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. Alethes
Diagramação: Arthur Barretto de Almeida Costa Capa: Edição e montagem de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre Giorgio de Chirico. The Red Tower (1913), Peggy Guggenheim Collection Divisórias: Montagens de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre
Kjell Nupen.Sono interminável. Litografia. 59 x 42 cm
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Alethes: Periódico científico dos graduandos em Direito Da UFJF. Vol. 06, N. 11. (Mai. a Ago. de 2016)
Juiz de Fora: DABC, 2015. Semestral. 1. Direito – Periódicos
ISSN 2177-4633
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As opiniões expressas são de inteira responsabilidade de seus autores
Esta publicação conta com o apoio do Diretório Acadêmico Benjamin Colucci, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.
A dimensão jurídica não pode ser pensada como um mundo de formas puras, ou de simples mandatos separados da realidade social. Paolo Grossi, Mitologias Jurídicas da Modernidade, p. 26
Conselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialConselho Editorial Editor Chefe
Acadêmico João Vítor de Freitas Moreira (UFJF) Acadêmico Marcos Felipe Lopes de Almeida (UFJF)
Editores Adjuntos Acadêmica Anna Flávia Aguilar (UFJF) Acadêmico Arthur Barretto de Almeida Costa (UFMG) Acadêmico Aurélio Mendes (UFU) Acadêmico Bruno Silva (UFPB) Acadêmica Elora Raad Fernandes (UFJF) Acadêmico Igor Ladeira dos Santos (UFJF) Acadêmica Lorrayne Assis (UFJF) Acadêmico Rafael Carrano Lelis (UFJF) Acadêmica Giovana Figueiredo Peluso Lopes (UFJF)
Acadêmica Maria Fernanda Campos Goretti de Carvalho (UFJF) Conselheiros
Dr. Alexandre Travessoni Gomes (UFMG) Drª Alice Rocha da Silva (UniCEUB). Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos (UFMG) Dr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães (PUC-SP) Dr. Aziz Tuffi Saliba (UFMG) Ms. Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes (UFJF) Dr. Bruno Amaro Lacerda (UFJF) Doutorando Bruno Stigert de Sousa (UFJF e UNESA) Drª Clarissa Diniz Guedes (UFJF) Drª Cláudia Maria Toledo da Silveira (UFJF) Doutorando Daniel Giotti (UFJF) Drª. Daniela de Freitas Marques (UFMG) Dr. Denis Franco Silva (UFJF) Drª. Elizabete Rosa de Mello (UFJF) Doutorando Geraldo Adriano Emery Pereira (UFV) Drª. Eliana Conceição Perini (UFJF) Drª. Éllen Rodrigues (UFJF) Dr Everkley Magno Freire Tavares (UnP) Drª. Fernanda Maria da Costa Vieira (UFJF) Dr. Fernando Ramalho Ney Montenegro Bentes (UFRRJ) Mestranda Juliana Martins de Sá Muller (UERJ) Me Kalline Carvalho Gonçalves (UFJF) Drª Kelly Cristine Baião Sampaio (UFJF) Dr. Leandro Martins Zanitelli (UFMG) Dr. Leonardo Alves Corrêa (UFJF) Me Luiz Carlos Silva Faria Junior (UFJF) Dr. Marcus Eduardo de Carvalho Dantas (UFJF) Dr Moacir Henrique Júnior (Faculdade Politécnica de Uberlândia) Doutoranda Nathane Fernandes da Silva (UFJF-GV) Dr. Noel Struchiner (PUC-RIO) Mestre Paola Angelucci
Drª Raquel Bellini de Oliveira Salles (UFJF) Ms. Renato Chaves Ferreira (UFJF) Dr. Ricardo Sontag (UFMG) Dr. Sérgio Marcos Carvalho de Ávila Negri (UFJF) Drª Silvana Henkes (UFU) Dr. Tiago Vinícius Zanela (CEDIN) Dr. Thiago Paluma (UFU) Mestrando Vitor Schettino Tresse (UERJ) Drª Waleska Marcy Rosa (UFJF)
SumárioSumárioSumárioSumário
Conselho Editorial | Editorial Board | 201
Sumário | Summary | 203
Editorial | Editorial | 208 Ensaio | Essay Escola sem partido: o ornitorrinco pedagógico | 212
Rafael Carrno Lelis Lorrayne Assis
Artigos | Articles A teoria de Nils Christie e a Justiça Restaurativa: um diálogo e crítica no sistema penal | The Nils Christie’s theory and Restorative Justice: a dialogue and critics in the criminal justice system. | 220
Giovana Aiello Soares da Costa Anatomia do presidencialismo de coalizão: uma perspectiva histórico-econômica financiada pelo processo orçamentário federal | Anatomy of coalition presidentialism: an economic and historic perspective maintained by federal budget process | 240
Marco Aurélio Souza Mendes Entre o Fato e o Discurso: o Método APAC e sua Efetividade no Cenário Brasileiro | Between the fact and the discourse: the APAC method and its effectiveness in the Brazilian scenario | 268
Raul Salvador Blasi Veyl O Estado Islâmico (EI, ISIS, ISIL, Daesh, IS) é um Estado?| Is The Islamic State (EI, ISIS, ISIL, DAESH, IS) a State? | 285
Bruno Henrique de Moura Estudo da aplicação simétrica dos institutos da Hipótese de Incidência e do Fato Gerador no ordenamento jurídico brasileiro | Study of symmetrical application of institutes Incidence Hypothesis and Fact Generator in Brazilian law | 303
Igor Dias da Silva Valber Elias Silva
A propriedade e a formação da sociedade civil no jusnaturalismo de Grotius e Locke | The
property and the formation of civil society in Grotius’ and Locke’s natural law | 321 André Aarão Rocha
Produção do conhecimento a partir da Hermenêutica Jurídica | Production of knowledge form Legal Hermeneutics | 347
Giovane Morais Porto A dissolução parcial da sociedade à luz do novo CPC: uma visão crítica da legislação | Partial dissolution of limited liability partnership: a critic visiono f the legislation | 365
Isabela Salomon Reis Descumprimento do interesse público pelo Estado: uma análise crítica do caso de Pinheirinho | Violation of the public interest by the state: a critical analyse of the Pinheirinho case | 389
Maria Souza Marilene Petruci dos Reis Alves Pimenta Rayann Kettuly Massahud de Carvalho
O controle de imigração e o direito à educação das crianças migrantes irregulares | Immigration control and the right to education to irregular migrant children | 407
Mariana Ferolla Vallandro do Valle
O suporte fático de normas de direitos fundamentais | The factual support of norms of fundamental rights | 429
Priscila Carvalho de Andrade
Entrevista | Interview | 449 Entrevista com a Profª Drª Bonita Meyersfeld | Interview with Bonita Meyersfeld
Poemas | Poems Alforria-me! | Matheus P. Gomes Pedaço de Poesia | Matheus P. Gomes No Fundo da Mente | Eduardo Gonçalves Monteiro Riacho | Rafael Pinter Vários Poemas | José Renato Venâncio Resende Pudera Eu! | Augusto Silva Ávila SAMSARA | Igor Ladeira dos Santos Normas de Publicação | Publication Norms | 467
Editorial
Alethes | 208
Editorial
Alethes | 209
Editorial
Alethes | 210
Editorial Editorial Editorial Editorial
É com tamanha satisfação que essa 11ª edição do Periódico Alethes inaugura novos
tempos. Isso, pois, diante das transformações que estamos sujeitos, chegou a hora de
encerrarmos um ciclo que se mostrou em demasia virtuoso.Com essa edição, João Vitor
Moreira e Marcos Felipe se despedem da editoração-geral da Revista e intentam novos rumos,
deixando espaço para que novas pessoas e ideias possam surgir e aprimorar esse projeto que há
tempos surgiu como potência e hoje tem se transformado em ato.
Aos moldes da epígrafe que nos guia desde o edital, o mundo jurídico não deve estar em
separado da realidade social, e é justamente nessa tentativa que lutamos na implementação de
nossas ideias, considerando que as verdades ou as formas jurídicas estão inseridas no
contingente de nossas vidas, sabendo que as relações, todas elas, são, por excelência, distintas.
Hoje, podemos dizer que uma das poucas certezas que temos é que somente na práxis que se
pode promover a transformação dessas normativas estruturantes, desinstitucionalizando a
cultura meritocrática da academia. E aqui a Alethes se mostrou vanguardista. Foram mais de
100 artigos publicados e um respeito conquistado por diversos atores do cenário acadêmico,
nos permitindo dizer que sim, esse projeto deu certo. E, ainda, dissemos mais: a força de um
grupo que acredita em um determinado objetivo consegue promover grandes realizações,
porque nos envolve de tal maneira que a necessidade de trabalhar se torna sentimento de
prazer. Com esse tom de despedida, deve-se agradecer nominalmente aos editores e àseditoras
Anna Flávia, Maria Fernanda, Giovana Lopes, Arthur Barreto, Igor Ladeira, Elora Fernandes,
Marco Aurélio, Bruno Barbosa, Lorrayne Assis e Rafael Lelis. Todos e todas foram
extremamente importantes na construção dessa Revista, pois com as diversas ideias e iniciativas
foi possível sempre prosperar. É como no poema de Augusto Ávila que abaixo segue, foi
possível nos conectar e nos reconhecer.
Nessa edição, contamos com um total de 11 artigos, advindos das seguintes instituições:
UFJF, UFMG, UnB, Mackenzie, UFLA, UFU e UNIVEM. Importa destacar a
contemporaneidade dos artigos publicados, que apresentam assuntos de grande relevância na
conjuntura atual. Nesse sentido, pode-se citar o artigo intitulado “Dissolução parcial de
sociedade no novo CPC: uma visão crítica da legislação” que contribui para a discussão do
Novo CPC, cuja vigência começou no início desse ano. É preciso mencionar também o artigo
“Anatomia do presidencialismo de coalisão: uma perspectiva histórico-econômica financiada
Editorial
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pelo processo orçamentário federal”, que trata de questões trazidas à tona pelo processo de
impeachment da Presidente da República do Brasil. Soma-se aos textos científicos um ensaio,
que nessa edição também se mostra muito atual, dada a sua proposta de expor a falácia do
movimento “Escola sem partido”, que tem tido grande repercussão nas Casas Legislativas de
todos os níveis da federação.
Além disso, essa edição resolveu inovar um pouco mais e abrir espaço para que aqueles
poetas e poetisas escondidos nos muros das normas pudessem se expressar. Por isso, a seção de
poemas é de extrema importância para compreendermos que a Alethes intenta empoderar o
aluno e a aluna funcionando como um veículo comunicativo, mas também como um espaço
prazeroso e de constante aprendizado.
Por fim, esperamos que façam uma boa leitura e deixamos os nossos agradecimentos
pela oportunidade do Periódico Alethes e nos despedimos com Carlos Drumond de Andrade:
“Amar o perdido, deixa confundido, este coração. Nada pode o olvido, contra o sem sentido,
apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas
muito mais que lindas, essas ficarão.”
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 212-219, mai/ago, 2016.
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LELIS, R.C.; ASSIS, L. Escolas sem partido
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 212-219, mai/ago, 2016.
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Escolas sem partido: o ornitorrinco pedagógico
Rafael Carrano Lelis1 Lorrayne Assis2
Em que se baseia a neutralidade do discurso? Pelas veias do discurso não passariam
também células políticas? Recentemente, uma onda de famigerado combate ideológico deu
força a vários projetos de lei com intuito de combater a tida doutrinação. Tramita no Congresso
Nacional (e também em diversas casas legislativas estaduais e municipais) projeto de lei (PL)
que propõe a inclusão, dentre as diretrizes e bases da educação nacional, do programa Escola
sem Partido. Logo no segundo artigo do PL federal, em seu inciso I, dispõe-se que a educação
nacional deverá ser guiada pelo princípio da “neutralidade política, ideológica e religiosa do
Estado” (grifo nosso). Já em seu artigo terceiro, o referido projeto prevê a vedação em sala de
aula da “prática de doutrinação política e ideológica”.
Os dois trechos anteriormente destacados do projeto de lei servem de base para uma
problematização ampliada do ensino e para colocar em cheque o conceito e a (im)possibilidade
de existência de uma neutralidade em contraposição à doutrinação política e ideológica. Afinal,
o que é ser neutro?
Com uma rápida pesquisa em sites de busca na internet sobre o significado da palavra
neutralidade, na tentativa de percepção do senso comum, encontra-se a seguinte definição: “1.
condição daquele que permanece neutro; 2 . imparcialidade, objetividade”. Ao passo que para
o adjetivo neutro é apresentado o conceito: “1. que não se posiciona, se abstém de tomar partido;
neutral”.
Ora, logo se vê que é impossível qualquer forma de ensino na qual não seja feita uma
escolha ou tomada de partido. O ensino da ideologia dominante não deve, em qualquer
hipótese, ser confundido com lecionar de forma neutra. No entanto, é exatamente isso o que
acontece. Como bem nos lembra Bourdieu (2013): “todo ato de transmissão cultural implica
necessariamente na afirmação do valor da cultura transmitida (e paralelamente, a
desvalorização implícita ou explícita das outras culturas possíveis)”. Dessa sorte, escolher
abordar em sala ideais do senso comum em detrimento de vertentes minoritárias de pensamento
corresponde, justamente, a uma forma de ausência de neutralidade e configura uma clara
escolha ideológica. À guisa de exemplificação, transpondo a temática para o campo jurídico,
pensemos no ensino do Direito Penal nas faculdades de direito. Orientar o ensino da ciência
1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Membro do Corpo Editorial da Alethes. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Membro do Corpo Editorial da Alethes.
LELIS, R.C.; ASSIS, L. Escolas sem partido
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criminal sob uma perspectiva abolicionista é uma escolha de cunho ideológico por parte da
docente, bem como escolher abordar tal ramo do direito sob a ótica do chamado garantismo
penal. Todavia, também se caracteriza como óbvia escolha ideológica (e reafirmação da lógica
dominante) a opção pela apresentação acrítica dos artigos do código penal; ainda mais:
determinar qual interpretação será dada à normativa legal, definir qual jurisprudência será
apresentada e quais casos serão analisados em sala são, passo a passo, opções profundamente
marcadas pela ideologia referente àquela que leciona e, portanto, decisões impossíveis de serem
tomadas de forma neutra, isto é, a existência pura e simples de tais elementos excluem a
possibilidade de qualquer neutralidade no ensino.
Em sua construção teórica, Bourdieu (2010) concebe a ideia de campos (não físicos) de
conhecimento, tais quais os campos religioso, político, econômico etc. Nesses campos,
identificados pela presença de um habitus (reiteração de práticas particulares, com a afirmação
de normas e valores específicos de cada campo), existe uma luta constante pelo monopólio de
dizer, e do reconhecimento para tal, o que significa seu conteúdo interno (como dizer o que é o
direito, no jurídico; ou dizer o que é o sagrado, no religioso). Dessa forma, há grande conflito
e disputa entre as componentes de cada campo para que se possa ser identificada como a
detentora da legitimidade para falar por ele. A disputa pelo monopólio de fala, em si, já
demonstra a existência das diversas visões de mundo (realidades) e a possibilidade de escolha
para que se trabalhe cada matéria. Não fosse suficiente, o sociólogo francês ainda nos alerta
para a autonomia relativa de cada um desses campos e como eles se influenciam mutuamente
e não necessariamente de forma perceptível, o que nos leva, mais uma vez, à impossibilidade
de existência de uma forma de neutralidade na própria construção do ensino.
Resta evidente, portanto, que a pretensa neutralidade proposta pelos referidos projetos
de lei seria uma tentativa de manutenção do que Bourdieu denomina doxa, isto é, a ordem social
estável e valores predominantes, valores naturalizados e não mais questionados, mediante seu
caráter de tradição. Parece-nos certo de que a tentativa seja a de implantação de um
conservadorismo que perpetue o status-quo, suprimindo valores insurgentes e heterodoxos.
Um dos argumentos de maior clamor dentre aquelas que defendem o movimento Escola
sem Partido é de que “o Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o
objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária”. Como
definir o ideológico? Para responder tal indagação nos propusemos a empregar o delineado pelo
sociólogo Terry Eagleton. O discurso ideológico exibe de modo típico certa proporção entre
proposições empíricas e aquilo que poderíamos grosseiramente chamar de visões de
mundo(EAGLETON, 1997). Torna-se evidente que a linguagem constativa está atrelada a
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 212-219, mai/ago, 2016.
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objetos performativos. As verdades empíricas são trajadas à luz de componentes de uma retórica
global. Ideologia não é uma ilusão infundada, uma força material que deve ter, ao menos,
suficiente conteúdo cognitivo para ajudar a organizar a vida prática dos seres humanos – não
consiste, simploriamente, em um conjunto de proposições sobre o mundo.
Como bem apontado por Terry Eagleton (1997), não existe qualquer definição adequada
ou exata referente ao termo ideologia e que nos permitiria delimitar objetivamente o que seria
doutrinação ideológica. Sendo assim, nos parece oportuno identificar que todo pensamento ou
ideia que possua pré-compreensões intrínsecas, os “pré-entendimentos” como caracteriza
Heidegger, pode ser facilmente (e não há óbice para que seja) taxado de ideológico.
Partindo desse conceito, chega-se à conclusão de que o Projeto de Lei se propõe a
realizar o irrealizável, uma vez que coibir a apresentação de conteúdo ideológico em sala de
aula significa proibir o próprio pensamento: “não existe tal coisa como pensamento livre de
pressupostos, e então qualquer ideia nossa poderia ser tida como ideológica”. Alerta-se, ainda,
para o perigo da implementação de tal projeto, diante do caráter de mordaça que apresenta.
Como visto, impedir uma suposta doutrinação ideológica é o mesmo que impedir o pensamento
e livre expressão de ideias, é prática velada de censura. E pior: quem definirá quais discursos
ferem a ideia de neutralidade e exercem alguma forma de doutrinação política e ideológica?
Traça-se, assim, amplo espaço para arbitrariedades e justificação de atos de perseguição
política, à moda de nosso, não tão distante, regime de exceção.
Bourdieu também argumenta que os sistemas de ação pedagógica submetidos a uma
dinâmica de ensino dominante tendem a reproduzir um sistema de arbitrários culturais daquela
formação social. Ou seja, nada mais faz que contribuir para a legitimação daquele arbitrário
cultural. E o efeito próprio a que se propõem as relações de força é a reprodução cultural ou
social na qual se justificaria a figura da autoridade pedagógica.
Entretanto, uma educação nunca será ampla se não fomentar o ponto de vista crítico das
discentes. Não se defende aqui que a figura pedagógica imputasse só a sua ideologia, mas que
permitisse o debate e a construção de uma visão de mundo à luz de suas ideologias. Além do
mais, é demasiado problemática a concepção de que as estudantes se estagnam naquilo que é
abordado em sala, e é essa a inquietude que uma educação crítica deve fomentar – não se deve
enxergá-las (às estudantes) como meros receptáculos industriais de um sistema que já as
uniformiza.
A primeira lição tirada dessa conspiração ao caos vem do filósofo russo Aleksandr
Tomanov: “Mais importante do que armazenar informação é saber o que fazer com ela”. Em
uma realidade na qual a ideia de uma Escola sem Partido vigorasse, a palavra crítica sairia dos
LELIS, R.C.; ASSIS, L. Escolas sem partido
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verbetes, não com a violência do fogo como em Fahrenheit 451, mas pelo fato de sua célula
matriz ser ideológica.
A onda virótica está em processo de latente contaminação, uma vez que projetos de lei
semelhantes ao presente – inspirados em anteprojeto de lei elaborado pelo Movimento Escola
sem Partido (www.escolasempartido.org) – já tramitam nas Assembleias Legislativas dos
Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Espírito Santo, e na Câmara Legislativa do
Distrito Federal; e em dezenas de Câmaras de Vereadores (v.g., São Paulo-SP, Rio de Janeiro-
RJ, Curitiba-PR, Vitória da Conquista-BA, Toledo-PR, Chapecó-SC, Joinville-SC, Mogi
Guaçu-SP, Foz do Iguaçu-PR, Juiz de Fora–MG etc.), tendo sido já aprovado nos Municípios
de Santa Cruz do Monte Carmelo-PR e Picuí-PB.
Escola sem partido é um artifício conservador que visa suprimir a ideia do que
imaginam ser uma ideologia (notadamente a minoritária), buscando a legitimação da estrutura
dominante. Tal projeto, paradoxal desde sua gênese, em muito se assemelha à figura estranha
do Ornitorrinco, descrita por Francisco de Oliveira: tem rabo de réptil, possui mamas que não
têm seios, pico de pato, coloca ovos, tem esporão venenoso; identifica-se,assim,o peculiar
animal com o descrito Projeto de Lei: imputar a ideia de neutralidade em discursos que têm por
âmago biológico a ideologia causa demasiada estranheza e salta aos olhos como antinatural.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Aleksandr Tomanov, in: Paradigmas Soviéticos Contemporâneos ao Caos. Edição Príncipe, 1899. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013. BOURDIEU, Pierre. PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução: elementos para uma teoria de ensino. Trad.: Reynaldo Bairão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2010. DISTRITO FEDERAL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Nº 867 , DE 2015. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050668. Acesso em: 10 jul. 2016. Eagleton, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora Boitempo, 1997. Escolas sem Partido. Disponível em: <http://www.escolasempartido.org/>. Acesso em: 10 jul. 2016.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 212-219, mai/ago, 2016.
