sobre cancão, sobre poesia

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1 NOTA DO ORGANIZADOR sobre Cancão, sobre Poesia “O cultivo da poesia jamais deve ser tão desejável quanto em períodos em que, em virtude de um excesso do princípio egoístico e calculista, a acumulação dos materiais da vida exterior excede a capacidade de incorporá-los às leis internas da natureza humana” (Shelley, Uma Defesa da Poesia) “O que há de melhor em nós é talvez legado de sentimentos de outros tempos, os quais já não alcançamos por via direta; o sol já se pôs, mas o céu de nossa vida ainda arde e se ilumina com ele, embora não mais o vejamos” (Nietzsche, Humano, Demasiado Humano – um livro para espíritos livres, Aforismo 223) Essa é uma tentativa de compilação da obra do Poeta João Batista de Siqueira (Cancão), nascido no Sítio Queimadas, pequena mesopotâmia de São José do Egito, município da microrregião pernambucana do Vale do Pajeú. Reuniu-se, neste volume, os poemas publicados em seus livros Musa Sertaneja (1967), Flores do Pajeú (1969) e Meu Lugarejo (1979) e aqueles (vários deles inéditos) que constam de vetustos manuscritos e registros fonográficos, por largo tempo entesourados e garimpados nas vigiadas gavetas de (desconfiados) amigos e admiradores. Amadrinha esta empreitada, unicamente, a grata satisfação de um anseio amanhecido em quadra mui recuada, mas somente há pouco amadurado, na escutação de alguns de seus alumiosos cânticos nas lancinantes declamações de Zeto, outro nobilíssimo bardo de saudosa memória. Foi quando, ouvendo A Casa do Ébrio e Sonho de Sabiá, arrebatado por seu impressionismo imagético, que me arroguei a incumbência de não deixar perecer no limbo do ostracismo quem se alçou às vertiginosas culminâncias da Arte de Homero e de Arquíloco. Entretanto, se o cumprimento desta demanda significa uma espécie de prestação de contas sentimental com o poeta, é certo que exprime, também, a superação de desmedidos obstáculos. Destes, destaca-se a inglória peleja de definição do texto que viria a figurar no ‘corpo’ do livro. Isto porque numerosos poemas foram republicados (de se ver, p. ex., que, do livro Musa Sertaneja, apenas os poemas Saudades da Minha Terra e Ano Novo não foram reproduzidos nas demais obras) e o que deveria constituir um aspecto facilitador do trabalho de organização terminou, isto sim, por torná-lo extremamente árduo, uma vez que do necessário cotejo realizado entre as publicações – e, ademais, entre estas e os referidos manuscritos e registros fonográficos –, verificou-se a existência de diversas e significativas variações textuais, indicativas da frequente refundição a que Cancão expunha suas composições e, portanto, de seu incessante labor poético e da salutar modéstia e nobre humildade que o notabilizaram. O espinhoso dilema se punha, todavia: como escolher, sem receios, entre os versos “num lago oculto e sombrio” e “num lago vasto e sombrio”, do poema Manhã de Chuva, como publicado, respectivamente, nos livros Meu Lugarejo e Musa Sertaneja? Ou

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Essa é uma tentativa de compilação da obra do Poeta João Batista deSiqueira (Cancão), nascido no Sítio Queimadas, pequena mesopotâmia de São José doEgito, município da microrregião pernambucana do Vale do Pajeú. Reuniu-se, neste volume,os poemas publicados em seus livros Musa Sertaneja (1967), Flores do Pajeú (1969) eMeu Lugarejo (1979) e aqueles (vários deles inéditos) que constam de vetustosmanuscritos e registros fonográficos, por largo tempo entesourados e garimpados nasvigiadas gavetas de (desconfiados) amigos e admiradores.

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    NOTA DO ORGANIZADOR sobre Canco, sobre Poesia

    O cultivo da poesia jamais deve ser to desejvel quanto em perodos em que, em virtude de um excesso do princpio egostico e calculista, a acumulao dos materiais da vida exterior excede a capacidade de incorpor-los s leis internas da natureza humana

    (Shelley, Uma Defesa da Poesia)

    O que h de melhor em ns talvez legado de sentimentos de outros tempos, os quais j no alcanamos por via direta; o sol j se ps, mas o cu de nossa vida ainda arde e se ilumina com ele, embora no mais o vejamos

    (Nietzsche, Humano, Demasiado Humano um livro para espritos livres, Aforismo 223)

    Essa uma tentativa de compilao da obra do Poeta Joo Batista de

    Siqueira (Canco), nascido no Stio Queimadas, pequena mesopotmia de So Jos do Egito, municpio da microrregio pernambucana do Vale do Paje. Reuniu-se, neste volume, os poemas publicados em seus livros Musa Sertaneja (1967), Flores do Paje (1969) e Meu Lugarejo (1979) e aqueles (vrios deles inditos) que constam de vetustos manuscritos e registros fonogrficos, por largo tempo entesourados e garimpados nas vigiadas gavetas de (desconfiados) amigos e admiradores.

    Amadrinha esta empreitada, unicamente, a grata satisfao de um anseio amanhecido em quadra mui recuada, mas somente h pouco amadurado, na escutao de alguns de seus alumiosos cnticos nas lancinantes declamaes de Zeto, outro nobilssimo bardo de saudosa memria. Foi quando, ouvendo A Casa do brio e Sonho de Sabi, arrebatado por seu impressionismo imagtico, que me arroguei a incumbncia de no deixar perecer no limbo do ostracismo quem se alou s vertiginosas culminncias da Arte de Homero e de Arquloco.

    Entretanto, se o cumprimento desta demanda significa uma espcie de prestao de contas sentimental com o poeta, certo que exprime, tambm, a superao de desmedidos obstculos. Destes, destaca-se a inglria peleja de definio do texto que viria a figurar no corpo do livro. Isto porque numerosos poemas foram republicados (de se ver, p. ex., que, do livro Musa Sertaneja, apenas os poemas Saudades da Minha Terra e Ano Novo no foram reproduzidos nas demais obras) e o que deveria constituir um aspecto facilitador do trabalho de organizao terminou, isto sim, por torn-lo extremamente rduo, uma vez que do necessrio cotejo realizado entre as publicaes e, ademais, entre estas e os referidos manuscritos e registros fonogrficos , verificou-se a existncia de diversas e significativas variaes textuais, indicativas da frequente refundio a que Canco expunha suas composies e, portanto, de seu incessante labor potico e da salutar modstia e nobre humildade que o notabilizaram.

    O espinhoso dilema se punha, todavia: como escolher, sem receios, entre os versos num lago oculto e sombrio e num lago vasto e sombrio, do poema Manh de Chuva, como publicado, respectivamente, nos livros Meu Lugarejo e Musa Sertaneja? Ou

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    entre os versos belas roseiras nevadas / diariamente abanadas / das asas do beija-flor e belas roseiras nevadas / diariamente abanadas / das brisas do sol-se-pr, do poema Meu Lugarejo, assim editado nos livros Flores do Paje e Meu Lugarejo?

    Assim sendo, e tendo em mira que tais reformas constituem usana consagrada na arte literria1, para o cumprimento desta penosa tarefa recorreu-se a critrios (no seqenciais e no excludentes entre si) como coerncia com o restante da composio, recentidade da publicao e carter esttico das verses, privilegiando-se, no entanto, quando existentes, aquelas que constam de registros pessoais do autor. A ttulo de exemplo, o que ocorreu com o 3 verso da seguinte estrofe:

    Vestal linda dos templos de Diana Parnasiana de sublime inspirao Rainha amada das fontes de Castlia Dourado cisne do Pas do Corao (Teus Vinte Anos e Tua Beleza)

    No livro Meu Lugarejo, onde foi publicada, consta Rainha amada das fontes de cristal, sendo que a verso acima transcrita consta de manuscrito do autor. Ora, conquanto semelhantes na grafia (e por isto admissvel o equvoco editorial), os vocbulos finais possuem significados bastante distintos, de modo que a substituio efetuada terminou por represtigiar a composio, alusiva, toda ela, arte potica e mitologia grega: segundo esta, Castlia era uma ninfa que, fugindo das perseguies de Apolo (deus da poesia e da msica), foi por este transformada em fonte, a fonte da inspirao potica, que nasce no Monte Parnaso (morada daquele deus e das musas inspiradoras), donde deriva o termo parnasiana (e a denominao do Parnasianismo, importante escola literria), que, assim como o vocbulo vestal (sacerdotisa de Vesta, deusa do fogo), possui, no sentido do texto, o significado de moa pura e ingnua2.

    Evidentemente, tais precaues no se mostraram suficientes para derribar as

    dificuldades deste processo seletivo, dado que se trata de variantes igualmente sublimes e legtimas (sobretudo porque supostamente submetidas reviso do poeta, que teve 1 A exemplo de Ariosto, que concebeu nada menos que 56 verses apenas do primeiro verso de seu

    poema Orlando Furioso, bem como de Fagundes Varela, que modificou e republicou pelo menos 8 poemas de seus Cantos Meridionais, e de Castro Alves, que refundiu toda a composio Horas de Martrio e a republicou sob o ttulo Longe de Ti, conforme noticia Frederico Ramos, in Grandes Poetas Romnticos do Brasil (Editora LEP, 1953, p. 733).

    2 Cfr. Mrio da Gama Kury, Dicionrio de Mitologia Grega e Romana (Jorge Zahar, 2003). Assim canta o coro da tragdia grega As Fencias, de Eurpides (versos 304/319):

    Iguais s oferendas feitas de ouro, seremos dedicadas a Apolo; as guas sempre puras da Castlia esperam-nos, pois nelas banharemos a servio do deus a opulncia de nossa cabeleira virginal. Penhascos do Parnaso, cujos cumes parecem gmeos e resplandecem luzentes como o fogo, nas alturas onde Dioniso vai celebrar suas orgias bquicas, e vinhas de cujos bagos saem todos os dias o suco inspirador, e antro divino do clebre drago, mirante timo frequentado somente pelos deuses, e monte sacro coberto de neve!

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    oportunidade de v-las publicadas), de modo que, nalgumas ocasies terminaram por preponderar as dbeis faculdades perceptivas do organizador, nico responsvel, portanto, em todo caso, pelos inevitveis e abundantes desacertos que certamente tero registro neste volume.

