com a ajuda da dialtica, a qual

ensina as implicaes entre os acontecimentos, ou seja, todos os fatos tm uma razo

de ser, devido interdependncia entre o fato que o antecede com o que o segue

(GONALVES, 1996: 48). Assim, a Lgica pressupe uma teoria da simpatia universal

segundo a qual todos os indivduos se encontram em uma mtua interao, mostra o

modo como os acontecimentos implicam-se mutuamente, alm de uma teoria do destino

que justifica os laos temporais de casualidade (BRUN, 1962: 26).

A Fsica ensina que as coisas e os seres esto ligados uns aos outros pela vontade dos

deuses. O mundo estoico um sistema divino, isto , o mundo um ser vivo animado,

racional e inteligente, no qual todas as partes so distribudas divinamente. Deste modo,

quando os filsofos da stoa falam acerca da divinizao da natureza, seu objetivo

oferecer ao homem a possibilidade de dar a sua vida uma significao ordenada. A

Fsica estoica tem a preocupao de nos fazer representar, pela imaginao, um mundo

que dominado pela razo: no se encontra neste mundo nem a irracionalidade nem a

desordem.

O mundo composto de indivduos entre os quais no se encontram seres idnticos,

rigorosamente semelhantes; cada um possui uma qualidade prpria. A partir de tal ponto

29 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

que os estoicos defendem a individualidade como uma noo fundamental e

constitutiva do ser, na medida em que todo individuo um corpo que se define por suas

prprias qualidades e tenses interiores. O mundo estoico essencialmente um universo

de corpos que se acham em uma mutua interao; o universo , pois, uno e contnuo.

Nesse sentido, o homem pode e deve formar uma unidade com o universo em que se

encontra, respeitando o destino e seguindo as vontades divinas, porque a razo humana

nada mais que parte do esprito divino envolvido no corpo humano.

Diante do exposto acima podemos compreender o significado de destino para o

estoicismo. Para a filosofia do Prtico, destino significa uma realidade natural, tica e

teolgica que se inscreve na estrutura do mundo, na vida que anima o universo e nos

seres (BRUN, 1962: 33). Dito de outro modo, o destino no o encadeamento das

causas e dos efeitos, mas sim a causa nica, uma realidade natural que se traduz em um

poder que anima a simpatia universal, atravs da qual todas as coisas e seres encontram-

se em uma relao recproca e equilibrada. O destino se refere a uma ordem natural que

jamais pode ser rompida, tudo o que acontece est de acordo com a natureza universal,

tudo transcorre numa sequencia implacvel, no havendo, pois, acaso (ULLMANN,

2008: 9).

A leitura do destino feita pelos estoicos estabelece de imediato um problema: o

homem pode ser livre? Como conciliar a liberdade humana com o destino inexorvel

imposto pela vontade divina? A questo respondida pelos filsofos da stoa da seguinte

forma: em primeiro lugar preciso reconhecer a existncia da fora do destino em todas

as coisas e, a partir disso, o homem pode e deve viver com obedincia e aceitao,

submetendo-se quilo que lhe preparado pelas divindades. O homem deve ter

sabedoria, visto que somente atravs desta e guiando-se pela razo, o homem possui a

faculdade de apreciar o tempo e submeter-se aos acontecimentos, pois o tempo

representa a vontade divina. Dessa forma, somente o sbio livre e feliz: aceita com

sabedoria o que o destino lhe ofereceu. De modo sucinto, se o homem no quer

obedecer, ser forado a fazer o que o destino lhe preparou (ULLMANN, 2008: 11).

Em resumo, a Moral estoica ensina as regras de conduta do sbio, se direciona aos

indivduos em crescimento. Os seres vivos podem distinguir, desde que nascem, o que

conforme com a natureza e o que lhe contrrio, ou seja, as primeiras inclinaes

(instinto de conservao, sade, bem estar e tudo a que isso pode servir) so a marca da

imanncia da natureza em todos os seres, a expresso da simpatia universal e o signo da

harmonia das partes com o todo (BRUN, 1962: 45). Dessa forma, viver de acordo com

as primeiras tendncias viver de modo perfeitamente racional. O estoicismo afirma

que o bem o til, sendo este ltimo, segundo Jean Brun (1962: 46), tudo o que se

orienta no sentido da vida, no sentido do destino, da vontade dos deuses.

Bem e virtude so, na filosofia estoica, inseparveis, pois a virtude a presena do

bem em uma pessoa, o viver de acordo com a natureza. A virtude no suscetvel de

progresso, una, pois quem tem uma virtude tem todas: ela tem um fim em si mesma,

no depende de algo exterior, apenas da conduta do homem, completamente interna e

de acordo com si.

30 Altheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011

As paixes turvam a alma e impedem a virtude e a felicidade, haja vista que se

opem razo e so contrrias natureza. Por um lado, elas tm uma origem interna ao

homem, por outro, surgem na medida em que o meio social corrompe a criana, fazendo

com que suas inclinaes primitivas se transformem em paixes. As paixes so

enfermidades da alma, as quais desviam o homem de uma conduta reta. Os estoicos

insistiram no fato de que as paixes dependem de ns, nascem do juzo e das opinies

que temos das coisas. Por exemplo, quando algum te entristece ou te irrita, sabe que

no ele que o faz, mas tua opinio (BRUN, 1962: 50). Por isso o homem tem que se

esforar para no se deixar dominar pela imaginao, deve-se rechaar a opinio para se

libertar das paixes, e isso se faz atravs de uma meditao preventiva de tais juzos.

Tal conduta s possvel se o homem fizer uso c