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. Alethes

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Diagramação: Arthur Barretto de Almeida Costa Capa: Edição e montagem de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre Giorgio de Chirico. The Red Tower (1913), Peggy Guggenheim Collection Divisórias: Montagens de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre

Kjell Nupen.Sono interminável. Litografia. 59 x 42 cm

.

_____________________________________________

Alethes: Periódico científico dos graduandos em Direito Da UFJF. Vol. 06, N. 11. (Mai. a Ago. de 2016)

Juiz de Fora: DABC, 2015. Semestral. 1. Direito – Periódicos

ISSN 2177-4633

_____________________________________________

As opiniões expressas são de inteira responsabilidade de seus autores

Esta publicação conta com o apoio do Diretório Acadêmico Benjamin Colucci, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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A dimensão jurídica não pode ser pensada como um mundo de formas puras, ou de simples mandatos separados da realidade social. Paolo Grossi, Mitologias Jurídicas da Modernidade, p. 26

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Conselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialConselho Editorial Editor Chefe

Acadêmico João Vítor de Freitas Moreira (UFJF) Acadêmico Marcos Felipe Lopes de Almeida (UFJF)

Editores Adjuntos Acadêmica Anna Flávia Aguilar (UFJF) Acadêmico Arthur Barretto de Almeida Costa (UFMG) Acadêmico Aurélio Mendes (UFU) Acadêmico Bruno Silva (UFPB) Acadêmica Elora Raad Fernandes (UFJF) Acadêmico Igor Ladeira dos Santos (UFJF) Acadêmica Lorrayne Assis (UFJF) Acadêmico Rafael Carrano Lelis (UFJF) Acadêmica Giovana Figueiredo Peluso Lopes (UFJF)

Acadêmica Maria Fernanda Campos Goretti de Carvalho (UFJF) Conselheiros

Dr. Alexandre Travessoni Gomes (UFMG) Drª Alice Rocha da Silva (UniCEUB). Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos (UFMG) Dr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães (PUC-SP) Dr. Aziz Tuffi Saliba (UFMG) Ms. Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes (UFJF) Dr. Bruno Amaro Lacerda (UFJF) Doutorando Bruno Stigert de Sousa (UFJF e UNESA) Drª Clarissa Diniz Guedes (UFJF) Drª Cláudia Maria Toledo da Silveira (UFJF) Doutorando Daniel Giotti (UFJF) Drª. Daniela de Freitas Marques (UFMG) Dr. Denis Franco Silva (UFJF) Drª. Elizabete Rosa de Mello (UFJF) Doutorando Geraldo Adriano Emery Pereira (UFV) Drª. Eliana Conceição Perini (UFJF) Drª. Éllen Rodrigues (UFJF) Dr Everkley Magno Freire Tavares (UnP) Drª. Fernanda Maria da Costa Vieira (UFJF) Dr. Fernando Ramalho Ney Montenegro Bentes (UFRRJ) Mestranda Juliana Martins de Sá Muller (UERJ) Me Kalline Carvalho Gonçalves (UFJF) Drª Kelly Cristine Baião Sampaio (UFJF) Dr. Leandro Martins Zanitelli (UFMG) Dr. Leonardo Alves Corrêa (UFJF) Me Luiz Carlos Silva Faria Junior (UFJF) Dr. Marcus Eduardo de Carvalho Dantas (UFJF) Dr Moacir Henrique Júnior (Faculdade Politécnica de Uberlândia) Doutoranda Nathane Fernandes da Silva (UFJF-GV) Dr. Noel Struchiner (PUC-RIO) Mestre Paola Angelucci

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Drª Raquel Bellini de Oliveira Salles (UFJF) Ms. Renato Chaves Ferreira (UFJF) Dr. Ricardo Sontag (UFMG) Dr. Sérgio Marcos Carvalho de Ávila Negri (UFJF) Drª Silvana Henkes (UFU) Dr. Tiago Vinícius Zanela (CEDIN) Dr. Thiago Paluma (UFU) Mestrando Vitor Schettino Tresse (UERJ) Drª Waleska Marcy Rosa (UFJF)

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SumárioSumárioSumárioSumário

Conselho Editorial | Editorial Board | 201

Sumário | Summary | 203

Editorial | Editorial | 208 Ensaio | Essay Escola sem partido: o ornitorrinco pedagógico | 212

Rafael Carrno Lelis Lorrayne Assis

Artigos | Articles A teoria de Nils Christie e a Justiça Restaurativa: um diálogo e crítica no sistema penal | The Nils Christie’s theory and Restorative Justice: a dialogue and critics in the criminal justice system. | 220

Giovana Aiello Soares da Costa Anatomia do presidencialismo de coalizão: uma perspectiva histórico-econômica financiada pelo processo orçamentário federal | Anatomy of coalition presidentialism: an economic and historic perspective maintained by federal budget process | 240

Marco Aurélio Souza Mendes Entre o Fato e o Discurso: o Método APAC e sua Efetividade no Cenário Brasileiro | Between the fact and the discourse: the APAC method and its effectiveness in the Brazilian scenario | 268

Raul Salvador Blasi Veyl O Estado Islâmico (EI, ISIS, ISIL, Daesh, IS) é um Estado?| Is The Islamic State (EI, ISIS, ISIL, DAESH, IS) a State? | 285

Bruno Henrique de Moura Estudo da aplicação simétrica dos institutos da Hipótese de Incidência e do Fato Gerador no ordenamento jurídico brasileiro | Study of symmetrical application of institutes Incidence Hypothesis and Fact Generator in Brazilian law | 303

Igor Dias da Silva Valber Elias Silva

A propriedade e a formação da sociedade civil no jusnaturalismo de Grotius e Locke | The

property and the formation of civil society in Grotius’ and Locke’s natural law | 321 André Aarão Rocha

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Produção do conhecimento a partir da Hermenêutica Jurídica | Production of knowledge form Legal Hermeneutics | 347

Giovane Morais Porto A dissolução parcial da sociedade à luz do novo CPC: uma visão crítica da legislação | Partial dissolution of limited liability partnership: a critic visiono f the legislation | 365

Isabela Salomon Reis Descumprimento do interesse público pelo Estado: uma análise crítica do caso de Pinheirinho | Violation of the public interest by the state: a critical analyse of the Pinheirinho case | 389

Maria Souza Marilene Petruci dos Reis Alves Pimenta Rayann Kettuly Massahud de Carvalho

O controle de imigração e o direito à educação das crianças migrantes irregulares | Immigration control and the right to education to irregular migrant children | 407

Mariana Ferolla Vallandro do Valle

O suporte fático de normas de direitos fundamentais | The factual support of norms of fundamental rights | 429

Priscila Carvalho de Andrade

Entrevista | Interview | 449 Entrevista com a Profª Drª Bonita Meyersfeld | Interview with Bonita Meyersfeld

Poemas | Poems Alforria-me! | Matheus P. Gomes Pedaço de Poesia | Matheus P. Gomes No Fundo da Mente | Eduardo Gonçalves Monteiro Riacho | Rafael Pinter Vários Poemas | José Renato Venâncio Resende Pudera Eu! | Augusto Silva Ávila SAMSARA | Igor Ladeira dos Santos Normas de Publicação | Publication Norms | 467

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Editorial

Alethes | 208

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Editorial

Alethes | 209

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Editorial

Alethes | 210

Editorial Editorial Editorial Editorial

É com tamanha satisfação que essa 11ª edição do Periódico Alethes inaugura novos

tempos. Isso, pois, diante das transformações que estamos sujeitos, chegou a hora de

encerrarmos um ciclo que se mostrou em demasia virtuoso.Com essa edição, João Vitor

Moreira e Marcos Felipe se despedem da editoração-geral da Revista e intentam novos rumos,

deixando espaço para que novas pessoas e ideias possam surgir e aprimorar esse projeto que há

tempos surgiu como potência e hoje tem se transformado em ato.

Aos moldes da epígrafe que nos guia desde o edital, o mundo jurídico não deve estar em

separado da realidade social, e é justamente nessa tentativa que lutamos na implementação de

nossas ideias, considerando que as verdades ou as formas jurídicas estão inseridas no

contingente de nossas vidas, sabendo que as relações, todas elas, são, por excelência, distintas.

Hoje, podemos dizer que uma das poucas certezas que temos é que somente na práxis que se

pode promover a transformação dessas normativas estruturantes, desinstitucionalizando a

cultura meritocrática da academia. E aqui a Alethes se mostrou vanguardista. Foram mais de

100 artigos publicados e um respeito conquistado por diversos atores do cenário acadêmico,

nos permitindo dizer que sim, esse projeto deu certo. E, ainda, dissemos mais: a força de um

grupo que acredita em um determinado objetivo consegue promover grandes realizações,

porque nos envolve de tal maneira que a necessidade de trabalhar se torna sentimento de

prazer. Com esse tom de despedida, deve-se agradecer nominalmente aos editores e àseditoras

Anna Flávia, Maria Fernanda, Giovana Lopes, Arthur Barreto, Igor Ladeira, Elora Fernandes,

Marco Aurélio, Bruno Barbosa, Lorrayne Assis e Rafael Lelis. Todos e todas foram

extremamente importantes na construção dessa Revista, pois com as diversas ideias e iniciativas

foi possível sempre prosperar. É como no poema de Augusto Ávila que abaixo segue, foi

possível nos conectar e nos reconhecer.

Nessa edição, contamos com um total de 11 artigos, advindos das seguintes instituições:

UFJF, UFMG, UnB, Mackenzie, UFLA, UFU e UNIVEM. Importa destacar a

contemporaneidade dos artigos publicados, que apresentam assuntos de grande relevância na

conjuntura atual. Nesse sentido, pode-se citar o artigo intitulado “Dissolução parcial de

sociedade no novo CPC: uma visão crítica da legislação” que contribui para a discussão do

Novo CPC, cuja vigência começou no início desse ano. É preciso mencionar também o artigo

“Anatomia do presidencialismo de coalisão: uma perspectiva histórico-econômica financiada

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Editorial

Alethes | 211

pelo processo orçamentário federal”, que trata de questões trazidas à tona pelo processo de

impeachment da Presidente da República do Brasil. Soma-se aos textos científicos um ensaio,

que nessa edição também se mostra muito atual, dada a sua proposta de expor a falácia do

movimento “Escola sem partido”, que tem tido grande repercussão nas Casas Legislativas de

todos os níveis da federação.

Além disso, essa edição resolveu inovar um pouco mais e abrir espaço para que aqueles

poetas e poetisas escondidos nos muros das normas pudessem se expressar. Por isso, a seção de

poemas é de extrema importância para compreendermos que a Alethes intenta empoderar o

aluno e a aluna funcionando como um veículo comunicativo, mas também como um espaço

prazeroso e de constante aprendizado.

Por fim, esperamos que façam uma boa leitura e deixamos os nossos agradecimentos

pela oportunidade do Periódico Alethes e nos despedimos com Carlos Drumond de Andrade:

“Amar o perdido, deixa confundido, este coração. Nada pode o olvido, contra o sem sentido,

apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas

muito mais que lindas, essas ficarão.”

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 212-219, mai/ago, 2016.

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LELIS, R.C.; ASSIS, L. Escolas sem partido

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 212-219, mai/ago, 2016.

Alethes | 214

Escolas sem partido: o ornitorrinco pedagógico

Rafael Carrano Lelis1 Lorrayne Assis2

Em que se baseia a neutralidade do discurso? Pelas veias do discurso não passariam

também células políticas? Recentemente, uma onda de famigerado combate ideológico deu

força a vários projetos de lei com intuito de combater a tida doutrinação. Tramita no Congresso

Nacional (e também em diversas casas legislativas estaduais e municipais) projeto de lei (PL)

que propõe a inclusão, dentre as diretrizes e bases da educação nacional, do programa Escola

sem Partido. Logo no segundo artigo do PL federal, em seu inciso I, dispõe-se que a educação

nacional deverá ser guiada pelo princípio da “neutralidade política, ideológica e religiosa do

Estado” (grifo nosso). Já em seu artigo terceiro, o referido projeto prevê a vedação em sala de

aula da “prática de doutrinação política e ideológica”.

Os dois trechos anteriormente destacados do projeto de lei servem de base para uma

problematização ampliada do ensino e para colocar em cheque o conceito e a (im)possibilidade

de existência de uma neutralidade em contraposição à doutrinação política e ideológica. Afinal,

o que é ser neutro?

Com uma rápida pesquisa em sites de busca na internet sobre o significado da palavra

neutralidade, na tentativa de percepção do senso comum, encontra-se a seguinte definição: “1.

condição daquele que permanece neutro; 2 . imparcialidade, objetividade”. Ao passo que para

o adjetivo neutro é apresentado o conceito: “1. que não se posiciona, se abstém de tomar partido;

neutral”.

Ora, logo se vê que é impossível qualquer forma de ensino na qual não seja feita uma

escolha ou tomada de partido. O ensino da ideologia dominante não deve, em qualquer

hipótese, ser confundido com lecionar de forma neutra. No entanto, é exatamente isso o que

acontece. Como bem nos lembra Bourdieu (2013): “todo ato de transmissão cultural implica

necessariamente na afirmação do valor da cultura transmitida (e paralelamente, a

desvalorização implícita ou explícita das outras culturas possíveis)”. Dessa sorte, escolher

abordar em sala ideais do senso comum em detrimento de vertentes minoritárias de pensamento

corresponde, justamente, a uma forma de ausência de neutralidade e configura uma clara

escolha ideológica. À guisa de exemplificação, transpondo a temática para o campo jurídico,

pensemos no ensino do Direito Penal nas faculdades de direito. Orientar o ensino da ciência

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Membro do Corpo Editorial da Alethes. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Membro do Corpo Editorial da Alethes.

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LELIS, R.C.; ASSIS, L. Escolas sem partido

Alethes | 215

criminal sob uma perspectiva abolicionista é uma escolha de cunho ideológico por parte da

docente, bem como escolher abordar tal ramo do direito sob a ótica do chamado garantismo

penal. Todavia, também se caracteriza como óbvia escolha ideológica (e reafirmação da lógica

dominante) a opção pela apresentação acrítica dos artigos do código penal; ainda mais:

determinar qual interpretação será dada à normativa legal, definir qual jurisprudência será

apresentada e quais casos serão analisados em sala são, passo a passo, opções profundamente

marcadas pela ideologia referente àquela que leciona e, portanto, decisões impossíveis de serem

tomadas de forma neutra, isto é, a existência pura e simples de tais elementos excluem a

possibilidade de qualquer neutralidade no ensino.

Em sua construção teórica, Bourdieu (2010) concebe a ideia de campos (não físicos) de

conhecimento, tais quais os campos religioso, político, econômico etc. Nesses campos,

identificados pela presença de um habitus (reiteração de práticas particulares, com a afirmação

de normas e valores específicos de cada campo), existe uma luta constante pelo monopólio de

dizer, e do reconhecimento para tal, o que significa seu conteúdo interno (como dizer o que é o

direito, no jurídico; ou dizer o que é o sagrado, no religioso). Dessa forma, há grande conflito

e disputa entre as componentes de cada campo para que se possa ser identificada como a

detentora da legitimidade para falar por ele. A disputa pelo monopólio de fala, em si, já

demonstra a existência das diversas visões de mundo (realidades) e a possibilidade de escolha

para que se trabalhe cada matéria. Não fosse suficiente, o sociólogo francês ainda nos alerta

para a autonomia relativa de cada um desses campos e como eles se influenciam mutuamente

e não necessariamente de forma perceptível, o que nos leva, mais uma vez, à impossibilidade

de existência de uma forma de neutralidade na própria construção do ensino.

Resta evidente, portanto, que a pretensa neutralidade proposta pelos referidos projetos

de lei seria uma tentativa de manutenção do que Bourdieu denomina doxa, isto é, a ordem social

estável e valores predominantes, valores naturalizados e não mais questionados, mediante seu

caráter de tradição. Parece-nos certo de que a tentativa seja a de implantação de um

conservadorismo que perpetue o status-quo, suprimindo valores insurgentes e heterodoxos.

Um dos argumentos de maior clamor dentre aquelas que defendem o movimento Escola

sem Partido é de que “o Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o

objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária”. Como

definir o ideológico? Para responder tal indagação nos propusemos a empregar o delineado pelo

sociólogo Terry Eagleton. O discurso ideológico exibe de modo típico certa proporção entre

proposições empíricas e aquilo que poderíamos grosseiramente chamar de visões de

mundo(EAGLETON, 1997). Torna-se evidente que a linguagem constativa está atrelada a

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 212-219, mai/ago, 2016.

Alethes | 216

objetos performativos. As verdades empíricas são trajadas à luz de componentes de uma retórica

global. Ideologia não é uma ilusão infundada, uma força material que deve ter, ao menos,

suficiente conteúdo cognitivo para ajudar a organizar a vida prática dos seres humanos – não

consiste, simploriamente, em um conjunto de proposições sobre o mundo.

Como bem apontado por Terry Eagleton (1997), não existe qualquer definição adequada

ou exata referente ao termo ideologia e que nos permitiria delimitar objetivamente o que seria

doutrinação ideológica. Sendo assim, nos parece oportuno identificar que todo pensamento ou

ideia que possua pré-compreensões intrínsecas, os “pré-entendimentos” como caracteriza

Heidegger, pode ser facilmente (e não há óbice para que seja) taxado de ideológico.

Partindo desse conceito, chega-se à conclusão de que o Projeto de Lei se propõe a

realizar o irrealizável, uma vez que coibir a apresentação de conteúdo ideológico em sala de

aula significa proibir o próprio pensamento: “não existe tal coisa como pensamento livre de

pressupostos, e então qualquer ideia nossa poderia ser tida como ideológica”. Alerta-se, ainda,

para o perigo da implementação de tal projeto, diante do caráter de mordaça que apresenta.

Como visto, impedir uma suposta doutrinação ideológica é o mesmo que impedir o pensamento

e livre expressão de ideias, é prática velada de censura. E pior: quem definirá quais discursos

ferem a ideia de neutralidade e exercem alguma forma de doutrinação política e ideológica?

Traça-se, assim, amplo espaço para arbitrariedades e justificação de atos de perseguição

política, à moda de nosso, não tão distante, regime de exceção.

Bourdieu também argumenta que os sistemas de ação pedagógica submetidos a uma

dinâmica de ensino dominante tendem a reproduzir um sistema de arbitrários culturais daquela

formação social. Ou seja, nada mais faz que contribuir para a legitimação daquele arbitrário

cultural. E o efeito próprio a que se propõem as relações de força é a reprodução cultural ou

social na qual se justificaria a figura da autoridade pedagógica.

Entretanto, uma educação nunca será ampla se não fomentar o ponto de vista crítico das

discentes. Não se defende aqui que a figura pedagógica imputasse só a sua ideologia, mas que

permitisse o debate e a construção de uma visão de mundo à luz de suas ideologias. Além do

mais, é demasiado problemática a concepção de que as estudantes se estagnam naquilo que é

abordado em sala, e é essa a inquietude que uma educação crítica deve fomentar – não se deve

enxergá-las (às estudantes) como meros receptáculos industriais de um sistema que já as

uniformiza.

A primeira lição tirada dessa conspiração ao caos vem do filósofo russo Aleksandr

Tomanov: “Mais importante do que armazenar informação é saber o que fazer com ela”. Em

uma realidade na qual a ideia de uma Escola sem Partido vigorasse, a palavra crítica sairia dos

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LELIS, R.C.; ASSIS, L. Escolas sem partido

Alethes | 217

verbetes, não com a violência do fogo como em Fahrenheit 451, mas pelo fato de sua célula

matriz ser ideológica.

A onda virótica está em processo de latente contaminação, uma vez que projetos de lei

semelhantes ao presente – inspirados em anteprojeto de lei elaborado pelo Movimento Escola

sem Partido (www.escolasempartido.org) – já tramitam nas Assembleias Legislativas dos

Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Espírito Santo, e na Câmara Legislativa do

Distrito Federal; e em dezenas de Câmaras de Vereadores (v.g., São Paulo-SP, Rio de Janeiro-

RJ, Curitiba-PR, Vitória da Conquista-BA, Toledo-PR, Chapecó-SC, Joinville-SC, Mogi

Guaçu-SP, Foz do Iguaçu-PR, Juiz de Fora–MG etc.), tendo sido já aprovado nos Municípios

de Santa Cruz do Monte Carmelo-PR e Picuí-PB.

Escola sem partido é um artifício conservador que visa suprimir a ideia do que

imaginam ser uma ideologia (notadamente a minoritária), buscando a legitimação da estrutura

dominante. Tal projeto, paradoxal desde sua gênese, em muito se assemelha à figura estranha

do Ornitorrinco, descrita por Francisco de Oliveira: tem rabo de réptil, possui mamas que não

têm seios, pico de pato, coloca ovos, tem esporão venenoso; identifica-se,assim,o peculiar

animal com o descrito Projeto de Lei: imputar a ideia de neutralidade em discursos que têm por

âmago biológico a ideologia causa demasiada estranheza e salta aos olhos como antinatural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Aleksandr Tomanov, in: Paradigmas Soviéticos Contemporâneos ao Caos. Edição Príncipe, 1899. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013. BOURDIEU, Pierre. PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução: elementos para uma teoria de ensino. Trad.: Reynaldo Bairão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2010. DISTRITO FEDERAL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Nº 867 , DE 2015. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050668. Acesso em: 10 jul. 2016. Eagleton, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora Boitempo, 1997. Escolas sem Partido. Disponível em: <http://www.escolasempartido.org/>. Acesso em: 10 jul. 2016.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 212-219, mai/ago, 2016.

Alethes | 218

OLIVEIRA, Francisco de. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Petrópolis: Cebrap/Vozes, 1972. Nova edição: São Paulo: Editora Boitempo, 2003.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 220-239, mai/ago, 2016.

Alethes| 220

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COSTA, G.A.S. A Teoria de Nils Christie e a Justiça Restaurativa

Alethes | 221

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 220-239, mai/ago, 2016.

Alethes| 222

A teoria de Nils Christie e a Justiça Restaurativa: um diálogo e crítica no sistema penal.

The Nils Christie’s theory and Restorative Justice: a dialogue and critics in the criminal justice system.

Giovana Aiello Soares da Costa1

Resumo Este artigo é fruto de estudos que vêm sendo elaborados durante meu período de mobilidade

na Universidade do Porto, Portugal - no qual tive meu primeiro contato com a Justiça Restaurativa. O texto consubstancia uma análise do artigo elaborado pelo conceituado autor norueguês, Nils Christie, acerca de sua teoria abolicionista sobre o sistema processual penal moderno: Conflicts as Property, publicado no The British Journal of Criminology, em 1977. Ao longo deste artigo, comentários e críticas serão realizados sobre o tema, bem como consideração sobre a teoria de Christie como ponto fundamental para a concretização da Justiça Restaurativa e o Direito Processual Penal mais “humanizado”. Também serão considerados o papel do Estado e quais são os limites necessários para que haja uma harmonização do tema.

Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Criminologia. Direito Processual Penal. Abolicionista.

Abstract This article is the result of studies that have been developed during my exchange program

in the University of Porto, Portugal – which I had my first contact with Restorative Justice. The text is an analysis of an article written by the renowned Norwegian author, Nils Christie, about his abolitionist theory of the modern criminal justice system: “Conflicts as Property”, published in The British Journal of Criminology, in 1977. Throughout this article, comments and reviews will be conducted on the subject and relate to Christie’s theory as the main point for the implementation of the Restorative Justice and the criminal justice system more “humanized”. It will also be subject the State’s role in this radical process and know what are the limits needed for a harmonization of the theme. Key words: Restorative Justice. Criminology. Criminal Justice System. Abolitionist.

1 Estudante de graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo (SP).

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1. O convite Nils Christie (1977, p. 2), sociólogo e criminólogo norueguês, faz um convite interessante

ao leitor no seu artigo Conflicts as Property2. O autor convida-o para viajar a Tanzânia, mais

especificamente na província de Arusha. Lá, há uma casa no meio do vilarejo. Dentro dela,

encontra-se várias pessoas: estavam rindo, fazendo piadas, conversando e, ansiosas, algumas

prestavam atenção naquilo que estava a acontecer. “It was a circus, it was a drama”(CHRISTIE,

1977). Na verdade, aquilo era um tribunal. Estava acontecendo um julgamento.

No centro da casa e de todos os presentes, haviam duas pessoas. Um homem e uma mulher.

Eles haviam se casado, mas, depois de um longo tempo, estavam convictos que iriam se divorciar.

É um julgamento cível, mas que poderia ser usado para qualquer tipo de conflito. Eram decididos

sobre os assuntos do divórcio como a partilha de bens, conversando e ouvindo um ao outro

normalmente. Os amigos e familiares, que se encontravam ao lado deles, opinavam sobre a partilha.

A audiência, que assistia o julgamento, em geral, fazia piadas ou algumas perguntas rápidas. Os

juízes eram três secretários daquele vilarejo e se misturavam no meio daquela multidão – só

intervinham na conversa do casal quando realmente achavam necessário, fazendo pequenos

comentários e conduzindo-os a uma decisão com base na lei local. Esse é um típico modelo de

tribunal na província de Arusha, Tanzânia. É África. É um continente “primitivo”. A forma como

este julgamento é realizado permite a todos os habitantes do vilarejo poderem assisti-lo, pois todos

têm o direito de se manifestar, de conversar e de ouvir atentamente o que o outro tem a dizer. Os

juízes não são superiores ou inferiores a ninguém: eles fazem parte da multidão. O principal

objetivo é o casal decidir sobre o seu divórcio - é o futuro daquelas duas pessoas. Uma decisão

realizada na base de comunicação, de conversa, a fim de chegar a um resultado no qual os dois

concordem e cumpram aquilo que foi combinado.

Diferentemente do que acontece na justiça e no processo penal na maior parte dos países

Ocidentais. Estes estão mais preocupados com o passado. O objeto central é a punição do ofensor

e os respectivos gastos suportados pelos Estados, e não necessariamente há uma preocupação em

2 “Publicado em um momento importante para a criminologia crítica, inúmeros outros trabalhos e pesquisas foram iniciadas a partir do conhecido artigo de Christie [Conflicts as property], focados na busca de um novo modelo de justiça criminal que pudesse se preocupar menos com os prejuízos estatais decorrentes de um delito e aos danos a elas causados. O nome desse novo modelo de justiça criminal viria consolidar como Justiça Restaurativa” (ACHUTTI, 2012, p. 1).

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reabilitar o indivíduo. Em relação à vítima, pouco se sabe sobre ela. As vozes são feitas e

mascaradas através de representantes legais. O juiz não é a multidão - ele está em um outro

patamar, isolado e poderoso. O julgamento não é para os indivíduos envolvidos no conflito, por

ser um interesse apenas para o próprio Estado. Assim, o sistema processual é o reflexo do

capitalismo e da sociedade industrial na qual os indivíduos se encontram em uma administração

judiciária totalmente seletiva e demorada.

A vítima é uma pessoa que foi ferida emocionalmente, materialmente ou psicologicamente.

O ofensor é aquele que assume seus atos. Todos merecem falar e serem ouvidos. Mas não é

exatamente isso o que acontece.

E essa é a principal crítica de Nils Christie.

2. A proposta.

O autor começa seu artigo com uma frase impactante: “Maybe we should not have any

criminology. Maybe we should rather abolish institutes, not open them. Maybe the social

consequences of criminology are more dubious than we like to think” 3(CHRISTIE, 1977, p.1).

Desde logo, Christie se posiciona a respeito de sua teoria abolicionista acerca da Criminologia e do

Direito Penal. Esta crítica, ousada e radical, feita em 1977, é considerada uma forma revolucionária

de contestar o próprio sistema de punição que o Estado impõe à população4, sendo considerado um

pensamento atual que coloca questionamentos sobre o papel do sistema punitivo, uma vez que

A justiça tradicional não cumpriu as suas promessas, principalmente com relação a ressocialização e prevenção, e para que as respostas do subsistema criminal sejam mais participativas, negociadas e não aflitivas, os conflitos interpessoais devem ter a possibilidade de ser solucionados efetivamente e a justiça restaurativa pode ser um instrumento que consiga ajudar a restabelecer o equilíbrio entre o crime e o tipo de resposta a ser aplicada, com o resgaste de todos os interessados na solução do conflito interpessoal. (SANTOS, 2014, p. 14).

A teoria abolicionista defende que, em geral, o Estado faz do conflito uma propriedade sua.

Tem como objetivo criticar a forma radical do sistema carcerário e a sua lógica de punir a todos

3 “Talvez não devêssemos ter nenhuma criminologia. Talvez seria melhor se abolíssemos as instituições, não as abrir.

Talvez as consequências sociais da criminologia são mais duvidosas do que gostaríamos de pensar” (tradução livre). 4 “Ainda que a discussão tenha se iniciado a partir dos anos 1970, pouco ou quase nada se produziu a respeito no Brasil. Raras são as referências ao tema na maioria dos trabalhos e manuais criminológicos à disposição do público brasileiro” (ACHUTTI, 2012, p. 1).

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como uma maneira de compensação do crime. Se há um conflito, este precisa ser resolvido entre

as pessoas envolvidas. O conflito é uma propriedade que somente pertence a elas. Dessa maneira,

O castigo não é o meio mais adequado para reagir diante de um delito e, por melhor que possa ser, eventuais reformas no sistema criminal não surtirão efeito, pois o próprio sistema está equivocado ao estabelecer que uma resposta punitiva (pena de prisão) o ‘problema do delito’ estará solucionado. (ACHUTTI, 2012, p. 4)

Os teóricos abolicionistas, que tiveram seu ápice nos anos 70 sobretudo no Hemisfério

Norte, criticavam a forma do capitalismo selvagem no qual sociedade era (é) inserida, posto que

O foco do abolicionismo penal – corrente teórica cuja própria denominação indica as suas pretensões – tem seu foco voltado para a construção de uma crítica capaz de deslegitimar de forma radical o sistema carcerário e a sua lógica punitiva. (ACHUTTI, 2012, p. 4)

Destarte, o tribunal não deveria ser visto como algo superior ou ameaçador. Como bem

analisa Christie (1977, p. 3) acerca do sistema penal da Noruega, os edifícios dos tribunais são

imponentes, grandiosos e intimidadores. Isso se aplica não somente em seu país natal, como

também em vários outros Estados. Eles estão geralmente situados no centro administrativo da

cidade, longe dos bairros habitacionais da população. Os edifícios são arquitetados de uma maneira

complexa onde existem várias salas, de um modo sem transparência, ao ponto de chegar a ser fácil

se perder dentro delas – praticamente um labirinto5. O sistema penal não deve ser algo visto como

um meio de punição ou uma forma de vingança, e esse é o maior objetivo da justiça restaurativa6.

A apropriação que o Estado faz com o caso que está em julgamento é algo muito sério.

Nele, as partes falam muito pouco ou nem sequer falam, já que são sempre representadas por

advogados e promotores, os “ladrões profissionais”. Quem decide é o juiz - o terceiro imparcial -

responsável por determinar a eventual punição do ofensor. A vítima da situação é representada pelo

Estado. Neste ponto, “the victim has lost the case to the state” (CHRISTIE, 1977, p. 3). A

5 Na cidade de Valência, na Espanha, está aberta ao público o programa “Palaus Transparents”. Tal projeto foi elaborado pelo Ministro da Transparência, Responsabilidade Social, Participação e Cooperação, Manuel Alcaraz em setembro de 2015, juntamente em uma discussão de cooperação com o prefeito Joan Ribó. O programa em si tem como objetivo abranger a abertura, horários e práticas de visitas para cada instituição, além de serem utilizados programas educacionais para aumentar a consciência dos edifícios públicos de valor histórico e artístico. Segundo o Ministro Alcaraz, “Es muy importante mostrar la cara amable y estética del poder”. Isso é importante para trazer aos cidadãos a necessidade de transparência e acessibilidade que deve haver a ponte entre a Administração e os cidadãos. Disponível em < http://www.20minutos.es/noticia/2558468/0/edificios-publicos-valor-historico-se-abriran-ciudadania-con-programa-palaus-transparents/ > Acesso em 13. mar. 2016. 6 “Restorative justice is a key issue in all debates on reform in criminal justice, especially in juvenile justice” (WALGRAVE, 2002).

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problematização quase chega a ser um próprio interesse empresarial, relacionados a

profissionalização (CHRISTIE, 1977, p. 4), considerando

o paradigma atual, retributivo ou aflitivo, nos condicionou a raciocinar, com o entendimento, que a violação de uma norma de comportamento deve implicar em uma norma sancionadora, materializada em uma pena aflitiva, ou, em outras palavras, ocorrendo o crime deve ser impingida ao infrator uma dor, sendo a prisão privativa de liberdade erigida à condição de pena por excelência. (SANTOS, 2014, p. 13).

Também há uma série de críticas ao comportamento do advogado perante os conflitos: “they

are most interested in converting the image of the case from one conflict into one of non-conflict”

(CHRISTIE, 1977, p. 4). Assim, os advogados sempre estudam para instruir o outro para “acabar”

com um conflito, e não para atuar em um sistema no qual as duas partes podem chegar a um acordo.

O seu trabalho é de argumentar o que acham de relevante no caso; no qual impossibilita as partes

de decidirem sobre o que elas pensam em ser relevante na resolução do conflito.

Os profissionais não podem ser dominantes, pois o que mais interessa no processo de Justiça

Restaurativa são as vozes das partes, uma vez que elas devem falar mais alto em relação a qualquer

outro profissional - mas com limites na Lei e nos Direitos Humanos, respeitando sempre os Direitos

Fundamentais e o princípio da proporcionalidade (ASHWORTH, 2002). A filosofia central da

Justiça Restaurativa é que, através da comunicação voluntária entre as partes, há um diálogo sobre

o que realmente aconteceu e, por fim, a um consenso com obrigações a assumir: uma reparação.

A comunicação entre as partes – vítima e ofensor – é fundamental para que estes cheguem

a um acordo (com a ajuda de um mediador, mas este não toma a decisão, apenas tem a função de

orientador e harmonizador da comunicação). O conflito, que é o ponto central da questão, existe na

sua própria linguagem. Os mediadores defendem um conflito semântico, uma requalificação do

objeto a fim de dar voz tanto à vítima como ao ofensor.

Um dos motivos para que este processo suporta é uma própria reforma política, que muitos

a consideram como uma forma de combater o sistema repressivo do Estado de ter dependência

desumana nas prisões – aquele pensamento antiquado de que um problema só se resolve em

enjaular um cidadão que cometeu uma infração penal (BRAITHWAITE, 2002). Essa liberdade de

diálogo que a Justiça Restaurativa permite às partes é uma forma de empoderamento para os

cidadãos de assumir a responsabilidade de assuntos que antes só se resolviam com a presença de

autoridades estatais. Assim, isso faz com que os próprios indivíduos percebam que, apesar do

processo não passar nas mãos de juiz, o criminoso assume as suas responsabilidades e que o seu

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acordo com a vítima não é algo para ser analisado como punição, mas sim uma restauração do

problema entre ambos. É uma maneira mais humanizada de tentar chegar a um acordo que seja

consensual e reparador, consentido por vítima e ofensor, mas sempre respeitando as leis7. Além

disso,

a Justiça Restaurativa atua diversamente do paradigma punitivo quando devolve à vítima, ao ofensor e à comunidade o conflito criminal e, também, o poder de decidirem ou planejarem sobre a melhor forma de solucionar este conflito (SANTOS, 2014).

A mediação deve atender as necessidades8 da vítima. É natural que cada indivíduo encare

o impacto do crime de maneiras diferentes. Alguns podem ser mais sensíveis, outros mais

indiferentes, mas é claro que grande maioria é abalada de algum jeito: físico, psicológico ou social.

A vulnerabilidade depende dos fatores e características individuais, sendo que também pode ser

uma vulnerabilidade econômica, sobretudo para aqueles mais pobres ou mais apegados àquilo que

sofreu danos.

Desse modo, Christie9 (1977, p. 7) ressalta e explica o título do seu artigo Conflicts as

Property: o conflito é propriedade sobretudo da vítima e isto não pode ser tirado dela.

Consequentemente, a vítima tem um papel não apenas na sobrecarga emocional mas de chegar a

um acordo com o seu ofensor

O conflito é algo valioso, e por isso muitas vezes aqueles profissionais, anteriormente

citados, normalmente tomam posse dele, sendo que isso acontece muito em nossa sociedade

7 Desde 1977, Christie (p. 6) já refletia sobre as relações humanas de uma maneira tão atual: “Segmentation according to space and according to caste attributes has several consequences. First and foremost it leads into a depersonalisation of social life. Individuals are to a smaller extent linked to each other in close social networks where they are confronted with all the significant roles of the significant others. This creates a situation with limited amounts of information with regard to each other. We do know less about other people, and get limited possibilities both for understanding and for prediction of their behaviour. If a conflict is created, we are less able to cope with this situation. Not only are professionals there, able and willing to take the conflict away, but we are also more willing to give it away”. Na comunicação durante o processo de mediação na Justiça Restaurativa, é fundamental que as partes estejam sempre abertas para conversar e expor o seu ponto de vista de maneira harmoniosa, sendo amparada pelo mediador apenas quando necessário. 8 A vítima pode sentir a necessidade de vingança. Se formos pensar de um ponto de vista mais crítico, o próprio sistema de justiça o qual estamos inseridos aspira por esse desejo de vingança. É normal que a vítima sinta esse desejo, aquela necessidade de ver o seu ofensor punido de alguma forma. É aprender a lição (exemplo) de não cometer o crime novamente, sendo assim, a pessoa pode ser “castigada” no sentido de aprendizagem, ajudando-a a reintegrar nas normas. Contudo, a mediação é um ponto importante para que a própria vítima conheça seu ofensor e perceba que ele também é humano e comete erros. Quando a vítima conhece melhor o caso concreto e seu ofensor, há uma tendência de a vítima ser menos punitivas, pois existe assim uma flexibilização e compreensão sobre o ofensor. O ofensor é uma pessoa e algumas de suas circunstâncias é possível compreender seus atos (mas não justifica-los). Deve haver uma sinceridade entre vítima-ofensor. 9 Christie defendia uma “justiça mais participativa e centralizada” (ACHUTTI, 2012, p. 7).

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industrial atual: a vítima não perde somente o seu emocional, material ou psicológico, mas perde o

seu próprio caso quando não há o direito de ouvir a sua própria voz. O Estado apodera-se da sua

compensação, que acontece quando é voltado mais para o ofensor do que a própria vítima. Outro

detalhe importante: em relação à vítima, não é esperado que ela seja imparcial (ASHWORTH,

2002). O mediador, durante esse processo, precisa ser parcial, mas “the requirement does not imply

that the mediator should be indifferent to the fact that the offence has been committed and the

wrongdoing of the offender” (PELIKAN, 2002).

O acordo deve ser coerente para as partes envolvidas (CHRISTIE, 1977, p. 8). Não é algo

em si satisfatório, pois a reparação do problema deve ser vista como um consenso no qual devem

ser respeitado os direitos e que seja proporcional aos danos causados pelo ofensor. Talvez, para os

cidadãos em geral, o que é acreditado algo não relevante como uma solução, as partes envolvidas

no conflito a podem considerar como uma forma de restauração. Um pedido de “desculpas”, por

exemplo, é aceito se a vítima e o ofendido concordarem. Para isso, também é necessário que ambas

as partes estejam preparadas psicologicamente para este processo (WALGRAVE, 2002), já que se

trata de uma comunicação que nem todos, estão prontos e maduros para facear, por isso as partes

são livres para aceitar ou não este processo de mediação. Talvez seja uma situação difícil para se

enfrentar – sobretudo para a vítima -, mas com certeza seu resultado pode trazer um maior conforto

aos indivíduos: aqui os acontecimentos se esclarecem. Há uma compreensão sobre o que de fato

aconteceu.

Sobre o ofensor assumir a responsabilidade, é um critério essencial na Justiça Restaurativa.

É importante o ofensor ser ouvido, a fim de que se haja um entendimento e clareza sobre o que o

levou a cometer tal ato e quais foram as consequências que trouxe à vítima. “Human beings have

reasons for their actions” (CHRISTIE, 1977, p. 9). Assim, é significativo restaurar os laços sociais

entre o indivíduo ofensor, a vítima e a própria comunidade; o que, ademais, proporcionaria ao

ofensor situação confortável para assumir sua responsabilidade

Nos processos que ocorrem atualmente – o Estado como o proprietário do conflito – por

vezes o ofensor não consegue assimilar e compreender o porquê daquela punição. Christie (1977,

p. 9) ainda ressalta que não há uma punição para a “cura do crime”, mas que o acordo, resultante

de um processo de mediação, pode encontrar a justa reparação com os valores gerais da sociedade.

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Outro ator abolicionista, Hulsman10, acredita que as proporções de crimes violentos não são

suficientes para sustentar o sistema, e o próprio sistema penal não é uma ferramenta de garantia de

impedimento das pessoas cometerem crimes ou não (KULLOK, 2014). As obrigações que o

ofensor concordou em assumir não devem ser vistas como uma forma de “vingança” ou “dor”, mas

sim de uma restauração - como a respeito da tese de Christie, o qual acredita que a Justiça

Restaurativa é uma ferramenta que possibilita a independência entre os indivíduos de resolverem

seus próprios conflitos em respeito ao princípio da voluntariedade (PELIKAN, 2002, p. 27).

O processo de Justiça Restaurativa11 maximiza a participação das vítimas e dos ofensores

na procura da restauração, conciliação e responsabilização pelos danos – bem como a sua

prevenção para possíveis outros conflitos. O Estado desempenha funções delimitadas, como a

investigação dos fatos, a facilitação dos processos e a garantia de segurança, mas não é a vítima

direta. O crime é fundamentalmente uma violação pessoal e das relações interpessoais, sendo que

normalmente quem sofre mais é a vítima; e a reparação é uma resposta para esses indivíduos. A

comunidade, em si, também tem a sua função de reintegrar socialmente o ofensor, com a ajuda do

Estado (ZEHR, 2012). Porém, é importante ressaltar que o mediador não é o representante do

Estado, mas sim um facilitador da comunicação durante o processo de mediação, além de ser uma

figura imparcial.

É importante, inclusive, ressaltar a importância da proporcionalidade dos acordos (princípio

da proporcionalidade). É necessário analisar a gravidade da ofensa e qual foi o seu impacto para a

vítima. O acordo resultante da comunicação entre a vítima e o ofensor deverá ter a Lei como base

além das recomendações e orientações do mediador. Além disso, a participação na mediação não

deve ser utilizada como prova de admissão de culpa no desenvolvimento judiciário ulterior do

processo (princípio da confidencialidade): o arquivamento na sequência dos acordos obtidos deve

ter o mesmo valor de uma decisão feita pelo juiz. (PELIKAN, 2002).

10 “O abolicionismo – através principalmente de Hulsman – propõe-se a desconstruir a definição de delito: o delito não seria o objeto, mas o produto de uma política criminal que pretende justificar o exercício do poder punitivo, e não possuiria realidade ontológica. De acordo com o autor, a partir de então seria possível reorganizar o debate de criminologia e da política criminal, e tal postura apontaria para a abolição da justiça penal, uma vez que o “delito como realidade ontológica” seria a pedra fundamental deste tipo de justiça” (ACHUTTI, 2012, p. 4). 11 “Restaurativa” foi traduzida do adjetivo “aufarbeitend”, que significa “trabalhando através de”. Este esforço restaurador é marcado por assistir o povo de necessidades e interesses concretos, isto é, o dano, a raiva e o sofrimento causado; sendo estes ajustados pelo Direito, fornecendo material e/ou compensação emocional para estas experiências negativas (PELIKAN, 2012).

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Assim, Christie (1977, p. 10) raciocina a ideia de um “tribunal comunitário” com quatro

etapas fundamentais. Em primeiro lugar, o tribunal deve ser utilizado como uma forma de dar uma

orientação à vítima – analisando se tal ato foi infracional e quem são os verdadeiros responsáveis

por isto.

Em segundo lugar, o tribunal analisaria o relatório por meio do qual a própria vítima

transmitiria a sua consideração com a finalidade de esclarecer os detalhes. Desse modo, seria uma

“detailed consideration regarding what could be done for him, first and foremost by the offender,

secondly by the local neighbourhood, thirdly by the state” 12 (CHIRSTIE, 1977, p. 10). É necessário,

portanto, uma organização para garantir a aplicação de tais direitos e garantias.

Depois de muita análise, em terceiro lugar, o tribunal chegaria (ou não) a uma punição do

autor do crime, com o principal objetivo de reparar à vítima dos danos sofridos. Os tribunais de

bairro devem seguir os valores daquela comunidade, sendo estes “public arenas, needs are made

visible” (CHIRSTIE, 1977, p. 10).

Por fim, na quarta e última etapa, além da acordo entre partes tem sentença do juiz, é

necessário que o ofensor seja garantido de serviços sociais que visem a restauração para evitar a

sua reincidência – expostas suas necessidades sociais, educacionais, médicas ou religiosas. Este

modelo pode ser usado tanto nas causas cíveis como também nas criminais: um tribunal orientado

à vítima, menos profissionalizado e mais aberto aos leigos. É uma das lógicas de se fazer justiça.

Para a solução de conflitos, “o autor não apoia a ideia acha existir um especialista em

conflitos” (CHRISTIE, 1977, p. 11). Em seu artigo, ele diz que ter um especialista leva-o a uma

profissionalização de

specialisation in conflict solution is the major enemy; specialisation that in due— or undue — time leads to professionalisation. That is when the specialists get sufficient power to claim that they have acquired special gifts, mostly through education, gifts so powerful that it is obvious that they can only be handled by the certified craftsman (CHIRSTIE, 1977, p. 11)13.

12 Christie ressalta a importância da consideração do envolvimento da vítima, do ofensor, da comunidade e apenas por último, do Estado. 13 Essa profissionalização aumentaria a dependência destes profissionais para o processo de mediação e resolução de conflitos. As partes, quando são envolvidas em um conflito, devem estar equivalentes. O autor também debate sobre a importância de um mediador não estar presente em vários conflitos diferentes além de que “The ideal is clear; it ought to be a court of equals representing themselves. When they are able to find a solution between themselves, no judges are needed. When they are not, the judges ought also to be their equals” (p. 11). Christie acredita que os advogados não deveriam estar presentes em todas as fases do processo – mas só para aquelas em que for realmente necessário, como na sentença final.

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Assim, em matéria de conflitos sociais, a não-especialização em mediação de conflitos é

fundamental. A participação voluntária das partes é o mais importante – uma comunicação e

esclarecimento dos fatos. O mediador cumpre o seu papel apenas quando for necessário, não sendo

nem o dominador e nem o centro do conflito. “They might help to stage conflicts, not take them

over” (CHIRSTIE, 1977, p. 12). Se isso acontecer, novamente a propriedade do conflito será

retirada da vítima ou do ofensor para uma terceira pessoa. Percebe-se, então, que é de

responsabilidade do Estado assegurar a ordem e a obediência à Lei na sociedade, bem como

estabilizá-las e harmonizá-las, mas sempre de modo que dependendo do crime ali encontrado, a

mediação seja uma alternativa do sistema processual normal, uma forma livre e consensual de

solução de conflitos entre as partes – por isso o mediador deve apenas facilitar a comunicação

entre estas, e não ter como objetivo ser aquele que resolverá o conflito dos outros (ASHWORTH,

2002).

Há um problema atual: existem diversas comunidades, poucas vítimas, muitos profissionais.

Um dos problemas causadas pela industrialização (CHRISTIE, 1977, p. 12) é a existência da

divisão de gênero e idade, além dos vários conflitos internos e externos que a comunidade tem ao

longo de sua história. As vítimas precisam ser prioritárias e ouvidas. O excesso de profissionais

muitas vezes não está sincronizado com os produtos do sistema – sobretudo no Direito. Essa

extrapolação pode prejudicar o tratamento individualizado que uma vítima necessita.

Em nossa realidade, progressivamente o Brasil se aperfeiçoa em matéria de mediação e

conciliação, sobretudo com a vigência do novo Código de Processo Civil (CPC) de 2015 e o ato

administrativo na Resolução n° 125 de 29/11/2010. O novo CPC de 2015, no seu artigo 1º, § 3º,

dispõe que “a conciliação, mediação e outros métodos de resolução consensual de conflitos deverão

ser estipulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público,

inclusive no curso do processo judicial” (BRASIL, 2015).

Além disso, a Seção V do mesmo diploma é titulado como “Dos Conciliadores e

Mediadores Judiciais”, e faz alusão diversos princípios, como por exemplo, o artigo 166º: “a

conciliação e a mediação são informadas pelos princípios da independência, da imparcialidade, da

autonomia da vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informação e da decisão informada”

(BRASIL, 2015).

A Resolução n° 125 de 29/11/2010 tem como objetivo especificar e regulamentar as lacunas

deixadas no CPC sobre a mediação e, como bem consta em seu artigo 4°, “compete ao Conselho

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Nacional de Justiça organizar programa com o objetivo de promover ações de incentivo à auto

composição de litígios e à pacificação social por meio da conciliação e da mediação” (BRASIL,

2010)14. Em um país populoso como o Brasil, é importante para os indivíduos e para o próprio

judiciário perceberem a relevância de resolver os conflitos através da conciliação/mediação, pois

há também economia de tempo e dinheiro. Ademais, é um meio de pacificação e entendimento

entre as partes, mostrando lhes que não seria necessário o amparo via processo judicial. Para tal, o

governo disponibiliza os Centros Judiciários de Resolução de Conflitos e Cidadania para que os

indivíduos se encontrem e conheçam quais são os seus direitos e garantias. Conforme o Conselho

Nacional de Justiça:

a conciliação resolve tudo em um único ato, sem necessidade de produção de provas. Também é barata porque as partes evitam gastos com documentos e deslocamentos de fóruns. E é eficaz porque as próprias partes chegam à solução de conflitos, sem a imposição de um terceiro (juiz). É, ainda, pacífica por se tratar de um ato espontâneo, voluntário e de acordo comum entre as partes. (CNJ, 2016)

E ainda orienta o cidadão, informando-o que

qualquer uma das partes pode comunicar ao tribunal, cujo processo tramita, a intenção de conciliar, ou seja, a vontade de busca de um acordo. Dessa forma, é agendada a audiência, na qual as partes terão o apoio de um conciliador na busca de soluções para seus conflitos. As partes podem ou não estar acompanhadas de advogados, que podem ajudar nos esclarecimentos jurídicos. Se você tem ação tramitando na Justiça Federal, Justiça Estadual ou na Justiça do Trabalho e quer conciliar, entre em contato com o Núcleo ou Centros de Conciliação no seu estado ou município (CNJ, 2016).

Assim, o país avança para uma alternativa ao clássico sistema processual. E não apenas o

Brasil, mas vários outros Estados também estão adotando medidas de regulamentação da mediação.

Na África do Sul, por exemplo, e a mediação teve a sua função de restaurar os conflitos motivados

pela segregação racial após o apartheid, aquela se tornou o principal motivo de mediação da região

(APOLLO, 2015). Outros países em destaque são o Canadá, Austrália e EUA.

14 “São Paulo – o maior tribunal brasileiro, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) conta com o maior número de CEJUSCS [Centros Judiciários de Resolução de Conflitos e Cidadania] instalados no país: são 153 unidades, sendo 7 na capital e 146 no interior. Os centros paulistas têm alcançado importantes índices de sucesso na área da conciliação. Antes do ajuizamento da ação, na chamada pré fase processual, o número de acordos vem beirando a 67%. Das 122 mil sessões de tentativas de conciliação, houve resultado positivo em 82 mil delas. Na área processual (quando o processo judicial está em curso), das 113 mil sessões, 56 mil foram positivas, alcançando 49% das conciliações”. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/81709-conciliacao-mais-de-270-mil-processos-deixaram-de-entrar-na-justica-em-2015 > Acesso em: 05 abr 2016.

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No âmbito europeu, países como Áustria, Bélgica15 e Holanda, se destacam como pioneiros

no processo de mediação. Estas utilizam o modelo VOM (vítima-ofensor-mediador), com círculos

de apoio e co-responsabilização para o controle, segurança, proteção e reintegração dos indivíduos;

mas com características diferentes. No caso da França, outro Estado pioneiro, utilizava-se o modelo

VO (orientação ao ofensor). Na preocupação de estabelecer um modelo-base para os países

europeus, a União Europeia elaborou a Recomendação n° (99)19 a respeito do processo de

mediação, cujo propósito é uniformizar as regras de mediação nos países membros.

Nessa recomendação, a União Europeia aponta para algumas características e princípios

fundamentais (PELIKAN, 2002): a mediação como ato voluntário (o consentimento das partes deve

ser livre e esclarecido); confidencialidade; acessibilidade; possibilidade de desistir em qualquer

fase do processo e autonomia dos serviços de mediação (ou seja, podem existir instituições públicas

ou privadas que façam o processo de mediação). Desse modo, há um enquadramento jurídico tanto

nas legislações como nas linhas orientadoras do recurso à mediação (remessa do processo),

objetivando instaurar uma harmonia com os direitos fundamentais e da Convenção Europeia dos

Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. O resultado das mediações são acordos de caráter

voluntário, razoável e proporcional16.

Em Portugal, existe a Lei n.º 29/2013, de 19 de abril, a qual refere-se aos Princípios Gerais

Aplicáveis à Mediação (Civil e Comercial). A definição de mediação está presente no artigo 2º, a):

“mediação, a forma de resolução alternativa de litígios, realizada por entidades públicas ou

privadas, através da qual duas ou mais partes em litígio procuram voluntariamente alcançar um

acordo com assistência de um mediador de conflitos”, além de que, conforme no artigo 9º, n.º 1 “as

partes podem, previamente à apresentação de qualquer litígio em tribunal, recorrer à mediação para

a resolução desses litígios” e o n.º2,

15 Um detalhe da Bélgica é que esta possui uma característica – no processo de mediação – de que o mediador possui uma profissão exclusiva para tal. O programa é mais voltado ao ofensor, sendo realizado no começo ou final do inquérito. O Ministério Público e a política têm discricionariedade, além de que os crimes que podem ser usados na mediação são normalmente aqueles contra a pessoa e contra a propriedade (com pena menor de 2 anos), bem como delitos menores contra pessoa e crimes contra a propriedade. 16 “Council of Europe recommendations are in general marked by three features that shape and partly restrict in a clear way the scope and the influence of these international policy instruments: First, the various reports, recommendations and conventions of the CPDC [Committee of Experts convened by the European Committee on Crime Problems] are legal documents (…). Second, the cornerstone of the work of the Council of Europe is ‘European Convention on Human Rights and Fundamental Freedoms’ (ECHR) (…). Third, recommendations of the Council of Europe have no binding quality (…)” (PELIKAN, 2002).

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o recurso à mediação suspende os prazos de caducidade e prescrição a partir da data em que for assinado o protocolo de mediação, ou, no caso de mediação realizada nos sistemas públicos de mediação, em que todas as partes tenham concordado com a realização da mediação” (PORTUGAL, 2013).

No texto legal, fica explícito que o legislador português atendeu a maioria das

recomendações feitas pela União Europeia, seguindo os seus principais princípios, como o da

imparcialidade do mediador, confidencialidade, voluntariedade, igualdade, etc.

Desse modo, desde os anos 70 até os dias de hoje, podemos perceber como a abordagem da

Justiça Restaurativa e Mediação está se tornando algo mais presente e importante para as pessoas

e ao próprio Estado. Tal reconhecimento ocorreu devido a uma longa jornada de estudos e análises,

sendo que

emphasize the urgency of considering how to place restorative justice within an adequate legal framework. First, because it will facilitate the spread of restorative justice practice into the institutional response to crime, and, second, because it will provide an opportunity to check the appropriateness of existing legal dispositions for implementing restorative practices properly. Without neglecting the communitarian and restorativist dream, we must look for ways to implement possibilities for restoration as far as possible in the real world. Legal formalism must not intrude upon the restorative process, but the process must take place in legalized context (WALGRAVE, 2002, p. 17).

Com uma legislação que orienta as pessoas, está cada vez mais próximo e mais simples para

as partes que aspiram a uma resolução de conflitos rápida, econômica e humanizada. O

desenvolvimento desse processo é cada vez mais debatido e aprimorado.

3. A Esperança em forma de Educação.

A teoria abolicionista, radical e marxista, se posiciona de uma maneira não-utópica, o que

a faz ser ainda mais fascinante: “ao invés de ser apenas um punhado de críticas ao sistema penal

com uma proposição utópica sobre o seu destino (abolição [do sistema penal]), é uma postura

política” (ACHUTTI, 2012, p. 7), e esta teoria, na verdade, aborda “uma perspectiva, uma

metodologia e, acima de tudo, uma (outra) forma de enxergar” (ACHUTTI apud RUGGIERO,

2010, p.1).

Em um sistema de hoje, dar a alguém a oportunidade de falar e ser ouvido é algo muito

incomum – mas não impossível. Empoderar indivíduos e incita-los a serem abertos para chegar a

uma conclusão pode ser um meio de resolver muitos conflitos e “mal-entendidos”, além de

economizar tempo (um processo de mediação duraria um tempo razoável e necessário para que o

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COSTA, G.A.S. A Teoria de Nils Christie e a Justiça Restaurativa

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acordo se chegue, portanto, seria mais rápido do que um processo nas mãos de autoridades

judiciárias) e dinheiro (o custo de advogados e taxas à Administração). Em relação ao tempo

necessário, é importante que as partes não precisam se apressar apressarem. O tempo é conforme

ambas se sintam a vontades e livres para dar-se início a comunicação e ao bom diálogo.

Um dos pontos mais fortes que a Justiça Restaurativa pode ter é o empoderamento das

pessoas. Um meio no qual as partes falam e são ouvidas. Uma conversa baseada no respeito, nas

legislações, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. É importante para as partes saberem, antes

do início do processo de mediação, quais são os seus direitos. Em uma sociedade contemporânea a

comunicação é realizada majoritariamente via internet, uma conversa entre ofendido e a vítima é

algo que deveria ocorrer com mais frequência. É reparar aquilo que foi danificado de uma maneira

humanitária, consensual e proporcional, sendo assim,

um sistema de práticas utilizadas para prevenir conflitos e crimes, que busca corrigir ou atenuar as consequências decorrentes de conflitos interpessoais, com a devolução do poder de solução do conflito criminal a vítima, ao ofensor e a comunidade para que decidam, dialoguem ou planejam sobre a melhor forma de solucionar este conflito, com o objetivo de reparar, sendo possíveis, total ou parcialmente, com o objetivo de reparar, sendo possíveis, total ou parcialmente, os danos causados pelo crime, promover ou possibilitar a reconciliação ou conciliação dos envolvidos e a restauração das vítimas, dos infratores e das comunidades. (SANTOS, 2014, p. 22)

Como forma de amenizar os crimes – bem como as suas reincidências – Christie (1977, p.

14) comenta que, se as pessoas parassem mais para ouvir autores como Ivan Illich e Paulo Freire17,

com certeza toda esta situação seria melhor compreendida. A importância da educação, orientação

e restauração é fundamental para a vida das pessoas. É, talvez, o melhor meio de se aproximar na

“cura do crime”. O autor ainda cita também o impacto da tecnologia nas relações sociais em 1977.

Hoje o impacto ser igual ou maior (CHRISTIE, 1977, p.14).

No final do seu artigo, Christie faz uma pergunta interessantíssima ao seu leitor: “what

about universities in this picture?”18 (CHIRSTIE, 1977, p. 14). A educação tem o papel de formar

17 Paulo Freire, brasileiro, um dos maiores pedagogos mundiais, disse que “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a sociedade muda”, além de que “a liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão”. Disponível em: < http://pensador.uol.com.br/autor/paulo_freire/> Acesso em: 03 abr 2016. 18Outro pensador citado por Christie é o austríaco Ivan Illich, o qual afirmava que as “grandes universidades tentam inutilmente alcançar [esta] aprendizagem multiplicando os cursos; mas geralmente fracassam porque estão presos a currículos, estruturas de curso e administração burocrática. Nas escolas, inclusive nas universidades, gasta-se a maioria

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cidadãos com olhar crítico àquilo que está ao redor. Na sociedade em que vivemos, ser (bem)

instruído é uma arma contra a alienação e falsas perspectivas. É saber escolher as suas fontes e

analisa-las criticamente. As universidades têm um papel muito além do diploma: é garantir à seus

alunos os instrumentos necessários para aprimorar as conjunturas sociais, econômicas e políticas

da sua comunidade. É aprender a valorizar e conhecer a cultura local, entender a origem dos

problemas e como solucioná-los. “Universities have to re-emphasise the old tasks of understanding

and of criticizing” (CHISTIE, 1977, p. 14). Através dos estudos podemos contornar e aprimorar

situações que devem ser analisadas com maior cuidado, como no caso da Justiça Restaurativa; um

processo alternativo e humanitário em relação ao sistema judiciário comum. É necessário que os

estudantes de hoje estejam preparados para uma realidade que envolva a sua comunidade, o seu

cotidiano – sobretudo no Direito. Esta é uma área que exige uma atualização urgente nas legislações

e reforma política, para acompanhar o desenvolvimento da comunidade e seus valores,

principalmente na área penal, na qual ainda muitas pessoas acreditam que só há um meio de punir

os infratores: prisão. As Universidades devem desenvolver uma prática de formar não apenas

bacharéis, mas cidadãos capazes de mudar o seu redor de maneira justa e responsável. É garantir a

cidadania nos tempos contemporâneos. É permitir um poder de voz oprimido durante há tempos

Apesar de nem todas as ideias e perspectivas de Christie terem sido concretizadas, o

criminólogo norueguês deixou profundas marcas na literatura que ainda hoje são bem debatidas.

Os elementos apresentados devem estar sob um conceito de “propositivo-construtivo” ao

tradicional processo judiciário, permitindo a sua forma de construção para uma afirmação de um

modelo “informal de administração de conflitos desvinculado do tradicional paradigma crime-

castigo” (ACHUTTI, 2012). Assim,

visualiza-se, com isto, uma possibilidade efetiva de democratização no gerenciamento de conflitos: enquanto no sistema penal a resposta vem de cima – é imposta pela norma e aplicada pelo juiz -, na justiça restaurativa a resposta emerge dos princípios envolvidos, dado que não há solução prévia para todos os casos, e as mesmas deverão ser construídas conforme as peculiaridades de cada situação. Ao caminhar nesse sentido, a justiça restaurativa poderá colaborar para o fortalecimento da base dos direitos de cidadania e democracia (...), mas também para a redução de desigualdades oriundas do sistema de justiça criminal, especialmente em relação aos menos favorecidos social e economicamente, que constituem a sua maior clientela (...)” (ACHUTTI, 2012, pp. 12-13).

dos recursos tentado comprar o tempo e motivação de um número limitado de pessoa para que elas assumam determinados problemas e os resolvam segundo um programa ritualmente definido” (GARJADO, 2010). Ele era radical quando defendia a ideia da educação sem escola.

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Democracia de uma maior participação do povo e menos de um Estado. Uma democracia

que realmente proporcione meios e oriente sua comunidade para uma melhor saída na resolução de

seus próprios litígios, seja através da educação, universidades com mais foco na formação de

cidadãos conscientes de seus direitos e obrigações, programas públicos ou uma nova legislação.

É fundamental que o autor do ato infracional, entenda as consequências e não reincida o

crime; bem como que a própria vítima sinta suas necessidades reparadas de maneira proporcional

e humana. Como defende Cesare Beccaria, em sua célebre obra Dos delitos e das penas, de 1764,

“é que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública,

pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito

e determinada por lei”.

Referências bibliográficas:

ACHUTTI, Daniel. Justiça Restaurativa e Sistema Penal: Contribuições abolicionistas para uma política criminal do encontro., 2012 Disponível em: < http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/cienciascriminais/III/18.pdf > Acesso 13 mar 2016. APOLLO, Luiz Henrique. Estratégia da África do Sul pós-apartheid como líder regional da SADC. Conjuntura Global, Curitiba, v. 4, n. 3, p.478-494, 2015. Disponível em: <http://www.humanas.ufpr.br/portal/conjunturaglobal/files/2016/02/14-Luiz-Henrique-Apollo.pdf>. Acesso em: 05 abr 2016. ASHWORTH, Andrew. Responsabilities, rights and restorative justice. The British Journal Of Criminology, Oxford, v. 42, n. 4, p.578-595, 2002. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Ridento Castigat Moraes, 1794. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2016. BRAITHWAITE, John. Setting standards for Restorative Justice. The British Journal Of Criminology, Oxford, v. 42, n. 3, p.563-577, 2002. BRASIL. Ato Administrativo nº 125, de 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Resolução Nº 125 de 29 de novembro de 2010. Brasília, DF. BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 10 abr 2016.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 240-267, mai/ago, 2016.

Alethes | 240

Anatomia do presidencialismo de coalizão: uma perspectiva histórico-econômica financiada pelo processo orçamentário federal Anatomy of coalition presidentialism: an economic and historic perspective

maintained by federal budget process

Marco Aurélio Souza Mendes1

Resumo O presente artigo visa demonstrar o desgaste político do Presidencialismo de coalização

e como tais desvantagens contribuem para um retrocesso político-constitucional no avanço da democracia brasileira. Para isso, cabe analisar o processo orçamentário federal como moeda de troca, a construção histórica dos diferentes regimes e a atuação do Congresso Nacional como principal ator do accountability horizontal. Através das falhas do presidencialismo de coalizão tem-se o intuito de demonstrar como o Congresso tem diminuído seu papel de cobrança de responsividade dos governantes, criando fortes retrocessos e cenários clientelistas para a consolidação da democracia brasileira pós Constituição de 1988. Contribui também com os fatores positivos de por que o Parlamentarismo se mostra uma melhor adoção que o Presidencialismo e quais são os reflexos da instabilidade de governança na macroeconomia através da tríplice função do Estado na economia.

Palavras-chave: presidencialismo; parlamentarismo; governo de coalizão; Constituição de 1988; accountability.

Abstract The paper approaches the brazilian coalition presidentialism’s political erosing and how

these advantages contribute to a political backlash in progressing of Brazilian constitutional democracy. It properly fits analyzing federal budget process as exchange tool, the historic construction of different government administration and the Nacional Congress as the main actor at horizontal accountability process. Through that observation, it has the objective in demonstrating how Congress accountability has been reduced, creating backlashes and issues in brazilian process of democracy consolidation. Also the article contributes to present positive factors about the adoption of parliamentary government and the reflections of instability in macroeconomic sector through the triple function of State in Economy.

Keywords: presidentialism; parlamentarism. Coalition government. Constitution of 1988. Accountability.

1 Graduando do 07º período no bacharelado em Direito na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro pesquisador e fundador do Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados. Auxilia o corpo editorial do periódico Alethes. Escritor com publicação de contos e poesias. Autor da novela histórico-política Abapanema: o lugar das coisas ruins.

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MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão

Alethes | 241

1. Introdução: o discurso político tratado pelo viés histórico e econômico

A discussão que remete à temática do presidencialismo de coalizão certamente não é

inovadora. Qualquer debate que adentre o âmbito da Reforma Política, por mais superficial que

seja sua natureza, perpassa pela crise do modelo de representatividade brasileiro. Apesar dos

termos “presidencialismo” e “coalizão” só terem sido utilizados com esse viés em meados da

Constituinte de 1988, por sociólogos como Sérgio Abranches ou Ferreira Limongi, o

funcionamento do instituto não é nada mais do que uma renovação da contextualização histórica

dos arraigados privilégios oligárquicos de nossa sociedade.

O presente trabalho não se dispõe a ser um escrito exauriente ou amplamente inovador

quanto ao conteúdo de definição do instituto. Consoante a atual crise institucional vivenciada

pela decorrência de um processo de impeachment em curso, o artigo visará fazer uma revisão

bibliográfica sobre os principais autores que dissertaram acerca da temática. O que é que já se

tem de constatações sobre essa representação anacrônica.