    Todavia, na sensata (e aguardada) apreciao crtica dos leitores, valha-me,

    ao menos, o propsito de difundir a obra de Canco em sua inteireza, e, para tanto, haver transcrito as variantes no selecionadas em notas apostas no final do volume (referidas aos respectivos poemas atravs da indicao numrica contida em seu ttulo). Afrontou-se, assim, o temor de se avolumar a obra em demasia, primeiro, porque tais notas foram dispostas numa espcie de apndice, inserto na derradeira parte do livro, de modo a no embaraar a leitura dos poemas; segundo, porque tal procedimento, longe de constituir um preciosismo incuo, denota o profundo respeito que aqui se guardou ao poeta e aos leitores: quele, porque teve registrado seu laborioso e fecundo processo de criao; a estes, porque se lhes permite que, luz de suas prprias reflexes, possam proceder s observaes e/ou substituies que porventura entendam oportunas para uma melhor apreenso do(s) sentido(s) das composies.

    Com esse propsito, e com a pretenso de trazer mais estmulos que

    definies, nestas notas ousou-se entremear um rudimentar esboo de anlise de alguns dos aspectos esttico-literrios da obra de Canco, aventurando-se a observao das figuras e dos tropos mais recorrentes, ante a importncia que possuem como elementos que permitem a apreenso (i) de sua viso de mundo, (ii) de sua fisionomia artstica e, por fim, (iii) da caracterizao do parentesco estsico que possui com outros autores3.

    Assim, no sendo esta uma obra de crtica literria, mas que, no entanto, no se restringe ao mero ajuntamento de poemas, a fim de evitar equvocos e dissipar dvidas, convm tecer algumas consideraes elementares acerca destes tpicos.

    I MUNDIVIDNCIA

    Inicialmente, cabe salientar que no se descura a preponderncia da expresso artstica em relao a qualquer teoria: sabe-se, com Mrio Quintana, que a poesia no se entrega a quem a define; entretanto, sabe-se, tambm, que tal atividade, alm de no ser refratria reflexo interpretativa, requisita-a como condio indispensvel sua caracterizao, dada a necessidade de interpretao inerente s expresses do gnio humano4. O que acontece que tal anlise somente pode alcanar seu desiderato quando munida do arsenal teortico que lhe fornecido por outra Arte: a Hermenutica, que, assim como a Potica, irredutvel ao logos, e que, por este motivo, impe que, na apreenso da obra do artista, tambm o intrprete deva estar inspirado (enthousiasmado no sentido etimolgico: en + thous = com um deus dentro)5.

    Deste modo, concepo que propugna a esterilidade das controvrsias sobre Esttica e Arte6 sobreps-se o entendimento de que, longe de constituir uma ameaa 3 A obra Teoria Literria, de Hnio Tavares (Ed. Itatiaia), foi de fundamental importncia para a

    elaborao destas consideraes. 4 Onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar, como o

    professa Paul Ricoeur (Da Interpretao), citado no prtico do livro Sonho e Literatura: mundo grego (USP, 2000), de Adlia Bezerra de Menezes.

    5 De poesia s se pode falar em poesia, diz Schlegel em sua Conversa Sobre A Poesia (Ed. Iluminuras, 1994, p. 30). a teoria do im, apresentada por Plato em seu dilogo on. Por fim, vale assinalar que a fundamental importncia da intuio e da imaginao tanto na criao como na percepo da obra de arte assinalada nas idias estticas de Kant e de Bergson, como o noticia Ariano Suassuna em sua obra Iniciao Esttica (Jos Olympio, 2004, pp. 102 e 202).

    6 Por todos, Arthur Schopenhauer, O Mundo Como Vontade e Representao, Livro Primeiro, 12 (Ed. Contraponto, 2001).

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    liberdade inventiva, a anlise dos distintos aspectos da criao consiste, em verdade, numa defesa de sua autonomia. Isto porque a obra corporifica a viso de mundo do autor e, ao solicitar nosso juzo acerca do contedo de sua representao, no apenas permite, mas impe mesmo, que tornemos notrias as mltiplas e proeminentes implicaes que possui sobre a nossa viso de mundo, cuja tenebrosa e apertada vereda assim iluminada e alargada pelo poder fecundante das imagens que assimilamos, pois com base nelas que interpretamos a vida e nos exercitamos para viver7.

    Assentadas tais premissas, compreende-se a importncia dos mtodos e

    tcnicas que nos fornecem a Teoria Literria e a Esttica para o devido aclaramento e a adequada apreenso da mundividncia do poeta, sobretudo do poeta lrico, posto que, em sua obra, nada enfeite, tudo hierglifo necessrio (Schlegel): os recursos estilsticos de que faz uso no constituem meros elementos de retrica, mas aquilo que realmente paira diante de seus olhos, seu universo mitopotico, e as imagens que concebe nada mais so que objetivaes de si mesmo8. Da porque se assevera que

    o verdadeiro poeta lrico vive em si mesmo, apreende as circunstncias conformemente sua individualidade potica e, por mais variadas que sejam as relaes que se estabeleam entre a sua interioridade, por um lado, e o mundo sensvel, com as suas concepes e destinos, por outro, o tema principal (de sua obra) o livre movimento dos seus prprios sentimentos e meditaes (...) O homem, ciente de sua subjetiva interioridade, v a si prprio e torna-se para si mesmo uma obra de arte.9

    Contudo, se certo que as imagens intudas pelo poeta lrico efetivamente

    constituem a expresso da sua vida, no menos correto que esta sua mundividncia no se oferece plenamente na mera literalidade do texto, vazado em caracteres lingsticos que so meros meios de transmisso, degradados at o nvel de insignificantes sinais10. Para alm do aspecto vernacular, a viso de mundo do autor subjaz, inclusive (e, sobretudo), em significaes latentes que se comprimem e se difundem particularmente atravs das figuras e dos tropos que emprega em sua faina criadora, pois so os recursos de que se vale para conferir carga lrica ao texto e criar a sua realidade artstica, e que constituem, portanto, no apenas o meio atravs do qual comunica a sua decifrao do mundo, mas tambm a forma qual se encontra jungido para alcanar tal desiderato, no inesgotvel paradoxo em que a arte literria se embaraa, mas do qual se nutre11.

    II IDENTIDADE 7 Cfr. Arthur Schopenhauer (ob. cit., p. 23), referido por Friedrich Nietzsche, in O Nascimento da Tragdia

    (Companhia das Letras, 1992, pp. 28/29). 8 Hegel, Curso de Esttica o sistema das artes (Martins Fontes, 1997, p. 193). 9 Id. ibid., pp. 518 e 519. Jung retoma essa mesma perspectiva quando diz:

    ... o artista como tal ... () objetivo, impessoal no mais alto grau, e at inumano, pois que , como artista, a sua obra, e no um homem. (Psicologia y Poesia, apud Adolfo Casais Monteiro, A Palavra Essencial estudos sobre a poesia, Ed. Universidade de So Paulo, 1965, pp. 54/55)

    10 Nietzsche, O Nascimento, ob. cit., p. 45. A Esttica Filosfica fundamenta-se no que Ariano Suassuna, com apoio em Jacques Maritain, denomina de primeiros princpios, que possuem carter eminentemente axiolgico, e que por isto mesmo reivindicam, apenas, o direito de julgar o valor das escolas artsticas, assim como a verdade ou a falsidade, a influncia boa ou m de seus princpios, in Iniciao, ob. cit., p. 355.

    11 Massaud Moiss, Literatura: Mundo e Forma (Cultrix, 1982, p. 189).

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    A repisada recorrncia a tais figuras e tropos constitui tambm um dos mais ntidos aspectos do que se denomina de foras-motrizes ou filosofemas, modalidades de redundncia que compem o ncleo fundamental da viso de mundo do escritor, e que possuem indelvel importncia no sentido de trazer baila os elementos que permitem apreender a sua fisionomia artstica, sua identidade literria, pois

    verdade universalmente emprica que todo escritor se repete, como se os textos segregados por sua imaginao apenas fossem as variaes do mesmo tema ... Faz parte das idias assentes que entre o Ea de Queirs das Prosas Brbaras e A Cidade e as Serras persiste uma unidade substancial, uma viso de mundo especfica do ficcionista, que a discrepncia vocabular, mesmo a sinttica ou a estrutural, pode camuflar, mas no diluir. Idntico raciocnio vale para a trajetria de um Machado de Assis, um Carlos Drummond de Andrade, um Fernando Pessoa, para apenas nos restringirmos aos autores vernculos.12

    Para a adequada apreenso da fisionomia artstica de Canco, faz-se

    necessrio perquirir, portanto, acerca das motivaes, dos modos e da herana literria de seu afazer potico.

    a - Individuao e Reunidade

    Embora no tencione explicar a obra do autor de modo mais profundo do que ele a concebeu (advertido estou, com Nietzsche, de que isto terminaria por obscurec-la), o intrprete que se pretenda respeitoso no pode se satisfazer com a mera compreenso de seus sinais exteriores, pena de no enxergar tudo aquilo que, de algum modo, nela est. necessrio que envide esforos para decifrar o saber que se amoita na dobra da metfora13, pois se por um lado provvel que venha a atribuir ao autor propsitos que lhe so desconhecidos, igualmente correto, por outro lado, que nada descobrir em sua obra que ali j no esteja14, e que por esta razo possui tanta legitimidade e valorosidade quanto aquilo que efetivamente se tencionou exprimir, uma vez que

    ... existindo um conhecimento histrico e lingstico adequado, o intrprete encontra-se em posio de compreender melhor o autor do que este se compreendeu a si prprio. Dilthey ... faz remontar esta possibilidade concepo de Fichte da alma como possuidora de intuio consciente e inconsciente e descobre que 'o intrprete que segue conscienciosamente o fio do pensamento do autor ter de trazer para o nvel consciente muitos elementos que ficariam inconscientes neste ltimo compreend-lo-, por conseguinte, melhor do que ele se compreendeu a si prprio' (Dilthey, XIV/I, p. 707)15

    12 Id. ibid., pp. 36/37. 13 Massaud Moiss, Literatura, ob. cit., p. 33. A esse respeito, Nietzsche observa que

    ... no devemos atormentar um poeta com uma sutil exegese, mas alegrarmo-nos com a incerteza de seu horizonte, como se o caminho para vrios pensamentos ainda estivesse aberto. (Humano, Demasiado Humano Um Livro Para Espritos Livres, Aforismo 207, p. 129)