Alethes | 218
OLIVEIRA, Francisco de. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Petrópolis: Cebrap/Vozes, 1972. Nova edição: São Paulo: Editora Boitempo, 2003.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 220-239, mai/ago, 2016.
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COSTA, G.A.S. A Teoria de Nils Christie e a Justiça Restaurativa
Alethes | 221
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 220-239, mai/ago, 2016.
Alethes| 222
A teoria de Nils Christie e a Justiça Restaurativa: um diálogo e crítica no sistema penal.
The Nils Christie’s theory and Restorative Justice: a dialogue and critics in the criminal justice system.
Giovana Aiello Soares da Costa1
Resumo Este artigo é fruto de estudos que vêm sendo elaborados durante meu período de mobilidade
na Universidade do Porto, Portugal - no qual tive meu primeiro contato com a Justiça Restaurativa. O texto consubstancia uma análise do artigo elaborado pelo conceituado autor norueguês, Nils Christie, acerca de sua teoria abolicionista sobre o sistema processual penal moderno: Conflicts as Property, publicado no The British Journal of Criminology, em 1977. Ao longo deste artigo, comentários e críticas serão realizados sobre o tema, bem como consideração sobre a teoria de Christie como ponto fundamental para a concretização da Justiça Restaurativa e o Direito Processual Penal mais “humanizado”. Também serão considerados o papel do Estado e quais são os limites necessários para que haja uma harmonização do tema.
Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Criminologia. Direito Processual Penal. Abolicionista.
Abstract This article is the result of studies that have been developed during my exchange program
in the University of Porto, Portugal – which I had my first contact with Restorative Justice. The text is an analysis of an article written by the renowned Norwegian author, Nils Christie, about his abolitionist theory of the modern criminal justice system: “Conflicts as Property”, published in The British Journal of Criminology, in 1977. Throughout this article, comments and reviews will be conducted on the subject and relate to Christie’s theory as the main point for the implementation of the Restorative Justice and the criminal justice system more “humanized”. It will also be subject the State’s role in this radical process and know what are the limits needed for a harmonization of the theme. Key words: Restorative Justice. Criminology. Criminal Justice System. Abolitionist.
1 Estudante de graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo (SP).
COSTA, G.A.S. A Teoria de Nils Christie e a Justiça Restaurativa
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1. O convite Nils Christie (1977, p. 2), sociólogo e criminólogo norueguês, faz um convite interessante
ao leitor no seu artigo Conflicts as Property2. O autor convida-o para viajar a Tanzânia, mais
especificamente na província de Arusha. Lá, há uma casa no meio do vilarejo. Dentro dela,
encontra-se várias pessoas: estavam rindo, fazendo piadas, conversando e, ansiosas, algumas
prestavam atenção naquilo que estava a acontecer. “It was a circus, it was a drama”(CHRISTIE,
1977). Na verdade, aquilo era um tribunal. Estava acontecendo um julgamento.
No centro da casa e de todos os presentes, haviam duas pessoas. Um homem e uma mulher.
Eles haviam se casado, mas, depois de um longo tempo, estavam convictos que iriam se divorciar.
É um julgamento cível, mas que poderia ser usado para qualquer tipo de conflito. Eram decididos
sobre os assuntos do divórcio como a partilha de bens, conversando e ouvindo um ao outro
normalmente. Os amigos e familiares, que se encontravam ao lado deles, opinavam sobre a partilha.
A audiência, que assistia o julgamento, em geral, fazia piadas ou algumas perguntas rápidas. Os
juízes eram três secretários daquele vilarejo e se misturavam no meio daquela multidão – só
intervinham na conversa do casal quando realmente achavam necessário, fazendo pequenos
comentários e conduzindo-os a uma decisão com base na lei local. Esse é um típico modelo de
tribunal na província de Arusha, Tanzânia. É África. É um continente “primitivo”. A forma como
este julgamento é realizado permite a todos os habitantes do vilarejo poderem assisti-lo, pois todos
têm o direito de se manifestar, de conversar e de ouvir atentamente o que o outro tem a dizer. Os
juízes não são superiores ou inferiores a ninguém: eles fazem parte da multidão. O principal
objetivo é o casal decidir sobre o seu divórcio - é o futuro daquelas duas pessoas. Uma decisão
realizada na base de comunicação, de conversa, a fim de chegar a um resultado no qual os dois
concordem e cumpram aquilo que foi combinado.
Diferentemente do que acontece na justiça e no processo penal na maior parte dos países
Ocidentais. Estes estão mais preocupados com o passado. O objeto central é a punição do ofensor
e os respectivos gastos suportados pelos Estados, e não necessariamente há uma preocupação em
2 “Publicado em um momento importante para a criminologia crítica, inúmeros outros trabalhos e pesquisas foram iniciadas a partir do conhecido artigo de Christie [Conflicts as property], focados na busca de um novo modelo de justiça criminal que pudesse se preocupar menos com os prejuízos estatais decorrentes de um delito e aos danos a elas causados. O nome desse novo modelo de justiça criminal viria consolidar como Justiça Restaurativa” (ACHUTTI, 2012, p. 1).
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 220-239, mai/ago, 2016.
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reabilitar o indivíduo. Em relação à vítima, pouco se sabe sobre ela. As vozes são feitas e
mascaradas através de representantes legais. O juiz não é a multidão - ele está em um outro
patamar, isolado e poderoso. O julgamento não é para os indivíduos envolvidos no conflito, por
ser um interesse apenas para o próprio Estado. Assim, o sistema processual é o reflexo do
capitalismo e da sociedade industrial na qual os indivíduos se encontram em uma administração
judiciária totalmente seletiva e demorada.
A vítima é uma pessoa que foi ferida emocionalmente, materialmente ou psicologicamente.
O ofensor é aquele que assume seus atos. Todos merecem falar e serem ouvidos. Mas não é
exatamente isso o que acontece.
E essa é a principal crítica de Nils Christie.
2. A proposta.
O autor começa seu artigo com uma frase impactante: “Maybe we should not have any
criminology. Maybe we should rather abolish institutes, not open them. Maybe the social
consequences of criminology are more dubious than we like to think” 3(CHRISTIE, 1977, p.1).
Desde logo, Christie se posiciona a respeito de sua teoria abolicionista acerca da Criminologia e do
Direito Penal. Esta crítica, ousada e radical, feita em 1977, é considerada uma forma revolucionária
de contestar o próprio sistema de punição que o Estado impõe à população4, sendo considerado um
pensamento atual que coloca questionamentos sobre o papel do sistema punitivo, uma vez que
A justiça tradicional não cumpriu as suas promessas, principalmente com relação a ressocialização e prevenção, e para que as respostas do subsistema criminal sejam mais participativas, negociadas e não aflitivas, os conflitos interpessoais devem ter a possibilidade de ser solucionados efetivamente e a justiça restaurativa pode ser um instrumento que consiga ajudar a restabelecer o equilíbrio entre o crime e o tipo de resposta a ser aplicada, com o resgaste de todos os interessados na solução do conflito interpessoal. (SANTOS, 2014, p. 14).
A teoria abolicionista defende que, em geral, o Estado faz do conflito uma propriedade sua.
Tem como objetivo criticar a forma radical do sistema carcerário e a sua lógica de punir a todos
3 “Talvez não devêssemos ter nenhuma criminologia. Talvez seria melhor se abolíssemos as instituições, não as abrir.
Talvez as consequências sociais da criminologia são mais duvidosas do que gostaríamos de pensar” (tradução livre). 4 “Ainda que a discussão tenha se iniciado a partir dos anos 1970, pouco ou quase nada se produziu a respeito no Brasil. Raras são as referências ao tema na maioria dos trabalhos e manuais criminológicos à disposição do público brasileiro” (ACHUTTI, 2012, p. 1).
COSTA, G.A.S. A Teoria de Nils Christie e a Justiça Restaurativa
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como uma maneira de compensação do crime. Se há um conflito, este precisa ser resolvido entre
as pessoas envolvidas. O conflito é uma propriedade que somente pertence a elas. Dessa maneira,
O castigo não é o meio mais adequado para reagir diante de um delito e, por melhor que possa ser, eventuais reformas no sistema criminal não surtirão efeito, pois o próprio sistema está equivocado ao estabelecer que uma resposta punitiva (pena de prisão) o ‘problema do delito’ estará solucionado. (ACHUTTI, 2012, p. 4)
Os teóricos abolicionistas, que tiveram seu ápice nos anos 70 sobretudo no Hemisfério
Norte, criticavam a forma do capitalismo selvagem no qual sociedade era (é) inserida, posto que
O foco do abolicionismo penal – corrente teórica cuja própria denominação indica as suas pretensões – tem seu foco voltado para a construção de uma crítica capaz de deslegitimar de forma radical o sistema carcerário e a sua lógica punitiva. (ACHUTTI, 2012, p. 4)
Destarte, o tribunal não deveria ser visto como algo superior ou ameaçador. Como bem
analisa Christie (1977, p. 3) acerca do sistema penal da Noruega, os edifícios dos tribunais são
imponentes, grandiosos e intimidadores. Isso se aplica não somente em seu país natal, como
também em vários outros Estados. Eles estão geralmente situados no centro administrativo da
cidade, longe dos bairros habitacionais da população. Os edifícios são arquitetados de uma maneira
complexa onde existem várias salas, de um modo sem transparência, ao ponto de chegar a ser fácil
se perder dentro delas – praticamente um labirinto5. O sistema penal não deve ser algo visto como
um meio de punição ou uma forma de vingança, e esse é o maior objetivo da justiça restaurativa6.
A apropriação que o Estado faz com o caso que está em julgamento é algo muito sério.
Nele, as partes falam muito pouco ou nem sequer falam, já que são sempre representadas por
advogados e promotores, os “ladrões profissionais”. Quem decide é o juiz - o terceiro imparcial -
responsável por determinar a eventual punição do ofensor. A vítima da situação é representada pelo
Estado. Neste ponto, “the victim has lost the case to the state” (CHRISTIE, 1977, p. 3). A
5 Na cidade de Valência, na Espanha, está aberta ao público o programa “Palaus Transparents”. Tal projeto foi elaborado pelo Ministro da Transparência, Responsabilidade Social, Participação e Cooperação, Manuel Alcaraz em setembro de 2015, juntamente em uma discussão de cooperação com o prefeito Joan Ribó. O programa em si tem como objetivo abranger a abertura, horários e práticas de visitas para cada instituição, além de serem utilizados programas educacionais para aumentar a consciência dos edifícios públicos de valor histórico e artístico. Segundo o Ministro Alcaraz, “Es muy importante mostrar la cara amable y estética del poder”. Isso é importante para trazer aos cidadãos a necessidade de transparência e acessibilidade que deve haver a ponte entre a Administração e os cidadãos. Disponível em < http://www.20minutos.es/noticia/2558468/0/edificios-publicos-valor-historico-se-abriran-ciudadania-con-programa-palaus-transparents/ > Acesso em 13. mar. 2016. 6 “Restorative justice is a key issue in all debates on reform in criminal justice, especially in juvenile justice” (WALGRAVE, 2002).
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 220-239, mai/ago, 2016.
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problematização quase chega a ser um próprio interesse empresarial, relacionados a
profissionalização (CHRISTIE, 1977, p. 4), considerando
o paradigma atual, retributivo ou aflitivo, nos condicionou a raciocinar, com o entendimento, que a violação de uma norma de comportamento deve implicar em uma norma sancionadora, materializada em uma pena aflitiva, ou, em outras palavras, ocorrendo o crime deve ser impingida ao infrator uma dor, sendo a prisão privativa de liberdade erigida à condição de pena por excelência. (SANTOS, 2014, p. 13).
Também há uma série de críticas ao comportamento do advogado perante os conflitos: “they
are most interested in converting the image of the case from one conflict into one of non-conflict”
(CHRISTIE, 1977, p. 4). Assim, os advogados sempre estudam para instruir o outro para “acabar”
com um conflito, e não para atuar em um sistema no qual as duas partes podem chegar a um acordo.
O seu trabalho é de argumentar o que acham de relevante no caso; no qual impossibilita as partes
de decidirem sobre o que elas pensam em ser relevante na resolução do conflito.
Os profissionais não podem ser dominantes, pois o que mais interessa no processo de Justiça
Restaurativa são as vozes das partes, uma vez que elas devem falar mais alto em relação a qualquer
outro profissional - mas com limites na Lei e nos Direitos Humanos, respeitando sempre os Direitos
Fundamentais e o princípio da proporcionalidade (ASHWORTH, 2002). A filosofia central da
Justiça Restaurativa é que, através da comunicação voluntária entre as partes, há um diálogo sobre
o que realmente aconteceu e, por fim, a um consenso com obrigações a assumir: uma reparação.
A comunicação entre as partes – vítima e ofensor – é fundamental para que estes cheguem
a um acordo (com a ajuda de um mediador, mas este não toma a decisão, apenas tem a função de
orientador e harmonizador da comunicação). O conflito, que é o ponto central da questão, existe na
sua própria linguagem. Os mediadores defendem um conflito semântico, uma requalificação do
objeto a fim de dar voz tanto à vítima como ao ofensor.
Um dos motivos para que este processo suporta é uma própria reforma política, que muitos
a consideram como uma forma de combater o sistema repressivo do Estado de ter dependência
desumana nas prisões – aquele pensamento antiquado de que um problema só se resolve em
enjaular um cidadão que cometeu uma infração penal (BRAITHWAITE, 2002). Essa liberdade de
diálogo que a Justiça Restaurativa permite às partes é uma forma de empoderamento para os
cidadãos de assumir a responsabilidade de assuntos que antes só se resolviam com a presença de
autoridades estatais. Assim, isso faz com que os próprios indivíduos percebam que, apesar do
processo não passar nas mãos de juiz, o criminoso assume as suas responsabilidades e que o seu
COSTA, G.A.S. A Teoria de Nils Christie e a Justiça Restaurativa
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acordo com a vítima não é algo para ser analisado como punição, mas sim uma restauração do
problema entre ambos. É uma maneira mais humanizada de tentar chegar a um acordo que seja
consensual e reparador, consentido por vítima e ofensor, mas sempre respeitando as leis7. Além
disso,
a Justiça Restaurativa atua diversamente do paradigma punitivo quando devolve à vítima, ao ofensor e à comunidade o conflito criminal e, também, o poder de decidirem ou planejarem sobre a melhor forma de solucionar este conflito (SANTOS, 2014).
A mediação deve atender as necessidades8 da vítima. É natural que cada indivíduo encare
o impacto do crime de maneiras diferentes. Alguns podem ser mais sensíveis, outros mais
indiferentes, mas é claro que grande maioria é abalada de algum jeito: físico, psicológico ou social.
A vulnerabilidade depende dos fatores e características individuais, sendo que também pode ser
uma vulnerabilidade econômica, sobretudo para aqueles mais pobres ou mais apegados àquilo que
sofreu danos.
Desse modo, Christie9 (1977, p. 7) ressalta e explica o título do seu artigo Conflicts as
Property: o conflito é propriedade sobretudo da vítima e isto não pode ser tirado dela.
Consequentemente, a vítima tem um papel não apenas na sobrecarga emocional mas de chegar a
um acordo com o seu ofensor
O conflito é algo valioso, e por isso muitas vezes aqueles profissionais, anteriormente
citados, normalmente tomam posse dele, sendo que isso acontece muito em nossa sociedade
7 Desde 1977, Christie (p. 6) já refletia sobre as relações humanas de uma maneira tão atual: “Segmentation according to space and according to caste attributes has several consequences. First and foremost it leads into a depersonalisation of social life. Individuals are to a smaller extent linked to each other in close social networks where they are confronted with all the significant roles of the significant others. This creates a situation with limited amounts of information with regard to each other. We do know less about other people, and get limited possibilities both for understanding and for prediction of their behaviour. If a conflict is created, we are less able to cope with this situation. Not only are professionals there, able and willing to take the conflict away, but we are also more willing to give it away”. Na comunicação durante o processo de mediação na Justiça Restaurativa, é fundamental que as partes estejam sempre abertas para conversar e expor o seu ponto de vista de maneira harmoniosa, sendo amparada pelo mediador apenas quando necessário. 8 A vítima pode sentir a necessidade de vingança. Se formos pensar de um ponto de vista mais crítico, o próprio sistema de justiça o qual estamos inseridos aspira por esse desejo de vingança. É normal que a vítima sinta esse desejo, aquela necessidade de ver o seu ofensor punido de alguma forma. É aprender a lição (exemplo) de não cometer o crime novamente, sendo assim, a pessoa pode ser “castigada” no sentido de aprendizagem, ajudando-a a reintegrar nas normas. Contudo, a mediação é um ponto importante para que a própria vítima conheça seu ofensor e perceba que ele também é humano e comete erros. Quando a vítima conhece melhor o caso concreto e seu ofensor, há uma tendência de a vítima ser menos punitivas, pois existe assim uma flexibilização e compreensão sobre o ofensor. O ofensor é uma pessoa e algumas de suas circunstâncias é possível compreender seus atos (mas não justifica-los). Deve haver uma sinceridade entre vítima-ofensor. 9 Christie defendia uma “justiça mais participativa e centralizada” (ACHUTTI, 2012, p. 7).
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industrial atual: a vítima não perde somente o seu emocional, material ou psicológico, mas perde o
seu próprio caso quando não há o direito de ouvir a sua própria voz. O Estado apodera-se da sua
compensação, que acontece quando é voltado mais para o ofensor do que a própria vítima. Outro
detalhe importante: em relação à vítima, não é esperado que ela seja imparcial (ASHWORTH,
2002). O mediador, durante esse processo, precisa ser parcial, mas “the requirement does not imply
that the mediator should be indifferent to the fact that the offence has been committed and the
wrongdoing of the offender” (PELIKAN, 2002).
O acordo deve ser coerente para as partes envolvidas (CHRISTIE, 1977, p. 8). Não é algo
em si satisfatório, pois a reparação do problema deve ser vista como um consenso no qual devem
ser respeitado os direitos e que seja proporcional aos danos causados pelo ofensor. Talvez, para os
cidadãos em geral, o que é acreditado algo não relevante como uma solução, as partes envolvidas
no conflito a podem considerar como uma forma de restauração. Um pedido de “desculpas”, por
exemplo, é aceito se a vítima e o ofendido concordarem. Para isso, também é necessário que ambas
as partes estejam preparadas psicologicamente para este processo (WALGRAVE, 2002), já que se
trata de uma comunicação que nem todos, estão prontos e maduros para facear, por isso as partes
são livres para aceitar ou não este processo de mediação. Talvez seja uma situação difícil para se
enfrentar – sobretudo para a vítima -, mas com certeza seu resultado pode trazer um maior conforto
aos indivíduos: aqui os acontecimentos se esclarecem. Há uma compreensão sobre o que de fato
aconteceu.
Sobre o ofensor assumir a responsabilidade, é um critério essencial na Justiça Restaurativa.
É importante o ofensor ser ouvido, a fim de que se haja um entendimento e clareza sobre o que o
levou a cometer tal ato e quais foram as consequências que trouxe à vítima. “Human beings have
reasons for their actions” (CHRISTIE, 1977, p. 9). Assim, é significativo restaurar os laços sociais
entre o indivíduo ofensor, a vítima e a própria comunidade; o que, ademais, proporcionaria ao
ofensor situação confortável para assumir sua responsabilidade
Nos processos que ocorrem atualmente – o Estado como o proprietário do conflito – por
vezes o ofensor não consegue assimilar e compreender o porquê daquela punição. Christie (1977,
p. 9) ainda ressalta que não há uma punição para a “cura do crime”, mas que o acordo, resultante
de um processo de mediação, pode encontrar a justa reparação com os valores gerais da sociedade.
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Outro ator abolicionista, Hulsman10, acredita que as proporções de crimes violentos não são
suficientes para sustentar o sistema, e o próprio sistema penal não é uma ferramenta de garantia de
impedimento das pessoas cometerem crimes ou não (KULLOK, 2014). As obrigações que o
ofensor concordou em assumir não devem ser vistas como uma forma de “vingança” ou “dor”, mas
sim de uma restauração - como a respeito da tese de Christie, o qual acredita que a Justiça
Restaurativa é uma ferramenta que possibilita a independência entre os indivíduos de resolverem
seus próprios conflitos em respeito ao princípio da voluntariedade (PELIKAN, 2002, p. 27).
O processo de Justiça Restaurativa11 maximiza a participação das vítimas e dos ofensores
na procura da restauração, conciliação e responsabilização pelos danos – bem como a sua
prevenção para possíveis outros conflitos. O Estado desempenha funções delimitadas, como a
investigação dos fatos, a facilitação dos processos e a garantia de segurança, mas não é a vítima
direta. O crime é fundamentalmente uma violação pessoal e das relações interpessoais, sendo que
normalmente quem sofre mais é a vítima; e a reparação é uma resposta para esses indivíduos. A
comunidade, em si, também tem a sua função de reintegrar socialmente o ofensor, com a ajuda do
Estado (ZEHR, 2012). Porém, é importante ressaltar que o mediador não é o representante do
Estado, mas sim um facilitador da comunicação durante o processo de mediação, além de ser uma
figura imparcial.
É importante, inclusive, ressaltar a importância da proporcionalidade dos acordos (princípio
da proporcionalidade). É necessário analisar a gravidade da ofensa e qual foi o seu impacto para a
vítima. O acordo resultante da comunicação entre a vítima e o ofensor deverá ter a Lei como base
além das recomendações e orientações do mediador. Além disso, a participação na mediação não
deve ser utilizada como prova de admissão de culpa no desenvolvimento judiciário ulterior do
processo (princípio da confidencialidade): o arquivamento na sequência dos acordos obtidos deve
ter o mesmo valor de uma decisão feita pelo juiz. (PELIKAN, 2002).