Contudo, não se limitará a fazer uma análise de conceitos. Aplicará uma abordagem

econômica pouco utilizada nos artigos que discutem sociologicamente o tema. Frente às

funções do Estado na atuação regulatória da Economia e sobre como se dá o processo

orçamentário federal na atual Constituição, construir-se-á o viés crítico sobre a criação de um

sistema intra estatal que financia o projeto de representatividade disforme da coalizão.

É notório que crises da monta como a vivenciada atualmente não se expressam por

fatores criados aleatoriamente e de forma instantânea. Há todo um processo histórico que

justifica o comportamento das instituições no atual Estado Moderno e na específica conjuntura

brasileira. Por isso, faz-se mister abrir cada discussão com uma introdução aos elementos

históricos de cada setor. Em primeiro plano, os fundamentos históricos da evolução do Estado

de Direito ao Estado Constitucional de Direito. Em segundo plano, a evolução da proposta

orçamentária no Brasil desde a Constituição de 1824 até a recente Constituição de 1988. E por

fim, de forma a propor uma solução, prima apresentar a construção histórica do

Parlamentarismo no modelo anglo-saxão, como sua estrutura é coerente com as bases da teoria

do accountability, e as ressalvas históricas brasileiras que permitem identificar as dificuldades

sócio-políticas para a implantação de uma democracia parlamentar aos moldes da inglesa.

2. Presidencialismo de coalizão: a problemática

Abre-se o presente estudo com a apresentação da problemática central: o

presidencialismo de coalizão. Antes de contextualizar suas faces anacrônicas e reflexos na

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 240-267, mai/ago, 2016.

Alethes | 242

teoria do Estado e Economia, bem como convergências históricas que colimaram ao

desenvolvimento da instituição da coalizão no Brasil, necessário apresentar o conteúdo

semântico da referida atuação política.

O termo referência é de autoria de Sérgio Abranches em artigo datado de 1988,

estabelecendo uma relação de poder do Executivo com um controle maior sobre mecanismos

de orçamento e burocratização, definindo o Legislativo como ponto único de negociações para

aprovação de projetos de lei. Lúcio R. Rennó estabelece três pontos críticos sobre o

presidencialismo de coalização e que pontualmente são pilares frágeis de nossa política: o

sistema não permite governabilidade, a política funciona com a base das trocas e

descaracterização dos Poderes Executivo e Legislativo (RENNÓ, 2006). Esse sistema foi

introduzido na Constituição de 1988 para compatibilizar a instituição do Presidencialismo com

o multipartidarismo.

A coalizão é medida tomada em democracias multipartidárias onde o Executivo não

controla majoritariamente as cadeiras do Congresso, recorrendo a essa ferramenta por questão

de sobrevivência em governabilidade. Limonji obtempera que Executivo e Legislativo possuem

divergentes vontades que são inconciliáveis (LIMONGI, 2006). O Legislativo é enviesado

como um ator único e separado do Executivo, o que leva ao embate profundo, pois nosso

sistema Presidencialista, da forma como pensam os críticos, misturam caracteres sui generis na

produção legislativa que o aproxima dos regimes parlamentaristas. Sustentar essa forma híbrida

de governo é o que leva à crise institucional, tal qual enfrentada atualmente.

As contribuições nascidas em 1988 com Abranches, em sua discussão sobre a transição

democrática que estaria ainda absorvendo falhas autoritárias dos governos pretéritos, e que

continuaram até a atualidade através da percepção de Limongi e Santos, mostraram que a

institucionalidade do presidencialismo de coalizão levaria a um risco de instabilidade política

permanente.

Tecnicamente, um dos fatores de argumentação da defesa a respeito do comportamento

de coalização no presidencialismo brasileiro é através da presença do multipartidarismo. O

cenário heterogêneo favoreceria um cenário de coalizão para garantir a governabilidade e a

sustentabilidade institucional entre os Poderes Executivo e Legislativo.

Parte dessa argumentação é precisa, visto que nem sempre é razoável culpar o

anacronismo de um governo em gerir suas políticas e obter apoio para execução de suas

políticas simplesmente com a presença de inúmeros partidos a fragmentar o sistema. Assevera

o autor Edison Nunes que até mesmo o bipartidarismo em um cenário clássico do

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MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão

Alethes | 243

Parlamentarismo pode levar a um cenário de enfraquecimento do vínculo Legislativo-

Executivo, caso exista um alto índice de heterogeneidade dentro dos partidos.

Assim, o melhor critério e mais científico não é propriamente a pura e simples existência

do multipartidarismo. Importa-se muito mais a quantidade de minorias endógenas que se

tornarão futuramente uma maioria maciça a esmagar o governo eleito, de forma a colocar

entraves na execução política e destituir a governabilidade através de uma “coalizão inversa”.

É consoante a esse raciocínio esboçado que o citado autor complementa:

O correto funcionamento da garantia institucional da liberdade política pela divisão de poderes depende assim, em última instância, de uma medida razoável de pluralismo político no interior dos partidos e de certa indisciplina, ou seja, de características que dificultem às agremiações transformarem-se em maiorias maciças capazes de oprimir as demais, obrigando-as a agir de maneira consociativa ou a não agir de forma alguma. (NUNES, 2011).

A evidente razão da adoção do presidencialismo de coalizão é claramente criar

condições para que o governo no âmbito Executivo consiga impor sua agenda ao Congresso, o

que faz ocorrer um cenário de “sobreposição” do Poder Executivo através da técnica de

barganha. Álvaro Moisés atribui que a consolidação dessa espécie de “imposição agendaria

executiva” assegura um regime em que se atribui ao Presidente da República a possibilidade de

não só coordenar a agenda legislativa, como ele ser a própria agenda legislativa do Parlamento.

Essa atitude assemelhada a uma coerção velada de um governo de barganhas atingirá

diretamente a própria teoria dos poderes, desvinculando o Congresso de seu papel de equilíbrio

no accountability horizontal, discussão que será aprofundada em tópico posterior.

Para essa questão, importa a observação de Moisés:

[...] o país teria consolidado um sistema político que, semelhante ao parlamentarismo, asseguraria não apenas a capacidade do executivo de ter os seus projetos de leis e de políticas aprovados pelo parlamento, mas também o domínio quase absoluto dos presidentes sobre a agenda política do parlamento. (MOISÉS, 2011).

Mas é necessário que se tenha em mente que tal dominância é de proeminente

fragilidade, e um dos argumentos de base encontra-se desde o processo eleitoral. A coalizão é

um ato na própria administração, enquanto o governo erige-se através da legitimidade superior

do povo. Existe uma dupla legitimação no processo eleitoral, portanto há igual peso atribuído

à legitimação tanto do Congresso quanto do Executivo. A coalizão cria um cenário virtual de

que haveria um suposto Congresso subordinado às vontades do Chefe do Executivo (ou melhor

dizendo, da agenda política do partido majoritário do Executivo), fato este que leva à seguinte

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conclusão: “a supressão da distância entre os poderes como condição de estabilidade política,

isto é, que a própria divisão de poderes acarretaria as condições potenciais de instabilidade do

regime.” (NUNES, 2011).

Em face das combinações apresentadas do comportamento de coalizão, a desvinculação

do pleito eleitoral entre Executivo e Legislativo no formato adotado de lista aberta, em que se

vota no candidato e não em uma legenda com seu plano de governo, acirra-se as condições para

que exista um Congresso contundentemente oposto à agenda política do Executivo e forma um

sistema representativo de origens distintas. Se de um lado, há a possibilidade de um Executivo

eleito por uma maioria contrária ao Congresso eleito, o contrário mostra-se preocupantemente

realizável. É este cenário que requere a formação de coalizões para alcançar a governabilidade,

“[...] articuladas por meio da troca de cargos no governo e de emendas parlamentares por apoio

político na aprovação de projetos legislativos de interesse nacional encabeçados pelo

Executivo” (ABRANCHES, 1988).

Em um regime parlamentar, essa crise é consolidada com seu ápice através do

desenrolar do voto de moção de desconfiança da Câmara que permite a constituição de um novo

Gabinete. Isso é devido à última palavra em termos de legitimidade política ser de posse da

Câmara. É o Poder Legislativo quem define o contorno de legitimidade do governo. Em

contrapartida, um Presidencialismo por sua natureza ínsita de ser um regime com características

mais rígidas, possui a legitimidade final única e exclusivamente através do processo eleitoral.

Claro, desta feita, é o cenário de verdadeira instabilidade de uma crise no

presidencialismo de coalizão: um regime de rígida natureza com a legitimidade eleitoral, mas

que se comporta através da flexibilidade de uma força resolutiva dos conflitos na figura de um

Congresso quase pacificador, e que no cenário de crise coloca a culpa unânime dentro do

Executivo. Esta é a clara situação do atual governo, e um problema crônico de gerações do

presidencialismo brasileiro.

3. Aportes teóricos para a construção do Estado: construções histórico-políticas

desenvolvidas no Estado Democrático de Direito

Através das falhas apontadas, o trabalho tem o escopo de concluir com uma possível

solução de governabilidade através da adoção de um modelo mais ligado ao comportamento

parlamentar britânico, ressalvada as devidas considerações das diferentes sociedades em que

cada governo se assenta.

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MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão

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Antes, é necessário conceituar o fundamento político da soberania junto da evolução

histórica do modelo parlamentar inglês e do bicameralismo e federalismo brasileiro,

possibilitando a melhor compreensão de como se deu o funcionamento institucional através da

história e como poderia ser uma melhor via de solução para a atual crise política brasileira.

Importante elucidar que as bases metodológicas para os próximos tópicos são a de

revisão bibliográfica histórica e do método indutivo para a atual realidade. A partir de como o

Estado se desenvolveu de seu paradigma Legislativo ao Estado de Polícia, chegando ao atual

modelo Constitucional, mostrar-se-á as diferenças fundamentais entre cada estrutura do Estado

e como isso impacta diretamente nas formas de governo adotadas.

3.1. Os fundamentos da política através da soberania: a ductibilidade do Estado

Constitucional Moderno

Em primeiro momento, devemos discutir sobre a evolução do conceito de soberania da

Europa, da Idade Média até o século XIX. Aos moldes da visão clássica, a soberania era uma

força política material designada como forma de garantir a unicidade e supremacia da esfera

política, antes vista como forma de um absolutismo. Inimaginável um Estado soberano possuir

competidores internos, ou seja, uma fragmentação de seu poder, posto que a questão era vista

como questão de garantia da estatalidade.

Declínio desse conceito se demonstra no advento do liberalismo e das frentes

democráticas contra os governos totalitários. O Estado, antes visto como um ente pessoal, vê-

se substituído agora por forças políticas representativas, forças reais de poder. Surge então a

noção de um direito do Estado, um direito posto pelo Estado e que fosse, ao mesmo tempo, ao

seu serviço e limitador de seu serviço (ZAGREBELSKY, 2011). Elucida-se nesse momento o

resultado do pluralismo político: uma formação de centros de poder alternativos e concorrentes

com o Estado. Não se tinha mais a noção de unicidade e garantia de estatalidade central. Em

suma, a criação do antigo formalismo europeu e do racionalismo ocidental tinha seus pilares

derrubados a cada ano que se passava.

Nessa ponte de transição pluralística, temos o que se entende modernamente por

soberania. Atrás da morte do antigo Estado, emerge das sombras o nascimento de um contexto

delimitado pela soberania da Constituição e seus princípios, o Estado Constitucional de Direito.

A soberania da Constituição é algo que fomenta relações bem mais complexas que o antigo

regime de soberania.

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Como já referido anteriormente ao pluralismo político emergente, os diversos grupos

sociais possuem interesses, ideologias e projetos políticos diferentes. Entretanto, há ainda um

detalhe importante a ressaltar: a maior parte desses grupos, de forma isolada, tem poder político

suficiente para impor de forma única seus interesses. A Constituição, nesse plano, não se mostra

nada mais do que um diálogo de trocas entre esses grupos políticos, com perdas e ganhos

significativos, porém calça bem o modo de possibilidade de uma vida em comum entre esses

grupos. A soberania não está no Estado e seus entes que governam, mas na Constituição e o

que se estabeleceu de acordo entre esses grupos políticos naquela Carta.

Para que os valores e princípios, de categorias tão divergentes em que a Constituição se

estabelece, tenham força suficiente para garantir a integração política, necessariamente não

podem ser absolutos, devem ser dúcteis, maleáveis, flexíveis. O laço dessa ductilidade é nada

mais que o compromisso e a coexistência pacífica da sociedade com os seus valores políticos

estabelecidos. Zagrebelsky pondera que a condição atual de nosso tempo em que vivemos

poderia se definir como a aspiração não a um, mas a muitos valores que conformam na

convivência coletiva; já em suas palavras: “la libertad de la sociedade, pero también las

reformas sociales, la igualdad ante la ley, y por tanto la geralidad de trato jurídico, pero

también la igualdad a respecto de las situaciones.” (ZAGREBELSKY, 2011).

3.2. Contribuições do Common Law para o Civil Law: a separação da estrita legalidade

entre o Estado Legislativo de Direito e o Estado Constitucional de Direito através

do supraprincípio do rule of law – as diferenças do desenvolvimento dos modelos

ocidentais e anglo – saxões de política e Direito

Estado de Direito: o Estado abaixo do regime estrito das leis. Um dos elementos básicos

das concepções constitucionais liberais é fixar e determinar exatamente os casos e limites de

sua atuação, bem como as esferas de liberdade dos cidadãos. Não pressupõe uma absoluta

renúncia do Estado pelos seus poderes, já que translada entre a ação livre do soberano com uma

organização policial e a sua pré-determinação legislativa.

Os Anglo-Saxões chegaram ao território da Grã-Bretanha apenas por volta do ano de

400, deixando um vasto legado de domínio no território por algo entorno de dois séculos (até

meados do ano 600). Politicamente, dividiram o território em inúmeros pequenos reinos. No

final da ocupação romana, o Cristianismo tinha começado a demonstrar sua introdução no

território.

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Como de praxe para tal culto, templos demonstrando o futuro poderio que a Igreja viria

a obter estavam erguendo suas estruturas da Grã-Bretanha. Por outro lado, os conquistadores

Anglo-Saxões tentaram reprimir a difusão do Cristianismo na manutenção de suas crenças

mitológicas locais. Cada reino tinha uma conformação de costumes, ritos religiosos e usos

diferentes uns dos outros. O ano de 597 é um marco definitivo para o embate, eis que São

Agostinho une as tribos inglesas com a Igreja Católica Romana, estabelecendo uma autoridade

única, coesa para todo o território, no âmbito espiritual. Tal ano marca o que historiadores vão

chamar de a reintrodução do Cristianismo.

Culmina-se que a esse marco histórico foi importantíssimo para introduzir as ideias

filosóficas no território da Grã-Bretanha sobre a supremacia das leis perante o governo dos

homens e espelhasse nas difusões constitucionalistas adotadas atualmente pelas formas de

Estado e Governo. Ainda que inicialmente esse viés tivesse uma conotação não laica, com forte

influência da doutrina da Igreja Católica Romana, é desse período que insurge os ideais de

deslegitimação de um soberano hobbesiano como Leviatã.

Quais são as tendências políticas que vislumbramos nos locais em que o Cristianismo

vigorou como religião majoritária, e posteriormente, oficial? Um grande território, unificado,

sob a égide de um único governo. A reintrodução católica na Inglaterra começou a depositar

tais ideários. Tal qual foi feito em Roma com o Digesto, a legislação dos Reinos começou a ser

copilada de forma escrita. Os Reinos ingleses tornavam-se agora maiores em extensão e

menores em números, e começavam a organizar-se da forma clássica medieval europeia. Antes,

extrema fragmentação político-cultural fazia com que o conceito geral de punição fosse voltado

para o coletivo, levando em prol os costumes e usos locais (PLUCKNET, 1956). O Cristianismo

migrou essa proposição do coletivo para o indivíduo autor, sendo punido num primeiro

momento através de conceitos religiosos, para só depois entrar o jurídico. Assim advém o

conceito de penitência e penitenciária, uma expiação do pecado cometido contra os outros

homens no regime das leis divinas.

A lei aqui começa a fazer um papel importante. Antes dessa época, não se imaginava o

conceito de lex scripta, visto que o vocábulo ‘law’ não tem origem inglesa, e sim dinamarquesa.

O Rei Cnut por volta de 1016 até 1035 governou um vasto território compreendido entre

Inglaterra, Dinamarca e Noruega, e tudo com uma única conformação legislativa. Isso foi

importante porque deu ensejo para que criassem individualmente uma corporação una, coesa e

comum, que denominaram de ‘The Grand Jury’, um antecessor espiritual do atual common law

(PLUCKNET, 1956).

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Conforme visto, a evolução do conceito de Estado de Direito cresceu ao longo das

épocas. O Estado Liberal de Direito tinha uma conotação meramente de delimitação das funções

e fins do Estado, algo sumariamente mínimo. Havia a supremacia da lei, subordinação frente à

lei e a presença de um Poder Judiciário independente e com competência exclusiva para

aplicação da lei. Vigorou aqui o nascimento das concepções de representação eletiva e a

separação dos poderes.

Na França revolucionária, a soberania da lei se apoiava na percepção do terceiro estado,

da conglobante nação. Na Alemanha, limitava-se através de uma representação de classes. Em

toda Europa as concepções variavam de forma pequena, exceto na conformação inglesa com o

rule of law, sendo então a Inglaterra o berço da ruptura da construção constitucionalista da

Europa continental.

Partiu de outra história constitucional, porém orientado à defesa de ideias políticas

símiles das outras nações europeias. Rule of law not of men. Topos aristotélico do governo das

leis, a demonstração da aquisição da soberania parlamentar frente ao absolutismo da realeza.

A obra de Dicey ainda carece de uma tradução em nossa língua portuguesa. E é

justamente tal autor que propõe o melhor estudo para a compreensão desse supraprincípio de

governo do rule of law e que molda a fórmula do Parlamentarismo britânico.

Os escritos de Tocqueville comparando a Inglaterra com a Suíça no ano de 1836 servem-

nos de base para começarmos as discussões incitadas no parágrafo anterior. Conforme será

melhor entendido posteriormente, no modelo britânico prevalece um compêndio jurídico dos

costumes, dado a própria característica do common law. Nada mais óbvio que a conclusão de

Tocqueville em dizer que na Inglaterra temos uma presença maior da liberdade ensejada pelos

costumes, de forma que na Suíça contrapõe-se as leis preservando mais a liberdade do que o

próprio costume local (DICEY, 1897). Presente aqui é a perplexidade do observador das terras

inglesas confundindo, juntamente, o hábito, o auto-governo e o amor pela ordem e justiça.

Parece que Tocqueville não entendeu a função da supremacia da lei na Inglaterra ou, se preferir,

o rule of law como característica da constituição inglesa. Pari passu, há de nos atermos nos três

sentidos que Dicey oferece a esse princípio:

a. A abstenção de um poder arbitrário por parte do aparato estatal. Nenhum homem pode

ser punido exceto por uma recalcitrante quebra de algum preceito normativo. Em quase todos

os outros governos dos países continentais, o Poder Executivo exerce discricionariamente a

autoridade na questão de prender, expulsar do território.

b. Todo homem, qualquer que seja sua condição social e econômica, é sujeito da

jurisdição ordinária do reino e passível de ser julgado nos tribunais ordinários. Pode parecer um

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tanto quanto obscuro de início isso, ou algo relacionado com nosso princípio constitucional da

dignidade da pessoa humana e o processual absorvido na simétrica paridade e isonomia, porém

aqui, para melhor ilustrar, imagine nosso sistema de imunidades penais e civis ou o próprio

Direito Administrativo. As palavras do próprio autor sintetizam esse segundo ponto:

A colonial governor, a secretary of state, a military officer, and all subordinates, though carrying out the commands of their official superiors, are as responsible for any act which the law does not authorise as is any private and unofficial person. This is the mains difference between rule of law and droit admnistratif. (DICEY, 1897)

c. Os princípios gerais da constituição são resultados de decisões judiciais determinando

o direito dos particulares em casos específicos trazidos diante das Cortes. Talvez venha da

seguinte sentença a frase, cabendo aqui alguma discussão se bem ou mal atribuída, de que a

constituição inglesa não foi feita, e sim ‘cresceu’. Aqui a constituição deve ser entendida como

fruto de contestações levadas diante das Cortes em nome do resguardo dos direitos dos

indivíduos.

A mais notável diferença para um constitucionalista acostumado com nosso modelo

constitucional de jurisdição quiçá seria a terceira elencada. Há, na constituição inglesa, uma

ausência das declarações de direitos que os constitucionalistas estrangeiros estão acostumados

a trabalhar. Os princípios não são máximas estabelecidas legislativamente, reduzindo-se a

generalizações desenhadas e oriundas das próprias decisões dos judges em si. Diferentemente

de uma cultura constitucional legislativa, em que as regras e princípios partem explicitamente

e implicitamente de uma Constituição codificada, aqui na seara jurídica inglesa vemos que tais

regras, antes como fontes de direitos nos países de constituições escritas e positivadas, são já

as consequências de direitos individuais reforçados por decisões das Cortes.

Tomo partida desse ponto principiológico para elencar um específico: o da igualdade

perante a lei. Assim, conseguimos retomar o primeiro ponto das três características que Dicey

fundamenta sendo as mais importantes para entender o rule of law. Nesse sentido de igualdade,

vemos aqui uma exclusão da ideia de exceção para qualquer oficial a serviço do Estado; é aqui

que vale ressaltar a não existência no direito inglês de algo que corresponda ao nosso Direito

Administrativo (droit administratif) ou aos Tribunais Administrativos franceses.

Dicey frisa em todo momento a não existência nem mesmo de um vocábulo de

similitude semântica para tal conceito. Objetivamente a obra propõe que façamos uma análise

das notion générales das leis administrativas nos seus Estados regentes.

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As situações apresentadas no droit administratif caem no escopo da lei administrativa.

Duas noções aqui se consideram: a) O governo e qualquer funcionário seu possui uma gama de

privilégios, direitos e prerrogativas especiais frente ao resto dos civis; b) A necessidade de

manutenção da separação de poderes, prevenindo o abuso de funções de um lado ou de outro.

Dicey aqui parece ser adepto da estrita separação de poderes (séparation des pouvoirs), um fato

que não é tão enxergado na prática na forma como ele analisa. Ademais, há de se considerar o

ano de publicação da obra.

No sistema inglês não existe sequer um conceito similar. Os membros submetidos ao

trabalho da Corte, funcionários do Estado e dentre outros ficam em patamar igual aos demais

civis. Se naquele sistema vigora a separação de poderes, na Inglaterra o princípio da

independência do juiz tangerá o conceito dos litígios administrativos. A jurisdição

administrativa não se resume em um código especial, com leis específicas, compelindo então

na forma dos chamados case laws (grupo de decisões com possibilidade de serem citados como

precedentes pelas Cortes). No common law as Cortes tendem sempre a dificultar a ação

discricionária e autônoma do executivo.

4. As ressalvas históricas no cenário brasileiro e a incompatibilidade entre o

bicameralismo e o modelo federativo nacional

O sistema do civil law permite que se dependa cada vez mais de uma premissa dedutiva

partindo de grandes princípios racionais deduzidos da Constituição. Naquele outro sistema

apresentado anteriormente, a questão é inversa, visto que predomina no common law a indução

a partir da experiência empírica casuística, o embase ilustrado pelos casos concretos.

Esse é o paradigma central da contextualização histórica entre um regime parlamentar

e um regime presidencialista. A construção do Direito nas tradições presidencialistas segue

modelos de um Executivo inicialmente poderoso contra a insignificância de seu súdito e que

perdeu forças ao longo da evolução da Democracia nas Constituições, mas acentuou ao longo

dos anos inúmeras prerrogativas que não deixam se espraiar as raízes de um “Presidente- Rei”.

Radica aqui as diferenças ilustradas entre o Estado de Direito e o Rule of Law, ao que pese usar

as palavras de Zagrebelsky outra vez:

a) O rule of law se orienta pela dialética do processo judicial e legislativo no Parlamento, enquanto no Estado de Direito se reconduz a um soberano decidir unilateralmente (o Poder Executivo mesmo em uma República, por exemplo, ou as decisões monocráticas do Judiciário).

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b) O rule of law encara a noção de Direito como um processo aberto, vago a transformações através da história; algo inacabado. O Estado de Direito nasceu de um conceito jusnaturalista, tendo em mente um Direito atemporal e universal. c) No Estado de Direito vigora o ex principiis derivationes, de um princípio se deriva um fato, tendo o rule of law o nascimento do direito através da constatação de uma insuficiência por um caso concreto: case laws (ZAGREBELSKY, 2011).

O modelo brasileiro possui ainda peculiaridades que acentuam profundamente os

parâmetros de centralização no Executivo, a começar com a construção de nosso Federalismo

sob a ótica política através de um movimento centrípeto e de tentativa de descentralização,

diametralmente oposto ao nascimento federalista das 13 Colônias nos EUA.

A Constituição de 1891 adotou o modelo de sistema de governo presidencialista similar

ao norte-americano e argentino. Notadamente, a tradição colonial brasileira não representava

uma condição favorável para o surgimento de um Executivo forte tendo em vista haver uma

luta entre os resquícios Imperiais e os defensores do movimento centrípeto nacional.

Havia uma intensa propaganda dos publicistas do século XIX em defender que havia

uma incompatibilidade entre o Federalismo e o Parlamentarismo. Desmistifica essa premissa o

constitucionalista José Afonso da Silva ao assinalar que a deformidade está na compatibilização

do Presidencialismo com o Federalismo, principalmente na política brasileira, em que a

realidade era de um presidencialismo sem freios e contrapesos, e ao lugar de uma Constituição,

regia o país os fatores reais de poder do Coronelismo e das Oligarquias (SILVA, 1988).

O ilustre constitucionalista chama o governo dessa forma de presidencialismo

piramidal, pois o Presidente é fruto de uma junção de interesses das oligarquias e coronéis que

controlam majoritariamente a economia. Havia um desejo de fragmentar para centralizar: as

elites oligárquicas brasileiras apesar de intuírem na queda do Imperador, queriam conglobar-se

figurativamente naquele polo. O que realmente existiu no processo republicano foi a simples

substituição de uma pessoa por um estamento social, na justificativa desagregadora para agregar

poucas elites no poder.

Outras peculiaridades podem ser mencionadas. O surgimento do Senado advém da

formação norte-americana das 13 Colônias antes da Guerra de Secessão. O embate entre

abolicionistas e escravocratas dificultava um consenso para formação de uma Casa Legislativa

única, o que fez com que o sul estadunidense exigisse a formação de uma segunda Casa

Legislativa com igual número de representantes, impedindo assim a aprovação de uma lei

abolicionista. E de fato, a escravidão ainda perdurou por mais de oitenta anos.

Afincado nesse episódio histórico, defende Dalmo Dallari que o bicamerialismo não

integra na essência os fundamentos de nossa República, e indo além, não representa cláusula

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pétrea na própria Constituição de 1988. É a Câmara dos Deputados única e precípua

representante dos anseios do povo (DALLARI, 2014). Os interesses dos Estados-federados de

forma representativa forma forjados em nossa história política: retorna o viés mascarado da

falsa autonomia para revestir o verdadeiro objetivo da centralização dos interesses das

Oligarquias.

5. A relação entre Economia do setor público e o governo de coalizões:

exemplo do Orçamento da União e da permanência de Ministros da área econômica

O constituinte de 1988 outorgou prerrogativas de demasiado poder para o Executivo, o

que na análise de Sérgio Abranches criou um sistema fadado ao insucesso por ser extremamente

dificultoso a formação de maiorias estáveis. Cumpre-se um destacamento episódico na seara da

União no quesito aprovação da legislação orçamentária e a elaboração do Orçamento da União.

Ao longo das décadas, o Orçamento público desenvolveu-se conceitualmente, alcançando

definições mais complexas, passando de peça meramente contábil para uma verdadeira carta

programática.

Neste título, cumprirá apresentar brevemente a relação entre atuação do Estado na

Economia e a evolução do conceito de orçamento público. Após esse referencial teórico, tem-

se o intuito de demonstrar o impacto da realização de coalizões no processo legislativo

orçamentário e sua relação com a permanência dos Ministros da área econômica através da

análise de um trabalho do The Observatory of Social and Political Elites of Brazil.

Até aqui, tanto o conceito sobre presidencialismo de coalizão quanto as relações entre

sistemas de governo e evolução do Estado para contrapor o modelo do rule of law com o do

Estado Constitucional de Direito serviram como bases conceituais para o crônico problema

político interno. Após mencionadas certas ressalvas na formação da história brasileira, como o

Federalismo, o Bicameralismo e a influência dos fatores reais de poder na Proclamação da

República, a análise econômica deste tema tem o viés de apresentar algumas das consequências

derivadas dessa prática política.

5.1. Desenvolvimento das funções do Estado na Economia e o Orçamento nas

Constituições brasileiras

As crises econômicas trazem sempre o retorno da discussão sobre o que está

acontecendo de ineficiente na burocracia estatal para colimar em cenários desastrosos. Há

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diversos modelos para explicar um aumento das despesas públicas e uma queda na arrecadação

tributária, matéria esta que não compete para a análise proposta neste trabalho. Entretanto,

estudar alguns caracteres da despesa e do orçamento público importa para observarmos alguns

comportamentos do atual presidencialismo de coalizão no país para refletirmos criticamente

sobre sua atuação.

O final do século XVIII e início do século XIX teve o liberalismo econômico com Adam

Smith o seu “laboratório de desenvolvimento metodológico”. Mas foi apenas com Keynes que

se discutiu efetivamente as distorções do Capitalismo que levaram à Crise de 29. Keynes

substituiu o tripé macroeconômico dos clássicos (oferta, demanda e preço) por uma sustentação

macroeconômica: a demanda global somada ao investimento determina a renda global, que

consequentemente determina a taxa de emprego (GIACOMONI, 2012). A partir desse

momento, a intervenção estatal foi amplamente aceita pelos operadores econômicos como

forma de instrumento político de estabilização econômica.

Richard Musgrave em sua obra Teoria das Finanças atribui ao Estado três diferentes

vertentes para seu instrumento político de estabilização: função alocativa, distributiva e

estabilizadora.

Pela função alocativa percebe-se uma justificativa da alocação de recursos pelo Estado

nos casos em que não houver a necessária eficiência por parte do mecanismo da ação privada.

O alto custo dos investimentos em infraestrutura como transportes, energia, comunicações ou

saneamento não se compatibiliza com a taxa de retorno de lucratividade, visto ser gradual e

lenta. A iniciativa privada naturalmente afasta-se destes setores, visto que o primado do

capitalismo privado é a atribuição da maximização lucrativa com o menor dispêndio possível.

Através da função estabilizadora, os governos colocam como atores núcleos seus

Bancos Centrais. Cria-se estas instituições com a finalidade primeira de realizar controles

quanto à oferta monetária, ajustando-as às necessidades da economia (GIACOMONI, 2012). O

orçamento público é um real e efetivo instrumento de estabilização, visto que, no plano das

despesas, o governo pode corroborar no corte dos gastos supérfluos correntes e de capital,

priorizando apenas as necessidades básicas de manutenção do funcionamento administrativo;

enquanto que por parte das receitas o governo deve estar sempre atento na equação entre renda

pública e receita pública através do gráfico em parábola de Laffer2. Em momentos de queda da

2 A curva de Laffer é uma representação teórica da relação entre o valor arrecadado com um imposto a diferentes taxas. É usada para ilustrar o conceito de "elasticidade da receita taxável". Um resultado potencial da curva de Laffer é que aumentar as alíquotas além de certo ponto torna-se improdutivo, à medida que a receita também passa a diminuir. Uma hipotética curva de Laffer para cada economia pode apenas ser estimada (frequentemente apresentando resultados controversos). Laffer mais tarde disse que o conceito não era original, apontando ideias

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renda média da população, necessário que o governo evite compensar a diminuição de recursos

através do aumento de alíquotas, o que compatibilizaria com a função estabilizadora.

Há ainda a função distributiva, e com particular impacto para a análise do

presidencialismo de coalizão. O Ideal de Paretto é uma lei econômica que dita sobre haver

“eficiência na economia quando a posição de alguém sofre uma melhoria sem que nenhum

outro tenha sua condição deteriorada.” (GIACOMONI, 2012). Keynes ao trabalhar em sua

teoria macroeconômica sobre as falhas de mercado mostra ser utópica a aplicação do Ideal de

Paretto dentro da Administração Pública, tendo em vista que necessariamente a ascensão social

de determinado grupo é sempre feita às expensas de outro. O conteúdo político da atuação

econômica da função distributiva (e seu verdadeiro desafio) é determinar o que é

consideravelmente justo na distribuição de renda e riqueza e às custas de quem se deve realizar

os programas de transferência de renda.

Analiticamente, o comportamento de alguns governos anteriores e do atual demonstram

uma distorção da função distributiva dentro do presidencialismo de coalizão. As medidas

distributivas e os recursos utilizados para manutenção de tais programas foram fruto de trocas

parlamentares, com o intuito de manter a base aliada sólida e não perder a legitimidade eleitoral

conferida pelo voto. A grande questão é que a função distributiva na economia brasileira nunca

foi feita da forma que realmente deve ser feita: através de uma reforma tributária com a possível

inserção de um imposto de renda progressivo que subsidie os programas populares de

alimentação, transporte e moradia.

Considerando que o problema distributivo tem por base tirar de uns para melhorar a situação de outros, o mecanismo fiscal mais eficaz é o que combina tributos progressivos sobre as classes de renda mais elevada com transferências para aquelas classes de renda mais baixa. (GIACOMONI, 2012; MUSGRAVE, 1974).

Em cenários de abalos orçamentários, encarece as custas desses programas quando não

executados da maneira correta, tendo em vista que a população que majoritariamente concentra

a renda per capita não será afetada pelos abalos econômicos e continuará com sua concentração

financeira. O que ocorre é que, para que o Executivo não se perca em sua própria agenda e não

deteriore o eleitorado formado, transforma a política distributiva em ferramenta de

governabilidade, e seus recursos na elaboração das leis orçamentárias são fruto de trocas

parlamentares através das emendas, o que deixa nitidamente estremecida a função

similares nos trabalhos do polímata norte-africano do século XIV Ibn Khaldun — que discutira a ideia em sua obra de 1377 Muqaddimah — bem como nos estudos de John Maynard Keynes. LAFFER, A. (June 1, 2004). The Laffer Curve, Past, Present and Future. Retrieved from the Heritage Foundation.

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estabilizadora da economia. Ao se ter em mente que um governo de coalizões em poucas

hipóteses formará suas alianças alicerçadas na função de zelo do bem público, tem-se uma

tremenda desfiguração das funções do Estado na Economia, o que fatalmente gerará cenários

de crise como o do atual governo.

O tratamento do orçamento nas Constituições também não se distancia do raciocínio das

políticas de trocas. Com a vinda de D. João VI para o Brasil, iniciou-se um processo de

organização orçamentária e em 1808 criou-se o Erário Público, instituição primitiva do que

hoje é o Tesouro Nacional e Secretaria da Fazenda. A Constituição de 1824 não possuía uma

elaboração normativa a respeito da tratativa orçamentária, tento em vista que seu art. 172

estabelecia que o Ministro da Fazenda apenas apresentaria à Câmara dos Deputados um

“balancete geral”. A Constituição de 1891 é quem trouxe definitivamente para o plano

legislativo o orçamento, e atribuiu ser competência privativa do Congresso Nacional, sendo a

elaboração do orçamento competência da Câmara dos Deputados, e a tomada de contas do

Executivo atribuição do Congresso Nacional com auxílio do órgão recém-criado, Tribunal de

Contas. Nasce nessa época a função do accountability horizontal do Congresso, e que será

posteriormente melhor esmiuçada.

Apesar da Câmara dos Deputados ter assumido a iniciativa da propositura do orçamento,

observa Arizio Viana que na prática a iniciativa “sempre partiu do gabinete do Ministro da

Fazenda que, mediante entendimentos reservados e extraoficiais orientava a comissão

parlamentar de finanças na confecção da lei orçamentária” (VIANA, 1950).

Com a Revolução de 30, a Constituição de 1934 colocou uma seção própria para o

Orçamento Público e atribuiu a competência da proposta ao Presidente da República.

Entretanto, tal poder não era absoluto do Executivo, tendo em vista que não havia a limitação

do poder de emendas pelo legislativo. Assim, é possível afirmar que o modelo de 34 instituiu

uma proposta de orçamento mista, que ao mesmo tempo que não diminuía a qualidade de

participação do legislativo, não tornava absoluto o poder orçamentário do Executivo e tentava

colocar um mecanismo de contrabalanço ao comportamento herdado desde 1891, em que na

prática o Executivo definia suas próprias finanças nos bastidores e fazia seus acordos para a

aprovação.

Vargas ao assumir a Presidência possuía um discurso de que seu governo seria o das

Assembleias Especializadas, e que o Estado da oligarquia antiga poderia ser considerado

entidade amorfa. Apesar de suas duas Constituições apresentarem um modelo formal de

cooperação orçamentária entre Executivo e Legislativo, a partir de 37 a prática era de um

controle absoluto pelo Executivo.

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O movimento de 1964 pulverizou na Constituição de 1967 qualquer resquício de

interferência do Legislativo no processo de elaboração e aprovação do orçamento. O papel do

Congresso tornou-se mero fantoche para a aprovação do Orçamento da Junta Militar, tendo em

vista que a recusa era medida descabida de se cogitar em momentos como aquele.

Nitidamente o estudo constitucional da atribuição acerca da proposta orçamentária

contribui para a formação da relação entre a predominância da Democracia e a forma de

aprovação da legislação. A centralização do Executivo nos períodos ditatoriais é explicada pelo

próprio caráter autoritário e de não limitação dos poderes do Executivo. Já para nossos

momentos de tradição constitucional mais democrática, como as Repúblicas anteriores à

Ditadura de 1964, mostram que a todo custo o Executivo tenta embargar as proposições do

Legislativo, e que na prática o que deveria ser limitado (um orçamento construído através do

processo legislativo coerente), é mais uma moeda de troca para a formação dos regimes de

coalizão.

Não é diferente o panorama apresentado pela Constituição de 1988, em que o

constituinte demonstrou grande atenção para o capítulo do orçamento, já que se entendia ser

símbolo das prerrogativas parlamentares durante o período autoritário (GIACOMONI, 2012).

A novel Carta Magna apresentou um complexo sistema tripartite orçamentário – Lei

Orçamentária Anual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Plano Plurianual – com o retorno da

participação do Poder Legislativo na propositura de emendas parlamentares às despesas

públicas. Por outro lado, ainda continua como prerrogativa do gabinete presidencial a efetiva

elaboração do diploma orçamentário, e indo além, as emendas parlamentares continuam a ter o

caráter de barganha acentuado pelo presidencialismo de coalizão, em que se afasta a análise

técnica das emendas e sobrepõe-se um jugo eminentemente político em suas discussões.

5.2. A relação do presidencialismo de coalizão na elaboração do orçamento

brasileiro frente à instabilidade de permanência dos Ministros da área

econômica

Conforme apresentado, um dos flagelos do presidencialismo de coalizão no cenário

brasileiro pluripartidário é que, se tais minorias decidem se fortalecer contrariamente à agenda

constituída pelo Executivo, há uma formação excessiva do que a doutrina reconhece por veto

players, levando ao governo socorrer-se de medidas clientelistas para sobreviver ao longo

mandato de quatro anos. Barry Ames acentua que “raramente o presidente consegue evitar

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pagar um alto preço, na forma de clientelismo e fisiologismo, em troca de apoio parlamentar”

(AMES, 2001).

No processo orçamentário atual, mesmo quando os parlamentares têm um papel efetivo,

este se limita essencialmente à proposição de emendas ao projeto de lei orçamentária que visam

direcionar para suas bases eleitorais programas e projetos de interesse local (PEREIRA e

MUELLER, 2002).

Não cabe a esse artigo esmiuçar o complexo processo legislativo orçamentário com

todas suas fases e diretrizes, o que remete o leitor em caso de curiosidade para alguns livros

específicos sobre a temática. O que cumpre desenvolver é a relação pontual de alguns

comportamentos de coalizão no curso desse processo. O Ciclo Orçamentário pode ser definido

como uma sequência lógica de atos que compõe a proposta, elaboração e execução.

A sistemática adotada pela Constituição atual encontra-se no seu art. 165, em que a

iniciativa é privativa do Presidente da República, cabendo aos parlamentares o poder de

emenda. Alguns problemas acontecem ao se tentar compatibilizar o poder de emenda

parlamentar com o funcionamento do presidencialismo de coalizão.

Em primeiro lugar, os parlamentares abdicam de sua prerrogativa de propor uma

emenda de forma “coletiva”, a fim de pressionar o governo para que realoque uma quantidade

de recursos em determinada área que se observa prioritária para propor emendas destinadas a

beneficiar suas principais bases eleitorais (PEREIRA e MUELLER, 2002). Percebe-se então

que é plausível supor que o Executivo, que tem grande poder discricionário na execução do

orçamento anual, use este poder para pressionar a formação das coalizões desejadas e diminua

a atuação atribuída aos parlamentares. Com isso, a conclusão mais cabal sobre esse

comportamento parlamentar é que a cada momento há uma tendência dessa atitude tornar-se

maior entre os parlamentares, tendo em vista que isso cria uma expectativa no Legislativo de

seus pedidos futuros serem atendidos pelo Executivo. A essa conclusão PEREIRA e

MUELLER chegam também seu estudo:

Alegamos que o governo se dispõe a arriscar esse custo, porque se aproveita da oportunidade para utilizar a execução de emendas como instrumento de controle dos membros de sua coalizão nas votações no Congresso. Em outras palavras, o uso estratégico da liberação das emendas propicia ao Executivo o ganho de votos favoráveis que mais do que compensa a perda decorrente da alteração de sua proposta inicial. É por isso que o governo não somente abre mão de usar os recursos institucionais e as informações de que dispõe para impedir a modificação do seu projeto de orçamento, como incentiva a apresentação de emendas ao sistematicamente superestimar o nível das receitas esperadas. (PEREIRA e MUELLER, 2011).

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Reflexos dessa conturbada atuação espalham-se também nos Ministérios da área

econômica. Renato Perissonato e Eric Dantas ao compararem o período de permanência dos

Ministros dessa área entre os anos da ditadura militar e da atual redemocratização, percebeu-se

que o período democrático apresenta um tempo de permanência médio menor que o do anterior

autoritário, sendo em média 13 meses. É uma reflexão muito mais ligada ao próprio

funcionamento do presidencialismo de coalizão do que propriamente ao autoritarismo pretérito,

em que o governo de coalizão é “marcado por um tempo médio de permanência

significativamente menor e no qual predomina claramente o embate político como principal

razão de saída dos ministros econômicos.” (DANTAS e PERISSONATO, 2016).

Não há como afastar a responsabilidade do Congresso com esquivas de que não tenha

consciência desse comportamento endêmico acerca das coalizões. É muito pior que isso. Os

congressistas atuam de olhos abertos e a espera de que o funcionamento institucional seja dessa

forma, tendo em vista que os deputados que participam das “coalizões orçamentárias” são

beneficiados recebendo parcelas das verbas orçamentárias para beneficiar seu núcleo local de

eleitorado.

A conclusão, e particularmente trágica a que se chega, é que não só o governo de

coalizão atrapalha na elaboração de um orçamento comprometido com o bem público e a

tríplice função do Estado na Economia, como também se utiliza desse artifício como uma

ferramenta barata para financiar o alto grau de governabilidade do presidencialismo de coalizão.

6. Parlamentarismo: da história inglesa para o funcionamento do accountability

horizontal no Congresso

6.1. A história inglesa do Parlamentarismo

A história greco-romana difundiu os ideários de democracia, liberdade e um livre

governo, o que impediu que houvesse novamente na Inglaterra um governo tirano ou práticas

monárquicas tiranas, tal qual foi Willian Ruffus. O processo descrito ocasionava a seguinte

consequência: uma produção cada vez maior de leis e a organização num sistema legal coerente

e separado da administração do monarca.

Ao fim do reinado de Henrique III, o Judiciário já era uma figura de poder distinta da

máquina administrativa. Richard I foi conhecido como o ‘rei da penumbra’, eis que a Inglaterra

foi deixada a mercê dos ventos incertos do próprio tempo, esquecida pelo próprio monarca.

Essa específica experiência permitiu que os ingleses visualizassem, e aqui da forma mais

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empírica que pudesse, que era possível uma organização político-administrativa continuar o seu

funcionamento sem a presença de um rei. Em seu lugar, a figura de um ‘ministro de confiança’

era tomada.

Vai tomando forma um decisivo evento para a história política inglesa e do common

law, pois foi formado o panorama inicial para o que viria posteriormente ser a Magna Carta.

Hubert Walt, numa época quinhentista de fervor das artes, não poderia deixar o Direito ausente,

expressando uma visão nitidamente jusnatural: “loyalty was devotion, not to a man, but to a

system of law and order which he believed to be a reflection of the law and order of the

universe”.

Por um longo tempo, o antigo common law recusava-se a reconhecer os vilains como

proprietários de seus próprios territórios. Cabia um certo tipo de ‘recurso’ para as chamadas

‘Equity Courts’, porém ainda distantes e separadas do maquinário operativo da administração.

O que acontecia era apenas um ‘vilão’ sem o devido direito legal de propriedade, apenas com

um direito costumeiro de posse. Sir Edward Coke foi quem fez o sistema do common law

entender esses novos sujeitos sociais como sujeitos de direito. O fato simplesmente evitou que,

num futuro posterior, insurgisse na Inglaterra sangrentas revoluções sociais como aconteceu na

França. A história inglesa vagarosamente adaptou a lei aos novos costumes sociais.

A Reforma Protestante foi um marco importante na virada intelectual e política da

Inglaterra. Os profundos estudos da cultura grega pelos ingleses contribuíram para que

houvesse uma nova interpretação sobre o Novo Testamento bíblico, com fulcro nos novos

entendimentos sobre liberdades individuais, sobrepujando o antigo sistema de ‘costumes’. Isso

definitivamente refletiu para um novo entendimento acerca das leis para os ingleses. Ao afastar

a predominância de um costume clássico, de uma construção antiga do Cristianismo, isso

certamente impactou na forma em como as Cortes entendiam o nascedouro das leis, agora bem

mais distantes dos costumes e mais próximas do entendimento do Parlamento ser a única e

soberana fonte legislativa.

Nos dizeres de Theodore: “Law in the theological sense, and law as the lawyer knew it,

were both based upon the same foundation—the will of God as expressed through authority

(whether ecclesiastical or royal), tradition and custom.” (PLUCKNETT, 1956).

Uma vez que houvesse um ataque direto a todo sistema eclesiástico, por consequência

haveria um ataque ao sistema legislativo. A sociedade, tal entendida naquela época da forma

contratualista, contribuiu para uma secularização duradoura na Inglaterra, o que afetou

diretamente sua constituição histórica. Ao longo dos anos, diversas atitudes de um crescimento

do poder do parlamento puderam ser vistas, tal como a mudança do poder religioso para a coroa

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no reinado de Henrique VIII, o confisco em um único ato pelo parlamento de um grande número

de propriedades da Igreja; em suma, a onipotência religiosa sucumbia agora para uma

onipotência do Parlamento. Visto o que estivera sendo construído durante esses anos, fica clara,

portanto, a derrocada de Jaime II e a ascensão da Revolução Gloriosa com a assinatura do ‘Bill

of Rights’. "That the pretended power of suspending of laws, or the execution of laws, by regall

authority, without consent of Parlyament is illegall." (PLUCKNETT, 1956).

6.2. O papel do Congresso Nacional como ator do accountability horizontal: o

enfraquecimento institucional através do presidencialismo de coalizão

Sem um sinônimo para o vernáculo luso, define-se accountability como uma relação de

prestação de contas nas relações de poderes interna e externamente, ou seja, um processo de

responsabilização do agente por meio de suas ações ou omissões (ROBL FILHO, 2013).

Autores como ROBL e ARATO defendem que a existência de apenas uma Câmara facilita a

adequação a esse conceito de prestação de contas, visto que permite que a população saiba

melhor o responsável pelos ônus e bônus de determinado plano de governo, indo ao encontro

do discutido por Dalmo de Abreu Dallari sobre a formação do Senado na política brasileira. O

governo de coalização dificulta a identificação dos responsáveis pelas decisões, logo restringe

o exercício pela população do accountability na forma eleitoral (ROBL FILHO, 2013).

O Congresso possui um dinâmico papel, e constitucionalmente instituído, dentro do

accountability horizontal. Relaciona-se intrinsecamente com o conceito de responsividade,

visto que “a accountability horizontal se verifica pelo monitoramento exercido pelos partidos

políticos e, em especial, pela oposição – se ela existir e for efetiva -, sobre o governo através

do parlamento” (MOISÉS, 2011).

A efetividade da oposição é um atributo extremamente importante, conforme ressaltado

pelo autor. Atualmente, há não só uma crise fundamental do presidencialismo de coalizão

devido sua atuação fragilizar as instituições. A oposição brasileira desenvolveu-se não com

conceitos sólidos e heterogêneos de opor-se à política agendaria atual do Planalto. Erigiu-se um

embrionário desenvolvimento ao longo dos anos de uma falsa oposição, que se estabelece

contrariamente até que aceite o comportamento da coalizão através da barganha com

Ministérios, emendas parlamentares e alocação de recursos orçamentários para seus respectivos

Estados e Municípios. O rol de atuação deixa o plano da política para assentar-se no plano

estritamente eleitoral. É uma oposição aproximada à busca pelo poder, e distante de verdadeiras

ideologias.

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Mill atribuiu a melhor expressão sobre a necessidade de defesa dos interesses das

minorias, o que converge diretamente com o esboçado conceito anterior da ausência de real de

oposição na política brasileira. A hipótese dele defende que “a efetiva eficácia da instituição

consistiria, nesse sentido, na combinação da sua capacidade de defender o bem público geral

sem excluir a expressão dos direitos dos grupos minoritários particulares que constituem a

sociedade” (MOISÉS, 2011). Em um cenário de responsividade plena, temos um real encontro

entre um embargo político da oposição e seu papel de ator do accountability horizontal.

Ao mero indício de que a agenda política perdeu sua capacidade de defender o bem

público geral, seria dever constitucional que o Congresso realizasse a verdadeira pressão

política de uma oposição através dos vetos, propostas de leis e discussões em plenárias sobre

os pontos nefrálgicos de falta com o bem público. Entretanto, há uma dissociação desse

comportamento em virtude do presidencialismo de coalizão, em que haverá um legislativo

minguado e uma pseudo-oposição que não terá forças suficientes para retornar o eixo de

governabilidade.

O Legislativo tem de ter a capacidade de atuar em sua função legiferante com autonomia

e autocrítica. A reversão desse cenário no presidencialismo de coalizão é o resultado da referida

ausência de oposição.

O Congresso Nacional como o principal mecanismo de representação do sistema democrático precisa ter capacidade de introduzir iniciativas que, eventualmente, impliquem em mudança do status quo, sem que isso represente uma quebra da governabilidade ou um risco para a estabilidade institucional; na situação atual, no entanto, isso está bloqueado. (FIGUEIREDO, 2005).

Nenhum Presidente consegue erguer um governo sozinho. A face multipartidária de

nosso sistema, a priori, elabora um sistema em que o Presidente, para garantir a

governabilidade, precisa de apoio em todas as direções políticas. Tais alianças são duas faces

de uma mesma moeda: se de um lado garante a plena governabilidade e uma aparente

estabilidade política, de outra feita estabelece o crucial ponto para o enfraquecimento do papel

do Congresso em sua função responsiva (accountability) e desmantela por completo a

possibilidade de existir uma oposição preocupada com a ideologia do bem público.

A atual crise do governo Dilma, dentre outros fatores, tem como explicação esse frágil

pilar da construção de coalizações. Entretanto, o Congresso, possuindo um comportamento já

afastado da verdadeira responsividade e cobrança, preocupa-se mais em retirar o elemento

executivo como bode-expiatório de toda crise, do que articular-se como verdadeira oposição e

consolidar um projeto de verdadeira reforma. Os dois governos anteriores souberam trabalhar

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sua agenda dentro do sistema, e de um sistema que quanto mais aguda se torna a crise de

legitimidade para realizar as coalizões, maiores são as condições para que meios escusos sejam

utilizados para perpetuar o aparente cenário de estabilidade institucional. Conforme Moisés:

Por outras palavras, o sucesso dos dois presidentes que governaram o país no período de maior estabilidade das instituições democráticas brasileiras teria sido devido ao fato de eles terem percebido – em um caso mais depressa do que o outro – as implicações das prerrogativas constitucionais de seus cargos no que tange à sua relação com as forças políticas heterogêneas no parlamento. Em um caso, a subestimação da força dos partidos para formação da maioria governativa a partir de seus recursos institucionais específicos teria levado à adoção de medidas não-convencionais responsáveis pela deflagração de uma crise conjuntural de proporções consideráveis; no outro, uma suposta percepção mais clara dos atributos institucionais do modelo de presidencialismo de coalizão teria levado a um panorama político claramente monotônico, marcado por um comportamento relativamente previsível dos partidos e, por consequência, pela ausência de crises devidas à falta de apoio partidário às propostas do governo. (MOISÉS, 2011).

Perceba-se, assim, que efetivamente na construção histórica da política brasileira não

houve uma sucessão de acontecimentos que fizesse criar o sentido do rule of law, not of men

na construção dos sistemas de governo. O Período Regencial tem um interessante episódio

chamado de Revolta de 17 de abril que revela os verdadeiros interesses políticos capitaneados

pelo grupo dos caramurus, vertente conservadora e avessa a qualquer reforma na Constituição

de 1824. É interessante pelo visto de que o período Regencial foi uma experiência política

descentralizadora e defendido por certos autores constitucionalistas como o embrião do

movimento federalista no país.

Através das ideias dos “Vivas D. Pedro I”, o grupo revolucionário pretendia construir

uma política constitucional híbrida: uma combinação de ideários liberais avançados com

resquícios de uma Monarquia Absolutista como o Ancién Regime. Basile atribui o real intuito

do movimento como politização do conteúdo de crise, e não necessariamente um olhar real

sobre o problema, já que “provavelmente a maioria assim procederam, até porque a insatisfação

militar, a crise econômica, o antilusitanismo e a busca de autonomia tornavam-se

evidentemente politizadas” (BASILE, 2004). Seria a Regência o conteúdo de bode expiatório

para que a mídia utilizasse como forma de englobar a maior parcela da população no

direcionamento daquele interesse politizado. Tanto é assim que a maior parte dos militantes

caramurus compunham de funcionários públicos, militares, comerciantes e caixeiros.

Teria sido o período Regencial o espelho das críticas construídas por José Afonso da

Silva acerca do presidencialismo piramidal: não há e nunca houve anacronismo entre o

parlamentarismo e um sistema federalista. Parte dessa afirmação é corroborada por todo o

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conteúdo histórico do desenvolvimento do parlamentarismo no sistema do common law, em

que a sociedade desenvolveu a noção da autonomia do Legislativo e da possibilidade do

funcionamento das instituições sem uma figura central, eis que o Rei tornar-se-ia

gradativamente um escopo decorativo. O reflexo do passado do período regencial brasileiro é

o “período de penumbra” anglo-saxão do reinado de Richard I.

Os dois momentos históricos tiveram características próximas umas das outras: a

ausência da figura do Executivo de uma tradição monárquico-absolutista e a fragmentação

territorial desagregada. O que outrora torna-se diferente o desenvolvimento brasileiro do

britânico é o interesse dos indivíduos participantes:

[Indivíduos] com mais educação política e voz nos relatos, como Bulow, fundamentavam o movimento em termos de postulados liberais, como o direito de resistência à tirania e opressão (vendo a Regência como uma ditadura), o rompimento do pacto social e a quebra da soberania (em função da pretensa ilegalidade da Abdicação e das reformas constitucionais) (BASILE, 2004).

7. Conclusão: seria o Parlamentarismo a resposta?

Durante todo o século XVII e XVIII, a Teoria Política dos ingleses foi passando por

uma gradativa, porém profunda transformação. De tudo, o fato que os ingleses puderam

aprender foi que o poder político estava nas mãos do povo e era direito deles de mudarem o

governo conforme fosse suas vontades. Bem além das teorias de Hobbes e Locke, Jeremy

Bentham teve um impacto de maior importância para os ingleses, visto que trouxera palavras e

conceitos até então desconhecidos por aquela teoria política local, tal como ‘codificação’,

‘internacionalidade’ ou ‘utilitarismo’. A noção de lei utilitária de Bentham nos dias atuais fica

cada vez mais próxima, pois o que se percebe é um distanciamento entre uma noção

semirreligiosa de lei para uma noção prática de um governo guiado por princípios estritamente

públicos.

Notadamente, conforme esboçado nos tópicos de aporte histórico, a tradição brasileira

desenvolveu-se de forma diferente da tradição britânica. Enquanto para o Rule of Law há uma

maior preocupação com a atuação do Poder Legislativo e o Judiciário é inserido como um

elemento de ultimato para todas as esferas da sociedade, a tradição brasileira mostra um

comportamento de falhas híbridas; há um governo que se utiliza das coalizões para

sobrevivência e um Judiciário que teme em ser demasiadamente ativista para suprir a

anacrônica ineficiência do Poder Legislativo. Não se cogita em afirmar que a mudança de

regime é a única e verdadeira solução para o descompasso político do país. Mas ao certo, com

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uma tradição que caminha com passos próximos à soberania do Parlamento, um regime

Parlamentarista seria o início de uma longa jornada de mudanças corretivas.

Mas ainda assim, por que o Parlamentarismo? Há uma resposta técnica nos estudos do

catedrático Alfred Stefan, decano da School of International Public Affairs (STEFFAN, 1989).

Analisa o citado autor que o Parlamentarismo é o sistema de governo que melhor respondeu

para a perpetuação do que chama de três princípios para consolidação da democracia: eficácia,

legitimidade e flexibilidade no controle de uma crise.

Agrava a crise o conteúdo do presidencialismo de coalizão carecer da principal arma

que garante seu funcionamento no parlamentarismo: a ameaça de dissolução. Conforme

Ferreira, “haveria uma política de oposição cega, que relutaria muito em fazer qualquer coisa

que poderia ajudar o governo a ser bem-sucedido” (FERREIRA, 2016).

Observe que no tópico antecedente, ao definirmos a corrosão da função do Congresso

através do governo de coalizões e o enfraquecimento da atribuição de cobrança de

responsividade dos governantes, foi deveras necessário que fosse explicada a causa de tal

hipótese ter se atenuado nos dois governos presidenciais anteriores, causando uma aparente

estabilidade entre 1995 – 2010.

Deve-se ter em mente que em um governo de coalizão nada é de graça. O governo, ao

ceder espaço para a vontade das coalizões estabelecendo Ministérios e dando espaço na agenda

executiva, esperam em troca um amplo e irrestrito apoio. Isso levou a novas percepções

negativas quanto ao funcionamento do sistema político brasileiro. A consolidação de bases

parlamentares implicaria em falta de eficiência, reinando a lógica da patronagem, do

clientelismo e da corrupção (STEIN, 2016).

No decorrer dos mandatos da atual presidente Dilma Rousseff, a capacidade de

estruturar coalizões foi gradativamente reduzindo, confirmando a hipótese inicial de Abranches

sobre a lenta auto deterioração de um governo de coalizões. Em segundo lugar, o alto

fracionamento político partidário, e que não necessariamente representa um feixe de diferentes

ideologias político-partidárias, acirrou um cenário clivado por conflito de interesses

particulares. O resultado dessa confusão política é um momento em que fica claro que a soma

dos fatores conjunturais e estruturais apontados junto da “inexistência de mecanismos

institucionais de destituição de governos ilegítimos são alguns dos fatores do atual sistema

político-partidário que se conjugam para desencadear a atual crise” (VICTOR, 2015).

É preciso enfatizar que a instabilidade política de determinado regime reflete-se

umbilicalmente nas políticas econômicas, e é por isso que este trabalho consignou um capítulo

específico para fazer uma breve exposição sobre o formato de aprovação do Orçamento da

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MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão

Alethes | 265

União. Políticas macroeconômicas impactam diretamente na vida das pessoas, definindo seu

nível de renda, nível de consumo e a questão da empregabilidade no mercado. É através do

orçamento público que o Estado materializa boa parte de sua tríplice função na Economia para

garantir a alocação, distribuição e estabilização da Economia.

Refletir em como tornar mais democrática as decisões macroeconômicas é

necessariamente passar por um processo de reflexão do atual regime. Apesar de ainda ser

enorme a distância entre Ciências Sociais e as Econômicas, deve-se desmistificar a pretensão

de uma neutralidade técnica e entender como as condições sócio-históricas determinam cada

comportamento (STEIN, 2016).

Ao tanger a eficácia, o parlamentarismo tende a construir partidos e governos, enquanto

o presidencialismo fragmenta-os (presidencialism has party smashing tendencies,

parlamentarianism has party building tendencies). O governo parlamentar atua de forma

legítima, pois é impossível governar sem uma maioria na Casa Legislativa e raramente atua por

decretos ou poderes especiais (vide no caso brasileiro das Medidas Provisórias).

Quanto à flexibilidade no controle de uma crise, o voto de moção de desconfiança que

dissolve o Gabinete ou então a Casa Legislativa e promove novas indicações ou eleições

contorna os entraves políticos no Parlamentarismo, enquanto num regime presidencial o

sufrágio é travado pelo tempo e a crise apenas é agravada pela espera da troca de base política,

tendo a única ferramenta o difícil e controvertido impeachment. Entretanto, graves são as

ressalvas de nosso modelo social para a implantação do parlamentarismo, o que fortemente é

sustentado através do estudo histórico do período Regencial em comparação com o

desenvolvimento do parlamentarismo no modelo britânico. Antes de uma reforma estritamente

constitucional e política, é urgente que preparemos a sociedade com uma reforma ético-

sociológica.

Não se trata também de dialogar com uma hipótese unilateral do Parlamentarismo ser a

real e única solução para todos nossos problemas políticos. Longe disso. O presente artigo intuiu

de elencar as falhas de nosso sistema através de diversos setores: histórico, social e econômico.

As ressalvas de nosso desenvolvimento histórico, conforme pincelado através dos episódios

regenciais e da comparação com o período de penumbra da Inglaterra, demonstra que a

dificuldade inicial se espelha na própria não similitude cultural no trato da importância das

instituições e dos interesses dos integrantes de cada poder constituído.

8. Referências Bibliográficas

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 268-286, mai/ago, 2016.

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Entre o Fato e o Discurso: o Método APAC e sua Efetividade no Cenário Brasileiro

Between the fact and the discourse: the APAC method and its effectiveness in the Brazilian scenario

Raul Salvador Blasi Veyl1

Resumo: Em um contexto de efervescência política no âmbito do Direito Penal e com grande

abertura para debates em torno do Sistema Carcerário no Brasil, o presente artigo pretende trazer uma análise crítica acerca do método APAC - Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. Comparando-o com os métodos convencionais de aplicação da pena e a partir da lógica da Má Fé Institucional de Jessé Souza, pretende-se traçar um paralelo entre as críticas sofridas pelo método APAC e sua real condição de se apresentar enquanto alternativa eficaz para crise carcerária que o Brasil historicamente enfrenta. Unindo a teoria e a práxis, o fato e o discurso, pretende-se aprofundar a discussão acerca dos sistemas prisionais no Brasil e tentar adequar os métodos alternativos à realidade brasileira.

Palavras-chave: Direito Penal. APAC. Sistema Carcerário, Direitos Fundamentais.

Abstract: In a context of political booming in the Criminal Law and with a great opening to

debates around prison system in Brazil, the present article intend to bring a critical analysis about APAC Method – Association to Protection and Assistance to Sentenced People – when compared with other conventional methods of sentence. Bringing the Institutional Bad Faith logic, developed by Jessé Souza, and going through each aspect of the APAC method idealization and effectiveness, this work intend to make a parallel between the critics made to APAC and its real condition of showing itself as a choice to the prison crisis, historically faced by the Brazilian nation. Putting together the theory and practice, the fact and the speech, we intend to go further than the analysis already made and to try to adequate alternative methods to Brazilian reality.

Keywords: Criminal Law. APAC. Penitentiary System. Fundamental Rights.

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq sob orientação da Professora Doutora Karine Salgado.

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VEYL, R.S.B. Entre o fato e o discurso

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Introdução

Em 1769 determina-se a construção do primeiro presídio no Brasil (PEDROSO, 1997,

p. 122 e ss). Desde então, observa-se a grande idealização em torno do sistema penitenciário

brasileiro que, devido a sua precária infraestrutura, condiciona os detentos a condições sub-

humanas, ferindo, inclusive, diversos Direitos Humanos historicamente conquistados ao longo

dos inúmeros paradigmas dos Estados de Direito.

Abarrotado pelo descaso das autoridades, por um crescimento demográfico exacerbado,

pela falta de recursos, pelo crescimento exponencial da marginalização, e pelo crescente

preconceito de uma sociedade demasiadamente conservadora e pouco preocupado com o

encarcerado de uma forma geral (PEDROSO, 1997; GURGEL, 2008), o sistema prisional

brasileiro não conseguiu, ao longo de seus 246 anos, materializar aquilo que foi

constitucionalmente construído com relação ao detento e tampouco com relação à função social

da pena.

Em uma realidade na qual, tal como afirma Jessé Souza em seu livro intitulado “A Ralé

Brasileira - quem é e como vive”, impera a má-fé institucional e onde a grande maioria dos

detentos já estão condenados antes mesmo de serem detidos, a Associação de Proteção e

Assistência aos Condenados (APAC) surge como alternativa aos métodos convencionais,

desumanos em sua maioria.

A despeito das críticas jurídico-constitucionais, o modus operandi inovador do método,

que dá maior liberdade e responsabilidades aos recuperandos, assim como os bons resultados

relativos à reincidência daqueles que se submeteram ao mesmo, são fatores que chamam

atenção quanto à humanização e ressocialização do método alternativo.

É nesse cenário que o presente trabalho se apresenta. Analisando as condições e a

viabilidade de implantação de métodos alternativos de pena, como no caso da APAC, buscamos

unir a dogmática e a zetética2 na tentativa de encontrar caminhos que não só tratem o detento

2 Tal como leciona Tércio Sampaio Ferraz Junior: “Zetética vem de zetein, que significa perquirir, dogmática vem dokein que significa ensinar, doutrinar. Embora entre ambas não haja uma linha divisória radical (toda investigação acentua mais um enfoque que o outro, mas sempre tem os dois), sua diferença é importante. O enfoque dogmático releva o ato de opinar e ressalva algumas das opiniões. O zetético, ao contrário, desintegra, dissolve as opiniões,

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 268-286, mai/ago, 2016.

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como seres humanos, mas que tenham como foco a ressocialização dos mesmos e a

desconstrução de estigmas socialmente condicionados com relação às penas privativas de

liberdade. Buscar uma abordagem dialógica e dialética com os princípios constitucionais e com

os ideais construídos no Estado Democrático de Direito se mostra essencial para a superação

dos discursos construídos na lógica da dogmática penal. O sistema carcerário brasileiro urge

por saídas factíveis e o presente trabalho tende a destrinchar cuidadosamente todas as facetas

do método APAC para avaliar se, de fato, ele se mostra como uma alternativa eficaz no que se

propõe e na realidade jurídico-brasileira.