    14 Sigmund Freud, Delrios e Sonhos na Gradiva de Jensen (Imago, 1976, p. 93). 15 Josef Bleicher, Hermenutica Contempornea (Edies 70, p. 28). Numa ptica ainda mais

    contundente a respeito da tarefa do intrprete, ao comentar aspectos da interpretao na obra de Heidegger, Marco Antnio Casanova assinala que o referido filsofo

    cita, com freqncia, um princpio de hermenutica schleiermacheriana em suas leituras dos pensadores da tradio: o princpio de que toda interpretao precisa necessariamente dizer mais

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    E isso tambm porque

    a crtica literria que na verdade deveria fazer parte da literatura s tem, pois, justificao quando aspira completar, arredondar, quando aspira o acesso obra ... Ela (a crtica) um grande dilogo entre o intrprete e o autor, um dilogo entre iguais, que apenas utilizam meios diferentes. Ela cumpre uma funo literria indispensvel. Ela , na sua essncia, tambm no ataque se for preciso, tambm na destruio , criativa e concriativa16

    Dotados, assim, do adequado arsenal teortico e do sentido crtico concriativo, podemos ousar descortinar relevantes aspectos da mundividncia de Canco, como o que nos oferece, verbi gratia, a sua perene recorrncia aos pssaros, que milipousam17 em toda a sua obra, e que constituem smbolo no apenas da fragilidade das coisas terrenas, mas, tambm, das relaes entre o Divino e o Humano (em grego, alis, a palavra ornis, pssaro, significa vaticnio, de vates, que por sua vez sinnimo do vocbulo poeta)18. Sintomticos desta sua contnua personificao nas aves so os poemas Sonho de Sabi e Sonho de um Poeta, e no apenas pela semelhana entre os ttulos, mas porque, em ambos, canta as agruras dagora e decanta a liberdade doutrora:

    Depois, uma tarde inteira Dormi, dormi na velhice O pobre do passarinho Sonhei que era pequeno Sonhou que ia palmeira Senti o zfiro brando

    do que a o que se encontra expresso no texto, e sempre contm, por isso, uma aparncia de arbitrariedade (Apresentao obra Nietzsche vol. II, de Martin Heidegger, Forense Universitria, 2007, p. VI).

    No fosse assim, a interpretao resultaria na mera presentao dos pr-conceitos do intrprete, como o assinala o prprio Heidegger, ao observar que

    se a concreo da interpretao, no sentido da interpretao textual exata, se compraz em se basear nisso que est no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais do que a opinio prvia, indiscutida e supostamente evidente, do intrprete. Em todo princpio de interpretao, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretao necessariamente j pe, ou seja, que preliminarmente dado na posio prvia, viso prvia e concepo prvia. (Ser e Tempo, 32. Ed. Vozes, 3 ed., 2008, pp. 211/212)

    Da porque no despropositado dizer que o processo reflexivo desenvolvido com a crtica,

    ao dissolver e reintegrar a obra na totalidade ideal que ela mesma evoca, faria do crtico um autor em segunda potncia e permite-lhe o desenvolvimento contnuo do tema, de acordo com leis que operavam de modo inconsciente na concepo original do artista. (Victor-Pierre Stirnimann, Schlegel, carcias de um martelo, Prefcio obra Conversa Sobre A Poesia e Outros Fragmentos, de Friedrich Schlegel, Editora Iluminuras, 1994, p. 16).

    Numa palavra:

    a significao de um poema pode ser algo maior do que o propsito consciente de seu autor, e algo bastante afastado de suas origens. (T. S.Elliot, A essncia da poesia estudos e ensaios, Ed. Artenova, p. 49)

    16 Joo Guimares Rosa, Literatura deve ser vida entrevista a Gunter Lorenz, in Exposio do Novo Livro Alemo, 1971, p. 283.

    17 O termo de Zila Mamede, in O Arado (Ed. UFRN, 2005). 18 Cfr. Eurpides, Ifignia em ulis, v. 8; squilo, Agammnon, vs. 129/167, Prometeu Acorrentado, vs.

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    Onde tinha feito o ninho Soprar, suave e sereno Olhava, em frente, as campinas Aromatizando as plagas Via por trs das colinas Do meu sagrado terreno A Natureza sorrindo Ao sentir a liberdade Por sonho via os verdores Pensou ser realidade Daquela terra querida Sem saber cantou dormindo A brisa soprava lenta Dentro da veiga florida Viu a vinda do inverno Quebrando o grande silncio Nos quadrantes da paisagem Da floresta adormecida Ouviu o sussurro terno Do bulcio da folhagem Via os verdejantes bosques Cantou todo o arrebol, As esplanadas mais belas O brilho morno do sol Pareciam um mar de luz Morrendo nos altos cumes Os rosais, as caravelas Sentia, quando cantava As aves, as mariantes Que seu corao chorava Que viviam dentro delas Com mais tristeza e queixumes (Sonho de Um Poeta) (Sonho de Sabi)

    Da no despropositado conceber uma referncia dubiedade ntima do Poeta, vez que, embora ou porque sabedor de revelaes que s mesmo Deus compreende (Fantasmas da Noite), de sua ndole suscetibilizar-se, em grau superlativo, ante s vicissitudes mundanas. Endimio revivido na ribeira do Paje, a cujos seres Selene sente prazer em assistir (Palavras ao Plenilnio), na sua nsia de catarse, Canco aspira a um mundo s de gorjeios (O Poeta), intenta alar seu esprito aos pices do amor divino, mas v frustrada sua pretenso por se encontrar inexoravelmente preso s excrescncias terreais, por se achar pela voragem do vcio deformado (O brio).

    Ento a, neste supremo perigo de perdio, quando se encontra privado da interao que mantinha com a essncia da vida (ficou mais martirizado / pensando no seu filhinho / implume, sem alimento / exposto chuva e ao vento / sem poder sair do ninho Sonho de Sabi), em que tomba compelido a se nutrir das migalhas que lhe oferece o mundo (ouvindo algum que cantava / na porta, pedindo esmola idem), a que se refugia na sua danao: a predestinao potica. Dele se achega, como uma feiticeira salvadora, com seus blsamos, a arte19: atravs dela, decanta seus Lamentos, seu Abandono, sua Solido, sua Noite Triste, suas Tristezas, suas Queixas e Revoltas, vez que

    a dor a fonte da poesia. S quem experimenta a perda de um ser finito como uma perda infinita tem fora para o fogo do lirismo.20

    Mas igualmente por intermdio dela, da arte, que canta seus Dias de Outono, seus Momentos Matutinos, sua Meninice; por meio dela, a Musa Consolatrix a que alude Machado de Assis, o ltimo asilo de que nos diz Castro Alves, a compensao ponderadora a que se refere Fernando Pessoa. que,

    19 A expresso de Nietzsche, in O Nascimento, ob. cit., p. 23. A embriaguez da Arte mais apropriada

    que qualquer outra para velar os terrores do abismo, como o diz Baudelaire (Morte Herica, in Pequenos Poemas Em Prosa - Poesia e Prosa, Ed. Nova Aguilar, 1995, p. 311). A perda de referncias metafsicas em Fernando Pessoa (navegar preciso, viver no preciso) e em Nietzsche (pequeno barco j sem ligaes com a terra firme - A Gaia Cincia, 124) encontra idntica alternativa: a arte; para o primeiro, como uma afirmao trgica da vida; para o segundo, como uma forma superior de religio, com o assinala Antnio Azevedo, in Pessoa e Nietzsche subsdios para uma leitura intertextual de Pessoa e Nietzsche (Lisboa, Instituto Piaget), p. 122.

    20 Ludwig Feuerbach, Princpios da filosofia do futuro (Edies 70, p. 23).

  • 8

    pela Arte, eles (os artistas) respondem aos ferimentos e insegurana que o mundo real lhes infligem, o que fazem atravs de outro mundo, no qual tanto a beleza quanto a feira, tanto a felicidade quanto o infortnio, tanto o riso quanto o sangue, aparecem domados, cicatrizados e eternizados pela Beleza.21

    Deste modo, malgrado viva ferido por mil anseios, sofrendo pela mgoa alheia e pelos animais, Canco se considera o filho mais querido / de nossa Me Natureza, porque alto o seu sentimento / devido ao deslumbramento / do mundo da poesia, e assim, atravs de idias mais altas, faz morada num mundo / de coisas irrevelveis, onde vive sem egosmo e ganncia / entretido na fragrncia / das flores que tem seu mundo (O Poeta). que nela, na Arte, encontra o meio mais apropriado para exprimir a sua viso holstica, o conhecimento bsico da unidade de tudo o que existe: o Uno-Primordial a que alude Nietzsche, a unidade substancial a que se refere Hegel, a escuta crepuscular do jacente de que fala Virglio, a unidade harmnica de que nos diz Herclito. Atravs dela revela-nos que o todo uno, que tudo se relaciona (ou interage, para usar uma expresso de nossos tempos) e diz respeito e uma nica realidade, sintetizada, em sua potica, na Natureza.

    Aponta, assim, a individuao como causa primeira do mal da separao entre o geral e o particular e a necessidade da experincia onrica como o pressentimento de uma unidade restabelecida20. E, para isto, a Poesia revela-se-lhe como o instrumento mais eficaz, uma vez que

    como arte, a poesia mais antiga do que a prosa. Exprime a representao espontnea do verdadeiro, um saber que no separa ainda o geral das suas viventes manifestaes particulares, a lei das suas aplicaes, o fim e o meio, pois no concebe nenhum destes termos seno em relao com o outro. Por isso, no exprime um contedo, conhecido somente sob o aspecto da sua generalidade, de maneira figurada, mas, conformemente ao seu conceito, faz ressaltar, pelo contrrio, a unidade substancial que ignora ainda esta separao e no admite a existncia de simples relaes exteriores entre o geral e o particular. Ela apresenta assim tudo o que apreende sob a forma de uma totalidade completa e independente (...)22

    b - In-nocens

    Atravs da Poesia, Canco ambiciona, pois, o rompimento deste isolamento e a conseqente restaurao da unidade substancial, e o faz atravs do retorno ptria de sua infncia primeva, a seu reino distante, incandescente e brilhante (Viso de Um Sonho), onde sempiternamente vive a gozar um tempo ditoso / de amor, sorriso e meiguice, na simbitica relao com a Natureza, seu palacete dourado / puramente bafejado / das brisas celestiais (Minha Meninice). Esta a gide que o protege da dissipao e o mantm umbilicalmente vinculado Grande Me, pois

    um homem que, como aqui no caso, haja por assim dizer aplicado o ouvido ao ventrculo cardaco da vontade universal, que sinta como o furioso desejo da existncia se derrama a partir da em todas as veias do mundo, como torrente atroadora ou como mansssimo arroio em gotas pulverizado, tal

    21 Ariano Suassuna, Iniciao., ob. cit., p. 274. Nesta mesma obra, Ariano alude teoria do jogo,

    formulada por Schiller (apontando, no entanto, suas imprecises), segundo a qual a Arte seria uma espcie de conciliao e apaziguamento da alma humana com o mundo, do esprito humano dilacerado entre o seu campo natural, a liberdade, e a necessidade cega do mundo, in Iniciao, ob. cit., p. 270.