10 “O abolicionismo – através principalmente de Hulsman – propõe-se a desconstruir a definição de delito: o delito não seria o objeto, mas o produto de uma política criminal que pretende justificar o exercício do poder punitivo, e não possuiria realidade ontológica. De acordo com o autor, a partir de então seria possível reorganizar o debate de criminologia e da política criminal, e tal postura apontaria para a abolição da justiça penal, uma vez que o “delito como realidade ontológica” seria a pedra fundamental deste tipo de justiça” (ACHUTTI, 2012, p. 4). 11 “Restaurativa” foi traduzida do adjetivo “aufarbeitend”, que significa “trabalhando através de”. Este esforço restaurador é marcado por assistir o povo de necessidades e interesses concretos, isto é, o dano, a raiva e o sofrimento causado; sendo estes ajustados pelo Direito, fornecendo material e/ou compensação emocional para estas experiências negativas (PELIKAN, 2012).
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Assim, Christie (1977, p. 10) raciocina a ideia de um “tribunal comunitário” com quatro
etapas fundamentais. Em primeiro lugar, o tribunal deve ser utilizado como uma forma de dar uma
orientação à vítima – analisando se tal ato foi infracional e quem são os verdadeiros responsáveis
por isto.
Em segundo lugar, o tribunal analisaria o relatório por meio do qual a própria vítima
transmitiria a sua consideração com a finalidade de esclarecer os detalhes. Desse modo, seria uma
“detailed consideration regarding what could be done for him, first and foremost by the offender,
secondly by the local neighbourhood, thirdly by the state” 12 (CHIRSTIE, 1977, p. 10). É necessário,
portanto, uma organização para garantir a aplicação de tais direitos e garantias.
Depois de muita análise, em terceiro lugar, o tribunal chegaria (ou não) a uma punição do
autor do crime, com o principal objetivo de reparar à vítima dos danos sofridos. Os tribunais de
bairro devem seguir os valores daquela comunidade, sendo estes “public arenas, needs are made
visible” (CHIRSTIE, 1977, p. 10).
Por fim, na quarta e última etapa, além da acordo entre partes tem sentença do juiz, é
necessário que o ofensor seja garantido de serviços sociais que visem a restauração para evitar a
sua reincidência – expostas suas necessidades sociais, educacionais, médicas ou religiosas. Este
modelo pode ser usado tanto nas causas cíveis como também nas criminais: um tribunal orientado
à vítima, menos profissionalizado e mais aberto aos leigos. É uma das lógicas de se fazer justiça.
Para a solução de conflitos, “o autor não apoia a ideia acha existir um especialista em
conflitos” (CHRISTIE, 1977, p. 11). Em seu artigo, ele diz que ter um especialista leva-o a uma
profissionalização de
specialisation in conflict solution is the major enemy; specialisation that in due— or undue — time leads to professionalisation. That is when the specialists get sufficient power to claim that they have acquired special gifts, mostly through education, gifts so powerful that it is obvious that they can only be handled by the certified craftsman (CHIRSTIE, 1977, p. 11)13.
12 Christie ressalta a importância da consideração do envolvimento da vítima, do ofensor, da comunidade e apenas por último, do Estado. 13 Essa profissionalização aumentaria a dependência destes profissionais para o processo de mediação e resolução de conflitos. As partes, quando são envolvidas em um conflito, devem estar equivalentes. O autor também debate sobre a importância de um mediador não estar presente em vários conflitos diferentes além de que “The ideal is clear; it ought to be a court of equals representing themselves. When they are able to find a solution between themselves, no judges are needed. When they are not, the judges ought also to be their equals” (p. 11). Christie acredita que os advogados não deveriam estar presentes em todas as fases do processo – mas só para aquelas em que for realmente necessário, como na sentença final.
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Assim, em matéria de conflitos sociais, a não-especialização em mediação de conflitos é
fundamental. A participação voluntária das partes é o mais importante – uma comunicação e
esclarecimento dos fatos. O mediador cumpre o seu papel apenas quando for necessário, não sendo
nem o dominador e nem o centro do conflito. “They might help to stage conflicts, not take them
over” (CHIRSTIE, 1977, p. 12). Se isso acontecer, novamente a propriedade do conflito será
retirada da vítima ou do ofensor para uma terceira pessoa. Percebe-se, então, que é de
responsabilidade do Estado assegurar a ordem e a obediência à Lei na sociedade, bem como
estabilizá-las e harmonizá-las, mas sempre de modo que dependendo do crime ali encontrado, a
mediação seja uma alternativa do sistema processual normal, uma forma livre e consensual de
solução de conflitos entre as partes – por isso o mediador deve apenas facilitar a comunicação
entre estas, e não ter como objetivo ser aquele que resolverá o conflito dos outros (ASHWORTH,
2002).
Há um problema atual: existem diversas comunidades, poucas vítimas, muitos profissionais.
Um dos problemas causadas pela industrialização (CHRISTIE, 1977, p. 12) é a existência da
divisão de gênero e idade, além dos vários conflitos internos e externos que a comunidade tem ao
longo de sua história. As vítimas precisam ser prioritárias e ouvidas. O excesso de profissionais
muitas vezes não está sincronizado com os produtos do sistema – sobretudo no Direito. Essa
extrapolação pode prejudicar o tratamento individualizado que uma vítima necessita.
Em nossa realidade, progressivamente o Brasil se aperfeiçoa em matéria de mediação e
conciliação, sobretudo com a vigência do novo Código de Processo Civil (CPC) de 2015 e o ato
administrativo na Resolução n° 125 de 29/11/2010. O novo CPC de 2015, no seu artigo 1º, § 3º,
dispõe que “a conciliação, mediação e outros métodos de resolução consensual de conflitos deverão
ser estipulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público,
inclusive no curso do processo judicial” (BRASIL, 2015).
Além disso, a Seção V do mesmo diploma é titulado como “Dos Conciliadores e
Mediadores Judiciais”, e faz alusão diversos princípios, como por exemplo, o artigo 166º: “a
conciliação e a mediação são informadas pelos princípios da independência, da imparcialidade, da
autonomia da vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informação e da decisão informada”
(BRASIL, 2015).
A Resolução n° 125 de 29/11/2010 tem como objetivo especificar e regulamentar as lacunas
deixadas no CPC sobre a mediação e, como bem consta em seu artigo 4°, “compete ao Conselho
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Nacional de Justiça organizar programa com o objetivo de promover ações de incentivo à auto
composição de litígios e à pacificação social por meio da conciliação e da mediação” (BRASIL,
2010)14. Em um país populoso como o Brasil, é importante para os indivíduos e para o próprio
judiciário perceberem a relevância de resolver os conflitos através da conciliação/mediação, pois
há também economia de tempo e dinheiro. Ademais, é um meio de pacificação e entendimento
entre as partes, mostrando lhes que não seria necessário o amparo via processo judicial. Para tal, o
governo disponibiliza os Centros Judiciários de Resolução de Conflitos e Cidadania para que os
indivíduos se encontrem e conheçam quais são os seus direitos e garantias. Conforme o Conselho
Nacional de Justiça:
a conciliação resolve tudo em um único ato, sem necessidade de produção de provas. Também é barata porque as partes evitam gastos com documentos e deslocamentos de fóruns. E é eficaz porque as próprias partes chegam à solução de conflitos, sem a imposição de um terceiro (juiz). É, ainda, pacífica por se tratar de um ato espontâneo, voluntário e de acordo comum entre as partes. (CNJ, 2016)
E ainda orienta o cidadão, informando-o que
qualquer uma das partes pode comunicar ao tribunal, cujo processo tramita, a intenção de conciliar, ou seja, a vontade de busca de um acordo. Dessa forma, é agendada a audiência, na qual as partes terão o apoio de um conciliador na busca de soluções para seus conflitos. As partes podem ou não estar acompanhadas de advogados, que podem ajudar nos esclarecimentos jurídicos. Se você tem ação tramitando na Justiça Federal, Justiça Estadual ou na Justiça do Trabalho e quer conciliar, entre em contato com o Núcleo ou Centros de Conciliação no seu estado ou município (CNJ, 2016).
Assim, o país avança para uma alternativa ao clássico sistema processual. E não apenas o
Brasil, mas vários outros Estados também estão adotando medidas de regulamentação da mediação.
Na África do Sul, por exemplo, e a mediação teve a sua função de restaurar os conflitos motivados
pela segregação racial após o apartheid, aquela se tornou o principal motivo de mediação da região
(APOLLO, 2015). Outros países em destaque são o Canadá, Austrália e EUA.
14 “São Paulo – o maior tribunal brasileiro, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) conta com o maior número de CEJUSCS [Centros Judiciários de Resolução de Conflitos e Cidadania] instalados no país: são 153 unidades, sendo 7 na capital e 146 no interior. Os centros paulistas têm alcançado importantes índices de sucesso na área da conciliação. Antes do ajuizamento da ação, na chamada pré fase processual, o número de acordos vem beirando a 67%. Das 122 mil sessões de tentativas de conciliação, houve resultado positivo em 82 mil delas. Na área processual (quando o processo judicial está em curso), das 113 mil sessões, 56 mil foram positivas, alcançando 49% das conciliações”. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/81709-conciliacao-mais-de-270-mil-processos-deixaram-de-entrar-na-justica-em-2015 > Acesso em: 05 abr 2016.
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No âmbito europeu, países como Áustria, Bélgica15 e Holanda, se destacam como pioneiros
no processo de mediação. Estas utilizam o modelo VOM (vítima-ofensor-mediador), com círculos
de apoio e co-responsabilização para o controle, segurança, proteção e reintegração dos indivíduos;
mas com características diferentes. No caso da França, outro Estado pioneiro, utilizava-se o modelo
VO (orientação ao ofensor). Na preocupação de estabelecer um modelo-base para os países
europeus, a União Europeia elaborou a Recomendação n° (99)19 a respeito do processo de
mediação, cujo propósito é uniformizar as regras de mediação nos países membros.
Nessa recomendação, a União Europeia aponta para algumas características e princípios
fundamentais (PELIKAN, 2002): a mediação como ato voluntário (o consentimento das partes deve
ser livre e esclarecido); confidencialidade; acessibilidade; possibilidade de desistir em qualquer
fase do processo e autonomia dos serviços de mediação (ou seja, podem existir instituições públicas
ou privadas que façam o processo de mediação). Desse modo, há um enquadramento jurídico tanto
nas legislações como nas linhas orientadoras do recurso à mediação (remessa do processo),
objetivando instaurar uma harmonia com os direitos fundamentais e da Convenção Europeia dos
Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. O resultado das mediações são acordos de caráter
voluntário, razoável e proporcional16.
Em Portugal, existe a Lei n.º 29/2013, de 19 de abril, a qual refere-se aos Princípios Gerais
Aplicáveis à Mediação (Civil e Comercial). A definição de mediação está presente no artigo 2º, a):
“mediação, a forma de resolução alternativa de litígios, realizada por entidades públicas ou
privadas, através da qual duas ou mais partes em litígio procuram voluntariamente alcançar um
acordo com assistência de um mediador de conflitos”, além de que, conforme no artigo 9º, n.º 1 “as
partes podem, previamente à apresentação de qualquer litígio em tribunal, recorrer à mediação para
a resolução desses litígios” e o n.º2,
15 Um detalhe da Bélgica é que esta possui uma característica – no processo de mediação – de que o mediador possui uma profissão exclusiva para tal. O programa é mais voltado ao ofensor, sendo realizado no começo ou final do inquérito. O Ministério Público e a política têm discricionariedade, além de que os crimes que podem ser usados na mediação são normalmente aqueles contra a pessoa e contra a propriedade (com pena menor de 2 anos), bem como delitos menores contra pessoa e crimes contra a propriedade. 16 “Council of Europe recommendations are in general marked by three features that shape and partly restrict in a clear way the scope and the influence of these international policy instruments: First, the various reports, recommendations and conventions of the CPDC [Committee of Experts convened by the European Committee on Crime Problems] are legal documents (…). Second, the cornerstone of the work of the Council of Europe is ‘European Convention on Human Rights and Fundamental Freedoms’ (ECHR) (…). Third, recommendations of the Council of Europe have no binding quality (…)” (PELIKAN, 2002).
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o recurso à mediação suspende os prazos de caducidade e prescrição a partir da data em que for assinado o protocolo de mediação, ou, no caso de mediação realizada nos sistemas públicos de mediação, em que todas as partes tenham concordado com a realização da mediação” (PORTUGAL, 2013).
No texto legal, fica explícito que o legislador português atendeu a maioria das
recomendações feitas pela União Europeia, seguindo os seus principais princípios, como o da
imparcialidade do mediador, confidencialidade, voluntariedade, igualdade, etc.
Desse modo, desde os anos 70 até os dias de hoje, podemos perceber como a abordagem da
Justiça Restaurativa e Mediação está se tornando algo mais presente e importante para as pessoas
e ao próprio Estado. Tal reconhecimento ocorreu devido a uma longa jornada de estudos e análises,
sendo que
emphasize the urgency of considering how to place restorative justice within an adequate legal framework. First, because it will facilitate the spread of restorative justice practice into the institutional response to crime, and, second, because it will provide an opportunity to check the appropriateness of existing legal dispositions for implementing restorative practices properly. Without neglecting the communitarian and restorativist dream, we must look for ways to implement possibilities for restoration as far as possible in the real world. Legal formalism must not intrude upon the restorative process, but the process must take place in legalized context (WALGRAVE, 2002, p. 17).
Com uma legislação que orienta as pessoas, está cada vez mais próximo e mais simples para
as partes que aspiram a uma resolução de conflitos rápida, econômica e humanizada. O
desenvolvimento desse processo é cada vez mais debatido e aprimorado.
3. A Esperança em forma de Educação.
A teoria abolicionista, radical e marxista, se posiciona de uma maneira não-utópica, o que
a faz ser ainda mais fascinante: “ao invés de ser apenas um punhado de críticas ao sistema penal
com uma proposição utópica sobre o seu destino (abolição [do sistema penal]), é uma postura
política” (ACHUTTI, 2012, p. 7), e esta teoria, na verdade, aborda “uma perspectiva, uma
metodologia e, acima de tudo, uma (outra) forma de enxergar” (ACHUTTI apud RUGGIERO,
2010, p.1).
Em um sistema de hoje, dar a alguém a oportunidade de falar e ser ouvido é algo muito
incomum – mas não impossível. Empoderar indivíduos e incita-los a serem abertos para chegar a
uma conclusão pode ser um meio de resolver muitos conflitos e “mal-entendidos”, além de
economizar tempo (um processo de mediação duraria um tempo razoável e necessário para que o
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acordo se chegue, portanto, seria mais rápido do que um processo nas mãos de autoridades
judiciárias) e dinheiro (o custo de advogados e taxas à Administração). Em relação ao tempo
necessário, é importante que as partes não precisam se apressar apressarem. O tempo é conforme
ambas se sintam a vontades e livres para dar-se início a comunicação e ao bom diálogo.
Um dos pontos mais fortes que a Justiça Restaurativa pode ter é o empoderamento das
pessoas. Um meio no qual as partes falam e são ouvidas. Uma conversa baseada no respeito, nas
legislações, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. É importante para as partes saberem, antes
do início do processo de mediação, quais são os seus direitos. Em uma sociedade contemporânea a
comunicação é realizada majoritariamente via internet, uma conversa entre ofendido e a vítima é
algo que deveria ocorrer com mais frequência. É reparar aquilo que foi danificado de uma maneira
humanitária, consensual e proporcional, sendo assim,
um sistema de práticas utilizadas para prevenir conflitos e crimes, que busca corrigir ou atenuar as consequências decorrentes de conflitos interpessoais, com a devolução do poder de solução do conflito criminal a vítima, ao ofensor e a comunidade para que decidam, dialoguem ou planejam sobre a melhor forma de solucionar este conflito, com o objetivo de reparar, sendo possíveis, total ou parcialmente, com o objetivo de reparar, sendo possíveis, total ou parcialmente, os danos causados pelo crime, promover ou possibilitar a reconciliação ou conciliação dos envolvidos e a restauração das vítimas, dos infratores e das comunidades. (SANTOS, 2014, p. 22)
Como forma de amenizar os crimes – bem como as suas reincidências – Christie (1977, p.
14) comenta que, se as pessoas parassem mais para ouvir autores como Ivan Illich e Paulo Freire17,
com certeza toda esta situação seria melhor compreendida. A importância da educação, orientação
e restauração é fundamental para a vida das pessoas. É, talvez, o melhor meio de se aproximar na
“cura do crime”. O autor ainda cita também o impacto da tecnologia nas relações sociais em 1977.
Hoje o impacto ser igual ou maior (CHRISTIE, 1977, p.14).
No final do seu artigo, Christie faz uma pergunta interessantíssima ao seu leitor: “what
about universities in this picture?”18 (CHIRSTIE, 1977, p. 14). A educação tem o papel de formar
17 Paulo Freire, brasileiro, um dos maiores pedagogos mundiais, disse que “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a sociedade muda”, além de que “a liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão”. Disponível em: < http://pensador.uol.com.br/autor/paulo_freire/> Acesso em: 03 abr 2016. 18Outro pensador citado por Christie é o austríaco Ivan Illich, o qual afirmava que as “grandes universidades tentam inutilmente alcançar [esta] aprendizagem multiplicando os cursos; mas geralmente fracassam porque estão presos a currículos, estruturas de curso e administração burocrática. Nas escolas, inclusive nas universidades, gasta-se a maioria
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cidadãos com olhar crítico àquilo que está ao redor. Na sociedade em que vivemos, ser (bem)
instruído é uma arma contra a alienação e falsas perspectivas. É saber escolher as suas fontes e
analisa-las criticamente. As universidades têm um papel muito além do diploma: é garantir à seus
alunos os instrumentos necessários para aprimorar as conjunturas sociais, econômicas e políticas
da sua comunidade. É aprender a valorizar e conhecer a cultura local, entender a origem dos
problemas e como solucioná-los. “Universities have to re-emphasise the old tasks of understanding
and of criticizing” (CHISTIE, 1977, p. 14). Através dos estudos podemos contornar e aprimorar
situações que devem ser analisadas com maior cuidado, como no caso da Justiça Restaurativa; um
processo alternativo e humanitário em relação ao sistema judiciário comum. É necessário que os
estudantes de hoje estejam preparados para uma realidade que envolva a sua comunidade, o seu
cotidiano – sobretudo no Direito. Esta é uma área que exige uma atualização urgente nas legislações
e reforma política, para acompanhar o desenvolvimento da comunidade e seus valores,
principalmente na área penal, na qual ainda muitas pessoas acreditam que só há um meio de punir
os infratores: prisão. As Universidades devem desenvolver uma prática de formar não apenas
bacharéis, mas cidadãos capazes de mudar o seu redor de maneira justa e responsável. É garantir a
cidadania nos tempos contemporâneos. É permitir um poder de voz oprimido durante há tempos
Apesar de nem todas as ideias e perspectivas de Christie terem sido concretizadas, o
criminólogo norueguês deixou profundas marcas na literatura que ainda hoje são bem debatidas.
Os elementos apresentados devem estar sob um conceito de “propositivo-construtivo” ao
tradicional processo judiciário, permitindo a sua forma de construção para uma afirmação de um
modelo “informal de administração de conflitos desvinculado do tradicional paradigma crime-
castigo” (ACHUTTI, 2012). Assim,
visualiza-se, com isto, uma possibilidade efetiva de democratização no gerenciamento de conflitos: enquanto no sistema penal a resposta vem de cima – é imposta pela norma e aplicada pelo juiz -, na justiça restaurativa a resposta emerge dos princípios envolvidos, dado que não há solução prévia para todos os casos, e as mesmas deverão ser construídas conforme as peculiaridades de cada situação. Ao caminhar nesse sentido, a justiça restaurativa poderá colaborar para o fortalecimento da base dos direitos de cidadania e democracia (...), mas também para a redução de desigualdades oriundas do sistema de justiça criminal, especialmente em relação aos menos favorecidos social e economicamente, que constituem a sua maior clientela (...)” (ACHUTTI, 2012, pp. 12-13).
dos recursos tentado comprar o tempo e motivação de um número limitado de pessoa para que elas assumam determinados problemas e os resolvam segundo um programa ritualmente definido” (GARJADO, 2010). Ele era radical quando defendia a ideia da educação sem escola.
COSTA, G.A.S. A Teoria de Nils Christie e a Justiça Restaurativa
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Democracia de uma maior participação do povo e menos de um Estado. Uma democracia
que realmente proporcione meios e oriente sua comunidade para uma melhor saída na resolução de
seus próprios litígios, seja através da educação, universidades com mais foco na formação de
cidadãos conscientes de seus direitos e obrigações, programas públicos ou uma nova legislação.
É fundamental que o autor do ato infracional, entenda as consequências e não reincida o
crime; bem como que a própria vítima sinta suas necessidades reparadas de maneira proporcional
e humana. Como defende Cesare Beccaria, em sua célebre obra Dos delitos e das penas, de 1764,
“é que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública,
pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito
e determinada por lei”.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 240-267, mai/ago, 2016.