1. O perfil penal brasileiro e a má-fé institucional

O sistema carcerário brasileiro ficou, em quase todo o desenrolar de sua história, aquém

das expectativas que se depositavam nas teorias. Sempre desenvolvida de forma cuidadosa e

por especialistas que de fato se preocupavam com o bom gerenciamento da sociedade e dos

indivíduos de forma geral, a aplicação dos sistemas, no Brasil, foi constantemente delimitada,

quer pela inviabilidade dos projetos, quer pela pouca preocupação com o encarcerado devido

ao estigma social de “vingança” e de retributivismo da pena. Nesse sentido, discorre Regina

Célia Pedroso:

“(...) a inoperância das instituições públicas brasileiras funcionou em prol da mentalidade autoritária de época, e trabalhou na criação de lugares excludentes do mundo civilizado; sempre tomando como base modelos ideais e perfeitos de aprisionamento - as utopias penitenciárias -, sobre as quais, os juristas, via de regra, acreditavam que proporcionando leis em favor desses pressupostos, livrariam os bons homens dos perigos que circulavam visivelmente pelas ruas das cidades; protegiam o Estado do perigo que o afrontava e, sobretudo, levariam à regeneração social o futuro encarcerado. Mera utopia. ” (PEDROSO, 1997, p 136)

Mesmo com o desenvolver dos paradigmas do Estado de Direito e com o avanço, em

inúmeros aspectos, das garantias individuais e coletivas, assim como o maior enfoque para a

situação do detento, desenvolveu-se no Brasil a lógica da má-fé institucional. Engendrada no

conservadorismo social, histórico e conformador no qual o sistema jurídico brasileiro se vê

inserido, essa lógica cria a dicotomia dos “amigos” e “inimigos” da sociedade por ser incapaz

de perceber a diversidade.

pondo-as em dúvida. Questões zetéticas têm uma função especulativa explícita e são infinitas. Questões dogmáticas têm uma função diretiva e explícita e são finitas. Nas primeiras, o problema tematizado é configurado como um ser (que é algo?). Nas segundas, a situação nelas captada configurasse como um dever-ser (como deve ser algo?). Por isso, o enfoque zetético visa saber o que é uma coisa. Já o enfoque dogmático preocupa-se em possibilitar uma decisão e orientar uma ação. ” JUNIOR, Tércio Sampaio Ferraz. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação.ª edição. São Paulo: Atlas, 2004. p. 35.

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VEYL, R.S.B. Entre o fato e o discurso

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“Esse processo [a formação do Estado moderno no Brasil] instaurou novos padrões de comportamento humano exigidos para a adequação ao novo contexto social, definido pela expansão do mercado capitalista, do Estado centralizado e de todos os seus arranjos institucionais dedicados à manutenção do padrão de vida urbano moderno. O problema é que grande parte da população — as famílias de ex-escravos e sertanejos que deram origem à ralé estrutural — não atendia a esses padrões e não foi considerada seriamente na elaboração dos projetos que seriam levados a cabo por esses arranjos institucionais. ” (SOUZA, 2009, p. 348)

O Sistema Prisional no Brasil possui um perfil historicamente segregacionista. Segundo

o Infopen - Sistema Integrado de Informação Penitenciária – em 2010, 60% dos presos eram

negros enquanto 37% eram brancos. Ademais, o IDH e a intensidade da pobreza são fatores

que acompanham a discrepância racial nos sistemas prisionais no brasil, o IDH entre os brancos

era de 0,814 enquanto que o dos negros de 0,703, já a intensidade da pobreza, para os brancos,

indicava 47,43 e, entre os negros, apontava 49,29. (MONTEIRO, 2013). Acompanhada por

diversas outras condições, indissociáveis, em certa medida, a disparidade na cor dos

encarcerados somente reflete o conservadorismo e a insensibilidade do ordenamento para as

condições historicamente construídas.

Para Coelho (2005a), os estereótipos de cor parecem funcionar efetivamente, especialmente no que tange o acesso diferencial à justiça por meio de marcadores sociais. Nesta perspectiva, Adorno (1989, p. 43) aponta que apesar da maioria dos sentenciados estarem inseridos no grupo de brancos, tanto para reincidentes como para não-reincidentes, 65% e 74% respectivamente, a diferença acentua-se quando se comparam reincidentes e não-reincidentes da cor negra. Adorno (1996) descreve que os réus negros tendem a ser punidos mais severamente em comparação aos réus brancos, apesar de partilharem de características socioeconômicas semelhantes. A justiça penal ao ser mais severa para com os criminosos negros do que com brancos expressaria a desigualdade de direitos que compromete o funcionamento e a consolidação da democracia na sociedade brasileira (MONTEIRO; CARDOSO, 2013, p. 107).

Dessa forma, não só se vive em um contexto no qual o sistema carcerário é

insuficientemente estruturado para dar ao condenado o mínimo de dignidade, como também

tem-se instituições pré-condicionadas a valorar negativamente condutas de determinada parcela

da sociedade. Jessé Souza, mais uma vez, elucida a impotência do aplicador do Direito no que

tange à desconstrução desse paradigma ao exemplificar a falta de sensibilidade do ordenamento

no qual o magistrado se vê enclausurado:

A consideração da infância dos réus, se levada a cabo sistematicamente, colocaria a instituição em xeque, já que quase todos que são réus têm a mesma história de desorganização familiar, infância marcada por algum tipo de violência e fracasso escolar. A segurança jurídica, então, é invocada como justificativa principiológica e técnica para a não consideração das particularidades do caso — particularidades que, no caso da Justiça penal, justiça por excelência da ralé, vira regra — e para o

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direcionamento do julgamento na mera adequação do fato ao tipo penal. A má-fé institucional esquematiza os ritos e a infraestrutura do sistema criminal de modo a não haver saída para o magistrado. (SOUZA, 2005, p. 340)

Diante do exposto, é possível observar o abismo que há entre as teorias penais de forma

geral, e o que realmente se dá nas instituições e no cotidiano do sistema prisional brasileiro.

Observa-se o desenvolvimento do Direito Penal nas distintas abordagens de função da

pena. Desde a teoria retributiva, até às teorias de prevenção geral e especial, o que é possível

de ser analisado, é que ocorre uma “humanização teórica” do Direito Penal. Nesse sentido,

observa-se um olhar mais atento dos penalistas para aqueles que se submetem às penas, assim

como um maior cuidado na delimitação de quais devem ser os fins da penalização.

A prática, por sua vez, devido à infinidade de variáveis que decorrem da materialização,

não consegue acompanhar o desenvolvimento das teorias. Com presídios cada vez mais atrozes

e menos preparados para lidar com a quantidade de detentos no Brasil – em 2010 eram 496.251

presos segundo o Infopen enquanto o número de vagas no sistema penitenciário era de 298.275,

segundo o mesmo sistema no mesmo ano – e com instituições pouco desenvolvidas para

administrar as mais diversas realidades que a pluralidade brasileira oferece, as penas privativas

de liberdade convencionais, se mostram, cada vez menos, a solução adequada para a

criminalidade no Brasil.

Constatamos também que as ocorrências criminais caminham em um mesmo compasso com as taxas de encarceramento, contudo, não significam um decréscimo nas taxas de ocorrências criminais. Se tomarmos como exemplo o período de 2004 a 2005 no território nacional, a criminalidade em suas diversas modalidades passou de 4.200.298 para 4.990.74214 e o crescimento da população prisional passou de 336.358 para 361.402. A população prisional cresceu e as ocorrências criminais acompanharam esse mesmo processo. (MONTEIRO; CARDOSO, 2013, p. 109)

A situação dos presídios convencionais no Brasil, com base no que foi

supramencionado, pode ainda ser abordada com base em sua inconstitucionalidade. As

condições infraestruturais, a superlotação dos presídios e o despreparo das instituições e dos

profissionais atuantes na execução penal – exemplificados pela má-fé institucional – ferem,

taxativamente, o Artigo 5º, III da Constituição Federal de 1988 que preconiza a não submissão

de ninguém a qualquer tratamento desumano.

Na verdade, a Constituição Federal cuidou de deixar claro que três comportamentos estariam sendo condenados: a prática da tortura, o tratamento desumano, que poderia ser qualquer outro que, assim caracterizado, não se enquadraria na hipótese de tortura, e, por fim, o tratamento degradante. Cuidou, o constituinte, de alargar o conceito, mesmo pecando por excesso. Quis deixar claro que todo e qualquer comportamento atentatório à dignidade da pessoa humana, quer enquadrado como tortura, quer

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VEYL, R.S.B. Entre o fato e o discurso

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enquadrado como degradante, ou ainda desumano, mereceria reprovação do Estado Brasileiro. (ARAUJO In CANOTILHO et al, 2013, p. 244)

Nesse sentido, a situação degradante dos presídios no Brasil, bem como as condições

pelas quais os encarcerados passam, como já tratado anteriormente, vai de encontro ao artigo

5º, III. Fere-se, também, logicamente, o Princípio da Dignidade Humana, previsto no Artigo

1º, III da Constituição Federal de 1988.

Ao consagrar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático (e social) de Direito (art. 1º, III), a CF de 1988, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do próprio Estado e do exercício do poder estatal, reconheceu categoricamente que o Estado existe em função da pessoa humana, e não o contrário. (...). Assim, não se pode deixar de reconhecer que, para além de uma dimensão ontológica (mas não necessariamente biológica) a dignidade possui uma dimensão histórico-cultural, sendo, em certo sentido, uma noção em permanente processo de construção, fruto do trabalho de diversas gerações da humanidade, razão pela qual estas duas dimensões se complementam e interagem mutuamente. Justamente esta interação deixa ainda mais claro que o fato de considerar-se a dignidade da pessoa humana algo (também) vinculado à própria condição humana não significa ignorar sua necessária dimensão comunitária (ou social). (SARLET In CANOTILHO et al, 2013, p. 105)

Assim, como se viu a importância da Dignidade Humana é albergada como um dos

princípios fundamentais do ordenamento constitucional brasileiro, de forma que deve-se

buscar, como norte, sua plena efetivação.

Abrem-se, então, caminhos para o surgimento de novas perspectivas dentro da execução

penal. Sistemas não convencionais de cumprimento de pena aparecem no cenário brasileiro das

mais variadas formas e pautados nos mais diversos ideais. Explorar-se-á, adiante, um dos mais

criticados e controversos métodos alternativos à pena privativa de liberdade.

2. O método APAC: história, organização e resultados

Idealizado por Mário Ottoboni em 1972, a Associação de Proteção e Assistência aos

Condenados (APAC) tem sua primeira experiência realizada em São José dos Campos.

Inicialmente com o nome de “Amando ao Próximo Amarás a Cristo”, a ideia foi aplicada devido

a uma greve na cidade, o que obrigou o juiz de Direito, a pedido de Ottoboni e sem outra

alternativa, a entregar alguns presidiários para ficarem sob a guarda de 15 voluntários, sob o

comando do idealizador do método. O método foi desenvolvido para seguir as diretrizes de uma

recuperação social efetiva, na qual, dado o “amor” e o amparo religioso, assim como a disciplina

rigorosamente estabelecida, o preso – aqui chamado de reeducando – consegue “matar o

criminoso e salvar o homem”.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 268-286, mai/ago, 2016.

Alethes | 274

A transformação moral de que fala Ottoboni (2001a) pode ser entendida como uma ressignificação dos princípios, valores e normas que regem o comportamento humano em sociedade. Sánchez (2004) diz a esse respeito que os princípios, valores e normas são, em suma, construções coletivas, embora a realização moral seja feita pelo indivíduo social. Esse autor diz ainda que esses são construtos que perpetuam, quase estáveis, através dos tempos. (COSTA; PARREIRA, 2007, p. 7)

Atualmente, o método angariou uma série de adeptos em diversas localidades do Brasil,

tendo como maior referência a sede de Itaúna, Minas Gerais. A organização não governamental

conta com ajuda financeira internacional e convênios com os Estados, de modo que a

administração das associações fique a cargo da comunidade e as despesas de custeio, a cargo

do Estado.

Juridicamente, as APACs possuem todo amparo legal-constitucional para seu

funcionamento, tal como ressaltam Ana Luísa Silva Falcão - Subsecretaria de Administração

Prisional/Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS/MG) – e Marcus Vinícius Gonçalves da

Cruz em seu artigo “O Método APAC – Associação de Proteção e Assistência aos Condenados:

análise sob a perspectiva da alternativa penal”:

As APAC’s têm amparo na Constituição Federal, na LEP e no caso de Minas Gerais, da Lei Estadual 15.299/2004, que dispõe sobre a realização de convênio entre o Estado e as Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (SILVA, 2012). Aplica-se o preceito trazido pelo artigo 4º da LEP, que trata da cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena. (FALCÃO; CRUZ, 2011, p. 9)

A Associação se distingue dos métodos convencionais pelo tratamento do reeducando,

tornando o mesmo diretamente responsável por sua recuperação. Possuir a chave de sua própria

cela – pouco utilizada no cotidiano da vida prisional – ou ser encarregado da limpeza do quarto

de visitas íntimas, são só algumas das diversas responsabilidades assumidas pelos reeducandos,

as quais, seguindo um esquema de recompensação e progressão interna de regime, se tornam

exponencialmente motivadoras da transformação moral-social pretendida por Ottoboni.

Estão presentes, imprescindivelmente, doze elementos fundamentais que auxiliam na

recuperação e justificam a “humanização” pautada nesse método alternativo de pena privativa

de liberdade, quais sejam: participação da comunidade, integração família - recuperando,

trabalho voluntariado, trabalho dentro e fora da instituição, ajuda mútua entre os recuperandos,

mérito, Centro de Reintegração Social (CRS), assistência jurídica, assistência à saúde,

valorização humana, religião, jornada de libertação em Cristo.

A participação da comunidade está presente na Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84)

em seu Artigo 4º, o qual determina que “O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade

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nas atividades de execução da pena e da medida de segurança” (BRASIL, 1988). A APAC,

segundo o Programa Novos Rumos do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, realiza algumas

ações de sensibilização e mobilização da comunidade, quais sejam: audiências públicas,

seminários de estudos sobre o método APAC e formação de voluntários.

Visando uma recuperação ampla, bem estruturada e humanizada, são criados

departamentos, na estrutura administrativa, com objetivo de auxiliar as famílias, não só no

acolhimento daquele detento em todo o processo de execução penal, mas também quando da

libertação, de forma que a reinserção social seja, de fato, consolidada.

O trabalho do voluntariado é de suma importância no método. Para exercer suas funções,

o mesmo deve passar por curso de formação de, em média, 42 aulas, de forma a entrar em

contato com a metodologia e desenvolver os atributos necessários para desenvolver o trabalho

cuidadosa e solidariamente (VILHENA; PAIVA, 2011).

O trabalho do recuperando acontece dentro e fora da instituição e aparece, aqui,

multifacetado, assumindo determinadas funções em cada tipo de regime pelo qual o reeducando

for submetido.

No regime fechado, a Apac preocupa-se com a recuperação do sentenciado, promovendo a melhoria da autoimagem e fazendo aflorar os valores intrínsecos do ser humano. Nessa fase, o recuperando pratica trabalhos laborterápicos e outros serviços necessários ao funcionamento do método, todos voltados para ajudar o preso a se reabilitar. No regime semiaberto, cuida-se da formação de mão de obra especializada, através de oficinas profissionalizantes instaladas dentro dos Centros de Reintegração, respeitando-se a aptidão de cada recuperando. No regime aberto, o trabalho tem o enfoque de inserção social, já que o recuperando presta serviços à comunidade, trabalhando fora dos muros do Centro de Reintegração. (VILHENA; PAIVA, 2011, p. 32)

A ajuda mútua entre os recuperandos se faz necessária para que seja estabelecido um

ambiente harmônico, assim como para que se aprenda e pratique o respeito aos semelhantes.

Essa ajuda se dá através da representação de cela e do Conselho de Sinceridade e Solidariedade

(CSS).

No método APAC, o mérito auxilia na determinação da progressão de regime.

Analisado minuciosamente por uma Comissão Técnica de Classificação, tanto as pequenas

atitudes do dia-a-dia como limpeza da cela, quanto os grandes passos na reeducação moral

como o pedido de perdão à vítima, contam para estabelecer a marcha de progressão.

O Centro de Reintegração Social (CRS) é o local onde o reeducando cumpre a sua pena.

Com infraestrutura totalmente desenvolvida para o método e de extrema importância para a

efetividade do mesmo, o reeducando conta, ainda, com oportunidade de cumprir a pena próximo

ao seu núcleo familiar.

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O CRS, pensado a partir das contribuições de Deleuze (1995), pode ser visto como um espaço liso, ou seja, o recuperando possui um sentimento de autonomia para fazer ou não as atividades de trabalho dentro da APAC, desde que ele assuma as conseqüências desse ato. Ao mesmo tempo percebe-se nesse espaço, como diria Deleuze (1995), uma demarcação territorial. O estabelecimento apaquiano é estriado, é demarcado já que o recuperando só possui o sentimento de autonomia, porém ele efetivamente não a tem. (COSTA; PARREIRA, 2007, p. 9)

Estão presentes, ainda, assistência jurídica e à saúde, a primeira, restrita àqueles que

aderiram e apresentam bom aproveitamento com relação ao método e a segunda aberta a todos,

disponibilizando, dentre outras, assistências médicas, psicológica e odontológica.

A valorização humana é a base do método, determinada por Ottoboni como um dos fins

a serem seguidos. Pautado, sempre, em atividades que busquem o autoconhecimento e a

valorização de si mesmo, são realizadas reuniões de cela, com a utilização de métodos

psicopedagógicos, além de grande esforço para convencer o reeducando de que pode ser feliz,

de que não é pior que ninguém. Até mesmo, a utilização de talheres para as refeições são

aspectos que fazem com que os recuperandos se sintam valorizados. (VILHENA; PAIVA,

2011)

Por fim, a Religião, aqui não como fé cristã propriamente dita, está pautada no amar e

ser amado, sem imposição de credos (VILHENA; PAIVA, 2011), uma vez que, segundo

Ottoboni, “(...) não há virtude mais santificadora, nem mais excelente que o amor de Deus. ”

(OTTOBONI, 1984, p. 94).

A consolidação da religiosidade em que se pauta a todo momento o método APAC se

dá nas Jornadas de Libertação em Cristo, um encontro anual disposto entre palestras,

testemunhos de outros participantes e de meditação, tendo como fim, durante quatro dias de

jornada, provocar, no recuperando, uma filosofia de vida diferente, pautada em Deus e nos

valores morais ali desenvolvidos.

Esse evento, que muito se assemelha a um Cursilho para presos, é dotado de uma sequência lógico-psicológica que demorou 15 anos de estudos para a formulação atual, e consiste em um ‘misto de valorização humana e religião, meditações e testemunhos dos participantes’ (Ottoboni, 2006, p. 186). (JUNIOR, 2013, p. 87)

Todos os reeducandos devem passar pela Jornada em algum ponto do cumprimento do

regime. Segundo Maria Resende de Carneiro Vilhena e Maria Goretti Dias Lopes Paiva (2011,

p. 39) o objetivo da jornada e da sua obrigatoriedade, “é provocar no recuperando a adoção de

uma nova filosofia de vida, durante quatro dias de reflexão e interiorização de valores. ”

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Constata-se que o método tem surtido bons resultados, com índices de reincidência,

segundo o Conselho Nacional de Justiça, abaixo de 10% nas unidades prisionais que o adotam

(VASCONCELLOS, 2015), enquanto no sistema convencional verifica-se uma reincidência,

segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), entre 70% e 85%. Quanto às fugas,

evasões e abandonos, constatou-se, que do ano de 2000 a 2005 foram apenas 16 fugas, 9 evasões

e 54 abandonos (GURGEL, 2008), números extremamente baixos.

3. Críticas ao método APAC: O Estado de Direito e a realidade brasileira.

O Estado de Direito, ao longo de sua formação histórica e em cada um de seus

paradigmas, tenta conformar a realidade político-jurídica às questões de ordem racional. Dessa

forma, por meio das Cartas de Declaração de Direitos, dos Direitos de primeira e segunda

geração, além do grande enfoque e refinamento das discussões acerca de liberdade, igualdade

e inclusão - todas influenciadas pelas questões dos paradigmas Liberal e Social - o Estado

Democrático de Direito, de forma dialética, surge como suprassunção dos valores e posições

confrontadas anteriormente a ele.

Através dos Direitos Difusos, ou de terceira geração, e sempre na reminiscência dos já

anteriormente conquistados, o Estado Democrático de Direito, na permanente tensão entre

Direitos e Democracia, procura e deve procurar, sempre, o princípio da igualdade enquanto

direito às diferenças. Quer como norteador da Constituição e de suas manifestações na

sociedade, quer como princípio jurisdicional para efetivação de uma sociedade mais justa e

equânime, a garantia de igualdades formal e material torna-se questão basilar para asseguração

da democracia modernamente entendida e para a criação de uma identidade constitucional, com

a qual o povo poderá sempre se amparar e se ver representado.

A laicidade, nesse sentido, surge não apenas como seguridade de uma justificação de

poder diversa daquela pautada no poder divino, mas também para permitir um ideal maior de

liberdade, de igualdades formal e material e de materialização da democracia, interesses de

suma importância quando se pensa em um Estado Democrático de Direito. Nessa linha,

argumenta Bernardo Gonçalves:

(...) a democracia, como princípio jurídico-constitucional a ser densificado de acordo com a perspectiva específica de cada um desses processos, significa participação em igualdade de direitos e de oportunidades, daqueles que serão afetados pelas decisões, nos procedimentos deliberativos que as preparam (FERNANDES, 2011, p. 58)

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Analisando, ainda, o viés religioso desse método alternativo à pena privativa de

liberdade e tendo em vista a segregação que se estabelece no mesmo – já que só se submetem

ao método aqueles que declaradamente possuírem uma religião – a constitucionalidade do

método das APACs é posta em xeque. A liberdade de crença, aqui, não só é desrespeitada em

si, como também viola o princípio da igualdade de todos perante a lei, haja vista que segrega

aqueles que se consideram sem crença alguma.

É imprescindível, ainda, analisar a participação Estatal na efetividade dos métodos

APAC. Não só a ajuda financeira é fornecida, mas também ajuda institucional. O Programa

Novos Rumos, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, desde 2001, traça metas na

implementação de APACs em todo o Estado de Minas Gerais. Observa-se, então, o amplo

suporte estatal que o método alternativo recebe, Estado este, que, segundo os princípios

constitucionais e reforçando os ideais de um Estado Democrático de Direito, deveria ser laico.

Nesse sentido, elucida, mais uma vez, Bernardo Gonçalves:

Por isso mesmo, apenas quando o Estado passa a ser laico, operando a separação entre Igreja e Estado (política), em 1891, que temos de fato a proteção às liberdades de crença, principalmente porque agora todos os cultos podem ser públicos e não mais domésticos. Importante lembrar que as liberdades religiosas não podem servir de escudo para prática de atos que lesem direitos de outros membros da sociedade. (FERNANDES, 2011, p. 303)

Pode-se argumentar, em contrapartida, que nos termos do Artigo 19, I, da Constituição

Federal de 1988, é assegurado o direito da União, Estados e Municípios a manter dependência

ou aliança com entidades religiosas, desde que haja interesse público envolvido3. De fato, o

interesse público justifica, em uma primeira análise, uma abordagem pouco problemática acerca

da questão. Entretanto, vincular o interesse público a uma abordagem eminentemente religiosa,

parece-nos descaracterizar esse interesse, não só pela taxatividade da religião no método de

seleção, mas por todas as práticas que, impõem, direta e indiretamente uma doutrinação

religiosa revestida por um discurso moral.

Noutras palavras, a subordinação do interesse público a práticas de fins religiosos, uma

vez que não são estritamente necessárias aos fins de promoção de justiça, segurança ou bem-

3 Dada a multiplicidade de acepções que o termo “interesse público” adquire na Constituição Federal de 1988, faz-se mister ressaltar que, tal como explicita Luís Roberto Barroso, o termo, aqui, adquire caráter de interesse público primário, ou seja, “(...) a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são s interesses de toda a sociedade.” BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p 69.

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estar social, traz à tona uma incongruência gritante no que tange à laicidade e democracia no

cenário brasileiro do Estado Democrático de Direito.

Não só, então, ferem-se deveres de proteção e garantias institucionais4, que norteiam

princípios fundamentais da constituição, como o da igualdade, laicidade e liberdade ao culto,

mas também se desconstrói o interesse público ao condicioná-lo a práticas religiosas,

indissociáveis à metodologia APAC.

O que se questiona, aqui, assim, não é exclusivamente a parceria firmada entre o ente

público e o privado de cunho religioso, mas a inconstitucionalidade da segregação que se impõe

aos detentos. Ao determinar a religiosidade enquanto preceito fundamental para o

funcionamento do método e para a aceitação de pessoas, fere-se o princípio da igualdade. Ferir

o princípio da liberdade religiosa, no caso da APAC, atinge, indiscutivelmente, o princípio da

igualdade enquanto direito à diferença, princípio este, imprescindível ao Estado Democrático

de Direito.

Haja vista a criação e legitimação do Estado a partir da autonomia da vontade de seus

cidadãos, o mesmo deve corresponder, igualmente, aos anseios de todos, primando, assim, pela

igualdade. Nessa linha, argumenta Karine Salgado:

O Estado democrático (...) ainda assume a ideia de que a constituição do Estado se dá nos moldes da vontade de seus cidadãos. Não se contenta, entretanto, com essa legitimidade formal, insuficiente e busca uma autonomia da vontade plena de sentido e de efetividade. Desta feita, a autonomia da vontade se estende também ao momento posterior à criação do Estado através da participação dos cidadãos no governo do Estado. É assim que se observa a inconstitucionalidade do método e, indiretamente, da parceria entre o Estado e a Associação. (SALGADO, 2009, p. 110)

O método religioso utilizado na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados,

outrossim, não só vai de encontro aos princípios constitucionais, mas também aos previstos pela

Lei de Execução Penal em seus Artigo 3ª, parágrafo único e 24, parágrafo segundo, que

dispõem, respectivamente, que não haverá qualquer distinção de natureza racial, social,

4 Com base nos deveres de proteção derivados da relação entre Estados e entidades religiosas, tem-se: “Tangente aos deveres de proteção (2), é viável equacionar as relações entre o Estado e as confissões religiosas de maneira genérica em três vertentes de funções estatais: (2.1) a proteção dos indivíduos (defesa da liberdade religiosa individual); (2.2) a proteção da sociedade civil contra os abusos (inclusive coordenando as diversas liberdades religiosas coletivas); (2.3) e criar condições para que as confissões religiosas desempenhem suas missões (dever de aperfeiçoamento). Como garantia institucional (3), PRTEG-ESSE: (3.1) a liberdade religiosa individual (Autodeterminação da personalidade); (3.2) e a liberdade religiosa coletiva (autodeterminação confessional), as igrejas como instituição; (3.3) além de garantir-se o princípio da igualdade; (3.4) e a diversidade e o pluralismo religioso (que refletem na abertura e no pluralismo do espaço público).” NETO, Jayme Weingartner. Comentário ao Artigo 19, I. In: CANOTILHO, J, J. Gomes; MENDES, Gilmar F; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 597

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religiosa ou política e que nenhum preso poderá ser submetido a participar de atividade

religiosa. (BRASIL, 1984)

Perpassando, ainda, pelo mérito da religiosidade, a APAC, por mais que se pretenda

ecumênica, não consegue materializar essa condição. Analisando os ritos estabelecidos pelo

método, assim como a estrutura das CRS, é explícita a envergadura católica adotada. Antonio

Carlos da Rosa Silva Junior (2013), em seu artigo “Ressocialização de presos a partir da

religião: conversão moral e pluralismo na Associação de Proteção e Assistência aos

Condenados (APAC)” faz uma minuciosa análise do método, não só enquanto discurso, mas

em toda sua concretização, e explicita:

Outrossim, embora a APAC se queira “ecumênica” – vide a nomeação da cela solitária, à qual os presos são instados em vários momentos a comparecer –, é certo que a catolicidade está marcada em sua estrutura. Tal se dá, inclusive, pelo caráter integralmente “repetitivo” das orações com tonalidade cristã impostas aos recuperandos, bem como pela utilização de material “católico” nas orações de todas as manhãs, antes da primeira refeição de cada dia. (JUNIOR, 2013, p. 87)

Dessa forma, tem-se uma segregação maior do que a aparente. Não só os ateus e

agnósticos devem, de certa forma, abdicar de sua própria crença e, em certa medida, de sua

própria liberdade para que possua os mesmos direitos do que os cristãos, mas também são

impostos, aos espíritas, evangélicos, e a uma infinidade de vertentes dessa lógica cristã, que

releguem, indiretamente e salvas s proporções, seus ideais religiosos. Mais uma vez, afastam-

se o discurso e a efetivação.

Entende-se a importância da religião para a ressocialização do recuperando, tal como

afirmam Amanda Lemo, Edileuza Lobo e Eva Schelinga, estudiosas das áreas de Ciências

Sociais e Antropologia, que estudaram in loco e profundamente o método alternativo em

questão (JUNIOR, 2013). O caráter religioso, entretanto, deve ser visto como uma alternativa

às já rigorosas disciplinas empregadas durante o cumprimento da pena. Dada a comprovada

eficácia da presença da religião na reinserção social do prisioneiro e na sua “mudança de vida”,

tal como pretende Ottoboni (1984), a mesma pode ser aplicada, mas não deve deter a

importância central que atualmente apresenta. Ao determinar uma importância secundária e

abandono da taxatividade da religião no método APAC, não haveria limitação à liberdade de

crença, descaracterização da igualdade enquanto direito à diferença, vinculação do interesse

público ou questionamentos acerca da laicidade estatal no que tange ao sistema prisional

brasileiro.

Outras críticas são tecidas no que diz respeito aos dados apresentados pelo método

APAC. Em uma análise quantitativa, os resultados são extremamente satisfatórios e aparentam

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demonstrar a efetividade do método. Entretanto, analisando-se qualitativamente os dados

apresentados pelo método, vemos um direcionamento dos mesmos aos bons resultados, haja

vista que, antes mesmo de serem aceitos na APAC, os detentos passam por uma rigorosa análise

comportamental, de modo que aqueles que realmente apresentam um comportamento desviante

acentuado raramente conseguem acesso a esse método alternativo. Segundo reportagem do

Conselho Nacional de Justiça, os indisciplinados, violentos e líderes de facções criminosas

dificilmente são aceitos (VASCONCELLOS, 2015).

Mais uma vez, nota-se o segregacionismo presente esse método alternativo à pena

privativa de liberdade, já que não são todos que possuem o privilégio de receberem um bom

tratamento penal. Jessé Souza, trata da dificuldade dos integrantes da “ralé brasileira” de

obterem acesso a penas alternativas. Por analogia, a mesma lógica se aplica ao método APAC.

Vários fatores fazem com que as penas alternativas não funcionem nunca ou quase nunca a favor dos infratores dessa classe. Do ponto de vista técnico, é muito fácil afastar a possibilidade de aplicação das penas alternativas para eles. Tendo sido a condenação por crime doloso, só pode haver a conversão se a pena de prisão não exceder quatro anos e se o crime for cometido sem violência e grave ameaça. Além disso, cabe ao juiz avaliar os “antecedentes”, a “conduta social” e a “personalidade do condenado” para, posteriormente, decidir pela conversão da pena. (SOUZA, 2007, p. 340).

A realidade brasileira, mais uma vez, confirma a lógica da má-fé institucional muito

vista nos sistemas convencionais de pena privativa de liberdade. A despeito de toda a

argumentação jurídico-constitucional sob a lógica da APAC o sistema, ainda, apresenta falhas

na verificação de sua efetividade e na democratização a seu acesso, falhas essas que não só

prejudicam os condenados em sua condição subumana nos presídios convencionais, mas

também determinam a contradição interna do próprio sistema, que se diz, segundo o Tribunal

de Justiça de Minas Gerais é “ dedicada à recuperação e à reintegração social dos condenados

a penas privativas de liberdade. (...) Busca também, em uma perspectiva mais ampla, a proteção

da sociedade, a promoção da justiça e o socorro às vítimas.” (VILHENA; PAIVA, 2011, p. 26).

Assim, pode-se perceber, que muito além das falhas e incongruências observadas no

método APAC, o próprio Estado e seu desenho institucional se encarregam de enaltecer os

problemas que por si só iriam de encontro à toda uma história constitucional e por uma luta na

busca de garantias e Direitos Fundamentais.

Nesse sentido, para a construção de um sistema efetivamente equânime, ressocializante

e que respeite as premissas desenvolvidas no Estado de Direito, a justiça no Brasil que, “seria

caracterizada por práticas cotidianas viciadas pela corrupção culturalmente construída e pelo

formalismo processual excessivo que colabora para um clima de permanente ilegalidade

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oriundo de um suposto “espírito fiscalista” do império português” (LIMA Apud SOUZA, p.

334), deveria, muito mais do que importar e adequar sistemas penitenciários ou lógicas penais

de outros países, voltar seus olhos para a sua realidade e aprender a trabalhar com a sua

pluralidade cultural, étnica e social de uma forma geral.

Ainda que alternativas eficazes e estáveis pareçam uma realidade distante e nebulosa,

não podemos nos render aos problemas que se inserem na lógica constitucional-política-social

brasileira. Tanto o sistema carcerário em si, quanto os métodos alternativos, devem rumar, ainda

que a passos curtos, em direção a melhorias institucionais e superação das lógicas

estigmatizadas. Por isso faz-se mister que apontamentos aos problemas de cada uma dessas

alternativas sejam feitos, para que a pretensão por um sistema efetivamente reflexo do sujeito

de Direito aproxime-se cada vez mais da concretização.

Considerações Finais

Não obstante grande parte das iniciativas que se constroem no Direito Penal, o método

APAC apresenta um grande lapso entre o que aparenta construir e o que de fato materializa.

Reafirmando uma lógica institucional de má-fé e um segregacionismo latente da sociedade

brasileira, excluem-se da possibilidade de fazer parte do método, não só grande parte da

população carcerária brasileira, mas também daqueles que não possuem um credo ou cujo credo

se diferencia daquele adotado e extremamente doutrinado na recuperação do detento.

Deve-se, entretanto, evitar cair na mesma lógica puramente discursiva e pouco

preocupada com a realidade. Tendo em vista a situação dos presídios, a população carcerária

em comparação ao número de vagas no sistema prisional e as inúmeras violações à Constituição

e à Direitos Humanos que decorrem dos métodos convencionais de detenção, a defesa da

adoção e disseminação do método APAC parece razoável.

“(...) a República Federativa do Brasil é estruturada em uma Constituição nitidamente garantista e protetiva dos direitos individuais, que refletem os postulados da conformação política de um Estado Democrático de Direito, mas a prática da execução penal no país revela o lado oposto desta opção, porque vilipendia, cotidianamente, as mais elementares garantias do cidadão condenado, fazendo do mesmo um verdadeiro objeto do Estado e não mais um sujeito, que deve ter preservada a sua dignidade mesmo que se encontro custodiado” (GURGEL, 2008, p. 108).

As críticas passíveis de constatação no método APAC, por mais que contundentes,

parecem evidenciar problemas cujas soluções são mais factíveis do que aquelas delimitadas no

método convencional, por se tratarem, substancialmente, de críticas formais ao método

utilizado. As incongruências apresentadas no sistema penitenciário brasileiro, por sua vez,

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trazem à tona uma realidade crítica, insustentável e exponencialmente mais difícil de ser

resolvida por depender não só de adequações teóricas ao método obsoleto, mas de ações práticas

delegadas a uma população pouco sensível, de forma geral, à realidade penal de seu país.

Não se deriva, do estudo apresentado, a conclusão de que o método APAC é inviável,

insustentável ou sem legitimidade. Ao contrário, o que se pretende, aqui, é evidenciar os

problemas na lógica do sistema alternativo e problematizar o maniqueísmo que se estabelece

entre esse e o método convencional, principalmente para que se estabeleçam diretrizes que

democratizem o acesso à justiça e para que se inicie um processo de desconstrução da lógica da

má-fé institucional.

A urgência com que clama o sistema convencional por alternativas viáveis e imediatistas

à situação atual faz com que seja afastada, momentaneamente, a tensão desenvolvida entre o

ser e o dever ser para dar ensejo às soluções empiricamente factíveis, ainda que em certa

discordância com a deontologia do ordenamento jurídico.

De fato, ainda há muito a ser construído no que tange aos métodos alternativos,

democratização do acesso a esses métodos e à justiça no Brasil de uma forma geral. O fenômeno

social é muito mais volátil e plural do que se pode abarcar o sistema jurídico e, nesse sentido,

a maleabilidade do ordenamento e a sensibilização do mesmo às diversas realidades com as

quais se depara são necessárias, não só para que não se perca em infindáveis teorizações, mas

também para que consiga abarcar a prática, para que andem juntos o ser e o dever ser, o fato e

o discurso.

Referências Bibliográficas

BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. BRASIL. Ministério da Justiça. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm>. Acesso em 26 nov. 2015. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. BRASIL. Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984. Brasília, DF. CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. 2.380p.

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O Estado Islâmico (EI, ISIS, ISIL, Daesh, IS) é um Estado? Is The Islamic State (EI, ISIS, ISIL, DAESH, IS) a State?

Bruno Henrique de Moura1

Resumo: O artigo propõe a analisar os movimentos denominados Estado Islâmico (ISIS, ISIL,

DAESH, IS), segundos visões da chamada Teoria Geral do Estado, identificando elementos de sua estrutura de controle e domínio e avaliando se é adequado qualificar essa entidade como Estado, a partir de conceitos elaborados por diversos autores da temática, no que concerne à soberania, território e povo.

Palavras-chave: Estado. Estado Islâmico. Teoria Geral do Estado Abstract: The article aims to analyze the movements called Islamic State (ISIS, ISIL, DAESH, IS),

second visions of the call General State Theory, identifying elements of their control structure and domain and assessing whether it is appropriate to qualify that entity as state, from concepts developed by various authors of the theme, regarding the sovereignty, territory and people.

Key-Word: State. Islamic State. General Theory of State.

1 Bruno Henrique de Moura é Estudante de graduação em Direito na Universidade de Brasília, jornalista e monitor das disciplinas de Introdução ao Direito 1, Ética na Comunicação e Ética e Jornalismo.

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1. Introdução É um desafio analisar uma entidade contemporânea como o Estado Islâmico, pois não se

trata apenas de uma entidade pouco aberta ao olhar exterior, mas também de uma organização que

tem sido amplamente tipificada como um movimento terrorista, o que implica uma avaliação

bastante negativa.

Esta concepção violenta jihad encontrou apoio nas reivindicações de grupos islâmicos que usam o terrorismo como uma ferramenta para impor a sua visão do mundo sobre os muçulmanos e não-muçulmanos, a fim de "restaurar a glória do passado dos muçulmanos em um grande estado islâmico que se estenda a partir de Marrocos até as Filipinas " (Gendron, 2006, p. 3)”, (MELAMED VISBAL, 2016)

Daquilo que se conhece sobre o Estado Islâmico, trata-se de um conjunto de indivíduos

unidos por princípios baseados em mandamentos religiosos, no caso o Alcorão, interpretados no

sentido de que deve ser estabelecida uma ordem política islâmica de caráter universal, visto que

apenas a vinculação do governo à religião muçulmana pode garantir sua legitimidade. Essa tese é

defendida claramente no texto Promise of Allah, que foi distribuído pelo relações públicas do

grupo, Abu Muhammad Al ‘Adnani Al-Shami, e que funciona como panfleto de divulgação para

a comunidade exterior:

Sem essa condição ser cumprida, a autoridade torna-se nada mais do que a realeza, dominância e regra, acompanhada de destruição, corrupção, opressão, submissão, medo e a decadência do ser humano e sua descida para o nível dos animais. Essa é a realidade da sucessão, que Allah nos criou para. Não é simplesmente reinado, submissão, domínio, e regra. Em vez disso, a sucessão é utilizar tudo o que com a finalidade de obrigar o povo a fazer o que a Sharia (lei de Allah) exige deles sobre os seus interesses no futuro e sobre sua vida mundana, que só podem ser alcançados através da realização do comando de Allah, estabelecer Sua religião, e referindo-se a Sua lei para julgamento. (PROMISE OF

ALLAH, 2014, tradução nossa)

O chamado radicalismo religioso pode ser atribuído com todas suas conotações ao Estado

Islâmico. A ISIS vive de um sonho e objetiva criar uma organização centralizada de poder, com

um núcleo de comando forte, possuindo uma série de indivíduos sujeitos a suas orientações e, com

o controle de dado território. A atual construção do ISIS mostra uma espécie de sociedade,

composta por diversos indivíduos que partilham das concepções baseadas na Sharia, e ligam-se

por laços religiosos e de pensamento sócio-político. Podemos indagar a legitimidade de tais ideias

e dos motivos dos recrutados adentrarem-se no sistema do ISIS, contudo, como atesta Darcy

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Azambuja, baseado nas ideias de Karl Jaspers, sociedade constrói-se pela semelhança de

indivíduos na procura de um mote comum “[...] pode-se dizer que uma sociedade é a união moral

de seres racionais e livres, organizados de maneira estável e eficaz para realizar um fim comum e

conhecido de todos (Cf Jolivet, - Traité de Philosophie, I, pag. 283)”. (AZAMBUJA, 2008, p. 2).

Das notícias que chegam pela mídia internacional, o Estado Islâmico já possui controle de um

território, áreas consideráveis do país Iraque e do País Síria; uma população que lhe é submetida,

inclusive pagando impostos; e um poder de mando centralizado.2

2. O Estado Islâmico em Análise.

Ao pegar alguns desses pontos já considerados e ditos sobre o Estado Islâmico para tentar-

se considerá-lo como um Estado, no que tange as teorias que definem o Estado e sua estrutura.

Dentro da teoria clássica e de uso, naquilo que tange ao Estado, e que se pode encontrar

dita por Paulo Nader no cap. 13 de sua obra Introdução ao Direito, o Estado possui três elementos

para sua existência: “É a definição do Estado que nos indica seus três componentes essenciais:

população, território, soberania. Os dois primeiros formam o elemento material e o último, o de

natureza formal.” (NADER, 2014). Necessita, portanto, de um povo, de um governo ou soberano,

e de uma circunscrição territorial na qual houvesse controle daquele considerável território. O povo

compreende-se como uma junção de indivíduos que vivem na circunscrição territorial do possível

Estado, diferenciando-a de nação. Como salientado por Sahid Maluf, em sua obra Teoria Geral do

Estado, Nação e Estado são entes distintos, que não podem ser confundidos. Para o jurista

brasileiro, a Nação se encarna como realidade sociológica, em contraposição à realidade jurídica

do Estado. “O conceito de Nação é essencialmente de ordem subjetiva, enquanto o conceito de

Estado é necessariamente objetivo” (MALUF, 2007, p. 15). Desta forma, parte-se de noção,

voltando a Nader e sua trilogia essencial para o Estado, em que nação e sua carga de conceitos e

significados não fará parte primordial de nossa análise. Em face desses critérios, o Estado Islâmico

aparentemente pode ser considerado Estado, pois existe um território militarmente controlado pelo

grupo, um povo submetido e uma forma de controle administrativo e político que leva a um

governo:

Hoje o EI governa cidades, possui fontes geradoras de recursos financeiros próprios, uma burocracia e forças irregulares numerosas, parte delas formada por estrangeiros, além de contar com uma estratégia de divulgação universal de seus atos, tais como a decapitação

2 BBC BRASIL. Rebeldes declaram Estado Islâmico no Iraque e Síria. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/06/140630_isis_declara_estado_islamico_an. Acesso em: 12 de março de 2016.

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de jornalistas e reféns estrangeiros, além de punições bárbaras àqueles que transgridam a lei islâmica. (DAMIN, 2015, p.26)

Pode-se, aqui, indagar a validade do chamado governo do Estado Islâmico. Partindo de

concepções nas quais soberania só se relaciona, e aqui se usa soberania como autogoverno e

princípios de escolhas daquilo que dirige, a uma ideia de escolha fundada em princípios

democráticos, o Estado Islâmico não é Estado. Se, da mesma forma, ver Dworkin e sua relação de

constituição, direito, constitucionalismo, implantando umbilicalmente na concepção de Estado de

Direito e constituição, o Estado Islâmico, que a priori não possui uma constituição nem uma forma

democrática de governo, não é Estado. Saindo-se da ideia de que não há Estado sem constituição,

pois ela é premissa básica dos Estados Modernos, democráticos, contemporâneos, o Estado

Islâmico, não é Estado. Essa contudo, é uma perspectiva bastante restrita, pois também

desqualificaria como Estado a Arábia Saudita e o Catar, que são monarquias absolutas, além de

indicar que os Estados tiveram início com a promulgação da constituição dos EUA, em 1786.

No direito internacional, o critério típico de qualificação como Estado é o reconhecimento

dos outros Estados. Nesse caso, o ISIS não será Estado. Contudo, algumas outras formas de pensar

e caracterizar um Estado, podem abarcar concepções que “validem” o EI ser Estado.

Kelsen, por exemplo, crê que o Estado é um ponto comum e ligado umbilicalmente ao

Direito, sendo a ordem jurídica, considerada de forma interna no tratar dos negócios “intra-

sistema” de Estado, o ponto que valida e permeia a teoria e existência dos Estados. Kelsen também

acredita que controle geral, interesse geral, não são pontos que legitimem a ideia de soberania, e

aqui liga-se soberania como princípio e primórdio da validade do Estado como sua existência,

assim como um interesse da sua comunidade.

O Estado como comunidade jurídica não é algo separado de sua ordem jurídica, não mais que a corporação é distinta de sua ordem constitutiva. Uma quantidade de indivíduos forma uma comunidade apenas porque uma ordem normativa regulamenta sua conduta recíproca. A comunidade – como assinalado em capítulo anterior – consiste tão-somente numa ordem normativa que regulamenta a conduta recíproca dos indivíduos. O termo “comunidade” designa o fato de que a conduta reciproca dos indivíduos. O termo “comunidade” designa o fato de que a conduta reciproca de certos indivíduos é regulamentada por uma ordem normativa. A afirmação de que os indivíduos são membros de uma comunidade é uma expressão metafórica, uma descrição figurada de relações específicas entre os indivíduos, relações constituídas por uma ordem normativa. (KELSEN, Hans, 2000, p. 263)

Kelsen não crê no Estado como objeto jurídico, nem como relação jurídica, da mesma

maneira que Jellinek, mas discorda desse quando o último crê no Estado como personalidade

jurídica, naquilo que o faz e o categoriza como fundamento de sua existência. Kelsen vê o Estado

e o direito como ordem jurídica, como poder e como instrumento.

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Como não temos nenhum motivo para supor que existam duas ordens normativas

diferentes, a ordem do Estado e sua ordem jurídica, devemos admitir que a comunidade

a que chamamos de “Estado” é a “sua” ordem jurídica. O direito francês pode ser

distinguido do Direito suíço ou do mexicano sem a necessidade de recorrer à hipótese de

que um Estado francês, suíço ou mexicano existam como realidades sociais de modo

independente. O Estado como comunidade em sua relação com o Direito não é uma

realidade natural, ou uma realidade social análoga a uma natural, tal como o homem é em

relação ao Direito. Se existe uma realidade social relacionada ao fenômeno que

chamamos de “Estado” e, portanto, um conceito sociológico distinto do conceito jurídico

de Estado, então a prioridade pertence a este, não àquele. (KELSEN, Hans, 2000, p. 263

e 264).

Utiliza-se este termo que por ele não foi cunhado, de validade, que controlará os fatos e

guiará o Estado e aqueles que lhe são submissos, pelo Estado ser soberano.

Soberania é outra palavra que rodeou e permeou todo o texto e continuará sendo

importante. Pacifico, no geral, é a ideia de que o Estado para ser Estado, precisa ser soberano.

Soberania é uma concepção que se liga, desde Tito Livo, Paolo Grossi e Jean Bodin, fazendo aqui

um paralelo e um giro, a força e ao controle e a possibilidade e factividade de se controlar,

comandar e ter direito sobre a vida e a morte de um indivíduo. Ao se ler Bodin e Tito Livo, na

Roma antiga, o Império Romano, o pai, chefe de família, comandava a instituição patriarcal e sua

família, que eram os pilares e núcleos da base de sua conjectura social, de tal maneira que tinham

o poder de decidir sobre a vida e a morte de seus filhos e filhas, além de mando e desmando sob

suas esposas.

Quando ele chega a considerar a estrutura essencial do Estado, ele segue Aristóteles ao considerar que o grupo familiar, e não o indivíduo, é a unidade da qual a comunidade é composta [I, ii]. Ele concordou que a família é uma sociedade natural realizada em conjunto pela autoridade do marido sobre a esposa, o pai sobre seus filhos e do senhor sobre os seus servos, todos compartilhando um meio comum de subsistência. Mas o que ele enfatizou foi a sua moral e política ao invés de seu significado económico, queixando-se que Aristóteles negligenciou este aspecto. Ele discutiu o assunto do ponto de vista do pai, e o pai no seu papel de governante, em vez de no seu papel de organizador da vida em comum.. (BODIN, 1955, p. 17)

E a função das famílias, e dos pais de família como cidadãos, criaria a cidade, que era um

elemento de ligação com os Estados da época.

3. O ISIS Possui a centralização típica do Estado?

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Platão, quando fala na República do que é a cidade, mostra conceito parecido na Grécia

antiga. O importante daquela comunidade era a valorização do todo, da comunidade e da divisões

de tarefas que, para o autor, faziam o todo funcionar, com as três classes: artesãos, soldados e

guardiões, conectadas para a busca do bem final da comunidade. A função de comando viria das

classes sábias, dos reis-filósofos, que teriam a sabedoria de comandar a comunidade. “Os pais”

da Roma, eram os “filósofos” de Platão.3

Como em Roma, e o papel central da figura patriarcal nos negócios da comunidade, e o

papel patriarcal também visto com enorme importância na Grécia Clássica, no sistema islã

tradicional, há um papel de comando central que a séculos é disputado. Quem sucede na liderança

da comunidade o profeta Maomé. Os sunitas e xiitas se separaram exatamente pela problemática

da sucessão no comando da comunidade do profeta Maomé e, sucessivamente, no líder

espiritual/político de seu sistema de comando.

Os ramos sunitas e xiitas do Islã se separaram logo após a morte de Muhammad sobre a questão de quem deve suceder o Profeta do Islã como líder dos muçulmanos, ou legatário. Sunitas acreditam que o califa pode ser escolhido pelas autoridades muçulmanas. Os xiitas acreditam que o califa deve ser um descendente direto do profeta através de seu filho-de-lei e primo Ali. (BERGER & STERN, 2015)

O ISIS procurar a implementação de um califado, centralizando o poder político e de

comando das ações dentro do território que possuírem controle. A criação do califado, que terá

uso legítimo da força (Gewaltmonopol des Staates), comandará a vida dos cidadãos mulçumanos

ou não, é a base da ideologia do grupo, como visto em outra passagem do texto Promise of Alah:

Imam al-Qurtubi disse em seu Tafsir (exegese corânica), "Este verso é uma base fundamental para a nomeação de um líder e Khalifah (califa), que é ouvida e obedecida de modo que a ummah é unida por ele e suas ordens são executadas Fora. Não há disputa sobre este assunto entre a ummah nem entre os estudiosos, exceto para o que tem sido relatada a partir de al-Asamm [o significado de seu nome é "o homem surdo"], por sua surdez impediu de ouvir a Sharia ". que termina as suas palavras, que Allah tenha misericórdia dele. (PROMISE OF ALLAH, 2014,tradução nossa)

Falando de Soberania, pode-se utilizar elementos conceituais sobre a mesma que venham

de Roma. O controle de vida e morte, mesmo sabendo que Foucault, em seu História da

Sexualidade, Cap. V, acredita na já não mais utilização deste princípio de soberano controlar a

morte de seus comandados, sendo o suicídio crime, já que a decisão sobre a morte do indivíduo

não pertencia ao indivíduo e sim ao seu soberano.

3 Para aprofundar nesse debate Platônico, recomenda-se a leitura da Apologia de Sócrates / Platão.

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Por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte. Sem dúvida, ele derivava formalmente da velha patria potestas que concedia ao pai de família romana o direito de “dispor” da vida de seus filhos e de seus escravos; podia retirar-lhes a vida, já que a tinha “dado”. O direito de vida e morte, como é formulado nos teóricos clássicos, é uma fórmula bem atenuada desse poder. Entre soberano e súditos, já não se admite que seja exercido em termos absolutos e de modo incondicional, mas apenas nos casos em que o soberano se encontre exposto em sua própria existência: uma espécie de direito de réplica. Acaso é ameaçado por inimigos externos que querem derrubá-lo ou contestar seus direitos? Pode, então, legitimamente, entrar em guerra e pedir seus súditos que tomem parte na defesa do Estado; sem “se propor diretamente à sua morte” é-lhe licito “expor-lhes a vida”: nesse sentido, exerce sobre eles um direito “indireto” de vida e morte. (FOUCAULT, 1988, p. 127)

No caso romano, seu pai. Foucault fala sobre a Bio-Política, acreditando que a soberania e

o poder do soberano, que pode-se e deve-se, neste contexto, considerar o Estado, já saiu desse

paradigma de controle sobre a vida e a morte e passa a se valer de instrumentos de ordem, e a

morte e passa a se valer de instrumentos de ordem, de poder, tanto pelo núcleo duro do Estado

como por instituições que a integram, tais como: médicos, escolas, a família, religião e etc.

Foucault disserta acerca de uma soberania “evoluída”, que não tem mais a força como principal

elemento de sua existência, a força no que tange ao matar aquele que o desagrada. Porém, usa de

outros artifícios para submeter e manter suas decisões tanto com validade quanto com eficácia, no

sentido por Kelsen atribuído a esses dois termos, para sustentar seu poder de soberania.

Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antiéticas e constituem, ao contrário, dois polões de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder da vida. (FOUCAULT, 1988, p. 131)

Aqui pode-se ver o que é soberania. Transmitindo a ideia de soberania para o atual estágio

do Estado Islâmico, vê-se que as concepções antigas, Romanas, vistas em Bodin e Tito Livo, e

antes da bio-política de Foucault, existem dentro do espectro do Estado Islâmico. Há uma decisão

sobre o viver e o morrer daqueles que estão no território do EI, pelos seus governantes. Caso dois

homens que vivam em uma região iraquiana controlada pelo EI sejam flagrados em relação sexual

um com o outro, o Estado os irá encaminhar até um prédio e de lá os jogará, terminando com a

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vida dos indivíduos4. Quem não paga os impostos cobrados pelo ISI podem sofrer sanções que

chegam até a eliminação de suas existências.5 Ou seja, há um controle claro e um poder direto

sobre a vida e a morte daqueles que integram o território controlado pelo EI, que vale-se da

soberania imposta.

Portanto, há uma soberania, ainda obscura, no sentido que a relaciona com uma soberania

popular, do Estado Islâmico.

O Alcorão é o direito, básico, a “norma fundamental”, o ponto de partida das decisões

judiciais do Estado Islâmico que possui um governo que valesse do direito que usa, para decidir

sobre seus atos, suas obrigações e seus benefícios, além das obrigações e dos direitos daqueles que

estão sobre seu julgo.

Soberania e Direito, além de um governo que possui força e eficácia nos seus atos, estão

claros nos elementos que o EI possui e o fazem ser um Estado.

Da tríplice básica, faltava apenas o território que, mesmo não sendo reconhecido por outros

Estados como pertencente ao Isis e seus companheiros, está sobre o controle militar,

governamental e soberano, no momento, dessa entidade, que, por sinal, usa dos recursos hídricos,

do subsolo e aéreos da circunscrição territorial quem controlam. Há território do ISIS no momento.

Contudo, apesar dos esforços internacionais para o conter, combater e deslegitimar, o IS não só continua a controlar um vasto território e milhões de pessoas como lançou inclusivamente novas ofensivas em frentes-chave. No Iraque, em Maio de 2015, o IS apoderou-se de Ramadi, capital da província de Anbar, avançou para a refinaria petrolífera de Baiji, a maior do país, e atacou a cidade próxima de Khalidya, reaproximando-se de Bagdade. Na Síria, e no mesmo mês, o IS atacou Deir ez-Zor junto ao rio Eufrates, no leste do país, passou a controlar a cidade de Tadmor e as ruínas da antiga cidade romana de Palmira, “Património da Humanidade”, na Síria central, e desencadeou operações ofensivas também no Norte, nas proximidades de Aleppo, perto da fronteira com a Turquia; no Oeste, nas províncias de Homs e Hama e junto à fronteira com o Líbano; e no Sudoeste, visando a cidade de Quneitra, próximo da fronteira com Israel. ( TOMÉ, 2015, p. 137 e 138)

4. Justiça Social, Estado e ISIS

Pensando o Estado como entidade que busca a concretização da Justiça, ou que tem

como um de seus fins a promoção da justiça dentro de seu povo, podemos partir das ideias de

Nancy Fraser sobre a justiça social, nas quais a autora tem como enfoque os elementos

4 UOL. Estado Islâmico joga cinco gays de alto de edifício no Iraque. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2015/10/09/ei-joga-5-gays-de-alto-de-edificio-no-iraque.htm acessado em: 13 de março de 2016. 5 AZEVEDO, Reinaldo. Decapitações, crucificações, execuções sumárias: o horror imposto pelos jihadistas no Iraque e na Síria. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/decapitacoes-crucificacoes-execucoes-sumarias-o-horror-imposto-pelos-jihadistas-no-iraque-e-na-siria/. Acessado em: 13 de março de 2016.

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necessários para a promoção da justiça dentro do Estado, mas não apenas num enfoque local, e

sim em um âmbito globalizado.

A autora parte de três problemas que identifica: substituição, reificação e

enquadramento desajustado. No que tange a substituição, que para a autora caracteriza-se pela

ameaça das disparidades capitalistas que aumentam a desigualdade econômica, a mesma propõe

uma concepção de justiça bidimensional, caracterizada pela distribuição justa dos recursos e

um reconhecimento recíproco dos indivíduos, ambas de forma globalizada. O problema da

reificação dar-se-á pelas diferenças culturais entre diversos povos, que trazem conflitos e

disputas dentro do mundo globalizado, que basicamente hidribiza as diferenças culturais, invés

de tentar abarca-las. A autora quer promover, como ela mesmo fala, “Necessitamos de uma

concepção não-identitária que desencoraje a reificação e promova a interação entre as

diferenças, o que significa rejeitar as definições habituais de reconhecimento.” (FRASER,

2002, p. 14). Por último, o enquadramento desajustado seriam tentativas de pautar no campo

nacional questões que são de matriz transnacional, o que prejudicaria o debate e a efetivação de

uma verdadeira solução globalizada. Para tal problema a autora recomenda “O que precisamos é

de uma concepção múltipla que descentre o enquadramento nacional, pois só tal concepção permite

acomodar toda a extensão de processos sociais que criam disparidades de participação na

globalização.” É interessante notar na teoria de Nancy, que fala sobre soberania e prega uma visão

mais globalizada das questões, numa tentativa de acoplar diferentes e distintas concepções

idiomáticas, culturais, raciais e ideológicas num projeto de grande “conversa”, pontos que abarcam e

destoam de noções caras ao assunto ISIS.

O ISIS busca uma distribuição dos recursos que estão abarcados no território sobre o

seu domínio entre os seus elementos, o que seria uma espécie de substituição, assim como prega

um reconhecimento dos indivíduos, todos como soldados do califado e da causa. Os conflitos

reiferantes podem ter duas visões. O ISIS não recusa combatentes, desde que se adequem ao

seu estilo de atuação e as crenças da Sharia. Contudo, trabalha por eliminar aqueles que não

obedecem os princípios da Sharia. Já o último ponto também nos mostra preceitos dúbios. O

pautar questões que deveriam ser globais no campo nacional se encontra prejudicado no ISIS,

já que o projeto do mesmo é uma expansão por todo o Oriente e partir para o Ocidente, inclusive

atuando de forma cibernética para coletar simpatizantes que venham a trabalhar para seus

quadros. Contudo, a tentativa de aglutinar discursos diversos dos seus não é uma das

ferramentas de trabalho do ISIS, o que não completa as soluções tragam por Nancy e seu

discurso do que seria uma concepção de Justiça Social adequada para os Estados e

comunidades, e para a soberania de múltiplos níveis, a que propõe.

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5. Soberania Popular a serviço do Povo

Dentre os autores que pensam a atual forma estatal destaca-se, também, o economista e

filósofo Samir Amin, que possui um vasto trabalho acadêmico de análise do imperialismo, desde

as quatro etapas de crise do capitalismo6 até os estágios da crise da União Europeia. Entre as

noções mais caras ao autor, podemos encontrar a de Soberania. Crente na importância de uma

libertação do que chama de ortoliberalismo, para que o progresso das nações se dá com suas

próprias pernas e que haja a construção de um sistema industrial forte, controlado pelo Estado,

este dedicado ao povo e pelo povo, não aos interesses do capital internacional, e aos imperialismo

de mercado das nações fortes, Samir trabalha com a ideia de soberania popular a serviço do povo.

A soberania nacional é o instrumento indispensável de progresso social e progresso da democratização, tanto ao Norte como ao Sul do planeta. Esses avanços são controlados por lógicas que se situam além do capitalismo, numa perspectiva favorável para a emergência de um mundo policêntrico e da consolidação do internacionalismo dos povos. (AMIN, 2016).

A soberania na perspectiva de Amin se relaciona a esses pressupostos. Progresso social e

progresso da democratização, buscando o bem social como meta, não apenas local, mas da

comunidade como um todo, contudo, deve-se partir de um campo local para expandi-la ao global.

O Estado Islâmico, ao que nos parece, procura um progresso social e uma expansão de suas ideias,

que no olhar do ISIS, é um progresso social. Mas a democracia e o entender os desejos dos outros,

numa perspectiva de conversa e convencimento não fazem parte do ISIS, com já foi demonstrado

neste trabalho. A democracia para o ISIS para no que está escrito na Sharia, sendo os preceitos e

as interpretações dos significados que lá são descritos, a linha final do debate democrático. Assim,

também numa perspectiva Amirniana de Soberania, mesmo que de forma rasa, ISIS não possui o

preceito de soberania típica de um Estado, ou ao menos do tipo de Estado que Amir defende que

exista.

6. Os Estados Democráticos de Direito e o Constitucionalismo

Carlos Ari Sundfeld na sua obra Fundamentos de Direito Público, define o Estado

democrático de Direito como “Em termos sintéticos, o Estado Democrático de Direito é a soma e

6 Trabalhados tanto em: AMIN, Samir. Accumulation on a word scale: A critique of the Theory of Underdevelopment, 1974; quanto em A crise do Imperialismo, 1977; ambas obras em que Amir faz uma profunda análise do que considera problemas do sistema capitalista, que se dedicaria ao benefício de um grupo seleto de empresas do grande capital, fazendo assim um novo imperialismo, uma espécie de neocolonialismo baseado, principalmente, na economia.

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o entrelaçamento de: constitucionalismo, república, participação popular direta, separação de

Poderes, legalidade e direitos (individuais e políticos).” (SUNDFELD, 2009). A ideia de

constitucionalismo traga por Sundfeld se ligará ao costumeiramente definido sentido estrito do

Constitucionalismo, que conecta-se as garantias fundamentais, direitos exercíveis pelos cidadãos

sem que o Estado oprima-os com o uso da força e do arbítrio.

Dificultado é abalizar, dentro deste princípio, todos os estados atualmente reconhecidos

pela ONU e pela maioria esmagadora de seus pares. Participação popular direta, por exemplo, não

poderia ser dada aos EUA. A eleição presidencial, principal núcleo de poder e prerrogativas de

comando em um sistema presidencialista como o norte-americano, e que possui diversas

semelhanças ao Brasileiro, é realizada a partir de votação do Colégio Eleitoral, que é um meio

indireto de escolha.7

A ideia de democracia, nos estados reconhecidos pela ONU e pela maioria dos seus pares,

não é uníssona. A República Popular da China, O Reino Unido, A África do Sul e o Brasil possuem

ideias de democracia, contidas nas suas constituições, ou leis equivalentes neste escopo, distintas

entre sí, ainda mais no que concerne a forma de manifestação das mesmas. Enquanto a China

possui um partido único, o Brasil contém 35 siglas devidamente registradas no TSE.8 Direitos

individuais e políticos são classificados diversamente em cada nação. Enquanto uns aplicam certas

prerrogativas como políticos, outros países não o fazem, da mesma forma com os direitos

individuais, coletivos, privados e públicos. Não há uma escrita universal destes direitos respeitada

por todos os Estados claramente reconhecidos.

7. É ou não um Estado?

“Em ambos os critérios da Convenção de Montevideo e os critérios mais restritivos do

direito consuetudinário internacional recente, o Estado da Palestina existe - agora. A sua existência

não requer o consentimento de Israel ou de reconhecimento americano. É uma realidade que já

não deve ser ignorada.” (WHITBECK, 2011, p. 66) Esta citação encontra-se na obra “The State of

Palestine Exists” do advogado parisiense John V. Whitbeck, que retrata uma compreensão feita

por pelo menos 112 estados, diversos governos sul americanos e centenas de juristas. Porém, o

Estado da Palestina não contém força o suficiente para entrar como Estado reconhecido pela ONU.

Em demonstração de reconhecimento e força, a Autoridade Palestina conseguiu o estatuto de

8 TSE. Partidos políticos registrados no TSE. Disponível em: http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/registrados-no-tse. Acessado em: 30/04/2016.

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Estado-observador não membro das Nações Unidas.9 Mas, podemos encontrar diversos paralelos

entre o ISIS e a Autoridade Palestina. Ambos possuem ligação com o Islamismo, sendo que a

leitura do primeiro se encontra mais radical que a do segundo, mas mesmo assim, ambos

influenciadas fortemente pela Sharia. Durante um longo período de tempo, um grupo denominado

terrorista, o Hamas, foi o representante da Palestina e possuía o controle político daquela terra.

Atualmente o ISIS possui como chefes terroristas, segundo a definição internacional das nações

centrais. Há uma espécie de função jurisdicional em ambos, tanto na Autoridade Palestina, quanto

no ISIS. Ambos ocupariam territórios de outras nações. Cisjordânia no caso Palestino, em alguns

momentos terras hoje ocupadas por Israel, e parcelas do Iraque, Síria pelo ISIS. Mas a primeira

ocupa faixas da Cisjordânia com consentimento do reconhecido Estado, o que não ocorre com o

ISIS. Contudo, a principal diferença entre o Estado Islâmico e a Palestina se encontra na

proximidade do reconhecimento dos pares para sua efetivação como Estado. Enquanto o ISIS não

possui reconhecimento diplomático de nenhuma nação ou Estado Internacional, a Palestina é

reconhecida pela maioria esmagadora das nações e dos Estados.

É importante entender, ao falar de Estado Islâmico, o que seria o Califado, que tanto

procuram. Califado significa em árabe, “sucessão”. Após a morte de Maomé em 632 foi criado o

califado, que objetivava suceder o profeta ad eternum. Desde os primórdios da ideia de califado

há uma disputa entre os que creem que o chamado quarto califa, Ali, possuía legitimidade para

governar, denominados xiitas, e os partidários do vencedor da guerra entre Ali e o governador da

Síria, Moavia, os sunitas. Com o comando de Moavia criou-se o chamado período omíada. O norte

da África, a península ibérica e parte da Europa foram conquistadas durante a dinastia omíada. Em

750 chegou ao fim o perído omíada e iniciou-se o califado abássida, que expandiu-se para o

Oriente. O império Otomano foi o último movimento, dentre vários, que tentou autonomear-se

califado com algum sucesso.

Mas o importante da ideia de califado é a sua função. O califa, sucessor da autoridade

política e religiosa do profeta Maomé, teria a incumbência de comandar a expansão do islamismo

e a manutenção das leis da Sharia e das normas do livro sagrado de Maomé.