    22 Hegel, Curso, ob. cit., p. 373.

  • 9

    homem no se destroar de repente? Deveria ele suportar ouvir, no miservel invlucro vtreo do indivduo humano, o eco de inumerveis gritos de prazer e dor do vasto espao da noite do mundo, sem refugiar-se incontivelmente diante dessa ciranda pastoral da metafsica, em sua ptria primignia?23

    Regressa, assim, uma vez mais e sempre, a seu ednico mundo infantil, dando vazo ao indefinido sentimento de nostalgia de um paraso perdido, ao encanto doloroso da recordao do que j no existe24, que acompanha todos os poetas, de Milton a Fernando Pessoa, de Rilke a Rogaciano Leite, de Cames a Joo de Deus, de Baudelaire a Manoel Fil, e que constitui a origem comum de sua atividade artstica, que o primitivismo de que brota a prpria inspirao em que se gera25.

    Asila-se nas reminiscncias e alegorias pueris da poca da vida em que ainda

    no se pertence ao mundo, em que a prpria vida o abrir dos olhos para uma manh deliciosa, quando se salta pela primeira vez do ninho e se sente ainda o calor do ninho26. E assim poetiza, para continuar o seu jogo infantil sem renunciar ao prazer da brincadeira, porque no apenas no se envergonha de suas fantasias como as comunica a todos ns, oferecendo-nos a possibilidade de tambm evoluir no sentido de no interromper nossos devaneios e com eles deleitarmo-nos sem remorso (Felizes os que se instruem brincando, ensina Fnelon)27.

    E para recuperar este seu Ninho Roubado, requesta o beijo de Euterpe e devota seus cnticos Lua, o seu Sol, o sol dos mendigos (Noite Triste, 7 dc./1 v.), que em sua obra simboliza a divindade da mulher e da fora fecundadora da vida, fundidas no culto Mater Magna, porquanto:

    essa corrente eterna e universal se prolonga no simbolismo astrolgico, que associa ao astro das noites a presena da influncia materna no indivduo,

    23 F. Nietzsche, O Nascimento, ob. cit., p. 126. 24 Cfr. Ludwig Feuerbach, Princpios, ob. e loc cit. 25 Esta a razo por que Baudelaire diz:

    nada se parece tanto com o que chamamos inspirao quanto a alegria com que a criana absorve a forma e a cor (...) O gnio somente a infncia redescoberta sem limites; a infncia agora dotada, para expressar-se, de rgos viris e do esprito analtico que lhe permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulada. (O Artista, Homem do Mundo, Homem das Multides e Criana, in Poesia, ob. cit., p. 856)

    E Fernando Pessoa, na casca de Bernardo Soares:

    ... a poesia , por certo, qualquer coisa de infantil, de mnemnico, de auxiliar e inicial. (Livro do Desassossego, trecho 227)

    Segundo Victor-Pierre Stirnimann, Schelegel aponta uma ltima via de acesso infncia perdida, um tempo em que ainda no havia fratura entre o sujeito e o mundo:

    a ascese operada pela reflexo, o mtuo estmulo e o espelhamento dialgico do intelecto e da fantasia, que em seu percurso permitem pensar o que ainda no representado, a noo que nunca chega a ser conceito, mas que orienta o refletir. (Schlegel, carcias..., ob. cit., p. 19)

    26 Joo Gaspar Simes, Fernando Pessoa - breve histria da sua vida e da sua obra (Difel, 1983, p. 56). 27 esta a verdadeira ars poetica a que se refere Freud, como a tcnica de superar esse nosso

    sentimento de repulsa, sem dvida ligado s barreiras que separam cada ego dos demais (Delrios, ob. cit., p. 110).

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    enquanto me-alimento, me-calor, me-carinho, me-universo afetivo ... a parte do primitivo que dormita em ns, vivaz ainda no sono, nos sonhos, nas fantasias, na imaginao, e que modela nossa sensibilidade profunda. a sensibilidade do ser ntimo entregue ao encantamento silencioso de seu jardim secreto, impalpvel cano da alma, refugiado no paraso de sua infncia, voltado sobre si mesmo, encolhido num sono da vida ...28

    precisamente a em que ressai a ingnua profundidade de Canco29, esse inocente, esse in-nocens, in-nocivo palavra, matria-prima da poesia, posto chama as coisas pelo seu nome prprio30. Dele como de todos os poetas pode-se dizer que assim permanece para conservar seu quinho de sonho e com ele escudar-se ao pegar, nas prprias mos, os relmpagos dos deuses, transform-los em cano e distribu-los aos outros homens.

    c - Poiesis: a totalidade

    Por outro lado, no se pode olvidar que a anlise dos recursos lingsticos utilizados por Canco termina por evidenciar a totalidade harmoniosa de que a obra de Canco portadora, uma vez que consubstancia a essncia da Poiesis, termo grego que simboliza a unio entre a poesia, a msica e a pintura31.

    c.1 - Ut musica poesis: como a msica, (deve ser) a poesia (Horcio, Ars Poetica, verso

    361, aplicado arte musical). No que respeita ao mbito rtmico, da musicalidade, as sugestes estticas

    apostas na obra de Canco podem ser sumariadas atravs das diversas figuras de harmonia que utiliza na urdidura dos poemas, evocando-lhes a msica latente, primeva, donde constri verdadeiras poemsicas.

    Denota-o o reiterado uso da aliterao: viu a vinda do inverno / canta

    contente o caro / o vento que vem convulso / os grilos trilam tristonhos / mostrando, ainda, muitas marcas mortas. Tambm assim as metforas, presentes em toda a sua obra (celeste vulco / rainha da noite), que no pedem compreenso explcita, mas uma impresso geral e tendncia de afirmao, coisas que soam, por si, j no meio caminho dos 'significantes sem significados' da msica32. 28 Jean Chevalier, Dicionrio de Smbolos (Jos Olympio, 2006, pp. 564/565). 29 O poeta Geraldo Amncio bem compreendeu essa particular ingenuidade de Canco: cantando certa

    vez no aniversrio de Lourival Batista, Geraldo observava Canco, que cochilava numa cadeira enquanto Pinto do Monteiro cantava com o aniversariante. Logo aps, despertou, exatamente quando Geraldo tomava o lugar de Pinto na peleja. Dando incio ao baio com Louro, Geraldo observou:

    Canco s vezes parece no saber quem canta bem Pinto cantando, ele dorme, eu vou cantar, ele vem mas todo gnio ingnuo no sabe o valor que tem

    30 Gerardo de Mello Mouro, entrevista: http://virtualbooks.terra.com.br/entrevistas/morao/morao4.htm. 31 Dadas as limitaes inerentes a um texto desta natureza, circunscrevemo-nos anlise dos aspectos

    imagticos e rtmicos, que so aqueles que verdadeiramente caracterizam a poesia. No se poderia deixar de registrar, no entanto, a conhecida formulao exposta por Ezra Pound acerca das trs dimenses do poema: a melopeia, que evoca a sonoridade; a fanopeia, relacionada a seus aspectos visuais; e a logopeia, que respeita construo das ideias no texto (ABC da Poesia, Moderna, 1991).

    32 Gerson Valle, Msica e Poesia. Disponvel em , com acesso em 10/07/2008.

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    Presente em toda a concepo potica de Canco, esta inteno musical33

    no passou despercebida ao Mestre Patativa do Assar, que em seu poema Ao Poeta Joo Batista de Siqueira (Canco)34, vaticina:

    Esta suave ternura De tua musa sublime Nos afugenta e tortura O pranto que nos oprime Estas jias cintilantes De teus poemas cantantes, Para mim so obras-primas Quer no prazer quer na mgoa Tu fazes de um pingo de gua Um oceano de rimas Compondo a beleza rara Da poesia sonora Tua noite sempre clara E o teu dia sempre aurora Pois, mesmo sendo Canco, Gozas da mesma atrao Do famoso uirapuru Teu verso causa cime E possui mesmo o perfume Das flores do Paje Nos teus versos, caro amigo, Que jorram como a nascente, A gente sente contigo Tudo que tua alma sente Com inspirao divina A tua lira domina O vale, o serto e a serra Com melodias infindas Colheste as flores mais lindas Que o teu Paje encerra

    Atravs de tais fenmenos lingusticos, Canco oferece continuidade tarefa de Arquloco, belicoso servidor das musas, que mereceu dos gregos a especial distino de ser posto ao lado de Homero por haver introduzido a cano popular na literatura atravs da inveno do metro jmbico e fazer, assim, com que a linguagem envide todos os seus esforos para imitar a msica35, o que, afinal de contas, consiste na prpria essncia da poesia lrica (o prprio vocbulo lirismo advm de lira, instrumento musical de cordas, e soneto originariamente significa pequeno som).

    Por tal razo que Nietzsche se refere poesia lrica como a fulgurao

    imitadora da msica em imagens e conceitos, salientando que o fenmeno mais importante de toda a lrica antiga era a identidade, em toda parte considerada 33 A expresso de Gerson Valle, citada na entrevista referida na nota anterior. 34 Do livro Cante L Que Eu Canto C (Vozes, pp. 117/120) (os grifos no constam do original). De se

    observar, por oportuno, que, em vez do correto Siqueira, por equvoco editorial consta o sobrenome Cerqueira no livro Flores do Paje, obra referida por Patativa do Assar, o que certamente levou o mestre cearense a utiliz-lo nesta sua composio.

    35 Assevera Cmara Cascudo que os gregos falam de Arquloco (falecido em 560 a.C.) e especialmente numa sua inovao genial... O canto acompanhado teria tido, desta forma, seu incio popular. (Vaqueiros e Cantadores, Ed. Itatiaia, 1984, p. 190). Ver, ainda, a respeito de Arquloco, a nota de Schlegel na obra Conversa, ob. cit., pp. 35/36.