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Anatomia do presidencialismo de coalizão: uma perspectiva histórico-econômica financiada pelo processo orçamentário federal Anatomy of coalition presidentialism: an economic and historic perspective
maintained by federal budget process
Marco Aurélio Souza Mendes1
Resumo O presente artigo visa demonstrar o desgaste político do Presidencialismo de coalização
e como tais desvantagens contribuem para um retrocesso político-constitucional no avanço da democracia brasileira. Para isso, cabe analisar o processo orçamentário federal como moeda de troca, a construção histórica dos diferentes regimes e a atuação do Congresso Nacional como principal ator do accountability horizontal. Através das falhas do presidencialismo de coalizão tem-se o intuito de demonstrar como o Congresso tem diminuído seu papel de cobrança de responsividade dos governantes, criando fortes retrocessos e cenários clientelistas para a consolidação da democracia brasileira pós Constituição de 1988. Contribui também com os fatores positivos de por que o Parlamentarismo se mostra uma melhor adoção que o Presidencialismo e quais são os reflexos da instabilidade de governança na macroeconomia através da tríplice função do Estado na economia.
Palavras-chave: presidencialismo; parlamentarismo; governo de coalizão; Constituição de 1988; accountability.
Abstract The paper approaches the brazilian coalition presidentialism’s political erosing and how
these advantages contribute to a political backlash in progressing of Brazilian constitutional democracy. It properly fits analyzing federal budget process as exchange tool, the historic construction of different government administration and the Nacional Congress as the main actor at horizontal accountability process. Through that observation, it has the objective in demonstrating how Congress accountability has been reduced, creating backlashes and issues in brazilian process of democracy consolidation. Also the article contributes to present positive factors about the adoption of parliamentary government and the reflections of instability in macroeconomic sector through the triple function of State in Economy.
Keywords: presidentialism; parlamentarism. Coalition government. Constitution of 1988. Accountability.
1 Graduando do 07º período no bacharelado em Direito na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro pesquisador e fundador do Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados. Auxilia o corpo editorial do periódico Alethes. Escritor com publicação de contos e poesias. Autor da novela histórico-política Abapanema: o lugar das coisas ruins.
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
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1. Introdução: o discurso político tratado pelo viés histórico e econômico
A discussão que remete à temática do presidencialismo de coalizão certamente não é
inovadora. Qualquer debate que adentre o âmbito da Reforma Política, por mais superficial que
seja sua natureza, perpassa pela crise do modelo de representatividade brasileiro. Apesar dos
termos “presidencialismo” e “coalizão” só terem sido utilizados com esse viés em meados da
Constituinte de 1988, por sociólogos como Sérgio Abranches ou Ferreira Limongi, o
funcionamento do instituto não é nada mais do que uma renovação da contextualização histórica
dos arraigados privilégios oligárquicos de nossa sociedade.
O presente trabalho não se dispõe a ser um escrito exauriente ou amplamente inovador
quanto ao conteúdo de definição do instituto. Consoante a atual crise institucional vivenciada
pela decorrência de um processo de impeachment em curso, o artigo visará fazer uma revisão
bibliográfica sobre os principais autores que dissertaram acerca da temática. O que é que já se
tem de constatações sobre essa representação anacrônica.
Contudo, não se limitará a fazer uma análise de conceitos. Aplicará uma abordagem
econômica pouco utilizada nos artigos que discutem sociologicamente o tema. Frente às
funções do Estado na atuação regulatória da Economia e sobre como se dá o processo
orçamentário federal na atual Constituição, construir-se-á o viés crítico sobre a criação de um
sistema intra estatal que financia o projeto de representatividade disforme da coalizão.
É notório que crises da monta como a vivenciada atualmente não se expressam por
fatores criados aleatoriamente e de forma instantânea. Há todo um processo histórico que
justifica o comportamento das instituições no atual Estado Moderno e na específica conjuntura
brasileira. Por isso, faz-se mister abrir cada discussão com uma introdução aos elementos
históricos de cada setor. Em primeiro plano, os fundamentos históricos da evolução do Estado
de Direito ao Estado Constitucional de Direito. Em segundo plano, a evolução da proposta
orçamentária no Brasil desde a Constituição de 1824 até a recente Constituição de 1988. E por
fim, de forma a propor uma solução, prima apresentar a construção histórica do
Parlamentarismo no modelo anglo-saxão, como sua estrutura é coerente com as bases da teoria
do accountability, e as ressalvas históricas brasileiras que permitem identificar as dificuldades
sócio-políticas para a implantação de uma democracia parlamentar aos moldes da inglesa.
2. Presidencialismo de coalizão: a problemática
Abre-se o presente estudo com a apresentação da problemática central: o
presidencialismo de coalizão. Antes de contextualizar suas faces anacrônicas e reflexos na
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 240-267, mai/ago, 2016.
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teoria do Estado e Economia, bem como convergências históricas que colimaram ao
desenvolvimento da instituição da coalizão no Brasil, necessário apresentar o conteúdo
semântico da referida atuação política.
O termo referência é de autoria de Sérgio Abranches em artigo datado de 1988,
estabelecendo uma relação de poder do Executivo com um controle maior sobre mecanismos
de orçamento e burocratização, definindo o Legislativo como ponto único de negociações para
aprovação de projetos de lei. Lúcio R. Rennó estabelece três pontos críticos sobre o
presidencialismo de coalização e que pontualmente são pilares frágeis de nossa política: o
sistema não permite governabilidade, a política funciona com a base das trocas e
descaracterização dos Poderes Executivo e Legislativo (RENNÓ, 2006). Esse sistema foi
introduzido na Constituição de 1988 para compatibilizar a instituição do Presidencialismo com
o multipartidarismo.
A coalizão é medida tomada em democracias multipartidárias onde o Executivo não
controla majoritariamente as cadeiras do Congresso, recorrendo a essa ferramenta por questão
de sobrevivência em governabilidade. Limonji obtempera que Executivo e Legislativo possuem
divergentes vontades que são inconciliáveis (LIMONGI, 2006). O Legislativo é enviesado
como um ator único e separado do Executivo, o que leva ao embate profundo, pois nosso
sistema Presidencialista, da forma como pensam os críticos, misturam caracteres sui generis na
produção legislativa que o aproxima dos regimes parlamentaristas. Sustentar essa forma híbrida
de governo é o que leva à crise institucional, tal qual enfrentada atualmente.
As contribuições nascidas em 1988 com Abranches, em sua discussão sobre a transição
democrática que estaria ainda absorvendo falhas autoritárias dos governos pretéritos, e que
continuaram até a atualidade através da percepção de Limongi e Santos, mostraram que a
institucionalidade do presidencialismo de coalizão levaria a um risco de instabilidade política
permanente.
Tecnicamente, um dos fatores de argumentação da defesa a respeito do comportamento
de coalização no presidencialismo brasileiro é através da presença do multipartidarismo. O
cenário heterogêneo favoreceria um cenário de coalizão para garantir a governabilidade e a
sustentabilidade institucional entre os Poderes Executivo e Legislativo.
Parte dessa argumentação é precisa, visto que nem sempre é razoável culpar o
anacronismo de um governo em gerir suas políticas e obter apoio para execução de suas
políticas simplesmente com a presença de inúmeros partidos a fragmentar o sistema. Assevera
o autor Edison Nunes que até mesmo o bipartidarismo em um cenário clássico do
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
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Parlamentarismo pode levar a um cenário de enfraquecimento do vínculo Legislativo-
Executivo, caso exista um alto índice de heterogeneidade dentro dos partidos.
Assim, o melhor critério e mais científico não é propriamente a pura e simples existência
do multipartidarismo. Importa-se muito mais a quantidade de minorias endógenas que se
tornarão futuramente uma maioria maciça a esmagar o governo eleito, de forma a colocar
entraves na execução política e destituir a governabilidade através de uma “coalizão inversa”.
É consoante a esse raciocínio esboçado que o citado autor complementa:
O correto funcionamento da garantia institucional da liberdade política pela divisão de poderes depende assim, em última instância, de uma medida razoável de pluralismo político no interior dos partidos e de certa indisciplina, ou seja, de características que dificultem às agremiações transformarem-se em maiorias maciças capazes de oprimir as demais, obrigando-as a agir de maneira consociativa ou a não agir de forma alguma. (NUNES, 2011).
A evidente razão da adoção do presidencialismo de coalizão é claramente criar
condições para que o governo no âmbito Executivo consiga impor sua agenda ao Congresso, o
que faz ocorrer um cenário de “sobreposição” do Poder Executivo através da técnica de
barganha. Álvaro Moisés atribui que a consolidação dessa espécie de “imposição agendaria
executiva” assegura um regime em que se atribui ao Presidente da República a possibilidade de
não só coordenar a agenda legislativa, como ele ser a própria agenda legislativa do Parlamento.
Essa atitude assemelhada a uma coerção velada de um governo de barganhas atingirá
diretamente a própria teoria dos poderes, desvinculando o Congresso de seu papel de equilíbrio
no accountability horizontal, discussão que será aprofundada em tópico posterior.
Para essa questão, importa a observação de Moisés:
[...] o país teria consolidado um sistema político que, semelhante ao parlamentarismo, asseguraria não apenas a capacidade do executivo de ter os seus projetos de leis e de políticas aprovados pelo parlamento, mas também o domínio quase absoluto dos presidentes sobre a agenda política do parlamento. (MOISÉS, 2011).
Mas é necessário que se tenha em mente que tal dominância é de proeminente
fragilidade, e um dos argumentos de base encontra-se desde o processo eleitoral. A coalizão é
um ato na própria administração, enquanto o governo erige-se através da legitimidade superior
do povo. Existe uma dupla legitimação no processo eleitoral, portanto há igual peso atribuído
à legitimação tanto do Congresso quanto do Executivo. A coalizão cria um cenário virtual de
que haveria um suposto Congresso subordinado às vontades do Chefe do Executivo (ou melhor
dizendo, da agenda política do partido majoritário do Executivo), fato este que leva à seguinte
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 240-267, mai/ago, 2016.
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conclusão: “a supressão da distância entre os poderes como condição de estabilidade política,
isto é, que a própria divisão de poderes acarretaria as condições potenciais de instabilidade do
regime.” (NUNES, 2011).
Em face das combinações apresentadas do comportamento de coalizão, a desvinculação
do pleito eleitoral entre Executivo e Legislativo no formato adotado de lista aberta, em que se
vota no candidato e não em uma legenda com seu plano de governo, acirra-se as condições para
que exista um Congresso contundentemente oposto à agenda política do Executivo e forma um
sistema representativo de origens distintas. Se de um lado, há a possibilidade de um Executivo
eleito por uma maioria contrária ao Congresso eleito, o contrário mostra-se preocupantemente
realizável. É este cenário que requere a formação de coalizões para alcançar a governabilidade,
“[...] articuladas por meio da troca de cargos no governo e de emendas parlamentares por apoio
político na aprovação de projetos legislativos de interesse nacional encabeçados pelo
Executivo” (ABRANCHES, 1988).
Em um regime parlamentar, essa crise é consolidada com seu ápice através do
desenrolar do voto de moção de desconfiança da Câmara que permite a constituição de um novo
Gabinete. Isso é devido à última palavra em termos de legitimidade política ser de posse da
Câmara. É o Poder Legislativo quem define o contorno de legitimidade do governo. Em
contrapartida, um Presidencialismo por sua natureza ínsita de ser um regime com características
mais rígidas, possui a legitimidade final única e exclusivamente através do processo eleitoral.
Claro, desta feita, é o cenário de verdadeira instabilidade de uma crise no
presidencialismo de coalizão: um regime de rígida natureza com a legitimidade eleitoral, mas
que se comporta através da flexibilidade de uma força resolutiva dos conflitos na figura de um
Congresso quase pacificador, e que no cenário de crise coloca a culpa unânime dentro do
Executivo. Esta é a clara situação do atual governo, e um problema crônico de gerações do
presidencialismo brasileiro.
3. Aportes teóricos para a construção do Estado: construções histórico-políticas
desenvolvidas no Estado Democrático de Direito
Através das falhas apontadas, o trabalho tem o escopo de concluir com uma possível
solução de governabilidade através da adoção de um modelo mais ligado ao comportamento
parlamentar britânico, ressalvada as devidas considerações das diferentes sociedades em que
cada governo se assenta.
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
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Antes, é necessário conceituar o fundamento político da soberania junto da evolução
histórica do modelo parlamentar inglês e do bicameralismo e federalismo brasileiro,
possibilitando a melhor compreensão de como se deu o funcionamento institucional através da
história e como poderia ser uma melhor via de solução para a atual crise política brasileira.
Importante elucidar que as bases metodológicas para os próximos tópicos são a de
revisão bibliográfica histórica e do método indutivo para a atual realidade. A partir de como o
Estado se desenvolveu de seu paradigma Legislativo ao Estado de Polícia, chegando ao atual
modelo Constitucional, mostrar-se-á as diferenças fundamentais entre cada estrutura do Estado
e como isso impacta diretamente nas formas de governo adotadas.
3.1. Os fundamentos da política através da soberania: a ductibilidade do Estado
Constitucional Moderno
Em primeiro momento, devemos discutir sobre a evolução do conceito de soberania da
Europa, da Idade Média até o século XIX. Aos moldes da visão clássica, a soberania era uma
força política material designada como forma de garantir a unicidade e supremacia da esfera
política, antes vista como forma de um absolutismo. Inimaginável um Estado soberano possuir
competidores internos, ou seja, uma fragmentação de seu poder, posto que a questão era vista
como questão de garantia da estatalidade.
Declínio desse conceito se demonstra no advento do liberalismo e das frentes
democráticas contra os governos totalitários. O Estado, antes visto como um ente pessoal, vê-
se substituído agora por forças políticas representativas, forças reais de poder. Surge então a
noção de um direito do Estado, um direito posto pelo Estado e que fosse, ao mesmo tempo, ao
seu serviço e limitador de seu serviço (ZAGREBELSKY, 2011). Elucida-se nesse momento o
resultado do pluralismo político: uma formação de centros de poder alternativos e concorrentes
com o Estado. Não se tinha mais a noção de unicidade e garantia de estatalidade central. Em
suma, a criação do antigo formalismo europeu e do racionalismo ocidental tinha seus pilares
derrubados a cada ano que se passava.
Nessa ponte de transição pluralística, temos o que se entende modernamente por
soberania. Atrás da morte do antigo Estado, emerge das sombras o nascimento de um contexto
delimitado pela soberania da Constituição e seus princípios, o Estado Constitucional de Direito.
A soberania da Constituição é algo que fomenta relações bem mais complexas que o antigo
regime de soberania.
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Como já referido anteriormente ao pluralismo político emergente, os diversos grupos
sociais possuem interesses, ideologias e projetos políticos diferentes. Entretanto, há ainda um
detalhe importante a ressaltar: a maior parte desses grupos, de forma isolada, tem poder político
suficiente para impor de forma única seus interesses. A Constituição, nesse plano, não se mostra
nada mais do que um diálogo de trocas entre esses grupos políticos, com perdas e ganhos
significativos, porém calça bem o modo de possibilidade de uma vida em comum entre esses
grupos. A soberania não está no Estado e seus entes que governam, mas na Constituição e o
que se estabeleceu de acordo entre esses grupos políticos naquela Carta.
Para que os valores e princípios, de categorias tão divergentes em que a Constituição se
estabelece, tenham força suficiente para garantir a integração política, necessariamente não
podem ser absolutos, devem ser dúcteis, maleáveis, flexíveis. O laço dessa ductilidade é nada
mais que o compromisso e a coexistência pacífica da sociedade com os seus valores políticos
estabelecidos. Zagrebelsky pondera que a condição atual de nosso tempo em que vivemos
poderia se definir como a aspiração não a um, mas a muitos valores que conformam na
convivência coletiva; já em suas palavras: “la libertad de la sociedade, pero también las
reformas sociales, la igualdad ante la ley, y por tanto la geralidad de trato jurídico, pero
también la igualdad a respecto de las situaciones.” (ZAGREBELSKY, 2011).
3.2. Contribuições do Common Law para o Civil Law: a separação da estrita legalidade
entre o Estado Legislativo de Direito e o Estado Constitucional de Direito através
do supraprincípio do rule of law – as diferenças do desenvolvimento dos modelos
ocidentais e anglo – saxões de política e Direito
Estado de Direito: o Estado abaixo do regime estrito das leis. Um dos elementos básicos
das concepções constitucionais liberais é fixar e determinar exatamente os casos e limites de
sua atuação, bem como as esferas de liberdade dos cidadãos. Não pressupõe uma absoluta
renúncia do Estado pelos seus poderes, já que translada entre a ação livre do soberano com uma
organização policial e a sua pré-determinação legislativa.
Os Anglo-Saxões chegaram ao território da Grã-Bretanha apenas por volta do ano de
400, deixando um vasto legado de domínio no território por algo entorno de dois séculos (até
meados do ano 600). Politicamente, dividiram o território em inúmeros pequenos reinos. No
final da ocupação romana, o Cristianismo tinha começado a demonstrar sua introdução no
território.
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
Alethes | 247
Como de praxe para tal culto, templos demonstrando o futuro poderio que a Igreja viria
a obter estavam erguendo suas estruturas da Grã-Bretanha. Por outro lado, os conquistadores
Anglo-Saxões tentaram reprimir a difusão do Cristianismo na manutenção de suas crenças
mitológicas locais. Cada reino tinha uma conformação de costumes, ritos religiosos e usos
diferentes uns dos outros. O ano de 597 é um marco definitivo para o embate, eis que São
Agostinho une as tribos inglesas com a Igreja Católica Romana, estabelecendo uma autoridade
única, coesa para todo o território, no âmbito espiritual. Tal ano marca o que historiadores vão
chamar de a reintrodução do Cristianismo.
Culmina-se que a esse marco histórico foi importantíssimo para introduzir as ideias
filosóficas no território da Grã-Bretanha sobre a supremacia das leis perante o governo dos
homens e espelhasse nas difusões constitucionalistas adotadas atualmente pelas formas de
Estado e Governo. Ainda que inicialmente esse viés tivesse uma conotação não laica, com forte
influência da doutrina da Igreja Católica Romana, é desse período que insurge os ideais de
deslegitimação de um soberano hobbesiano como Leviatã.
Quais são as tendências políticas que vislumbramos nos locais em que o Cristianismo
vigorou como religião majoritária, e posteriormente, oficial? Um grande território, unificado,
sob a égide de um único governo. A reintrodução católica na Inglaterra começou a depositar
tais ideários. Tal qual foi feito em Roma com o Digesto, a legislação dos Reinos começou a ser
copilada de forma escrita. Os Reinos ingleses tornavam-se agora maiores em extensão e
menores em números, e começavam a organizar-se da forma clássica medieval europeia. Antes,
extrema fragmentação político-cultural fazia com que o conceito geral de punição fosse voltado
para o coletivo, levando em prol os costumes e usos locais (PLUCKNET, 1956). O Cristianismo
migrou essa proposição do coletivo para o indivíduo autor, sendo punido num primeiro
momento através de conceitos religiosos, para só depois entrar o jurídico. Assim advém o
conceito de penitência e penitenciária, uma expiação do pecado cometido contra os outros
homens no regime das leis divinas.
A lei aqui começa a fazer um papel importante. Antes dessa época, não se imaginava o
conceito de lex scripta, visto que o vocábulo ‘law’ não tem origem inglesa, e sim dinamarquesa.
O Rei Cnut por volta de 1016 até 1035 governou um vasto território compreendido entre
Inglaterra, Dinamarca e Noruega, e tudo com uma única conformação legislativa. Isso foi
importante porque deu ensejo para que criassem individualmente uma corporação una, coesa e
comum, que denominaram de ‘The Grand Jury’, um antecessor espiritual do atual common law
(PLUCKNET, 1956).
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Conforme visto, a evolução do conceito de Estado de Direito cresceu ao longo das
épocas. O Estado Liberal de Direito tinha uma conotação meramente de delimitação das funções
e fins do Estado, algo sumariamente mínimo. Havia a supremacia da lei, subordinação frente à
lei e a presença de um Poder Judiciário independente e com competência exclusiva para
aplicação da lei. Vigorou aqui o nascimento das concepções de representação eletiva e a
separação dos poderes.
Na França revolucionária, a soberania da lei se apoiava na percepção do terceiro estado,
da conglobante nação. Na Alemanha, limitava-se através de uma representação de classes. Em
toda Europa as concepções variavam de forma pequena, exceto na conformação inglesa com o
rule of law, sendo então a Inglaterra o berço da ruptura da construção constitucionalista da
Europa continental.
Partiu de outra história constitucional, porém orientado à defesa de ideias políticas
símiles das outras nações europeias. Rule of law not of men. Topos aristotélico do governo das
leis, a demonstração da aquisição da soberania parlamentar frente ao absolutismo da realeza.
A obra de Dicey ainda carece de uma tradução em nossa língua portuguesa. E é
justamente tal autor que propõe o melhor estudo para a compreensão desse supraprincípio de
governo do rule of law e que molda a fórmula do Parlamentarismo britânico.
Os escritos de Tocqueville comparando a Inglaterra com a Suíça no ano de 1836 servem-
nos de base para começarmos as discussões incitadas no parágrafo anterior. Conforme será
melhor entendido posteriormente, no modelo britânico prevalece um compêndio jurídico dos
costumes, dado a própria característica do common law. Nada mais óbvio que a conclusão de
Tocqueville em dizer que na Inglaterra temos uma presença maior da liberdade ensejada pelos
costumes, de forma que na Suíça contrapõe-se as leis preservando mais a liberdade do que o
próprio costume local (DICEY, 1897). Presente aqui é a perplexidade do observador das terras
inglesas confundindo, juntamente, o hábito, o auto-governo e o amor pela ordem e justiça.