Seriam estes velhos reinos, como o califado, Estados? Voltemos a Paulo Nader e seus

ensinamentos sobre o Estado. Território, governo e Povo sobre seu comando caracterizariam um

Estado. Os califados possuíam extensões consideráveis de terra, popularmente habitadas, com seus

habitantes submissos as ordens dos califas pela força e pelo respeito. A manutenção do poder dos

9 UNRIC. Assembleia Geral da ONU votou de forma esmagadora para conceder à Palestina Estatuto de Estado observador “não-membro”. Disponível em: http://www.unric.org/pt/actualidade/30987-assembleia-geral-da-onu-votou-de-forma-esmagadora-para-conceder-a-palestina-estatuto-de-estado-observador-nao-membro- , Acessado em: 29/04/2016

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califas se dava pelo papel que representavam. O califa era a “boca da lei” para os mulçumanos

sunitas. A Sharia, nascida dos ensinamentos de Maomé, era a “constituição” dos seguidores do

califado. O Estado impõe suas decisões que são acatadas pelos que dele fazem parte. A ordem

social emana do Estado e no califado do seu governo, do seu califa. Um povo é orientado por ele,

o califa, que tem todo controle dos recursos de um dado território, sejam os naturais ou artificiais.

Enfim, os elementos básicos da teoria do Estado mais pacificada são elementos que o

chamado Estado Islâmico possui. Pode-se indagar se é um Estado Constitucional, o que aparenta

não ser. Democrático, popular, que assim como Estado Constitucional, não aparentar ser, ou um

Estado Moderno de Direito. Porém, a pergunta não é se é um Estado como os europeus ou o

americano. Desta maneira, quem sabe se vê surgir uma espécie de Estado Medieval/Renascentista

como os antigos reinos do medievo, os califados cristãos, que, numa situação distinta daquele que

se veio da última experiência de califado, com os Otamanos, até os dias atuais. O modelo de

califado parece não se adaptar bem ao que se convenciona chamar de Estado e ver com bons olhos

o que seja um Estado. Mas, mesmo que sui generis, o princípio de califado do ISIS, continua

sendo um Estado. O que dificulta este jogo é entender que hoje, mais importante do que definir os

termos de se ser ou não um Estado, ter ou não os elementos da tríplice coroa, Território, Povo e

Soberania, a questão de ser um Estado se encaixa muito mais num jogo político. A justiça Social

e a soberania nacional a serviço do povo atrapalham o Estado Islâmico ser um Estado, mas ao se

comparar com outros atores que são reconhecidos no jogo político e não preenchem os requisitos

tragam, só mostram que estas definições não estão dentro da escolhida disputa teórica dos entes

internacionais que definem, na práxis, o que é ser um Estado ou não.

Os elementos que fazem o ISIS ser um Estado na leitura feita, são os mesmos que fazem

ele não ser um Estado no jogo das disputas de poder internacionais. A única diferença é a visão

que se faz. Povo sobre controle existe, mas esse controle não é reconhecido politicamente pelos

outros Estados. Território sobre julgo existe, mas não é reconhecido politicamente pelos atores

internacionais. Soberania na práxis existe, mas não tem o reconhecimento que lhe faz ter a paz de

controle e governo que necessita para encaminhar as decisões em seu campo de atuação. A

percepção de que o critério de ser Estado ou não perpassa muito mais por uma posição política de

reconhecimento de pares, que incluirão na rede de relações sustentada pela igualdade jurídica,

como ator político relevante, se torna mais característica de um jogo que, mesmo vendo um dos

peões do tabuleiro conter os pressupostos formais para que seja aceito dentro do tabuleiro, decidem

não colocá-lo para jogo.

8. Referências Bibliográficas:

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 287-302, mai/ago, 2016.

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SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos

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Estudo da aplicação simétrica dos institutos da Hipótese de Incidência e do Fato Gerador no ordenamento jurídico brasileiro

Study of symmetrical application of institutes Incidence Hypothesis and Fact Generator in Brazilian law

Igor Dias da Silva 1 Valber Elias Silva 2

Resumo: O presente estudo, de natureza qualitativa e abordagem descritiva, se dirige à aplicação

da hipótese de incidência tributária e do fato gerador in concreto no ordenamento jurídico brasileiro. A tensão existente entre esses dois institutos jurídicos torna-se objeto de divergências doutrinárias acerca de sua aplicação simétrica no caso concreto. Foram utilizados, a título de coleta de dados, livros de autores renomados na seara tributária, além de jurisprudências que retratam a fenomenologia da diferenciação da hipótese de incidência com o fato gerador da obrigação tributária. Assim, a implementação simétrica dos dois institutos (fato gerador e hipótese de incidência) na órbita prática-jurídica, em termos de justiça tributária, pode acarretar em desigualdades pelo fato de considerar elementos que se estendem para além da presunção legal e, portanto, tendem a abalar a segurança jurídica. No entanto, a adoção de atos emanados pelo sujeito ativo da obrigação (Fisco), por meio do Princípio da Praticabilidade Tributária, vem a promover uma adequação desproporcional do fato gerador in concreto, implicando transfiguração da incidência do tributo prevista no dispositivo legal.

Palavras-chave: Hipótese de Incidência Tributária. Fato Gerador do tributo. Obrigação Tributária. Praticabilidade Tributária. Desigualdades.

Abstract:

This study, qualitative and descriptive approach, addresses the application of the tax incidence of the event and the taxable event in concrete in the Brazilian legal system. The tension between these two legal institutions becomes the object of doctrinal disagreements about its symmetrical application in this case. They were used, in the form of data collection, renowned author of books on tax harvest, and jurisprudence that depict the phenomenology of differentiation incidence hypothesis with the taxable event of the tax liability. Thus, the symmetrical implementation of the two institutes (taxable event and the event of incidence) in practice and legal orbit in terms of tax justice, may result in inequalities because consider elements that extend beyond the legal presumption and therefore tend to undermine legal certainty. However, the adoption of acts originating from the active subject of the obligation (IRS), through the Principle of Tax Practicality comes to promoting a disproportionate adequacy of the triggering event in concrete, implying transfiguration of the incidence of the tax provided for in the legal provision.

Keywords: Tax Effect Hypothesis. Fact tribute generator. Tax obligation. Tax practicability. Inequalities

1 Aluno de graduação em Direito pela Universidade Federal de Lavras – UFLA. 2 Aluno de graduação em Direito pela Universidade Federal de Lavras – UFLA.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 303-320, mai/ago, 2016.

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1. Introdução

O Direito Alemão possui grande relevância nos ordenamentos jurídicos

contemporâneos. Naquilo que tange à aplicação do instituto da hipótese de incidência e do fato

gerador da obrigação tributária, a Suprema Corte Alemã defende uma separação na aplicação

dos institutos mencionados, na medida em que se torna desproporcional um tratamento

simétrico dos institutos no caso concreto.

Por sua vez, o ordenamento jurídico brasileiro não dá primazia a essa diferenciação, por

tratar a hipótese abstrata prevista na lei como uma situação em concreto a ser alcançada pelo

fato gerador. O presente estudo tem por objetivo identificar as ambiguidades existentes no

ordenamento jurídico brasileiro e como a aplicação simétrica dos institutos da hipótese de

incidência tributária e do fato gerador da obrigação tributária podem alcançar resultados,

podendo até mesmo, no caso concreto, desestabilizar a segurança jurídica.

Na aplicação fática desses institutos, a Administração Tributária tem a legitimidade de

instaurar obrigações tributárias por meio do fato gerador in concreto sem observar os critérios

subjetivos da igualdade? A desobediência da norma in abstrato pode gerar desigualdades na

medida em que o Fisco se utiliza da praticabilidade tributária para tributar atos ilícitos? Mesmo

sustentados os atos pelo Princípio da Legalidade, pode a Administração Tributária estabelecer

critérios complexivos, tendo em vista a especificidade da hipótese de incidência?

A construção doutrinária torna-se uma das formas mais abrangentes para a definição e

construção semântica dos institutos objetos deste estudo, na qual permite-se a formação de

novos posicionamentos em decorrência das consequências advindas do plano material de

incidência.

O estudo estrutura-se em oito seções:

Esta primeira seção é destinada à introdução, em que são discutidos alguns aspectos

fundamentais sobre a aplicação simétrica dos dois institutos, isto é, da Hipótese de Incidência

e do Fato Gerador.

A segunda seção retrata a definição jurídica do gênero tributo, em que os elementos

estruturantes na definição presente no Código Tributário Nacional (CTN) são explorados.

A terceira seção aborda a existência da relação obrigacional tributária no ordenamento

jurídico brasileiro, em alusão à definição existente no Direito Privado.

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SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos

Alethes | 305

A quarta seção, por sua vez, contempla a conceituação legal da hipótese de incidência

tributária.

Como forma de interpretação analítica, a quinta seção destina-se à compreensão jurídica

do Fato Gerador, em que a aplicação no mundo concreto é permeada de complexidades.

A sexta seção apresenta as consequências da diferenciação entre Hipótese de Incidência

e Fato Gerador.

A sétima seção é reservada às considerações finais.

A oitava seção – e última – é destinada às referências bibliográficas.

2. Definição jurídica do gênero tributo

O processo de formação histórica das nações, numa perspectiva de crescimento

populacional, perpassou por várias etapas, fomentando um desenvolvimento econômico e

social mais adequado à consolidação do Estado Moderno. A prestação de serviços por parte dos

entes públicos fundamenta-se numa necessidade financeira cada vez mais ampla, tendo em vista

a tutela dos direitos humanos, efetivados por políticas públicas emanadas do Poder Executivo.

Nesse cenário, a mudança nos mecanismos de trocas entre indivíduos ganhou uma

formatação cambial, em que o fator monetário surge para uniformizar e quantificar tanto as

despesas particulares dos indivíduos quanto a parcela do patrimônio transferido dos

contribuintes para o Estado, na busca por promover a subsistência da oferta de serviços públicos

aos contribuintes.

A divergência jurídica e doutrinária acerca do conceito de tributo se mostra presente

como forma de crítica ao legislador, em que o tributo é definido, segundo o artigo 3° do Código

Tributário Nacional, em que: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou

cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e

cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

O processo interpretativo do dispositivo supracitado, numa vertente positiva, tende o

legislador a enquadrar em um encadeamento de características aquilo que efetivamente

corresponde ao termo tributo, todavia, uma análise mais detalhada permite uma compreensão

semântica mais racional, na qual a fragmentação de seu conceito possibilita uma valoração do

gênero tributo, sendo os elementos: prestação pecuniária, compulsoriedade, instituição em lei,

cobrada mediante moeda ou em cujo valor nela possa se exprimir, sanção por ilicitude e

vinculação do lançamento, essenciais para o seu entendimento.

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a) Prestação pecuniária: A prestação, como instituto jurídico pertencente ao Direito das

Obrigações, pressupõe o ato de prestar algo. A pecúnia se dá pelo valor monetário que

representa determinado objeto, seja este material ou imaterial, mas que indexa o valor

financeiro em sua estrutura.

b) Compulsoriedade: O instituto da compulsoriedade, pela relevância do termo, mostra-

se como um critério central de distinção do tributo para com outras exações, como o

preço público, o qual, segundo Ribeiro (2013, p. 4), independe da manifestação de

vontade do contribuinte, sendo este ato irrelevante para o nascimento da obrigação

tributária e obrigatório por parte da cobrança por parte do Erário.

c) Instituição em lei: A presunção legal é um requisito de validade dos dispositivos no

ordenamento jurídico. O princípio da legalidade, que tange a diferenciação entre

costumes e normas - sendo estas últimas regidas pelo Direito e vinculadoras de

determinado ato a ser obedecido pelos sujeitos destinadores de tal condicionamento -,

está previsto no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o qual

estabelece que “II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa

senão em virtude de lei”.

d) Em moeda ou em cujo valor nela possa se exprimir: A contrapartida do alcance da

obrigação tributária corresponde à prestação em pecúnia a ser paga, de forma a extinguir

o crédito tributário; segundo o doutrinador Hugo de Brito Machado (2015, p. 58), a

instituição da prestação não pode se dar de modo in natura (em natureza) ou in labore

(de forma laborativa), sendo a dívida do tributo satisfeita em moeda. Salvo

circunstâncias especiais, o artigo 156, inciso XI do Código Tributário Nacional (CTN),

introduzido pela Lei Complementar 104/2001, introduz a dação em pagamento de bens

imóveis, que, mediante processo legislativo ordinário, poderá ser extinto o crédito

tributário.

e) Sanção por ilicitude: Em uma análise superficial, a instituição de penalidades

pecuniárias compulsórias pode ser feita pelo Poder Público, mediante descumprimento

de atos normativos, todavia, o tributo não deve ser confundido com multa, na medida

em que não é possível por meio da tributação atingir tal fim. A tributação decorre de

atos lícitos e, portanto, enquadra a sua aplicabilidade no Princípio da Legalidade.

f) Vinculação do lançamento: O lançamento realizado pela autoridade competente,

segundo Vieira (2014, p. 34), não pode ocorrer por conveniência ou oportunidade,

sendo esses atos de natureza discricionária lançados por meio de atos subjetivos. O

lançamento vinculado, por sua vez, possui caráter objetivo, cujo alcance se dá pela

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SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos

Alethes | 307

subsunção do caso concreto à hipótese legal de incidência.

A descrição legalista presente no CTN não permite, a priori, uma interpretação

adequada da complexidade de conceituação do gênero tributo. Dessa forma, torna-se necessário

evidenciar como os elementos supracitados podem contribuir para uma subsunção adequada à

configuração do lançamento tributário por parte da Administração Pública, na qual a

conceituação doutrinária pode auxiliar de forma significativa no contraste entre o plano material

e o abstrato presentes no ordenamento jurídico.

Outro apontamento relevante, na composição da estruturação da definição de tributo,

“refere-se à condição de receita pública que é inerente ao mesmo, na qual a receita pode ser

destinada ao próprio ente tributante ou a terceiros [...]” (PAULSEN, 2015, p. 41).

Dentro da composição do ordenamento jurídico brasileiro, a definição de tributo

também está presente na Lei Ordinária nº 4.320/64, a qual define as normas gerais de Direito

Financeiro, para elaboração e controle dos orçamentos e dos balanços da União e de demais

entes federados. O artigo 9º da respectiva lei define tributo como:

[...] Art. 9.º Tributo é a receita derivada, instituída pelas entidades de direito público, compreendendo os impostos, as taxas e contribuições, nos termos da Constituição e das leis vigentes em matéria financeira, destinando-se o seu produto ao custeio de atividades gerais ou específicas exercidas por essas entidades. [...]

O Direito Financeiro reconhece a receita pública derivada obtida pela arrecadação

tributária, como base econômica destinada à oferta dos serviços públicos, regulamentando os

processos pelos quais as leis orçamentárias operacionalizam os atos providos da Administração

Pública. Contudo, essa mesma previsão legal, não contempla, a princípio, critérios suficientes

para se obter uma segurança jurídica condizente com o recurso obtido através da receita pública,

o que implica, segundo PAULSEN (2015, p. 41), no afastamento da natureza tributária da

contribuição do Fundo de Garantia da Seguridade Social (FGTS), obtida por decisão do

Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário nº 522.897.

3. Existência da obrigação tributária no ordenamento jurídico brasileiro

O conceito de obrigação, presente em vários ramos da ciência jurídica, expressa-se como

uma reciprocidade de ações firmadas entre as partes envolvidas, estando presentes nos artigos

481 e 586 do Código Civil de 2002, assim sendo:

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[...] Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro. [...] Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade. (BRASIL, 2002). [...]

Na legislação extravagante, pode-se observar no Código Tributário Nacional o artigo

114, o qual dispõe que: “Art. 114. Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em

lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”, ou seja, o fato gerador da obrigação principal

é definido como sendo a situação fática pela qual a hipótese de incidência se manifesta. Nesse

sentido, Geraldo Ataliba (2010, p. 59) leciona que a hipótese de incidência:

[...] é primeiramente a descrição legal de um fato: é a formulação hipotética, prévia e genérica, contida na lei, de um fato (é o espelho do fato, a imagem conceitual de um fato; é o seu desenho). É, portanto, mero conceito, necessariamente abstrato. É formulado pelo legislador, fazendo abstração de qualquer fato concreto. [...]

De outro lado, o fato gerador da obrigação tributária é a realização da descrição legal no

mundo fático (e, portanto, no caso em concreto). Para Vieira (2014, p. 153):

[...] fato gerador é a ocorrência, no mundo real, da hipótese prevista em lei, que faz surgir a obrigação tributária (principal ou acessória). Nesse sentido, são os acontecimentos em virtude dos quais começam as relações jurídicas tributárias. [...]

A natureza obrigacional da relação jurídica, na seara tributária, molda-se numa

subdivisão regida por uma obrigação tributária principal e por outra acessória. Para Hugo de

Brito Machado (2015, p. 125), o objeto da obrigação tributária principal se dá pela pecúnia, de

modo que o patrimônio do sujeito passivo é a sua natureza. Nos moldes do Direito Privado, ela

consiste numa obrigação de dar. Já a obrigação tributária acessória, por sua vez, não se vincula

ao patrimônio, consistindo numa obrigação de fazer. A aplicação do instituto jurídico da

obrigação se faz presente no CTN, mais precisamente no artigo 113, o qual estabelece:

[...] Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.(BRASIL,1966)

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SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos

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[...]

Segundo Perez Ayala (1968), citado por Ataliba (2010, p. 59), a relação fática dos

momentos necessários ao surgimento de uma obrigação tributária aplica-se:

[...] a definição por uma lei de certos de fato a cuja hipotética e possível realização a lei atribua determinados efeitos jurídicos (obrigação de pagar o tributo), convertendo-os assim em uma classe de fatos jurídicos(fato imponível) A realização desse fato jurídico, o fato imponível, que origina a obrigação de pagar o tributo. (Derecho Tributario, 1968, Madri, Ed. Derecho Financiero, p.45).

O sistema tributário nacional define, por meio do CTN, os sujeitos da respectiva

obrigação, podendo estes serem ativos ou passivos, da qual apresenta-se como:

a) Sujeito Ativo: A legitimidade do sujeito ativo da obrigação tributária, na tensão Fisco

x Contribuinte, se dá pela pessoa jurídica de Direito Público, que, em suas atribuições,

recolhe os tributos e os repassa como receita pública derivada para que os órgãos

competentes possam executar os serviços públicos inerentes ao seu funcionamento. O

artigo 119, do CTN, categoriza o sujeito ativo como sendo: “Sujeito ativo da obrigação

é a pessoa jurídica de direito público, titular da competência para exigir o seu

cumprimento”.

b) Sujeito Passivo: O agente passivo da relação jurídica consiste no sujeito obrigado ao

pagamento do respectivo tributo ou penalidade in pecúnia, como disposto no artigo

121, do CTN; já o sujeito passivo da obrigação tributária acessória designa-se pelo

contribuinte ou responsável, em que o primeiro tem relação jurídica direta com o Fisco

e o segundo se vincula pode disposição expressa em lei.

A geração de efeitos jurídicos na seara tributária se reveste de consequências

impactantes na sociedade, por meio do qual a não identificação do destinatário legítimo a arcar

com o ônus tributário pode implicar uma vedação da análise empírica dos princípios presentes

na relação Fisco x Contribuinte, de modo com que a capacidade contributiva expressa-se como

pilar fundamental ao identificar o efetivo potencial contributivo da pessoa física ou jurídica na

relação obrigacional.

4. A conceituação ex lege da Hipótese de Incidência Tributária

O elemento abstrato existe em diversas searas, sejam elas filosóficas, políticas,

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sociológicas, entre outras, mas no ordenamento jurídico tributário apresenta-se como um

critério existente na norma, que, segundo Gerado Ataliba (2010, p. 58), se dá por meio de uma

formulação hipotética, prévia e genérica, que está inserida no dispositivo legal, como uma

espécie de desenho do fato.

A adoção de mecanismos lógicos para a interpretação da hipótese de incidência a torna

indivisível, não podendo haver incidência múltipla de atos que venham a fragmentar a

aplicação da hipótese. Segundo Ataliba (2010, p. 58), a consequência a ser alcançada no plano

epistemológico-jurídico, por meio da identificação da hipótese no processo interpretativo,

decorrente de sua aplicação, corresponde ao núcleo do tributo, permitindo uma construção

jurídica mais adequada através da disposição legislativa.

O exemplo citado na obra Hipótese de incidência tributária acerca da venda de

mercadorias ou recebimento de rendimentos, ou ainda introduzir mercadorias no território do

país, segundo Ataliba (2010, p. 65):

[...] Embora se refira a atos complexos ou fatos constituídos de elementos heterogêneos e múltiplos. Uma e indivisível é a h.i, ainda quando a realidade que conceitua seja integrada por elementos vários, como, por exemplo, “transmitir um imóvel” , não constitui h.i só o ato de transmitir, nem só o imóvel, mas a conjugação dos dois termos, conceptualmente, que se reporta ao ato de transmitir que tem por objetivo um imóvel”. Este complexo é que, pela lei, é qualificado como hábil a determinar o nascimento de obrigações tributárias, erigindo-se, pois, em hipótese de incidência. [...]

Portanto, a complexidade dos atos ou a sua quantidade independem para a aplicação

efetiva da hipótese de incidência, na medida em que não é lícita a sua transfiguração em

elementos variados, fugindo, assim, a presunção de legalidade. Nessa situação, a prescrição

legal independente de uma leitura ampla por parte do interprete.

A implicação da hipótese de incidência ao fato concreto configura-se: fato imponível,

em que Dino Jarach, citado por Ataliba (2010, p. 67) discorre que “Em todos os casos,

entretanto, deve-se tratar de fatos que produzem, na realidade, a imagem abstrata, que deles

formulam as normas jurídicas” (“Estrutura e elementos da relação jurídica tributária” in RDP

16/339).

Acerca da diferenciação entre fato imponível e hipótese de incidência, torna-se possível,

segundo Ataliba, evidenciar as suas particularidades.

O quadro comparativo a seguir evidencia a diferenciação entre esses elementos:

HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA FATO IMPONÍVEL

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SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos

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- descrição genérica e hipotética de um fato;

- fato concretamente ocorrido no mundo fenomênico, empiricamente verificável

(hic et nunc); - conceito legal (universo do direito); - fato jurígeno (esfera tangível dos fatos);

- designação do sujeito ativo; - sujeito ativo já determinado; - critério genérico de identificação do

sujeito passivo; - sujeito passivo: Tício;

-critério de fixação do momento de configuração;

- ocorrência – dia e hora determinados;

- eventual previsão genérica de circunstâncias de modo e lugar;

Modo determinado e objetivo, local determinado;

- critério genérico de mensuração (base imponível ou base de cálculo).

Medida (dimensão) determinada (base calculada).

Fonte: ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010,

p.74

Desse modo, os elementos diferenciadores presentes na tabela permitem uma

interpretação mais fática da relação, em que os sujeitos, a ocorrência e as dimensões fomentam

uma série de elementos presentes no plano abstrato e concreto da incidência tributária.

4.1. Aspectos da Hipótese de Incidência Tributária

Os institutos da hipótese de incidência tributária e do fato imponível, descritos Geraldo

Ataliba, determinam os sujeitos da obrigação tributária, implicando também os componentes

de nascimento das obrigações. Dentre os quais, o aspecto temporal apresenta-se, na visão do

mesmo autor as circunstâncias trazidas no tempo, que configuram os fatos imponíveis. O

aspecto espacial, por sua vez, se atém ao lugar pelo qual ocorre a obrigação tributária, em que

a hipótese de incidência é essencial para a configuração do fato imponível (ATALIBA, 2010,

p. 78, 94 e 104).

A vertente de materialidade, na visão de Geraldo Ataliba, é o aspecto mais complexo da

hipótese, uma vez que designa os dados de ordem objetiva, sendo configuradores do arquétipo

que a hipótese de incidência consiste. Por fim, mas não menos importante, o aspecto pessoal

possui caráter subjetivo, determinando a qualidade e os sujeitos que o fato imponível fará nascer

(ATALIBA, 2010, p. 80 e 106).

5. Compreensão jurídica do Fato Gerador

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Já o fato gerador deve ser compreendido como sendo quando a hipótese de incidência

ocorre concretamente no mundo real, com o nascimento da obrigação tributária,

responsabilizando o sujeito passivo (devedor) a pagar determinado tributo e, portanto, com a

incidência do mesmo. Ou seja, se trata da realização efetiva de situação prevista pelo legislador

como hipótese de incidência. Exemplo disso pode ser citado o Imposto Sobre Serviços – ISS

(cujo fato gerador ocorre quando houve, numa situação concreta, um serviço prestado pela

empresa A e, a par disso, houve surgimento de obrigação de pagar o tributo supramencionado,

que vincula o prestador desse serviço, como sujeito passivo).

Ricardo Lobo Torres (2004, p. 239) defende que “fato gerador é a circunstância da vida

— representada por um fato, ato ou situação jurídica — que, definida em lei, dá nascimento à

obrigação tributária”.

Em análise comparada do fato gerador em relação à hipótese de incidência, Machado

(2004, p. 136) se manifesta:

[...] A expressão hipótese de incidência designa com maior propriedade a descrição, contida na lei, da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, enquanto a expressão fato gerador diz da ocorrência, no mundo dos fatos, daquilo que está descrito na lei. A hipótese é simples descrição, é simples previsão, enquanto o fato é a concretização da hipótese, é o acontecimento do que fora previsto. [...]

Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro adotou igualdade semântica entre fato

gerador e hipótese de incidência. No artigo 4º do Código Tributário Nacional é introduzido o

pontapé inicial do termo fato gerador no ordenamento jurídico, ao dispor o legislador que “a

natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação

[...]”.

Da leitura dos artigos 114 e 115, ambos do Código Tributário Nacional – CTN, que,

respectivamente, dispõem que o “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em

lei como necessária e suficiente à sua ocorrência” e que “fato gerador da obrigação acessória é

qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato

que não configure obrigação principal”, se extraem múltiplas possibilidades interpretativas do

ordenamento jurídico brasileiro quanto aos termos fato gerador e hipótese de incidência.

O que se tem dos referidos dispositivos infraconstitucionais supracitados é que, ocorrido

o fato gerador, nasce o dever de pagar o tributo (obrigação principal – artigo 114 do CTN) ou

de deveres instrumentais (obrigação acessória – artigo 115 CTN).

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SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos

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É com o fato gerador que serão indicados o an, si e quando da relação tributária, segundo

Falcão (2013, p. 86), daí a necessidade que ele ocorra estritamente no mundo real, em situação

prática, para que então, como afirmado, ocorra o surgimento da relação obrigacional, em cujo

momento será aplicado o regime jurídico então vigente, com respeito ao direito adquirido ao

sujeito passivo, consagrado constitucionalmente como direito individual (artigo 5º, inciso

XXXII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).

5.1 Classificação dos Fatos Geradores vinculados ao estudo.

Nessa ordem de ideias, algumas conceituações são relevantes. Quanto à ordem

estrutural, o fato gerador pode ser simples – no qual se trata de fato único, isolado – ou

complexo – no qual se trata de fato complexo ou, segundo doutrina, conjunto de fatos, segundo

Falcão (2013, p. 92).

Já em relação à integração ou formação do fato gerador, este é subdivido em fato gerador

instantâneo - que se perfazem imediatamente, numa só operação ou momento – e fato gerador

complexivo – que se completam dentro de um determinado período temporal, consistindo num

conjunto de fatos circunstâncias ou acontecimentos globalmente considerados, segundo Falcão

(2013, p. 94-96).

Pode-se citar como exemplo de fato gerador instantâneo quando em fato concreto há

circulação de determinada mercadoria pela empresa A, com a consequente obrigação tributária

de pagar Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços – ICMS, enquanto, como exemplo

de fato gerador complexivo, o imposto de renda, em que o contribuinte B deverá, por declaração

a ser entregue à Receita Federal do Brasil, indicar anualmente o fluxo riqueza (assim, desde

01.01 até 01.12 do ano declarado).

Nessa última diferenciação estabelecida (entre fato gerador instantâneo e complexivo)

há importância, inclusive, para aplicação de direito intertemporal e, assim, conclusão de qual

norma dever-se-á aplicar (no caso do fato gerador instantâneo, o regimento jurídico vigente ao

momento único; no caso do fato gerador complexivo a legislação é a do momento vigente à

época em que haver completado a formação dele, num dado período de tempo, para a produção

de efeitos jurídicos – exemplo: no caso do imposto de renda, alterada a alíquota em novembro

do ano declarado, ela será adotada se persistir vigente até 31.12) e também quanto a prazos

decadenciais.

5.2. Aplicação fática do Fato Gerador

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Para exemplificar a aplicação do fato gerador in concreto, a participação das instituições

jurídicas de caráter recursal possui papel fundamental na condução das jurisprudências

inerentes à promoção da justiça, na qual a incidência do fato gerador complexivo requer uma

interpretação balizada no procedimento de interpretação conjunta dos magistrados. Por sua vez,

o Superior Tribunal de Justiça, por sua 2ª Turma, decidiu o seguinte caso:

TRIBUTÁRIO - IMPOSTO DE RENDA - LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO - PAGAMENTO A MENOR - INCIDÊNCIA DO ART. 150, § 4º, DO CTN FATO GERADOR COMPLEXIVO - DECADÊNCIA AFASTADA. 1. Na hipótese de tributo sujeito a lançamento por homologação, quando o contribuinte constitui o crédito, mas efetua pagamento parcial, sem constatação de dolo, fraude ou simulação, o termo inicial da decadência é o momento do fato gerador. Aplica-se exclusivamente o art. 150, § 4°, do CTN, sem a possibilidade de cumulação com o art. 173, I, do mesmo diploma (REsp 973.733/SC, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, DJe 18/9/2009, submetido ao regime do art. 543-C do CPC). (STJ. 2ª Turma. Rel. Min. Eliana Calmon. j. 15/10/2013).

Ainda, quanto à integração ou formação do fato gerador, Eduardo Sabbag (2015)

acrescenta um terceiro tipo de fato gerador, qual seja, o fato gerador contínuo como sendo:

[...] aquele cuja realização leva um período para se completar, ou seja, não se dá em uma unidade determinada de tempo, mas se protrai em certo período de tempo. Daí haver a necessidade de se fazer um “corte temporal” (dia 1º de janeiro, por exemplo), com o propósito de estabilizar o aspecto temporal do fato gerador. [...]

Exemplo desse terceiro tipo é o Imposto Sobre a Propriedade de Veículo Automotores

– IPVA, regulado por cada Estado e Distrito Federal a teor do artigo 155, inciso III da

Constituição Federal de 1.988. Na Lei 14.937, de 23/12/2003, o Estado de Minas Gerais,

dispondo sobre a matéria, dispõe quanto ao fato gerador:

Art. 2º O fato gerador do imposto ocorre: I - para veículo novo, na data de sua aquisição pelo consumidor; II - para veículo usado, no dia 1º de janeiro de cada exercício; III - para veículo importado pelo consumidor, na data de seu desembaraço aduaneiro. § 1º Para os efeitos desta Lei, considera-se novo o veículo sem uso, até a sua saída promovida por revendedor ou diretamente do fabricante ao consumidor final; § 2º Na hipótese dos incisos I e III e do § 1º deste artigo, o recolhimento do IPVA será proporcional ao número de dias restantes para o fim do exercício; § 3º Tratando-se de veículo usado que não se encontrava anteriormente sujeito a tributação, considera-se ocorrido o fato gerador na data em que se der o fato ensejador da perda da imunidade ou da isenção.

Conforme Falcão (2013, p. 100-101), é também imprescindível que seja o fato gerador

típico, distinguido do fato gerador acessório ou complementar: o primeiro é pressuposto ao

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surgimento da obrigação tributária, enquanto no segundo a obrigação jurídica variará,

dependendo de fato auxiliar ou subsidiário, tratando-se de fato gerador completar, que

necessitará de fato gerador típico para a obrigação tributária.

Além disso, o fato gerador é avolitivo, ou seja, não depende da vontade humana, de

forma com que, uma vez existente em situação no mundo real, surge a obrigação de pagar o

tributo. Neste sentido, o Código Nacional Tributário (CTN) dispõe nos artigos 118 e 126 que:

[...] Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos. [...] Art. 126. A capacidade tributária passiva independe: I - da capacidade civil das pessoas naturais; II - de achar-se a pessoa natural sujeita a medidas que importem privação ou limitação do exercício de atividades civis, comerciais ou profissionais, ou da administração direta de seus bens ou negócios; III - de estar a pessoa jurídica regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional. [...]

Para Sabbag (2015), o fato gerador não pode ser considerado ato jurídico, por ser

irrelevante a presença ou não do elemento da vontade humana para o surgimento da obrigação

de pagar determinado tributo, possuindo, destarte, avolitividade.

Falcão (2013, p. 106-107) defende que a base de cálculo significa a expressão

econômica do fato gerador, tanto que a inadequação dela pode significar um fato gerador

distorcido e, consequentemente, o tributo ser desnaturado.

6. Consequências da diferenciação entre hipótese de incidência e fato gerador

O estabelecimento da diferença entre Hipótese de Incidência tributária e Fato Gerador

do tributo beneficia o Fisco, através da praticabilidade tributária, em que a Administração

Tributária pode reconhecer a obrigação tributária (e nela, portanto, o fato gerador) ainda que a

situação não se enquadre exatamente na descrição legal (hipótese de incidência).

A construção doutrinária acerca da praticabilidade tributária permite a Administração

Pública promover meios mais eficientes para que a efetividade no campo da arrecadação possa

permitir ao Estado financiar seus projetos e serviços públicos. Segundo Paulsen (2015, p. 81)

“O exercício da tributação não é um fim em si mesmo, mas um instrumento. Só se permite a

intervenção no patrimônio das pessoas porque é necessário para o financiamento das atividades

que cabe ao Estado promover”.

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Entre as correntes doutrinárias preponderantes no Direito Tributário, existem

divergências acerca da definição legal da praticabilidade tributária. Alguns autores se

posicionam favoravelmente à conceituação da praticabilidade como um princípio que não está

previsto em algum dispositivo expresso da constituição, mas que permeia todo o ordenamento

jurídico.

Para outros autores, em contrapartida a esse posicionamento, interpretam a

praticabilidade tributária como um procedimento facilitador da obtenção de recursos

financeiros. Diante desse entrave conceitual, a justificativa para uma tributação

procedimentalmente facilitada apresenta-se como uma alternativa viável na atual conjuntura do

ordenamento jurídico, devido à complexidade das normas tributárias.

Entretanto, até que ponto a valoração da praticabilidade tributária pode interferir na

interpretação do Fisco mediante a incidência do fato gerador correspondente, de forma a não

comprometer com a interpretação doutrinária relativa a incidência no plano material?

Logo, torna-se necessário um posicionamento cauteloso acerca do princípio ou do

procedimento supracitado, na qual podem existir casos concretos em que a autoridade tributária,

enquadre o contribuinte a uma determinada categoria de indivíduos, em tratamento uniforme,

atribuindo o mesmo fato gerador para esta. Acontece que, na visão de Humberto Ávila (2015,

p. 81), referida situação leva a uma padronização, como instrumento de igualdade geral (isto é,

a presunção legal utiliza critérios objetivos para classificar os contribuintes em uma tributação

específica), o que contrasta com a igualdade particular (ou seja, os contribuintes devem ser

tributados conforme critérios subjetivos de sua capacidade contributiva, para que possa ser

alcançada uma tributação justa).

Oportuno trazer, também, outra consequência nessa diferenciação de hipótese de

incidência e fato gerador, estabelecida por Machado (2015, p. 131), que defende:

[...] A distinção, que devemos ter presente, entre hipótese de incidência tributária e o fato gerador do tributo é de grande importância para a compreensão da tese que temos sustentado, segundo a qual a ilicitude é irrelevante para o surgimento da obrigação tributária, embora seja inadmissível a tributação de atos ilícitos. [...]

E prossegue o eminente doutrinador (MACHADO, 2015, p. 131):

[...] A ilicitude do ato praticado nada tem a ver com a relação tributária. isto não implica admitir-se a tributação de atos ilícitos. É indispensável, a este propósito, estabelecer-se uma diferença entre o ato ilícito como elemento da hipótese de incidência do tributo e a ilicitude que eventualmente pode verificar-se na ocorrência do fato gerador do

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SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos

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tributo. Uma coisa é considerar-se, por exemplo, a manutenção de casa de prostituição como hipótese de incidência de um tributo. Outra coisa é admitir-se a incidência do imposto de renda sobre os rendimentos auferidos na referida atividade. A hipótese de incidência do imposto de renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza (CTN, art. 43). É irrelevante que tal aquisição se tenha verificado em decorrência de atividade lícita ou ilícita. [...]

A relação de admissão de um tributo, na qual a sua respectiva hipótese de incidência

inclui ilicitude, é inadmissível, logo, a observância dos momentos em que o legislador descreve

uma situação considerada necessária para o surgimento da obrigação não deve se basear por

atos ilícitos, segundo Machado (2015, p. 131-132).

Portanto, Machado (2015, p. 132) discorre que, no momento da concretização da

situação legalmente descrita, a ilicitude poderá se instaurar eventualmente, todavia a sua

presença não é necessária à concretização da hipótese de incidência do tributo, de tal forma

com que, segundo o mesmo autor, a circunstância ilícita que sobra não deve ser aplicada em

hipótese de incidência tributária, sendo que, para fins tributários, torna-se inteiramente

relevante a sua aplicação.

7. Considerações finais

É pertinente salientar que o sistema constitucional tributário, em sua complexidade,

abarca dispositivos normativos que o define e o conceitua, além de correntes doutrinárias que

se posicionam perante os seus institutos. No decorrer do desenvolvimento intelectual existente

em cada cultura, a importação de determinadas ideologias, sejam elas políticas ou jurídicas,

podem influenciar positivamente na formação dos processos democráticos, que estão presentes

nos Estados Modernos, todavia, a concepção jurídica adotada por cada ordenamento deve ser

compreendida, analisada e respeitada, levando em conta a contribuição mútua entre as

sociedades. Por outro lado, o desenvolvimento das correntes doutrinárias deve se ater aos

institutos jurídicos de modo a realizar uma leitura estrutural, seja dos conceitos, seja dos

princípios, que, através de posicionamentos divergentes, podem contribuir mediante seus

juristas a um aperfeiçoamento do espectro dogmático da própria ciência jurídica.

A diferença entre hipótese de incidência tributária (descrição legal, in abstrato) e fato

gerador da obrigação tributária (ocorrência fática da hipótese de incidência, in concreto) não se

restringe apenas ao aspecto semântico, como também traz consigo consequências práticas, na

qual a possibilidade de tributação de atos não previstos na norma em abstrato poderá ocorrer

tendo em vista a padronização proferida pelo legislador, uma vez que atos não discriminados

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 303-320, mai/ago, 2016.

Alethes | 318

na hipótese de incidência poderão tornar-se ilícitos, violando, assim, a presunção de legalidade,

que é fundamental para uma harmonização do ordenamento jurídico brasileiro.

Torna-se plausível que, devido a multiplicidade de retenções, auditorias e declarações

das quais o Fisco é obrigado a monitorar, a capacidade técnica em averiguar os detalhamentos

de cada obrigação tributária traduz-se em uma tarefa complexa e, em alguma medida, inviável

para os procedimentos cotidianos da Administração Tributária. Todavia, o Princípio da

Praticabilidade Tributária, quando trabalhado sob uma perspectiva de manutenção dos

processos arrecadatórios, não deve priorizar somente o processo administrativo, como também

se pautar por situações particulares que ensejam, no caso concreto, uma relação que conduza a

uma justiça tributária na relação Fisco x contribuinte.

Assim, a implementação simétrica dos dois institutos (fato gerador e hipótese de

incidência) na órbita prática-jurídica pode acarretar em desigualdades, por considerar elementos

que se estendem para além da presunção legal e, portanto, tendem a abalar a segurança jurídica,

de modo a instituir possíveis irregularidades na vinculação entre o fato gerador e o seu

enquadramento legal na efetuação do lançamento tributário.

A adoção de atos emanados pelo sujeito ativo da obrigação (Fisco) e pelo sujeito passivo

(contribuinte) necessitam de uma adequação ao próprio ordenamento, com ações típicas do

Poder Legislativo e que possam considerar através da presunção legal formas de compatibilizar,

em um ambiente jurídico-político, as situações inerentes a cada instituto e, assim, promover

uma adequação de fato a incidência dos tributos.

8. Referências Bibliográficas

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010. ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2015. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Promulgada em 05 de outubro de 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 08 mar. 2016. BRASIL. Lei Federal nº 4.320/64. Estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4320.htm>. Acesso em: 09 mar. 2016

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ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil

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A Propriedade e a Formação da Sociedade Civil no Jusnaturalismo de Grotius e Locke

The Property and the Formation of Civil Society in Grotius´ and Locke´s Natural Law

André Aarão Rocha1

Resumo: O presente artigo busca apresentar as contribuições teóricas de Hugo Grotius e John

Locke para a racionalização do direito natural existente até então. Com base nas teorias do direito natural, o qual se caracteriza por ser um sistema de proposições morais a serem descobertas pela razão, objetiva-se ressaltar a importância que as mesmas teorias tiveram para a formação da propriedade privada, bem como da sociedade civil. Ademais, através da apresentação de suas teorias bem como das peculiaridades que cada uma possui, busca-se demonstrar que a sociedade civil tem sua origem propulsionada pelo surgimento da propriedade privada na filosofia de ambos. É a partir dessa última, que nascerá o direito positivo, também chamado direito civil (lato sensu), como sendo aquele direito criado no âmbito da sociedade civil, com o objetivo de regê-la.

Palavras-chave: Jusnaturalismo. Propriedade. Sociedade. Grotius. Locke.

Abstract: This article seeks to present the theoretical contributions of Hugo Grotius and John Locke for the rationalization of the existing natural law until then. Based on theories of natural law, which is characterized as a system of moral propositions to be discovered by reason, the objective is to highlight the importance of those theories for the formation of the private property as well as of the civil society. In addition, through the presentation of both theories, as well as the peculiarities which each one has, it seeks to demonstrate that this society has its origin propelled by the emergence of private property in both philosophers. It is from this last one, that the positive law, also known as Civil Law (lato sensu) will be born, as that right created within civil society, in order to rule it.

Key words: Jusnaturalism. Property. Society. Grotius. Locke.

1 Graduando do curso de Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista de Iniciação Científica patrocinado pelo programa Jovens Talentos para a Ciência da CAPES. Edital 26/2014.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.

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1. Introdução

O direito natural pode ser genericamente definido como um conjunto de regras perfeitas

e naturais de comportamento, que objetivam qualificar o certo e o errado para o convívio social.

Essas regras foram estabelecidas independentemente da vontade do homem. Desse modo, ele

contrasta com o direito positivo, que é aquele que se define como um conjunto de regras

estabelecidas no corpo social pelos homens, geralmente escritas, por excelência, as leis. O

direito natural, além de externo à vontade humana, é eterno. Por isso, não muda de lugar para

lugar, de tempos em tempos e estabelece leis não escritas, mas possíveis de serem positivadas.

Durante muitos anos esse direito foi extremamente ativo e importante, especialmente

através das teorias medievais teológicas de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.

Posteriormente, suas bases foram desfeitas e reconstruídas a partir da razão, com a escola

jusnaturalista moderna, na qual figuram os autores explicitados nesse artigo: Hugo Grotius e

John Locke. Esse direito natural racionalizado fora usado como base de explicação para

diversos fenômenos, alguns deles, notadamente presentes na obra dos dois autores em análise.

São eles: a propriedade privada e a formação da sociedade civil - nascida precipuamente para

assegurar a propriedade. Esses objetos, juntamente com o direito natural, serão os pontos

principais a serem discutidos no presente artigo.

A posteriori, o direito natural teve sua importância diminuída, principalmente com o

avanço, nos séculos XVIII e XIX, do positivismo jurídico, o qual enfatiza a significância do

direito positivo como objeto da ciência do Direito. O positivismo jurídico tem como

característica a negação da existência do direito natural, pois para os positivistas a única

fundamentação do direito é a criação legal humana, positivada em um estado social. Exemplo

dessa concepção encontra-se amplamente representado na Teoria Pura do Direito, de Hans

Kelsen. Entretanto, o direito natural foi importante e deixou suas marcas no direito positivo.

Isso é perceptível em diversos documentos mundialmente relevantes, como a Declaração de

Independência dos Estados Unidos (1776), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

(1789) - esta que tornou-se o preâmbulo da Constituição Francesa de 1791 - e a Declaração dos

Direitos do Homem adotada pela ONU em 1948.

2. Origem Histórica do Direito Natural

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ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil

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O fundamento do direito natural não é a vontade humana, essa é objeto do direito

positivo, como já foi explicitado. Mas, então, qual é o seu fundamento? Em primeiro lugar, é

importante ressaltar que tal fundamento varia circunstancialmente. Existe uma divisão trifásica

simplificada, organizada por Strauss (1992), mostrando seus principais momentos. Em um

primeiro momento, com os gregos (principalmente Platão e Aristóteles), o direito natural se

funda na natureza (Physis). Já na Idade Média, com o crescimento da Igreja Católica, o

fundamento se torna Deus (principalmente nas obras de Santo Agostinho e São Tomás de

Aquino). Por fim, na Idade Moderna, a razão se torna o fundamento do direito natural,

começando por Hugo Grotius e continuando com Hobbes e Locke, e outros filósofos. Trata-se

agora de apresentar um panorama dessa história.

Segundo Leo Strauss (1992), o direito era inicialmente dado pelos ancestrais através dos

costumes, que passavam de geração para geração. As pessoas acreditavam que esses ancestrais

eram deuses ou semideuses, ou seja, o direito era ditado pela autoridade. No entanto, o

questionamento dessa autoridade aparece com o surgimento da filosofia consequentemente o

entendimento humano acerca das leis sofre modificações. A filosofia fez com que o direito

passasse a não ser mais determinado por aquela autoridade ancestral, mas por algo anterior a

tudo: a natureza.

Segundo Bobbio e Bovero (1994), no modelo aristotélico o direito natural vem da

natureza (Physis) em contraposição ao direito positivo (Nómos). Um dos princípios do direito

natural nessa doutrina é a formação da sociedade. Para Aristóteles, essa não sai da forma natural

direto para a civil, existindo uma progressão que parte da sociedade conjugal até o império.

Para ele o homem é um animal social (Zoon politikon). 2

Subsequentemente surgem duas escolas contrárias de acordo com Rommen (1998): O

Ceticismo, que atinge seu ponto máximo com Carneades (215-125 a.C) e o Estoicismo, fundado

por Zenão de Cítio (340-265 a.C). Os céticos acreditavam que as leis eram feitas pela vontade

arbitrária dos homens. Desse modo, não poderia existir lei da natureza, pois uma vez que ela

não possui vontade, não arbitra nada. Até então os céticos eram os que mais se aproximavam

daquilo que mais tarde veio a ser denominado de positivismo jurídico (pela negação do direito

natural). O estoicismo, por sua vez, teve grande influência no pensamento romano, fazendo

parte dessa escola personalidades como Cícero, Sêneca e o Imperador Marco Aurélio. Foi a

2 Característica parecida pode ser observada na teoria da formação social de Hugo Grotius, que se baseia em Aristóteles e afirma que o homem possui uma vontade natural de sociedade, uma tendência de se organizar na forma de um corpo social, proveniente do direito natural, algo que ele chama de appetitus societattis.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.

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partir desses pensadores que, como afirma Rommen (1998), os ensinamentos estóicos chegaram

até a Idade Média.

Ainda para Rommen (1998), na doutrina dos estóicos o mundo é controlado por uma

razão de Deus, o logos divino. Eles entendem que o mundo é completamente organizado por

esse logos, através de regras prescritas por Deus, que dispõe princípios tais, que serão

alcançados pela reta razão e trarão justiça. O estoicismo prega que a vida adequada seria aquela

organizada de modo a respeitar esse conjunto de proposições divinas. Para tanto, o homem deve

usar a razão. Esse direito natural foi utilizado no direito romano como meio de diminuir as

lacunas da lei (do ius civile). Com o advento do cristianismo, ainda no tempo do Império

Romano, os valores do estoicismo são transmitidos à religião cristã, que os utiliza na Idade

Média, estabelecendo um direito natural fundado no logos do seu Deus, o Deus cristão. De

acordo com Rommen:

Os padres da Igreja em seu início fazem uso do direito natural estóico, encontrando em seus princípios as ‘sementes do mundo’, para proclamar a doutrina cristã do Deus como personalidade criadora, como o autor da lei eterna bem como do direito natural moral, o qual é promulgado na voz da consciência e na razão. (ROMMEN, 1998, p.40, tradução nossa).

A primeira das mais importantes correntes do pensamento cristão, a patrística, possui

como maior representante Santo Agostinho, filósofo que prega a supremacia da cidade de Deus

sobre a cidade terrena. Na escolástica, tem-se como maior representante São Tomás de Aquino,

o qual, em sua Suma Teológica define quatro espécies de leis: a eterna, a natural, a humana e a

divina.

Após esses pensadores, surgem os filósofos da escolástica tardia, representada

primordialmente por Francisco Suárez e Francisco de Vitória. De acordo com Rommen (1998),

os preceptores da escolástica resgataram a teoria de Tomás de Aquino, mas acreditavam que o

direito natural provinha não da vontade de Deus, mas da razão divina, pois tudo aquilo que

Deus fazia tinha origem em sua própria razão e deveria desse modo respeitá-la. Esse

pensamento se aproxima do que será tratado na Idade Moderna.

No jusnaturalimo moderno, claramente um elemento em particular ganhou evidência: a

razão. Ela foi colocada como o fundamento primordial, relegando à religião uma posição

secundária. Os motivos pelos quais isso aconteceu foram bem colocados por André Santos

Campos (2011). Em primeiro lugar, ele considera o advento do renascimento e a visão

mecanicista e matemática. Essa visão é fortemente veiculada, naquele momento, pelo avanço

das ciências naturais, bem como pelo avanço do método científico, principalmente através do

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ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil

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empirismo, que irá ganhar ainda mais força ao longo do período moderno. Em segundo lugar,

considera que “da mesma maneira que os fundamentos teológicos se tornaram insuficientes

para justificar os saberes práticos – a moralidade, o direito, e a política tiveram igualmente de

encontrar as suas justificações num método demonstrativo” (CAMPOS, 2015, p.7), ou seja,

tiveram que encontrar justificação na razão e não mais em Deus. Por último, ele cita os conflitos

religiosos ocorridos na época, que influenciaram os teóricos do direito natural no sentido de

buscarem a definição de um conceito de direito que fosse comum a todas as correntes religiosas

ou que, pelo menos, não interferisse em nenhuma delas.

A escola do direito natural moderna surge, para muitos, com Hugo Grotius, embora para

alguns estudiosos, filósofos como Francisco Suárez e Francisco de Vitória já tivessem abordado

o direito natural de forma separada em relação à religião. Foi, porém, com Grotius, que houve

uma real sistematização dessa cisão entre razão e religião no direito natural.

3. O Direito Natural na Obra de Hugo Grotius

Hugo Grotius, Hugo de Groot ou Hugo Grócio (em latim, holandês e português,

respectivamente), nasceu na cidade de Delft na Holanda, no final do século XVI, dentro do

espírito humanista da Holanda protestante. Grotius viveu numa época de transição entre o

medieval teocêntrico e o moderno laicizado. Em sua vida presenciou eventos como a revolta

dos Países Baixos contra o domínio espanhol, a Guerra dos 30 anos no Sacro Império

Germânico e o início das rivalidades mercantis e marítimas das potências européias.

Grotius, nesse contexto, escreve sua principal obra, O Direito da Guerra e da Paz (De

Jure Belli ac Pacis). A finalidade dessa obra foi refutar a tese, segundo a qual, a guerra é

incompatível com o direito. Para conseguir esse feito, Grotius desenvolveu uma teoria do direito

natural, porque na guerra o direito civil de cada Estado não possui força vinculante e até então

não existia o Direito Internacional, como hoje concebido. Com essa teoria do direito natural, o

filósofo teria um elemento que poderia vincular todas as pessoas, independentemente da

religião que cultuavam, em todos os tempos, inclusive na guerra. Sobre isso, afirma Grotius:

“Que as leis se calem, portanto, no meio das armas, mas somente as leis civis, aquelas que

dizem respeito aos tribunais, aquelas que são próprias somente para a paz e não as outras que

são perpétuas e válidas para todos os tempos.” (GROTIUS, 2005, p. 48-49).

Em seus escritos, Grotius tende à racionalização do direito natural, mas não abre mão

totalmente dos preceitos teológicos, como podemos ver nas palavras de Paulo Emílio de

Macedo:

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.

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Não se deve rotular um autor como Grócio de moderno ou medieval. Após séculos de distanciamentos, já se possui noções preconcebidas sobre a quintessência do medievalismo e da modernidade. Mas esses termos não operam numa lógica binária, em que a presença de um excluía do outro. No jurista holandês, há um pouco dos dois. (MACEDO, 2008, p.491).

A definição de direito natural que Grotius apresenta em sua obra de maturidade (O

Direito da Guerra e da Paz) é a seguinte:

O direito natural nos é ditado pela reta razão que nos leva a conhecer que uma ação, dependendo se é ou não conforme a natureza racional é afetada por deformidade moral ou por necessidade moral e que, em decorrência, Deus, o autor da natureza, a proíbe ou a ordena. (GROTIUS, 2005, p.79).

É fácil perceber, por esse enunciado, uma maior aproximação do direito natural com a

reta razão, o que de acordo com Grotius, seria o meio para se conhecer os princípios do direito

natural. Além dessa razão o homem teria que seguir o seu apetite de sociedade, que Grotius

chamava appetitus societatis, para conhecer aqueles princípios. O homem, através da razão,

reconhece os princípios naturais que Deus incluiu em seu ser, na criação humana. A partir do

conhecimento desse conteúdo, o homem dá voz ao seu apetite de sociedade e percebe que a

vida organizada em um corpo social é extremamente vantajosa, principalmente para assegurar

os direitos naturais que já possui - notadamente a vida, a liberdade (ainda que na sociedade civil

se torne limitada) e a propriedade. Nesse momento é que se alcança o verdadeiro direito natural,

como aquele conjunto de regras gerais feitas por Deus para o convívio humano. Esse acesso

pode ser traduzido na seguinte fórmula: reta razão + sociabilidade natural (appetitus societatis)

= acesso ao direito natural. Nesse sentido Grotius afirma:

A natureza do homem que nos impele a buscar o comércio recíproco com nossos semelhantes [appetitus societatis], mesmo quando não nos faltasse absolutamente nada, é ela a própria mãe do direito natural. A mãe do direito civil, no entanto, é a obrigação que a gente se impõe pelo próprio consentimento e, como esta obrigação extrai sua força do direito natural, a natureza pode ser considerada bisavó também do direito civil. (GROTIUS, 2005, p.43).

Richard Tuck, um dos principais intérpretes da obra de Grotius, comenta a definição de

direito natural desse autor:

Isso estava perto da tradição escolástica, com sua ênfase no caráter moral intrínseco das situações, e isso era uma clara quebra com a tradição voluntarista protestante. A vontade de Deus não é mais a única fonte de qualidades morais: as coisas são boas ou ruins por sua própria natureza, e isso é logicamente prévio ao comando ou proibição de Deus em relação a eles. Mas a inquietação vem quando Grotius ainda argumenta que as coisas que são intrinsecamente boas são aquelas as quais são associadas com o natural, com o caráter social do homem. (TUCK, 1995, p. 68. tradução nossa).

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ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil

Alethes | 327

Ainda segundo Tuck, a lei natural provém da livre vontade de Deus, à qual a nossa razão

nos prescreve submetermo-nos de modo irrefutável. Mesmo que decorra do ser humano e possa

ser entendido a partir da razão humana, esse direito pode ser atribuído a Deus, pois foi ele quem

dispôs para que tais princípios existissem em nós. Assim, pode-se dizer que eles vêm de Deus

de maneira mediata e dos homens de maneira imediata (ao interpretarem-no).

É a partir disso, que Grotius formula a sua hipótese impiíssima, na qual afirma que nem

Deus pode mudar o direito natural, pois esses princípios já foram elaborados pela própria razão

divina e colocados intrinsecamente no homem. Neles, Deus proíbe ou ordena uma ação caso

seja contrária ou condizente com a natureza racional, respectivamente. A razão dessa lei, sendo

tão perfeita, não poderia ser alterada nem mesmo se Deus o quisesse, pois se o fizesse estaria

contrariando a sua própria razão, a qual perderia, assim, seu status de perfeição. Essa hipótese

é o principal indício do afastamento do direito natural de uma determinação (voluntas) divina.

Foi enunciado no Direito da Guerra e da Paz:

O Direito Natural é tão imutável que não pode ser mudado nem pelo próprio Deus. Por mais imenso que seja o poder de Deus, podemos dizer que há coisas que ele não abrange porque aquelas de que fazemos alusão não podem ser senão enunciadas, mas não possuem nenhum sentido que exprima uma realidade e são contraditórias entre si. Do mesmo modo, portanto, que Deus não poderia fazer com que dois mais dois não fossem quatro, de igual modo ele não pode impedir que aquilo que é essencialmente mau não seja mau. (GROTIUS, 2005, p.81).

O filósofo afirma que Deus não pode mudar a lei natural, do mesmo modo que não pode

mudar verdades matemáticas (ele dá como exemplo: 2+2=4). A obra de Deus é perfeita. O

direito natural, como criação de Deus, também o é, conseguindo manter uma harmônica

convivência entre os homens do mundo. Por isso, não pode ser alterado, sob risco do início de

um processo de caos. Desse modo, estabelecida tal criação, as relações racionais e as realidades

ganham autonomia.

A partir da hipótese impiíssima, Grotius afirma ser possível o acesso à lei natural

independentemente da existência de Deus, ou seja, ela é inteligível ao homem, desde que ele

use a razão. De acordo com Bruno de Oliveira Pinho: “A natureza humana, em Grotius, é

suficiente, por si só, para garantir a existência da lei natural”. (PINHO, 2013, p.37). Isso ocorre

devido ao fato de que Deus entrega os princípios do direito natural no coração do homem e dá

possibilidade a ele de descobri-los, dotando-os de razão. Com isso, ele não nega a existência de

Deus ou a possibilidade dele intervir na criação, mas pretende separar o direito natural de um

fundamento teocêntrico. Dessa forma, esse direito está colocado nos homens e depende apenas

deles para existir. Assim, caso os homens fossem criados de outro modo, que não por Deus, o

direito natural de Grotius continuaria a existir.

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Ao discutir a hipótese impiíssima, Hans Kelsen (1979) descreve brilhantemente a

certeza da lei natural na obra de Grotius, que poderia ser comparada a certezas físicas e

matemáticas, demonstrando um ponto de proximidade entre Grotius e os modernos:

Se as normas que constituem os valores morais, e especialmente o valor justiça, defluem da razão e não de uma faculdade do homem distinta da razão, da sua vontade, se numa norma moral, que liga a um determinado pressuposto uma determinada conduta como devida (devendo ser), essa ligação se não opera através de um ato da vontade humana e, portanto, – neste sentido – não é arbitrária mas é tão independente da vontade humana como a ligação entre causa e efeito na lei natural, então não existe, sob este aspecto, qualquer distinção entre uma lei física ou matemática e uma lei moral, então pode afirmar-se na razão que ela é tão indiscutível como o enunciado segundo o qual o calor dilata os corpos metálicos ou o enunciado segundo o qual duas vezes dois são quatro. O que pretende Grócio com a sua afirmação de que as normas do direito natural seriam válidas ainda que se pudesse dizer – o que, efetivamente não pode ser dito – que Deus não existe, é que a validade destas normas é tão objetiva, isto é, que essas normas escapam tanto a toda a arbitrariedade e, portanto, são tão indiscutíveis como os enunciados da matemática [...]. (KELSEN, 1979, p.123).

Outro indício de laicização do direito natural na obra de Grotius é a divisão em tipos de

direitos, elaborada pelo autor. Em O Direito da Guerra e da Paz, ele coloca como direitos

voluntários o direito humano e o direito divino, mas o direito natural fica fora dessa

classificação. Com isso, é visível que ele não depende da vontade (voluntas) de nenhum ser, e

sim da razão (ratio). Tal fato apenas confirma a explicação do autor, de que o direito natural

vem imbuído no homem e provém da razão de Deus. Direito esse que o homem entenderá

também por meio da razão. Bruno de Oliveira Pinho assevera, a esse respeito:

Podemos entender então, a partir disso, que o Direito natural não está relacionado com a vontade, ele tem seu fundamento em outra coisa. Segundo Grotius ele pode ser apreendido pela reta razão (recta ratio), como aquilo que conhece o que convém ou não à natureza humana. (PINHO, 2013, p.82).

Outro ponto interessante a ser enfatizado é o fato de o direito natural, na obra de Hugo

Grotius, não dizer respeito somente às coisas que estão além da vontade dos homens, mas

abarcar, também, coisas que existem por atos dessa vontade. Como exemplo, Grotius (2005)

coloca a propriedade, que foi introduzida pela vontade humana no direito natural. Desde que

ela foi colocada, o direito natural nos diz que é errado tomar aquilo que é de outrem contra sua

vontade.

Como já afirmado, Grotius analisa no Direito da Guerra e da Paz, se é justo, de alguma

forma ou por algum motivo, fazer guerra à luz do direito natural. Para isso se utiliza de

princípios citados por Cícero no De Finibus. O primeiro dever natural é o da autopreservação,

também tratado na obra de John Locke. Em segundo lugar, tem se o dever de procurar seguir a

reta razão. É em decorrência da autopreservação que se tem o direito à legítima defesa, podendo

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ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil

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ser observada em todos os homens, em todas as sociedades e também nos animais. Assim sendo,

é legítimo atacar quem está nos atacando ou está na iminência de atacar. A partir disso surge o

direito de punir aquele que ataca, sendo o que resta, na falta de um juiz competente para julgar

a questão e de um Estado para punir o ofensor. Um dos motivos para a organização social é

justamente a autopreservação, juntamente com a proteção da propriedade, pois a partir daquele

momento haveria um Estado (ou ao menos um corpo de cidadãos) para tutelar os direitos

chamados naturais, assegurando-os na forma de leis positivas.

O direito natural de Grotius defende a vida, a liberdade e a propriedade, tal como o de

Locke o fará em tempos futuros. A proteção da vida é uma consequência lógica, pois sem ela

nenhum outro direito teria sentido. Entretanto, não é absoluta. Nas palavras de Grotius:

“Nenhum homem, de fato, pode legitimamente matar outro homem, a menos que esse último

tenha cometido algum crime capital”. (GROTIUS, 2005, p.423). Além dela temos a proteção

da liberdade, que, para Grotius, é um direito inato, mas que os homens abrem mão em certa

medida, em seu contratualismo, ao se organizarem em forma de sociedade civil.

Em relação à propriedade, Grotius acreditava que Deus havia dado a Terra ao homem

para que ele a usasse, ou seja, era patrimônio de todos (res commune). Assim, todo homem

podia se apropriar do que precisasse para sua subsistência e o uso dava origem à propriedade.

3.1. Teoria da Propriedade em Grotius

Antes da formação social, o homem podia se apropriar do que quisesse para sua

subsistência. A concepção da propriedade seria anterior à sociedade. Bens como a terra,

alimentos e alguns utensílios, necessários à sobrevivência, tornavam-se de um só e, como havia

bens para todos, não faria falta que cada um os usasse para a subsistência. A propriedade,

entretanto, apesar de ter sua existência antes do surgimento da sociedade civil, tem sentido de

ser maior nessa sociedade. Enquanto o homem vivia em Estado natural em menor quantidade,

com recursos suficientes a todos, havia menos demanda para os bens, mas após a consolidação

social, tudo passa a ficar mais delimitado e a definição do que é de cada um se faz mais presente.

Grotius (2005) estabelece dois modos de adquirir a propriedade: pela partilha dos bens

(maneira expressa) ou pela ocupação (maneira tácita). No primeiro modo os homens acordariam

em dividir as coisas disponíveis, já no segundo seria por ordem de ocupação. Um exemplo no

qual é possível observar essa segunda forma, em conformidade com o que diria Rousseau

posteriormente é a propriedade da terra. De acordo com Pinho (2013), à medida que se trabalha

na terra, surge o direito à mesma e ao produto do trabalho, a colheita. Portanto, aquele que

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beneficia o bem recebe o direito sobre ele. A maneira tácita ainda é dividida em duas formas,

dependendo do tipo de bem, se ele é móvel ou imóvel:

A ocupação dos bens móveis ocorre por uma captura física, apprehensio, e a dos bens imóveis exige alguma construção ou o estabelecimento de limites e cercas. O sinal exterior da occupatio, aquilo que retirava a coisa do mundo natural e comum para a posse individual e exclusiva, era alguma forma de trabalho: apreensão física ou construção. A ocupação é o modo original de aquisição de propriedade privada, mas esta ocupação só se efetiva com o trabalho. (MACEDO, 2008, p. 59).

Além dessas propriedades adquiridas, o homem possui propriedades inatas. No Direito

da Guerra e da Paz, Grotius diz que a propriedade natural do homem é a vida, o corpo e a

liberdade. Esse é outro elemento comum à obra de John Locke:

(...) mesmo que o direito que ora chamamos propriedade não tivesse sido criado, pois a vida, o corpo, a liberdade teriam sido sempre bens próprios de cada um, contra os quais não se poderia atentar sem injustiça. (GROTIUS, 2005, p. 103).

É importante ainda enfatizar que se a propriedade tivesse sido introduzida pelo homem,

“esta lei era modelada conforme o plano da natureza” (GROTIUS, apud FERNANDES, 2015,

p. 67-68). É por isso que surge a lei da natureza segundo a qual “houve uma espécie de

compromisso mútuo, tacitamente acordado entre os proprietários, que se alguém estivesse de

posse dos bens de outra pessoa, estaria obrigado a restituí-la ao dono” (GROTIUS, apud

FERNANDES, 2015, p.69). Esse compromisso tácito, se torna expresso e é disposto em leis

positivas quando a sociedade se forma.

Grotius afirma que antes do estado social a vida era simples e o homem poderia tê-la

mantido. Entretanto, após usar seu espírito para artes diversas, como a agricultura e a criação

de rebanhos, deixa essa vida simples. Além disso, há um aumento da população, facilitado pela

maior comodidade de vida. Inicialmente existia a partilha de bens, mas depois surgiu a

rivalidade, que originou o emprego de violência exagerada. Segundo Pinho (2013), isso teria

feito com que homens bons fossem corrompidos pelo contato com homens maus, acarretando

um aumento e uma generalização da violência até então existente. Para sanar os problemas

desenvolvidos com as disputas tanto pelas propriedades adquiridas quanto pelas originais

(inatas - vida, liberdade e corpo), é organizada a sociedade civil.

3.2. Teoria da Formação da Sociedade Civil em Grotius

Os homens viviam separados entre si, mas com suas respectivas famílias. Devido à

insegurança que esse estado proporciona, os homens começaram a se unir para se aproveitarem

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uns dos outros, pois dessa forma, seriam mais bem sucedidos em sua experiência de vida. Além

disso, Grotius (2005) afirma que existe uma necessidade humana de fazer comércio recíproco

(appetitus societattis), saciada com a sociedade. Esse apetite, tendente à criação de uma

sociedade, cresce com as dificuldades de uma vida desagregada dos homens. Podem trocar

instrumentos, trabalho, alimentos e outros, satisfazendo a necessidade de todos. Segundo

Grotius:

Se o homem é, inegavelmente, um animal, tem ele algumas características muito peculiares que o diferencia, e o faz exceder, dos outros animais, figurando dentre as principais o desejo por sociedade, isto é, uma certa inclinação para viver com aqueles de sua própria espécie, não de qualquer modo, mas de maneira pacífica, em uma comunidade regulada de acordo com o que de melhor há em seu entendimento. (GROTIUS, 2005, p.37).