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    natural, do lrico com o msico, concluindo, a respeito, que

    (a obra de arte do poeta lrico) foi com razo qualificada de repetio ou reproduo do mundo; esta msica torna-se-lhe depois mais sensvel e, por influncia apolnea do sonho, visvel em imagens simblicas (...) A cano popular aparece-nos, antes de mais, como espelho musical do mundo, como melodia primordial que anda procura da imagem de sonho que lhe seja irm para a exprimir num poema (...) A poesia do poeta lrico nada pode exprimir que no esteja j contido, com a mais extraordinria universalidade e perfeio, na msica que o obrigou a fazer a traduo imaginal.36

    Tambm por isto Hegel infere, poeticamente, que

    A Plstica o signo do Esprito. Ela exprime a vida criadora, mas paralisada e limitada pelo tempo e pelo espao. A Msica, ao contrrio, revela-nos diretamente o movimento ntimo da alma, com seus desejos e sentimentos eternos e sua aspirao ao infinito. A Poesia, finalmente, a Msica Plstica. Ela pinta e esculpe por meio de frases dotadas de mobilidade e por sons que se sucedem, harmoniosamente ritmados. Ela a Arte suprema e exprime o pensamento por imagens.37

    Nesta senda, vale ressaltar que, no caso do poeta lrico, a evocao dos j referidos filosofemas converge tambm para o fenmeno da repetio, que, ao invs de mitigar-lhe a faculdade criativa, notabiliza-o como artista visceralmente norteado pelo signo da musicalidade, pois indicativo da j assinalada dependncia que o lirismo possui quanto msica. Valho-me, uma vez mais, da lio de Massaud Moiss:

    Essa analogia metafrica dos predicativos decorre de a poesia lrica caracterizar-se pela repetio, repetio no s no sentido formal como no gnosiolgico. A estrutura sinttica em que o eu se mostra regular, obedece a uma disposio fsica, elementar: sujeito + predicado + predicativo. Evidentemente, o paralelismo pode lanar mo de outros verbos, gerando estribilhos de vria natureza, mas o resultado ser idntico: a recorrncia formal produzir o clima lrico, como um retorno que garante a melodia e prope as solues do ritmo. O consabido entrelaamento da lrica com a msica tem no fenmeno da repetio um de seus mais poderosos sustentculos.38

    36 O Nascimento, ob. cit., pp. 44 e 51. 37 Curso, ob. cit., p. 345. 38 Literatura, ob. cit., p. 279. Como ensina Manoel de Barros (O Livro das Ignoras uma didtica da

    inveno, Record, 1998, p. 11):

    Repetir, repetir at ficar diferente. Repetir um dom do estilo

    A respeito do fenmeno da repetio e de sua importncia para a caracterizao da obra do artista, vale registrar as argutas observaes que Oscar Mendes lana sobre a obra de Shakespeare, quando assinala que

    (...) o ingls A. C. Bradley, professor de poesia em Oxford, no seu estudo Shakespearean Tragedy, traou delas (das obras deste dramaturgo) um quadro verdadeiro, que vai desde a sua composio como tcnica teatral at sua significao mais profunda. (...) O que narra sempre a histria de uma pessoa: o heri, ou de duas: o heri e a herona (Romeu e Julieta, Antnio e Clepatra). E estes sempre morrem, como clmax da tragdia. Nelas h sempre um contraste

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    c.2 - Ut pictura poesis: como a pintura, (deve ser) a poesia (Horcio, Ars Poetica, verso 361)

    A este respeito, no mbito da percepo visual na obra de Canco

    alcanam notvel relevo o delineamento pictrico, quase tctil, das inutilezas naturais, minudncias que so mundos, donde extrai os elementos para a confeco de verdadeiras telas, e o processo adjetivante de que faz largo uso, suprindo, com o adjetivo, uma relao lgica extensa, tornando imediata pela surpresa da relao verbal uma sugesto que morreria, se se desdobrasse logicamente39. o que se tem quando se refere, por exemplo, ao espao vermelho, desabrida procela, tarde outonal, gua que vem chorosa, s noites cravadas de vaga-lumes, voraz ternura da mulher, s lindas tardes toldadas, boca triste da fonte, s manhs subdouradas, s brancas nuvens franjadas, ao cu deserto ou sombra anilada.

    Ressalte-se, por oportuno, que, embora no se pretenda 'filiar' Canco a

    qualquer escola literria40, certo que a evidenciao de seu estilo atravs de uma frmula concisa, em que sejam ressaltados seus aspectos mais relevantes, permite ousar dizer que sua obra se ajustaria a uma espcie de Impressionismo, tendo em mira que sedimentada, toda ela, na pormenorizao plstica dos elementos naturais, em que ressai a vivacidade de cores fortes e ntidas, que glorificam a variedade e a exuberncia de minudncias da Natureza do Serto Profundo, de suas paisagens mais simples:

    As regies despretensiosas existem para os grandes paisagistas; as regies raras e notveis, para os pequenos. Isto : as grandes coisas da natureza e da humanidade tm que interceder por todos os pequenos, medianos e ambiciosos entre seus admiradores mas o grande intercede pelas coisas mais simples41

    Com efeito, os poemas do vate egipciense constituem verdadeiras pinturas sonoras, em que, atravs de nuvens franjadas, da luz cintilante, das rstias, valoriza-se, acima de tudo, a captao imediata daquilo que, de fato, se consegue aperceber da Natureza em movimento: alterao de luz e de atmosfera, sbitos raios de sol rompendo por entre nuvens dispersas, enfim, ao que alude Raul Brando, quando, na tentativa de retratar seus Stios Ignorados, termina por confessar:

    o que eu queria dar s o podem fazer os pintores os tons molhados, os

    entre uma grande felicidade anterior e o advento de sofrimentos e calamidades fora do comum e inesperados, sendo quase sempre o prprio heri que, pelos seus atos e pelas suas paixes, ocasiona tais sofrimentos e tais catstrofes. (Nota Introdutria s Tragdias de Shakespeare, in Wiiliam Shakespeare obra completa vol. 1 Nova Aguilar, 1995, p. 57)

    39 Esta concepo dada por Martinho Nobre Melo, na Apresentao de Cesrio Verde (in Livro de Cesrio Verde, Ed. Agir, 1984, p. 26). Ressalte-se, alis, que tal procedimento constitui notvel indcio da valorizao que Cesrio Verde oferece vertente pictrica na poesia.

    40 Mesmo porque sua obra no se deixa aprisionar pelos arqutipos de nenhuma delas em particular, pois se do Classicismo adotou a forma, no se deixou subjugar pelo estilo linear de descries objetivas que o caracterizam; se do Romantismo acolheu a tendncia apreenso da instantes fugazes de vibrao psicossomtica, dele no agasalhou a liberdade potica (versos brancos e livres); se do Simbolismo acolheu as variegadas e fecundas experincias meldicas, dele se distanciou porque rejeitou o seu estilo elptico e hermtico, permanecendo jungido s formas rmicas e mtricas da usana parnasiana.

    41 Nietzsche, Aurora reflexes sobre os preconceitos morais, 434.

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    reflexos verdes, o galopar das nuvens fugindo sobre a imensa superfcie polida, e, por fim, ao cair da tarde, a agonia dolorosa da luz.42

    Ora, e no precisamente isto que Canco logra fazer?

    A gua branda descia O sol, em nesgas vermelhas Pelo pequeno gramado Vai atravessando o mangue A relva, fresca e macia, Aquelas rubras centelhas Era um tapete rendado Parecem feitas de sangue Se ouvia, l da colina, E o celeste vulco No corao da campina, Numa santa erupo Soluar uma cascata Na montanha ainda arde E o sol, com seus lampejos, Seus derradeiros lampejos Dava os derradeiros beijos So eles restos dos beijos No rosto verde da mata Enfraquecidos da tarde (Depois da Chuva) (Crepsculo)

    O sol, guerreiro que veio do Oriente Passou o dia lutando ferozmente Da guerra trouxe seu golpe assinalado Agoniza agora, e atravs da tela infinda Pela grimpa da serra mostra ainda A metade do rosto ensangentado (Crepsculo soneto)

    Suas composies acumulam sensaes isoladas, detalhes, para a captao

    de um mundo de aparncias efmeras, em que inventa paisagens, que parecem mais autnticas do que a realidade43, e sobre as quais se poderia dizer que

    tem-se a impresso de um pintor, que utilizasse as palavras em lugar da tinta ... E de um pintor impressionista: a cena transcorre ao ar livre; a descrio monta-se como uma soma de mincias pictricas, semelhana de uma seqncia de pinceladas rpidas, superpostas, de acordo com a tcnica pontilhista.44

    Isto se deve ao fato de que, depois de se ter expandido interiormente, o poeta lrico projeta a sua alma no mundo exterior sob a forma de quadros descritivos, e por isso que, assim como os pintores impressionistas, Canco um artista visceralmente popular e essencialmente universal, vez que a estrutura pictrica de seus poemas oferece expresso visual a fatos e a sentimentos, a idias e a sonhos que, apesar de 42 Os Pescadores (Estudios Cor, s/d, pp. 18/19). 43 Keith Roberts, Obras-Primas do Impressionismo, Verbo, 1975, p. VIII. No clssico aforismo de

    Terncio: Homo sum: nihil humani a me alienum puto Sou homem: nada do que humano me alheio.

    Gerson Valle aponta que esta caracterstica tanto mais visvel entre os simbolistas, em que

    tanto os msicos quanto os poetas tiraram da expresso dos pintores a idia de representar imprecises, apenas impresses, o que, de certa maneira, faz confluir para a msica toda a inteno artstica desse tempo (sempre os 'significantes, mais evidenciados que os 'significados') (http://www.jornalpoiesis..., cit.)

    44 Massaud Moiss, anlise ao captulo VIII de O Ateneu, de Raul Pompia, in Literatura Brasileira Atravs dos Textos, Cultrix, 2004, p. 290.

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    originados no individual, exprimem o que h de mais geral e profundo nas crenas, representaes e relaes humanas45.