Parece que Tocqueville não entendeu a função da supremacia da lei na Inglaterra ou, se preferir,
o rule of law como característica da constituição inglesa. Pari passu, há de nos atermos nos três
sentidos que Dicey oferece a esse princípio:
a. A abstenção de um poder arbitrário por parte do aparato estatal. Nenhum homem pode
ser punido exceto por uma recalcitrante quebra de algum preceito normativo. Em quase todos
os outros governos dos países continentais, o Poder Executivo exerce discricionariamente a
autoridade na questão de prender, expulsar do território.
b. Todo homem, qualquer que seja sua condição social e econômica, é sujeito da
jurisdição ordinária do reino e passível de ser julgado nos tribunais ordinários. Pode parecer um
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
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tanto quanto obscuro de início isso, ou algo relacionado com nosso princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana e o processual absorvido na simétrica paridade e isonomia, porém
aqui, para melhor ilustrar, imagine nosso sistema de imunidades penais e civis ou o próprio
Direito Administrativo. As palavras do próprio autor sintetizam esse segundo ponto:
A colonial governor, a secretary of state, a military officer, and all subordinates, though carrying out the commands of their official superiors, are as responsible for any act which the law does not authorise as is any private and unofficial person. This is the mains difference between rule of law and droit admnistratif. (DICEY, 1897)
c. Os princípios gerais da constituição são resultados de decisões judiciais determinando
o direito dos particulares em casos específicos trazidos diante das Cortes. Talvez venha da
seguinte sentença a frase, cabendo aqui alguma discussão se bem ou mal atribuída, de que a
constituição inglesa não foi feita, e sim ‘cresceu’. Aqui a constituição deve ser entendida como
fruto de contestações levadas diante das Cortes em nome do resguardo dos direitos dos
indivíduos.
A mais notável diferença para um constitucionalista acostumado com nosso modelo
constitucional de jurisdição quiçá seria a terceira elencada. Há, na constituição inglesa, uma
ausência das declarações de direitos que os constitucionalistas estrangeiros estão acostumados
a trabalhar. Os princípios não são máximas estabelecidas legislativamente, reduzindo-se a
generalizações desenhadas e oriundas das próprias decisões dos judges em si. Diferentemente
de uma cultura constitucional legislativa, em que as regras e princípios partem explicitamente
e implicitamente de uma Constituição codificada, aqui na seara jurídica inglesa vemos que tais
regras, antes como fontes de direitos nos países de constituições escritas e positivadas, são já
as consequências de direitos individuais reforçados por decisões das Cortes.
Tomo partida desse ponto principiológico para elencar um específico: o da igualdade
perante a lei. Assim, conseguimos retomar o primeiro ponto das três características que Dicey
fundamenta sendo as mais importantes para entender o rule of law. Nesse sentido de igualdade,
vemos aqui uma exclusão da ideia de exceção para qualquer oficial a serviço do Estado; é aqui
que vale ressaltar a não existência no direito inglês de algo que corresponda ao nosso Direito
Administrativo (droit administratif) ou aos Tribunais Administrativos franceses.
Dicey frisa em todo momento a não existência nem mesmo de um vocábulo de
similitude semântica para tal conceito. Objetivamente a obra propõe que façamos uma análise
das notion générales das leis administrativas nos seus Estados regentes.
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As situações apresentadas no droit administratif caem no escopo da lei administrativa.
Duas noções aqui se consideram: a) O governo e qualquer funcionário seu possui uma gama de
privilégios, direitos e prerrogativas especiais frente ao resto dos civis; b) A necessidade de
manutenção da separação de poderes, prevenindo o abuso de funções de um lado ou de outro.
Dicey aqui parece ser adepto da estrita separação de poderes (séparation des pouvoirs), um fato
que não é tão enxergado na prática na forma como ele analisa. Ademais, há de se considerar o
ano de publicação da obra.
No sistema inglês não existe sequer um conceito similar. Os membros submetidos ao
trabalho da Corte, funcionários do Estado e dentre outros ficam em patamar igual aos demais
civis. Se naquele sistema vigora a separação de poderes, na Inglaterra o princípio da
independência do juiz tangerá o conceito dos litígios administrativos. A jurisdição
administrativa não se resume em um código especial, com leis específicas, compelindo então
na forma dos chamados case laws (grupo de decisões com possibilidade de serem citados como
precedentes pelas Cortes). No common law as Cortes tendem sempre a dificultar a ação
discricionária e autônoma do executivo.
4. As ressalvas históricas no cenário brasileiro e a incompatibilidade entre o
bicameralismo e o modelo federativo nacional
O sistema do civil law permite que se dependa cada vez mais de uma premissa dedutiva
partindo de grandes princípios racionais deduzidos da Constituição. Naquele outro sistema
apresentado anteriormente, a questão é inversa, visto que predomina no common law a indução
a partir da experiência empírica casuística, o embase ilustrado pelos casos concretos.
Esse é o paradigma central da contextualização histórica entre um regime parlamentar
e um regime presidencialista. A construção do Direito nas tradições presidencialistas segue
modelos de um Executivo inicialmente poderoso contra a insignificância de seu súdito e que
perdeu forças ao longo da evolução da Democracia nas Constituições, mas acentuou ao longo
dos anos inúmeras prerrogativas que não deixam se espraiar as raízes de um “Presidente- Rei”.
Radica aqui as diferenças ilustradas entre o Estado de Direito e o Rule of Law, ao que pese usar
as palavras de Zagrebelsky outra vez:
a) O rule of law se orienta pela dialética do processo judicial e legislativo no Parlamento, enquanto no Estado de Direito se reconduz a um soberano decidir unilateralmente (o Poder Executivo mesmo em uma República, por exemplo, ou as decisões monocráticas do Judiciário).
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
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b) O rule of law encara a noção de Direito como um processo aberto, vago a transformações através da história; algo inacabado. O Estado de Direito nasceu de um conceito jusnaturalista, tendo em mente um Direito atemporal e universal. c) No Estado de Direito vigora o ex principiis derivationes, de um princípio se deriva um fato, tendo o rule of law o nascimento do direito através da constatação de uma insuficiência por um caso concreto: case laws (ZAGREBELSKY, 2011).
O modelo brasileiro possui ainda peculiaridades que acentuam profundamente os
parâmetros de centralização no Executivo, a começar com a construção de nosso Federalismo
sob a ótica política através de um movimento centrípeto e de tentativa de descentralização,
diametralmente oposto ao nascimento federalista das 13 Colônias nos EUA.
A Constituição de 1891 adotou o modelo de sistema de governo presidencialista similar
ao norte-americano e argentino. Notadamente, a tradição colonial brasileira não representava
uma condição favorável para o surgimento de um Executivo forte tendo em vista haver uma
luta entre os resquícios Imperiais e os defensores do movimento centrípeto nacional.
Havia uma intensa propaganda dos publicistas do século XIX em defender que havia
uma incompatibilidade entre o Federalismo e o Parlamentarismo. Desmistifica essa premissa o
constitucionalista José Afonso da Silva ao assinalar que a deformidade está na compatibilização
do Presidencialismo com o Federalismo, principalmente na política brasileira, em que a
realidade era de um presidencialismo sem freios e contrapesos, e ao lugar de uma Constituição,
regia o país os fatores reais de poder do Coronelismo e das Oligarquias (SILVA, 1988).
O ilustre constitucionalista chama o governo dessa forma de presidencialismo
piramidal, pois o Presidente é fruto de uma junção de interesses das oligarquias e coronéis que
controlam majoritariamente a economia. Havia um desejo de fragmentar para centralizar: as
elites oligárquicas brasileiras apesar de intuírem na queda do Imperador, queriam conglobar-se
figurativamente naquele polo. O que realmente existiu no processo republicano foi a simples
substituição de uma pessoa por um estamento social, na justificativa desagregadora para agregar
poucas elites no poder.
Outras peculiaridades podem ser mencionadas. O surgimento do Senado advém da
formação norte-americana das 13 Colônias antes da Guerra de Secessão. O embate entre
abolicionistas e escravocratas dificultava um consenso para formação de uma Casa Legislativa
única, o que fez com que o sul estadunidense exigisse a formação de uma segunda Casa
Legislativa com igual número de representantes, impedindo assim a aprovação de uma lei
abolicionista. E de fato, a escravidão ainda perdurou por mais de oitenta anos.
Afincado nesse episódio histórico, defende Dalmo Dallari que o bicamerialismo não
integra na essência os fundamentos de nossa República, e indo além, não representa cláusula
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 240-267, mai/ago, 2016.
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pétrea na própria Constituição de 1988. É a Câmara dos Deputados única e precípua
representante dos anseios do povo (DALLARI, 2014). Os interesses dos Estados-federados de
forma representativa forma forjados em nossa história política: retorna o viés mascarado da
falsa autonomia para revestir o verdadeiro objetivo da centralização dos interesses das
Oligarquias.
5. A relação entre Economia do setor público e o governo de coalizões:
exemplo do Orçamento da União e da permanência de Ministros da área econômica
O constituinte de 1988 outorgou prerrogativas de demasiado poder para o Executivo, o
que na análise de Sérgio Abranches criou um sistema fadado ao insucesso por ser extremamente
dificultoso a formação de maiorias estáveis. Cumpre-se um destacamento episódico na seara da
União no quesito aprovação da legislação orçamentária e a elaboração do Orçamento da União.
Ao longo das décadas, o Orçamento público desenvolveu-se conceitualmente, alcançando
definições mais complexas, passando de peça meramente contábil para uma verdadeira carta
programática.
Neste título, cumprirá apresentar brevemente a relação entre atuação do Estado na
Economia e a evolução do conceito de orçamento público. Após esse referencial teórico, tem-
se o intuito de demonstrar o impacto da realização de coalizões no processo legislativo
orçamentário e sua relação com a permanência dos Ministros da área econômica através da
análise de um trabalho do The Observatory of Social and Political Elites of Brazil.
Até aqui, tanto o conceito sobre presidencialismo de coalizão quanto as relações entre
sistemas de governo e evolução do Estado para contrapor o modelo do rule of law com o do
Estado Constitucional de Direito serviram como bases conceituais para o crônico problema
político interno. Após mencionadas certas ressalvas na formação da história brasileira, como o
Federalismo, o Bicameralismo e a influência dos fatores reais de poder na Proclamação da
República, a análise econômica deste tema tem o viés de apresentar algumas das consequências
derivadas dessa prática política.
5.1. Desenvolvimento das funções do Estado na Economia e o Orçamento nas
Constituições brasileiras
As crises econômicas trazem sempre o retorno da discussão sobre o que está
acontecendo de ineficiente na burocracia estatal para colimar em cenários desastrosos. Há
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
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diversos modelos para explicar um aumento das despesas públicas e uma queda na arrecadação
tributária, matéria esta que não compete para a análise proposta neste trabalho. Entretanto,
estudar alguns caracteres da despesa e do orçamento público importa para observarmos alguns
comportamentos do atual presidencialismo de coalizão no país para refletirmos criticamente
sobre sua atuação.
O final do século XVIII e início do século XIX teve o liberalismo econômico com Adam
Smith o seu “laboratório de desenvolvimento metodológico”. Mas foi apenas com Keynes que
se discutiu efetivamente as distorções do Capitalismo que levaram à Crise de 29. Keynes
substituiu o tripé macroeconômico dos clássicos (oferta, demanda e preço) por uma sustentação
macroeconômica: a demanda global somada ao investimento determina a renda global, que
consequentemente determina a taxa de emprego (GIACOMONI, 2012). A partir desse
momento, a intervenção estatal foi amplamente aceita pelos operadores econômicos como
forma de instrumento político de estabilização econômica.
Richard Musgrave em sua obra Teoria das Finanças atribui ao Estado três diferentes
vertentes para seu instrumento político de estabilização: função alocativa, distributiva e
estabilizadora.
Pela função alocativa percebe-se uma justificativa da alocação de recursos pelo Estado
nos casos em que não houver a necessária eficiência por parte do mecanismo da ação privada.
O alto custo dos investimentos em infraestrutura como transportes, energia, comunicações ou
saneamento não se compatibiliza com a taxa de retorno de lucratividade, visto ser gradual e
lenta. A iniciativa privada naturalmente afasta-se destes setores, visto que o primado do
capitalismo privado é a atribuição da maximização lucrativa com o menor dispêndio possível.
Através da função estabilizadora, os governos colocam como atores núcleos seus
Bancos Centrais. Cria-se estas instituições com a finalidade primeira de realizar controles
quanto à oferta monetária, ajustando-as às necessidades da economia (GIACOMONI, 2012). O
orçamento público é um real e efetivo instrumento de estabilização, visto que, no plano das
despesas, o governo pode corroborar no corte dos gastos supérfluos correntes e de capital,
priorizando apenas as necessidades básicas de manutenção do funcionamento administrativo;
enquanto que por parte das receitas o governo deve estar sempre atento na equação entre renda
pública e receita pública através do gráfico em parábola de Laffer2. Em momentos de queda da
2 A curva de Laffer é uma representação teórica da relação entre o valor arrecadado com um imposto a diferentes taxas. É usada para ilustrar o conceito de "elasticidade da receita taxável". Um resultado potencial da curva de Laffer é que aumentar as alíquotas além de certo ponto torna-se improdutivo, à medida que a receita também passa a diminuir. Uma hipotética curva de Laffer para cada economia pode apenas ser estimada (frequentemente apresentando resultados controversos). Laffer mais tarde disse que o conceito não era original, apontando ideias
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 240-267, mai/ago, 2016.
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renda média da população, necessário que o governo evite compensar a diminuição de recursos
através do aumento de alíquotas, o que compatibilizaria com a função estabilizadora.
Há ainda a função distributiva, e com particular impacto para a análise do
presidencialismo de coalizão. O Ideal de Paretto é uma lei econômica que dita sobre haver
“eficiência na economia quando a posição de alguém sofre uma melhoria sem que nenhum
outro tenha sua condição deteriorada.” (GIACOMONI, 2012). Keynes ao trabalhar em sua
teoria macroeconômica sobre as falhas de mercado mostra ser utópica a aplicação do Ideal de
Paretto dentro da Administração Pública, tendo em vista que necessariamente a ascensão social
de determinado grupo é sempre feita às expensas de outro. O conteúdo político da atuação
econômica da função distributiva (e seu verdadeiro desafio) é determinar o que é
consideravelmente justo na distribuição de renda e riqueza e às custas de quem se deve realizar
os programas de transferência de renda.
Analiticamente, o comportamento de alguns governos anteriores e do atual demonstram
uma distorção da função distributiva dentro do presidencialismo de coalizão. As medidas
distributivas e os recursos utilizados para manutenção de tais programas foram fruto de trocas
parlamentares, com o intuito de manter a base aliada sólida e não perder a legitimidade eleitoral
conferida pelo voto. A grande questão é que a função distributiva na economia brasileira nunca
foi feita da forma que realmente deve ser feita: através de uma reforma tributária com a possível
inserção de um imposto de renda progressivo que subsidie os programas populares de
alimentação, transporte e moradia.
Considerando que o problema distributivo tem por base tirar de uns para melhorar a situação de outros, o mecanismo fiscal mais eficaz é o que combina tributos progressivos sobre as classes de renda mais elevada com transferências para aquelas classes de renda mais baixa. (GIACOMONI, 2012; MUSGRAVE, 1974).
Em cenários de abalos orçamentários, encarece as custas desses programas quando não
executados da maneira correta, tendo em vista que a população que majoritariamente concentra
a renda per capita não será afetada pelos abalos econômicos e continuará com sua concentração
financeira. O que ocorre é que, para que o Executivo não se perca em sua própria agenda e não
deteriore o eleitorado formado, transforma a política distributiva em ferramenta de
governabilidade, e seus recursos na elaboração das leis orçamentárias são fruto de trocas
parlamentares através das emendas, o que deixa nitidamente estremecida a função
similares nos trabalhos do polímata norte-africano do século XIV Ibn Khaldun — que discutira a ideia em sua obra de 1377 Muqaddimah — bem como nos estudos de John Maynard Keynes. LAFFER, A. (June 1, 2004). The Laffer Curve, Past, Present and Future. Retrieved from the Heritage Foundation.
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
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estabilizadora da economia. Ao se ter em mente que um governo de coalizões em poucas
hipóteses formará suas alianças alicerçadas na função de zelo do bem público, tem-se uma
tremenda desfiguração das funções do Estado na Economia, o que fatalmente gerará cenários
de crise como o do atual governo.
O tratamento do orçamento nas Constituições também não se distancia do raciocínio das
políticas de trocas. Com a vinda de D. João VI para o Brasil, iniciou-se um processo de
organização orçamentária e em 1808 criou-se o Erário Público, instituição primitiva do que
hoje é o Tesouro Nacional e Secretaria da Fazenda. A Constituição de 1824 não possuía uma
elaboração normativa a respeito da tratativa orçamentária, tento em vista que seu art. 172
estabelecia que o Ministro da Fazenda apenas apresentaria à Câmara dos Deputados um
“balancete geral”. A Constituição de 1891 é quem trouxe definitivamente para o plano
legislativo o orçamento, e atribuiu ser competência privativa do Congresso Nacional, sendo a
elaboração do orçamento competência da Câmara dos Deputados, e a tomada de contas do
Executivo atribuição do Congresso Nacional com auxílio do órgão recém-criado, Tribunal de
Contas. Nasce nessa época a função do accountability horizontal do Congresso, e que será
posteriormente melhor esmiuçada.
Apesar da Câmara dos Deputados ter assumido a iniciativa da propositura do orçamento,
observa Arizio Viana que na prática a iniciativa “sempre partiu do gabinete do Ministro da
Fazenda que, mediante entendimentos reservados e extraoficiais orientava a comissão
parlamentar de finanças na confecção da lei orçamentária” (VIANA, 1950).
Com a Revolução de 30, a Constituição de 1934 colocou uma seção própria para o
Orçamento Público e atribuiu a competência da proposta ao Presidente da República.
Entretanto, tal poder não era absoluto do Executivo, tendo em vista que não havia a limitação
do poder de emendas pelo legislativo. Assim, é possível afirmar que o modelo de 34 instituiu
uma proposta de orçamento mista, que ao mesmo tempo que não diminuía a qualidade de
participação do legislativo, não tornava absoluto o poder orçamentário do Executivo e tentava
colocar um mecanismo de contrabalanço ao comportamento herdado desde 1891, em que na
prática o Executivo definia suas próprias finanças nos bastidores e fazia seus acordos para a
aprovação.
Vargas ao assumir a Presidência possuía um discurso de que seu governo seria o das
Assembleias Especializadas, e que o Estado da oligarquia antiga poderia ser considerado
entidade amorfa. Apesar de suas duas Constituições apresentarem um modelo formal de
cooperação orçamentária entre Executivo e Legislativo, a partir de 37 a prática era de um
controle absoluto pelo Executivo.
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O movimento de 1964 pulverizou na Constituição de 1967 qualquer resquício de
interferência do Legislativo no processo de elaboração e aprovação do orçamento. O papel do
Congresso tornou-se mero fantoche para a aprovação do Orçamento da Junta Militar, tendo em
vista que a recusa era medida descabida de se cogitar em momentos como aquele.
Nitidamente o estudo constitucional da atribuição acerca da proposta orçamentária
contribui para a formação da relação entre a predominância da Democracia e a forma de
aprovação da legislação. A centralização do Executivo nos períodos ditatoriais é explicada pelo
próprio caráter autoritário e de não limitação dos poderes do Executivo. Já para nossos
momentos de tradição constitucional mais democrática, como as Repúblicas anteriores à
Ditadura de 1964, mostram que a todo custo o Executivo tenta embargar as proposições do
Legislativo, e que na prática o que deveria ser limitado (um orçamento construído através do
processo legislativo coerente), é mais uma moeda de troca para a formação dos regimes de
coalizão.
Não é diferente o panorama apresentado pela Constituição de 1988, em que o
constituinte demonstrou grande atenção para o capítulo do orçamento, já que se entendia ser
símbolo das prerrogativas parlamentares durante o período autoritário (GIACOMONI, 2012).
A novel Carta Magna apresentou um complexo sistema tripartite orçamentário – Lei
Orçamentária Anual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Plano Plurianual – com o retorno da
participação do Poder Legislativo na propositura de emendas parlamentares às despesas
públicas. Por outro lado, ainda continua como prerrogativa do gabinete presidencial a efetiva
elaboração do diploma orçamentário, e indo além, as emendas parlamentares continuam a ter o
caráter de barganha acentuado pelo presidencialismo de coalizão, em que se afasta a análise
técnica das emendas e sobrepõe-se um jugo eminentemente político em suas discussões.
5.2. A relação do presidencialismo de coalizão na elaboração do orçamento
brasileiro frente à instabilidade de permanência dos Ministros da área
econômica
Conforme apresentado, um dos flagelos do presidencialismo de coalizão no cenário
brasileiro pluripartidário é que, se tais minorias decidem se fortalecer contrariamente à agenda
constituída pelo Executivo, há uma formação excessiva do que a doutrina reconhece por veto
players, levando ao governo socorrer-se de medidas clientelistas para sobreviver ao longo
mandato de quatro anos. Barry Ames acentua que “raramente o presidente consegue evitar
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
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pagar um alto preço, na forma de clientelismo e fisiologismo, em troca de apoio parlamentar”
(AMES, 2001).