Essa formação social decorre do somatório de dois fatores, ambos inerentes à natureza

humana, pertencentes ao direito natural: a razão e o apetite de sociedade. Sobre isso explica

Paulo Emílio Borges de Macedo:

O homem não se apresenta como um ser gregário tal como as abelhas. Ele vive em sociedade porque faz escolhas racionais pra isso. Somente pode afirmar-se que a sociabilidade é inerente ao ser humano porque a razão lhe é natural. Ambos, razão e appetitus societatis, revelam-se naturais, mas este (appetitus societatis) é mediatizado por aquela (razão). (MACEDO, 2008, p. 53-54).

Antes da formação da sociedade, entretanto, existiria segundo Grotius (2005), um

pacto, no qual os homens aceitariam formalmente a união em forma social. Esse pacto só

poderia existir porque os homens possuem um elemento que nenhum outro animal possui: a

linguagem. Após esse momento inicial, os próximos homens que se unissem a essa sociedade

o fariam a partir de um acordo tácito. Eles simplesmente, para Grotius (2005), se agregavam ao

corpo social, aceitando tacitamente as regras de convivência e suas obrigações naquela

sociedade.

Pode-se depreender então, que depois do surgimento da sociedade civil, um homem por

exemplo, poderia se dedicar a plantar enquanto outro conseguia uma boa lenha, outro moía o

trigo colhido e um terceiro fazia o pão que alimentava a comunidade. Através da troca dos

produtos produzidos por cada um deles, todos teriam o necessário para sua sobrevivência. À

medida que a comunidade ia crescendo, as atividades se especificavam mais, tornando a vida

de cada homem individualmente mais confortável em comparação ao estado de natureza. Agora

que o homem não precisava se preocupar tanto com a sua subsistência, teria tempo para

melhorar as técnicas e viver mais comodamente.

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A diferença entre essa teoria de Grotius para a de outros contratualistas, como Hobbes

e Rousseau é, como assevera Paulo Emílio Borges de Macedo, a seguinte:

Assim como nos contratualistas que vieram depois de Grócio o estado de natureza é um lugar idílico, mas precário. O único direito vigente resume-se ao Direito Natural. O advento do Direito Positivo, tanto em Grócio como nos jusnaturalistas modernos, é que encerra este estado. Entretanto, de modo diverso do que preceitua estes, a transição ocorre de forma gradual e é marcada não pela constituição do Estado, mas da propriedade privada. (MACEDO, 2008, p.58).

A sociedade civil positiva os direitos naturais através das leis (do ordenamento jurídico).

Essa sociedade surge para assegurar a vida, a liberdade e o corpo, que são as propriedades inatas

e também para assegurar os bens materiais, a propriedade adquirida (em sentido estrito), seja

ela móvel ou imóvel. Essas propriedades (em sentido lato – englobando todas elas) estavam sob

ameaça em um estado inicial da humanidade, desorganizado e desagregado. Para evitar o

excesso de roubos, guerras particulares, assassinatos, dentre outros conflitos, os homens

criaram a sociedade, na qual abriram mão da liberdade que gozavam naquele estado inicial em

busca de manter aquilo que possuíam.

O direito civil surge na sociedade já formada. É criado, segundo Grotius, para o

cumprimento das obrigações, quando por exemplo, se concorda em firmar um contrato de

compra e venda. Para o autor:

A mãe do direito civil, no entanto, é a obrigação que a gente se impõe pelo próprio consentimento e, como esta obrigação extrai sua força do direito natural, a natureza pode ser considerada como bisavó também do direito civil. (GROTIUS, 2005, p.37).

4. O Direito Natural na Obra de John Locke A obra mais famosa de John Locke é o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil.

Entretanto, apesar de abordar o direito natural, ele se dedica mais detidamente a esse tema na

obra Ensaios sobre a Lei da Natureza, que foi traduzida do latim para o português na tese de

mestrado de Luiza de Souza Müller (2005). Nessa última, Locke analisa a existência e a

possibilidade de conhecer a lei da natureza, bem como sua obrigatoriedade.

É preciso distinguir, em Locke, lei natural e direito natural, pois eles são diferentes,

apesar de muitos autores os confundirem e os considerarem sinônimos. Locke afirma que “o

direito, de fato, coloca que temos o livre uso das coisas, enquanto a lei é o que nos permite ou

nos proíbe de fazer algo”. (LOCKE apud MÜLLER, 2005, p.20-21).

A definição que Locke apresenta no primeiro desses tratados sobre as leis da natureza é

a de que elas são regras morais ditadas por um poder superior, são leis obrigatórias, que podem

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ser reconhecidas através da razão. Além disso, possuem autoridade vinculante em todos os

lugares. Nas palavras de Locke: “a ordenação da vontade divina, reconhecível pelo esplendor

da natureza, ordena ou proíbe por si mesma, estando em acordo ou não com a natureza

racional”. (LOCKE apud MÜLLER, 2005, p.19-20).

Nesse ponto é interessante observar, por um lado, que esse conceito lockeano de lei da

natureza, se assemelha à definição dada por Grotius, que acaba se resumindo no fato de que a

lei da natureza é feita por Deus e entendida pela razão humana. Entretanto, por outro lado, em

Locke há um elemento a mais, a experiência, a qual é combinada com a razão no acesso à lei

natural. Daí o porquê de Locke ser chamado de pensador empirista. Além desse diferencial, a

lei da natureza de Grotius é mais independente de Deus do que a de Locke, visto que aquele

pressupõe que mesmo se Deus não existisse a lei natural poderia existir, em razão dela decorrer

apenas do homem (hipótese impiíssima). Já em Locke a independência de Deus não existe. A

esse respeito descreve Von Leyden:

A tentativa de Locke, observa Von Leyden, é de tornar a razão uma fonte auto-dependente da obrigação moral. Esta teoria é remanescente, em parte de Grócio, que questionou não tanto os pressupostos teológicos da ética, mas da teoria voluntarista que defendia a vontade divina como sendo fonte da obrigação moral. Grócio procurou mostrar que a despeito de sua origem divina, os princípios da lei natural possuem um poder de obrigação próprio, pois são “intrinsecamente necessários e fundados na razão. (LEYDEN apud BRUM, 2011, p.56).

Segundo Bobbio (1998), Locke ainda estava preso a uma concepção voluntarista do

direito natural, que provinha de Hobbes, enquanto Grotius, em contrapartida, tinha seguido uma

linha intelectualista, ao dar maior protagonismo à razão. A hipótese impiíssima é o ponto de

maior afastamento entre a teoria de Grotius e a teologia. Nas palavras de Bobbio:

Se na definição de Locke fica claro que a lei natural é descoberta pela razão, depois de criada pela vontade de Deus, na definição de Grotius ela só é desejada por Deus enquanto descoberta pela razão. Temos aí claramente uma antítese. (BOBBIO, 1998, p.111).

Nos Ensaios Sobre a Lei da Natureza, Locke coloca como fundamento da lei natural a

vontade de Deus, o voluntarismo. Depois, já nos Tratados Sobre o Governo Civil,

especialmente no segundo, ele muda de idéia, colocando agora o fundamento dessa lei na razão

e, aderindo ao racionalismo, aproxima-se de Grotius. Não chega a formular algo parecido com

a hipótese impiíssima, mas muda os rumos em relação à suas obras de juventude. De acordo

com Bobbio:

Não se deve esperar que Locke nos faça, nessa nova obra, uma exposição filosófica sobre a lei natural. Nos ensaios da mocidade (aqui ele se refere aos Ensaios sobre a lei natural) – já examinados -, Locke se ocupara de todos os problemas inerentes à lei

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natural. Embora suas idéias a respeito do direito natural tenham mudado em parte – sobretudo a idéia do fundamento, que não é mais voluntarista, porém racionalista - ele não volta ao assunto, que assume como pressuposto. (BOBBIO, 1998, p.147).

No segundo ensaio, Locke discute as possibilidades do conhecimento acerca da lei

natural. Ele enumera três formas e verifica se são ou não meios eficazes de se obter esse

conhecimento. Primeiramente fala da inscrição, que seria a colocação dos princípios dessas leis

no homem de maneira inata. Ele nega essa ideia, diferentemente de Grotius, que a acolhe, como

já visto. Locke utiliza-se de sua famosa teoria da tabula rasa para descartar a teoria do inatismo.

Nela afirma ser o homem uma tabula rasa, sem nenhuma inscrição, como uma folha de papel

em branco. Para Locke, ninguém teria conseguido provar o contrário. Em um segundo

momento, Locke coloca a tradição como outra possível forma de conhecimento da lei natural,

em que as leis naturais são transmitidas de geração em geração. Ele nega também essa

possibilidade e utiliza para isso três argumentos.

O primeiro deles parte da afirmação segundo a qual cada povo possui tradições

diferentes e seria difícil extrair quais seriam as melhores. Precisaríamos da lei natural para

encontrar as melhores tradições, e como não a temos, torna-se impossível que seja transmitida.

No segundo argumento, Locke diz que a tradição depende muito da autoridade de quem a

transmite e, por isso, não seria um conhecimento, uma coisa evidenciada através da razão, e

sim proveniente da fé. No terceiro argumento, como bem coloca Luiza de Souza Müller:

Locke sustenta que se formos buscar a origem da tradição nós iremos encontrar o autor da idéia inicial, e aquilo que este autor fez nós poderemos fazer diretamente, pois somos dotados igualmente dos mesmos sentidos e da mesma razão. Uma transmissão não produz o conhecimento de nossos deveres; apenas confiamos naquele que transmite a informação; e se a transmissão do conhecimento fosse a respeito da lei natural, esta lei natural deveria ter sido adquirida uma primeira vez de alguma maneira. A tradição seria assim um modo de transmissão da lei natural, e não uma maneira para conhecê-la. (MÜLLER, 2006, p.28).

A terceira maneira de se conhecer a lei natural seria a sensação, a experiência sensível,

não abordada por Grotius. Locke afirma ser essa a maneira correta de se conhecer a lei natural.

Entretanto, para ele, a experiência sensível sozinha não seria capaz de desvendá-la. Ela

necessita da razão para entender corretamente aquilo que a lei natural nos traz. É a razão que

processará as informações captadas pelos sentidos e dará um significado a elas, recuperando os

princípios do direito natural. Por esse grande papel da experiência, Locke é chamado de filósofo

empirista. Coloca no ensaio IV:

Estas duas faculdades devem servir uma à outra: a sensação fornecendo para a razão idéias de objetos sensíveis particulares e a matéria do discurso; e a razão por outro lado guiando as faculdades dos sentidos, e arranjando as imagens das coisas derivadas dos sentidos, dali formando outras e compondo novas. (LOCKE, apud MÜLLER, 2006, p.80).

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ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil

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A lei natural de Locke ainda possui outras características - ela tem força obrigatória,

perpétua e universal. Primeiramente ela obriga a todos, e isso acontece porque possui “Deus

como autor, que está acima de tudo e nos criou do nada e poderá nos reduzir a nada se assim o

desejar”. (LOCKE, apud MÜLLER, 2006, p.40). A lei da natureza vincula, pois ela é a base de

tudo, inclusive da lei civil, que possui sua força vinculante nessas leis naturais: “uma vez que a

força de comando da lei civil depende da lei natural, e não somos tão coagidos a prestar

obediência ao magistrado pelo poder da lei civil como somos obrigados pelo direito natural”.

(LOCKE, apud MÜLLER, 2006, p.40).

De acordo com Locke a lei da natureza possui força em todos os lugares, pois os homens

têm a razão como elemento em comum. Essa lei possui uma relação intrínseca com a razão,

podendo ser reconhecida por ela, juntamente com a experiência. Desse modo, os homens que

são dotados de razão são obrigados, em todos os lugares, a respeitar essas leis; aí está sua

universalidade. Entretanto, depende de certas circunstâncias, ou seja, dependendo da situação,

as leis vinculam somente algumas pessoas. Segundo Locke: “É obrigação de um pai alimentar

e educar os filhos, mas ninguém é obrigado a ser pai: a conclusão é que a força obrigatória da

lei de natureza é a mesma em todo lugar, apenas as condições da vida são diferentes” (LOCKE,

apud MÜLLER, 2005, p. 43).

A lei da natureza, no estado natural, deve ser respeitada por todos os homens, que são

os responsáveis pela sua aplicação, podendo punir algum infrator, a fim de garantir seu

cumprimento. Como todos são iguais, todos podem punir e serem punidos. A legitimidade de

punir o agressor vem desse malefício que ele comete contra a lei natural (considerada uma

agressão a todos) e contra o agredido. Locke, no entanto, defende que isso deve ser feito de

forma proporcional e racional. Além do direito de punir, que é de todos, há para o ofendido, o

direito de reparação pelo dano sofrido. Assim, compreende-se a propriedade como direito

personalíssimo e não mais como um bem comum de todos, como seria na natureza inicial.

Segundo Locke:

(...) a pessoa lesada possui um direito próprio de buscar a reparação por parte do autor da infração. E qualquer outra pessoa que ache isso justo, pode também juntar-se à vítima e ajudá-la a recuperar do ofensor o quanto ela considere suficiente para reparar o dano sofrido. (LOCKE, 2011, p.18).

4.1. Teoria da Propriedade em Locke

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A teoria lockeana da propriedade constitui uma importante parte da filosofia de Locke.

Para ele, o termo propriedade (lato sensu), abrange não somente os bens materiais que o homem

possui, mas também uma série de direitos como liberdade, vida, autopreservação e propriedade

(stricto sensu). Leo Strauss resume, de forma brilhante, a ideia de propriedade em Locke:

O direito natural à propriedade é um corolário do direito fundamental à preservação de si mesmo; não decorre do pacto, nem de qualquer ato de sociedade. Se todos têm o direito natural de se preservarem, então tem necessariamente o direito a tudo o que é necessário para a sua preservação. O necessário para a preservação de si não consiste tanto, como Hobbes parece ter acreditado, em facas e armas, mas em víveres. Os alimentos só contribuem para a preservação se forem comidos, isto é, apropriados de tal maneira que se tornam propriedade exclusiva do indivíduo; existe então um direito natural a uma espécie de “domínio privado exclusivo do resto do gênero humano.” O que vale para os alimentos aplica-se mutatis mutandis a todas as outras coisas necessárias para a preservação de si, e até para a preservação confortável, pois o homem tem um direito natural, não só à sua preservação, mas também à procura da felicidade. (STRAUSS, 2009. p. 201-202).

Para John Locke a existência da propriedade não depende de um pacto ou contrato

social. Os homens podem apropriar-se de bens para sua subsistência, mas como o farão? O que

lhe dá o direito de separar algo daquilo que é comum a todos e apropriar-se disso? Locke

responde dizendo que o homem adquire direito à propriedade pelo seu trabalho. O homem já

possui alguns direitos inatos, como a vida, a liberdade e o próprio corpo. Ele utiliza desses

direitos, para beneficiar-se dos bens. Com a força laboral que emprega, faz seu direito se

estender ao produto que criou. Pode-se dizer então que a propriedade que os homens têm sobre

si mesmos seria como uma propriedade primária. Utilizando-se dessa, realiza trabalhos, cujos

frutos formam sua propriedade por direito - essa última chamaremos propriedade secundária ou

derivada da primária. Nas palavras de Locke:

(...) o único modo honesto de apropriar coisas é através do trabalho individual. Por natureza, cada um é proprietário exclusivo do seu corpo e, por conseguinte, do agir do seu corpo, isto é, do seu trabalho. Portanto, se um homem mistura o seu trabalho – mesmo que seja apenas o trabalho de colher amoras – com coisas que ninguém possui, essas coisas convertem-se numa mistura indissolúvel da sua propriedade exclusiva com a propriedade de ninguém, e, portanto convertem-se em sua exclusiva propriedade. O trabalho é o único título de propriedade que é conforme ao direito natural. (LOCKE, 2011, p.202).

Sobre a propriedade secundária, Locke cita o exemplo de um homem que, antes da

existência da sociedade civil, retira da natureza uma maçã, a qual se torna sua. Esse modo de

aquisição da propriedade, ainda valerá depois de ser firmado o contrato social, mas apenas nos

terrenos comunitários, aqueles que são de propriedade de todos (res communis). Sobre a fase

da sociedade civil, Locke cita o exemplo de um homem que pesca um peixe em um rio que é

de todos. Esse peixe passa a ser de sua propriedade no momento em que emprega nele um

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ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil

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trabalho. Pode haver a apropriação pelo trabalho, pois esses produtos na natureza não possuem

quase nenhum valor. É o homem que emprega o valor nos produtos com seu trabalho e por isso

possui direito a eles. Ele faz com que um pedaço de terra que não possui quase nenhum valor

se torne extremamente valioso:

Consideremos a diferença que existe entre um acre de terra plantado com fumo ou cana de açúcar, semeado de trigo ou cevada e um acre da mesma terra comunitária sem qualquer cultura, e verificamos que a melhoria devida ao trabalho constitui a maior parte do valor respectivo. (LOCKE, 2011, P.37).

Além disso, conforme Leo Strauss e Joseph Cropsey (1987) existem duas razões pelas

quais as provisões naturais possuem pouco valor. A primeira delas é a falta de utilidade que

aquelas provisões têm para o homem na natureza, sem um processo de beneficiamento pelo

trabalho, por mínimo que seja. Os autores dão o exemplo de uma fruta, que até ser retirada do

pé de uma grande altura, pelo trabalho, de nada serve. Já a segunda é a grande abundância de

provisões para tão poucos homens no estado natural, fazendo com que não possuam muito valor

agregado.

O homem, entretanto, deve obter para si somente o necessário, pois, acredita Locke, o

restante seria devido a outro homem, que poderia ser prejudicado se o primeiro tomasse para si

um excedente de propriedade. Assim, ninguém deveria poder acumular uma propriedade e

deixá-la perecer sem ser utilizada, como um alimento que ficou podre antes de ser consumido.

Isso se coloca de forma diversa quando surge o contrato social. É nessa fase que o homem

inventa uma maneira de acumular sem causar prejuízo aos outros, o dinheiro. Ou seja, o homem

só pôde obter mais do que aquilo que pode usar e cultivar, por causa do dinheiro, que por ser

algo não perecível, pode ser acumulado. Assim, o homem passa a trabalhar além do necessário

para a sua subsistência. Locke mostra como o dinheiro modificou a propriedade, tornando

possível acumular bens.

Para Grotius diferentemente de Locke, a propriedade surge de uma convenção do

homem, seja tácita ou expressa:

As coisas não começaram a passar à propriedade [dos indivíduos] mediante um simples ato interior da alma, porque os outros não podiam adivinhar aquilo de que nos queríamos apropriar para então absterem-se. Isso se fez por meio de uma convenção expressa, como quando se distribuem coisas que antes eram tidas em comum, ou tácita, quando nos apossamos delas. (GROTIUS apud BOBBIO, 1998, p.192).

Entretanto, em Locke, só há a necessidade do emprego de trabalho em algo, para nascer

um direito de propriedade sobre ele, que será do autor desse trabalho. A convenção que

estabelece Grotius para o nascimento da propriedade é distinta da convenção social. Era uma

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convenção feita no estado de natureza, somente para a divisão (distribuição) ou ocupação dos

bens. Essa convenção não teria funcionado, pois como a propriedade é um direito erga omnes

(oponível a todos), para que isso ocorresse, a convenção deveria ser firmada por todos os

homens no estado de natureza, obrigando todos eles a respeitarem a propriedade do dono. Trata-

se de algo impraticável sem uma maior organização social. Para que essa convenção desse certo,

seria necessário, então, o estado civil. Como deixa claro Bobbio:

Em resumo, dada a natureza da propriedade como direito absoluto, o acordo só pode instituir o direito de propriedade se for universal. No estado de natureza, um acordo universal é impossível. Ele só é possível no estado civil, entre os membros do corpo político. A teoria convencionalista, portanto, leva-nos à figura do Estado. (GROTIUS apud BOBBIO, 1998, p.192).

4.2. Teoria da Formação da Sociedade Civil em Locke

O Estado de natureza em Locke, como em Grotius, não era uma guerra de todos contra

todos, como em Hobbes, mas apenas um estado sem sociedade civil estabelecida, ou seja,

desorganizado. Sobre isso, coloca Leo Strauss:

O estado de natureza, que, à primeira vista, parece ser a idade de ouro governada por Deus ou por bons demônios, é literalmente um estado sem governo, é uma “anarquia pura”. Poderia durar para sempre, “não fosse a corrupção e perversidade dos homens degenerados; mas infelizmente ‘a maior parte não respeita a equidade e a justiça”. (STRAUSS, 2009, p.192).

Para Locke, o principal inconveniente do estado de natureza é a violação da lei natural,

que deve ser punida pela própria vítima, pois não há um juiz equânime, uma lei positiva

estabelecida para todos e nem força estatal para garantir que essa lei seja cumprida da maneira

devida. Esses são os elementos negativos do estado de natureza, que como afirma Bobbio

(1998), possui também elementos positivos, são eles: uma maior liberdade nos agires e fazeres,

bem como a igualdade maior entre os homens e as propriedades. Entretanto, como a vítima irá

punir, não há imparcialidade na punição que pode acabar se excedendo. Além disso, como não

há força estatal coercitiva sobre os indivíduos, os crimes ficariam impunes ou seriam punidos

pelos agredidos ou seus familiares, o que pode gerar desconfortos e ocasionar novos conflitos.

Tudo isso causa no estado natural extrema insegurança em relação às propriedades (em sentido

lato - incluindo vida, liberdade e as propriedades materiais) das pessoas, que ficariam

ameaçadas.

Além da insegurança das propriedades no estado natural, podemos notar também uma

inclinação social na natureza do homem. A linguagem também é mostrada como um fator

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primordial na conquista da formação social. Ela permite que os homens se entendam e

concordem em um objetivo comum. Nesse ponto é claramente possível notar a influência que

a teoria de Grotius teve na obra de John Locke.

Deus fez do homem uma criatura tal que não lhe seria conveniente ficar só, e por isso instilou-lhe fortes sentimentos de necessidade, conveniência e inclinação para a vida em sociedade, provendo-o igualmente de entendimento e linguagem para que dela desfrutasse. (LOCKE, 2011, p. 57).

Desse modo, cada homem abre mão daquela intensa liberdade de ter que respeitar

somente ao direito natural e passa a ter que respeitar também as regras positivas do corpo social.

Essas regras devem estar de acordo com os preceitos do direito natural. Os homens abrem mão

também do seu direito de punir para ficar sob a tutela da lei positiva, e para manter esse estado

seguro e unido em um propósito primordial, que é assegurar a propriedade, entendida aqui, no

sentido lato.

O governante recebe o poder que o povo transfere a ele e o utiliza para os fins da

sociedade civil. Entretanto, se esse governante se utiliza do poder, não para o bem comum, mas

para fins pessoais, agindo com excesso de arbitrariedade e ferindo o direito do povo, ele se

caracteriza como tirano. De acordo com Locke:

Aquele rei sábio, que tinha bem claro o que era governar, baseava a distinção entre o rei e o tirano apenas nisto: um faz das leis os vínculos do próprio poder, e o bem do povo, o objetivo do governo; o outro quer que tudo ceda à vontade e ao apetite próprio. (LOCKE, 2011, p.130).

Quando o governante se torna um tirano, Locke defende a possibilidade do povo se opor

ao mesmo, resistir à sua força tirânica. O direito de se posicionar contra o governante é chamado

direito de resistência. Locke deixa bem claro que:

Onde quer que a lei termine, a tirania começa, se a lei for transgredida para dano de outrem. E aquele que exceda em autoridade o poder que a lei lhe conferiu, e lance mão da força de que dispõe para fazer ao súdito o que a lei não lhe permite, deixa de ser magistrado e, já sem autoridade, poderá sofrer oposição como qualquer um que viole o direito de outrem. (LOCKE, 2011, p.131).

Grotius (2005), de maneira contrária, não permite esse direito de resistência e considera

que o direito comum de manter a sociedade funcionando como deveria (a paz pública sendo

atingida), toma precedência e deve sobrepor-se em relação a um direito de resistir ao poder

constituído, o qual, segundo ele, potencialmente geraria um desequilíbrio no governo.

5. Conclusão

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O direito natural, como aquele conjunto de princípios eternos, perfeitos e independentes

da vontade humana, começa com os gregos, antes mesmo de Sócrates, e sofre modificações ao

longo do tempo. O conceito foi transmitido pelos estóicos, em Roma, e pelos filósofos católicos

na Idade Média, sendo entendido, nessa época, como um conjunto de princípios provenientes

diretamente de Deus. Na Idade Moderna, com o renascimento, com o avanço do cientificismo

e do método demonstrativo-matemático, esse conceito se afastou da teologia e se aproximou da

razão. Importantes autores, nesse contexto, foram Hugo Grotius (1583-1645) e John Locke

(1632-1704).

Hugo Grotius concebeu sua teoria do direito natural com o objetivo de encontrar um

direito que fosse vinculante em todas as nações - independentemente da religião que cultuavam

- e em todos os tempos, inclusive em guerras. Para o autor, o homem teria acesso ao direito

natural, que era intrínseco a ele (colocado por Deus), por meio da razão. O direito natural não

viria da vontade de Deus, e sim de sua razão, que é perfeita. Por ser perfeita, tal razão cria um

direito natural também perfeito, que não pode ser mudado nem mesmo por Deus - sob pena de

perder seu caráter de perfeição. Além disso, como o direito natural é intrínseco ao homem e só

depende de sua razão para ser descoberto, mesmo que o homem fosse criado de outra forma,

que não por Deus, o direito natural continuaria a existir.

A propriedade, que era um direito natural em Grotius, surge antes da sociedade. No

início, pelo próprio direito natural haveria a propriedade inata, composta da vida, do corpo e da

liberdade - elemento comum em relação à obra de Locke. Os bens materiais, por sua vez, seriam

de todos os homens. Porém, poderiam ser apropriados quando necessários à subsistência, sendo,

dessa forma, propriedades adquiridas. Entretanto, após usar seu espírito para artes diversas,

como a agricultura e a criação de rebanhos, o homem deixa a vida simples que possuía até

então. Posteriormente a essa mudança, surge a rivalidade sobre os bens. A partir daí, o

compromisso mútuo passou a não ser respeitado, fato que ocasionou diversos conflitos, como

assassinatos e roubos. Para sanar esses problemas e assegurar tanto as propriedades inatas

quanto as adquiridas, nasce a sociedade civil.

Todavia, essa sociedade não nasce apenas para resguardar a propriedade de possíveis

ameaças, mas também, para satisfazer uma vontade de sociedade que o homem possuía,

decorrente do direito natural, chamada appetitus societatis. Isso fazia com que os indivíduos se

organizassem em forma de corpo social, tornando sua vida mais cômoda. Assim sendo, a

humanidade pôde se desenvolver melhor através do comércio recíproco.

John Locke define o direito natural da mesma maneira que Grotius o faz, como uma

ordenação da vontade divina, reconhecível pela razão e que está de acordo com a natureza de

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tal vontade. Entretanto, em Locke há um elemento a mais: a experiência, que, combinada com

a razão, promove o acesso ao direito natural. Além disso, a lei da natureza de Grotius é mais

independente de Deus do que a de Locke, visto que aquele pressupõe que mesmo se Deus não

existisse, a lei natural poderia existir. Para Locke, o homem não possui nada inscrito em seu ser

de maneira inata, sendo, por sua vez, como uma folha de papel em branco - a chamada Teoria

da Tabula Rasa. Por conseguinte, o direito natural seria aprendido pela razão somada à

experiência sensível.

Em relação à propriedade, ambos estabelecem seu surgimento antes da formação social.

Apesar disso, Locke dá um valor especial ao trabalho. Segundo o autor, é esse elemento que

traz legitimidade à propriedade, na medida em que o homem agrega valor ao objeto trabalhado,

tornando-se dono dele. Sob esse prisma, o indivíduo usa de sua propriedade inata - vida, corpo

e liberdade - para adquirir a propriedade secundária ou derivada. Diferentemente de Grotius,

para Locke não existe forma de criação da propriedade por meio de consenso.

A formação social, de acordo com Locke, surge para evitar conflitos gerados pelas

punições das violações à lei natural, que eram realizadas pelas próprias vítimas, pois não existia

juiz imparcial para julgar, nem mesmo Estado para garantir a realização de uma punição justa.

Dessa maneira, os crimes ficariam impunes ou seriam punidos pelos agredidos ou por seus

familiares, o que pode gerar desconfortos e ocasionar novos conflitos. Tudo isso causa extrema

insegurança em relação às propriedades, que ficariam ameaçadas.

Locke também trata de um apetite natural do homem de viver em sociedade, que é

possibilitado pela linguagem, assim como descreve Grotius. O homem abriria mão de sua

liberdade natural para possuir segurança em suas propriedades lato sensu - tanto as inatas

quanto as adquiridas. Isso seria garantido por um conjunto de leis positivas, baseadas nas leis

da natureza, e por um Estado, que asseguraria seu cumprimento. Locke, todavia, se coloca

contra um Estado resumido a um governante tirano que atua conforme suas vontades e ignora

as necessidades do povo. Por isso, ele diz que a população, nessas situações, tem o direito de

resistência contra tal tirano.

A obra de Grotius teve significativa importância no sentido de efetuar uma cisão entre

direito e teologia, abrindo o caminho para que filósofos posteriores desenvolvessem a ideia de

um direito natural laico. Locke foi um dos que seguiu essa trilha deixada por Grotius, instituindo

um direito em consonância com os valores do direito natural, tanto em sua teoria da

propriedade, quanto em suas teorias sobre formação social e sobre o direito de resistência,

importantíssimas para as revoluções liberais dos séculos seguintes. Sobre o jusnaturalismo

moderno, comenta Celito Meier:

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O ideal jusnaturalista do século XVII e XVIII marca a história política. Por exemplo, a Declaração da Independência dos Estados Unidos da América (1776), inspirada na doutrina do direito natural, afirma que todos os homens são possuidores de direitos inalienáveis, como o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Outro exemplo muito ilustrador é a Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão (1789), de natureza genuinamente naturalista. Nessa declaração, que constitui um dos primeiros atos da Revolução Francesa, proclama-se como “direitos naturais”, dentre outros, a liberdade, a igualdade e a propriedade. (MEIER, 2010, p. 295).

Posteriormente, com o surgimento do positivismo jurídico, poder-se-ia pensar que não

fazia mais sentido recorrer ao direito natural, raciocínio esse, inapropriado. Se, por um lado, o

direito natural deixa de ser a única forma possível de fundamentação do direito, não sendo mais

usado como base para se verificar a validade do direito positivo, por outro, ele mantém sua

importância como ideologia do Direito. Como assevera Bobbio: “Em outras palavras, o

jusnaturalismo desempenha bem sua função, quando se apresenta como uma ideologia do

direito; o positivismo, quando se apresenta como teoria do direito.” (BOBBIO, 1998, p. 8).

6. Referências Bibliográficas

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PORTO, G.M. Produção do conhecimento a partir da Hermenêutica Jurídica

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Produção do Conhecimento a partir da Hermenêutica Jurídica Production of Knowledge from the Legal Hermeneutics

Giovane Moraes Porto1

Resumo: No intuito de analisar como se dá a produção de conhecimento e a produção de uma

“verdade”, principalmente no âmbito jurídico, a presente pesquisa visa fazer uma análise, a partir da arque-genealogia do saber em Michel Foucault, sobre as principais concepções da hermenêutica. Assim, o objetivo desta pesquisa é estabelecer no que consiste a hermenêutica e quais as consequências dessa produção do saber feita pelo ser humano. A metodologia utilizada será de caráter hipotético-dedutivo a partir de pesquisa bibliográfica, principalmente no que concerne nas construções teóricas do filósofo Michel Foucault. É esperado chamar atenção dos operadores do direito para a importância do debate sobre a produção, a invenção, de uma verdade por meio do discurso racional para se verificar a relação poder-saber exercido por meio de discursos estratégicos que visam, por meio da produção do saber, a construção de uma sociedade dócil e útil. Palavras-chave: Hermenêutica. Conhecimento. Michel Foucault. Giro Linguístico. Poder-saber.

Abstract: The purpose of analyze how is the production of knowledge and the production of a "truth",

mainly in the legal field, the present study aims to analyze, from the arch-genealogy of knowledge in Michel Foucault, on the main concepts of hermeneutics. So the goal of this research is to provide what is hermeneutics and which ones consequences of such knowledge production made by humans. The methodology used is hypothetical-deductive based on literature research, especially regarding the theoretical constructions of the philosopher Michel Foucault. It is expected bring attention of law professionals about the importance of the debate on the production, invention of a truth through rational discourse to verify the relationship power-knowledge exercised through strategic discourses aimed, through the production of namely the construction of a docile and useful society. Keywords: Hermeneutics. Knowledge. Michel Foucault. Linguistic turn. Power-knowledge.

1Giovane Moraes Porto - Graduando em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Bolsista PIBIC/CNPq. Sob orientação do Prof. Dr. Nelson Finotti Silva. Integrante e monitor do grupo de pesquisa Constitucionalização do Direito Processual (CODIP), vinculado ao CNPq-UNIVEM. Contato: e-mail: [email protected]

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 347-364, mai/ago, 2016.

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Introdução:

O tema foi escolhido, porque um dos grandes obstáculos da ciência jurídica é a busca por

métodos de produção de conhecimento que garantam uma racionalidade ao sistema jurídico e

legitimem cada decisão judicial, a fim de manter a aceitação dos jurisdicionados sobre as

“verdades” produzidas pelo conhecimento jurídico.

Assim, em um primeiro momento, este estudo examinará no que consiste a hermenêutica,

qual o seu conceito, sua natureza. Após, serão verificadas as principais concepções da

hermenêutica e suas consequências para a forma jurídica. Tendo como principal referencial a

arqueologia das estruturas jurisdicionais do teórico Michel Foucault.

Ao final, será possível visualizar como se dá de fato a produção do conhecimento e a

relação que se estabelece entre os sujeitos na hora de atribuição de significado a um objeto, com

base na hermenêutica.

No mais, esta pesquisa não tem a pretensão de esgotar o tema, mas apenas de trazer

informações que instiguem o debate, notadamente, sobre a produção do conhecimento na área

jurídica e a relação poder-saber que deriva de discursos estratégicos. A metodologia utilizada foi

de caráter hipotético-dedutivo utilizando a pesquisa bibliográfica como fonte de observação

teórica.

1. Hermenêutica e Teoria do Conhecimento

Muito se tem debatido – durante toda a história da filosofia, da teoria do conhecimento –

o que é o “conhecimento” e como se da a sua produção. Atualmente entendemos que o

conhecimento serve para compreendemos o mundo e a nós mesmos. Conhecer é uma relação que

os sujeitos estabelecem com os objetos. Portanto, analisar-se-á como se dá a justificação do sentido

dos objetos cognoscíveis na história da hermenêutica.

O termo “hermenêutica” deriva do mito grego que predica sobre o Hermes, um semideus

“a quem era atribuído o dom de interpretar a vontade divina” (BETIOLI, 2000, p. 329).

Devido a este dom fazia a comunicação, a mediação, entre os deuses e os mortais. Por isso

– pelo fato de Hermes interpretar a vontade divina –, a hermenêutica é utilizada como sinônimo

de interpretação.

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A palavra hermenêutica deriva do grego hermeneuein, adquirindo vários significados no curso da história. Por ela, busca-se traduzir para uma linguagem acessível aquilo que não é compreensível. Daí a idéia de Hermes, um mensageiro divino, que transmite – e, portanto, esclarece – o conteúdo da mensagem dos deuses aos mortais. Ao realizar a tarefa de hermeneus, Hermes tornou-se poderoso. Na verdade, nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que Hermes disse acerca do que os deuses disseram. Trata-se, pois, de uma (inter)mediação. Desse modo, a menos que se acredite na possibilidade de acesso direto às coisas (enfim, à essência das coisas), é na metáfora de Hermes que se localiza toda a complexidade do problema hermenêutico. Trata-se de traduzir linguagens e coisas atribuindo-lhes um determinado sentido. (STRECK, 2008, p. 128).

Contudo, a concepção de hermenêutica como sendo mera interpretação é muito superficial.

Na área jurídica este entendimento é ampliado pela maioria dos autores. Por exemplo, para Betioli

(2000, p. 330), “a Hermenêutica Jurídica vem a ser a teoria científica da arte de interpretar, aplicar

e integrar o direito”.

A diferença entre a hermenêutica e a interpretação firma-se no conceito de que aquela

possui um caráter mais teórico, enquanto que esta possui um caráter mais prático (BETIOLI, 2000,

p. 330).

Utilizando-se dos termos hartianos (HART, 2007), a hermenêutica está na perspectiva do

observador que, no conhecimento, se localiza como o sujeito externo, ao passo que a interpretação

está na perspectiva do participante que, por sua vez, se localiza no conhecimento como o sujeito

interno.

A hermenêutica pode servir para interpretar e compreender qualquer objeto o qual seja

passível à elaboração de um juízo lógico, por isto ela está diretamente relacionada com a teoria do

conhecimento2, uma vez que por meio da hermenêutica é que se constrói e se compreende o saber

sobre o objeto cognoscível. “Sempre que se tem um ato de conhecimento, é inafastável a presença

de três elementos necessários: o eu que conhece, a atividade que o eu cognoscente desenvolve e o

objeto a que se dirige a atividade desenvolvida pelo eu” (FALCÃO, 1997, p. 13). Sendo assim,

verificamos que a hermenêutica não é um termo exclusivo da ciência jurídica, mas inerente a toda

2 Por teoria do conhecimento, por se tratar de uma crítca a partir de Michel Foucault, pode-se considerar o ponto de

vista kantiano, em relação a possibilidade do conhecimento pelo sujeito a partir de sua experiência, ou seja, as faculdades humanas que possibilitam a experiência com base na razão, que significa o alcance da experiência por meio da sensibilidade e do entendimento, nas palavras de Kant (2001, p.65) “Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência; efetivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em ação a nossa capacidade de conhecer senão os objetos que afetam os sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las, transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento que se denomina experiência? Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início.”

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construção do saber.

A Hermenêutica, bem como a atividade interpretativa, por ela pesquisada, desvendada e orientada, apresenta [...] profundas vinculações com a teoria do conhecimento. Aquela sem esta não conseguirá sequer ultrapassar os umbrais do saber confiável, estacionando apenas no pátio dos meros palpites apedêuticos ou só pretensamente filosófico (FALCÃO, 1997, p. 87).

Portanto, sem a teoria do conhecimento a hermenêutica não seria capaz de produzir,

construir, um conhecimento confiável, legítimo, capaz de pertencer a “ordem do discurso”. Um

saber construído sem a legitimação da teoria do conhecimento é descartado do plano científico e

desconsiderado, atribuindo, até mesmo, a qualidade de falso saber, “não nos encontramos no

verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada

um de nossos discursos” (FOUCAULT, 1999, p. 35).

O conhecimento produzido pela hermenêutica deve ser justificado com base na teoria do

conhecimento para poder produzir um discurso qualificado como verdadeiro. A teoria do

conhecimento exerce um controle sobre a produção do discurso, se o discurso não satisfizer certas

exigências ele será desqualificado e excluído. A regulamentação do discurso, as regras do discurso,

o caráter científico, excluem tudo o que não está dentro deste quadro que delimita a ordem que o

discurso deve respeitar.

[...] a Hermenêutica [...] não pode fugir aos seus compromissos perante o saber gnosiológico, devendo ir buscar na teoria do conhecimento os subsídios necessários a que organize a interpretação e, ao mesmo tempo, lhe forneça o instrumental conducente à veracidade, que se não confunde com imobilismo exegético, com indiferença às circunstâncias, com a idolatria da experiência ou com o maniqueísmo do intelecto. (FALCÃO, 1997, p. 93).

Independente da teoria do conhecimento que embasa o saber produzido pela hermenêutica,

este deve ser legitimado para estar de acordo com a “ordem do discurso” e ter a aceitação deste

saber como verdadeiro. A relação entre o eu que conhece e o objeto que é conhecido não é uma

relação de racionalidade, mas uma relação de guerra, de lutas, de batalhas de poder, a relação é

uma relação de poder-saber, ou seja, a fundamentação do poder pelo saber.

E assim como entre instinto e conhecimento encontramos não uma continuidade, mas uma relação de luta, de dominação, de subserviência, de compensação etc., da mesma forma, entre o conhecimento e as coisas que o conhecimento tem a conhecer não pode haver nenhuma relação de continuidade natural. Só pode haver uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, de violação. O conhecimento só pode ser uma violação

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das coisas a conhecer e não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas. (FOUCAULT, 2003, p. 18).

A hermenêutica jurídica é o meio responsável por fazer a comunicação do sistema jurídico

com a sociedade, ou, em termos habermasianos (HABERMAS, 1997), fazer o fluxo entre o sistema

do Direito e o Mundo da Vida. O ordenamento jurídico não se aplica sozinho à sociedade, necessita

do hermeneuta para fazer esta mediação – assim como Hermes fazia a mediação entre os homens

e os deuses – e isto se dá por meio da produção de saber exercido por meio da hermenêutica, que

só será válida para a forma jurídica se estiver conforme a “ordem do discurso”.

Não há exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade. Isso é verdadeiro em toda sociedade, mas acho que na nossa essa relação entre poder, direito e verdade se organiza de um modo muito particular. (FOUCAULT, 1999, p. 28-29).

Portanto, poder-se-á conceituar hermenêutica como a ciência acerca da interpretação e

compreensão do objeto cognoscível, a fim de construir um conhecimento por meio de um discurso

de verdade que atribui significado por meio de uma relação de poder-saber.

2. Concepções da Hermenêutica

No presente tópico analisar-se-á as principais concepções da hermenêutica – concepção

naturalista ou essencialista, concepção convencionalista e o giro linguístico – para verificar como

se justifica o sentido dos objetos cognoscíveis – na área jurídica: dos fatos e dos textos

(enunciados) normativos – na história do pensamento ocidental, afim de analisar a relação entre a

construção do saber dos juristas e das teorias do conhecimento.

Por que o pensar dos juristas seria diferente do pensar do filósofo? Por que o jurista teria um diferente “acesso” à “realidade” ? Vejam-se, por exemplo, algumas questões absolutamente intrigantes: se, no campo da filosofia, já não se acredita em essências, qual é a razão de os juristas continuarem a acreditar na “busca da verdade real”? Ou: se a filosofia da consciência foi contestada e superada pelas diversas correntes linguísticas, por que razão no campo jurídico se continua a apostar na “consciência de si do pensamento pensante”? (STRECK, 2013, p. 10).

O conhecimento jurídico deve estar relacionado com as construções da filosofia, deve

acompanhar o desenvolvimento das concepções da filosofia da linguagem, da teoria do

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conhecimento e da hermenêutica. O direito e a filosofia devem se relacionar a fim de constatar o

verdadeiro funcionamento dos institutos.

Desde o início, houve um compromisso da filosofia com a verdade; a filosofia sempre procurou esse olhar que desvendasse o que as coisas são. Talvez a obra que melhor simbolize essa procura angustiante seja Crátilo, escrito por Platão no ano de 388 a.C. Esse diálogo pode ser considerado a primeira obra de filosofia da linguagem da história da humanidade. (STRECK, 2013, p. 11).

A “verdade” sempre foi objeto de estudo da filosofia, tentando compreender a relação entre

homem e objeto, como o homem compreende, conhece, os objetos. As duas concepções mais

debatidas são a do naturalismo ou essencialismo e do convencionalismo, estas duas concepções já

estavam presentes na obra Crátilo de Platão, ou seja, desde a Grécia antiga este debate já existia.

Platão, pela boca de Sócrates, contrapõe dialeticamente duas teses: o naturalismo, pela qual cada coisa tem nome por natureza (o logos está na physis), tese defendida no diálogo por Crátilo, e o convencionalismo, posição sofisticada defendida por Hermógenes, pela qual a ligação do nome com as coisas é absolutamente arbitrária e convencional, é dizer, não há qualquer ligação das palavras e as coisas. (STRECK, 2013, p. 11).

A concepção naturalista – ou essencialista – entende que o mundo é interpretado, é

conhecido, pelo paradigma da essência. O objeto seria detentor de uma essência, o sujeito

cognoscente para compreendê-lo apenas extrairia esta essência, uma relação de entre sujeito-

objeto. Por natureza o objeto já seria possuidor de um significado, portanto todos os intérpretes se

interpretassem o objeto de maneira “correta” chegariam ao mesmo significado, conheceriam a

substância do objeto.

Ao passo que a concepção convencionalista entende que o mundo é conhecido,

interpretado, pelo paradigma da consciência, o sujeito cognoscente para compreendê-lo atribuiria

de forma solipsista o significado ao objeto, permanecendo a relação sujeito-objeto. O significado

está na consciência do intérprete que apenas teria de impor este significado ao objeto, que seria

uma tábula rasa, não possuiria um significado por natureza, necessita de um sujeito solipsista para

conferir um significado. Nesta concepção, para o significado ser válido, não precisa de uma

linguagem intersubjetiva, um intérprete já é o suficiente para conferir o significado. Não precisa

da aceitação pelos demais.

Ao enfoque essencialista da língua opõe-se uma concepção convencionalista, em geral defendida hoje pela chamada filosofia analítica (cf. Ayer, 1978). A língua é vista como

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um sistema de signos, cuja relação com a realidade é estabelecida arbitrariamente pelos homens. Dado este arbítrio, o que deve ser levado em conta é o uso (social ou técnico) dos conceitos, que podem variar de comunidade para comunidade. (FERRAZ JR. 2001, p. 36).

A partir do paradigma da essência o texto (enunciado) normativo, que é um dos objetos da

ciência dogmática do direito, possuiria um significado intrínseco a sua existência, ou seja, desde a

sua criação o texto normativo já seria possuidor de um significado e os aplicadores do direito

diante de um caso concreto apenas teria de aplicá-lo.

O paradigma da essência foi superado na modernidade pelo arquétipo da consciência. Na

modernidade o conhecimento se daria pela razão inerente ao sujeito que atribuía um significado

ao objeto analisado, seria subjetivo à como o mundo se apresenta a cada um. O sentido não esta

mais no objeto, mas na consciência de quem o analisa. Nesta corrente o Juiz é senhor do sentido

da lei, pois ele, por meio da decisão, quem atribuiria significa à lei.

Já a ruptura com a filosofia da consciência – esse é o “nome” do paradigma da subjetividade – dá-se no século XX, a partir do que passou a ser denominado giro linguístico. Esse giro “liberta” a filosofia do fundamentum que, da essência, passara, na modernidade, para a consciência. (STRECK, 2013, p. 14).

Com o giro linguístico (linguist turn), formulado por Wittgenstein e Heidegger, aqui

analisado a partir de Lênio Streck (2013, p. 14), o objeto só adquire sentido por meio da linguagem

exercida entre os sujeitos, passa a se ter, portanto, não mais uma relação entre sujeito-objeto, mas

sim entre sujeito-sujeito. Esta concepção, além da relação entre hermenêutica e teoria do

conhecimento, atrai a relação entre a hermenêutica e a filosofia da linguagem, pois por meio da

linguagem é que se produzirá o saber sobre o objeto.

[...] no linguist turn, a invasão que a linguagem promove no campo da filosofia transfere o próprio conhecimento para o âmbito da linguagem, onde o mundo se descortina; é na linguagem que se dá a ação; é na linguagem que se dá o sentido (e não na consciência de si do pensamento pensante). (STRECK, 2013, p. 14).

Sob o amparo da concepção do paradigma linguístico o texto normativo é um mero

aglomerado de símbolos. Só na interpretação/aplicação ao caso concreto é que o aplicador do

direito lhe atribui um significado, o produto desta interpretação do texto normativo e dos fatos do

caso concreto gera a norma jurídica, a partir da norma jurídica deriva-se a norma de decisão que é

a proferida pelo magistrado.

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Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte. (ÁVILA, 2005, p. 30).

Uma norma de decisão só será valida se derivar de um intenso debate contraditório entre

as partes e justificação racional da decisão por parte do magistrado, de modo que se um juiz decidir

apenas de acordo com a sua consciência essa decisão é inválida.

3. Hermenêutica e Filosofia da Linguagem

O ato de julgar nunca poderá ser um ato de vontade, pois a partir do linguist turn a

justificação do sentido não está mais no objeto, ou seja, o objeto não é detentor de uma essência

natural em que o interprete apenas extrairia esta essência do objeto para compreendê-lo (Paradigma

da essência), nem a consciência é detentora desta essência que seria atribuído ao objeto analisado,

de modo subjetivo e relativo à consciência de cada ser (paradigma da consciência), mas a

linguagem, que em um processo é exercido pelas partes, é que atribuirão uma justificação ao

sentido do objeto em análise.

De um lado, a compreensão do significado como o conteúdo conceptual de um texto pressupõe a existência de um significado intrínseco que independa do uso ou da interpretação. Isso, porém, não ocorre, pois o significado não é algo incorporado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende precisamente de seu uso e interpretação, como comprovam as modificações de sentidos dos termos no tempo e no espaço e as controvérsias doutrinárias a respeito de qual o sentido mais adequado que se deve atribuir a um texto legal. (ÁVILA, 2005, p. 31).

O significado do texto é revivido e renovado sempre, sem cessar seu sentido. Por isso que

o texto pode permanecer o mesmo por anos, mas seu significado, sua interpretação, pode mudar

como aconteceu com o termo “mulher honesta” que vigorou de 1942 a 2005 no Código Penal, o

termo permaneceu o mesmo, mas com as transformações da sociedade seu significando foi

sofrendo mudanças.

Todavia, a constatação de que os sentidos são construídos pelo intérprete no processo de interpretação não deve levar à conclusão de que não há significado algum antes do

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término desse processo de interpretação. Afirmar que o significado depende do uso não é o mesmo que sustentar que ele só surja com o uso específico e individual. Isso porque há traços de significado mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem. Wittgenstein refere-se aos jogos de linguagem: há sentidos que preexistem ao processo particular de interpretação, na medida em que resultam de estereótipos de conteúdos já existentes na comunicação linguística geral. Heidegger menciona o enquanto hermenêutico: há estruturas de compreensão existentes de antemão ou a priori, que permitem a compreensão mínima de cada sentença sob certo ponto de vista já incorporado ao uso comum da linguagem. (ÁVILA, 2005, p.32).

Os elementos fáticos do processo, que são anteriores ao conhecimento, só poderiam possuir

algum sentido após o debate entre as partes, de maneira que a interpretação dos fatos assim como

do texto normativo nunca podem ser matérias exclusivas do magistrado. Qual a finalidade das

partes, do contraditório, se ao final estará tudo nas mãos do poder discricionário do juiz?

Sendo assim, estabelecido um quadro mais problemático, descortina-se a formatação do processo civil à luz de um forte contraditório, de um contraditório que assegure às partes o direito de efetivamente influir na construção da decisão judicial, de um contraditório que alcance também a figura do juiz, estabelecendo o dever de debate sobre os temas que darão suporte à construção da decisão judicial. (ROCHA, 2015, p. 298).

As Normas de textura aberta, principalmente os princípios, só acrescentam poder ao

subjetivismo do juiz, pois, possuem uma moldura semântica ampla. Atualmente no Direito

Constitucional os princípios são utilizados como “álibis persuasivos”. Portanto deve haver limites

a esta discricionariedade e a possibilidade de se delimitar, restringir, o quadro semântico (quadro

interpretativo).

A norma imposta pela autoridade é um poder essencialmente normalizador, pois regula a

conduta do indivíduo por meio de um juízo de valor. Determina o que é “normal”, introduz no

indivíduo regras comportamentais a serem seguidas e caso não haja conforme o prescrito a

“anormalidade” deve ser controlada por meio de técnicas disciplinares.

O conhecimento é uma invenção do homem para dominar o outro, para controlar, para

utilizar o outro a fim de concretizar suas vontades. Quem possui o saber, quem impõe o discurso

racional, quem justifica racionalmente uma decisão, possui o poder de dominação. A história do

conhecimento está diretamente relacionada com a história das relações de poder.

Não há, portanto, no conhecimento uma adequação ao objeto, uma relação de assimilação, mas, ao contrário, uma relação de distância e dominação; não há no conhecimento algo como felicidade e amor, mas ódio e hostilidade; não há unificação, mas sistema precário de poder. (FOUCAULT, 2003, p. 22).

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No ordenamento jurídico brasileiro a necessidade de justificar as decisões judiciais é um

imperativo constitucional, previsto no artigo 93, IX da CRFB de 1988, e o novo Código de

Processo Civil (lei 13.105/2015) em seu artigo 489 reafirma este imperativo e estabelece os

elementos necessários para que uma decisão seja considerada como devidamente fundamentada.

A justificação das decisões judiciais encerra um imperativo constitucional, de modo que a referência ainda que rápida às principais constituições do segundo pós-guerra bem demonstra tal assertiva (Constituição da Itália, art. 111; Constituição da Espanha, art. 120.3; e Constituição de Portugal, art. 205). Na Alemanha, não obstante a ausência de texto expresso, a exigência de fundamentação é extraída do art. 103.1, mais claramente do direito que qualquer cidadão tem de ser ouvido em juízo. (ROCHA, 2015, p. 288).

Sendo assim, o controle da atividade judicial e sua legitimação se dão por meio da

fundamentação, portanto o juiz não mais pode justificar suas decisões exclusivamente em sua

autoridade, como era no positivismo, é necessária uma fundamentação racional. O que passa a

justificar a decisão é a “ratio” e não mais a “auctoritas”. Este imperativo constitucional tem como

finalidade evitar decisões arbitrárias e ter maior aceitação por parte da sociedade, a fim de que

realizem a imposição feita na decisão.

Através das teorias da argumentação jurídica, a filosofia jurídica penetra no coração do discurso jurídico para tornar explícita a referência às razões morais que os juízes sempre invocaram para justificar suas decisões. Elas deixam claro que a validade de uma regra jurídica não pode se reduzir à sua autoridade e, mais, permitem reconciliar reason e fiat [Fuller 1946], ratio e auctoritas [Bergholtz 1990], ou facticidade e validade [Habermas 2005-a] em todo e qualquer ordenamento jurídico: uma boa teoria jurídica será aquel que se volte para os fundamentos, para as razões que justificam uma decisão jurídica como correta, que são em grande parte razões de natureza moral (BUSTAMANTE, 2012, p. 186).

Portanto, a fundamentação racional é uma necessidade da soberania, da classe dominante,

para fazer com que os indivíduos sujeitos às imposições da forma jurídica ajam de acordo com o

prescrito e não se rebelem contra esta dominação exercida por meio das disciplinas, mantém os

indivíduos dóceis e úteis.

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. (FOUCAULT, 2009 p. 133-134).

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Quanto à fundamentação das decisões jurídicas que imputam os mecanismos de disciplinas

aos indivíduos que agiram de modo diverso ao imposto pela forma-direito. Por muitas vezes o

julgador utiliza de “álibis persuasivos” devido à textura aberta da linguagem para justificar suas

decisões. Estes mecanismos permitem justificar entendimentos completamente opostos com base

no mesmo texto normativo e o próprio ordenamento jurídico permite esta prática devido aos textos

normativos que possuem molduras semânticas ou quadros interpretativos, muito amplos.

[...] essa perspectiva é perceptível pela utilização descriteriosa dos princípios, transformados em “álibis persuasivos”, fortalecendo-se, uma vez mais, o protagonismo judicial (nas suas diversas roupagens, como o decisionismo, o ativismo, etc.). O uso da ponderação é também nesse ramo do direito outro sintoma de uma espécie de “constitucionalismo da efetividade”, pelo qual o mesmo “princípio” é utilizado para sustentação de teses antitéticas. (STRECK, 2013, p. 51).

Utilizando-se dos “álibis persuasivos” o julgador pode fundamentar praticamente qualquer

coisa, a fundamentação é secundária, primeiro ele decide, depois ele busca um “princípio” para

fundamentar, ou seja, é um caráter finalístico, e esta prática implica em uma ampla

discricionariedade na hora de decidir.

Porém, não podemos confundir arbitrariedade com discricionariedade, desde o positivismo

o julgador já podia decidir de forma discricionária, não precisava justificar sua decisão, o mero

fato de sua autoridade já justificava sua decisão, mas o julgador tinha que atribuir um sentido ao

texto normativo dentro do quadro semântico, esta atribuição, porém, era arbitrária, pois se

considerava um mero ato de escolha que o julgador tinha liberdade para realizar.

No positivismo pós-hartiano, o julgador pode decidir de forma discricionária, ou seja,

dentro dos limites previstos pela forma-direito e pelos fatos do caso concreto (dados da realidade).

“Colocam-se, portanto, dois limitadores: (i) o texto da norma; e (ii) a interpretação dos fatos (dados

da realidade) na revelação da norma jurídica”. (ROCHA, 2015, p. 292).

Contudo a discricionariedade que possui o julgador é muito ampla, devido, ao que dissemos

anteriormente, a textura aberta da linguagem que permite atribuições distintas, e até mesmo

opostas, sobre um mesmo texto, um mesmo aglomerado de signos, portanto o que chamar-se-á de

“álibis persuasivos”. Mas, a atribuição de sentido dentro do quadro semântico não é mais um mero

ato de escolha, conforme já sustentava Kelsen no famoso capítulo VIII de sua insigne obra Teoria

Pura do Direito, o julgador deve justificar racionalmente sua atribuição de sentido, e com a técnica

dos precedentes judiciais o julgador além de justificar sua atribuição de sentido, se houver uma

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decisão anterior contrária em um caso semelhante, deve ainda superar de forma argumentativa o

entendimento anterior.

A formação do direito legítimo [...] se dá com a participação, na formação do direito, de todos os concernidos, ou seja, de todos os cidadãos que podem reivindicar direitos a partir das tematizações feitas dentro da esfera pública política, através do princípio da democracia, do princípio do discurso que sustenta a forma jurídica. (RAMIRO, 2012, p. 112).

Nas decisões judiciais onde o julgador utiliza de álibis persuasivos é como se, ao formular

a decisão, todos os códigos, livros doutrinários fossem revogados, prevalecendo a consciência do

julgador. O paradigma é o do livro O Processo de Kafka (2006).

4. Limites à Discricionariedade Judicial

O julgador não pode decidir do jeito que quiser que forma totalmente livre (arbitrariedade),

mas que ele tem que decidir dentro dos limites do sistema jurídico (discricionariedade), expõem,

também, sobre a necessidade de justificação das decisões judiciais, como forma de atribuir

racionalidade no julgamento e legitimá-lo, diminuindo o caráter subjetivo da decisão, mas esta

discricionariedade possui três importantes limites: a moldura semântica do texto, os fatos e a

experiência jurídica, as decisões anteriores do judiciário sobre casos semelhantes.

A interpretação do texto (enunciado) normativo, não é ilimitada, não se pode falar qualquer

coisa sobre qualquer coisa. O texto possui uma limitação semântica para a interpretação, o que

Hans Kelsen chama de “moldura semântica”, esta moldura não é fixa, imutável, ela pode sofrer

variações de acordo com o uso destes textos por parte da sociedade. O problema dos textos de

cláusulas abertas e os princípios é que estas molduras semânticas são muito amplas, cabendo

diversas atribuições de sentido que podem ser até mesmo antagônicas.

Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. (KELSEN, 1991, p. 366).

A atribuição de sentido ao texto normativo deve ser uniforme, deve ter uma atribuição do

poder judiciário e não deixar a cargo de cada juiz em cada decisão, sob pena de ferir a isonomia,

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PORTO, G.M. Produção do conhecimento a partir da Hermenêutica Jurídica

Alethes | 359

a segurança jurídica, a coerência do direito, a integralidade do direito e a previsibilidade das

decisões judiciais (BARBOZA, 2014, p. 194).

Outra característica do giro linguístico é a de que, a atribuição de significado dentro do

quadro semântico deve provir do intersubjetivismo (relação sujeito-sujeito) e não apenas da

vontade de um sujeito solipsista (relação sujeito-objeto) como propõe a concepção

convencionalista. Um limite importante na hora de se atribuir significado ao texto normativo no

caso em concreto são os dados da realidade, os fatos peculiares àquele caso.

Os dados da realidade na revelação da norma jurídica: a norma produzida não apenas a partir do texto normativo, mas também a partir dos elementos do caso ao qual será aplicada (GRAU, 2009, p. 97). Não existe interpretação constitucional independente de problemas concretos (HESSE, 1998, p. 62). (ROCHA, 2015, p. 293).

A experiência jurídica pode ser vista como um importante limitador para a decisão judicial,

sendo, dentre os três, o mais importante, pois na hora de se julgador um caso concreto não pode

desconsiderar ou contrariar as decisões anteriores proferidas em casos semelhantes. Portanto ao se

atribuir significado ao texto normativo, esta atribuição não pode ser diferente das atribuições feita

anteriormente a casos semelhantes. A atribuição só pode ser diferente se superar a atribuição

anterior.

[...] os juízes em cada nova decisão, incorporam o material normativo agregado pelas decisões anteriores, como que fazendo uma síntese compreensiva do conhecimento acumulado pelo tribunal nos julgamentos anteriores, sem ter que, necessariamente, aceitar o que os juízes anteriores tenham predeterminado, mas sabendo que sua tarefa de julgar passa pela reconstrução dos princípios que justificaram os precedentes judiciais. (BUSTAMANTE, 2012).

Portanto, verificamos que a hermenêutica é o meio necessário para legitimar a teoria do

direito contemporâneo – o positivismo pós-hartiano – e que dentre as concepções da hermenêutica

a que prevalece atualmente é a concepção formulado por Wittgeinstein e Heidegeer, a do giro

linguístico, demonstramos como que se dá a produção do significado dos objetos cognoscíveis, no

caso do direito, como que se dá a produção de significado dos textos normativos. Concluímos que

a atribuição de sentido, no âmbito jurídico, se dá por meio da interpretação/aplicação, por meio de

uma decisão judicial racionalmente justificada por meio de um discurso-argumentativo

(linguagem).

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 347-364, mai/ago, 2016.

Alethes | 360

Ocorre que esta uniformização de sentido decorrente do intersubjetivismo, pretendida pelo

linguist turn, pode configurar uma imposição de sentido, uma violência simbólica ao texto

normativo, uma relação de poder-saber.

A uniformização do sentido tem a ver com um fator normativo de poder, o poder de violência simbólica (cf. Bourdieu e Passeron, 1970:18). Trata-se do poder capaz de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da própria força. (FERRAZ JR. 2001, p. 272).

Por mais que haja mais de um significado possível, ao impor um significado a fim de

uniformizar o entendimento, os demais significados são desconsiderados, colocados à margem,

excluídos da ordem do discurso, há uma relação de poder na imposição de significado aos textos

normativos.

E, de outro lado, somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é norma; é discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros; que trazem consigo efeitos específicos de poder. Portanto: regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade. Ou ainda: regras de poder e poder dos discursos verdadeiros. (FOUCAULT, 1999, p. 29).

Apesar de todas as mudanças de paradigmas decorrentes do giro linguístico, a violência

sobre o objeto, a relação entre direito, mecanismo de poder e verdade permanecem, uma vez que

permanece a legitimação da forma jurídica. A produção de conhecimento é uma imposição, uma

invenção do homem, e por meio desta invenção estabelece a maneira “normal” de viver, de agir.

Desse modo, a moderna sociedade capitalista deixa progressivamente de se regrar por uma ordenação estritamente legal, para se transformar numa sociedade de vigilância e regulamentação, em que a norma ultrapassa em importância conferida à estrita legalidade jurídica clássica. Surge assim, a partir do século XIX, um tipo de configuração de poder – complementação entre disciplina e regulamento –, cuja tarefa se especificará, cada vez mais, em termos de ajustamento à norma, pelo agenciamento de ‘mecanismos contínuos, reguladores e corretivos’. (GIACÓIA JR, 2004, p. 11).

Portanto, mesmo com o desenvolvimento das concepções da hermenêutica, a utilização do

poder disciplinar pela forma jurídica permanece, pois alguém sempre terá que decidir sobre o

significado, sobre a produção do saber, a relação de luta, de guerra, de discursos estratégicos

prevalece. A imposição de um significado como o “correto”, como o “verdadeiro” só faz com que

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PORTO, G.M. Produção do conhecimento a partir da Hermenêutica Jurídica

Alethes | 361

o indivíduo se ajuste à norma, seja respeitando a norma ou sendo corrigido pelas disciplinas por

ter desrespeitado a norma.

A sociedade contemporânea é uma sociedade de vigilância e regulamentação, pois

determina a norma, determina o “normal”, estabelece como cada um deve agir e vigia a conduta

singular a fim de corrigir as “anormalidades”, ou seja, o “normal” ou o “anormal” não é natural,

mas uma invenção social, invenção que possui força, possui um dever de dever de obediência, com

base em uma racionalidade, em uma justificação intersubjetiva por meio da linguagem.

Independente da concepção utilizada para produzir o conhecimento, o conhecimento

sempre será antinatural, sempre será uma violência sobre o objeto e uma imposição por meio de

uma relação de poder-saber, e quando este conhecimento é utilizado para legitimar a forma jurídica

– que necessita de um conhecimento legitimador para exercer o dever de obediência – estará

legitimando os mecanismos disciplinares e a dominação sobre os sujeitos de direito.

Considerações Finais

O estudo acerca da hermenêutica é de extrema relevância para a teoria jurídica, uma vez

que é por meio dela que irá ocorre a produção do conhecimento e a imputação deste conhecimento

em uma norma, imputação esta que só será legítima se estiver de acordo com a concepção

hermenêutica.

Três teorias principais estabelecem como que o indivíduo conhece um objeto, a teoria da

concepção essencialista ou naturalista, a teoria convencionalista e o giro linguístico (linguist turn).

A concepção essencialista afirma que o objeto possui uma essência por si mesmo, ou seja, pelo

mero fato de existir ele será possuidor de um significado, cabendo apenas ao hermeneuta fazer a

extração correta desta essência. A teoria convencionalista que afirma que o significado está na

consciência do intérprete, bastando apenas que arbitrariamente atribua o significado ao objeto

cognoscível.

Prevalece atualmente a teoria do giro linguístico (linguist turn), onde a atribuição de

significado se dá de forma dialética e intersubjetiva. Deve se dar de forma racional, por meio do

discurso-argumentativo, que atribuem o significado, produzindo um conhecimento ao chegarem a

um consenso pela autoridade do argumento e não por um argumento de autoridade.

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Ocorre que, a produção do conhecimento se dará por meio de uma relação de poder-saber.

Por meio de um discurso estratégico exerce uma relação de poder sobre os demais indivíduos, com

um caráter pedagógico de disciplina-los e fazê-los com que ajam conforme seus interesses

subjetivos. Por exemplo, por meio do discurso as ciências humanas conseguem ditar para toda uma

sociedade o comportamento adequado para cada individuo, como devem se comportar.

O conhecimento sempre será contranatural, sempre será uma violência ao objeto, sempre

será um mecanismo de dominação, pois o conhecimento legitima a presença da forma jurídica e a

utilização de mecanismos disciplinares como forma de produção de um corpo social dócil e útil.