    Ainda a este respeito, cumpre assinalar que, no estro de Canco, o assinalado

    fenmeno artstico da repetio no descamba em paralisia monotemtica, porquanto, ainda quando focaliza reiteradamente o mesmo fenmeno, a cada vez que o faz, capta-o num espao-de-tempo nico, apresenta-o sob uma nova ptica, surpreendendo-lhe aspectos dantes no entrevistos, apreende-o, por fim, sob impresses distintas, de acordo com a gama de sentimentos que, naquele momento, so despertados em sua alma, de modo que, embora aludam s mesmas realidades (p. ex., Manh de Chuva, Manh Sertaneja, Momentos Matutinos, Horas Matutinas, Crepsculo Praieiro, Crepsculo, Crepsculo - soneto), cada uma de suas composies possui contornos prprios, que a singulariza em relao s demais.

    d - Arabescos

    Por tudo isto que se pode afirmar que as obras de Canco constituem o exemplo mais contundente do paisagismo lrico herdado pelo povo do serto nordestino da exuberante cultura rabe transplantada para estas plagas pelos colonizadores portugueses.

    Com efeito, Alberto da Cunha Melo46 quem oferece dimenso erudita da

    potica rabe, herdada pelos poetas do serto nordestino, poder-se-ia

    ... possvel supor, entre os rabes, duas categorias de poetas: de um lado aparece o poeta que cultiva mesmo quando improvisa uma linha de poesia sofisticada, lrica e cortes, um tanto retrica, baseada em experincias pessoais, amatrias ... Do outro, o jogral propriamente dito, com sua poesia-espetculo-reportagem; seu lendrio pico-religioso, suas stiras e chacotas e seus vibrantes desafios verbais.47

    III - MALUNGOS

    Noutro plano, igualmente com o objetivo de permitir a compreenso da obra canconiana (e, de resto, da potica popular) no conjunto da atividade artstica universal, que se traz a lume o paralelismo que possui com a obra de outros mestres, a revelar a consanginidade artstica existente entre eles e, portanto, a significao que suas obras possuem no contexto da arte literria. o princpio esttico referido por T. S. Elliot, quando afirma que

    nenhum poeta nem qualquer outro tipo de artista tem seu significado completo sozinho. Sua significao, sua apreciao, so a apreciao de sua relao com os poetas e artistas mortos. No se pode avali-lo isoladamente.

    45 Cfr. Afrnio Coutinho, Introduo Literatura no Brasil, Bertrand Brasil, 1995, p. 226. Isto porque

    formar e dizer, segundo a fantasia, sem descrever as coisas na respectiva existncia prtica, tal , com efeito, a finalidade e a misso da poesia (Hegel, Curso, ob. cit., p. 374).

    So comumente apontados como autores brasileiros impressionistas Adelino Magalhes, Raul Pompia e Cornlio Pena.

    46 O Repentista Nordestino e a Potica do Desafio, in Um Certo J (Uzyna Cultural, 2004, p. 56). 47 Luis Soler, Origens rabes no Folclore do Serto Brasileiro (Editora da UFSC, 1995, pp. 60/61).

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    necessrio situ-lo por contraste e comparao com os mortos. E isto um princpio esttico e no meramente crtica histrica.48

    Desta forma, embora se admita o estabelecimento de graus de grandeza

    literria por meio de uma valorao objetiva, aqui no se intenta propiciar qualquer espcie de exame comparativo entre produes artsticas. Nesta ocasio, a indicao de tais recursos estilsticos obedece exclusiva finalidade de trazer baila um dos aspectos mais relevantes da proximidade sensria (sinfronia) que une seus criadores, no sentido de evidenciar aquilo que Cmara Cascudo denomina de poesia da continuidade sentimental49. De fato, no h que se negar a existncia de aproximaes entre os seguintes excertos:

    Era por uma dessas noites vagarosas do inverno, em que o brilho de um cu sem lua vivo e trmulo; em que o gemer das selvas profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano absoluta e ttrica. (Alexandre Herculano, Eurico, O Presbtero, Cap. 4)

    e

    Era por uma dessas tardes em que o azul do cu oriental - plido e saudoso, em que o rumor do vento nas vergas - e montono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio e queixoso e ttrico. (Castro Alves, Prlogo de Espumas Flutuantes)

    Ou a coincidncia entre as seguintes composies:

    Poeta, cant da rua Que na cidade nasceu Cante a cidade que sua Que eu canto o serto que meu (Patativa do Assar, Cante L Que Eu Canto C)

    e

    No sou um Manuel Bandeira Drummond nem Jorge de Lima No espereis obra-prima Deste matuto plebeu Eles cantam suas praias, Palcios de porcelana Eu canto a roa, a cabana, Canto o serto ... que ele meu! (Rogaciano Leite, Aos Crticos)

    Ou, no que se refere especificamente a Canco, o paralelismo que existe entre

    estas estrofes: 48 A Essncia, ob. cit., pp. 22/23. 49 Flor de Romances Trgicos (Fundao Jos Augusto, 1982, p. VII). Rogaciano Leite alude, a

    propsito, ao intercmbio da famlia intelectual brasileira, A Santos, in Carne e Alma (FUNDARPE, 1988, p. 11).

    As guas silenciosas O sol alm se deitava Vo rolando preguiosas A sua luz se esvasava L das colinas lodosas Pela ramagem da horta

  • 17

    Se despenham sem alarde A brisa, em leves rudos A aragem sertaneja Levava os ternos gemidos Sobre a paisagem que beija Da tarde j quase morta Mansamente rumoreja (Depois da Chuva) Por despedida da tarde (A Borborema)

    e o seguinte trecho de prosa potica: Um concerto de notas graves saudava o pr do sol e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda e ceder doce influncia da tarde. Era a ave-maria (...) A brisa, roando as grimpas da floresta, traz um dbil sussurro, que parece o ltimo eco dos rumores do dia, ou o derradeiro suspiro da tarde que morre. (Jos de Alencar, O Guarani, Cap. VII)

    Ou, ainda, entre este excerto do vate egipciense:

    Venho trazer-te a lembrana Daquele tempo passado Dos sopros da brisa mansa Na orla verde do prado Lembrar-te as lindas verbenas Por entre as flores pequenas Das manhs frescas e belas Venho chorar minhas dores E trazer-te uma das flores Que nos viu passar por elas (Lamentos Ao P De Um Tmulo)

    e esta estrofe:

    Trago-te flores - restos arrancados Da terra que nos viu passar unidos E ora mortos nos deixa e separados (Machado de Assis, A Carolina)

    Ou, por fim, entre esta estrofe, tambm de Canco:

    Vai a tabaroa roa Em um ar aborrecido No caminho mais seguido Buscar gua no regato Se defendendo do mato Pra no molhar seu vestido (Manh de Chuva, 4 dc./5 ao 10 vs.)

    e estoutro trecho de prosa potica:

    Por essa vereda meteram-se os dois irmos. Afonso adiante, malhando com o basto os tufos de capim e relva para espantar as cobras; Linda, no encalo, rocegando a fmbria da saia de musselina para guard-la dos orvalhos. (Jos de Alencar, Til, cap. XI)

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    De tudo isto, foroso concluir que uma judiciosa aproximao do tema deve

    necessariamente prestigiar os pontos de interseo existentes entre criaes que possuem similar teor estsico (desimportantes, para tanto, as geografias e os tempos), circunstncia esta que, ao contrrio do que o entende o senso comum, constitui um dos mais relevantes aspectos da valorosidade de todas elas, uma vez que o produto final ser o gnio, e ser to final depois como antes50. No por outra razo, alis, que Maximiano Campos assevera que

    Emerson talvez tivesse razo quando afirmava, querendo se referir a Shakespeare: O maior gnio o homem mais endividado. Por isso, existe e existir sempre um parentesco entre as grandes obras universais. Esse parentesco que h entre o romance de Joyce e a obra de Homero, a filosofia de Nietzsche e a msica de Wagner, entre Dostoievski e Gogol, a poesia de Baudelaire e a de Edgar Allan Poe.51

    a Dos labutos

    Ademais, ao propsito de evidenciar tal parentesco artstico alia-se outro intento, que lhe segue como conseqncia inevitvel: fornecer um contributo para a desmistificao da assim denominada cultura popular, entendida, aqui, como conjunto de prticas, representaes e formas de conscincia que possuem lgica prpria, e no como algo posto em antagonismo em relao chamada cultura erudita52. Isto porque

    a defesa do sentido integrado da expresso popular poderia e deveria conduzir a uma reflexo sobre o modo peculiar de significao da literatura oral. Se, ao contrrio, o pesquisador se limita a constatar que acima da rima [est] a nota da cano, se no enfrenta a complexa diferena desta poesia mediante a construo, a partir da prpria poesia, de uma proposta crtico-terica tambm sujeita a tratamento diferencial, sua percepo do objeto potica, alm de se achar inevitavelmente limitada, converte-ser em foco de ambigidade e discriminao

    quando o que ocorre, no entanto, que

    sua diferena (da poesia popular), quando no meramente traduzida em inferioridade, enseja uma perspectiva ambivalente, que mistura apreo e menosprezo, fascnio e censura, e que parece estar associada hesitao entre valorizar e repudiar a espontaneidade da criao53

    Neste sentido, emblemtico o caso de Canco, cuja verve comumente

    atribuda uma espcie de sobrenaturalismo, mormente pelo opulento uso de recursos literrios e de abastado vocabulrio, presumidamente inacessveis a algum que, como ele, 50 Fernando Pessoa, Antologias de Esttica, Teoria e Crtica Literria (Ediouro, 1988, p. 34). 51 Posfcio ao Romance dA Pedra do Reino, de Ariano Suassuna (Jos Olympio, 2005, p. 752). 52 Cfr. Marilena Chau, Cultura Popular, in Cultura e Democracia (Cortez, 2006, p. 34). A respeito das

    influncias na formao da poesia trovadoresca em Portugal, Yara Frateschi Vieira assinala que a tese litrgica defende que aquilo que se tem chamado de literatura popular nada mais do que uma estilizao de formas da cultura dominante e que entre poesia popular e poesia culta ou artstica no h uma 'diviso impenetrvel', in Poesia Medieval literatura portuguesa (Global Editora, 1987, pp. 27/28).