No processo orçamentário atual, mesmo quando os parlamentares têm um papel efetivo,
este se limita essencialmente à proposição de emendas ao projeto de lei orçamentária que visam
direcionar para suas bases eleitorais programas e projetos de interesse local (PEREIRA e
MUELLER, 2002).
Não cabe a esse artigo esmiuçar o complexo processo legislativo orçamentário com
todas suas fases e diretrizes, o que remete o leitor em caso de curiosidade para alguns livros
específicos sobre a temática. O que cumpre desenvolver é a relação pontual de alguns
comportamentos de coalizão no curso desse processo. O Ciclo Orçamentário pode ser definido
como uma sequência lógica de atos que compõe a proposta, elaboração e execução.
A sistemática adotada pela Constituição atual encontra-se no seu art. 165, em que a
iniciativa é privativa do Presidente da República, cabendo aos parlamentares o poder de
emenda. Alguns problemas acontecem ao se tentar compatibilizar o poder de emenda
parlamentar com o funcionamento do presidencialismo de coalizão.
Em primeiro lugar, os parlamentares abdicam de sua prerrogativa de propor uma
emenda de forma “coletiva”, a fim de pressionar o governo para que realoque uma quantidade
de recursos em determinada área que se observa prioritária para propor emendas destinadas a
beneficiar suas principais bases eleitorais (PEREIRA e MUELLER, 2002). Percebe-se então
que é plausível supor que o Executivo, que tem grande poder discricionário na execução do
orçamento anual, use este poder para pressionar a formação das coalizões desejadas e diminua
a atuação atribuída aos parlamentares. Com isso, a conclusão mais cabal sobre esse
comportamento parlamentar é que a cada momento há uma tendência dessa atitude tornar-se
maior entre os parlamentares, tendo em vista que isso cria uma expectativa no Legislativo de
seus pedidos futuros serem atendidos pelo Executivo. A essa conclusão PEREIRA e
MUELLER chegam também seu estudo:
Alegamos que o governo se dispõe a arriscar esse custo, porque se aproveita da oportunidade para utilizar a execução de emendas como instrumento de controle dos membros de sua coalizão nas votações no Congresso. Em outras palavras, o uso estratégico da liberação das emendas propicia ao Executivo o ganho de votos favoráveis que mais do que compensa a perda decorrente da alteração de sua proposta inicial. É por isso que o governo não somente abre mão de usar os recursos institucionais e as informações de que dispõe para impedir a modificação do seu projeto de orçamento, como incentiva a apresentação de emendas ao sistematicamente superestimar o nível das receitas esperadas. (PEREIRA e MUELLER, 2011).
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Reflexos dessa conturbada atuação espalham-se também nos Ministérios da área
econômica. Renato Perissonato e Eric Dantas ao compararem o período de permanência dos
Ministros dessa área entre os anos da ditadura militar e da atual redemocratização, percebeu-se
que o período democrático apresenta um tempo de permanência médio menor que o do anterior
autoritário, sendo em média 13 meses. É uma reflexão muito mais ligada ao próprio
funcionamento do presidencialismo de coalizão do que propriamente ao autoritarismo pretérito,
em que o governo de coalizão é “marcado por um tempo médio de permanência
significativamente menor e no qual predomina claramente o embate político como principal
razão de saída dos ministros econômicos.” (DANTAS e PERISSONATO, 2016).
Não há como afastar a responsabilidade do Congresso com esquivas de que não tenha
consciência desse comportamento endêmico acerca das coalizões. É muito pior que isso. Os
congressistas atuam de olhos abertos e a espera de que o funcionamento institucional seja dessa
forma, tendo em vista que os deputados que participam das “coalizões orçamentárias” são
beneficiados recebendo parcelas das verbas orçamentárias para beneficiar seu núcleo local de
eleitorado.
A conclusão, e particularmente trágica a que se chega, é que não só o governo de
coalizão atrapalha na elaboração de um orçamento comprometido com o bem público e a
tríplice função do Estado na Economia, como também se utiliza desse artifício como uma
ferramenta barata para financiar o alto grau de governabilidade do presidencialismo de coalizão.
6. Parlamentarismo: da história inglesa para o funcionamento do accountability
horizontal no Congresso
6.1. A história inglesa do Parlamentarismo
A história greco-romana difundiu os ideários de democracia, liberdade e um livre
governo, o que impediu que houvesse novamente na Inglaterra um governo tirano ou práticas
monárquicas tiranas, tal qual foi Willian Ruffus. O processo descrito ocasionava a seguinte
consequência: uma produção cada vez maior de leis e a organização num sistema legal coerente
e separado da administração do monarca.
Ao fim do reinado de Henrique III, o Judiciário já era uma figura de poder distinta da
máquina administrativa. Richard I foi conhecido como o ‘rei da penumbra’, eis que a Inglaterra
foi deixada a mercê dos ventos incertos do próprio tempo, esquecida pelo próprio monarca.
Essa específica experiência permitiu que os ingleses visualizassem, e aqui da forma mais
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empírica que pudesse, que era possível uma organização político-administrativa continuar o seu
funcionamento sem a presença de um rei. Em seu lugar, a figura de um ‘ministro de confiança’
era tomada.
Vai tomando forma um decisivo evento para a história política inglesa e do common
law, pois foi formado o panorama inicial para o que viria posteriormente ser a Magna Carta.
Hubert Walt, numa época quinhentista de fervor das artes, não poderia deixar o Direito ausente,
expressando uma visão nitidamente jusnatural: “loyalty was devotion, not to a man, but to a
system of law and order which he believed to be a reflection of the law and order of the
universe”.
Por um longo tempo, o antigo common law recusava-se a reconhecer os vilains como
proprietários de seus próprios territórios. Cabia um certo tipo de ‘recurso’ para as chamadas
‘Equity Courts’, porém ainda distantes e separadas do maquinário operativo da administração.
O que acontecia era apenas um ‘vilão’ sem o devido direito legal de propriedade, apenas com
um direito costumeiro de posse. Sir Edward Coke foi quem fez o sistema do common law
entender esses novos sujeitos sociais como sujeitos de direito. O fato simplesmente evitou que,
num futuro posterior, insurgisse na Inglaterra sangrentas revoluções sociais como aconteceu na
França. A história inglesa vagarosamente adaptou a lei aos novos costumes sociais.
A Reforma Protestante foi um marco importante na virada intelectual e política da
Inglaterra. Os profundos estudos da cultura grega pelos ingleses contribuíram para que
houvesse uma nova interpretação sobre o Novo Testamento bíblico, com fulcro nos novos
entendimentos sobre liberdades individuais, sobrepujando o antigo sistema de ‘costumes’. Isso
definitivamente refletiu para um novo entendimento acerca das leis para os ingleses. Ao afastar
a predominância de um costume clássico, de uma construção antiga do Cristianismo, isso
certamente impactou na forma em como as Cortes entendiam o nascedouro das leis, agora bem
mais distantes dos costumes e mais próximas do entendimento do Parlamento ser a única e
soberana fonte legislativa.
Nos dizeres de Theodore: “Law in the theological sense, and law as the lawyer knew it,
were both based upon the same foundation—the will of God as expressed through authority
(whether ecclesiastical or royal), tradition and custom.” (PLUCKNETT, 1956).
Uma vez que houvesse um ataque direto a todo sistema eclesiástico, por consequência
haveria um ataque ao sistema legislativo. A sociedade, tal entendida naquela época da forma
contratualista, contribuiu para uma secularização duradoura na Inglaterra, o que afetou
diretamente sua constituição histórica. Ao longo dos anos, diversas atitudes de um crescimento
do poder do parlamento puderam ser vistas, tal como a mudança do poder religioso para a coroa
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no reinado de Henrique VIII, o confisco em um único ato pelo parlamento de um grande número
de propriedades da Igreja; em suma, a onipotência religiosa sucumbia agora para uma
onipotência do Parlamento. Visto o que estivera sendo construído durante esses anos, fica clara,
portanto, a derrocada de Jaime II e a ascensão da Revolução Gloriosa com a assinatura do ‘Bill
of Rights’. "That the pretended power of suspending of laws, or the execution of laws, by regall
authority, without consent of Parlyament is illegall." (PLUCKNETT, 1956).
6.2. O papel do Congresso Nacional como ator do accountability horizontal: o
enfraquecimento institucional através do presidencialismo de coalizão
Sem um sinônimo para o vernáculo luso, define-se accountability como uma relação de
prestação de contas nas relações de poderes interna e externamente, ou seja, um processo de
responsabilização do agente por meio de suas ações ou omissões (ROBL FILHO, 2013).
Autores como ROBL e ARATO defendem que a existência de apenas uma Câmara facilita a
adequação a esse conceito de prestação de contas, visto que permite que a população saiba
melhor o responsável pelos ônus e bônus de determinado plano de governo, indo ao encontro
do discutido por Dalmo de Abreu Dallari sobre a formação do Senado na política brasileira. O
governo de coalização dificulta a identificação dos responsáveis pelas decisões, logo restringe
o exercício pela população do accountability na forma eleitoral (ROBL FILHO, 2013).
O Congresso possui um dinâmico papel, e constitucionalmente instituído, dentro do
accountability horizontal. Relaciona-se intrinsecamente com o conceito de responsividade,
visto que “a accountability horizontal se verifica pelo monitoramento exercido pelos partidos
políticos e, em especial, pela oposição – se ela existir e for efetiva -, sobre o governo através
do parlamento” (MOISÉS, 2011).
A efetividade da oposição é um atributo extremamente importante, conforme ressaltado
pelo autor. Atualmente, há não só uma crise fundamental do presidencialismo de coalizão
devido sua atuação fragilizar as instituições. A oposição brasileira desenvolveu-se não com
conceitos sólidos e heterogêneos de opor-se à política agendaria atual do Planalto. Erigiu-se um
embrionário desenvolvimento ao longo dos anos de uma falsa oposição, que se estabelece
contrariamente até que aceite o comportamento da coalizão através da barganha com
Ministérios, emendas parlamentares e alocação de recursos orçamentários para seus respectivos
Estados e Municípios. O rol de atuação deixa o plano da política para assentar-se no plano
estritamente eleitoral. É uma oposição aproximada à busca pelo poder, e distante de verdadeiras
ideologias.
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
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Mill atribuiu a melhor expressão sobre a necessidade de defesa dos interesses das
minorias, o que converge diretamente com o esboçado conceito anterior da ausência de real de
oposição na política brasileira. A hipótese dele defende que “a efetiva eficácia da instituição
consistiria, nesse sentido, na combinação da sua capacidade de defender o bem público geral
sem excluir a expressão dos direitos dos grupos minoritários particulares que constituem a
sociedade” (MOISÉS, 2011). Em um cenário de responsividade plena, temos um real encontro
entre um embargo político da oposição e seu papel de ator do accountability horizontal.
Ao mero indício de que a agenda política perdeu sua capacidade de defender o bem
público geral, seria dever constitucional que o Congresso realizasse a verdadeira pressão
política de uma oposição através dos vetos, propostas de leis e discussões em plenárias sobre
os pontos nefrálgicos de falta com o bem público. Entretanto, há uma dissociação desse
comportamento em virtude do presidencialismo de coalizão, em que haverá um legislativo
minguado e uma pseudo-oposição que não terá forças suficientes para retornar o eixo de
governabilidade.
O Legislativo tem de ter a capacidade de atuar em sua função legiferante com autonomia
e autocrítica. A reversão desse cenário no presidencialismo de coalizão é o resultado da referida
ausência de oposição.
O Congresso Nacional como o principal mecanismo de representação do sistema democrático precisa ter capacidade de introduzir iniciativas que, eventualmente, impliquem em mudança do status quo, sem que isso represente uma quebra da governabilidade ou um risco para a estabilidade institucional; na situação atual, no entanto, isso está bloqueado. (FIGUEIREDO, 2005).
Nenhum Presidente consegue erguer um governo sozinho. A face multipartidária de
nosso sistema, a priori, elabora um sistema em que o Presidente, para garantir a
governabilidade, precisa de apoio em todas as direções políticas. Tais alianças são duas faces
de uma mesma moeda: se de um lado garante a plena governabilidade e uma aparente
estabilidade política, de outra feita estabelece o crucial ponto para o enfraquecimento do papel
do Congresso em sua função responsiva (accountability) e desmantela por completo a
possibilidade de existir uma oposição preocupada com a ideologia do bem público.
A atual crise do governo Dilma, dentre outros fatores, tem como explicação esse frágil
pilar da construção de coalizações. Entretanto, o Congresso, possuindo um comportamento já
afastado da verdadeira responsividade e cobrança, preocupa-se mais em retirar o elemento
executivo como bode-expiatório de toda crise, do que articular-se como verdadeira oposição e
consolidar um projeto de verdadeira reforma. Os dois governos anteriores souberam trabalhar
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 240-267, mai/ago, 2016.
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sua agenda dentro do sistema, e de um sistema que quanto mais aguda se torna a crise de
legitimidade para realizar as coalizões, maiores são as condições para que meios escusos sejam
utilizados para perpetuar o aparente cenário de estabilidade institucional. Conforme Moisés:
Por outras palavras, o sucesso dos dois presidentes que governaram o país no período de maior estabilidade das instituições democráticas brasileiras teria sido devido ao fato de eles terem percebido – em um caso mais depressa do que o outro – as implicações das prerrogativas constitucionais de seus cargos no que tange à sua relação com as forças políticas heterogêneas no parlamento. Em um caso, a subestimação da força dos partidos para formação da maioria governativa a partir de seus recursos institucionais específicos teria levado à adoção de medidas não-convencionais responsáveis pela deflagração de uma crise conjuntural de proporções consideráveis; no outro, uma suposta percepção mais clara dos atributos institucionais do modelo de presidencialismo de coalizão teria levado a um panorama político claramente monotônico, marcado por um comportamento relativamente previsível dos partidos e, por consequência, pela ausência de crises devidas à falta de apoio partidário às propostas do governo. (MOISÉS, 2011).
Perceba-se, assim, que efetivamente na construção histórica da política brasileira não
houve uma sucessão de acontecimentos que fizesse criar o sentido do rule of law, not of men
na construção dos sistemas de governo. O Período Regencial tem um interessante episódio
chamado de Revolta de 17 de abril que revela os verdadeiros interesses políticos capitaneados
pelo grupo dos caramurus, vertente conservadora e avessa a qualquer reforma na Constituição
de 1824. É interessante pelo visto de que o período Regencial foi uma experiência política
descentralizadora e defendido por certos autores constitucionalistas como o embrião do
movimento federalista no país.
Através das ideias dos “Vivas D. Pedro I”, o grupo revolucionário pretendia construir
uma política constitucional híbrida: uma combinação de ideários liberais avançados com
resquícios de uma Monarquia Absolutista como o Ancién Regime. Basile atribui o real intuito
do movimento como politização do conteúdo de crise, e não necessariamente um olhar real
sobre o problema, já que “provavelmente a maioria assim procederam, até porque a insatisfação
militar, a crise econômica, o antilusitanismo e a busca de autonomia tornavam-se
evidentemente politizadas” (BASILE, 2004). Seria a Regência o conteúdo de bode expiatório
para que a mídia utilizasse como forma de englobar a maior parcela da população no
direcionamento daquele interesse politizado. Tanto é assim que a maior parte dos militantes
caramurus compunham de funcionários públicos, militares, comerciantes e caixeiros.
Teria sido o período Regencial o espelho das críticas construídas por José Afonso da
Silva acerca do presidencialismo piramidal: não há e nunca houve anacronismo entre o
parlamentarismo e um sistema federalista. Parte dessa afirmação é corroborada por todo o
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
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conteúdo histórico do desenvolvimento do parlamentarismo no sistema do common law, em
que a sociedade desenvolveu a noção da autonomia do Legislativo e da possibilidade do
funcionamento das instituições sem uma figura central, eis que o Rei tornar-se-ia
gradativamente um escopo decorativo. O reflexo do passado do período regencial brasileiro é
o “período de penumbra” anglo-saxão do reinado de Richard I.
Os dois momentos históricos tiveram características próximas umas das outras: a
ausência da figura do Executivo de uma tradição monárquico-absolutista e a fragmentação
territorial desagregada. O que outrora torna-se diferente o desenvolvimento brasileiro do
britânico é o interesse dos indivíduos participantes:
[Indivíduos] com mais educação política e voz nos relatos, como Bulow, fundamentavam o movimento em termos de postulados liberais, como o direito de resistência à tirania e opressão (vendo a Regência como uma ditadura), o rompimento do pacto social e a quebra da soberania (em função da pretensa ilegalidade da Abdicação e das reformas constitucionais) (BASILE, 2004).
7. Conclusão: seria o Parlamentarismo a resposta?
Durante todo o século XVII e XVIII, a Teoria Política dos ingleses foi passando por
uma gradativa, porém profunda transformação. De tudo, o fato que os ingleses puderam
aprender foi que o poder político estava nas mãos do povo e era direito deles de mudarem o
governo conforme fosse suas vontades. Bem além das teorias de Hobbes e Locke, Jeremy
Bentham teve um impacto de maior importância para os ingleses, visto que trouxera palavras e
conceitos até então desconhecidos por aquela teoria política local, tal como ‘codificação’,
‘internacionalidade’ ou ‘utilitarismo’. A noção de lei utilitária de Bentham nos dias atuais fica
cada vez mais próxima, pois o que se percebe é um distanciamento entre uma noção
semirreligiosa de lei para uma noção prática de um governo guiado por princípios estritamente
públicos.
Notadamente, conforme esboçado nos tópicos de aporte histórico, a tradição brasileira
desenvolveu-se de forma diferente da tradição britânica. Enquanto para o Rule of Law há uma
maior preocupação com a atuação do Poder Legislativo e o Judiciário é inserido como um
elemento de ultimato para todas as esferas da sociedade, a tradição brasileira mostra um
comportamento de falhas híbridas; há um governo que se utiliza das coalizões para
sobrevivência e um Judiciário que teme em ser demasiadamente ativista para suprir a
anacrônica ineficiência do Poder Legislativo. Não se cogita em afirmar que a mudança de
regime é a única e verdadeira solução para o descompasso político do país. Mas ao certo, com
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 240-267, mai/ago, 2016.
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uma tradição que caminha com passos próximos à soberania do Parlamento, um regime
Parlamentarista seria o início de uma longa jornada de mudanças corretivas.
Mas ainda assim, por que o Parlamentarismo? Há uma resposta técnica nos estudos do
catedrático Alfred Stefan, decano da School of International Public Affairs (STEFFAN, 1989).
Analisa o citado autor que o Parlamentarismo é o sistema de governo que melhor respondeu
para a perpetuação do que chama de três princípios para consolidação da democracia: eficácia,
legitimidade e flexibilidade no controle de uma crise.
Agrava a crise o conteúdo do presidencialismo de coalizão carecer da principal arma
que garante seu funcionamento no parlamentarismo: a ameaça de dissolução. Conforme
Ferreira, “haveria uma política de oposição cega, que relutaria muito em fazer qualquer coisa
que poderia ajudar o governo a ser bem-sucedido” (FERREIRA, 2016).
Observe que no tópico antecedente, ao definirmos a corrosão da função do Congresso
através do governo de coalizões e o enfraquecimento da atribuição de cobrança de
responsividade dos governantes, foi deveras necessário que fosse explicada a causa de tal
hipótese ter se atenuado nos dois governos presidenciais anteriores, causando uma aparente
estabilidade entre 1995 – 2010.
Deve-se ter em mente que em um governo de coalizão nada é de graça. O governo, ao
ceder espaço para a vontade das coalizões estabelecendo Ministérios e dando espaço na agenda
executiva, esperam em troca um amplo e irrestrito apoio. Isso levou a novas percepções
negativas quanto ao funcionamento do sistema político brasileiro. A consolidação de bases
parlamentares implicaria em falta de eficiência, reinando a lógica da patronagem, do
clientelismo e da corrupção (STEIN, 2016).
No decorrer dos mandatos da atual presidente Dilma Rousseff, a capacidade de
estruturar coalizões foi gradativamente reduzindo, confirmando a hipótese inicial de Abranches
sobre a lenta auto deterioração de um governo de coalizões. Em segundo lugar, o alto
fracionamento político partidário, e que não necessariamente representa um feixe de diferentes
ideologias político-partidárias, acirrou um cenário clivado por conflito de interesses
particulares. O resultado dessa confusão política é um momento em que fica claro que a soma
dos fatores conjunturais e estruturais apontados junto da “inexistência de mecanismos
institucionais de destituição de governos ilegítimos são alguns dos fatores do atual sistema
político-partidário que se conjugam para desencadear a atual crise” (VICTOR, 2015).
É preciso enfatizar que a instabilidade política de determinado regime reflete-se
umbilicalmente nas políticas econômicas, e é por isso que este trabalho consignou um capítulo
específico para fazer uma breve exposição sobre o formato de aprovação do Orçamento da
MENDES, M.A.S. Anatomia do presidencialismo de coalizão
Alethes | 265
União. Políticas macroeconômicas impactam diretamente na vida das pessoas, definindo seu
nível de renda, nível de consumo e a questão da empregabilidade no mercado. É através do
orçamento público que o Estado materializa boa parte de sua tríplice função na Economia para
garantir a alocação, distribuição e estabilização da Economia.
Refletir em como tornar mais democrática as decisões macroeconômicas é
necessariamente passar por um processo de reflexão do atual regime. Apesar de ainda ser
enorme a distância entre Ciências Sociais e as Econômicas, deve-se desmistificar a pretensão
de uma neutralidade técnica e entender como as condições sócio-históricas determinam cada
comportamento (STEIN, 2016).