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REIS, I.S. A dissolução parcial da sociedade à luz no novo CPC

Alethes | 365

A dissolução parcial da sociedade a luz do novo CPC: uma visão crítica da legislação

Partial dissolution of limited liability partnershi p in the light of new CPC: a critic vision of the legislation

Isabela Salomon Reis1

Resumo: Versa o presente trabalho sobre uma análise crítica do procedimento especial de

dissolução parcial de sociedade estabelecido pelo novo Código de Processo Civil, em seus artigos 599 e seguintes. Analisar-se-á, dessa forma, a terminologia adotada pelo poder legiferante, as inovações trazidas pelo novel Códex, bem como a solução para temas controvertidos positivada pelo legislador pátrio, tais quais à possibilidade de dissolução parcial das sociedades anônimas fechadas e à legitimidade ativa do ex-cônjuge para pleitear a apuração de haveres. Ademais, destacar-se-á possíveis novos debates que surgirão em virtude das imprecisões técnicas presentes nos dispositivos em estudo, tal qual a necessidade ou não da sociedade figurar no polo passivo da ação de dissolução.

Palavras-chave: Dissolução Parcial. Novo CPC. Abstract: This article presents a critic analysis of the especial procedure of partial dissolution of

limited liability partnership stated in the new CPC. In this paper will be analyzed the terminology used by the legislator, the innovations presented in this new codex, as well as the solutions for controversial subjects positivized by the legislator, such as the possibility of partial dissolution of closely held corporations and that ex-spouses have standing to file appraisal procedure. Will be also presented new possible controversial themes that will arise in reason of technical imprecisions of the new CPC, such as the standing to be sued of limited liability partnership in partial dissolution procedures.

Key Words: Partial Dissolution. New CPC.

1 Graduada em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 365-388, mai/ago, 2016.

Alethes | 366

I – Introdução

A Lei nº 13.105/15 (BRASIL, 2015), mais conhecida como o Novo Código de Processo

Civil, que entrou em vigor em 16 de março de 2016, inovou substancialmente a legislação pátria

ao prever em seu Título III, entre os procedimentos especiais, a ação de dissolução parcial de

sociedade.

Tal previsão legislativa, de suma importância no âmbito societário, preencheu uma

lacuna presente em nosso ordenamento jurídico, na medida em que inexistia, até então,

legislação processual específica que regulasse o assunto, tendo a doutrina e a jurisprudência

pátrias se incumbido de realizar a construção do procedimento da dissolução parcial a partir de

princípios gerais do direito societário, tais quais, o da preservação da sociedade e de sua função

social, bem como mediante a aplicação analógica do disposto no Decreto-Lei 1.608/39 acerca

da dissolução e liquidação das sociedades.

Ademais, este novo procedimento especial pôs uma pá-de-cal em inúmeras divergências

doutrinárias, sobretudo, no que tange à possibilidade de dissolução parcial das sociedades

anônimas fechadas e à legitimidade ativa do ex-cônjuge para pleitear a apuração de haveres.

Contudo, em razão de imprecisões técnicas presentes na referida lei, inquestionável que

surgirão, com a aplicação desta, diversas controvérsias, doutrinárias e jurisprudenciais, acerca

do nela disposto, inclusive, no que se refere ao polo passivo da ação de dissolução e à

possibilidade dos sócios remanescentes arcarem com os haveres do sócio retirante.

Desta forma, o presente trabalho visa apresentar, de forma crítica, o novo procedimento

de dissolução parcial de sociedade trazido pelo legislador, pontuando-se os entendimentos

doutrinários consolidados com esta legislação e às inovações trazidas no novo Códex.

II – Da dissolução parcial da sociedade: aspectos gerais.

Antes de adentrar-se nas peculiaridades do procedimento especial previsto no novo

Código de Processo Civil, mister esclarecer a concepção do termo dissolução parcial adotada

pelo legislador pátrio.

Não se olvida, ao estudar a dissolução parcial, que tal expressão sempre foi alvo de

ferozes críticas, inclusive pelo comercialista Hernani Estrella que assinalava:

Daqui rotular-se de dissolução parcial o que, em boa verdade, não o é. De fato, a exatidão do qualificativo salta aos olhos e fere até o senso lógico. Realmente, o escopo da convenção é, declaradamente, indissolver a sociedade, como falar de dissolução parcial? Se a liquidação de quota social se realiza de modo diferente daquele pelo qual

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REIS, I.S. A dissolução parcial da sociedade à luz no novo CPC

Alethes | 367

a liquidação ordinária se processa, como unificar ou reduzir a um mesmo denominador coisas tão díspares? (,,,) Ainda mais, a dissolução da sociedade, propriamente dita, põe termo à sua existência, ao passo que a ruptura do vínculo em relação unicamente ao sócio, só a respeito desta faz cessar o complexo de direitos provindos do aludido vínculo, deixando-o íntegro quanto aos demais associados, sem afetar a vida do ente coletivo. (ESTRELLA, 2004, p.57)

Não obstante a controvérsia quanto à utilização desta terminologia, a mesma foi

consagrada pela doutrina e jurisprudência pátrias, razão pela qual foi adotada na Lei nº

13.105/15 (BRASIL, 2015).

Tal nomenclatura, ademais, pode ser compreendida sob duas concepções. A primeira -

dissolução parcial stricto sensu – desenvolvida no início do século XX, pelos doutrinadores e

tribunais, como forma de equacionar dois princípios, quais sejam, o da liberdade de associação

e o da função social da empresa, pode ser entendida como a possibilidade do sócio retirar-se da

sociedade, sendo seus haveres calculados do mesmo modo como ocorreria na hipótese de

dissolução total da empresa.

Acerca de tal acepção da dissolução parcial, dispõe Priscila M. P. Corrêa da Fonseca:

Consiste esta no decreto de retirada do sócio que requereu a dissolução total, porquanto se entende que a vontade unilateral do sócio não deva prevalecer sobre a utilidade social e econômica representada pela empresa. Todavia, neste caso, como ao sócio assiste o direito de pleitear a dissolução total da sociedade, permite-se que este saia da sociedade recebendo os respectivos haveres calculados do mesmo modo como sucederia na hipótese de acolhimento do pedido de dissolução total. (FONSECA, 2007, p. 57)

Esclarece-se que tal instituto foi desenvolvido com o fito de mitigar o disposto no artigo

335 do Código Comercial revogado, que previa a dissolução total da empresa, e possibilitar a

continuidade da sociedade e o exercício de sua função social, após a saída de sócio insatisfeito.

Em sua segunda concepção – dissolução parcial lato sensu -, a qual foi consolidada no

novo Código de Processo Civil, a dissolução parcial é compreendida como sinônimo de

rompimento parcial do contrato plurilateral da sociedade, englobando, por consequente, os

direitos de retirada e recesso, a exclusão do sócio e a morte deste.

Tal concepção ampla abrange, ainda, a hipótese de dissolução parcial stricto sensu,

razão pela qual o procedimento especial, disposto no artigo 599 e seguintes da Lei nº 13.105/15

(BRASIL, 2015) deverá ser igualmente aplicável a esta situação, apesar de, por evidente

equívoco do legislador, não haver previsão legislativa expressa neste sentido.

Por fim, quanto à nomenclatura adotada no novo Código de Processo Civil, imperioso

observar ainda que, apesar do procedimento especial denominar-se dissolução parcial da

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 365-388, mai/ago, 2016.

Alethes | 368

sociedade, este disciplina igualmente a apuração de haveres do sócio, conforme se depreende

do disposto no inciso II do artigo 599 do novo CPC.

Assim, denota-se que o poder legiferante ampliou o conceito habitualmente utilizado de

dissolução parcial, de modo a abranger tanto a fase de desconstituição do vínculo societário,

quanto a fase posterior de apuração e satisfação do crédito relativo aos haveres do sócio. Desta

feita, o procedimento especial ora estudado poderá ter por objeto: (i) apenas a resolução da

sociedade em relação a um dos sócios; (ii) apenas a apuração dos haveres; ou (iii) a resolução

e posterior apuração dos haveres.

Quanto à possibilidade prevista no art. 599, III, do novo CPC, de se realizar somente a

resolução da sociedade, sem a posterior apuração dos haveres, tem-se que, caso as partes não

possuam um consenso prévio em relação ao valor dos haveres, esta vai em sentido

diametralmente oposto à ideologia defendida pelo legislador pátrio neste novo Códex. Isso

porque, consoante disposto em seu art. 4º, “as partes têm o direito de obter em prazo razoável

a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.”. Ora, o processo judicial que tem

por objeto exclusivamente a resolução da sociedade, quando as partes discordam tanto da

dissolução quanto do valor dos haveres, não soluciona, em sua integralidade, o embate

apresentado pelos litigantes, na medida em que se mostrará necessária, posteriormente, a

propositura de nova ação para discussão dos haveres eventualmente devidos. Dessa forma, a

decisão final proferida no primeiro processo não englobará, em sua integralidade, a atividade

satisfativa a ser conferida pelo Estado às partes.

Neste diapasão, bem expõe Flávio Luiz Yarshell e Felipe do Amaral Matos:

Segundo, é de se duvidar da possibilidade de ser postulada apenas a resolução do contrato, sem a apuração dos haveres. Sob a ótica do interesse de agir, o provimento seria útil. Mas o fato é que, exceto na muito improvável hipótese de a controvérsia se cingir à dissolução (e não abranger os haveres), a limitação objetiva sugerida pela lei deixa o conflito sem resolução integral. (YARSHELL, MATOS, 2012, p. 219)

III – Do procedimento especial: abrangência.

Conforme exposto alhures, o legislador pátrio denominou o novo procedimento

especial, disposto na Lei nº 13.105/15 (BRASIL, 2015), de ação de dissolução parcial de

sociedade, englobando neste a fase de apuração dos haveres eventualmente devidos ao sócio,

bem como o pagamento destes.

Contudo, mediante uma detida análise dos artigos 599 e seguintes do referido diploma,

denota-se a predileção do poder legiferante pela disciplina minuciosa do método de apuração

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REIS, I.S. A dissolução parcial da sociedade à luz no novo CPC

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dos haveres, conferindo maior enfoque a esta fase, do que à de desconstituição do vínculo

societário.

Observa-se, inclusive, que nos termos do §2º do art. 6032 do mencionado diploma, na

hipótese de haver controvérsia entre as partes quanto à dissolução parcial ou não da empresa,

será observado o procedimento comum. O procedimento especial propriamente dito, presente

no Capítulo V, do Título III, somente será observado, portanto, na fase de liquidação da

sentença, ou seja, para apuração e pagamento dos haveres eventualmente devidos.

Esse é o entendimento explicitado também por Flávio Luiz Yarshell e Felipe do Amaral

Matos:

Mais do que isso, o parágrafo 2º do art. 589 do Projeto é taxativo ao estatuir que, se houver contestação ao pedido de dissolução, adotar-se-á o procedimento comum. Isso sugere que, mesmo ao ver do Legislador, a especialidade não está propriamente na fase na qual se discute a resolução da sociedade, mas na apuração dos haveres, isto é, naquilo que se denominou de “liquidação”. (YARSHELL, MATOS, 2012, p. 216)

Dessa forma, conclui-se que a especialidade do procedimento ora em análise reside

substancialmente na fase de apuração dos haveres, na medida em que a dissolução parcial

propriamente dita tramitará pelo procedimento comum, não apresentando maiores

peculiaridades até se adentrar na liquidação.

Lado outro, a abrangência do procedimento especial em estudo foi igualmente

restringida pelo legislador pátrio, na medida em que este regulou exclusivamente a dissolução

parcial da empresa, não tendo, contudo, previsto, de forma discriminada, a dissolução total da

mesma.

Ao contrário, tal dissolução observará o procedimento comum por força do previsto nas

disposições transitórias do novel Códex, em seu art. 1.046, §3º que estabelece que “os processos

mencionados no art. 1.218 da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, cujo procedimento ainda não

tenha sido incorporado por lei submetem-se ao procedimento comum previsto neste Código”.

Assim, haja vista que a dissolução total da sociedade é regulada atualmente pelas normas

de dissolução e liquidação previstas nos artigos 655 a 674 do Decreto-lei nº 1.608, de 18 de

setembro de 1939, conforme preceituado no artigo 1.218 do Código de Processo Civil de 1973,

esta ação passará a tramitar pelo procedimento comum.

2 Art. 603. Havendo manifestação expressa e unânime pela concordância da dissolução, o juiz a decretará, passando-se imediatamente à fase de liquidação. §1º Na hipótese prevista no caput, não haverá condenação em honorários advocatícios de nenhuma das partes, e as custas serão rateadas segunda a participação das partes no capital social. §2º Havendo contestação, observar-se-á o procedimento comum, mas a liquidação da sentença seguirá o disposto neste Capítulo.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 365-388, mai/ago, 2016.

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É certo que apesar de, como lembra Fábio Ulhoa Coelho (2011), raramente se ver nos

dias de hoje algum sócio postular, em juízo, a dissolução total da sociedade, é de questionar a

falta de uniformidade adotada pelo legislador ao estabelecer o procedimento especial somente

para a dissolução parcial, relegando a dissolução total ao procedimento comum, o que pode

acarretar insegurança jurídica, na medida em que a liquidação e a posterior extinção da empresa

apresentam suas próprias peculiaridades.

Ademais, em virtude da falta de disciplina específica, “não se descarta que a prática leve

o aplicador do direito a situações de dúvidas e que o intérprete venha a cogitar, ainda que por

analogia, de soluções constantes da disciplina do procedimento de dissolução parcial previsto

nos arts. 585/595 do Projeto.” (MATOS; YARSHELL, 2012, p. 218)

IV – Da dissolução parcial das sociedades anônimas.

Em razão da ação de dissolução parcial da sociedade ter sido desenvolvida pelos

doutrinadores e tribunais pátrios, inúmeras eram as controvérsias existentes quanto a sua

disciplina. Dessa forma, com a positivação deste novo procedimento especial, foi posta uma

pá-de-cal no debate quanto à possibilidade ou não de dissolução parcial da sociedade anônima.

Inquestionável que existem renomados doutrinadores e juristas que defendem a

impossibilidade da dissolução parcial das sociedades anônimas fechadas em razão de serem as

sociedades anônimas, a princípio, sociedades de capital (intuitu pecuniae), bem como em

virtude da falta de expressa previsão legal neste sentido.

Esse é o posicionamento inclusive esposado por Nelson Eizerik:

Não existe fundamento jurídico para a chamada “dissolução parcial” da sociedade por ações, por rompimento da affectio, ou por qualquer outra causa, quaisquer que sejam as suas características, pelas seguintes razões: (i) a companhia é, em princípio, uma sociedade de capitais, cujo intuito é o lucro, não tendo relevância as qualidades pessoais do acionista, mas apenas sua contribuição ao capital social; (ii) as causas para dissolução são unicamente aquelas taxativamente previstas no dispositivo legal, que não cogita da dissolução parcial; (iii) a noção de affectio é vaga, podendo dar margem a diferentes conclusões, a depender da interpretação do magistrado; (iv) a Lei das S.A disciplina as hipóteses em que o acionista dissidente pode retirar-se da companhia, mediante o exercício do direito de recesso; (v) a dissolução parcial, sob a justificativa da preservação da empresa, constitui medida que pode causar efeito contrário, ao operar a sua descapitalização, sendo injusta com os acionistas que permanecem; e (vi) ainda que não prevista em lei, é mais benéfica para o acionista retirante do que a medida – esta sim, legal – do direito de recesso, pois os tribunais têm determinado o cálculo dos haveres não com base no patrimônio líquido contábil, mas mediante apuração de seu valor real e presente. (EIZERIK, 2014, p. 161-162)

Não obstante tal posicionamento doutrinário, vem predominando nos tribunais pátrios a

possibilidade da referida dissolução parcial de sociedade anônimas fechadas.

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Tal entendimento, explicitado pelo Superior Tribunal de Justiça em suas decisões mais

recentes, tem como base o fato de no Brasil preponderarem nas sociedades anônimas fechadas

de pequeno e médio portes verdadeira relação familiar, sendo estas, por consequente,

constituídas em razão da afinidade e identificação pessoal entre os acionistas, prevalecendo o

caráter intuitu personae.

Ademais, como bem expõe Priscila M. P. Corrêa da Fonseca:

Não se olvide, outrossim, que nas sociedade anônimas de capital fechado não se faculta, como regra, a livre alienação da participação acionária. Por esta razão, aquele que pretende se retirar da sociedade – se não se lhe outorgar a possibilidade da dissolução parcial – ficará sujeito a vendê-la aos demais acionistas, nem sempre por valor consentâneo com o patrimônio líquido da sociedade. Nada justifica, com efeito, que nesses casos, fiquem os acionistas indefinidamente jungidos à sociedade. Milita, por isso e ademais, a favor da dissolução parcial das sociedades anônimas, o princípio insculpido no art. 5º, XX, da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou permanecer associado” (FONSECA, 2007, p. 80-81)

Assim, percebe-se que o legislador consolidou no parágrafo segundo artigo 599 do novo

Código de Processo Civil entendimento já reiteradamente esposado pelo Superior Tribunal de

Justiça e demais tribunais pátrios, conferindo aos acionistas detentores de cinco ou mais por

cento do capital social a possibilidade de requerer a dissolução parcial da sociedade anônima,

caso demonstrado que esta não pode preencher seu fim.

Esclarece-se que apesar das inúmeras críticas à indiscriminada utilização do conceito de

affectio societatis, inclusive como fundamento para dissolução parcial da sociedade, lideradas

por Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França e Marcelo Vieira Von Adamek3, o Superior

Tribunal de Justiça já sedimentou o entendimento de que a quebra da affectio societatis

possibilita a dissolução parcial da companhia anônima fechada, isso porque, conforme disposto

pelo Ministro Castro Filho no julgamento do Embargos de Divergência no Recurso Especial nº

111.294-PR (BRASIL, 2007)

a ruptura da affectio societatis representa verdadeiro impedimento a que continue a realizar o seu fim, (...) já que dificilmente pode prosperar uma sociedade em que a confiança, a harmonia, a fidelidade e o respeito mútuo entre os seus sócios tenham sido rompidos.4

3 Nesse sentido, dispõem os referidos juristas: “O quadro torna-se ainda mais nefasto quando se constata que a noção de affectio societatis é manejada pelos tribunais, sem qualquer sistematicidade e carregada de um incompreensível empirismo, para justificar soluções as mais díspares possíveis entre si, notadamente em matéria de dissolução parcial da sociedade lato sensu (retirada, exclusão e dissolução parcial em sentido estrito), com total alheamento de outros temas fundamentais envolvidos na questão, como os de juízo de proporcionalidade e de análise de imputação de responsabilidade pela quebra de eventuais deveres de sócio.” (2008, p. 112) 4 No mesmo diapasão: STJ, AgRg no Resp 1079763-SP, 4ª Turma, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 25/08/2009 (BRASIL, 2009); STJ, EREsp 419.174-SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j.28/5/2008 (BRASIL, 2008); e, STJ, REsp 1303284 / PR, 3ª Turma, Min. Nancy Andrigui, j.16/04/2013 (BRASIL, 2013).

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Não de pode olvidar, portanto, que demonstrado pelos acionistas que a sociedade

anônima fechada não cumpre mais seu fim social, inclusive em virtude da ruptura do affectio

societatis, poderá ser requerida a dissolução parcial da mesma e a consequente apuração de

haveres, sendo observados os preceitos dispostos nos art. 599 e seguintes do novo Código de

Processo Civil.

V – Da resolução da sociedade

Noutro norte, em relação à data de resolução da sociedade, certo é que o artigo 1.0315

do CC/2002 (BRASIL, 2002) determina que nos casos em que a sociedade se resolver em

relação a um sócio, o valor de sua quota será liquidado com base na situação patrimonial da

sociedade à data da resolução.

Entrementes, tal diploma legal não disciplinou qual seria a data da resolução da empresa,

razão pela qual predominaram na doutrina e jurisprudências pátrias inúmeros debates acerca do

momento no qual ocorre a resolução da sociedade, sendo este utilizado como marco inicial para

fins de apuração dos haveres.

Frente a tais debates, o novo Código de Processo Civil vem, em seu artigo 605, delimitar

a data da resolução a ser considerada, dispondo in verbis:

Art. 605. A data da resolução da sociedade será: I – no caso de falecimento do sócio, a do óbito; II – na retirada imotivada, o sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio retirante; III – no recesso, o dia do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio dissidente; IV – na retirada por justa causa de sociedade por prazo determinado e na exclusão judicial de sócio, a do trânsito em julgado da decisão que dissolver a sociedade; e V – na exclusão extrajudicial, a data da assembleia ou da reunião de sócios que a tiver deliberado.

Percebe-se da redação do referido artigo que a data fixada nas hipóteses de falecimento

do sócio, recesso e exclusão extrajudicial refletem o posicionamento dominante no Superior

Tribunal de Justiça, segundo o qual o momento da resolução da sociedade, a ser utilizado como

5 Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor de sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado. §1º O capital social sofrerá a correspondente redução, salvo se os demais sócios suprirem o valor da quota. §2º A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário.

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data base para apuração dos haveres, deve ser aquele do evento por meio do qual o sócio deixou

de integrar a sociedade.

Este entendimento é inclusive esposado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cuevo, em

voto proferido no Recurso Especial nº 1352461/DF (BRASIL, 2013), cujo trecho ora se

transcreve em virtude de sua importância:

Em regra, quando o vínculo societário é rompido em virtude do falecimento de sócio, a data do óbito será a necessária referência temporal para a apuração de haveres. Isso porque, com a morte, a pessoa física deixa de existir como sujeito de direitos e obrigações, desaparecendo a condição de sócio com as demais condições jurídicas que possuía.

Ademais, acerca do direito de recesso, Priscila M. P. Corrêa da Fonseca (2007)

preleciona que este é um direito potestativo, que produzirá todos seus efeitos no momento no

qual é recebida pela sociedade a notificação6, de forma que nesta data há a resolução da

sociedade quanto ao sócio dissidente.

Noutro norte, em se tratando da retirada imotivada do sócio extrajudicial, nota-se que o

novo Códex está em consonância com o disposto na primeira parte do artigo 1.029 do Código

Civil (BRASIL, 2002), que prevê que “além dos casos previstos na lei ou no contrato, qualquer

sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais

sócios, com antecedência mínima de sessenta dias; (...)”.

Contudo, o legislador não disciplinou qual a data da resolução da empresa quando

requerida, em juízo, a dissolução parcial de sociedade por prazo indeterminado. Assim,

permanece latente o debate, dividido, predominantemente em duas correntes, acerca da natureza

do provimento jurisdicional que defere a dissolução parcial nesta hipótese, a qual possui

correlação direta com o momento de resolução da sociedade e, por consequência, de apuração

de haveres do sócio.

Segundo a primeira corrente, a decisão que defere a dissolução parcial neste caso possui

natureza desconstitutiva, de modo que somente a partir do trânsito em julgado da referida

decisão há a resolução da sociedade, razão pela qual se utilizará a data do trânsito como base

para apuração dos haveres.

Tal entendimento é explicitado no voto proferido pelo Ministro Humberto Gomes de

Barros, no Recurso Especial nº 646.221/PR (BRASIL, 2005), cujo trecho ora se colaciona:

6 Trata-se de um direito que o sócio exercerá, perante a sociedade, por meio de mera manifestação de vontade, de caráter receptício, a qual produzirá seus efeitos, de modo irretratável, tão logo recebida pela sociedade. (...) Cuida-se, na realidade, do exercício de um direito potestativo diante do qual remanesce à sociedade e aos demais sócios apenas uma posição de mera sujeição.(FONSECA, 2007, p. 11-12)

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O tema tem a ver com a eficácia da sentença que determina a dissolução parcial da sociedade e a apuração dos haveres. Se tal eficácia é declaratória, o sócio já estaria sido excluído da sociedade no momento em que manifestou inequivocamente o desejo de desligamento. Assim, a data base da apuração dos haveres deve ser a do ajuizamento da ação. No entanto, se a sentença de dissolução parcial tem eficácia desconstitutiva, diremos que a apuração dos haveres deve tomar como base a situação da empresa no trânsito em julgado. Só, então, o sócio terá efetivamente se desligado da sociedade. Em que pesem os relevantes argumentos da recorrente, o acórdão recorrido adotou a solução mais adequada. Há que se definir um momento em que o sócio deixa de o ser. No desligamento voluntário, a modificação da situação jurídica ocorre com a alteração do contrato social. Na dissolução judicial, é a sentença que tem essa força. Antes da sentença de procedência, o autor integrava: era sócio, e assim permaneceu enquanto o processo se desenrolava. Evidentemente, a sentença que determinou a dissolução parcial alterou uma situação jurídica. Quem era sócio, deixou de ser. Não há dúvida de que a sentença alterou uma situação jurídica. Sua eficácia é predominantemente constitutiva. Se assim ocorre a apuração dos haveres do sócio retirante terá por base a situação financeira da empresa no momento em que se declarou a dissolução parcial. Isto porque o simples desejo de se desligar não faz com que o sócio deixe de integrar, pelo menos formalmente, o quadro societário.

Já a segunda corrente, que predomina atualmente no Superior Tribunal de Justiça,

reconhece o caráter declaratório da decisão na ação de dissolução parcial de sociedade por prazo

indeterminado requerida pelo sócio retirante. Desta feita, segundo esta corrente, a data base

para apuração dos haveres coincide com a manifestação da vontade do sócio de se retirar da

sociedade, que ocorre no ato de ajuizamento da ação de dissolução parcial, se não houver

notificação extrajudicial prévia.

Neste diapasão, cumpre trazer a baila trecho do voto proferido pela Ministra Nancy

Andrighi, nos autos do já mencionado Recurso Especial nº 646.221/PR (BRASIL, 2005), o qual

foi acompanhado pelos Ministros Castro Filho e Carlos Alberto Menezes Direito:

Não há como compelir o sócio a manter-se indefinidamente na sociedade estabelecida por tempo indeterminado, principalmente quando há ruptura da affectio societatis, como ocorreu na hipótese sob julgamento. Neste caso, permite-se que o sócio deixe espontaneamente a sociedade, com a preservação do ente social e apuração de seus haveres, levando em conta a situação patrimonial da sociedade verificada na data da retirada. Com estes fundamentos, conclui-se que a data base para apuração dos haveres coincide com a manifestação da vontade do sócio de se retirar da sociedade limitada estabelecida por tempo indeterminado, o que, na hipótese, se deu com o ajuizamento da ação de dissolução parcial. Ressalte-se que, mesmo com a retirada do sócio, a sociedade continua a existir, prosseguindo com suas atividades, sendo previsível a alteração de seu patrimônio, que poderá ser valorizado ou esvaziado pelo comportamento exclusivo dos sócios remanescentes, não sendo possível, portanto, admitir que o sócio retirante, que não mais participa ativamente da sociedade, seja beneficiado ou prejudicado no recebimento de seus haveres.

No mesmo sentir, voto de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino no Recurso

Especial nº 1.371.843/SP (BRASIL, 2014), cuja passagem ora se transcreve:

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Assim, correto o entendimento adotado pelo Tribunal de origem de que a apuração de haveres deve ter como marco inicial a data do ajuizamento da presente ação de dissolução, haja vista a demonstração inequívoca da inexistência de affectio societatis.

Se por um lado, na dissolução requerida pelo retirante há controvérsia quanto a natureza

da decisão proferida, com relação à exclusão judicial de sócio, bem como à retirada por justa

causa de sociedade por prazo determinado, denota-se que o legislador pátrio consolidou o

entendimento que o pronunciamento judicial, nestas hipóteses, possui natureza constitutiva

negativa.

Acerca do tema, dispõem Flávio Luiz Yarshell e Felipe do Amaral Matos:

Em outros casos, contudo, há a necessidade de pronunciamento judicial para que se efetive a dissolução – caso de exclusão judicial do sócio ou retirada (sic) por justa causa de sociedade por prazo determinado (art. 591, IV, Projeto). Nesses casos, uma das notas de especialidade do procedimento reside em que, numa primeira fase, discute-se o tema da resolução da sociedade em relação ao sócio – que, em caso de controvérsia, se processa pelo procedimento comum, cf, art. 589, §2º -; e, num segundo momento, passa-se à apuração dos haveres, ao qual o Projeto (art. 589, caput) se referiu como “fase de liquidação”. Portanto, positiva-se o que já era reconhecido pela doutrina: primeiro, o juiz desconstitui o vínculo societário ou julga improcedente tal pedido; em seguida, após o trânsito em julgado de procedência, passa-se à fixação dos haveres. Nessas hipóteses, em que se decreta a resolução (parcial) da sociedade, o provimento tem natureza constitutiva negativa, conforme destacado pela doutrina. (YARSHELL, MATOS, 2012, p. 233)

VI – Da apuração de haveres

Cumpre tecer, ainda, observações acerca do critério de apuração de haveres adotado

pelo novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), bem como sobre a forma de pagamento

deste.

Consoante se infere do disposto no inciso II, do artigo 604 e no artigo 606, ambos do

referido diploma, o critério a ser utilizado para apuração dos haveres deverá ser aquele previsto

no contrato social.

Assim, denota-se que o legislador pátrio conferiu especial importância à autonomia das

partes, devendo ser respeitado o critério escolhido livremente por estas, em estrita observância

ao pacta sunt servanda e à força vinculante dos contratos.

Tal posicionamento adotado pelo poder legiferante encontra-se em consonância com os

entendimentos de parte do Superior Tribunal de Justiça, conforme se observa da ementa de

decisão proferida no Recurso Especial nº 1.239.754/RS (BRASIL, 2012), abaixo transcrita:

DIREITO EMPRESARIAL. RECURSO ESPECIAL. DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE. APURAÇÃO DE HAVERES. FORMA DE PAGAMENTO.

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1. A apuração de haveres - levantamento dos valores referentes à participação do sócio que se retira ou que é excluído da sociedade - se processa da forma prevista no contrato social, uma vez que, nessa seara, prevalece o princípio da força obrigatória dos contratos, cujo fundamento é a autonomia da vontade, desde que observados os limites legais e os princípios gerais do direito. Precedentes. 2. No caso sob exame, o contrato social previu o pagamento dos haveres parcelados em 48 (quarenta e oito) prestações mensais e sucessivas, tendo o Tribunal estadual determinado o vencimento da primeira por ocasião do trânsito em julgado da decisão. 3. Em ação que versa sobre o inadimplemento dos haveres oriundos da retirada de sócio, a sociedade é constituída em mora com a citação válida, que passa então a ser considerada como termo inicial para o pagamento das parcelas, sendo certo que aquelas que venceram no curso do processo devem ser pagas de imediato, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, enquanto as remanescentes serão adimplidas consoante determinado no contrato social. (Precedentes) 4. Recurso especial parcialmente provido.

Contudo, apesar de significativa parcela dos tribunais pátrios adotarem o entendimento

supra exposto, nota-se nas decisões mais recentes, inclusive do Superior Tribunal de Justiça,

sensível modificação do posicionamento, sendo sustentado que os critérios de apuração de

haveres previstos nos contratos sociais não são vinculantes quando a dissolução parcial da

sociedade é judicial. Assim, cabe, nesta hipótese, ao juiz buscar a melhor forma de apuração de

haveres no caso concreto, mesmo que essa seja diversa da prevista no contrato social.

Nessa esteira, cabe transcrever trecho do recente voto proferido pela Ministra Nancy

Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 1.335.619/SP (BRASIL, 2015), in verbis:

Nesse contexto – em respeito à premissa adrede fixada, de preservação da sociedade e do montante devido ao sócio dissidente – mesmo que o contrato social eleja critério para a apuração de haveres, este somente prevalecerá caso haja a concordância das partes com o resultado alcançado. Havendo dissenso, faculta-se a adoção da via judicial, a fim de que seja determinada a melhor metodologia de liquidação, hipótese em que a cláusula contratual somente será aplicada em relação ao modo de pagamento.

Desta feita, imperioso observar, com cautela, o posicionamento a ser adotado pelos

tribunais pátrios frente às novas disposições da Lei nº 13.105/15 no que diz respeito à

observância dos critérios de apuração de haveres previstos no contrato social da sociedade

dissolvida judicialmente.

Por fim, quanto à forma de pagamento dos haveres apurados, tem-se que, nos termos do

artigo 609 do novo diploma legal, “uma vez apurados, os haveres do sócio retirante serão pagos

conforme disciplinar o contrato social e, no silêncio deste, nos termos do §2º do art. 1.031 da

Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)”.

Certo é que novamente, em relação à forma de pagamento, o legislador pátrio fez

prevalecer a autonomia da vontade das partes representada no contrato social, tendo previsto,

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de forma supletiva, que o pagamento dos haveres será realizado, no prazo de noventa dias, a

partir da liquidação.

Entretanto, permanece a dúvida se, caso o contrato social preveja o pagamento parcelado

dos haveres, sendo estes apurados judicialmente, o parcelamento dos valores será aplicado ou

se, conforme entendimento hoje majoritário do Superior Tribunal de Justiça, deverá ocorrer o

pagamento integral do montante na data do trânsito em julgado, não havendo que se falar em

parcelamento, em virtude do longo período de tempo já transcorrido no curso do processo7.

Assim, tendo em vista que o diploma legal em análise não disciplinou acerca do

pagamento dos haveres judiciais e sua possibilidade ou não de parcelamento, relegando tal

competência ao âmbito da autonomia privada, recomenda-se que o contrato social preveja, de

forma expressa, o modo como será realizado tal pagamento, tanto judicialmente quanto

extrajudicialmente, bem como as hipóteses nas quais serão permitidos ou não o parcelamento

dos valores eventualmente devidos, de forma a não deixar a cargo dos tribunais tal decisão.

VII – Da legitimidade das partes

Certo é que se mostra de suma importância o estudo da legitimidade processual das

partes, prevista nos artigos 600 e 601, para figurar, respectivamente, nos polos ativo e passivo

da ação de dissolução parcial da sociedade.

VII.I – Da legitimidades ativa

Inicialmente, no que se refere à legitimidade ativa, tem-se que o artigo 6008 do novo

Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) dispõe, de forma detalhada, quem poderá propor a

7 Sobre o tema, vide decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos recursos especiais REsp nº 1.239.754/RS (BRASIL, 2012), REsp 1.371.843/SP (BRASIL, 2014) e REsp 143.057/SP (BRASIL, 2001). 8 Art. 600. A ação pode ser proposta: I - pelo espólio do sócio falecido, quando a totalidade dos sucessores não ingressar na sociedade; II - pelos sucessores, após concluída a partilha do sócio falecido; III - pela sociedade, se os sócios sobreviventes não admitirem o ingresso do espólio ou dos sucessores do falecido na sociedade, quando esse direito decorrer do contrato social; IV - pelo sócio que exerceu o direito de retirada ou recesso, se não tiver sido providenciada, pelos demais sócios, a alteração contratual consensual formalizando o desligamento, depois de transcorridos 10 (dez) dias do exercício do direito; V - pela sociedade, nos casos em que a lei não autoriza a exclusão extrajudicial; ou VI - pelo sócio excluído. Parágrafo único. O cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio.

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ação de dissolução parcial, tendo como base cada uma das hipóteses englobadas por tal

procedimento, quais sejam, falecimento, retirada, recesso e exclusão de sócio.

Em se tratando do sócio falecido, o novo Códex disciplina três hipóteses, com três

legitimados diversos para a propositura da demanda (incisos I, II e III do referido artigo 600).

Na primeira hipótese é conferida a legitimidade ativa ao espólio do sócio falecido,

quando a totalidade dos sucessores deste não ingressarem na sociedade. Ora, inquestionável

que o legislador objetivou, em consonância com os entendimentos esposados pelos tribunais

pátrios, possibilitar o espólio do de cujus requerer a dissolução parcial da sociedade em que

este era sócio. Contudo, não obstante tal evidente intenção, este incorreu em atecnia na redação

do referido dispositivo. Isso porque “enquanto não finda a partilha dos bens, não há que se

cogitar de ingresso dos sucessores na sociedade” (ROSSONI, 2012, p. 341), na medida em que

somente ao final desta poderá identificar-se quem herdou as quotas, cabendo somente a esse o

ingresso na empresa. Dessa forma, condicionar a legitimidade do espólio ao não ingresso dos

herdeiros na sociedade mostra-se um verdadeiro contrassenso, haja vista que estes somente

poderiam entrar na empresa após finda a partilha, momento no qual o espólio já não mais

existiria.

Ademais, cumpre observar que, caso o espólio requeira a dissolução parcial, não será

partilhada entre os herdeiros as quotas do de cujus, mas sim o valor monetário correspondente

a estas, apurado nos autos processuais. Conclui-se, portanto, que o poder legiferante incorreu

em inegável imprecisão técnica, podendo ter, caso desejasse, condicionado o requerimento de

dissolução parcial pelo espólio à expressa de concordância da totalidade dos herdeiros, mas não

ao fato destes não ingressarem, de fato, na sociedade, o que somente poderia ocorrer em

momento posterior.

A segunda hipótese prevista na lei é aquela na qual os sucessores do de cujus, após finda

a partilha dos bens, requerem a dissolução parcial da sociedade. Nesta situação há a prévia

definição de quem são os herdeiros e sucessores do sócio falecido que ingressariam na

sociedade, manifestando estes, mediante o requerimento de dissolução parcial, sua intenção de

não integrar ou permanecer na empresa. Esclarece-se, neste ponto, que caso o herdeiro ou

sucessor não tenha ingressado na sociedade, este poderá requerer somente a apuração de seus

haveres, nos termos do inciso terceiro do artigo 599 do novo Códex (BRASIL, 2015).

Por fim, no que tange à terceira hipótese – dissolução requerida pela sociedade, se os

sócios sobreviventes não admitirem o ingresso do espólio ou dos sucessores do falecido na

sociedade, quando esse direito decorrer do contrato social -, cabe explicitar que tal dispositivo

legal prevê somente a hipótese de a sociedade requerer a dissolução parcial, em virtude de

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expressa previsão no contrato social neste sentido. Contudo, o diploma em análise não

estabelece a possibilidade dos sócios remanescentes, sem expressa previsão no contrato social,

requererem a dissolução parcial da empresa, não permitindo a entrada dos sucessores do sócio

falecido, em razão da inexistência de affectio societatis, elemento este reconhecido pelos

tribunais pátrios como de suma importância para a manutenção das sociedades de pessoas,

conforme anteriormente mencionado.

Ultrapassadas as questões relativas ao sócio falecido, o referido art. 600, em seu inciso

IV, estabelece que, na hipótese de não ser efetuada a alteração contratual no prazo de 10 (dez)

dias contados do exercício do direito de retirada ou recesso por um dos sócios, este poderá

propor a ação ora em análise. Cumpre destacar que, nesta hipótese, o sócio deverá requerer

tanto a dissolução parcial da sociedade quanto a apuração dos haveres, se esta não foi

igualmente efetuada. Isso porque, apesar do exercício dos direitos de retirada e de recesso

produzir efeitos de pleno direito, caberá ao Judiciário proferir decisão, de natureza declaratória,

dissolvendo a empresa, na medida em que a alteração contratual desta, com retirada do sócio,

não foi levada a registro para produção dos efeitos erga omnes.

Lado outro, quanto à exclusão do sócio, dispõe a Lei nº 13.105/15 (BRASIL, 2015) que

são legitimados a sociedade, nos casos em que a lei não autoriza a exclusão extrajudicial (art.

600, V), bem como o sócio excluído (art. 600, VI).

Inicialmente, no que se refere ao sócio excluído, este somente possuirá legitimidade

ativa para requerer a apuração de seus haveres, nos termos do artigo 599, inciso III, do Código

ora analisado, não podendo requerer, entretanto, a dissolução parcial da sociedade, haja vista

que o mesmo não mais compõe o quadro societário da empresa.

Em se tratando da legitimidade da ativa para requerer a exclusão de sócio, predominava

na doutrina e na jurisprudência pátrias o embate entorno de três entendimentos, quais sejam: (i)

que a parte legítima é apenas a sociedade;9 (ii) que tal legitimidade é somente dos sócios10; e,

(iii) que é necessária a formação de litisconsórcio necessário entre sócios e sociedade.11. Dessa

9 Nesse sentido, José Marcelo Martins Proença (2012, p. 434): “Dessa forma, por mais que sócios deliberem pela propositura de ação judicial de exclusão de sócio, é a sociedade a pessoa lesada pela falta grave cometida por algum sócio justificadora da exclusão e, portanto, é essa sociedade, e somente ela, que possui a legitimidade para excluir de seu quadro societário a pessoa que está prejudicando a sua continuidade e desenvolvimento.” No mesmo diapasão, decisão proferida pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em voto de relatoria do Desembargador Alexandre Marcondes, nos autos da Apelação nº 0004941-92.2012.8.26.0318, j. 03/02/2015 (SÃO PAULO, 2015). 10Com este entendimento, decisão proferida pela Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em voto de relatoria do Desembargador Romeu Marques Ribeiro Filho, nos autos da Apelação Cível nº 70038895827, j. 21/09/2011 (RIO GRANDE DO SUL, 2011). 11 Neste diapasão, cumpre asseverar entendimento de Pricilla M. P. Corrêa da Fonseca: “Com o advento do novel diploma, a iniciativa da ação, nos casos de expulsão de sócio motivada por falta grave no cumprimento de suas obrigações ou incapacidade superveniente, passou a ser sempre da maioria dos demais sócios (art. 1;030). (...) A sociedade também deverá fazer-se presente no pólo ativo da ação – em litisconsórcio necessário com os sócios –

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forma, a expressa previsão, no inciso V do mencionado art. 600, de que cabe à sociedade o

requerimento de exclusão do sócio pôs uma pá de cal no debate até então existente.

Cumpre asseverar, ademais, com relação à exclusão de sócio que

(...) é importante notar a existência de requisito negativo para se configurar a legitimidade da sociedade e seu interesse processual, qual seja, a impossibilidade de exclusão por via extrajudicial. Consagra-se, dessa forma, a regra da subsidiariedade da exclusão judicial em relação à extrajudicial. Assim, ingressando a sociedade judicialmente visando à exclusão do sócio, mesmo existindo a possibilidade de exclusão por meio de procedimento extrajudicial, faltaria interesse processual a esta. (ROSSINI, 2012, p. 343-344)

No que versa à legitimidade ativa, cabe pontuar, por fim, que o parágrafo primeiro do

referido artigo 600 prevê que “o cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união

estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que

serão pagos à conta da quota titulada por este sócio.”

Percebe-se, portanto, que com esta nova disposição legal, fica revogado tacitamente o

debatido artigo 1.027 do Código Civil (BRASIL, 2002), o qual dispõe que o cônjuge de sócio

que se separou judicialmente não pode exigir, desde logo, a parte que lhe couber na quota social,

podendo este somente concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade.

Certo é que tal artigo do Código Civil foi reiteradamente criticado pelos doutrinadores,

em virtude de sua confusa redação, bem como por não permitir que o ex-cônjuge se desligue

da sociedade, asseverando Priscila M. P. Corrêa da Fonseca que

Parece intuitivo que não se possa constranger o ex-cônjuge ou herdeiros deste a ficar indefinidamente jungidos à sociedade, em situação que se denota, à evidência, inconstitucional – eis que violadora do comando contido no art. 5º, XX, da Lei Maior. Cuida-se, ademais, de condição bastante incômoda e iníqua. É que, não tendo qualquer possibilidade de ingerência sobre a administração e o destino da sociedade, ficarão aqueles à mercê dos demais sócios (...) (FONSECA, 2007, p. 109)

Assim, com o novo Códex, findam-se as discussões então existentes acerca da

possibilidade ou não do ex-cônjuge requerer a apuração dos haveres, sendo retomado o

entendimento perfilhado pelo Superior Tribunal de Justiça, antes do advento do Código Civil

de 2002, nos autos do REsp nº 114.708-MG (BRASIL, 2001), no qual o Ministro Carlos Alberto

Menezes Direito asseverou:

porquanto é dela a obrigação de pagar os haveres do sócio que é compulsoriamente afastado.”(2007, p. 112) Este entendimento foi defendido, ainda, pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo nos autos da Apelação nº 0128274-90.2011.826.0100, julgada em 11/03/2015 (SÃO PAULO, 2015).

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Com mais razão, reconhecendo a controvérsia sobre a matéria e a linha do precedente da Corte, entendo agora que a mulher que recebeu em partilha a metade das cotas sociais tem legitimidade ativa para apurar os seus haveres, divergindo, assim, com todo o maior respeito, do voto do eminente Ministro Waldemar Zveiter, por quem tenho conhecida admiração. Não autorizar que tal seja possível, ou seja, vedar a legitimidade ativa nesses casos, significa negar valor ao bem partilhado, gerando conseqüências lesivas ao patrimônio do cônjuge meeiro. Se sócio não é, não se lhe pode negar o direito de apurar os seus haveres, que judicialmente foram-lhe deferidos.

Por fim, cumpre esclarecer que no dispositivo legal sob análise o legislador pátrio

estabeleceu três hipóteses nas quais o cônjuge ou companheiro podem ingressar com ação de

dissolução parcial, quais sejam, findo o casamento, a união estável ou a convivência. Contudo,

o poder legiferante não explicitou o que configura tal convivência, conceito este não

consolidado pelos tribunais pátrios. Assim, de modo a evitar futuras indagações acerca da

subsunção ou não de uma situação prática a esta norma, recomenda-se que seja pré-estabelecido

entre as partes a definição do conceito de convivência para fins de requerimento da dissolução

parcial da sociedade.

VII.II – Da legitimidade passiva

Em se tratando da legitimidade passiva para figurar na ação de dissolução parcial, o

artigo 601 da Lei nº 13.105/15 (BRASIL, 2015) dispõe em seu caput que “os sócios e a

sociedade serão citados para, no prazo de 15 (quinze) dias, concordar com o pedido ou

apresentar contestação.” Assim, frente a uma primeira leitura deste dispositivo concluir-se-á

que o legislador estabeleceu o litisconsórcio necessário entre os sócios remanescentes e a

sociedade, conforme entendimento majoritário dos tribunais pátrios12.

Contudo, em completa falta de uniformidade e em inquestionável atecnia, no parágrafo

único do referido artigo o poder legiferante estabeleceu que “a sociedade não será citada se

todos os seus sócios o forem, mas ficará sujeita aos efeitos da decisão e à coisa julgada.”

Ora, indene de dúvidas as inúmeras imprecisões técnicas incorridas pelo legislativo no

referido parágrafo, na medida em que, em completo desrespeito à personalidade jurídica

conferida às sociedades pela legislação pátria, a empresa foi igualada a mera totalidade de seus

12 Nesse sentido, cumpre transcrever trecho do voto proferido pelo Ministro Eduardo Ribeiro no julgamento do Recurso Especial nº 44.132/SP (BRASIL, 2015): “Passa a petição de recurso a sustentar a ilegitimidade da sociedade para figurar no processo. Malgrado o brilho com que exposta, a tese não merece ser acolhida. Certo que a pretensão de retirada, enquanto envolve modificação do contrato social, haveria de ser atendida pelos demais sócios e não pela sociedade. Entretanto, julgada procedente a ação, o patrimônio da sociedade, e não o pessoal dos sócios, é que arcará com o pagamento do que for devido aos que se retiram. Justifica-se, pois, sua presença no processo.” No mesmo diapasão, entendimento perfilhado pelo Superior Tribunal de Justiça nos Recursos Especiais nºs 105.667/SC (BRASIL, 2000) e 77.122/PR (BRASIL, 1996).

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sócios, esquecendo-se que esta possui objetivos e interesses próprios, os quais podem ou não

corresponder aos da totalidade dos sócios.

Assim, “a regra considera uma espécie de relação homogênea entre os sócios que não

necessariamente pode se compadecer com a realidade” (MATOS; YARSHELL, 2012, p. 230),

na medida em que

(...) enquanto na sociedade vigora o princípio majoritário, garantindo-se uma unidade de ação mesmo que se manifestem opiniões minoritárias divergentes, os sócios, enquanto sujeitos independentes, podem, no processo, adotar as mais variadas estratégias. Não há regra que imponha que os sócios adotem condutas convergentes ao defenderem os seus interesses. (ROSSONI, 2012, p. 347)

Portanto, haja vista que os sócios possuem ampla liberdade de defenderem, em juízo,

seus respectivos interesses individuais, o interesse da sociedade poderá restar irreversivelmente

prejudicado.

Ademais, tal dispositivo legal ofende, outrossim, princípios basilares de nosso

ordenamento, qual sejam, o devido processo legal e o contraditório (art. 5º, LV e LVI, CR/88),

vez que sujeita a sociedade aos efeitos da decisão a ser proferida no processo e da coisa julgada,

sem ao menos ser esta parte na demanda, impondo a esta, portanto, eventuais ônus processuais,

mas não possibilitando a defesa, em juízo, de seus interesses próprios.

Lado outro, cumpre observar a desarmonia entre os dispositivos integrantes do

procedimento especial em estudo, na medida em que o referido parágrafo primeiro do artigo

600 prevê hipótese na qual a sociedade não precisará integrar o polo passivo da demanda e, o

artigo 602 dispõe que “a sociedade poderá formular pedido de indenização compensável com

o valor dos haveres a apurar.”

Contudo, como a sociedade poderá formular, em sua contestação, pedido de indenização

compensável com o valor dos haveres se nem ao menos integra o polo passivo da demanda,

haja vista que desnecessidade de sua citação? Além disso, ainda que fosse admitida a

possibilidade dos sócios pleitearem a indenização, como substitutos processuais da sociedade,

o que por si só já é problemático em virtude de se tratar de pessoas distintas, surge um novo

questionamento, bem apresentado por Flávio Luiz Yarshell e Felipe do Amaral Matos:

(...) e se nem todos os sócios estiverem de acordo com o pleito de indenização? A hipótese longe de ser remota, é ponderável porque é possível que os sócios remanescentes, embora continuem na sociedade, tenham entre si posições diferentes acerca das providências a adotar em relação ao sócio que deixa ou que deixou a sociedade. (YARSHELL, MATOS, 2012, p. 230)

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Cumpre observar, por fim, que há evidente dissonância entre o mencionado parágrafo

único do artigo 600 e o parágrafo primeiro do artigo 604, o qual prevê que “o juiz determinará

à sociedade ou aos sócios que nela permanecerem que depositem em juízo a parte incontroversa

dos haveres devidos.”

Isso porque no parágrafo primeiro do artigo 604 não explicita de forma clara se, na

hipótese da sociedade não integrar a lide, esta poderá ser chamada a depositar os haveres, na

medida que, consoante anteriormente mencionado, esta está sujeita aos efeitos das decisões

proferidas nos autos, ou se, neste caso, caberá aos sócios o pagamento da parte incontroversa

dos haveres.

Não obstante tal falta de clareza, observa-se, ainda, quanto ao artigo 604, outra

imprecisão técnica incorrida pelo legislador, qual seja, a possibilidade de os sócios

remanescentes virem a arcar, com seu patrimônio pessoal, com haveres dos sócios retirantes,

falecidos ou excluídos. Ora, o pagamento dos haveres cabe única e exclusivamente à sociedade,

a qual possui personalidade e patrimônio diverso dos seus sócios, não podendo estes, em regra,

serem chamados a assumir os deveres da empresa. Tal assunção de custos somente seria

possível caso a responsabilidade dos sócios não fosse limitada, o que não é regra em nosso em

país, ou se houvesse a decretação da desconsideração da personalidade jurídica da empresa.

Dessa forma, frente às imprecisões técnicas supramencionadas, sobretudo, em relação à

possibilidade de a sociedade não integrar o polo passivo da demanda e dos sócios arcarem com

os haveres, os quais deveriam ser pagos pela sociedade, sugere-se a utilização do poder

conferido às partes pelo legislador, no artigo 19013 do diploma em análise, para sanar tais vícios.

Isso porque se depreende do disposto no referido artigo, podem as partes convencionar

as regras aplicáveis à demanda, mesmo antes do processo, de modo que, no caso em análise,

poderiam os sócios, no contrato social, prever que cabe unicamente à sociedade o pagamento

dos haveres, devendo esta necessariamente integrar o polo passivo da ação de dissolução parcial

de sociedade.

VIII - Conclusão

13 “Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.”

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O exame feito neste trabalho, longe de esgotar o tema ora versado, demonstra que o

novo Código de Processo Civil inovou substancialmente o ordenamento pátrio ao positivar o

procedimento de dissolução parcial da sociedade, até então construído, exclusivamente, pela

doutrina e jurisprudência pátrias.

Não obstante tal louvável prática, a qual sedimentou inúmeros temas controvertidos, tais

como, a possibilidade de dissolução parcial da sociedade anônima fechada e a legitimidade

ativa do ex-cônjuge, indene de dúvidas que o poder legiferante incorreu em imprecisões

técnicas, as quais poderão gerar, na aplicação deste novo procedimento especial, novas

controvérsias, sobretudo no que tange à legitimidade passiva da empresa e ao pagamento dos

haveres pelos sócios e não pela sociedade.

Referências Bibliográficas

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 365-388, mai/ago, 2016.

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Descumprimento do Interesse Público pelo Estado: Uma Análise Crítica do Caso de Pinheirinho

Violation of the Public Interest by the State: A Critical Analysis of the Pinheirinho’s Case

Maria Souza1

Marilene Petruci dos Reis Alves Pimenta2 Rayann Kettuly Massahud de Carvalho3

Resumo: O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise crítica da atuação do Estado na

promoção do interesse público, aqui entendido como efetivação de direitos fundamentais, em um caso específico, qual seja, o da ocupação de Pinheirinho em São José dos Campos. Parte-se de uma pesquisa bibliográfica, que busca a compreensão de conceitos primordiais como interesse público, desapropriação e direito à moradia, para, então, se analisar a ocupação in concreto e o modo pelo qual se deu a remoção. Busca-se, desse modo, fazer uma relação entre a atuação do Estado em relação ao Pinheirinho e seu papel de assegurar o interesse público e a concretização do direito à moradia, bem como de intervir no domínio privado para garantir o cumprimento da função social da propriedade.

Palavras-chave: Pinheirinho. Desapropriação. Moradia. Interesse Público. Abstract: This article has the aim of doing a critical analysis of the State actuation in the promotion

of the public interest, which can be understood as an effectuation of fundamental rights, in a specific case, which is the Pinheirinho’s occupation in São José dos Campos. It starts from a bibliographic search that aims the comprehension of primordial concepts like public interest, expropriation and right to housing to then analyze the occupation in concreto and the way that the removal happened. It pursuits thus to do a relation between the State actuation about Pinheirinho and his role of ensure the public interest and the concretization of the right to housing as well as intervene in the private domain to assure the greeting of social role of property.

Keywords: Pinheirinho. Expropriation. Housing. Public Interest.

1 Graduanda do oitavo período do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras – UFLA. 2 Graduanda do oitavo período do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras – UFLA. 3 Graduando do oitavo período do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras – UFLA.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 389-346, mai/ago, 2016.

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1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo fazer um estudo do caso de Pinheirinho, que

consistiu na remoção forçada de quase duas mil famílias de uma propriedade que, há décadas,

já não cumpria sua função social. É feita uma análise acerca do papel do Estado de efetivador

de direitos e garantias fundamentais, dentre eles o direito à moradia, e como tal função se

relaciona com a realização do interesse público.

Para isso, partiu-se de uma pesquisa bibliográfica para melhor entendimento dos

conceitos necessários para a compreensão da temática aqui tratada, bem como de um exame

metodológico indireto, por meio da análise de estudos publicados, realizados em meio à

comunidade do Pinheirinho, que descrevem com riqueza de detalhes a dinâmica de vida na

ocupação e os acontecimentos que levaram à remoção dos moradores ali instalados.

Dessa forma, parte-se da noção de que interesse público, em um Estado Democrático de

Direito, não pode mais ser entendido como simplesmente o interesse da coletividade, mas, de

modo a serem respeitadas as garantias individuais, deve ser relacionado à efetivação de direitos

fundamentais. Assim, o direito à moradia, enquanto direito fundamental e necessário à

concretização do princípio da dignidade humana, deve ser assegurado pelo Estado, com o fim

de se atingir o interesse público.

Tendo em mente o pressuposto de que muitos grupos vulneráveis possuem apenas a

posse do imóvel em que residem e não o título de proprietários, é feita uma análise acerca da

insegurança jurídica que permeia tais grupos. Posteriormente, argumenta-se que a propriedade,

não sendo direito absoluto, deve, necessariamente, cumprir sua função social, sob pena de sofrer

intervenção estatal como meio sancionatório. Assim, necessária se faz uma explanação acerca

do instituto da desapropriação, que pode ocorrer tanto para fins de garantia do interesse social

e de utilidade pública, quanto como meio sancionador pelo descumprimento da função social.

Por fim, passa-se a uma análise da ocupação do Pinheirinho e da remoção violenta por

que passaram as famílias que lá residiam, fazendo uma relação com o papel do Estado em

assegurar o direito à moradia e à dignidade, enquanto direitos fundamentais. Partindo-se do

pressuposto de que o Estado deve pautar seu agir pelo interesse público, o artigo visa a

demonstrar a maneira como ele agiu em sentido oposto ao promover a remoção. Em seguida,

se analisa a necessidade de intervenção do Estado na propriedade, no caso em questão, como

meio sancionador e como forma de atender ao interesse público.

2. Interesse público

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Como dito, este trabalho tem como um dos objetivos analisar o modo pelo qual a

Administração utiliza o princípio da supremacia do interesse público para fundamentar suas

ações. Tem-se como elemento basilar a análise de um suporte fático, qual seja, o caso de

Pinheirinho em São José dos Campos.

Contudo, antes de analisar o caso concreto, faz-se necessária a exposição de elementos

teóricos que são essenciais para a compreensão do supracitado caso, bem como uma análise

doutrinária do referido princípio do interesse público e sua evolução, do direito à moradia

enquanto direito fundamental, da relação entre direito à moradia e direito à propriedade e do

modo como ocorre a intervenção do Estado no domínio privado.

2.1. A concepção tradicional do princípio do interesse público

Tradicionalmente, a doutrina compreende o interesse público como um dos elementos

norteadores de todo o Direito Administrativo. Para Hely Lopes Meirelles (2000), há uma

superioridade do interesse público e, em um possível conflito, prevalece este em detrimento do

interesse privado. Nas palavras do próprio autor,

sempre que entrarem em conflito o direito do indivíduo e o interesse da comunidade, há de prevalecer este, uma vez que o objetivo primacial da Administração é o bem comum. As leis administrativas visam, geralmente, a assegurar essa supremacia do poder público sobre os indivíduos, enquanto necessária à consecução dos fins da Administração. (MEIRELLES, 2000, p.43).

Para Bandeira de Mello (2010), em entendimento semelhante ao de Hely Lopes

Meirelles, o interesse público é entendido como o interesse da coletividade, do corpo social; é

o interesse do todo, mas, ao mesmo tempo, não é a mera somatória dos interesses das partes.

Em rigor, o necessário é aclarar-se o que está contido na afirmação de que o interesse público é o interesse do todo, do próprio corpo social, para precatar-se contra o erro de atribuir-lhe o status de algo que existe por si mesmo, dotado de consciência autônoma, ou seja, como realidade independente e estranha a qualquer interesse das partes. O indispensável, em suma, é prevenir-se contra o erro de, consciente ou inconsciente, promover uma separação absoluta entre ambos, ao invés de acentuar como se deveria, que o interesse público, ou seja, o interesse do todo, é “função” qualificada dos interesses das partes, um aspecto, uma forma específica, de sua manifestação. (MELLO, 2010, p.59).

Bandeira de Mello faz uma distinção entre os interesses particulares que os indivíduos

possuem em suas vidas privadas e interesses que expressam no âmbito público. Trata-se de uma

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concepção em que há uma projeção de interesses individuais a um plano coletivo, um plano de

interesses comuns de todos os indivíduos. (BINENBONJM, 2008, p.87).

Assim, Bandeira de Mello, ao buscar o elemento de ligação entre o interesse público e

privado, acaba por não analisar a desvinculação entre ambos. A ligação retratada como orgânica

entre indivíduo e coletividade, como sendo intrínseca à ideia de sociedade, de Estado e de

Direito, acaba por levar o autor à compreensão de interesse público e interesse da coletividade

como sinônimos.

Evidencia-se, assim, a concepção da doutrina clássica de compreensão do interesse

público como interesse da coletividade, bem como de que há sobreposição do interesse da

coletividade sobre o interesse particular.

2.2. Interesse público e direitos fundamentais

Parte da doutrina4 vem questionando a compatibilidade entre o princípio do interesse

público (entendido meramente como o interesse da coletividade), a supremacia do interesse

público sobre o particular e a Constituição de 1988. (ACCIOLY; NETO, 2012, p. 53).

Segundo Marçal Justen Filho (2005, p.39), é de importância ímpar que não se confunda

interesse público com o interesse do Estado, com interesse dos agentes públicos, ou mesmo

interesse do aparato administrativo. Não seria possível definir o interesse público como o

interesse da coletividade, da maioria, pois se deve considerar o caráter contramajoritário da

ordem constitucional vigente, ou seja, do Estado Democrático de Direito, que objetiva à

proteção dos direitos das minorias. Também não seria possível buscar um único conteúdo para

o termo interesse público, pois se vive em uma sociedade plural, não havendo um único

interesse público, mas vários distintos e, por vezes, até antagônicos. (JUSTEN FILHO, 2005,

p. 42-43).

Portanto, não é admissível tratar o princípio do interesse público como sendo princípio

norteador do Direito Administrativo, como aponta a doutrina tradicional. Por ser um conceito

aberto, não é possível definir precisamente o que é interesse público. Assim, como a

Constituição de 1988 tutela uma infinidade de direitos públicos e privados, a atividade da

Administração deve pautar-se não pelo princípio da supremacia do interesse público, mas pela

efetivação e maximização dos direitos fundamentais, sejam eles de tutela individual ou coletiva.

(JUSTEN FILHO, 2005, p. 45).

4 Por exemplo: Humberto Ávila, Marçal Justen Filho, Gustavo Binenbojm, entre outros.

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Ao considerar que na democracia constitucional brasileira, tanto os interesses coletivos,

quantos os individuais são tutelados e são igualmente relevantes, o termo amplo “interesse

público” deve ser compreendido como a realização de interesses individuais e coletivos, sendo

ambos diretrizes para a administração pública. (BINENBONJM, 2008, p.104).

Note-se bem: não se nega a existência de um conceito de interesse público, como conjunto de “interesses gerais que a sociedade comete ao Estado para que ele os satisfaça, através de ação política juridicamente embasada (a dicção do Direito) e através de ação jurídica politicamente fundada (a execução administrativa ou judiciária do direito)”. O que se está a afirmar é que o interesse público comporta, desde a sua configuração constitucional, uma imbricação entre interesses difusos da coletividade e interesses individuais e particulares, não se podendo estabelecer a prevalência teórica e antecipada de uns sobre os outros. (BINENBOJM, 2009, p.105).

Para os dois autores, ao invés de se analisar a separação entre interesse privado e

público, eles se incorporam um ao outro. O interesse público é compreendido como garantidor

de demandas coletivas e ao mesmo tempo como garantidor de direitos individuais. Há a

preocupação, desse modo, de se maximizar a efetivação dos direitos fundamentais e não de

sobrepor o interesse de uma maioria sobre o direito de minorias.

Depois de compreender o interesse público não mais como mero direito da coletividade

abstrata, mas agora vinculado à efetivação dos direitos fundamentais, passa-se a analisar o

direito à moradia no caso de Pinheirinho.

3. Direito à moradia e o princípio da dignidade humana

A Constituição Federal de 1988 faz referência expressa ao direito à moradia no artigo

6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, alimentação, o trabalho, a moradia, a segurança

[...] na forma desta Constituição.” (grifo nosso) Ao tratar do direito à moradia, a legislação não

define seu conceito, cabendo à doutrina fazê-lo. Consoante entendimento de José Afonso da

Silva (2004),

o direito à moradia significa ocupar um lugar como residência; ocupar uma casa, apartamento etc., para nele habitar. No “morar” encontramos a idéia básica da habitualidade no permanecer ocupando uma edificação, o que sobressai com sua correlação como o residir e o habitar com a mesma conotação de permanecer ocupando um lugar permanentemente. Quer-se que garanta a todos um teto onde se abrigue com a família de modo permanente, segundo a própria etimologia do verbo morar do latim “morari”, que significa demorar, ficar [...]. (SILVA, 2004, p. 900)

O Professor Bernardo Gonçalves Fernandes (2015, p. 432) aponta o dever de se

interpretar de forma ampla, como qualquer local habitado que não seja aberto ao público,

utilizado para moradia.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 389-346, mai/ago, 2016.

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Importante ressaltar que o Direito à moradia só foi positivado na Constituição em 2010,

com a Emenda Constitucional nº 64. No entanto, mesmo antes da positivação, já era protegido

pelo ordenamento jurídico brasileiro, com base em tratados internacionais (DIAS; CALIXTO,

2015, p. 233) dos quais o Brasil é signatário, como por exemplo, a Declaração Universal dos

Direitos Humanos de 1948; o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Nova York,

1966); o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Nova York,

1966).5

Para além dos tratados internacionais, o Direito à moradia era tutelado domesticamente,

de modo implícito pela Constituição, como um direito fundamental decorrente do princípio da

dignidade da pessoa humana, visto que a moradia é mínimo essencial para garantir as

necessidades existenciais, bem como uma vida digna. (MARRA; GOLÇALVES, 2012, p. 142.)

Ao se abordar o direito à moradia, evidencia-se a impossibilidade de se desvincular o

princípio da dignidade humana dos direitos fundamentais e dos direitos sociais. Não há

dignidade se a pessoa não possui um local onde morar, condições mínimas de proteger sua

intimidade, privacidade, nem de se proteger do clima, de garantir segurança, bem-estar físico,

mental e social. Em síntese, para se efetivar a dignidade humana é necessário garantir o direito

à moradia. (MARRA; GOLÇALVES, 2012, p. 142).

Importante destacar que ao abordar do direito à moradia há grande preocupação em desenvolver a noção de moradia adequada. Ou seja, não bastam “quatro paredes e um teto” para que se configure uma moradia. Existem outros fatores que determinam se esta é adequada para atender à dignidade do cidadão ou não. E, além de fatores materiais como localização, acesso a serviços públicos básicos, condições de salubridade entre outros, existem fatores simbólicos ou afetivos ligados à noção de moradia. Trata-se de fatores que podem ser mais difíceis de serem objetivados, mas que devem ser levados em consideração, por exemplo, o vínculo existente entre as pessoas e o lugar em que a moradia está localizada (caso das comunidades quilombolas, indígenas, povos tradicionais da América Latina, entre outros), ou as relações de vizinhança estabelecidas, ou mesmo a existência de laços consanguíneos com determinadas famílias que ocupam o mesmo território. Este último caso pode ser exemplificado no processo de formação das favelas brasileiras. Ou ainda, a relação do morador que construiu a casa em que vive e possui uma série de relações afetivas com o lugar em que presenciou fatos importantes de sua vida. (DIAS; CALIXTO, 2015, p. 235).

5Além dos exemplos citados, há também outras convenções e tratados internacionais: Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Nova York, 1965); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Nova York, 1979); a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (Nova York,1989); a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (Nova York, 1990); e a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (Genebra, 1951).

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Neste ínterim, compreende-se o Direito à moradia como um desdobramento do princípio

da dignidade humana, tutelado por tratados internacionais e pela própria Constituição. O Direito

à moradia deve ser garantido de modo amplo, devendo se considerar uma série de questões

materiais e afetivas.

Feita uma análise teórica, no próximo tópico será analisado o modo como grupos

vulneráveis acessam esse direito fundamental, bem como a insegurança da posse e sua relação

com o direito à moradia.

4. O direito à moradia e o direito à posse e à propriedade

Tendo como base o relatório da ONU-Habitat de 2012, referente à América Latina e ao

Caribe, concluiu-se que, no Brasil, predominantemente, para se efetivar o direito à moradia,

utiliza-se da propriedade da moradia em que se vive. Porém, não se confunde ser proprietário

com a detenção de um título legalmente reconhecido, que garanta a propriedade de um bem.

Há muitos casos em que não há esse título, mas apenas a configuração da posse, o que se

denominou assentamento informal.