    53 Cludia Neiva de Matos, A Poesia..., ob. cit., p. 185 grifos do original.

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    somente possua instruo escolar primria, donde possvel inferir as prfidas implicaes advindas da perspectiva de pretender categoriz-lo como malassombrado e da pretender que a anlise de seu labor potico deva restringir-se a arqutipos de simplismo, porquanto tal atitude, ordinariamente entendida como valorativa, , na verdade, profundamente perniciosa para a sua obra, quando se sabe que da pode advir a deletria mutilao do fenmeno literrio por meio da disjuno entre o popular/inspirao e erudito/reflexo54. Tem plena aplicao aqui, portanto, a lio de Hegel quando assinala que

    um preconceito muito comum aquele que diz ter a arte comeado em simplicidade e em naturalidade ... A arte concebe, porm, o natural, o vivente e o simples de um modo muito diferente (...) A beleza, quando relacionada com a obra de arte, exige, logo de comeo, sucessivas tentativas e demorado exerccio para chegar ao domnio de uma tcnica perfeita. A simplicidade, na sua relao com o belo ... resulta de esforo despendido aps numerosas mediaes que tiveram por fim eliminar a variedade, os exageros, as confuses ...55

    Isto porque atravs de um vis de razes preconceituosas, que vislumbra a

    potica popular como um trao folclrico, como um dado pitoresco de nossa cultura, que se consuma a estigmatizao da expresso artstica do poeta lrico como circunscrita a um carter de irracionalidade, e, pois, como elemento inservvel ponderao lgico-cientfica, quando o se tem, na verdade, que

    ... a entronizao da poesia popular na esfera imaculada da palavra voltil pode representar um mecanismo sutil de excluso: conceituar um objeto de maneira a revesti-lo de uma aura inefvel, de uma natureza inapreensvel, equivale em certa medida a confina-lo longe de nossos olhos e de nossas mos, guarda-lo intacto e frgil na redoma do passado, interditar-lhe toda

    54 Maria Didier, Emblemas da Sagrao Armorial (Ed. UFPE, 2004, p. 33). Sob essa tica, Nietzsche

    assevera que

    ... no mnimo questionvel que a superstio relativa ao gnio, a suas prerrogativas e poderes especiais, seja proveitosa para o prprio gnio, quando nele se enraza. (Humano..., Aforismo 164, ob. cit., p. 117).

    55 Curso, ob. cit., p. 5. Exemplo disso o que relata T. S. Elliot acerca do Hamlet, de William Shakespeare, ao assinalar:

    As primeiras 22 linhas so construdas com as palavras mais simples, na linguagem mais corriqueira. Shakespeare tinha trabalhado durante longo tempo no teatro, e j havia escrito uma boa quantidade de peas, antes que alcanasse o ponto em que poderia escrever essas 22 linhas. No h nada to simplificado nem to seguro em sua obra prvia (A Essncia., ob. cit., p. 109)

    Nesse mesmo sentido, ao ponderar acerca da labuta artstica, Nietzsche assinala a importncia do exerccio criativo, asseverando, enfaticamente:

    A Crena Na Inspirao ... a improvisao artstica se encontra muito abaixo do pensamento artstico selecionado com seriedade e empenho. Todos os grandes foram grandes trabalhadores, incansveis no apenas no inventar, mas tambm no rejeitar, eleger, remodelar e ordenar. A seriedade do ofcio S no me falem de dons e talentos inatos! Podemos nomear grandes homens de toda espcie que foram pouco dotados. Mas adquiriram grandeza, tornaram-se gnios (como se diz) por qualidades de cuja ausncia ningum que dela esteja cnscio gosta de falar: todos tiveram a diligente seriedade do arteso, que primeiro aprende a construir perfeitamente as partes, antes de ousar fazer um grande todo ... (Humano..., Aforismos 155 e 163, ob. cit., pp. 111 e 116).

    No mesmo sentido, a crtica de Baudelaire queles que despojam ... o gnio de sua racionalidade e lhe atribuem uma funo puramente institiva e, por assim dizer, vegetal (Richard Wagner e Tannhuser em Paris, in Crtica Musical - Poesia e Prosa, Nova Aguilar, 1995, p. 923).

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    possibilidade de conexo com o presente vivo e ativo.56

    b - xtase

    Nesta linha de raciocnio deve-se ter em conta que hodiernamente possvel qui necessrio elaborar uma tentativa de compreenso de sua potica (e, de resto, da atividade artstica lato sensu) atravs do estudo do desenvolvimento de potencialidades relacionadas a estados alterados (ou superiores) de conscincia, glorificados como fontes supremas de criatividade57. Cuida-se, aqui, das chamadas experincias ocenicas (Freud), experincias numinosas (Jung) ou experincias culminantes (A. Maslow), em que o sujeito experimenta uma temporria dissoluo do ego e a expanso da conscincia e da auto-percepo, de forma a incluir e abranger outros elementos do mundo exterior.

    o que vislumbra Brulio Tavares, em precioso artigo em que discorre sobre

    a viso csmica em Carlos Drummond de Andrade e Augusto dos Anjos, ao asseverar que

    so numerosos os relatos de indivduos que declaram haver experimentado em algum momento um vislumbre visionrio em que o mundo inteiro parecia estar presente diante de si, e em que todas a coisas pareciam embebidas de significao. Ao emergir de uma experincia desse tipo, as pessoas de ndole religiosa a consideram uma iluminao mstica, um sinal da presena da Divindade (...) Os poemas 'As Cismas do Destino' (Augusto) e 'A Mquina do Mundo' (Drummond) descrevem experincias desse tipo. Em ambos, o poeta faz a ss uma caminhada, e comea a ser dominado pela sensao cada vez mais intensa da presena (quase que da aproximao) do Mundo. Ele tem a impresso de que o mundo se personifica, o mundo lhe dirige a palavra; segue-se uma torrente de imagens que procuram, de modo fragmentrio, exprimir esse 'recado do Mundo'. A viso fugaz e logo se desvanece; o poeta constata a impossibilidade de apreender o Mundo, cuja complexidade transcende o intelecto e seus sentidos (...) Em ambos os poemas ... esto presentes os mesmos elementos: a Caminhada; a contemplao da Paisagem; a brusca Revelao; o Recado do Mundo58

    56 Cludia Neiva de Matos, A Poesia Popular na Repblica das Letras: Slvio Romero folclorista (Editora

    UFRJ Minc/Funarte, 1994, p. 194). 57 No texto O Mistrio do Intuio, Cultrix, citado no endereo eletrnico

    imagick.org.br/zbolemail/Bol07x03/BE03x12.html, Brian Ings e Ruth West assinalam que em seu livro Mysticism, F. C. Happold identificou as caractersticas mais marcantes de tais estados: no podem ser prontamente descritos com palavras; proporcionam vises interiores 'que trazem consigo um sentido tremendo de autoridade; so transitrios, e raramente duram mais que alguns minutos; no podem ser preparados; do 'uma conscincia da unicidade de tudo'; deixam um sentido de intemporalidade.

    Alis, sintomtica a assombrosa semelhana que se observa entre o labor potico de Augusto dos Anjos e o de Canco. Sobre o vate paraibano, com apoio em Raimundo Magalhes Jr., Brulio Tavares assevera que textos como 'Poema Negro' e 'Tristezas de um quarto minguante' so certamente retratos fiis das madrugadas insones em que metrificava seus delrios. No de admirar que declarasse sentir, no momento de criar seus versos, 'uma srie indescritvel de fenmenos nervosos, acompanhados muitas vezes de uma vontade de chorar'. Canco, por sua vez, assim relata a um interlocutor (Urbano Lima?) a sua faina criativa:

    Int.: - Na hora em que voc est escrevendo, sente alguma coisa estranha? Canco: - Sinto: calafrios, gua nos olhos. Int.: - Qual a hora em que voc mais se dedica a escrever? Canco: - Meia-noite ou madrugada. Int.: - Voc se levanta para...? Canco: - Me levanto para escrever. Sem ver ningum minha frente.

    58 In A viso csmica em Carlos Drummond de Andrade e Augusto dos Anjos. As semelhanas e

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    Ao leitor atento decerto no escapar o fato de que tais experincias permeiam a febril atividade criativa de Canco. A ttulo exemplificativo, colha-se o que registra nos poemas Viso de um Sonho, Sonhando ao Relento e Um Sonho Que Durou Trs Horas. Nestes ltimos, assim enuncia o itinerrio de seu 'vislumbre visionrio59:

    Dormindo, sonhei que via Dormi, sonhei que voava Um campo verde bordado Buscando um pas distante Caa a neve em punhado Pra ver se desencantava Pela pelcia macia Um dia, um reino brilhante O arvoredo se erguia Depois que muito voei Enquanto o vento passava Alm, alm, avistei Parecia que contava Vastos planaltos risonhos densa folhagem sua Era o Reinado das Rosas, Algumas lendas da Lua De belas veigas relvosas Que a Natureza ocultava Subdouradas dos sonhos Sentia a alma enlevada Olhava a variedade Ao contemplar os verdores Das flores pelos caminhos Olhava por entre as flores Ouvindo a sonoridade Uma virgem ajoelhada Do canto dos passarinhos A sua face nevada De uma pequena roseira Mostrava um ar prazenteiro Entre a folha e a madeira Sorria ao beijo maneiro Uma virgem aparecia Do vento que a noite espalha Cantava baixa cano Olhando o cu entre a palha A sublime entoao De um verdejante coqueiro S ela compreendia Depois, por entre os bambus Andando bem vagarosa Ligeiramente fugia Entre a neve se envolveu De longe ainda eu a via Entrou num clix de rosa Por uma farpa de luz Dali desapareceu Nos horizontes azuis Procurei-a em todo canto Prestava toda ateno Senti saudade e meu pranto Olhando pra vastido Sobre a relva derramei Do campo verde e sereno A sua transformao Cheirando um lrio pequeno Foi na mesma ocasio Que apertava na mo Em que tambm despertei Hora que ainda dormia Esse sonho, essa iluso Entre o gramado pequeno Eu nunca mais esqueci Branco lenol de sereno A mais sublime feio Toda a floresta cobria Da santa mulher que vi Despertei pela folia As flores, os pirilampos, Da pequena passarada O prado, o planalto, os campos, Reparei, no vi mais nada O chorar dos vendavais, Sentia s a frieza Um cu tranquilo de glria Da brisa que a Natureza E a lembrana dessa histria Espalha na madrugada No morrer nunca mais (Sonhando ao Relento) (Um Sonho Que Durou Trs Horas)

    coincidncias entre os poemas As Cismas do Destino, do poeta mineiro: o de Drummond uma citao deliberada do de Augusto, extrado de revista.agulha.nom.br/augusto17.html.