Ao tanger a eficácia, o parlamentarismo tende a construir partidos e governos, enquanto
o presidencialismo fragmenta-os (presidencialism has party smashing tendencies,
parlamentarianism has party building tendencies). O governo parlamentar atua de forma
legítima, pois é impossível governar sem uma maioria na Casa Legislativa e raramente atua por
decretos ou poderes especiais (vide no caso brasileiro das Medidas Provisórias).
Quanto à flexibilidade no controle de uma crise, o voto de moção de desconfiança que
dissolve o Gabinete ou então a Casa Legislativa e promove novas indicações ou eleições
contorna os entraves políticos no Parlamentarismo, enquanto num regime presidencial o
sufrágio é travado pelo tempo e a crise apenas é agravada pela espera da troca de base política,
tendo a única ferramenta o difícil e controvertido impeachment. Entretanto, graves são as
ressalvas de nosso modelo social para a implantação do parlamentarismo, o que fortemente é
sustentado através do estudo histórico do período Regencial em comparação com o
desenvolvimento do parlamentarismo no modelo britânico. Antes de uma reforma estritamente
constitucional e política, é urgente que preparemos a sociedade com uma reforma ético-
sociológica.
Não se trata também de dialogar com uma hipótese unilateral do Parlamentarismo ser a
real e única solução para todos nossos problemas políticos. Longe disso. O presente artigo intuiu
de elencar as falhas de nosso sistema através de diversos setores: histórico, social e econômico.
As ressalvas de nosso desenvolvimento histórico, conforme pincelado através dos episódios
regenciais e da comparação com o período de penumbra da Inglaterra, demonstra que a
dificuldade inicial se espelha na própria não similitude cultural no trato da importância das
instituições e dos interesses dos integrantes de cada poder constituído.
8. Referências Bibliográficas
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 240-267, mai/ago, 2016.
Alethes | 266
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Entre o Fato e o Discurso: o Método APAC e sua Efetividade no Cenário Brasileiro
Between the fact and the discourse: the APAC method and its effectiveness in the Brazilian scenario
Raul Salvador Blasi Veyl1
Resumo: Em um contexto de efervescência política no âmbito do Direito Penal e com grande
abertura para debates em torno do Sistema Carcerário no Brasil, o presente artigo pretende trazer uma análise crítica acerca do método APAC - Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. Comparando-o com os métodos convencionais de aplicação da pena e a partir da lógica da Má Fé Institucional de Jessé Souza, pretende-se traçar um paralelo entre as críticas sofridas pelo método APAC e sua real condição de se apresentar enquanto alternativa eficaz para crise carcerária que o Brasil historicamente enfrenta. Unindo a teoria e a práxis, o fato e o discurso, pretende-se aprofundar a discussão acerca dos sistemas prisionais no Brasil e tentar adequar os métodos alternativos à realidade brasileira.
Palavras-chave: Direito Penal. APAC. Sistema Carcerário, Direitos Fundamentais.
Abstract: In a context of political booming in the Criminal Law and with a great opening to
debates around prison system in Brazil, the present article intend to bring a critical analysis about APAC Method – Association to Protection and Assistance to Sentenced People – when compared with other conventional methods of sentence. Bringing the Institutional Bad Faith logic, developed by Jessé Souza, and going through each aspect of the APAC method idealization and effectiveness, this work intend to make a parallel between the critics made to APAC and its real condition of showing itself as a choice to the prison crisis, historically faced by the Brazilian nation. Putting together the theory and practice, the fact and the speech, we intend to go further than the analysis already made and to try to adequate alternative methods to Brazilian reality.
Keywords: Criminal Law. APAC. Penitentiary System. Fundamental Rights.
1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq sob orientação da Professora Doutora Karine Salgado.
VEYL, R.S.B. Entre o fato e o discurso
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Introdução
Em 1769 determina-se a construção do primeiro presídio no Brasil (PEDROSO, 1997,
p. 122 e ss). Desde então, observa-se a grande idealização em torno do sistema penitenciário
brasileiro que, devido a sua precária infraestrutura, condiciona os detentos a condições sub-
humanas, ferindo, inclusive, diversos Direitos Humanos historicamente conquistados ao longo
dos inúmeros paradigmas dos Estados de Direito.
Abarrotado pelo descaso das autoridades, por um crescimento demográfico exacerbado,
pela falta de recursos, pelo crescimento exponencial da marginalização, e pelo crescente
preconceito de uma sociedade demasiadamente conservadora e pouco preocupado com o
encarcerado de uma forma geral (PEDROSO, 1997; GURGEL, 2008), o sistema prisional
brasileiro não conseguiu, ao longo de seus 246 anos, materializar aquilo que foi
constitucionalmente construído com relação ao detento e tampouco com relação à função social
da pena.
Em uma realidade na qual, tal como afirma Jessé Souza em seu livro intitulado “A Ralé
Brasileira - quem é e como vive”, impera a má-fé institucional e onde a grande maioria dos
detentos já estão condenados antes mesmo de serem detidos, a Associação de Proteção e
Assistência aos Condenados (APAC) surge como alternativa aos métodos convencionais,
desumanos em sua maioria.
A despeito das críticas jurídico-constitucionais, o modus operandi inovador do método,
que dá maior liberdade e responsabilidades aos recuperandos, assim como os bons resultados
relativos à reincidência daqueles que se submeteram ao mesmo, são fatores que chamam
atenção quanto à humanização e ressocialização do método alternativo.
É nesse cenário que o presente trabalho se apresenta. Analisando as condições e a
viabilidade de implantação de métodos alternativos de pena, como no caso da APAC, buscamos
unir a dogmática e a zetética2 na tentativa de encontrar caminhos que não só tratem o detento
2 Tal como leciona Tércio Sampaio Ferraz Junior: “Zetética vem de zetein, que significa perquirir, dogmática vem dokein que significa ensinar, doutrinar. Embora entre ambas não haja uma linha divisória radical (toda investigação acentua mais um enfoque que o outro, mas sempre tem os dois), sua diferença é importante. O enfoque dogmático releva o ato de opinar e ressalva algumas das opiniões. O zetético, ao contrário, desintegra, dissolve as opiniões,
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 268-286, mai/ago, 2016.
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como seres humanos, mas que tenham como foco a ressocialização dos mesmos e a
desconstrução de estigmas socialmente condicionados com relação às penas privativas de
liberdade. Buscar uma abordagem dialógica e dialética com os princípios constitucionais e com
os ideais construídos no Estado Democrático de Direito se mostra essencial para a superação
dos discursos construídos na lógica da dogmática penal. O sistema carcerário brasileiro urge
por saídas factíveis e o presente trabalho tende a destrinchar cuidadosamente todas as facetas
do método APAC para avaliar se, de fato, ele se mostra como uma alternativa eficaz no que se
propõe e na realidade jurídico-brasileira.
1. O perfil penal brasileiro e a má-fé institucional
O sistema carcerário brasileiro ficou, em quase todo o desenrolar de sua história, aquém
das expectativas que se depositavam nas teorias. Sempre desenvolvida de forma cuidadosa e
por especialistas que de fato se preocupavam com o bom gerenciamento da sociedade e dos
indivíduos de forma geral, a aplicação dos sistemas, no Brasil, foi constantemente delimitada,
quer pela inviabilidade dos projetos, quer pela pouca preocupação com o encarcerado devido
ao estigma social de “vingança” e de retributivismo da pena. Nesse sentido, discorre Regina
Célia Pedroso:
“(...) a inoperância das instituições públicas brasileiras funcionou em prol da mentalidade autoritária de época, e trabalhou na criação de lugares excludentes do mundo civilizado; sempre tomando como base modelos ideais e perfeitos de aprisionamento - as utopias penitenciárias -, sobre as quais, os juristas, via de regra, acreditavam que proporcionando leis em favor desses pressupostos, livrariam os bons homens dos perigos que circulavam visivelmente pelas ruas das cidades; protegiam o Estado do perigo que o afrontava e, sobretudo, levariam à regeneração social o futuro encarcerado. Mera utopia. ” (PEDROSO, 1997, p 136)
Mesmo com o desenvolver dos paradigmas do Estado de Direito e com o avanço, em
inúmeros aspectos, das garantias individuais e coletivas, assim como o maior enfoque para a
situação do detento, desenvolveu-se no Brasil a lógica da má-fé institucional. Engendrada no
conservadorismo social, histórico e conformador no qual o sistema jurídico brasileiro se vê
inserido, essa lógica cria a dicotomia dos “amigos” e “inimigos” da sociedade por ser incapaz
de perceber a diversidade.
pondo-as em dúvida. Questões zetéticas têm uma função especulativa explícita e são infinitas. Questões dogmáticas têm uma função diretiva e explícita e são finitas. Nas primeiras, o problema tematizado é configurado como um ser (que é algo?). Nas segundas, a situação nelas captada configurasse como um dever-ser (como deve ser algo?). Por isso, o enfoque zetético visa saber o que é uma coisa. Já o enfoque dogmático preocupa-se em possibilitar uma decisão e orientar uma ação. ” JUNIOR, Tércio Sampaio Ferraz. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação.ª edição. São Paulo: Atlas, 2004. p. 35.
VEYL, R.S.B. Entre o fato e o discurso
Alethes | 271
“Esse processo [a formação do Estado moderno no Brasil] instaurou novos padrões de comportamento humano exigidos para a adequação ao novo contexto social, definido pela expansão do mercado capitalista, do Estado centralizado e de todos os seus arranjos institucionais dedicados à manutenção do padrão de vida urbano moderno. O problema é que grande parte da população — as famílias de ex-escravos e sertanejos que deram origem à ralé estrutural — não atendia a esses padrões e não foi considerada seriamente na elaboração dos projetos que seriam levados a cabo por esses arranjos institucionais. ” (SOUZA, 2009, p. 348)
O Sistema Prisional no Brasil possui um perfil historicamente segregacionista. Segundo
o Infopen - Sistema Integrado de Informação Penitenciária – em 2010, 60% dos presos eram
negros enquanto 37% eram brancos. Ademais, o IDH e a intensidade da pobreza são fatores
que acompanham a discrepância racial nos sistemas prisionais no brasil, o IDH entre os brancos
era de 0,814 enquanto que o dos negros de 0,703, já a intensidade da pobreza, para os brancos,
indicava 47,43 e, entre os negros, apontava 49,29. (MONTEIRO, 2013). Acompanhada por
diversas outras condições, indissociáveis, em certa medida, a disparidade na cor dos
encarcerados somente reflete o conservadorismo e a insensibilidade do ordenamento para as
condições historicamente construídas.
Para Coelho (2005a), os estereótipos de cor parecem funcionar efetivamente, especialmente no que tange o acesso diferencial à justiça por meio de marcadores sociais. Nesta perspectiva, Adorno (1989, p. 43) aponta que apesar da maioria dos sentenciados estarem inseridos no grupo de brancos, tanto para reincidentes como para não-reincidentes, 65% e 74% respectivamente, a diferença acentua-se quando se comparam reincidentes e não-reincidentes da cor negra. Adorno (1996) descreve que os réus negros tendem a ser punidos mais severamente em comparação aos réus brancos, apesar de partilharem de características socioeconômicas semelhantes. A justiça penal ao ser mais severa para com os criminosos negros do que com brancos expressaria a desigualdade de direitos que compromete o funcionamento e a consolidação da democracia na sociedade brasileira (MONTEIRO; CARDOSO, 2013, p. 107).
Dessa forma, não só se vive em um contexto no qual o sistema carcerário é
insuficientemente estruturado para dar ao condenado o mínimo de dignidade, como também
tem-se instituições pré-condicionadas a valorar negativamente condutas de determinada parcela
da sociedade. Jessé Souza, mais uma vez, elucida a impotência do aplicador do Direito no que
tange à desconstrução desse paradigma ao exemplificar a falta de sensibilidade do ordenamento
no qual o magistrado se vê enclausurado:
A consideração da infância dos réus, se levada a cabo sistematicamente, colocaria a instituição em xeque, já que quase todos que são réus têm a mesma história de desorganização familiar, infância marcada por algum tipo de violência e fracasso escolar. A segurança jurídica, então, é invocada como justificativa principiológica e técnica para a não consideração das particularidades do caso — particularidades que, no caso da Justiça penal, justiça por excelência da ralé, vira regra — e para o
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direcionamento do julgamento na mera adequação do fato ao tipo penal. A má-fé institucional esquematiza os ritos e a infraestrutura do sistema criminal de modo a não haver saída para o magistrado. (SOUZA, 2005, p. 340)
Diante do exposto, é possível observar o abismo que há entre as teorias penais de forma
geral, e o que realmente se dá nas instituições e no cotidiano do sistema prisional brasileiro.
Observa-se o desenvolvimento do Direito Penal nas distintas abordagens de função da
pena. Desde a teoria retributiva, até às teorias de prevenção geral e especial, o que é possível
de ser analisado, é que ocorre uma “humanização teórica” do Direito Penal. Nesse sentido,
observa-se um olhar mais atento dos penalistas para aqueles que se submetem às penas, assim
como um maior cuidado na delimitação de quais devem ser os fins da penalização.
A prática, por sua vez, devido à infinidade de variáveis que decorrem da materialização,
não consegue acompanhar o desenvolvimento das teorias. Com presídios cada vez mais atrozes
e menos preparados para lidar com a quantidade de detentos no Brasil – em 2010 eram 496.251
presos segundo o Infopen enquanto o número de vagas no sistema penitenciário era de 298.275,
segundo o mesmo sistema no mesmo ano – e com instituições pouco desenvolvidas para
administrar as mais diversas realidades que a pluralidade brasileira oferece, as penas privativas
de liberdade convencionais, se mostram, cada vez menos, a solução adequada para a
criminalidade no Brasil.
Constatamos também que as ocorrências criminais caminham em um mesmo compasso com as taxas de encarceramento, contudo, não significam um decréscimo nas taxas de ocorrências criminais. Se tomarmos como exemplo o período de 2004 a 2005 no território nacional, a criminalidade em suas diversas modalidades passou de 4.200.298 para 4.990.74214 e o crescimento da população prisional passou de 336.358 para 361.402. A população prisional cresceu e as ocorrências criminais acompanharam esse mesmo processo. (MONTEIRO; CARDOSO, 2013, p. 109)
A situação dos presídios convencionais no Brasil, com base no que foi
supramencionado, pode ainda ser abordada com base em sua inconstitucionalidade. As
condições infraestruturais, a superlotação dos presídios e o despreparo das instituições e dos
profissionais atuantes na execução penal – exemplificados pela má-fé institucional – ferem,
taxativamente, o Artigo 5º, III da Constituição Federal de 1988 que preconiza a não submissão
de ninguém a qualquer tratamento desumano.
Na verdade, a Constituição Federal cuidou de deixar claro que três comportamentos estariam sendo condenados: a prática da tortura, o tratamento desumano, que poderia ser qualquer outro que, assim caracterizado, não se enquadraria na hipótese de tortura, e, por fim, o tratamento degradante. Cuidou, o constituinte, de alargar o conceito, mesmo pecando por excesso. Quis deixar claro que todo e qualquer comportamento atentatório à dignidade da pessoa humana, quer enquadrado como tortura, quer
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enquadrado como degradante, ou ainda desumano, mereceria reprovação do Estado Brasileiro. (ARAUJO In CANOTILHO et al, 2013, p. 244)
Nesse sentido, a situação degradante dos presídios no Brasil, bem como as condições
pelas quais os encarcerados passam, como já tratado anteriormente, vai de encontro ao artigo
5º, III. Fere-se, também, logicamente, o Princípio da Dignidade Humana, previsto no Artigo
1º, III da Constituição Federal de 1988.
Ao consagrar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático (e social) de Direito (art. 1º, III), a CF de 1988, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do próprio Estado e do exercício do poder estatal, reconheceu categoricamente que o Estado existe em função da pessoa humana, e não o contrário. (...). Assim, não se pode deixar de reconhecer que, para além de uma dimensão ontológica (mas não necessariamente biológica) a dignidade possui uma dimensão histórico-cultural, sendo, em certo sentido, uma noção em permanente processo de construção, fruto do trabalho de diversas gerações da humanidade, razão pela qual estas duas dimensões se complementam e interagem mutuamente. Justamente esta interação deixa ainda mais claro que o fato de considerar-se a dignidade da pessoa humana algo (também) vinculado à própria condição humana não significa ignorar sua necessária dimensão comunitária (ou social). (SARLET In CANOTILHO et al, 2013, p. 105)
Assim, como se viu a importância da Dignidade Humana é albergada como um dos
princípios fundamentais do ordenamento constitucional brasileiro, de forma que deve-se
buscar, como norte, sua plena efetivação.
Abrem-se, então, caminhos para o surgimento de novas perspectivas dentro da execução
penal. Sistemas não convencionais de cumprimento de pena aparecem no cenário brasileiro das
mais variadas formas e pautados nos mais diversos ideais. Explorar-se-á, adiante, um dos mais
criticados e controversos métodos alternativos à pena privativa de liberdade.
2. O método APAC: história, organização e resultados
Idealizado por Mário Ottoboni em 1972, a Associação de Proteção e Assistência aos
Condenados (APAC) tem sua primeira experiência realizada em São José dos Campos.
Inicialmente com o nome de “Amando ao Próximo Amarás a Cristo”, a ideia foi aplicada devido
a uma greve na cidade, o que obrigou o juiz de Direito, a pedido de Ottoboni e sem outra
alternativa, a entregar alguns presidiários para ficarem sob a guarda de 15 voluntários, sob o
comando do idealizador do método. O método foi desenvolvido para seguir as diretrizes de uma
recuperação social efetiva, na qual, dado o “amor” e o amparo religioso, assim como a disciplina
rigorosamente estabelecida, o preso – aqui chamado de reeducando – consegue “matar o
criminoso e salvar o homem”.
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A transformação moral de que fala Ottoboni (2001a) pode ser entendida como uma ressignificação dos princípios, valores e normas que regem o comportamento humano em sociedade. Sánchez (2004) diz a esse respeito que os princípios, valores e normas são, em suma, construções coletivas, embora a realização moral seja feita pelo indivíduo social. Esse autor diz ainda que esses são construtos que perpetuam, quase estáveis, através dos tempos. (COSTA; PARREIRA, 2007, p. 7)
Atualmente, o método angariou uma série de adeptos em diversas localidades do Brasil,
tendo como maior referência a sede de Itaúna, Minas Gerais. A organização não governamental
conta com ajuda financeira internacional e convênios com os Estados, de modo que a
administração das associações fique a cargo da comunidade e as despesas de custeio, a cargo
do Estado.
Juridicamente, as APACs possuem todo amparo legal-constitucional para seu
funcionamento, tal como ressaltam Ana Luísa Silva Falcão - Subsecretaria de Administração
Prisional/Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS/MG) – e Marcus Vinícius Gonçalves da
Cruz em seu artigo “O Método APAC – Associação de Proteção e Assistência aos Condenados:
análise sob a perspectiva da alternativa penal”:
As APAC’s têm amparo na Constituição Federal, na LEP e no caso de Minas Gerais, da Lei Estadual 15.299/2004, que dispõe sobre a realização de convênio entre o Estado e as Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (SILVA, 2012). Aplica-se o preceito trazido pelo artigo 4º da LEP, que trata da cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena. (FALCÃO; CRUZ, 2011, p. 9)
A Associação se distingue dos métodos convencionais pelo tratamento do reeducando,
tornando o mesmo diretamente responsável por sua recuperação. Possuir a chave de sua própria
cela – pouco utilizada no cotidiano da vida prisional – ou ser encarregado da limpeza do quarto
de visitas íntimas, são só algumas das diversas responsabilidades assumidas pelos reeducandos,
as quais, seguindo um esquema de recompensação e progressão interna de regime, se tornam
exponencialmente motivadoras da transformação moral-social pretendida por Ottoboni.
Estão presentes, imprescindivelmente, doze elementos fundamentais que auxiliam na
recuperação e justificam a “humanização” pautada nesse método alternativo de pena privativa
de liberdade, quais sejam: participação da comunidade, integração família - recuperando,
trabalho voluntariado, trabalho dentro e fora da instituição, ajuda mútua entre os recuperandos,
mérito, Centro de Reintegração Social (CRS), assistência jurídica, assistência à saúde,
valorização humana, religião, jornada de libertação em Cristo.
A participação da comunidade está presente na Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84)
em seu Artigo 4º, o qual determina que “O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade
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nas atividades de execução da pena e da medida de segurança” (BRASIL, 1988). A APAC,
segundo o Programa Novos Rumos do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, realiza algumas
ações de sensibilização e mobilização da comunidade, quais sejam: audiências públicas,
seminários de estudos sobre o método APAC e formação de voluntários.
Visando uma recuperação ampla, bem estruturada e humanizada, são criados
departamentos, na estrutura administrativa, com objetivo de auxiliar as famílias, não só no
acolhimento daquele detento em todo o processo de execução penal, mas também quando da
libertação, de forma que a reinserção social seja, de fato, consolidada.
O trabalho do voluntariado é de suma importância no método. Para exercer suas funções,
o mesmo deve passar por curso de formação de, em média, 42 aulas, de forma a entrar em
contato com a metodologia e desenvolver os atributos necessários para desenvolver o trabalho
cuidadosa e solidariamente (VILHENA; PAIVA, 2011).
O trabalho do recuperando acontece dentro e fora da instituição e aparece, aqui,
multifacetado, assumindo determinadas funções em cada tipo de regime pelo qual o reeducando
for submetido.