Assim, grande parte das pessoas se considera detentora da propriedade, mesmo tendo

apenas a posse. Entretanto, há uma grande fragilidade no exercício do direito à moradia

adequada nos casos em que as pessoas se afirmam como proprietárias de determinadas

moradias, mas sem amparo legal das propriedades do solo em que as construções foram

realizadas. (DIAS; CALIXTO, 2015)

4.1. Grupos vulneráveis e a insegurança jurídica da posse

A fragilidade supracitada afeta os grupos vulneráveis que vivem uma constante

insegurança jurídica da posse, pois historicamente, no Brasil, o solo foi e é ocupado de modo

desordenado, uma vez que não há, em regra, planejamento urbano. Desta feita, visando a

garantir o mínimo existencial, pessoas acabam por ocupar áreas públicas e privadas

(desocupadas, abandonadas, ociosas), dividindo a cidade em formal e informal. (GASPERIN,

2014, p. 2)

Os assentamentos informais são resultado da omissão do Estado, ao não garantir, nem

efetivar o direito fundamental à moradia adequada para esses grupos vulneráveis. Assim, as

populações desses assentamentos informais sofrem com a fragilidade de moradias irregulares.

(GASPERIN, 2014, p.2)

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Uma vez que ocupam áreas em que não há proteção legal ou áreas de risco, sofrem a

constante incerteza de terem que sair do local, de serem expulsas, seja por catástrofes naturais,

seja por remoções e despejos forçados, grilagem, entre outros. (DIAS; CALIXTO, 2015, p.

241-242).

Teoricamente, pelo princípio da função social da propriedade, as famílias que ocupam

essas áreas para a moradia, deveriam, com o tempo, tornar-se proprietárias destas. (GASPERIN,

2014). Para além do título individual, é possível o título coletivo, ou mesmo a garantia da posse

por períodos determinados. Contudo, “os ocupantes convivem com a precarização das moradias

e com a incerteza quanto à posse do lugar em que vivem.” (DIAS; CALIXTO, 2015, p. 244)

5. Intervenção do Estado no domínio privado: desapropriação por interesse social

e sancionatória

5.1. Conceito

A desapropriação consiste em um procedimento administrativo e judicial, no qual o

poder público ou seus delegados, com o intuito de atingir o interesse público, tomam para si o

direito de propriedade, mediante prévia e justa indenização. É a forma mais gravosa de

intervenção estatal na propriedade privada, já que a parte, mesmo sendo indenizada, perderá

sua propriedade. Dessa maneira, o Estado, de acordo com um motivo e visando a atingir a

finalidade de garantir que os interesses sociais, a utilidade ou a necessidade pública sejam

cumpridos, influi de forma agressiva no domínio privado. Sendo assim, fazendo uma analogia

à Teoria Geral do Processo, segundo Wilton Luis da Silva Gomes (2009, p. 57), a

desapropriação possui dois objetos, o imediato e o mediato. O primeiro consiste na aquisição

do direito de propriedade, enquanto o segundo é a finalidade na qual se motivou a execução.

Celso Antônio Bandeira de Melo (2014) conceitua a desapropriação com duas visões

diferentes:

Do ponto de vista teórico, pode-se dizer que desapropriação é o procedimento através do qual o poder público compulsoriamente despoja alguém de uma propriedade e a adquire, mediante indenização, fundada em um interesse público. Trata-se, portanto de um sacrifício de direito imposto ao desapropriado. À luz do Direto Positivo brasileiro se define como o procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, normalmente adquirindo para si, em caráter originário, mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais, em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida

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pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservando seu valor real. (MELLO, 2014, p. 889-890)

Embora possa haver essa separação de conceitos, é notável que um complementa o outro

a fim de equilibrar as duas posições. Para haver a intervenção do Estado no domínio privado, é

necessária a indenização justa e prévia, visto que o particular será afetado, perdendo sua

propriedade, com o fim de que sejam garantidos direitos fundamentais, como a moradia.

5.2. Espécies

Dentre as espécies de desapropriação, há duas em específico que serão de necessária

compreensão para a abordagem do presente artigo, quais sejam, a desapropriação sancionatória

e a desapropriação por interesse público.

5.2.1. Desapropriação sancionatória

Esta espécie de desapropriação pode ser denominada extraordinária. Conforme elencado

na Constituição, há dois tipos de desapropriação sancionatória: quando a propriedade deixa de

cumprir sua função social, seja ela urbana (art. 182, §2º, CF/88) ou rural (art. 184, CF/88), caso

em que a indenização será em títulos da dívida pública; ou ainda a expropriação (art. 243,

CF/88). (PIETRO, 2010, p. 159)

No presente trabalho, iremos tratar apenas da desapropriação sancionatória urbana que

está prevista na Lei 10.257/01. Neste caso, a desapropriação ocorre em imóveis urbanos, sendo

necessária legislação específica do município e previsão no plano diretor aprovado por lei. É a

mais drástica sanção oponível àquele que possui uma propriedade não edificada ou não

utilizada.

5.2.2. Desapropriação por interesse público

Esta espécie de desapropriação pode ser denominada ordinária e abrange três tipos:

necessidade pública, utilidade pública e interesse social. Está elencada no art. 5º, XXIV da CF,

que preceitua que a indenização deverá ser paga em dinheiro.

A necessidade e a utilidade pública têm como finalidade fazer com que o Estado atenda

a interesses gerais da sociedade. Já a desapropriação por interesse social está fundada no

principio fundamental da função social da propriedade. Para Bandeira de Melo,

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são hipóteses de desapropriação por interesse social, consoante dispõe o art. 2º da Lei 4.132, entre outras: o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve servir ou possa suprir por seu destino econômico; o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola, a construção de casas populares, a proteção do solo e a proteção de cursos e mananciais de água e de reservas florestais. (MELLO, 2014, p. 898).

Quando o Poder Público tenta diminuir as desigualdades se utilizando da desapropriação

como um instrumento fundamental da justiça, ele está pautado no interesse social, visando à

efetivação da função social da propriedade. Por isso, este tipo de desapropriação é a ferramenta

que o poder público possui para poder efetivar direitos fundamentais. (MARTINS, 2002, P. 86)

5.3. A diferença entre desapropriação e remoção

Quando uma propriedade, seja ela pública ou privada, é ocupada por famílias e o poder

público precisa retirá-las do local, há duas alternativas: desapropriação ou remoção.

Quando a área é regularizada e os proprietários possuem documentação, estes são

desapropriados e recebem pelo valor do terreno e pelas benfeitorias construídas. Entretanto,

quando a ocupação ocorre de maneira irregular e não há documentação, ou seja, quando os

moradores da área não são proprietários do terreno, ocorre a remoção, sendo aqueles

indenizados somente pelas benfeitorias. 6

Nos casos em que há a remoção, nota-se que é como se coexistissem duas cidades: a

cidade formal, que obedece aos padrões de urbanização previstos na legislação da cidade e

habitada pelos incluídos; e, do outro lado, o local em que se encontram as minorias, os

excluídos, que não possuem moradia formal, vivendo sem infraestrutura e em condições

precárias. (BERÉ, 2005, p. 164)

No contexto exposto acima, há um grave problema, qual seja, a não efetivação do direito

de moradia, que tem por consequência as ocupações irregulares. Quando o poder público

remove famílias do local onde vivem, é responsabilidade daquele fornecer nova moradia.

6. O caso de Pinheirinho em São José dos Campos

6Diferença entre remoção e desapropriação. Justiça em questão. 8´24´´. Disponível em:

<http://www.tjmg.jus.br/portal/imprensa/justica-em-questao/acervo-ocultado/diferenca-entre-remocao-e-desapropriacao.htm>. Acesso em fevereiro de 2016.

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O município de São José dos Campos está localizado na porção leste de São Paulo,

situado entre os principais eixos econômicos, Rio de Janeiro e São Paulo (Rodovia Presidente

Dutra), e próximo ao litoral norte de São Paulo e Porto de São Sebastião. O município se tornou

um polo tecnológico à custa de uma industrialização rápida e um crescimento sem planejamento

urbano. (MACHADO, 2014, p. 22) Assim, em que pese esse desenvolvimento econômico

surgiram déficits na infraestrutura, moradia e serviços urbanos.

A partir da década de 1970, ocorreu uma reestruturação na área urbana, de modo que

várias pessoas se mudaram para São José dos Campos. Contudo, não havia nenhum plano

habitacional e, com isso, a população de baixa renda foi migrando para regiões periféricas e

ocupou loteamentos e bairros clandestinos. (FORLIN; COSTA, 2010, p. 125)

Devido a esse déficit habitacional, o Pinheirinho, região sul de São José dos Campos,

foi ocupado por quase duas mil pessoas que não tinham onde morar. A ocupação ocorreu no

início de fevereiro de 2004 e perdurou até 2012. O terreno ocupado pertencia à massa falida da

empresa Selecta S/A, cujo proprietário era Naji Nahas, e foi abandonado, com dívidas na

Prefeitura referentes a impostos que não eram pagos há anos (MACHADO, 2014, p. 29).

Percebe-se, portanto, que esta área não estava cumprindo sua função social.

Houve todo um planejamento de ocupação da área de Pinheirinho. “À margem da

legalidade, uma infraestrutura foi montada.” (FORLIN; COSTA, 2010, p. 139) Na localidade

havia parque, comércio em geral, loteamentos distribuídos em porções iguais e, dentro de

Pinheirinho, existia um controle de segurança sobre quem entrava e saia da área.

Entretanto, estes moradores sempre sofreram retaliações por parte do município que não

lhe garantia uma vida digna e não possuía política habitacional capaz de atendê-los, querendo

retirá-los de lá.

A ocupação encontrava na cidade forte resistência, enfrentando inúmeras tentativas de desocupação por parte da Prefeitura. Notícias corriam pela cidade na tentativa de desqualificar seus moradores, como oferta de passagem de ônibus para que famílias retornassem à sua cidade natal, vinculando a idéia que a população residente do Pinheiro era “de fora de São José dos Campos”, como comenta Forlin e Costa (2010, p. 136). Outra notícia ventilada na cidade foi a multa de mil salários mínimos aos moradores, ou mesmo corte de fornecimento de água e luz e restrição de serviços públicos, como atendimento médico público. (MACHADO, 2014, p. 30)

Por meio de Mandados de Reintegração de posse, a Polícia Militar, por diversas vezes,

tentou desocupar a área, mas não obteve êxito. Os sindicatos de São José dos Campos, em

especial o dos metalúrgicos, sempre apoiaram a população de Pinheirinho. Entretanto, foi

concedida a liminar pela 6ª Vara Cível de São José dos Campos, em ação possessória,

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 389-346, mai/ago, 2016.

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permitindo a reintegração de posse em favor da Massa Falida e, de forma violenta, em janeiro

de 2012, Pinheirinho se tornou cenário de uma violenta reintegração de posse.

No dia 22 de janeiro de 2012, ainda pela madrugada, São José dos Campos entrava para a história do país com a reintegração de posse mais violenta presenciada até então. Um antigo acampamento de sem tetos na zona sul da cidade, ocupado por 1.750 famílias (cerca de 6.000 pessoas) em uma área particular de aproximadamente 1,3 milhão de metros quadrados. A forma com a qual foi tratada a reintegração chamou a atenção de toda mídia nacional e internacional. (VIEIRA, 2015, p. 08)

Este fato levou à destruição da moradia de milhares de pessoas, que acabaram sendo

levadas para abrigos. Quando saíram desses abrigos, passaram a receber R$500,00 para que

pudessem pagar aluguel, sendo-lhes prometido que, dentro de um ano e meio, seriam

construídas moradias populares. (MACHADO, 2014, p. 31) Desse modo, em 2013, as famílias

já deveriam estar realocadas. Contudo, o que se verifica é que, até hoje (2016), esse plano ainda

não foi concluído e as casas ainda não estão prontas.

Quatro anos após a desocupação de Pinheirinho, seus ex-moradores encontram-se

recebendo auxílio de R$500,00 provenientes do estado de São Paulo e do município. As

famílias estão à espera da entrega das moradias no Residencial Pinheirinho dos Palmares, como

foi prometido. Recentemente, após mais um atraso no planejamento, a Prefeitura informou que

em junho de 2016 as obras estarão concluídas.7

6.1. O direito à moradia da população de Pinheirinho e o interesse público

Conforme exposto acima, é assegurado constitucionalmente o direito à moradia, não

podendo ser este entendido como o mero possuir de um teto, mas também como acesso a

serviços básicos que propiciam a concretização da dignidade humana, além de fatores

simbólicos e afetivos e de vínculos entre as pessoas e o local em que moram.

Constata-se que, na ocupação do Pinheirinho, foram formados vínculos que

propiciavam que os moradores se sentissem realmente em um lar. Consoante estudo

aprofundado de Pedro Machado (2014), que realizou entrevistas com moradores do

Pinheirinho, verifica-se que os próprios moradores construíram suas casas, no começo com

apenas lona e estacas e, posteriormente, de alvenaria. Do mesmo modo, foram criados pequenos

7G1, Ex-moradores do Pinheiro protestam em São José dos Campos. Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2016/01/ex-moradores-do-pinheirinho-protestam-em-sao-jose-sp.html.> Acesso em 01 de fevereiro de 2016.

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comércios dentro da ocupação, pelos próprios moradores, de onde retiravam sua fonte de renda,

como bares, bombonieres, brechós, reciclagem, etc.

Desse modo, diante das dificuldades enfrentadas, os moradores do Pinheirinho se

mostravam orgulhosos de ter sua moradia, demonstrando isso em suas falas: “[...] minha casa

era considerada assim, uma [...] [das melhores] casas que tinha no Pinheirinho”; “fizemos

uma casinha muito bem feitinha e todo mundo ficava bobo de ver”. (MACHADO, 2014, p. 85)

Verifica-se, portanto, a construção da identidade daquelas pessoas naquele local e o fato de que,

embora serviços básicos fossem precários, dada a omissão do poder público de garantir

condições mínimas adequadas de sobrevivência, o Pinheirinho se tornou a verdadeira morada

de todas aquelas famílias que, antes, não possuíam nem mesmo um teto sob onde morar.

Portanto, tem-se que a remoção forçada destas famílias, retirando-as do local em que

construíram suas casas, estabeleceram seus comércios e sua fonte de renda, levando-as para

abrigos, com o pretexto de serem construídas moradias populares, que até o presente momento

(março de 2016) ainda não foram finalizadas, constitui grave violação ao direito à moradia,

constitucionalmente positivado. Sendo referido direito consectário do princípio da dignidade

da pessoa humana, percebe-se, por conseguinte, a grave violação de um direito fundamental.

Partindo-se da premissa de que o interesse público está intrinsecamente ligado à

efetivação de direitos fundamentais, superada a noção de que o interesse público se confundiria

com o interesse da coletividade, porquanto contrária à noção de Estado Democrático de Direito,

como já exposto no início deste artigo, infere-se que a remoção das famílias da ocupação do

Pinheirinho, ao violar o direito fundamental à moradia, bem como a dignidade humana, viola

também o interesse público – este entendido como a realização de direitos individuais e

coletivos, que deve pautar a atuação da Administração Pública. (JUSTEN FILHO, 2005)

Nesse sentido, diante do antagonismo entre o direito à moradia da comunidade do

Pinheirinho e o direito à propriedade da massa falida, tomando-se por base o princípio da

dignidade humana e a noção de direitos fundamentais, o Estado deveria garantir o direito à

moradia. Sua atuação no sentido de remover, mediante poder de polícia, tais famílias do local,

vai de encontro ao interesse público, princípio basilar do agir administrativo.

6.2. A intervenção do Estado na propriedade e o interesse público

Consoante já tratado neste artigo, a desapropriação é a forma de intervenção mais

drástica do Estado na propriedade e ocorre tanto por interesse social e utilidade pública, quanto

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como meio sancionador para aqueles cuja propriedade não cumpre sua função social, conforme

previsto na Constituição Federal.

A função social, introduzida no conceito de direito subjetivo, suscita o entendimento de que o ordenamento jurídico apenas concederá merecimento à persecução de um interesse individual quando este apresentar uma relação de compatibilidade com os anseios sociais que com ele se relacionam. O individualismo exacerbado cede lugar ao direito subjetivo direcionado à realização dos princípios da justiça e do bem-estar social. (SANTIS, 2009, p. 46)

Desse modo, o que se verifica é que “a função social é uma condição sine qua non para

que seja garantido o direito de propriedade. Esta passa a compor intimamente o instituto da

propriedade, estabelecendo seus contornos. Assim, qualquer propriedade (não só a de bens

imóveis) deverá atender à função social.” (GOMES, 2009, p. 87) Se isso não ocorre, o Estado

tem legitimidade para intervir no direito à propriedade, não podendo este mais ser entendido

em sentido absoluto, para garantir o interesse público – este, como já explanado,

intrinsecamente ligado à concretização de direitos fundamentais.

Constata-se que, em relação ao Pinheirinho, a área ocupada, pertencente à massa falida

da empresa Selecta S/A, “não cumpre sua função social desde a década de 1970, quando foi

adquirida [...]”, pois descumpre o plano diretor do município, sendo que os proprietários não

pagam o IPTU do terreno desde 1983 e a dívida com a Prefeitura de São José dos Campos já

chegaria a R$ 6 milhões de reais, o que corresponde ao valor venal da área. (FORLIN; COSTA,

2010, p. 143)

Portanto, tem-se que, não cumprindo a propriedade de Naji Nahas sua função social, o

Estado detém a legitimidade para realizar sua forma de intervenção mais drástica, qual seja, a

desapropriação.

Mas, para além disso, verifica-se que, no Pinheirinho, não só a propriedade da massa

falida não cumpria sua função social, como seu abandono deu ensejo à ocupação por quase duas

mil famílias que, em virtude da omissão da Prefeitura em suprir o déficit habitacional do

município, não possuíam moradia e, pouco a pouco, sob a liderança de movimentos sociais e

do PSTU, foram construindo suas casas e seus comércios.

Sendo assim, constituindo o direito à moradia um direito fundamental, necessário à

concretização da dignidade humana, e devendo a Administração Pública se pautar na efetivação

de direitos fundamentais como meio de realizar o interesse público, tem-se cabível a

desapropriação da referida área por interesse social e utilidade pública.

Constatado o dever do Estado de desapropriar o terreno da massa falida, seja como meio

sancionatório devido ao descumprimento de sua função social, seja por interesse social para a

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concretização do direito fundamental à moradia e, por conseguinte, do interesse público,

verifica-se que ele agiu na contramão daquilo que deveria pautar sua atuação.

Consoante Forlin e Costa (2010),

a PMSJC já tentou por mais de dez vezes desocupar a área. Mandados de reintegração de posse foram efetivados por ela, sendo derrotados pelas diversas iniciativas políticas e jurídicas, tanto dos moradores da ocupação quanto dos sindicatos da cidade, em especial do Sindicato dos Metalúrgicos. [...] A atitude da Prefeitura, desde a ocupação do Pinheirinho, tem sido de desqualificar e atacar o movimento dos sem-teto, [...]. No começo da ocupação, até mesmo multa estipulada em mil salários mínimos foi ventilada a ser aplicada pela Prefeitura caso casas de alvenaria e ruas fossem construídas no acampamento. (FORLIN; COSTA, 2010, p. 140)

Desse modo, conclui Dias e Calixto (2015) que

O Estado – notadamente no contexto brasileiro - ao invés de buscar formas de efetivar a segurança da posse, é responsável pela expulsão dos moradores da ocupação, disponibilizando o aparato policial necessário para o cumprimento de decisões judiciais de despejo. A forma de regulação da propriedade privada urbana e a ação limitada do poder público para tornar efetivo novo paradigma jurídico revelam que a função social da propriedade ainda não é considerada fonte de mudança e de justiça social, a partir da ordem jurídica. (DIAS; CALIXTO, 2015, p. 244)

Portanto, se verifica que, no caso de Pinheirinho, o Estado, ao promover a remoção

forçada das famílias que ocupavam uma extensa propriedade que já não cumpria sua função

social há cerca de três décadas, não promovendo a desapropriação do terreno como meio

sancionador e nem de garantia do interesse social, não apenas violou o direito à moradia, como

também agiu contrário à premissa básica que deve pautar o agir administrativo, qual seja, o

interesse público, entendido aqui como efetivação dos direitos e garantias fundamentais.

7. Conclusão

A partir do exposto no presente trabalho, conclui-se que o atuar da Administração

Pública deve ter sempre por diretriz o interesse público, não podendo ser este mais entendido

como o interesse da coletividade, mas como meio de efetivação dos direitos fundamentais. A

busca pela concretização do interesse público permite a intervenção do Estado na propriedade

privada como meio de garantir, dentre outros direitos, a dignidade humana e a moradia. Além

disso, não é cabível falar em propriedade enquanto direito absoluto após a Constituição de 1988,

visto que deve sempre cumprir sua função social para que seja legítima, sob pena de passar por

um processo de desapropriação como meio sancionador.

A remoção das famílias da comunidade do Pinheirinho por parte da Prefeitura de São

José dos Campos não apenas constitui grave violação ao direito à moradia e à dignidade humana

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(e, por conseguinte, ao interesse público), como também representa a violação do princípio

constitucional da função social da propriedade, visto que, se tratando de uma área abandonada

que não adimplia nem mesmo com os impostos municipais, deveria ter sido desapropriada com

finalidade sancionatória.

Portanto, a Prefeitura de São José dos Campos, ao privilegiar o direito à propriedade de

uma massa falida, que sequer cumpria sua função social, em detrimento do direito à moradia

de quase duas mil famílias, age, escancaradamente, em sentido contrário à principal diretriz da

atuação administrativa, qual seja, a efetivação do interesse público.

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VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação

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O Controle de Imigração e o Direito à Educação das Crianças Migrantes Irregulares

Immigration Control and the Right to Education to I rregular Migrant Children

Mariana Ferolla Vallandro do Valle1

Resumo: O presente artigo aborda as prerrogativas dos Estados de tomarem medidas de controle

de imigração em suas fronteiras em oposição à obrigação de garantir o direito à educação a todas as crianças em seu território. Essa obrigação é oponível ao Estado ainda que a criança tenha o estatuto de migrante irregular, sendo que qualquer discriminação com base nesse estatuto só pode ser efetuada em conformidade com estritas condições e não pode equivaler a uma negação total do direito à educação. Apesar disso, nota-se que a prática nos Estados ainda é, em sua maioria, de barrar o acesso à educação a crianças migrantes irregulares, seja diretamente ou pela prática das escolas. Devido aos esforços para minar esse tipo de imigração, a utilização da detenção como medida de controle migratório também é feita de modo a impedir o acesso à educação a essas crianças, violando o direito internacional.

Palavras-chave: Migrantes irregulares. Crianças migrantes. Direito à educação.

Abstract: This article addresses States’ prerrogatives to take measures of immigration control within their borders as opposed to the obligation to guarantee the right to education to all children in their territory. This obligation is opposable to States even if the child has an irregular migratory status and any discrimination based on the latter can be performed only in conformity with strict conditions and cannot be equivalent to a total denial of the right to education. Despite this, we note that the practice in State is, mostly, barring access to education to irregular migrant children, either directly or by the schools’ practice. Due to the efforts taken to undermine this kind of immigration, the use of detention as a measure of migratory control is also made in a way that prevents access to education to these children, in violation of international law.

Keywords: Irregular migrants. Migrant children. Right to education.

1 Universidade Federal de Minas Gerais, atualmente em intercâmbio de graduação na Université Laval (Canadá).

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 407-428, mai/ago, 2016.

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1. Introdução

Nos últimos anos, a comunidade internacional tem presenciado uma intensificação dos

fluxos migratórios, sobretudo aqueles efetuados de maneira irregular. Embora seja difícil

encontrar estatísticas precisas sobre o número de migrantes irregulares, exatamente porque

estes não se conformam às regulações de entrada dos Estados, a Organização Internacional para

a Migração (2014, p. 3) estimou que existem ao menos 50 milhões desses migrantes no mundo

e apenas na União Europeia (2015) foi registrado um aumento de 138% no número de migrantes

irregulares em 2014 comparado a 2013.

Dados acerca de quantos desses migrantes irregulares são crianças são ainda mais raros

(PICUM, 2011, p. 8). Existe, entretanto, um consenso de que existem cada vez mais crianças

migrantes no mundo (BHABHA, 2012, p. 210) e essa situação tem se tornado grande fonte de

preocupação em diversos Estados receptores (PICUM, 2012, p. 1; AFP, 2014).

A irregularidade da entrada cumulada com a pouca idade coloca crianças migrantes não-

documentadas em situação de especial vulnerabilidade. Essas circunstâncias são agravadas pelo

fato de que, ao tentar coibir os fluxos de migrantes irregulares, por vezes Estados acabam por

limitar o acesso dessas crianças a alguns direitos sociais (PICUM, 2011, p. 6), dentre eles o

direito à educação. Cria-se, assim, uma tensão entre os poderes soberanos do Estado em

controlar a imigração e os direitos migrantes irregulares crianças.

O presente artigo analisará a questão do acesso ao direito à educação, conforme disposto

no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e na

Convenção sobre os Direitos da Criança (CDE), das crianças que se encontram sob a jurisdição

de um Estado com um estatuto de imigração irregular e a conciliação desse direito com as

medidas de controle migratório pelo Estado. Mais especificamente, este artigo visa a identificar

em que medida os Estados são obrigados a garantir o acesso à educação a essas crianças e como

a prática dos Estados em geral se conforma, ou não, a essa obrigação, identificando também as

principais dificuldades de menores migrantes irregulares em exercer esse direito.

A fim de responder essas questões, analisaremos a princípio a questão do controle de

imigração e sua relação com os direitos humanos, demonstrando que a prerrogativa dos Estados

de recusar a entrada de pessoas em seu território não o exime de garantir os direitos humanos

daqueles sob sua jurisdição. Em seguida, será discutido se o estatuto migratório pode ser

considerado como um motivo de discriminação segundo o PIDESC e a CDE e quais condições

devem ser preenchidas para justificar um tratamento diferencial com base no mesmo. Serão

avaliadas, então, as circunstâncias do acesso à educação por crianças migrantes irregulares com

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VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação

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base na prática de Estados grandes receptores de imigrantes na Europa – sobretudo Bélgica,

França, Grécia, Holanda, Itália, Reino Unido, Suécia e Espanha – e na América – Brasil, Canadá

e Estados Unidos. Finalmente, serão abordados o uso da detenção administrativa como medida

de controle de imigração para crianças e os impactos dessa medida sobre o acesso à educação.

Nesse ponto, será analisada a prática de Estados que, além de servirem de destino para um

grande número de migrantes irregulares, utilizam-se usualmente de medidas de detenção

administrativa, quais sejam Austrália, Bélgica e Reino Unido.

2. O controle de imigração e o respeito aos direitos humanos

A soberania estatal é um dos princípios de base da ordem internacional e traduz-se pelo

poder de exercer, sobre uma porção de território, de maneira exclusiva, as atividades próprias

de um Estado (INTERNACIONAL, 1928, p. 839). Um corolário dessa prerrogativa é o poder

de controlar suas fronteiras (KOSER, 2005, p. 4). Ao realizar esse controle, cabe ao Estado

decidir quem terá autorização para entrar em seu território e quais procedimentos deverão ser

seguidos para se obter tal autorização. O direito internacional não regula diretamente esses

mecanismos de controle, deixando-os ao domínio reservado (domaine reservé) dos Estados

(GUIRAUDON & GALLYA, 200, p. 167).2

A entrada de indivíduos no território de um Estado sem se conformar aos procedimentos

relevantes é frequentemente vista como uma ameaça a esse poder soberano (KOSER, 2005, p.

10). Em razão disso, as autoridades governamentais estabelecem diversos mecanismos para

processar as pessoas em situação de imigração irregular com vistas a regularizar seu estatuto

ou retirá-las do país.

À primeira vista, todas essas medidas são legítimas, visto que o Estado não é obrigado

a admitir quem quer que seja em seu território. Entretanto, esse fato não o libera de suas outras

obrigações internacionais, particularmente aquelas referentes aos direitos humanos. Estas são

ativadas cada vez que um indivíduo se encontra sob o território ou sob a jurisdição do Estado –

isto é, sob o controle de fato de suas autoridades (MILANOVI Ć, 2008, p. 447).

Apesar do fato de que o PIDESC não contém qualquer dispositivo que precise seu

campo de aplicação, a Corte Internacional de Justiça já estabeleceu que ele se aplica a qualquer

2 O mesmo foi admitido pelo Comitê de Direitos Humanos, embora se referindo ao âmbito específico do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Ver : COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. Observation générale nº 15. Récapitulation des observations générales ou recommandations générales adoptées par les organes crées en vertu d’instruments internationaux relatifs aux droits de l’homme. Doc NU HRI/GEN/1/Rev.6. p. 146-149. 2003. para 5.

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pessoa sob o território do Estado ou submetida à sua jurisdição (INTERNACIONAL, 2004,

para. 112). Ademais, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CDESC) (2009,

para. 30) também exprimiu que a conformidade com as obrigações do Pacto é exigida

independentemente do estatuto da pessoa segundo o direito interno. Isso é devido ao fato de

que o estatuto migratório pode variar no tempo e pode mesmo ser regularizado.

Por sua vez, a CDE (BRASIL, 1990) estipula expressamente, em seu artigo 2 (1), que

ela é aplicável a qualquer criança sob a jurisdição do Estado. Segundo o Comitê dos Direitos

da Criança,

[a]s obrigações estatais sob a Convenção se aplicam dentro das fronteiras do Estado, incluindo a respeito das crianças que passam a estar sob a jurisdição do Estado ao tentar entrar no território do país. Portanto, o gozo dos direitos estipulados na Convenção não se limita a crianças que são cidadãs do Estado parte e deve, salvo indicação contrária expressa da Convenção, ser acessível a todas as crianças – incluindo as crianças solicitantes de refúgio, refugiadas ou migrantes – sem consideração de sua nacionalidade, de seu estatuto a respeito da imigração ou de sua apatridia (COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA, 2005, para. 12).3

Logo, o status irregular de um migrante não é fator que torna os tratados de direitos

humanos inaplicáveis.

Deve-se ressaltar, contudo, que esses tratados tampouco constituem um impedimento às

medidas de controle de imigração impostas pelo Estado, como a detenção administrativa ou a

expulsão (EUROPA, 1977, para. 4, 7; EUROPA, 1997, para. 3-4). Impõem-se apenas alguns

limites quanto ao modo como são feitas; desde que os direitos dos migrantes sejam respeitados

durante todos os momentos em que eles se encontram sob a jurisdição do Estado – o que inclui,

particularmente, as condições da detenção e a observância do princípio do non-refoulement

(EUROPA, 1977, para. 6) –, as autoridades estatais têm liberdade para agir de modo a barrar a

imigração irregular.

3. O estatuto migratório como um motivo de discriminação

Uma vez que os tratados de direitos humanos são oponíveis a um Estado, os dispositivos

neles contidos devem ser respeitados sem discriminação. Essa obrigação deriva do artigo 2 (2)

3 Tradução feita pela autora. Original: Moreover, State obligations under the Convention apply within the borders of a State, including with respect to those children who come under the State’s jurisdiction while attempting to enter the country’s territory. Therefore, the enjoyment of rights stipulated in the Convention is not limited to children who are citizens of a State party and must therefore, if not explicitly stated otherwise in the Convention, also be available to all children - including asylum-seeking, refugee and migrant children - irrespective of their nationality, immigration status or statelessness. (COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA, 2005, para. 12).

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do PIDESC, bem como do artigo 2 (1) da CDE, e é considerada como um pré-requisito essencial

para o gozo dos demais direitos humanos.

A não discriminação constitui uma obrigação de realização imediata para o Estado, de

modo que este não pode se eximir de respeitá-la com base em uma alegada falta de recursos

suficientes (CDESC, 2009, para. 7). Uma discriminação compreende toda distinção, exclusão,

restrição, preferência ou todo outro tratamento diferenciado fundado (direta ou indiretamente)

sobre um motivo proibido e que compromete o gozo dos direitos reconhecidos nos tratados de

direitos humanos (CDESC, 2009, para. 7).

Embora o estatuto migratório não esteja expressamente listado como um motivo

proibido de discriminação nos artigos mencionados acima, essa lista não é exaustiva, visto que

os dois dispositivos se referem também à distinção a respeito de “qualquer outra condição”

(BRASIL, 1992, art. 2 (2); BRASIL, 1990, art. 2(1)). Certos Estados sustentaram então que o

estatuto migratório não poderia ser considerado como um motivo de discriminação, visto que

se trata de uma classificação jurídica e não de uma característica pessoal do indivíduo

(EUROPA, 2011a, para. 25). Todavia, essa interpretação não foi seguida pelos órgãos

internacionais de proteção dos direitos humanos (CDESC, 2009, para. 30; (OEA, 2003, para.

118; EUROPA, 2011a, para. 45-46).

Em sua Observação Geral n. 20, o CDESC (2009, para. 30) menciona que o estatuto

migratório está incluído no critério de nacionalidade enquanto motivo proibido de

discriminação. Além disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), além de

ressaltar o caráter jus cogens da não discriminação (OEA, 2003, para. 101), afirmou também

que a caracterização de um indivíduo como um migrante irregular não justifica a adoção de

medidas discriminatórias (OEA, 2003, para. 118). Por fim, a Corte Europeia de Direitos

Humanos (CEDH) estabeleceu que, embora o estatuto migratório não seja uma característica

imutável do indivíduo, trata-se ainda de um estatuto que pode gerar diferenças de tratamento

entre pessoas em situações semelhantes e, logo, de um motivo de discriminação (EUROPA,

2011a, para. 45-46).

Entretanto, o fato de que o estatuto migratório seja percebido como um motivo proibido

de discriminação não significa que os Estados não possam jamais realizar distinções de

tratamento com base no mesmo. Primeiramente, deve-se reconhecer que o próprio artigo 2 (3)

do PIDESC permite aos Estados em desenvolvimento escolherem em que medida os direitos

dispostos no Pacto serão garantidos aos não-nacionais. Todavia, além das discussões a respeito

de o que seria um Estado em desenvolvimento, esse dispositivo permite tão-somente uma

discriminação entre os nacionais e os estrangeiros, e não entre diferentes categorias destes

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últimos. Assim, uma discriminação que afeta unicamente os migrantes irregulares não pode ser

justificada com base no artigo 2 (3).

Por outro lado, como ocorre como todo motivo de discriminação, uma distinção será

admitida se ela é objetiva, razoável e busca a realização de um fim legítimo (CDESC, 2009,

para. 13; COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS, 1990, para. 13; OEA, 2003, para. 105, 119;

EUROPA, 1996, para. 42). Para ser razoável, a discriminação deve ser estabelecida por uma lei

que tenha um liame claro e razoável de proporcionalidade entre seu fim e as medidas tomadas

ou os efeitos destas (CDESC, 2009, para. 13). Essas condições foram abordadas de formas

diferentes pelo CDESC e pela CEDH no que diz respeito à imigração irregular e ao gozo dos

direitos econômicos, sociais e culturais.

De acordo com o CDESC (2009, para. 13), os Estados devem agir sem demora contra a

discriminação e a persistência desta com base em uma falta de recursos disponíveis pode ocorrer

unicamente se o Estado demonstrar que, antes de permitir a diferença de tratamento, fez todos

os seus esforços para eliminá-la. Ausente tal justificativa por parte do Estado, a distinção não

será nem objetiva nem razoável.

Por sua vez, a Corte Europeia não faz referência às considerações do CDESC, mas

enfatiza a discrição que os Estados possuem ao avaliarem se e em que medida um tratamento

diferenciado é justificado entre pessoas em situações semelhantes (EUROPA, 2011b, para. 52).

Ao mesmo tempo, a Corte considerou que uma diferenciação baseada na nacionalidade deve

ser apoiada por “considerações muito fortes” para que ela esteja em conformidade com a

Convenção Europeia de Direitos Humanos (EUROPA, 1996, para. 42; EUROPA, 2010, para.

37). Essa mesma formulação foi empregada pela CEDH em casos nos quais o motivo de

discriminação em questão era o estatuto migratório irregular dos requerentes (EUROPA, 2011a,

para. 37; EUROPA, 2011b, para. 52).

Ademais, a Corte Europeia formulou também algumas observações acerca da legalidade

da discriminação quando o objeto desta compreende direitos econômicos, sociais e culturais.

Segundo a CEDH, como as prestações sociais são serviços públicos que consomem muitos

recursos estatais, a imposição de critérios para a alocação de tais prestações entre a população

e mesmo a limitação do acesso a estas a certas categorias de não-nacionais constituiriam um

fim legítimo (EUROPA, 2011a, para. 49; EUROPA, 2011b, para. 54). Além disso, a Corte

estimou que os Estados possuem uma margem de apreciação bastante ampla a respeito de suas

políticas econômicas e sociais (EUROPA, 2011a, para. 37; EUROPA, 2011b, para. 52), visto

que as autoridades nacionais estão mais bem posicionadas para avaliar a situação no local

(EUROPA, 2011a, para. 37; EUROPA, 2006a, para. 52). Assim, a interferência da CEDH

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nessas políticas se limitaria aos casos em que estas são manifestamente desprovidas de base

razoável (EUROPA, 2006a, para. 52).

Em razão dessas considerações, a CEDH decidiu, no caso Bah v. Reino Unido, que a

prática do Estado de não conceder prioridade à alocação de moradia a uma mulher cujo filho

tinha um estatuto de imigração irregular não violava a obrigação de não discriminação

(EUROPA, 2011a, para. 52). Todavia, devem-se notar as particularidades desse caso: como a

própria Corte ressaltou, os requerentes não ficaram em momento algum efetivamente sem

moradia e haviam obtido um aluguel no setor privado com o auxílio das autoridades locais

(EUROPA, 2011a, para. 51). Por outro lado, em outros casos em que o acesso às prestações

sociais havia sido completamente negado aos estrangeiros, a Corte considerou a discriminação

como ilícita (EUROPA, 2010, para. 33, 42; EUROPA, 2005, para. 34; EUROPA, 2009, para.

50-52).

Embora se admita que estes últimos casos diziam respeito a refugiados ou migrantes

regulares, a CEDH também julgou existir uma discriminação ilícita no caso Ponomaryovi v.

Bulgária, no qual duas pessoas haviam perdido seu estatuto de imigração regular ao completar

18 anos e não puderam terminar o último ano escolar devido às taxas consideráveis que lhes

foram impostas como consequência (EUROPA, 2011b, para. 63). Nesse caso, a Corte ressaltou

o fato de que os requerentes já haviam iniciado os procedimentos para regularizar seu estatuto

e de que o Estado não havia demonstrado qualquer intenção de deportá-los (EUROPA, 2011b,

para. 60). Portanto houve, na realidade, uma negação total do direito à educação a pessoas que

se encontravam sobre o território e sob a jurisdição do Estado, sem uma justificativa razoável,

mesmo segundo os critérios da CEDH.

O grau de justificativa das medidas discriminatórias relativas aos direitos econômicos,

sociais e culturais adotado pela CEDH é, assim, menos severo do que o estabelecido pelo

CDESC, em razão da ampla margem de apreciação garantida aos Estados. Todavia, embora o

tribunal não o tenha afirmado expressamente, a jurisprudência da CEDH parece levar em

consideração o fato de se o gozo do direito foi limitado ou realmente impedido; enquanto uma

prioridade em relação a tal gozo garantida aos nacionais ou aos migrantes com estatuto

migratório regular foi considerada legítima pela Corte, esta não validou as situações em que o

direito foi de fato negado. Além disso, uma negação do direito poderia mesmo constituir uma

violação da obrigação de garantir ao menos o essencial do direito ao indivíduo, a qual também

possui um caráter imediato aos Estados partes do PIDESC (CDESC, 1990, para. 10).

No que diz respeito às crianças com um estatuto de imigração irregular, o Comitê dos

Direitos da Criança (2005, para. 18) interpretou as regras sobre a não discriminação de maneira

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ainda mais restrita. Segundo o mesmo, além dos critérios de razoabilidade e legitimidade do

fim, qualquer discriminação deve ser feita de forma individualizada e nunca de maneira

coletiva. Ademais, o princípio do interesse superior da criança deve ser considerado em todos

os momentos, o que torna ainda mais difícil justificar uma discriminação em relação aos direitos

econômicos, sociais e culturais a uma categoria determinada de crianças (NGUEMA, 2015, p.

28).

Assim, apesar das variações em relação ao grau de justificativa que deve ser apresentado

pelos Estados quando ocorre uma discriminação quanto à garantia dos direitos econômicos,

sociais e culturais a imigrantes irregulares, ainda é claro que uma negação completa desses

direitos, enquanto que outras categorias de migrantes podem gozar dos mesmos, constituirá

uma discriminação ilícita. Em seguida, analisaremos o papel dessas considerações em relação

ao direito à educação e às crianças migrantes irregulares.

4. O direito à educação às crianças migrantes irregulares

O direito à educação está expresso nos artigos 13 e 14 do PIDESC e 28 e 29 da CDE.

Esses dois instrumentos estipulam que os Estados instaurem a gratuidade e o caráter obrigatório

do ensino primário a todos, ao passo que o ensino secundário deve se tornar acessível a todos,

por todos os modos apropriados – por exemplo, pela instauração progressiva da gratuidade e

pelo oferecimento de auxílios financeiros.

O objetivo do direito educação é o pleno desenvolvimento da personalidade humana e

o senso de dignidade da pessoa, criando a possibilidade de que ela tenha um papel útil na

sociedade (CDESC, 1999, para. 4). O Comitê dos Direitos da Criança (2001, para. 2) ressalta

também que o gozo desse direito permite o desenvolvimento da autonomia da criança, de suas

competências e da confiança em si mesmo. À luz desses fins, a educação é uma medida de

proteção especial à criança e possui uma importância fundamental para que esta possa viver sua

vida com dignidade (OEA, 2002, para. 84). Trata-se, então, de um direito que desenvolve as

capacidades da pessoa e permite que esta goze de seus outros direitos (GEDDIE, 2009, p. 30).

A importância desse direito é ainda evidenciada pelos esforços internacionais de garanti-lo a

todos, mesmo em situações de crise humanitária (INEE, 2012, p. 7, 57).

Apesar de seu caráter de direito à realização progressiva, a educação comporta algumas

obrigações imediatas aos Estados, particularmente a garantia de um ensino primário gratuito a

todos, a não discriminação, e a proibição de medidas regressivas (CDESC, 1999, para. 43, 45).

Assim, se um Estado age de maneira a afetar o gozo do direito à educação, ele deve provar que

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esgotou todas as alternativas possíveis antes de fazê-lo (CDESC, 1999, para. 45). A CIDH

enfatizou a obrigação dos Estados de garantirem de maneira constante o acesso das crianças a

esse direito com todos os recursos possíveis, evitando regressões e atrasos injustificáveis (OEA,

2002, para. 81).

Deve-se notar que, em vista da importância e dos objetivos da educação, o acesso efetivo

a esta figura apenas como um dos indicadores para a realização desse direito (SPREEN &

VALLY, 2012, p. 73) – os outros sendo a dotação, a aceitabilidade e a adaptabilidade da

educação (CDESC, 1999, para. 6). Todavia, é sobretudo o aspecto da acessibilidade que não é

respeitado quanto à educação a crianças migrantes irregulares (CHOLEWINSKI, 2005, p. 39).

No plano jurídico, o acesso à educação de forma não discriminatória aos menores com

estatuto irregular é reiterado por diversos órgãos internacionais. Particularmente, a Observação

Geral n. 13 do CDESC (1999, para. 34) confirma que qualquer pessoa em idade escolar, mesmo

os migrantes irregulares, deve ter acesso ao ensino, tal como também dispõe a Observação Geral

n. 6 do Comitê dos Direitos da Criança (2005, para. 41). A CIDH emitiu igualmente uma

opinião consultiva ressaltando o direito dos Estados de garantir o acesso à educação a todas as

crianças migrantes (OEA, 2014, para. 104). A União Europeia (1997, art. 3 (6); 2003, art. 10),

por sua vez, adotou resoluções afirmando o direito à educação em igualdade de condições às

crianças migrantes desacompanhadas – as quais, na maior parte dos casos, chegam ao Estado

de forma irregular –e aos menores solicitantes de refúgio – os quais são frequentemente

migrantes irregulares até que a decisão final sobre o pedido de refúgio seja proferida.

A posição desses órgãos, cumulada com a prática do CDESC, do Comitê dos Direitos

da Criança e da CEDH a respeito da não discriminação, confirma que os Estados não podem

simplesmente excluir o acesso dos menores aos serviços de educação em razão de seu estatuto

de imigração irregular. Embora os Estados possam se utilizar de seus poderes para agir contra

esse tipo de imigração e, excepcionalmente, quando razoável e objetivo, limitar o direito à

educação a essas crianças, um acesso mínimo deve ser garantido. Contudo, a prática dos

Estados não está sempre em conformidade com essa obrigação.

De uma maneira geral, a legislação interna dos Estados permite uma acessibilidade

formal à educação às crianças migrantes irregulares. Em primeiro lugar, certos Estados fazem

referência expressa a tais crianças. Particularmente, a Bélgica possui leis garantindo que, desde

que o menor esteja com seus pais ou com um guardião, ele será admitido aos estabelecimentos

escolares e estes não serão obrigados a relatar às autoridades o estatuto irregular da criança

(BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 16). Por sua vez, a Itália e a Holanda possuem normas que

impedem a exigência de documentos para o registro da criança na escola (UNICEF, 2010, p.

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18), o que favorece a integração dos menores com estatuto irregular. Não obstante, a maior

parte dos Estados possuem apenas uma norma geral sobre o direito à educação, de forma a

incluir implicitamente os migrantes irregulares. É o caso de diversos Estados europeus (dentre

os quais a França, a Espanha, a Polônia e o Reino Unido) (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 18-

20), do Canadá (2016, p. 14), dos Estados Unidos (1982, p. 230) e do Brasil (1988, art. 205).

Entretanto, essas legislações evitam apenas uma discriminação direta; há ainda diversos

meios de discriminação indireta contra esses migrantes, isto é, políticas e práticas que parecem

ser neutras em um primeiro momento, mas que na realidade afetam de maneira desproporcional

certos indivíduos em razão de um motivo de discriminação proibido. O próprio CDESC (2009,

para. 10) reconheceu a exigência de uma certidão de nascimento para inscrever uma criança na

escola como um fator potencial de discriminação contra certos não nacionais. No que diz

respeito aos menores migrantes irregulares, esse tipo de discriminação constitui o maior

obstáculo ao acesso à educação (CHOLEWINSKI, 2005, p. 39).

Entre os meios de discriminação indireta, a barreira mais comum às crianças migrantes

irregulares é a prática das escolas de solicitar um comprovante de residência para efetuar a

inscrição do aluno (SPREEN & VALLY, 2012, p. 78). Embora o fim de tal exigência seja

comumente de garantir que a criança resida no distrito escolar adequado, ela tem por efeito

impedir o registro dos que possuem um estatuto migratório irregular (BICOCCHI & LEVOY,

2008, p. 23). Por exemplo, existem diversos casos na França nos quais a falta de comprovante

de residência acarretou a recusa de inscrição da criança na escola (BICOCCHI & LEVOY,

2008, p. 23). No Canadá, sobretudo na província do Québec, as crianças que não apresentam

um comprovante de residência não podem se beneficiar da gratuidade do ensino primário (Le

Protecteur du Citoyen, 2014, p. 7, 12). Como a imigração irregular está frequentemente ligada

a condições de vida precárias, esse impedimento efetivamente nega o acesso à educação a tais

crianças, gerando preocupações do CDESC (2016, para. 55).

Ademais, diversos estabelecimentos escolares solicitam documentos que atestem o

estatuto migratório regular antes de permitir a inscrição do menor, mesmo em Estados em que

a lei admite o acesso às escolas aos migrantes irregulares. Na Holanda, por exemplo, requerem-

se que as escolas apresentem documentos para comprovar a inscrição dos alunos e estas são

multadas se não são capazes de fazê-lo, o que as deixa receosas de admitir migrantes irregulares

(BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 23). Por sua vez, no Brasil, uma resolução do estado de São

Paulo, em vigor de 1990 até 1995, proibia a inscrição nas escolas de qualquer migrante

irregular, estabelecia o cancelamento das inscrições já realizadas e ordenava a notificação do

Ministério da Justiça a respeito desses alunos para que medidas de controle de imigração fossem

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tomadas (WALDMAN, 2013, p. 2). Nos Estados Unidos (1982, p. 230), apesar do

reconhecimento do direito à educação aos migrantes irregulares pela Suprema Corte no caso

Plyler v. Doe, diversas tentativas de estabelecer a apresentação de documentação como

obrigatória para a inscrição na escola ainda são feitas (American Immigration Council, 2012,

p. 2-3).

A CIDH teve a oportunidade de se pronunciar sobre esse tipo de situação no caso

Garotas Yean e Bosico v. República Dominicana (OEA, 2005). Nesse caso, as crianças haviam

nascido na República Dominicana e tinham, portanto, direito à nacionalidade dominicana. Não

obstante, em razão do estatuto migratório irregular de seus pais, a emissão das certidões de

nascimento das crianças havia sido negada pelas autoridades. Por causa da falta de

documentação das crianças, elas não puderem se inscrever na escola de forma regular.

Utilizando o artigo 19 da Convenção Americana de Direitos Humanos o qual prevê que os

menores têm direito a uma proteção especial, a jurisdição interamericana reafirmou a ilicitude

de medidas discriminatórias baseadas no estatuto migratório irregular de um indivíduo (OEA,

2005, p. 155) e declarou o dever do Estado de fornecer uma educação primária gratuita a todas

as crianças em um ambiente adequado e nas condições necessárias para garantir seu

desenvolvimento intelectual (OEA, 2005, p. 185). Embora a Corte não tenha ido tão longe a

ponto de ordenar que a República Dominicana reformasse a exigência de documentos pelas

escolas quando da inscrição, a ênfase colocada sobre a obrigação de não discriminação em

relação aos migrantes irregulares é uma maneira clara de conduzir a esse resultado.

Em alguns Estados, existem ainda problemas ligados ao poder discricionário das escolas

ou das comissões escolares para admitir ou não que imigrantes irregulares sejam inscritos. O

exemplo mencionado acima da Holanda demonstra bem que, apesar da existência de leis

inclusivas, a prática não está necessariamente em conformidade com elas (BICOCCHI &

LEVOY, 2008, p. 18). Na França, essa discrição foi empregada como um modo de

discriminação contra a minoria Roma, a qual compreende diversas pessoas em situação de

imigração irregular (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 25). No Reino Unido, existem também

alguns casos em que a inscrição de menores migrantes irregulares foi recusada por medo de que

esses alunos não obtivessem bons resultados nos exames públicos, impactando negativamente

a média da escola (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 26). Além disso, em 2003, o próprio

governo grego tentou barrar a inscrição de migrantes irregulares nas escolas, a despeito do fato

de que a legislação nacional relevante não traz qualquer exigência a respeito do estatuto

migratório (CHOLEWINSKI, 2005, p. 40).

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A discrição dos estabelecimentos escolares quando da inscrição provocou várias críticas

também na Suécia. Lá, esse poder, cumulado com a falta de leis estabelecendo expressamente

o acesso à educação aos migrantes irregulares, resultou na negação desse direito a diversas

crianças, sobretudo aquelas cuja solicitação de refúgio não foi aceita, mas que continuaram no

país – comumente chamadas “crianças escondidas” (children in hiding) (BOURGONJE, 2010,

p. 51-52). Embora o governo sueco tenha tentado aportar modificações legislativas para

resolver essa situação (Save the Children Sweden, 2008, p. 23), ela ainda persiste e foi objeto

de diversas críticas do Comitê dos Direitos da Criança, como em suas Observações Finais de

2009 (para. 54-55) e 2015 (para. 51-52).

Esse problema é encontrado mesmo em Estados onde os estabelecimentos escolares não

possuem discrição e são obrigados a admitir os alunos, como na Bélgica. Organizações não

governamentais belgas notaram que existem ainda casos em que a escola se utiliza da desculpa

de que não há mais vagas disponíveis para que a criança migrante irregular não possa se

inscrever (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 27).

Deve-se admitir, entretanto, que boas práticas a esse respeito existem; particularmente,

na região da Andaluzia, na Espanha, os migrantes irregulares possuem acesso à maior parte dos

serviços sociais, dentre os quais a educação (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 27),

demonstrando um exemplo a ser seguido.

Um último obstáculo comum ao acesso à educação aos migrantes irregulares é o medo

da família de ter seu estatuto irregular comunicado às autoridades governamentais (CDH, 2010,

para. 68). Embora esse fator, à primeira vista, derive das ações da família, o comportamento

das escolas e das autoridades locais face aos migrantes, como a exigência de documentos,

contribui diretamente para fomentar esse medo. A título de exemplo, na França, ocorreram

diversos incidentes em que a polícia levou crianças na frente de uma escola suspeitas de serem

migrantes irregulares à estação de polícia a fim de prender suas famílias quando elas chegassem

(BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 27, 29).

Na maior parte dos casos, todavia, o medo das famílias não está ligado a uma supervisão

específica da documentação pelas escolas, mas a um quadro geral de repressão contra os

migrantes irregulares (LEVOY & GEDDIE, 2010, p. 101). Na Itália e na Espanha, onde não é

comum que se haja problemas com a inscrição de menores migrantes irregulares nos

estabelecimentos escolares, o temor de algumas famílias faz com que seus filhos não sejam

enviados à escola (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 28). No Reino Unido, apesar da legislação

estabelecendo que as escolas não são obrigadas de informar as autoridades sobre a presença de

alunos migrantes irregulares, uma má compreensão da lei, a qual impõe tal obrigação às

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VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação

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autoridades locais, conduz ao temor das famílias de serem relatas e a não inscreverem suas

crianças nas escolas (Coram Children’s Legal Centre, 2013, p. 27-28).

Assim, vê-se que, apesar da legislação à primeira vista inclusiva – ou ao menos não

explicitamente excludente – dos Estados, ela não é suficiente para garantir o acesso à educação

às crianças com estatuto migratório irregular. A discriminação é feita de forma indireta, na

prática, devido a uma lógica de repressão à imigração irregular. Para que as crianças em situação

de imigração irregular possam realmente gozar de seu direito à educação, os esforços dos

Estados devem então ir além de uma simples não discriminação formal.

A questão do acesso à educação é ainda mais problemática quando as crianças estão

submetidas à privação de liberdade em virtude de seu estatuto irregular, como será demonstrado

a seguir.

5. A detenção administrativa e a educação

Uma medida de controle de imigração comumente empregada pelos Estados é a de

manter os imigrantes irregulares em um centro de detenção até que uma decisão sobre sua

permanência ou não no território seja tomada. Essa prática não é proibida em si pelo direito

internacional e sua utilidade é reconhecida para garantir, por exemplo, a deportação efetiva do

imigrante (OEA, 2010, para. 169). Contudo, qualquer detenção deve ser feita em estrita

conformidade com as obrigações internacionais do Estado, particularmente aquelas relativas

aos direitos humanos. Como disposto pela CEDH, deve-se conciliar a proteção dos direitos

fundamentais e os imperativos da política de imigração dos Estados (EUROPA, 2006b, para.

81).

No que diz respeito às crianças migrantes, a possibilidade de prendê-los em razão do

estatuto irregular é ainda mais restrita, em virtude do princípio do interesse superior da criança

(BHABHA, 2008, p. 4). Alguns argumentam que esse princípio seria mesmo incompatível com

a privação de liberdade, proibindo a detenção de crianças migrantes em qualquer caso

(CERNADAS, GARCÍA & SALAS, 2014, p. 18). Analisando o interesse superior da criança e

a regra de que a detenção de imigrantes pode ser aplicada tão-somente como último recurso, a

CIDH concluiu que a detenção de um menor migrante baseada exclusivamente em seu estatuto

irregular será sempre arbitrária (OEA, 2014, para. 154). Na prática, o critério estabelecido pela

Corte torna quase todos os casos de detenção de crianças migrantes ilícitos, pois raramente

existem outras razões além da imigração irregular que justifiquem a privação de liberdade de

um menor.

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Independentemente da legalidade da detenção, deve-se ressaltar que esta não libera os

Estados da obrigação de respeitar os outros direitos da criança detida, dentre os quais o direito

à educação. Ora, mesmo quando um indivíduo é detido, ele continua a estar submetido à

jurisdição do Estado e, logo, esse direito é plenamente aplicável. Esse raciocínio foi

reconhecido pela União Europeia (2008, art. 17 (3)), por meio da Diretiva 2008/115/CE, a qual

estabelece que o acesso à educação aos menores detidos com um estatuto migratório irregular

é garantido em função da duração da estadia. Segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas

para Refugiados (1997, para. 7.8) e a CIDH (OEA, 2014, para. 183), esse direito deve ser

garantido preferivelmente fora dos centros de detenção. Ademais, a CEDH, no caso

Mubilanzila Mayeka e Kaniki Mitunga v. Bélgica, analisou a questão da falta de acesso à

educação por uma criança migrante no centro de detenção como um fator para determinar se as

condições de privação de liberdade constituíam tratamento desumano (EUROPA, 2006b, para.

50).

A prática geral, entretanto, é que a educação não seja bem garantida quando da detenção.

O Comitê dos Direitos da Criança, em suas Observações Finais sobre a Bélgica em 2002 (para.

26 (b)), fez referência igualmente à obrigação de garantir tal acesso aos menores

desacompanhados nos centros de recepção onde eles eram detidos ao chegarem no país. Além

disso, na França, a educação é comumente descontinuada depois que as crianças são detidas

(LEVOY & GEDDIE, 2010, p. 101).

Como exposto, as obrigações internacionais do Estado não permitem que nenhuma

educação seja dispensada, mesmo em razão das medidas de controle de imigração. Assim,

mesmo quando os estudos são ofertados nos próprios centros de detenção – uma limitação que

pode, teoricamente, ser legítima se ela é razoável, objetiva e feita com base individual –, esse

direito deve ser garantido em certa medida. Em vista dessas considerações, em alguns Estados,

particularmente no Reino Unido e na Austrália, os centros de detenção contam com

profissionais para ministrar aulas às crianças migrantes ali presentes. Todavia, o direito à

educação não é verdadeiramente garantido pela mera existência de atividades que o Estado

chama de educativas. O ensino oferecido deve ter ao menos o potencial de alcançar os fins da

educação, o pleno desenvolvimento das capacidades da pessoa (CDESC, 1999, para. 4).

Infelizmente, vê-se que a prática nos centros de detenção não leva em consideração esses

objetivos.

No Reino Unido, os professores designados pelas crianças em detenção não são

informados sobre o nível de escolaridade que os alunos já possuem e não são preparados para

tratar das necessidades de aprendizagem dos mesmos (BOURGONJE, 2010, p. 40). Às crianças

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VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação

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mais novas, são oferecidas atividades de laser, como desenhos, ao invés de uma educação bem

planejada (BOURGONJE, 2010, p. 40-41). Ademais, foi relatado que alguns professores nos

centros escolhem ao acaso um tema do currículo nacional para dar a aula (BOURGONJE, 2010,

p. 41), o que demonstra uma falta de organização e de continuidade que não realiza as funções

da educação.

Por sua vez, na Austrália, os centros de detenção devem fornecer diversos recursos

educacionais às crianças migrantes, incluindo professores, aulas, esportes, materiais para artes

e computadores (BOURGONJE, 2010, p. 71). Não obstante, a realidade é que esses recursos

não são bem distribuídos e os professores por vezes contam com um número demasiadamente

elevado de alunos para lhes dar a atenção necessária nas aulas (BOURGONJE, 2010, p. 72-73).

Além disso, a existência de traumas e outras condições adversas relativas ao tratamento na

detenção, pelo qual a Austrália já foi condenada diante do Comitê de Direitos Humanos (2013,

para. 9.8; 2003, para. 9.7; 2002, para. 8.4), impacta negativamente o desempenho dessas

crianças migrantes nos estudos (BOURGONJE, 2010, p. 74). O fato que as autoridades

consideram que esses imigrantes se encontram nos centros de forma unicamente temporária –

embora muitos entre eles estejam detidos há vários anos –as torna resistentes em relação aos

esforços para melhorar a qualidade da educação (BOURGONJE, 2010, p. 71, 73).

Por conseguinte, as situações de detenção administrativa de crianças migrantes tendem

a restringir ainda mais seu acesso à educação. Apesar de algumas tentativas dos Estados de ter

aulas ministradas em centros de detenção, a falta de organização das mesmas e seu conteúdo

duvidoso as transforma em atividades de laser ao invés de educação de fato.

6. Conclusão

No direito internacional, praticamente não existem dúvidas de que as normas de direitos

humanos são aplicáveis a qualquer indivíduo sob a jurisdição do Estado, independentemente de

seu estatuto migratório. Ao lidar com migrantes irregulares, uma das normas mais relevantes é

a não-discriminação, a qual garante que qualquer diferença de tratamento entre indivíduos na

fruição de seus direitos deverá ser proporcional e não-arbitrária e não poderá constituir uma

negação total do direito em questão. No caso de crianças migrantes, a ênfase dada pelo Comitê

dos Direitos da Criança ao princípio do melhor interesse da criança e à análise individual sobre

a qual deve ser fundada a discriminação fazem com que seja quase impossível que um menor

tenha seus direitos limitados tão-somente pelo fato de ser um migrante irregular.

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No que tange ao direito à educação, a proteção deste é sólida em convenções

internacionais. Tanto o PIDESC quanto a CDE preveem que esse direito, compreendendo um

ensino primário gratuito e obrigatório e um ensino secundário a ser tornado progressivamente

acessível pelos meios apropriados, deve ser garantido a todos. Nada na formulação dos

dispositivos acarreta, portanto, a exclusão de migrantes irregulares.

Apesar desses limites jurídicos, a preocupação das autoridades estatais de barrar a

crescente imigração irregular faz com que as políticas internas criem vários obstáculos a que

crianças em situação irregular se beneficiem do direito à educação, sobretudo no que diz

respeito ao acesso à mesma. As leis a princípio inclusivas ou neutras não são suficientes para

impedir práticas nocivas a esse direito pelas escolas e comissões escolares e os Estados fazem

muito pouco para remediar essa situação. Assim, diversas crianças migrantes irregulares têm

seu acesso à educação impedido devido a formas de discriminação indireta – quais sejam, não

possuírem a documentação exigida para o registro nas escolas, a discricionariedade das mesmas

em admitirem alunos e o medo de que o estatuto migratório do menor seja denunciado às

autoridades. Mesmo em casos em que a criança já está submetida à detenção administrativa

como medida de controle pelos Estados, estes se mostram reticentes em providenciar

verdadeiras oportunidades de educação nos centros de detenção, limitando-se a fornecer

atividades de conteúdo educacional questionável.

Dessa forma, verifica-se que as políticas estatais enfatizam o estatuto irregular do menor

ao invés de sua condição de criança e sujeito de direitos. O acesso à educação é então sacrificado

a fim de que não se encoraje esse tipo de imigração, aumentando ainda mais a situação de

vulnerabilidade de crianças migrantes irregulares.

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ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais

Alethes | 429

O Suporte Fático de Normas de Direitos Fundamentais The Factual Support of Norms of Fundamental Rights

Priscila Carvalho de Andrade_1

Resumo: Este estudo, que se situa nas discussões acerca do direito constitucional e argumentação jurídica, trata dos procedimentos de justificação de decisões jurídicas a partir da noção de suporte fático de normas de direitos fundamentais. Considerando que é a ocorrência fática do que está implicitamente descrito nos textos normativos que enseja a consequência jurídica dos direitos que consagram, tem-se, por hipótese, que a análise do suporte fático das normas deve assumir papel central na fundamentação da aplicação ou do não aplicação de determinado direito em certo caso. Assim, faz-se investigação sobre o conceito de suporte fático de normas, seu papel no que se refere a direitos fundamentais e sua potencialidade no campo da argumentação jurídica. Como resultado das análises, alcança-se, através do método dedutivo, a possibilidade de construção do discurso jurídico em etapas, verificável, e que tem por efeito a concessão de proteção a direitos fundamentais na maior medida possível. Palavras-chave: Argumentação jurídica. Direitos fundamentais. Suporte fático de normas. Correção. Controlabilidade de decisões jurídicas. Abstract: The current study, which stands in the fields of constitutional law and legal argumentation, is about the use of the concept “factual support of norms” in the justification proceedings of legal decisions. Considering that it is actually the factual occurrence of what is implicitly described in normative texts that triggers the legal consequence of the rights they declare, the factual support of norms should, by hypothesis, play a central role in the justification of the applicability or inapplicability of a right in a case. Hence, the concept of factual support of norms, its application to fundamental rights and its potential in the field of legal argumentation are in this study investigated. As a result of the analysis, conducted in accordance to the deductive approach, it is reached the possibility to construct the legal discourse in stages, in a verifiable manner, and that entails the protection of fundamental rights as extensively as possible. Palavras-chave: Legal argumentation. Fundamental rights. Factual support of norms. Correction. Controllability of legal decisions.

1 Graduação em andamento na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), parcialmente cursada na Universtät Passau, Alemanha. Endereço eletrônico: [email protected].

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 429-448, mai/ago, 2016.

Alethes | 430

1. Introdução

A racionalidade do discurso jurídico está atrelada à fundamentação correta das

premissas que conduzem à decisão jurídica. Caso se sustente uma decisão a partir de

argumentos formulados com correção, há que se falar em um resultado racional, e, assim,

verificável. Contrariamente, quando não se fundamenta as premissas, ou, ainda, quando não as

justifica suficientemente, se atinge decisão jurídica cujo resultado não se pode controlar.

Este estudo trabalha com o conceito de suporte fático de normas, que, já bem

desenvolvido em diversas áreas do direito, ainda não possui delimitado seu lugar no direito

constitucional, em especial na teoria dos direitos fundamentais, tratando-se de conceito quase

inexplorado pela doutrina. Considera-se que estudos nesse campo podem se revelar como sendo

de grande relevo para aperfeiçoamento não só da aplicação dos direitos fundamentais, como

também da teoria da argumentação no que se refere a esses direitos, uma vez que, estudando o

que desencadeia, no mundo dos fatos, a aplicação de uma norma, isto é, examinando seu suporte

fático, permite-se que se separe, de forma clara, no discurso, os casos em que há violação de

norma, e que, portanto, sua consequência jurídica deve ocorrer, dos que se referem apenas a

uma restrição permitida, hipótese em que há fundamentação constitucional para a não

realização de um direito. É mesmo a ocorrência fática do que está implicitamente descrito na

redação dos dispositivos constitucionais que garantem direitos fundamentais que enseja suas

aplicações, e, por isso, esse é o fenômeno que deve prevalecer na construção da fundamentação

da aplicabilidade ou não aplicabilidade de certo dispositivo constitucional em um determinado

caso concreto. Quer dizer: debruçar-se sobre a teoria do suporte fático na perspectiva

constitucional significa, por hipótese, lançar mão de uma técnica racional, aplicável em etapas,

e, portanto, verificável, para dizer onde há e onde não há direito no discurso jurídico.

Sendo assim, pretende-se, neste trabalho, a partir do método dedutivo, demonstrar a

potencialidade da noção de suporte fático no campo da argumentação jurídica. Considera-se,

por hipótese, que as fundamentações sobre aplicação ou afastamento de direitos fundamentais

devem avançar em correção se estruturadas a partir de uma compreensão sistemática do suporte

fático das normas que consagram esses direitos. A partir das circunstancias fáticas do caso

concreto cujos exames são exigidos pela noção de suporte fático que aqui será apresentado, é

possível que se demonstre, objetivamente, a incidência de normas em um caso concreto, e, por

consequência, que se identifique eventuais colisões normativas.