    59 Trata-se, aqui, de tema de estudo da denominada Psicologia Transpessoal, sobre a qual vale consultar Mrcia Tabone, A Psicologia Transpessoal, Cultrix; Shultz, Histria da Psicologia Moderna, Cultrix; J. Lacoste, A Filosofia da Arte, Ed. Jorge Zahar. Na rede de computadores, consulte-se, dentre outros: Carlos Antnio Fragoso Guimares, A Natureza Transpessoal., ob. cit.; Giuliana Gnatos Lima Bilbao e Vera Engler Cury, O Artista e Sua Arte: Um Estudo Fenomenolgico, in sites.ffclrp.usp.br/paideia/artigos/33/12.htm; Alexandre Pedrassoli, Psicologia Transpessoal, in pedrassoli.psc.br/psicologia/psitrans.aspx.

  • 22

    Ergo, como em Mrio de Andrade e em Augusto dos Anjos, tambm em Canco o que se tem a verbalizao de uma experincia de iluminao pessoal, e assim naqueles como neste, do ponto de vista literrio, no interessa se os poetas experimentaram de fato uma 'iluminao' ou se apenas a imaginaram (Brulio Tavares, cit.). Consequncia desta assertiva, e por tudo o mais que se logrou demonstrar alhures, a absoluta desimportncia da discusso acerca da intencionalidade de utilizao de tais ou quais recursos literrios pelo vate egipciense, uma vez que, como se logrou demonstrar, tal evocao encontra arrimo no apenas em seu incessante percurso pela produo literria de luminares da arte literria, como tambm em elementos psquicos (i) pr-pessoais (individuais e coletivos, bem ainda lembranas filogenticas, que formam a vida pr-consciente do intelecto60) e (ii) ps-pessoais (a exemplo das j referidas experincias transpessoais), vez que

    o poeta e o sonhador, entrando em contato com o seu prprio inconsciente (tanto o pessoal como o filogentico) descortinam uma realidade que vai alm dos limites de sua prpria individualidade (includa a, talvez, o que Freud chama de sonhos seculares da humanidade jovem, op. cit., p. 109). Pois a possibilidade de estar prximo das fontes inconscientes propicia-lhes um conhecimento que se poderia chamar de intuitivo no sentido etimolgico: de in (dentro) + tuor (ver); um ver dentro, que geralmente denominamos, colonizadamente, insigth61

    Desta forma, quando se alude inspirao que o arrebata com a pretenso nica de enaltecer o arroubo e a profundidade de sua embriaguez onrica, de uma tal concepo no advm qualquer prejuzo de vulto sua obra como resulta dos poticos eptetos de poeta intraterrestre e incgnita do verso, atribudos a Canco. O perigo de uma tal concepo est, isto sim, em considerar que sua verve derive de aspectos caracterizados unicamente pela irrazoabilidade, e, com isso, estabelecer uma oposio entre arte primitiva (naf, instintiva) e arte refletida (racional, cultivada), ou seja, de seccionar mais uma vez pensamento e sentimento, colocando-os nas perspectivas, que perduraram e perduram, de definir o popular como a esfera do sentimento e o erudito como a esfera do pensamento ordenado62, e, com isso, perder o sentido de sua historicidade, vez que

    alijada do movimento histrico, confinada numa periferia idealmente imobilizada, expurgada de toda relao dinmica com a cultura viva, ela (a cultura popular) se presta docilmente manipulao reificadora. Reificada, desloca-se discretamente do mbito da Arte e da Cultura para o da

    60 Jacques Maritain, apud Ariano Suassuna, ob. cit., p. 35. A isto alude Freud, quando assevera que

    os poetas so aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o cu e a terra com as quais o nosso saber escolar ainda no nos deixou sonhar. Esto bem adiante de ns, gente comum, no conhecimento da psique, j que se nutrem de fontes que ainda no tornamos acessveis cincia. (Delrios, ob. cit., p. 45)

    Acerca do inconsciente coletivo, a que se refere Jung, e sua confluncia para a Psicologia Transpessoal, veja-se a excelente obra Argonautas dos Espaos Interiores, de Anna Mathilde Nagelshmidt (Ed. Vetor).

    61 Adlia Bezerra de Meneses, O Sonho, ob. cit., p. 25. 62 Maria Didier, Emblemas, ob. cit., p. 67. Como o denuncia Nietzsche (O Nascimento, ob. cit., p. 83), a

    perspectiva irracionalista expressa por Plato em seus dilogos on e Fedro, em que atribui a faculdade criadora do poeta, no ao discernimento [Einsicht] consciente, mas a uma espcie de xtase divino.

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    Natureza63

    Tais consideraes, evidente, no possuem o condo de desmerecer o entendimento de que Canco efetivamente semelhana das coisas mais puras do Paje64. Longe disso; aqui se busca apenas apontar o perigo que h em se deixar de vislumbrar sua obra tambm sob uma ptica que evidencie o aspecto relacionado j apontada dico erudita de seu estro.

    Neste contexto, nos mesmos moldes em que se logrou repelir o entendimento

    que pugna a imprestabilidade da atividade artstica anlise cientfica, cumpre igualmente rejeitar a concepo segundo a qual tal exame, embora admitido, deva se circunscrever ao estudo de aspectos caracterizados pela irrazoabilidade. De fato, embora a potica lrico-popular possa ser entendida como essencialmente espontnea, ldica (circunstncia que constitui, alis, a sua originalidade mais profunda65), insofismvel que esta compreenso no refuta a anlise de seus aspectos formais, de modo que sua apreenso deve se fundar na sntese dialtica entre a embriaguez e a forma, entre o apolneo e o dionisaco, num sentido de integrao ambivalente entre a reflexo racional e o xtase sonhoso66, o que consiste, ao fim e ao cabo, numa das mais contundentes formas de proclamao de sua dignidade, como das mais nobres expresses do gnio humano.

    IV - GRATIA Feitas tais consideraes, convm uma palavra acerca da vultosidade das

    citaes apostas, aqui e nas aludidas notas: se muitos so os autores e as obras a que se faz referncia, decerto que isto no se deve ao atendimento de qualquer arroubo de vaidade do organizador que repudiava o pedantismo j na remota quadra da vida em que seria tolervel o cultivo de vanglrias , mesmo porque tal recurso somente evidencia a debilidade de quem, para fazer chegar o de-comer a outros sfregos pedintes, v-se coagido a esmolar com a cuia alheia. O requesto a to numerosas citaes teve o propsito, isto sim, de fornecer uma plida amostragem de algumas das mais expressivas composies literrias (com o propsito de instigar os leitores a se embrenhar no universo criativo de seus autores) e, ainda, de oferecer subsdios imprescindveis (embora, evidncia, insuficientes) a um oportuno e adequado estudo da potica de Canco. Isto tendo em vista a sua polifrmica e complexa fisionomia literria, vazada, ademais, numa exuberante diversidade estilstica que vai da quadra (em sua maior parte com as belas e dificlimas rimas encadeadas) ao soneto, passando pela quintilha, pela sextilha, pela oitava (com versos de cinco e de sete slabas, em formatos diversos) e pela dcima (em versos setisslabos e decasslabos, monostrfica e em formatos diversos, desde o mais comum ABBAACCDDC dcima espanhola ou espinela ao ABABCCDEED dcima 63 Cludia Neiva de Matos, ob. cit., p. 172. 64 Zeto, introduo ao poema Sonho de Sabi. 65 Cfr. Maria Didier, Emblemas, op. cit., p. 65. 66 Nietzsche, O Nascimento., ob. cit., p. 77. Noutro texto, o filsofo explicita:

    A embriaguez apolnea excita sobretudo o rgo visual, de maneira a produzir-lhe a acuidade da viso ... Ao contrrio, no estado dionisaco, todo o sistema emotivo que ativado e dilatado, de modo que descarrega de uma s vez a totalidade dos seus meios de expresso e pe em jogo a sua fora de representao, imitao, transfigurao e metamorfose, toda espcie de mmica e fico simultaneamente (Crepsculo dos dolos, Companhia das Letras, 2006, p. 34).

    Na j citada obra Tramas do Sagrado..., a pesquisadora Simone Guerreiro aponta tal caracterizao em relao ao vate baiano, figura contraditria, pois se enreda na teia que emaranhou, oscilando entre o fascnio do artista pelos mitos, pela riqueza cultural do Brasil sertanejo onde o sagrado dionisaco e plural e a crena do homem religioso, orientado por um sagrado centrado e fixo, que tende mais ao apolneo. (p. 26).

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    portuguesa ou recitativa, especialidade canconiana). De todo modo, de tudo penso que resulta uma vantagem que se estende a

    todos: a Canco, de quem se evidencia a magnificncia de sua criao artstica atravs da indicao da aproximao estsica que possui com diversos outros luminares da arte literria de todos os tempos e lugares; aos leitores, a quem se proporciona uma incipiente aproximao com a essncia de significativas produes artsticas de diversos matizes; aos prprios autores citados, a quem se faz justia por se dar a conhecer pelo nome quem dadivosamente compartilha as mais primorosas criaes de sua extraordinria faculdade inventiva, verdadeiros transportes que apontam para a alegre necessidade da experincia onrica, na contundente expresso de Nietzsche67.

    Ainda a este respeito, registre-se que se teve o cuidado de evitar o

    sobrecarregamento do volume com notas em demasia e, para isto, convencionou-se utiliz-las somente quando verificadas distines significativas entre as verses apresentadas, relevando-se meras incorrees tipogrficas ou de pouca monta. Convencionou-se, tambm, o uso das seguintes abreviaturas: v(s). = verso(s); terc(s). = terceto(s); quad(s). = quadra(s); quint(s). = quintilha(s); sext(s). = sextilha(s); oit(s). = oitava(s) e dc(s). = dcima(s) e inseriu-se, ao final, um pequeno vocabulrio.

    Por fim, um preito de gratido: nas pessoas de Joana Darc, Juberlita,

    Tefanes Leandro, Ida de Coraci, Antnio de Catarina, Reginaldo Sujinho, Joselito Nunes, Edvaldo da Bodega, Pedro Torres Tunu, Ded Monteiro, Didi Patriota e Nenem de Santa agradeo a todos os sonhosos malungos e companheiros d'armas desta quixotesca demanda, cujo termo nos honra a todos, ante o oferecimento de uma escassa contribuio irredenta cultura do Povo do Serto Profundo, nosso e de outras plagas, atravs desta modesta homenagem a Canco, Osris da Terra dos Faras da Poesia.

    Lindoaldo Campos

    67 O Nascimento, ob. cit., p. 34.