Para o desenvolvimento deste estudo, é imperioso que se aceitem os pressupostos

teóricos desenvolvidos por Robert Alexy em sua teoria dos princípios, que estão

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indissociavelmente ligados à adoção de uma teoria de suporte fático amplo, como se verá

adiante. Nesse sentido, é necessário considerar o caráter principiológico das normas que

preveem direitos fundamentais, o que faz com que esses possam ser concretizados em graus,

segundo as condições fáticas e jurídicas, sendo, por isso, considerados mandamentos de

otimização. Assim, se diz que normas-princípio guardam direitos prima facie, e têm suas

colisões solucionadas através da determinação de regras de prevalência no caso concreto,

estabelecidas por ponderação. Diferentemente, as chamadas normas-regra guardam direitos

definitivos, e, por isso, têm seus conflitos solucionados no campo da validade, em que ou se

elimina uma delas ou se cria uma regra de exceção, sendo impossível sua realização apenas

parcial. Como será verificado, é a partir da noção de suporte fático que aqui se defende, em sua

acepção ampla, que a teoria de Alexy encontra espaço para sua aplicabilidade, o que não

ocorreria, contrariamente, caso se adotasse o conceito em seu sentido estrito.

Este trabalho se estrutura em três tópicos de desenvolvimento. No primeiro, se discute

o papel da análise das circunstâncias fáticas na fundamentação de decisões jurídicas. No

segundo, se apresenta o conceito de suporte fático, bem como se examina seus elementos. No

terceiro, finalmente, se demonstra de que maneira a noção de suporte fático pode auxiliar na

investigação da incidência de normas em uma caso concreto.

2. O papel da análise sobre as circunstâncias fáticas nos processos de justificação de

decisões jurídicas

Hodiernamente, tem-se, em grande parte dos estudos sobre metodologia, que a

jurisprudência não pode dispensar as chamadas valorações. Esse termo, usado com frequência

em teorias da decisão, é utilizado para designar a ação de preferir, em situações em que resta

ao intérprete um campo de ação no qual deve-se escolher entre as várias soluções possíveis para

o caso, a partir de normas jurídicas e metodológicas. Segundo a definição trazida pela Standford

Encyclopedia of Philosophy (2012), tem-se a relação entre valorações e preferências extraída a

partir da utilidade atribuída ao objeto, e expressa pela pelo enunciado lógico que segue:

Preferences can be interpreted as expressions of value. A≻B then means that more value is assigned to A than to B, and A∼B that the same value is assigned to the two. Values are usually taken to be adequately expressible in numerical terms. Let u (as in “utility”) be a value function that assigns a real number to each element of the alternative set. We can then construct a model of preference logic in the following way: A≻B iff u(A)>u(B) (Exact value representation)”

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As valorações, que anunciam, portanto, um estado de coisas preferido em detrimento

de outro, são ditas necessárias, especialmente, quando não resta claro da observação das normas

vigentes como se deve decidir, isto é, quando não há certeza sobre qual norma se deve aplicar

em um caso, em um contexto em que, aparentemente, mais de uma se aplicam. Tais valorações

necessárias, como informa Robert Alexy (2005, p.40), mesmo havendo discussão na literatura

especializada se são de caráter moral ou não, sempre são, ao menos, relevantes moralmente.

Apesar disso, não se pode admitir que essas valorizações, necessárias e relevantes moralmente,

abram um espaço livre para aplicação de convicções morais subjetivas do intérprete e que essas

sirvam de fundamento para a tomada de uma decisão jurídica. É necessário objetivar tais

valorações, o que implica na correção da atribuição da “utility”, e sobre isso vem se debruçando

a teoria da argumentação jurídica moderna.

A objetivação das valorações utilizadas pelos intérpretes pode se dar através do uso

“valores da comunidade” e do “sistema interno de valorações do ordenamento jurídico” e, por

vezes, até mesmo com o apelo a enunciados de direito natural (ALEXY, 2005, p. 40-43). As

convicções derivadas dessas três vias de obtenção de valorações objetivadas podem ser

admitidas no processo decisório e sua consideração se revela, sim, legítima. Quer dizer: tanto

as concepções da coletividade, quanto diretrizes postas pelo ordenamento jurídico como um

todo e, em especial, pela Constituição, bem como premissas jusnaturalistas, podem constar do

processo decisório. Não podem, contudo, exclusivamente sustentá-lo. Conforme Alexy (2005,

p. 41-42), é impossível que se determinem os valores da coletividade com exatidão, não sendo

concretos o suficiente para, por si só, fundamentarem uma decisão; o sistema interno de

valorações do ordenamento jurídico também é impreciso, e muitas vezes não se pode nem

mesmo verificar com clareza quais são as valores contidos em uma norma, sem mencionar que

essas, com frequência, cristalizam pontos de vistas valorativos contraditórios entre si;

igualmente, enunciados de direito natural não raro incluem premissas incertas e discutíveis.

Sendo assim, valorações, sozinhas, ainda que objetivadas geram fundamentações insuficientes

e imprecisas sobre a aplicabilidade de um direito em um caso concreto. Disso decorre a

inviabilização da controlabilidade de decisões jurídicas, já que, se assentadas

preponderantemente sobre valorações, dificilmente podem ser demonstradas de maneira lógica,

verificável. Isso é, caso se justifique a aplicação de uma norma em um caso a partir de

valorações sobre ela construídas, através da consideração dos valores da comunidade, do

sistema interno de valorações do ordenamento jurídico e de enunciados de direito natural, se

nega aos jurisdicionados o controle da correção da decisão.

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Sendo assim, considerando a insuficiência das valorações sobre normas para

fundamentar a aplicação ou não aplicação de direitos, em razão de seu descomprometimento

com a realidades dos fatos, se dedica este estudo ao papel da análise das circunstâncias dos

casos concretos nos processos de justificações de decisões jurídicas.

A relevância da investigação sobre o suporte fático de normas é evidente no que se

refere à incidência normativa, e, assim, especialmente, à existência de colisões principiológicas

em determinado caso. São as circunstâncias empíricas das situações fáticas que determinam o

embate entre normas, e, portanto, se não se conhece, com alguma profundidade, tais

circunstâncias, não se pode também vislumbrar os conflitos. Direitos fundamentais são normas-

princípio, sendo, portanto, mandamentos de otimização. Como tais, por definição, possuem

tendência expansiva, o que facilita a ocorrência de colisões com outras normas do ordenamento

jurídico. Da teoria das normas de Robert Alexy (2009, p.85-176), constata-se, como sendo

indispensável para o estabelecimento de regras de precedência, isto é, para solução de conflitos

normativos, o exame do caso concreto. Isso se torna explícito quando se percebe que um dado

princípio prevalece (P) sobre outro apenas à luz de um dado caso, sem que aquele que foi

aplicado em medida menor, o “vencido” na ponderação, seja expulso do ordenamento jurídico;

quer dizer, o fato de que (P¹ P P²) C¹, em que C é tanto a condição de uma relação de

precedência, quanto o pressuposto do suporte fático da regra:

‘verificadas as condições C¹, a aplicação de P¹ prevalece em detrimento de P², no exata

proporção em que a proteção de P¹ se faz mais importante do que a de P² em C¹’,

não impede que, em um caso C², P² P P¹, já que diferentes circunstâncias fáticas

demandam diferentes soluções normativas. Se, contudo, são ignoradas as circunstâncias

concretas e se procede com a ponderação apenas através de valorações, conforme antes

analisadas, a tendência é que, nas soluções de conflitos, sempre prevaleçam aquelas normas

que, segundo as convicções das ordens anteriormente mencionadas, já foram cristalizados, em

abstrato, como sendo os mais importantes, independentemente do caso em análise. Sendo assim,

decisões que se baseiam apenas em valorizações sobre normas tendem a tratar certos direitos

fundamentais como sendo absolutos, razão pela qual pulsa a necessidade do exame do suporte

fático nos procedimentos de justificação do discurso jurídico quanto a aplicabilidade ou não

aplicabilidade de certa norma de direito fundamental em dado caso.

Faz-se mister ressaltar, neste ponto, que, por óbvio, o que aqui se defende não é que

os Tribunais Constitucionais - no caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) - devam

revolver matéria de provas em grau recursal. Na jurisdição brasileira, conforme se sabe, quando

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exerce o STF sua competência para julgamento de recursos, restam as circunstâncias do fato,

ao chegar ao Tribunal, já consolidadas pelo arcabouço probatório produzido nas instâncias

inferiores, e, por isso, no sistema recursal brasileiro, não se admite que se argua matérias de

provas no referido órgão da jurisdição. Não obstante, nos limites do fato, nas peculiaridades do

caso, na individualização fática do ocorrido, traçadas anteriormente e trazidas ao conhecimento

dos ministros através dos relatórios, há circunstâncias que não podem ser ignoradas na

fundamentação das decisões, pois, como já visto, apenas à luz delas se podem aplicar normas-

princípio. Seria um contrassenso dizer que o Tribunal Constitucional brasileiro, protetor da

Constituição, cujo conteúdo é caracterizado pela predominância de normas-princípio, não

processa técnicas de aplicação próprias desse tipo de norma, como a ponderação, pois, no

sistema brasileiro, o STF não pode considerar questões de ordem fática. Revela-se equivocado

tal entendimento, na medida em que há uma sutil diferença entre reapreciação da matéria fática,

que visaria alterar seus contornos, e a consideração, ainda que em um nível mínimo, das

circunstâncias do caso para fins de fundamentação.

3. O conceito de suporte fático e seus elementos

A análise do suporte fático equivale à investigação sobre a incidência normativa. A

condição para a ocorrência da consequência jurídica de certa norma em determinado caso é o

preenchimento de seu suporte fático. O desenvolvimento técnico da noção de suporte fático

alcançou níveis de notável sofisticação em alguns âmbitos da Ciência do Direito, como é o caso

do direito penal, em que o suporte fático é facilmente identificado como o conjunto dos

elementos do fato punível descrito na lei penal. A partir de uma operação intelectual de conexão

entre a possibilidade infinita de ocorrência de fatos no mundo e o modelo típico descrito em lei,

tem-se o juízo de tipicidade, que, se positivo, fundamenta a análise dos outros componentes do

conceito analítico de crime. Também no direito tributário encontra-se a noção de suporte fático

sob a denominação de fato gerador, que consiste no fato ou no conjunto de fatos que o legislador

define na lei para o nascimento da obrigação tributária. Assim, percebe-se o importante papel

do conceito de suporte fático em tais áreas do direito, visto que é a partir dele que as normas

encontram sua aplicabilidade. Contudo, não obstante a clareza desse conceito nos referidos

ramos, no direito constitucional a noção de suporte fático ainda se encontra em estado de atrofia.

Analisando as disposições penais, a definição de suporte fático é razoavelmente simples,

e talvez por isso essa noção encontra grande espaço nesse ramo do direito. Com a redação do

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art. 121 do Código Penal, por exemplo, segundo o qual “Matar alguém: Pena – reclusão de seis

a vinte anos”, não há dificuldade em delimitar o suporte fático da norma, que poderá ter,

segundo o exame do juízo de tipicidade, isolado dos demais elementos do conceito analítico de

crime, sua consequência jurídica aplicada quando o fenômeno descrito no dispositivo for

verificado no mundo dos fatos; quer dizer, quando alguém for morto por outra pessoa.

Diversamente, no que se refere a disposições que consagram direitos fundamentais, percebe-se

que a noção de suporte fático não resta assim tão bem evidenciada, visto que as redações

constitucionais que positivam tais direitos não deixam explícita suas relações com o mundo

naturalístico. Não é intuitiva a definição do conceito de suporte fático para uma norma cuja

disposição consiste em, por exemplo, “A educação, direito de todos e dever do Estado e da

família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando pleno

desenvolvimento da pessoa, seu preparo para exercício da cidadania e sua qualificação para o

trabalho”, como previsto pelo art. 205 da CF. É preciso, então, analisar a redação construída

pelos constituintes originário e derivado, à luz da teoria dos direitos fundamentais, para que se

possa vislumbrar a definição de suporte fático aplicável a tais dispositivos.

Transportando os entendimentos encontrados nos ramos do direito que trabalham

largamente com teorias sobre o suporte fático para o âmbito do direito constitucional, e, mais

precisamente, para a teoria dos direitos fundamentais, se percebe, imediatamente, a presença

do chamado âmbito de proteção das normas fundamentais nesse conceito, sendo esse o

elemento mais facilmente detectado da noção de suporte fático com a qual nesse estudo se

trabalha. É evidente que somente se terá a consequência jurídica de uma dada norma se o

acontecimento no mundo da vida se referir a atos, fatos ou estados por ela protegidos. Dessa

forma, se se identifica o âmbito de proteção como elemento de um conceito de suporte fático

quando esse está voltado para os direitos fundamentais, percebe-se a essencial implicação

prática de sua delimitação já pela relevância de um de seus elementos para aplicação de normas.

A verificação da existência de colisões, por exemplo, e possibilidade de criação de regras de

prevalência, que determina, no caso concreto, qual das normas será atendida em maior grau,

sem, contudo, destacar a outra do ordenamento jurídico, está intimamente ligada à delimitação

de âmbitos de proteção das normas colidentes, mas não só dela depende. Isto é, para se verificar

e solucionar colisões entre normas, não é suficiente a análise de seus âmbitos de proteção, sendo

necessário encarar a matéria mais ampla do suporte fático.

Levando em conta, portanto, que o suporte fático engloba o âmbito de proteção de uma

norma, mas não é com ele confundido, como é comumente imaginado, deve-se considerar os

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outros elementos que o compõe, cujas presenças não são tão facilmente extraídas. Neste estudo,

se adota a fórmula lógica se APx e não-FC(IEx), então CJx apresentada por Virgílio Afonso

da Silva (2009, p. 75). Para que esse modelo seja adequado ao estudo, seus elementos devem

ser entendidos da seguinte maneira:

a) AP = âmbito de proteção:

Engloba os atos, fatos, estados ou posições jurídicas que fomentam a realização do direito,

e que, portanto, estão protegidos pela norma. Se se considera o chamado (1) âmbito de proteção

restrito, significa que se exclui, de antemão, certos atos, fatos, estados e posições do âmbito de

proteção de uma norma que protege um direito fundamental através de uma “triagem prévia”.

Nessa triagem, se define a não-garantia de algumas condutas, que, em abstrato, poderiam ser

subsumidas no âmbito de proteção dessa norma. Contrariamente, ao tratar de um (2) âmbito de

proteção amplo, todos os atos, fatos, estados e posições que, em uma análise isolada de

qualquer outra variável, seja ela de caráter moral, legal ou proporcional, possam ser

reconduzidos ao “âmbito temático” de um determinado direito fundamental estão incluídos em

seu âmbito de proteção. No presente estudo, se adota a noção de um âmbito de proteção amplo

(2), garantindo um maior grau de proteção dos direitos fundamentais. Nesse sentido, se

considera dentro do âmbito de proteção de uma norma o que é protegido prima facie por um

direito, diferentemente do que ocorre com estudos que adotam a essa noção em sua acepção

restrita (1), em que o que está no âmbito de proteção é definitivamente protegido. Ao adotar

(2), admite-se a ocorrência de colisões normativas, visto que âmbitos de proteção amplos

facilmente esbarram um no outro, e, ao mesmo tempo, permite-se a realização de sopesamentos

para que se solucione eventuais colisões, visto que é possível, em (2), a restrição da aplicação

de uma certa norma-princípio sem que essa seja expulsa do ordenamento. Não é possível

concluir que, ao adotar uma concepção ampla de âmbito de proteção de direitos fundamentais,

se reconhece seu caráter absoluto, pois, ao identificar os atos, os fatos, os estados e posições

incluídos nesse âmbito apenas se identifica o que é prima facie protegido, restando possíveis

eventuais restrições fundamentadas, conforme a teoria dos princípios de Alexy (2009, p. 85-

176).

Na fórmula-lógica com a qual nesse estudo se trabalha, se APx e não-FC(IEx), então CJx ,

APx deve ser entendido da seguinte maneira: x é ato, fato, estado ou posição jurídica que está

incluído no âmbito de proteção do direito fundamental que se analisa, pois x pode ser

reconduzido ao seu “âmbito temático”.

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b) IE = intervenção estatal:

Segundo Virgílio Afonso da Silva (2009, p. 77), em se tratando de liberdades públicas,

“intervir” significa agir de forma restritiva, enquanto na esfera dos direitos sociais “intervir” é

não agir ou agir de forma insuficiente. Ressalva-se aqui, contudo, que melhor entendimento

para esse elemento do conceito de suporte fático seria a noção de obstaculização do direito

protegido pela norma, que pode ocorrer tanto através de uma ação quanto de uma omissão,

independentemente de se tratar de direito de liberdades ou direitos sociais, afinal, como é

contemporaneamente admitido, direitos fundamentais possuem, ao mesmo tempo, uma

dimensão positiva, suscetível a omissões, e, ainda, uma dimensão negativa, ferida através de

ações restritivas. Dessa forma, ao considerar a coexistência de duas dimensões nos direitos

fundamentais, admite-se, automaticamente, a possibilidade de sua violação através tanto de uma

omissão quanto de uma ação. Assim, neste trabalho, se considera “intervenção estatal” não

somente as ações restritivas no que se refere às liberdades, mas também as omissões que as

afetam; ao mesmo tempo, configuram “intervenção estatal” não somente as omissões do Poder

Público no que se refere a direitos sociais, mas também as ações, capazes, igualmente, de

obstaculizar a realização desses direitos. Essa é, portanto, uma noção que confere aos direitos

fundamentais proteção mais extensa.

Assim como o conceito de âmbito de proteção, intervenção estatal também pode ser

encarada sob uma ótica mais restrita ou mais ampla. A noção de intervenção em sua (1’)

acepção restrita, deve ser desenvolvida de antemão, em lista exaustiva de tudo que ela

configura, ao passo que, intervenção em (2’) acepção ampla, compreende, na esteira de Virgílio

Afonso da Silva (2009, p.112 ), todas as mínimas regulamentações relativas à forma de

exercício de um direito, isto é, toda potencial restrição ao âmbito de proteção de uma norma,

como, por exemplo, a determinação, para seu exercício, de horário, local, modo e etc. Ao se

adotar combinadamente (1), quer dizer, âmbito de proteção restrito, e (1’), a saber, intervenção

estatal restrita, trabalha-se com o conceito de suporte fático também restrito, em que não há que

se falar em restrição a direitos fundamentais ou sopesamentos entre princípios. Nunca se

configura situação de colisão entre normas, pois, para essa teoria, os âmbitos de proteção já

estão, de antemão, delimitados, e duas delas, simultaneamente, por questões de coesão do

ordenamento jurídico, não poderiam proteger e violar x, respectivamente, ou se teria

configurado o fenômeno da antinomia – contrariedade ou contraditoriedade –, resolvida pelos

critérios hierárquico, cronológico ou da especialidade, e não através de ponderação, como

ocorreria se ambas tratassem de uma posição jurídica x em caráter prima facie. Também, para

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essa acepção, não há o ônus argumentativo do aplicador para fundamentar a constitucionalidade

ou inconstitucionalidade de uma intervenção i, pois ou i está dentre as intervenções que, de

antemão, se definiram como prejudiciais ao direito ou não está. Então,

(1) + (1’) = suporte fático restrito, em que atos, fatos, estados e posições estão definitivamente

protegidos por um direito fundamental, e em que o rol de intervenções (i) que podem

atingi-lo é taxativo.

Neste estudo, contudo, adota-se (2) e (2’), cujo produto é um suporte fático amplo. Um

suporte fático amplo confere aos direitos fundamentais o maior grau de proteção possível ao

ampliar o espectro do que é x, e, ao mesmo tempo, ao exigir, em todas as situações, como

pressuposto para o aceite de intervenções em direitos, ônus argumentativo para o aplicador. Isto

é, há a obrigatoriedade de fundamentação quanto à constitucionalidade de toda e qualquer

intervenção em direitos fundamentais, por menores que sejam. A formulação lógica APx e

não-FC(IEx), então CJx destaca a essencialidade do exame das fundamentações das

intervenções em direitos, já que, se se retira a negação antes de FC, se tem uma ação, posição

ou estado, protegida, prima facie, por um direito fundamental, que sofreu uma intervenção

estatal fundamentada, e, portanto, permitida. Não obstante, para que se decida pela

constitucionalidade da restrição posta pela intervenção estatal, é exigido pela acepção ampla de

suporte fático grande esforço argumentativo do aplicador para demonstrar a existência de

fundamentação para as mínimas intervenções, o que não ocorre se se adota o conceito de suporte

fático em seu sentido restrito. Além disso, no que se refere a conflito entre normas, é na acepção

ampla de suporte fático que o caso concreto ganha relevância, já que é a partir dele que juízos

de ponderação deverão ser empregados para delimitar, à luz das circunstâncias fáticas, qual

norma princípio deve ser aplicada em maior medida. Nessa acepção ampla, colisões entre

princípios, por sua tendência expansiva, conferido pelo seu âmbito de proteção amplo, são

frequentes. Então,

(2) + (2’) = suporte fático amplo, em que todos os atos, fatos estados e posições abstratamente

passíveis de recondução ao âmbito temático de um direito fundamental é por ele, prima facie,

protegido, e que exige fundamentação constitucional para que qualquer intervenção a ele

imposta seja aceita.

A adoção, em termos de prática judicial, portanto, de um suporte fático restrito ou amplo

implica no deslocamento de concentração argumentativa. Caso se reconheça o restrito, a

principal tarefa do aplicador é identificar o que se inclui e, portanto, o que se exclui do âmbito

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de proteção de cada direito fundamental, bem como determinar qual é a extensão do conceito

de intervenção estatal. Se, contrariamente, se admite o suporte fático amplo, o aplicador estará

isento de tais tarefas, restando a carga da argumentação concentrada no momento da justificação

da intervenção. É a partir da fundamentação que se determina se certa intervenção em direito

fundamental é ou não aceita, segundo a Constituição (SILVA, 2009, p. 94). Nesse sentido, da

fórmula-lógica, se APx e não-FC(IEx), então CJx, extrai-se que, para que o suporte fático se

preencha, é necessário que a intervenção estatal que, através de ação ou omissão, obstaculizou

a realização do direito, por atingir algo que pertença ao âmbito de proteção da norma (x), não

possua fundamentação constitucional, configurando uma violação inconstitucional de direito,

ao passo que, na hipótese de haver FC, está-se diante apenas de uma restrição

constitucionalmente aceita, razão pela qual não ocorre a CJx. Isto é, para que a consequência

jurídica ocorra, é preciso que não seja possível fundamentar a omissão, o agir insuficiente ou o

agir restritivo com base na Constituição.

c) CJx = consequência jurídica

A consequência jurídica é o que ocorre quando o suporte fático de uma norma é preenchido.

Se, no caso em questão, a intervenção estatal é uma omissão ou ação insuficiente em relação a

x, que pertence ao âmbito de proteção de uma norma, a consequência jurídica é a exigência de

realizar x ou realizar x de forma completa. Se, contrariamente, a intervenção estatal que

prejudica a realização do direito fundamental é uma ação restritiva com relação a x, a

consequência jurídica é a exigência de abstenção estatal no que se refere a x.

Em resumo, não obstante a redação pouco comprometida com mundo dos fatos das normas

de direitos fundamentais, pode-se concluir acerca de seus suportes fáticos: sendo x uma posição,

positiva ou negativa, que fomente um direito fundamental por estar no âmbito de proteção da

norma que o consagra (APx), e se a intervenção estatal, revelada em uma omissão, omissão

parcial ou ação restritiva, que obstaculiza a realização do direito por ser contrária a x, não

possui fundamento constitucional {não-FC(IEX)}, o suporte fático abstrato da norma é

preenchido por sua realização em concreto, e, assim, há a consequência jurídica (CJx), que deve

ser realizar x, se a intervenção estatal for omissão total ou parcial, ou, ainda, abster com relação

à x, se a intervenção estatal for uma ação restritiva.

4. A análise do suporte fático de normas como instrumento para a definição da

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incidência normativa e sua fundamentação

Na apuração da incidência normativa, uma argumentação baseada em valorações sobre

normas apenas se restringe ao exame da partícula APx da fórmula se APx e não-FC(IEx), então

CJx, ignorando as demais. Assim, quando percebido que x pode ser reconduzido ao AP de um

direito, em uma análise de âmbito temático, entende-se que esse direito deve ser aplicado, vez

que a) há relação entre o caso e a norma; b) é possível que se formulem valorações sobre a

norma que indicam a essencialidade, em abstrato, do direito que protege. Não obstante,

defende-se que, para a determinação da incidência normativa, além de AP e x, deve-se analisar

outro elemento indispensável do caso concreto, a IEx, de forma que um direito apenas se aplicará

a um caso se x, protegido em seu AP, foi violado por IE, que não possui fundamentação

constitucional para ter ocorrido. Uma norma incide em determinado caso, porque seu suporte

fático, tomadas as circunstâncias, se preencheu, e não apenas porque se verificou relação

temática entre um direito e o objeto da ação que se decide e a essencialidade do direito segundo

convicções subjetivas e objetivas antes analisadas.

Assim, tendo em vista a potencialidade da teoria do suporte fático de aproximar os fatos e

atos descritos em abstrato, quer dizer, a norma, e a sua ocorrência no mundo da vida, pretende-

se aqui fortificar a correção do discurso, atrelando-o à noção de suporte fático, de modo a (a)

abrir espaço para a racionalização na construção de fundamentos, que significa controlabilidade

das decisões judiciais, (b) e imbricar tais fundamentos às circunstâncias do caso concreto,

facilitando a identificação das normas aplicáveis, das eventuais colisões entre direitos

fundamentais, bem como suas corretas soluções, que, idealmente, se apoiam não somente em

valorações sobre normas.

Desmembrando-se a fórmula lógica APx e não-FC(IEx), então CJx, e tendo em vista a

estrutura de direitos fundamentais, deve-se analisar:

(1) O que é x?

A resposta para tal pergunta revela os atos, fatos, estados, condições ou posições em

discussão em uma determinada ação judicial sobre direitos fundamentais. Em última análise, x

é o objeto da “intervenção estatal” discutida. Em uma ação que verse, a título ilustrativo, sobre

concessão de tratamento médico, x é o tratamento médico. Se denomina “não-x”, neste estudo,

a posição contrária a x, isto é, no exemplo dado, o “não tratamento médico”, de forma que não-

x representa a negação da concessão.

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ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais

Alethes | 441

(2) Quais normas fundamentais protegem x?

Neste estágio, devem ser suscitadas todas aquelas normas que, prima facie, guardam x em

seu âmbito de proteção. Considerando um âmbito de proteção amplo – que pode conduzir a um

suporte fático também amplo –, as normas nesta etapa levantadas são todas aquelas a cujos

âmbitos temáticos x pode ser conduzido, em um análise abstrata, isolada e irrestrita, quer dizer,

livre de qualquer variável e sem exclusões prévias.

Da resposta, é possível que se extraiam duas regras distintas, a saber:

(a) Se x está prima facie protegido pela(s) norma(s) a(b,c,...), é possível que x deva ser

realizado.

(b) Se não-x está prima facie protegido pela(s) norma(s) w(y,z...), é possível que x deva ser

abstido.

Havendo apenas a formulação da regra produzida em (a), pode-se dizer que todos os direitos

protetores de x exigem uma prestação positiva do Estado e, por isso, não há colisão, pois,

mesmo que a, b, c... demandem x em extensões diferentes, todos o demandam, e sua realização

deve se dar na maior medida possível, segundo as condições fáticas e jurídicas. É provável que

a(s) norma(s) a(b,c,...) consagre(m), portanto, direito(s) social(ais), apesar de ser possível que

essa (algumas ou todas) expresse(m) direito(s) de liberdade, em que x esteja no âmbito de sua

dimensão positiva.

Se, contrariamente, no caso concreto, for necessária a formação não só da regra expressa

em (a), mas também da descrita em (b), há um indício de configuração de uma colisão, pois

a(b,c,d...) e w(y,z...) demandam posições contrárias do Estado no que se refere a x.

Se se identifica uma pluralidade de direitos que protegem x e também não-x, é necessário

que a análise siga para todos, tornando imperioso que as perguntas subsequentes sejam

respondidas para cada um deles, em separado. Isso é especialmente relevante nos casos em que,

além de (a), se formulou também a regra disposta em (b), pois é possível que se configure, neste

caso, uma colisão de normas. Não é possível dizer que essa já exista, pois, neste estágio, ainda

não se sabe se as normas são aplicáveis ao caso concreto, pois nenhum dos suportes fáticos, até

aqui, foi preenchido.

(3) O que é a intervenção estatal?

Para a situação que gera (a), intervenção estatal é a ação, omissão total ou parcial i do

Estado, que obstaculiza a realização de x, protegido pelo(s) direito(s) fundamentais a(b,c...).

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Isso é, i é o que descumpre a regra posta em (a). No exemplo sobre a concessão de tratamento

médico, é a intervenção estatal a omissão, que embaraça, potencialmente, o direito à saúde.

Já em (b), essa mesma intervenção i, que constitui obstáculo ao(s) direito(s)

fundamental(ais) a(b,c...), fomenta o(s) direito(s) fundamental(ais) w(y,z...). Em uma situação

em que, simultaneamente, há formação das regras descritas em (a) e (b), portanto, como já dito

em (2), há uma possível colisão das normas, pois a mesma posição do Estado i, não pode

respeitar os direitos envolvidos em (a) e em (b) ao mesmo tempo, pois um, o expresso em (a),

exige uma atuação positiva com relação a x, enquanto o outro, disposto em (b), exige uma

posição negativa (não-x).

Considerando a intervenção estatal i em direitos fundamentais, pode-se complementar as

regras anteriormente construídas:

(c) Se x está prima facie protegido pela(s) norma(s) a(b,c...), é possível que x deva ser

realizado, sendo que a intervenção i, que nega x, é prima facie proibida.

(d) Se não-x está prima facie protegido pela(s) norma(s) w(y,z...), é possível que x deva

ser abstido, sendo que a intervenção i, que nega x, é prima facie obrigatória.

Se, em um mesmo caso, há necessidade de construção das duas regras, e não só as expressa

em (c), é possível afirmar que há uma provável colisão de direitos fundamentais no caso em

exame – que só poderá ser confirmada ao final dessa análise, vencidas todas as etapas -, cuja

identificação, defende-se, depende da análise prévia da fórmula se APx e não-FC(IEx), então

CJx, e cuja solução se apoia nas informações fornecidas pelo estudo das partículas que

compõem a referida fórmula. Formadas ambas as regras descritas no estágio (3), (c) e (d), pode-

se dizer, com maior segurança da que havia em (2), que a colisão entre normas deve se formar,

já que, aqui, se tem em vista um elemento do suporte fático que em (2) ainda não se cogitava.

Assim, pode-se concluir que, quanto mais avançada for a etapa do roteiro em que se esteja, mais

certeza há quanto a formação de um eventual conflito normativo entre as normas-princípios

sobre as quais as regras (c) e (d) versam.

(4) A intervenção estatal i, e, por consequência, sua negação não-i, possuem fundamentação

constitucional?

A resposta para essa pergunta depende de análise sistemática dos textos constitucionais.

No caso de resposta afirmativa para a pergunta em (4), a intervenção estatal i quanto aos

direitos fundamentais que se estuda em determinada ação judicial deve ser admitida,

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ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais

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constituindo restrição permitida aos direitos em análise. Contrariamente, se negativa a resposta,

trata-se de intervenção estatal i que, injustamente, restringe direito fundamental. Nesse caso, a

possibilidade de configuração de colisão entre direitos subsiste.

Assim, existem as seguintes possibilidades, distinguidas em duas situações, a saber:

(e) Se x está prima facie protegido pela(s) norma(s) a(b,c,...), é possível que x deva ser

realizado, sendo que a intervenção i, que nega x, mas possui fundamentação

constitucional, é definitivamente permitida.

Conclusão: a intervenção i é permitida, ainda que a(b,c,...) exija(m) não-i para a

realização de x.

(f) Se não-x está prima facie protegido pela(s) norma(s) w(y,z...), é possível que x deva

ser abstido, sendo que a intervenção i, que nega x e possui fundamentação

constitucional, é definitivamente obrigatória.

Conclusão: a intervenção i é obrigatória, já que w(y,z...) exige(m) i para negar x (isto é,

não-x).

Nessa hipótese, em que há fundamento constitucional para a obstaculização de direito a (b,

c ...) no que se refere a x, como manifestado em (e), a colisão de direitos fundamentais não

persiste. Isso ocorre pois os mandamentos definitivos extraídos das regras, a saber, permissão

e obrigação, sendo figuras de qualificação normativa subalternas, são perfeitamente

harmonizáveis, no sentido de que, se se presume que a obrigatoriedade intervenção i posta em

(f) é verdadeira, deduz-se a verdade também da permissão expressa em (e). Há uma relação de

implicação necessária entre a obrigatoriedade e a permissão no sentido de que, ao se assumir a

verdade de (f) se admite também (e), e, por isso, não há antinomia. (BOBBIO, 1999, p.84).

Contrariamente, tem-se:

(g) Se x está prima facie protegido pela(s) norma(s) a(b,c...), é possível que x deva ser

realizado, sendo que a intervenção i, que nega x e não possui fundamentação

constitucional, é definitivamente proibida.

Conclusão: a intervenção i é proibida, e a(b,c,...) exige(m) não-i para que se realize x.

(h) Se não-x está prima facie protegido pela(s) norma(s) w(y,z...), é possível que x deva

ser abstido, sendo que a intervenção não-i, que realiza x e não possui fundamentação

constitucional, é definitivamente proibida.

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Conclusão: a intervenção i é obrigatória, e w(y,z..) exige(m) i para que se negue x (isto

é, não-x).

Neste caso, houve preenchimento do suporte fático tanto da(s) norma(s) a(b,c...), quanto

da(s) w(y,z...). O fato de não haver fundamentação constitucional para a postura i do Estado,

que bloqueia a realização de direito social quanto a x, torna i uma restrição proibida na

perspectiva de a(b,c...), de modo que essas normas exigem não-i. Apesar disso, caso se resolva

a demanda judicial com a obrigatoriedade de não-i, se restringe a(s) norma(s) w(y,z...). Se há

fundamentação constitucional para a restrição, não há problema, pois os suportes fáticos das

referidas normas não se preencheriam. Em (h), contudo, trabalha-se com a hipótese de que não

haja fundamentação para a intervenção, de modo a configurar a colisão, uma vez que não se

pode conciliar a proibição de i determinada em (g) com a obrigação de i que se exige em (h).

Há, na esteira de Norberto Bobbio, um relação de contrariedade estabelecida entre as regras

expressas em (g) e (h), o que determina a antinomia, de modo que ambas não podem ser

verdadeiras, mas podem ser, as duas ou apenas uma, falsas (1999, p.81-114). Como os critérios

de resolução de antinomia – cronológico, hierárquico, e de especialidade - não possuem

aplicabilidade para (g) e (h), Bobbio afirma que a solução do conflito deve ser confiada à

liberdade do intérprete, já que, de fato, há casos em que nenhum dos critérios por ele

apresentados são suficientes para solucionar a antinomia (1999, p.100). Ocorre que as normas

que deram origem as regras elaboradas, as quais demonstram a colisão, são normas-princípio,

de modo que o aplicador deve se voltar, obrigatoriamente, para técnica hermenêutica da

proporcionalidade com relação a a(b,c,d...) e w(y,z...).

(5) Deve haver consequência jurídica?

Se, da resposta em (4), chegou-se as regras expressas em (e) e (f), o suporte fático da(s)

norma(s) do(s) direito(s) em debate, isso é, a(b,c,d...), não foi preenchido, e, por isso, não se

deve falar no desencadeamento da(s) consequência(s) jurídica(s) do(s) direito(s) analisado(s),

sendo esse o sentido que deve ser seguido pela decisão.

Contrariamente, se a regra formulada no estágio (4) foi aquela descrita em (g), ou, ainda,

foram, simultaneamente, as expressas em (g) e (h), os suportes fáticos dos direitos envolvidos

na ação se preencheram, e, por isso, deve-se proceder ao estágio (5), em que considera a CJx.

Assim, há as seguintes possibilidades:

• Se, da resposta em (4), apenas se formulou a regra em (g), resta a seguinte regra final:

(i) Se x está protegido pela(s) norma(s) a(b,c...), x deve ser realizado (CJx), sendo a

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ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais

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intervenção i, que nega x e não possui fundamentação constitucional, definitivamente

proibida.

Nesse caso, a decisão judicial deve apontar para a submissão do Poder Público à

consequência jurídica da(s) norma(s) em análise; quer dizer, o Estado deve ser condenado a

realizar x.

• Por outro lado, se, da resposta em (4), se formulou as regras (g) e também (h), restam as

regras finais em (5):

(j) Se x está protegido pela(s) norma(s) a(b,c...), x deve ser realizado (CJx), sendo a

permissão da intervenção i, que nega x e não possui fundamentação constitucional,

definitivamente proibida.

Conclusão: a intervenção i é proibida; a(b,c,d...) exige(m) a intervenção não-i para que

se realize x.

(k) Se não-x está protegido pela(s) norma(s) w(y,z...), x deve ser abstido (CJx), sendo que

a intervenção não-i, que realiza x e não possui fundamentação constitucional, é

definitivamente proibida.

Conclusão: a intervenção i é obrigatória, de modo a negar x (isto é, não-x).

Nessa última hipótese, resta confirmada a colisão de direitos fundamentais, identificada pela

aplicação da noção de suporte fático, e para solução da qual a análise demonstrada possui

grande relevo, visto que dela levantam-se as circunstâncias do caso concreto relevantes para

que se proceda com os juízos de ponderação, nos quais se confrontam os direitos expressos

pelas normas a(b,c...) e, de outro lado, w(y,z...).

Tendo em vista, portanto, a hipótese que implicou na formação das regras descritas em (j)

e (k), tem-se a colisão principiológica:

[se x está no AP de a(b,c...) e não-FC(i em x), então CJ de a(b,c...) para não-x]¹ X

[se não-x está no AP de w(y,z...) e não-FC(não-i em não-x), então CJ de w(y,z..) para x]².

Considerando-se o caso concreto, é possível - contrariamente do que ocorre em abstrato -

estabelecer dimensões de peso para cada norma-princípio colidente (ALEXY, 2009, p.94). A

partir disso, é possível que se configurem relações de precedência condicionada entre

princípios, que determinam que, nas condições C do caso concreto, a aplicação de um princípio

tem preferência em face do outro; quer dizer, (P¹ P P²) C. É, assim, a criação de regras de

precedência que faz com que, mesmo que uma norma-princípio² tenha seu suporte fático

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preenchido - [se APx e não-FC(IEx), então CJx]² -, essa não encontre aplicação, ou encontre-

a, mas restringida, para que a norma-princípio¹, que possui maior dimensão de peso sob as

condições C, seja aplicada em maior medida, segundo as possibilidades fáticas e jurídicas de

sua realização. Atribuir maior peso à norma P¹, em detrimento de uma P², significa, portanto,

que há, no caso concreto, razões suficientes para que P¹ prevaleça sobre P². A relação de

prevalência, destarte, depende de fundamentação segundo o caso concreto para P¹ P P², pois

nenhuma norma pode pretender precedência em abstrato.

Uma vez opostos P¹ e P², portanto, como dito, deve ser aplicada a proporcionalidade. Do

resultado correto dessa, chega-se a solução da colisão entre princípios (P¹ P P²) C, a partir da

qual pode ser formulada a chamada norma fundamental atribuída, que tem estrutura de uma

regra e à qual o caso pode ser subsumido (ALEXY, 2009, p. 102). Essa regra pode ser

genericamente estabelecida da seguinte forma:

(l) Sob as condições C, que envolve as circunstâncias R¹(R², R³...) a interferência i é

definitivamente obrigatória/ proibida.

É, então, com a regra l que a discussão judicial se encerra.

5. Conclusão

1. Valorações, embora admitidas em argumentação jurídica, não são suficientes para

sustentar decisões sobre direitos fundamentais, visto que para a investigação da incidência

normativa (se APx e não-FC(IEx), então CJx), bem como para a aplicação da técnica da

ponderação, é necessária a consideração de certas circunstâncias do caso concreto;

2. Defendeu-se, neste estudo, a análise da fórmula se APx e não-FC(IEx), então CJx,

que engloba o exame dos elementos fáticos mínimos necessários para a determinação da

incidência normativa, identificação e solução de colisões. Por ser uma técnica racional, e,

portanto, verificável, tem potência para auxiliar o discurso jurídico no alcance de uma decisão

correta.

3. A acepção ampla da noção de suporte fático tem como implicação prática a exigência

de grande esforço argumentativo do aplicador, que deve demonstrar a constitucionalidade das

mínimas IE para que essas sejam aceitas, ao contrário do que ocorre se se adota o suporte fático

restrito, em que o ônus argumentativo está em definir, a priori, o que está definitivamente

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ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais

Alethes | 447

protegido pelos APs dos direitos, e ainda construir rol taxativo de IE para cada. Percebe-se,

assim, que, pela ampliação de AP e IE e, ainda, pelas exigências impostas por este modelo à

argumentação, que importam no deslocamento do foco argumentativo, é possível que se alcance

a proteção de direitos fundamentais na maior medida possível – excluída sua proteção absoluta.

Ademais, vê-se que aceitar a acepção ampla é pressuposto da teoria dos princípios de Alexy e

da possibilidade de ocorrência de colisões entre princípios, pois, na acepção restrita, apenas se

configuram conflitos do tipo contrariedade ou contraditoriedade – antinomias.

4. Encarando os elementos dessa noção como etapas do discurso, tem-se a necessidade

de se proceder: 1º) ao reconhecimento e à análise dos APs dos direitos que prima facie

protegem x, e, por questões de coerência, não-x, e 2º) à fundamentação da IE em x e não-x com

relação a cada direito. Ao final da análise, se atinge as conclusões sobre as normas aplicáveis.

5. A referida fórmula lógica, exige, no discurso, portanto, a) a investigação de todos os

direitos que, potencialmente, incidam em um caso, conferindo-lhes extensa proteção ao atribuir

pesado ônus argumentativo para que o aplicador demonstre o fundamento de toda e qualquer IE

sofrida por cada um deles, b) a consideração, ao menos, daqueles aspectos do caso

indispensáveis para aplicação de normas principiológicas, pois necessários para a identificação

e solução das colisões normativas através de regras de precedência. Dessa maneira, se assegura

controlabilidade ao discurso jurídico, pois o torna verificável e capaz de esclarecer, de forma

lógica, o motivo pelo qual P¹ é aplicado nas circunstâncias C e a proporção em que esse se

aplica, justificando a aplicação mais restrita de P².

6. Referências bibliográficas

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Entrevista com Bonita

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Entrevista com Bonita

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Entrevista com Bonita

EntrevistaEntrevistaEntrevistaEntrevista

Bonita Meyersfeld é uma acadêmica e advogada em Direitos Humanos. Ela é diretora

do Centro de Estudos Jurídicos Aplicado e professora associada da Wits Law School, onde

leciona Direito Internacional e direitos humanos e direito penal internacional. É também editora

da South African Journal of Human Rights e editora e fundadora do Conselho de Advogados

contra Abusos. É Mestre e Doutora pela Yale Law School e autora do livro Vioência Doméstica

e Direito Internacional.

Bonita Meyersfeld: Olá, Rafael!

Rafael: Olá, então, primeiramente gostaria

de agradecê-la imensamente por aceitar dar

esta entrevista, ela é muito importante para

nós.

B: Imagina, é um prazer!

R: Vou fazer as perguntas na ordem que te

envei por e-mail.

B: Claro.

R: A primeira é: Levando em consideração

a crise institucional enfrentada ultimamente

pelo Sistema jurídico, gostaríamos de saber

quais são os desafios e obstáculos em

relação ao Sistema educacional na África do

Sul.

B: O primeiro obstáculo é financeiro. Os

estudantes sul-africanos em geral enfrentam

grandes níveis de pobreza e isso, mais do

que qualquer outro fator, impede os

estudantes de entrarem para as

Universidades. Aqueles que entram, que

são capazes de juntar dinheiro suficiente

para entrar para uma Universidade

frequentemente não tem dinheiro suficiente

para pagar as taxas para ficar na

Universidade. Então, você pode perceber

que as finanças são uma barreira para uma

educação superior na África do Sul.

Igualmente, porém, é importante relembrar

que os problemas financeiros estão ligados

à raça, na África do Sul. A maioria do país

vive na pobreza e a maioria é negra. Então,

há um alinhamento entre a raça e a pobreza

neste país, o que é legado do apartheid. 80%

da riqueza deste país pertence a 10% da

população e esses 10% são

predominantemente brancos. Então, isso

significa que as pessoas negras estão

efetivamente sendo excluídas da educação.

O segundo problema que é bastante hostil

para os estudantes é o problema do

privilégio branco e do conteúdo do que nós

ensinamos em nossas disciplinas.

Tendemos a ensinar sobre teorias, valores,

princípios e leis ocidentais, europeias ou

estadunidenses e nós não olhamos para o

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Entrevista com Bonita

continente africano ou o hemisfério sul para

basearmos nosso trabalho. Então… há um

problema em que vários estudantes vêm

para a universidade e consideram-na

alienante. Acredito que esses são alguns dos

elementos principais.

R: Ok. Então, a segunda pergunta. Você

estudou e atualmente trabalha na África do

Sul, um país em desenvolvimento. Contudo,

você também passou algum tempo em

países como a Inglaterra e os Estados

Unidos, tanto para propósitos acadêmicos,

quanto a trabalho. Portanto, com isso em

mente, quais as discrepâncias observadas

por você nas tradições desses países em

relação à educação em direito? E você

acredita que o direito e o Sistema jurídico

tem o mesmo papel nestes países ou são

diferentes?

B: Bem, a discrepância entre a África do

Sul, a Inglaterra e os Estados Unidos são, eu

diria, relacionadas de novo aos recursos. As

universidades nos Estados Unidos são

muito ricas, com recursos grandiosos. A

biblioteca da universidade que frequentei,

por exemplo, era cinco estrelas em

infraestrutura, computadores, havia um

sistema integrado de empréstimo, que era

ligado a outras quatro Universidades da Ivy

league e às bibliotecas em Washington.

Logo, é o contrário da África do Sul, onde

nós temos uma biblioteca de apenas um

andar de livros didáticos, ao menos na

Faculdade de Direito. O sistema de

universidades é simplesmente privado de

recursos. E então, creio que havia também

um ethos diferente na preparação,

preparação para exames e preparação para

as aulas, uma diferente cultura de leitura

para as aulas e de estar preparado, mas

acredito que tenha mais a ver com a

universidade que eu frequentei e menos a

ver com o sistema educacional dos Estados

Unidos. É uma Universidade da Ivy league

e há um nível de competição maior, o que

acredito que faça diferença. Eu não creio,

porém, que essa é uma diferença de todas as

Universidades nos Estados Unidos, mas

diria que é sim uma diferença de calibre dos

professores. Penso que há muita competição

para conseguir um trabalho acadêmico nos

Estados Unidos, então são realmente os

melhores do mais alto nível que estão

ensinando. Mas, de novo, acredito que é

algo somente do nível de uma Universidade

da Ivy league e não necessariamente dos

Estados Unidos e da Inglaterra. Eu diria que

o nível dos melhores estudantes é o mesmo

tanto na África do Sul, quanto nos Estados

Unidos e na Inglaterra. Os melhores

estudantes dessas universidades têm igual

inteligência, igual capacidade e acredito que

isso é apenas a medida em que há uma

extremidade inferior de estudantes que não

vão bem, o que é diferente, certo? Nas

Universidades da Ivy League, os estudantes

mais pobres, que não vão tão bem, mesmo

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Entrevista com Bonita

assim, acabam tendo sucesso. Enquanto

isso, estudantes na África do Sul que não

vão bem geralmente acabam falhando. E, de

novo, acredito que é por causa da diferença

da Ivy League. Imagino que se estivesse em

uma universidade pública nos Estados

Unidos haveria um grande nível de

fracassos também.

R: Entendo. Então, a segunda parte da

questão: você pensa que o direito e o

Sistema jurídico têm o mesmo papel nestes

países? Como é a África do Sul em relação

à Inglaterra e aos Estados Unidos.

B: Sim, acredito que eles têm. Acredito que

eles são... certamente todos uma

democracia. Os Estados Unidos e a África

do Sul, claro, são democracias

constitucionais. Todos os três têm o

tradicional como um terceiro braço do

governo e que fornece verificação e saldos

no executivo, acho que fizeram muito bem ,

então eu acho que alguns de há alguns dos

graus de respeito pelo direito. E acredito

que há outros níveis de acesso limitado à

justiça baseados na pobreza. Então, as

pessoas que vivem na pobreza, que se

encaixam nas minorias raciais nesses

países, a maioria das pessoas não pode

pagar pelo acesso ao sistema legal. E

acredito também que há outra semelhança

entre eles: frequentemente os juízes nesses

sistemas têm preconceitos que agem contra

essas pessoas que vivem na pobreza, e isso

é um problema da mesma forma. E, entre

essas três jurisdições, acho que há também

uma falta de diversidade na traditionary,

pois as mulheres, em particular as mulheres

negras, são muito sub-representadas em

todos os três países. É claro que é

particularmente problemático na África do

Sul, porque as mulheres negras representam

40% da população, sendo consideradas

como o maior grupo no país. As mulheres

em geral constituem 51 % do país. Então é

realmente problemático na África do Sul.

R: É a mesma coisa no Brasil. A terceira

questão é: Qual a amplitude e qual a

importância dada à pesquisa acadêmica na

África do Sul? E, dado este cenário, como

você avalia o envolvimento de graduandos

na pesquisa na África do sul, se é que há

algum?

B: Acredito que o governo é… você sabe,

depende da perspectiva. O governo sul-

africano tem um fundo que subsidia o

ensino superior e que aloca um pouco de

dinheiro na pesquisa. Você sabe, acredito

que ninguém vai dizer que é suficiente, mas

acho que nós valorizamos bastante a

pesquisa. E quanto aos graduandos, acredito

que não são suficientemente encorajados

em fazer sua própria pesquisa. Acredito que

há um problema que está ligado a todo o

nosso Sistema educacional. Por causa da

história do apartheid, nosso Sistema

educacional é ainda muito falho e não

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Entrevista com Bonita

prepara as pessoas adequadamente para a

educação universitária, que requer que os

estudantes escrevam, pesquisem e

desenvolvam suas próprias teorias e

pensamentos. Então acredito que o governo

não é ruim, e que nossas instituições não são

ruins, mas esse legado do apartheid que

continua a determinar os estudantes aptos

na universidade e no nível de graduação

para realizar pesquisa.

R: Ok. Agora, a quarta questão: Como você

vê a importância da participação feminina

na área acadêmica? Dado que o campo

acadêmico é comumente representado por

figuras masculinas.

B: Bem, isso é essencial! Existem várias

razões pelas quais a inclusão das mulheres

na academia é importante. A primeira é por

causa da representação. Quando estudantes

vêm para aula, não é bom que vejam apenas

homens lecionando, eles têm que ver

diversidade. Assim, as mulheres podem

acreditar que também podem aspirar a isso.

Claro que mulheres têm a mesma

capacidade que os homens. Então, se elas

não são admitidas na Academia significa

que estamos perdendo 50% do potencial das

pessoas, o que demonstra que temos uma

academia fraca. E, por último, eu penso que

há uma perspectiva feminina trazida pelas

mulheres, não porque elas são

biologicamente inclinadas nesse sentido,

mas porque elas têm uma experiência de

vida sobre discriminação, o que influencia o

trabalho delas. E isso cria um contexto

acadêmico mais diversificado, em que tanto

estudantes quanto alunos podem florescer.

R: A segunda parte desta questão é sobre

como você analisa a existência do que nós

podemos chamar de sexismo acadêmico, e

as dificuldades enfrentadas pelas mulheres

nessa área. Ao tentar entrar na área

acadêmica, quais os desafios elas enfrentam

que os homens usualmente não enfrentam?

B: Há um nível muito alto de sexismo na

academia. Isso significa que há um sexismo

para iniciar, o que inclui comentários sobre

suas habilidades pessoais para fazer o

trabalho deles, e que elas não podem fazer o

trabalho por serem mulheres. Ou

comentários sobre seus aspectos físicos ou

que subestimam sua capacidade intelectual

como pessoa. Então, eu penso que também

existem barreiras implícitas, as pessoas

tendem a usar autoridades masculinas em

suas pesquisas e não femininas. Homens

são mais aceitos quando eles estão em busca

de promoções, enquanto as mulheres são

consideradas menos capazes, sendo que são

tão capazes quanto eles. Então, eu acho que

existem estruturas e barreiras que

conduzem as mulheres, ou impedem seu

desenvolvimento na academia, então elas

acabam desistindo. O outro grande

problema é o assédio. Existem altos níveis

de assédio sexual de membras da academia

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Entrevista com Bonita

e de alunas. Esse nível de assédio sexual

não é somente por palavras ou ser

dispensada por ser mulher, é também

violência física. As estruturas da

universidade não impedem que essa

violência aconteça, também não lidam

quando isso acontece. Então você tem

impunidade para essa violência, o que

naturaliza a violência contra mulheres,

transformando a universidade em um lugar

muito hostil para estarem.

R: Obrigado. Agora a última questão. Como

advogada internacionalista e defensora dos

direitos das mulheres, como você pensa que

o Direito Internacional é capaz de atuar na

defesa da mulher? E, se você puder, apontar

os maiores desafios e mecanismos em atuar

nesta área.

B: Bem… Direito Internacional é sobre

padronização de ações pelos Estados. E os

direitos das mulheres são

fundamentalmente protegidos pelos

Estados. Então, ele serve para criar um

padrão maior de proteção dos direitos das

mulheres em nível estatal. Alguns Estados

são fortemente influenciados pelo que é

chamado de direito tradicional, ou direito

costumeiro, que pode se opor aos direitos

das mulheres ou ter princípios que impeçam

as mulheres de escapar da discriminação e

da opressão. O Direito Internacional

também tem uma notável habilidade para

executar campanhas, como por exemplo a

“16 dias de ativismo contra a violência

contra mulheres e crianças”. E enquanto a

campanha não é uma resposta, uma solução

em si mesma, certamente ajuda a lidar com

isso e traz atenção para alguns dos danos

sofridos pelas mulheres, em razão de

violência em razão do sexo e do gênero Eu

penso que as cortes internacionais têm

também um papel a cumprir, em termos de

desenvolvimento jurisprudencial que pode

ser aplicado em cortes nacionais para

proteger direitos das mulheres. As cortes

internacionais, como a Corte Europeia de

direitos Humanos, por exemplo, ou a Corte

Interamericana de Direitos Humanos, são

tribunais que frequentemente têm julgados

sobre direitos das mulheres. Esses julgados

não estão restritos a tais tribunais, mas eles

começam a influenciar o Direito e as

decisões dos tribunais nacionais. Por

exemplo, havia um caso na Corte Europeia

de Direitos Humanos, sobre uma jovem que

foi estuprada quando tinha 14 anos, e por

não ter chorado e permanecido em silêncio

por estar tão assustada, a corte do país

entendeu que não havia estupro. O país era

a Bulgária. Esse caso foi para a Corte

Europeia dos Direitos Humanos, onde os

juízes entenderam que simplesmente

porque ela se manteve silêncio, isso não

significa que ela consentiu. Silêncio é, na

verdade, uma manifestação de extremo

terror e trauma, uma vez que nem todo

mundo se defenderia e não há uma resposta

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uniforme ao estupro. Essa decisão foi

incorporada ao Direito búlgaro, que se

alterou, e foi também incorporada a outras

decisões de tribunais nacionais e

legislações. Então, você pode ver como o

Direito Internacional pode atuar partindo de

um nível internacional e global para as

especificidades dos sistemas judicial e legal

nacionais.

R: Bem, acho que é isso. Essa foi a última

pergunta.

B: Ótimo!

R: Ok. Então, muito obrigado novamente!

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Poemas

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Poemas

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ALFORRIA-ME! Mateus P. Gomes1 Não, não tive alforria. Não, enquanto me assola a vil miséria e a cor da minha pele é razão de pilhéria. Não, não tive alforria. Não, enquanto os chicotes que me açoitaram Substituírem-se pelos cassetetes que me calam. Não, não tive alforria. Não, quando, na minha luta, o âmago For fugir da fome que violenta o estômago. Não, não terei alforria. Não, enquanto eu for pária do mundo que me parira. Não, enquanto for semente e fruto de tantas iras.

1 Graduando do 5° Período de Direito da Faculdade Católica do Tocantins. Membro do Centro Acadêmico de Direito da Faculdade Católica do Tocantins. Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

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Poemas

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PEDAÇO DE POESIA. Mateus P. Gomes

2

Que minha poesia Tenhas vozes, Além das vozes Que tivera um dia. Que essa poesia, Que já nasce morta E não sabe onde cair viva, Seja mais. Mais que as palavras dessa folha, Mais que as letras, Em conjunturas gramaticais, Na tela desse computador. Que esses versos tão indolentes Tenham dolo na intenção De abusar da tua alma E, por isso, recebam “perpétua”. Que essa poesia tão frágil Possa pegar o universo com as mãos E rasgá-lo em dois - Matéria e metafísica. Pra depois transformá-lo em um. Que essa poesia seja isso tudo E não seja nada. Que ela seja tudo que desejar, Exatamente por nada desejar. Que essa poesia seja um eterno Que ressuscita em vários efêmeros. Porque essa poesia sou eu! Essa poesia é tudo que tenho. Essa poesia é um punhado divino

2 Graduando do 5° Período de Direito da Faculdade Católica do Tocantins. Membro do Centro Acadêmico de Direito da Faculdade Católica do Tocantins. Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

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Poemas

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Que resolveu se profanar em mim. Eu sou essa poesia morta Com hora marcada pra nascer.

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Poemas

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NO FUNDO DA MENTE Eduardo Gonçalves Monteiro3 A gente de credo e cor A gente do sexo frágil Quem ama e não tem amor A gente que pecou nascendo O fruto podre no pomar demétrio Que feito praga Rodeia todo o belo e o estraga A gente que comete erros Que não orna o total Que cai frente as regras Dos dois pesos Das duas medidas Acostumados à sombra da mente No desritmar do cotidiano esquecemos Que também nascemos gente

3 Estudante de Relações Internacionais no Centro Universitário Curitiba.

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Poemas

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RIACHO

eu sou um riacho em pessoa

rio at� do meu pr�prio fiasco

e n�o sei mais � descaso ou sorte

o fato de rir ante o atraso da morte

Rafael Pinter4

4 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (9º semestre).

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Poemas

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José Renato Venâncio Resende5

colore folha branca

boca muda, mão que fala

letras d’alma arranca

*****

em três versos

encaixo completo

todo o universo

*****

MANDAMENTO

ame

alguém

amém

*****

Quando se mesclam coração e cruz

Abra seu caderno

Para a dor que a tinta traduz

5 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia.

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Poemas

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Epílogo

como dádiva, o presente

de todos os tempos perdidos

meu passado desfeito

aquele devir do subjuntivo

e o pretérito eterno imperfeito

se eu fosse intuitivo

o que faria

como seria se um dia

eu terminasse o que dizia

entrelaçados

eu encontrasse todos eles

na face dos espelhos

muito mais do que tempos verbais

inertes, esperando apenas meu sim

sim

de agora em diante

cada verso é um novo fim

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PUDERA EU! Augusto Silva Ávila6 Pudera eu na cegueira em latência Ao menos alguns instantes, enfim, Não ver o supérfluo e as aparências, Que criam as ilusões deste confim. Pudera eu, alguém conhecer, Quem sabe não enxergar, Não ver, mas reconhecer, E assim me conectar. Pudera eu ter desconfiado, Que meus olhos têm mentido. Quisera eu ter enxergado O que deveria ser sentido. Pudera eu cego, ainda ver a vida De todas suas formas ser vidente, Não só a luz fracionada, refletida, Mas a do coração e da mente. Pudera sermos todos cegos, Mudos, surdos, intangíveis Transpor aparências, egos, Ser luz que ilumina, iniludíveis.

6 Graduando em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Itajubá.

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Poemas

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SAMSARA Igor Ladeira dos Santos7 Na viagem da alma, conheci o Verbo. E o Verbo ensinou-me a oração. Aprendi a juntar as duas coisas e criar a minha religião. Nessa viagem foram muitas as minhas moradas. Todas me fizeram mudanças. Em cada uma recebi várias visitas, mas de poucas trago lembranças. Eu já fui pó, já fui planta, já fui gente. Já fui Deus, herói, vilão e inocente. Essa minha estrada é muito comprida. Tão longa que desconheço o ponto de partida. Hoje em dia, gosto de visitar a Capela, pois ela lembra-me minha infância. Relembro os velhos tempos em que era mais do que uma pequena criança. Meu espírito faz parte do Brama, incluso nessa roda de acontecimentos. Minha vida é a água da chuva. Minha alma é a brisa do vento. A viagem da alma não cessa. O Verbo não para. Vou vivendo e aprendendo, Enquanto aguardo o término de meu Samsara!

7 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Normas de publicação

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Normas de PublicaçãoNormas de PublicaçãoNormas de PublicaçãoNormas de Publicação

1. Regras Gerais 1.1 Todo artigo deve ser de autoria exclusiva de graduandos, não havendo restrições

com relação a área de conhecimento abordada, desde que dialoguem com a temática jurídica. 1.2 Para cada artigo submetido será aceito para avaliação apenas 1(um) trabalho como

primeiro autor e os demais como co-autor, não podendo ultrapassar o máximo de 3 (três) no total.

1.3 Para a submissão de trabalhos, o autor deve enviar três arquivos em formato Word (.doc ou .docx) para o e-mail do periódico ([email protected]): um arquivo com o texto completo do artigo; um segundo arquivo com o mesmo texto, mas sem a identificação do autor; e um terceiro arquivo apenas com os dados (nome completo, filiação institucional e contatos) do(s) autor(es) e área do Direito que abordada diretamente no trabalho.

1.4 Os trabalhos devem conter de 15 a 20 laudas e estar de acordo com a formatação descrita nos itens abaixo e disponíveis no site do periódico: http://periodicoalethes.com.br/.

1.5 O artigo submetido deverá ser inédito, e não estar sob avaliação de nenhuma outra revista. Entretanto, obras publicadas em anais de congressos e outros eventos acadêmicos podem ser republicados na revista, contanto que tenham ocorrido alterações substanciais.

2. Critérios de avaliação e aceitação dos artigos. 2.1 Todo artigo será submetido à análise do Conselho Editorial, sendo enviados a dois

pareceristas anônimos para avaliação qualitativa de conteúdo, segundo o método da avaliação duplo-cega por pares.

2.2 Os pareceristas serão definidos pelos editores de acordo com a área de atuação/formação, a qual deverá ser, na máxima medida do possível, coincidente com a temática do artigo a ser avaliado.

2.3 Os pareceristas deverão optar por uma das seguintes recomendações: Aprovado; reprovado; aprovado com necessidade de alterações. Caso haja uma aprovação e uma reprovação, o artigo será enviado a um novo pareceristas para decisão final.

2.4 Recebidos os pareceres pelo Editor, esse definirá a publicação ou não dos artigos, enviando as justificativas e especificações necessárias ao autor, com o intuito que ele possa adequar seu trabalho às sugestões feitas e reenviá-lo para nova avaliação.

2.5 Os pareceres poderão conter indicações de bibliografia, sugestões de mudanças na estrutura dos textos, acréscimo ou subtração de informações, críticas, elogios, sugestões e outras observações julgadas pelo pareceristas como pertinentes para a melhoria do conteúdo do artigo e para a adequação deste aos critérios definidos pela revista.

2.6 Feitas as alterações pelos autores, caso sejam aprovadas pelo conselho editorial, o artigo será publicado. A ALETHES, no entanto, reserva-se o direito de colocar as obras nos números seguintes, conforme for a conveniência.

2.7 O processo de análise dos artigos terá o prazo de 30 a 45 dias, que se iniciará ao fim da chamada de artigos, definido neste edital.

2.8 Serão utilizados como critérios: a adequação à metodologia científica; a relevância do tema e a originalidade da abordagem; o bom delineamento do objeto de pesquisa; a qualidade na seleção e no manejo da bibliografia pertinente; a utilização da norma culta da língua portuguesa; e outros que forem julgados pertinentes.

2.9 A decisão dos editores é final, e dela não cabe recurso.

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Normas de publicação

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3. Estrutura e Formatação dos artigos. 3.1 Os artigos devem ser apresentados digitados em folha A4 (210 x 297 mm). 3.2 Editor de texto Word for Windows 6.0 ou posteriores. Times New Roman, tamanho

12. 3.3 Margens esquerda, direita, superior e inferior de 2 cm. 3.4 Espaçamento e Parágrafos: Espaçamento 1,5 entre linhas, com texto justificado.

Parágrafo recuado 1,25 da margem esquerda e sem espaço entre parágrafos. 3.5 Texto.

3.5.1 A primeira página deve conter título (português e inglês) com no máximo 15 palavras, com alinhamento centralizado, fonte Times New Roman, tamanho 14, destacado em negrito

3.5.2 O nome do(s) autor(es) deve vir logo abaixo do título, com duplo espaço, fonte Times New Roman, tamanho 12 e alinhados à direita.

3.5.3 O nome do autor deve ser acompanhado pela primeira nota de rodapé, contendo um breve currículo do autor, levando em consideração a Instituição e o curso do graduando

3.5.4 A primeira página deve conter um resumo em português – antecedidas pela expressão “Resumo:”, também em português e inglês - com no máximo 300 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 12.

3.5.5 As palavras-chave devem figurar logo abaixo do resumo, em um número máximo de 5 palavras, com espaçamento simples, antecedidas da expressão “Palavras-chave:”, em português e inglês; separadas entre si por ponto e finalizadas também por ponto.

3.5.6 O texto, de forma geral, deve ser digitado, fonte Times New Roman, tamanho 12, alinhamento justificado.

3.5.7 As notas devem ser postas no rodapé do texto, numeradas em sequência, fonte Times New Roman, tamanho 10, alinhamento justificado.

3.5.8 As citações devem seguir a regra: se menores que três linhas, serem inseridas diretamente no texto, entre aspas, com indicação da devida referência, de acordo com as normas da ABNT. E, se maiores que três linhas, devem ser destacadas com recuo à esquerda de 4 centímetros, fonte Times New Roman, tamanho 10, com a indicação da devida referência, de acordo com as normas da ABNT. 3.6 Referências Bibliográficas: As referências completas deverão ser apresentadas, em

ordem alfabética e no final do texto, de acordo com as normas da ABNT. 4. Disposições Finais 4.1 As opiniões contidas nos artigos são de inteira responsabilidade dos seus autores, de

modo que a ALETHES não se responsabiliza pelo conteúdo dos textos que publica. 4.2 A publicação dos artigos não terá por contrapartida qualquer tipo de remuneração

aos autores, especialmente financeira. 4.3 Os autores, ao concordarem com a publicação de seus artigos, estarão concedendo

do direito da primeira publicação à ALETHES. Ficam autorizados a republicá-los futuramente, aceitando, contudo, citar o nome e edição da revista, fazendo referência ao fato de a publicação original ter ocorrido na ALETHES.

4.4 A constatação de qualquer imoralidade, ilegalidade, fraude ou outra atitude que coloque em dúvida a lisura da publicação, em especial a prática de plágio, importarão imediato

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Normas de publicação

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abortamento do processo de avaliação do artigo; caso este já tenha sido publicado, ele será retirado da base da revista, sendo proibida sua posterior citação vinculada ao nome da ALETHES, e, no número seguinte da revista, será publicado texto divulgando e justificando o cancelamento da publicação.