No regime fechado, a Apac preocupa-se com a recuperação do sentenciado, promovendo a melhoria da autoimagem e fazendo aflorar os valores intrínsecos do ser humano. Nessa fase, o recuperando pratica trabalhos laborterápicos e outros serviços necessários ao funcionamento do método, todos voltados para ajudar o preso a se reabilitar. No regime semiaberto, cuida-se da formação de mão de obra especializada, através de oficinas profissionalizantes instaladas dentro dos Centros de Reintegração, respeitando-se a aptidão de cada recuperando. No regime aberto, o trabalho tem o enfoque de inserção social, já que o recuperando presta serviços à comunidade, trabalhando fora dos muros do Centro de Reintegração. (VILHENA; PAIVA, 2011, p. 32)
A ajuda mútua entre os recuperandos se faz necessária para que seja estabelecido um
ambiente harmônico, assim como para que se aprenda e pratique o respeito aos semelhantes.
Essa ajuda se dá através da representação de cela e do Conselho de Sinceridade e Solidariedade
(CSS).
No método APAC, o mérito auxilia na determinação da progressão de regime.
Analisado minuciosamente por uma Comissão Técnica de Classificação, tanto as pequenas
atitudes do dia-a-dia como limpeza da cela, quanto os grandes passos na reeducação moral
como o pedido de perdão à vítima, contam para estabelecer a marcha de progressão.
O Centro de Reintegração Social (CRS) é o local onde o reeducando cumpre a sua pena.
Com infraestrutura totalmente desenvolvida para o método e de extrema importância para a
efetividade do mesmo, o reeducando conta, ainda, com oportunidade de cumprir a pena próximo
ao seu núcleo familiar.
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O CRS, pensado a partir das contribuições de Deleuze (1995), pode ser visto como um espaço liso, ou seja, o recuperando possui um sentimento de autonomia para fazer ou não as atividades de trabalho dentro da APAC, desde que ele assuma as conseqüências desse ato. Ao mesmo tempo percebe-se nesse espaço, como diria Deleuze (1995), uma demarcação territorial. O estabelecimento apaquiano é estriado, é demarcado já que o recuperando só possui o sentimento de autonomia, porém ele efetivamente não a tem. (COSTA; PARREIRA, 2007, p. 9)
Estão presentes, ainda, assistência jurídica e à saúde, a primeira, restrita àqueles que
aderiram e apresentam bom aproveitamento com relação ao método e a segunda aberta a todos,
disponibilizando, dentre outras, assistências médicas, psicológica e odontológica.
A valorização humana é a base do método, determinada por Ottoboni como um dos fins
a serem seguidos. Pautado, sempre, em atividades que busquem o autoconhecimento e a
valorização de si mesmo, são realizadas reuniões de cela, com a utilização de métodos
psicopedagógicos, além de grande esforço para convencer o reeducando de que pode ser feliz,
de que não é pior que ninguém. Até mesmo, a utilização de talheres para as refeições são
aspectos que fazem com que os recuperandos se sintam valorizados. (VILHENA; PAIVA,
2011)
Por fim, a Religião, aqui não como fé cristã propriamente dita, está pautada no amar e
ser amado, sem imposição de credos (VILHENA; PAIVA, 2011), uma vez que, segundo
Ottoboni, “(...) não há virtude mais santificadora, nem mais excelente que o amor de Deus. ”
(OTTOBONI, 1984, p. 94).
A consolidação da religiosidade em que se pauta a todo momento o método APAC se
dá nas Jornadas de Libertação em Cristo, um encontro anual disposto entre palestras,
testemunhos de outros participantes e de meditação, tendo como fim, durante quatro dias de
jornada, provocar, no recuperando, uma filosofia de vida diferente, pautada em Deus e nos
valores morais ali desenvolvidos.
Esse evento, que muito se assemelha a um Cursilho para presos, é dotado de uma sequência lógico-psicológica que demorou 15 anos de estudos para a formulação atual, e consiste em um ‘misto de valorização humana e religião, meditações e testemunhos dos participantes’ (Ottoboni, 2006, p. 186). (JUNIOR, 2013, p. 87)
Todos os reeducandos devem passar pela Jornada em algum ponto do cumprimento do
regime. Segundo Maria Resende de Carneiro Vilhena e Maria Goretti Dias Lopes Paiva (2011,
p. 39) o objetivo da jornada e da sua obrigatoriedade, “é provocar no recuperando a adoção de
uma nova filosofia de vida, durante quatro dias de reflexão e interiorização de valores. ”
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Constata-se que o método tem surtido bons resultados, com índices de reincidência,
segundo o Conselho Nacional de Justiça, abaixo de 10% nas unidades prisionais que o adotam
(VASCONCELLOS, 2015), enquanto no sistema convencional verifica-se uma reincidência,
segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), entre 70% e 85%. Quanto às fugas,
evasões e abandonos, constatou-se, que do ano de 2000 a 2005 foram apenas 16 fugas, 9 evasões
e 54 abandonos (GURGEL, 2008), números extremamente baixos.
3. Críticas ao método APAC: O Estado de Direito e a realidade brasileira.
O Estado de Direito, ao longo de sua formação histórica e em cada um de seus
paradigmas, tenta conformar a realidade político-jurídica às questões de ordem racional. Dessa
forma, por meio das Cartas de Declaração de Direitos, dos Direitos de primeira e segunda
geração, além do grande enfoque e refinamento das discussões acerca de liberdade, igualdade
e inclusão - todas influenciadas pelas questões dos paradigmas Liberal e Social - o Estado
Democrático de Direito, de forma dialética, surge como suprassunção dos valores e posições
confrontadas anteriormente a ele.
Através dos Direitos Difusos, ou de terceira geração, e sempre na reminiscência dos já
anteriormente conquistados, o Estado Democrático de Direito, na permanente tensão entre
Direitos e Democracia, procura e deve procurar, sempre, o princípio da igualdade enquanto
direito às diferenças. Quer como norteador da Constituição e de suas manifestações na
sociedade, quer como princípio jurisdicional para efetivação de uma sociedade mais justa e
equânime, a garantia de igualdades formal e material torna-se questão basilar para asseguração
da democracia modernamente entendida e para a criação de uma identidade constitucional, com
a qual o povo poderá sempre se amparar e se ver representado.
A laicidade, nesse sentido, surge não apenas como seguridade de uma justificação de
poder diversa daquela pautada no poder divino, mas também para permitir um ideal maior de
liberdade, de igualdades formal e material e de materialização da democracia, interesses de
suma importância quando se pensa em um Estado Democrático de Direito. Nessa linha,
argumenta Bernardo Gonçalves:
(...) a democracia, como princípio jurídico-constitucional a ser densificado de acordo com a perspectiva específica de cada um desses processos, significa participação em igualdade de direitos e de oportunidades, daqueles que serão afetados pelas decisões, nos procedimentos deliberativos que as preparam (FERNANDES, 2011, p. 58)
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Analisando, ainda, o viés religioso desse método alternativo à pena privativa de
liberdade e tendo em vista a segregação que se estabelece no mesmo – já que só se submetem
ao método aqueles que declaradamente possuírem uma religião – a constitucionalidade do
método das APACs é posta em xeque. A liberdade de crença, aqui, não só é desrespeitada em
si, como também viola o princípio da igualdade de todos perante a lei, haja vista que segrega
aqueles que se consideram sem crença alguma.
É imprescindível, ainda, analisar a participação Estatal na efetividade dos métodos
APAC. Não só a ajuda financeira é fornecida, mas também ajuda institucional. O Programa
Novos Rumos, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, desde 2001, traça metas na
implementação de APACs em todo o Estado de Minas Gerais. Observa-se, então, o amplo
suporte estatal que o método alternativo recebe, Estado este, que, segundo os princípios
constitucionais e reforçando os ideais de um Estado Democrático de Direito, deveria ser laico.
Nesse sentido, elucida, mais uma vez, Bernardo Gonçalves:
Por isso mesmo, apenas quando o Estado passa a ser laico, operando a separação entre Igreja e Estado (política), em 1891, que temos de fato a proteção às liberdades de crença, principalmente porque agora todos os cultos podem ser públicos e não mais domésticos. Importante lembrar que as liberdades religiosas não podem servir de escudo para prática de atos que lesem direitos de outros membros da sociedade. (FERNANDES, 2011, p. 303)
Pode-se argumentar, em contrapartida, que nos termos do Artigo 19, I, da Constituição
Federal de 1988, é assegurado o direito da União, Estados e Municípios a manter dependência
ou aliança com entidades religiosas, desde que haja interesse público envolvido3. De fato, o
interesse público justifica, em uma primeira análise, uma abordagem pouco problemática acerca
da questão. Entretanto, vincular o interesse público a uma abordagem eminentemente religiosa,
parece-nos descaracterizar esse interesse, não só pela taxatividade da religião no método de
seleção, mas por todas as práticas que, impõem, direta e indiretamente uma doutrinação
religiosa revestida por um discurso moral.
Noutras palavras, a subordinação do interesse público a práticas de fins religiosos, uma
vez que não são estritamente necessárias aos fins de promoção de justiça, segurança ou bem-
3 Dada a multiplicidade de acepções que o termo “interesse público” adquire na Constituição Federal de 1988, faz-se mister ressaltar que, tal como explicita Luís Roberto Barroso, o termo, aqui, adquire caráter de interesse público primário, ou seja, “(...) a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são s interesses de toda a sociedade.” BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p 69.
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estar social, traz à tona uma incongruência gritante no que tange à laicidade e democracia no
cenário brasileiro do Estado Democrático de Direito.
Não só, então, ferem-se deveres de proteção e garantias institucionais4, que norteiam
princípios fundamentais da constituição, como o da igualdade, laicidade e liberdade ao culto,
mas também se desconstrói o interesse público ao condicioná-lo a práticas religiosas,
indissociáveis à metodologia APAC.
O que se questiona, aqui, assim, não é exclusivamente a parceria firmada entre o ente
público e o privado de cunho religioso, mas a inconstitucionalidade da segregação que se impõe
aos detentos. Ao determinar a religiosidade enquanto preceito fundamental para o
funcionamento do método e para a aceitação de pessoas, fere-se o princípio da igualdade. Ferir
o princípio da liberdade religiosa, no caso da APAC, atinge, indiscutivelmente, o princípio da
igualdade enquanto direito à diferença, princípio este, imprescindível ao Estado Democrático
de Direito.
Haja vista a criação e legitimação do Estado a partir da autonomia da vontade de seus
cidadãos, o mesmo deve corresponder, igualmente, aos anseios de todos, primando, assim, pela
igualdade. Nessa linha, argumenta Karine Salgado:
O Estado democrático (...) ainda assume a ideia de que a constituição do Estado se dá nos moldes da vontade de seus cidadãos. Não se contenta, entretanto, com essa legitimidade formal, insuficiente e busca uma autonomia da vontade plena de sentido e de efetividade. Desta feita, a autonomia da vontade se estende também ao momento posterior à criação do Estado através da participação dos cidadãos no governo do Estado. É assim que se observa a inconstitucionalidade do método e, indiretamente, da parceria entre o Estado e a Associação. (SALGADO, 2009, p. 110)
O método religioso utilizado na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados,
outrossim, não só vai de encontro aos princípios constitucionais, mas também aos previstos pela
Lei de Execução Penal em seus Artigo 3ª, parágrafo único e 24, parágrafo segundo, que
dispõem, respectivamente, que não haverá qualquer distinção de natureza racial, social,
4 Com base nos deveres de proteção derivados da relação entre Estados e entidades religiosas, tem-se: “Tangente aos deveres de proteção (2), é viável equacionar as relações entre o Estado e as confissões religiosas de maneira genérica em três vertentes de funções estatais: (2.1) a proteção dos indivíduos (defesa da liberdade religiosa individual); (2.2) a proteção da sociedade civil contra os abusos (inclusive coordenando as diversas liberdades religiosas coletivas); (2.3) e criar condições para que as confissões religiosas desempenhem suas missões (dever de aperfeiçoamento). Como garantia institucional (3), PRTEG-ESSE: (3.1) a liberdade religiosa individual (Autodeterminação da personalidade); (3.2) e a liberdade religiosa coletiva (autodeterminação confessional), as igrejas como instituição; (3.3) além de garantir-se o princípio da igualdade; (3.4) e a diversidade e o pluralismo religioso (que refletem na abertura e no pluralismo do espaço público).” NETO, Jayme Weingartner. Comentário ao Artigo 19, I. In: CANOTILHO, J, J. Gomes; MENDES, Gilmar F; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 597
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religiosa ou política e que nenhum preso poderá ser submetido a participar de atividade
religiosa. (BRASIL, 1984)
Perpassando, ainda, pelo mérito da religiosidade, a APAC, por mais que se pretenda
ecumênica, não consegue materializar essa condição. Analisando os ritos estabelecidos pelo
método, assim como a estrutura das CRS, é explícita a envergadura católica adotada. Antonio
Carlos da Rosa Silva Junior (2013), em seu artigo “Ressocialização de presos a partir da
religião: conversão moral e pluralismo na Associação de Proteção e Assistência aos
Condenados (APAC)” faz uma minuciosa análise do método, não só enquanto discurso, mas
em toda sua concretização, e explicita:
Outrossim, embora a APAC se queira “ecumênica” – vide a nomeação da cela solitária, à qual os presos são instados em vários momentos a comparecer –, é certo que a catolicidade está marcada em sua estrutura. Tal se dá, inclusive, pelo caráter integralmente “repetitivo” das orações com tonalidade cristã impostas aos recuperandos, bem como pela utilização de material “católico” nas orações de todas as manhãs, antes da primeira refeição de cada dia. (JUNIOR, 2013, p. 87)
Dessa forma, tem-se uma segregação maior do que a aparente. Não só os ateus e
agnósticos devem, de certa forma, abdicar de sua própria crença e, em certa medida, de sua
própria liberdade para que possua os mesmos direitos do que os cristãos, mas também são
impostos, aos espíritas, evangélicos, e a uma infinidade de vertentes dessa lógica cristã, que
releguem, indiretamente e salvas s proporções, seus ideais religiosos. Mais uma vez, afastam-
se o discurso e a efetivação.
Entende-se a importância da religião para a ressocialização do recuperando, tal como
afirmam Amanda Lemo, Edileuza Lobo e Eva Schelinga, estudiosas das áreas de Ciências
Sociais e Antropologia, que estudaram in loco e profundamente o método alternativo em
questão (JUNIOR, 2013). O caráter religioso, entretanto, deve ser visto como uma alternativa
às já rigorosas disciplinas empregadas durante o cumprimento da pena. Dada a comprovada
eficácia da presença da religião na reinserção social do prisioneiro e na sua “mudança de vida”,
tal como pretende Ottoboni (1984), a mesma pode ser aplicada, mas não deve deter a
importância central que atualmente apresenta. Ao determinar uma importância secundária e
abandono da taxatividade da religião no método APAC, não haveria limitação à liberdade de
crença, descaracterização da igualdade enquanto direito à diferença, vinculação do interesse
público ou questionamentos acerca da laicidade estatal no que tange ao sistema prisional
brasileiro.
Outras críticas são tecidas no que diz respeito aos dados apresentados pelo método
APAC. Em uma análise quantitativa, os resultados são extremamente satisfatórios e aparentam
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demonstrar a efetividade do método. Entretanto, analisando-se qualitativamente os dados
apresentados pelo método, vemos um direcionamento dos mesmos aos bons resultados, haja
vista que, antes mesmo de serem aceitos na APAC, os detentos passam por uma rigorosa análise
comportamental, de modo que aqueles que realmente apresentam um comportamento desviante
acentuado raramente conseguem acesso a esse método alternativo. Segundo reportagem do
Conselho Nacional de Justiça, os indisciplinados, violentos e líderes de facções criminosas
dificilmente são aceitos (VASCONCELLOS, 2015).
Mais uma vez, nota-se o segregacionismo presente esse método alternativo à pena
privativa de liberdade, já que não são todos que possuem o privilégio de receberem um bom
tratamento penal. Jessé Souza, trata da dificuldade dos integrantes da “ralé brasileira” de
obterem acesso a penas alternativas. Por analogia, a mesma lógica se aplica ao método APAC.
Vários fatores fazem com que as penas alternativas não funcionem nunca ou quase nunca a favor dos infratores dessa classe. Do ponto de vista técnico, é muito fácil afastar a possibilidade de aplicação das penas alternativas para eles. Tendo sido a condenação por crime doloso, só pode haver a conversão se a pena de prisão não exceder quatro anos e se o crime for cometido sem violência e grave ameaça. Além disso, cabe ao juiz avaliar os “antecedentes”, a “conduta social” e a “personalidade do condenado” para, posteriormente, decidir pela conversão da pena. (SOUZA, 2007, p. 340).
A realidade brasileira, mais uma vez, confirma a lógica da má-fé institucional muito
vista nos sistemas convencionais de pena privativa de liberdade. A despeito de toda a
argumentação jurídico-constitucional sob a lógica da APAC o sistema, ainda, apresenta falhas
na verificação de sua efetividade e na democratização a seu acesso, falhas essas que não só
prejudicam os condenados em sua condição subumana nos presídios convencionais, mas
também determinam a contradição interna do próprio sistema, que se diz, segundo o Tribunal
de Justiça de Minas Gerais é “ dedicada à recuperação e à reintegração social dos condenados
a penas privativas de liberdade. (...) Busca também, em uma perspectiva mais ampla, a proteção
da sociedade, a promoção da justiça e o socorro às vítimas.” (VILHENA; PAIVA, 2011, p. 26).
Assim, pode-se perceber, que muito além das falhas e incongruências observadas no
método APAC, o próprio Estado e seu desenho institucional se encarregam de enaltecer os
problemas que por si só iriam de encontro à toda uma história constitucional e por uma luta na
busca de garantias e Direitos Fundamentais.
Nesse sentido, para a construção de um sistema efetivamente equânime, ressocializante
e que respeite as premissas desenvolvidas no Estado de Direito, a justiça no Brasil que, “seria
caracterizada por práticas cotidianas viciadas pela corrupção culturalmente construída e pelo
formalismo processual excessivo que colabora para um clima de permanente ilegalidade
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oriundo de um suposto “espírito fiscalista” do império português” (LIMA Apud SOUZA, p.
334), deveria, muito mais do que importar e adequar sistemas penitenciários ou lógicas penais
de outros países, voltar seus olhos para a sua realidade e aprender a trabalhar com a sua
pluralidade cultural, étnica e social de uma forma geral.
Ainda que alternativas eficazes e estáveis pareçam uma realidade distante e nebulosa,
não podemos nos render aos problemas que se inserem na lógica constitucional-política-social
brasileira. Tanto o sistema carcerário em si, quanto os métodos alternativos, devem rumar, ainda
que a passos curtos, em direção a melhorias institucionais e superação das lógicas
estigmatizadas. Por isso faz-se mister que apontamentos aos problemas de cada uma dessas
alternativas sejam feitos, para que a pretensão por um sistema efetivamente reflexo do sujeito
de Direito aproxime-se cada vez mais da concretização.
Considerações Finais
Não obstante grande parte das iniciativas que se constroem no Direito Penal, o método
APAC apresenta um grande lapso entre o que aparenta construir e o que de fato materializa.
Reafirmando uma lógica institucional de má-fé e um segregacionismo latente da sociedade
brasileira, excluem-se da possibilidade de fazer parte do método, não só grande parte da
população carcerária brasileira, mas também daqueles que não possuem um credo ou cujo credo
se diferencia daquele adotado e extremamente doutrinado na recuperação do detento.
Deve-se, entretanto, evitar cair na mesma lógica puramente discursiva e pouco
preocupada com a realidade. Tendo em vista a situação dos presídios, a população carcerária
em comparação ao número de vagas no sistema prisional e as inúmeras violações à Constituição
e à Direitos Humanos que decorrem dos métodos convencionais de detenção, a defesa da
adoção e disseminação do método APAC parece razoável.
“(...) a República Federativa do Brasil é estruturada em uma Constituição nitidamente garantista e protetiva dos direitos individuais, que refletem os postulados da conformação política de um Estado Democrático de Direito, mas a prática da execução penal no país revela o lado oposto desta opção, porque vilipendia, cotidianamente, as mais elementares garantias do cidadão condenado, fazendo do mesmo um verdadeiro objeto do Estado e não mais um sujeito, que deve ter preservada a sua dignidade mesmo que se encontro custodiado” (GURGEL, 2008, p. 108).
As críticas passíveis de constatação no método APAC, por mais que contundentes,
parecem evidenciar problemas cujas soluções são mais factíveis do que aquelas delimitadas no
método convencional, por se tratarem, substancialmente, de críticas formais ao método
utilizado. As incongruências apresentadas no sistema penitenciário brasileiro, por sua vez,
VEYL, R.S.B. Entre o fato e o discurso
Alethes | 283
trazem à tona uma realidade crítica, insustentável e exponencialmente mais difícil de ser
resolvida por depender não só de adequações teóricas ao método obsoleto, mas de ações práticas
delegadas a uma população pouco sensível, de forma geral, à realidade penal de seu país.
Não se deriva, do estudo apresentado, a conclusão de que o método APAC é inviável,
insustentável ou sem legitimidade. Ao contrário, o que se pretende, aqui, é evidenciar os
problemas na lógica do sistema alternativo e problematizar o maniqueísmo que se estabelece
entre esse e o método convencional, principalmente para que se estabeleçam diretrizes que
democratizem o acesso à justiça e para que se inicie um processo de desconstrução da lógica da
má-fé institucional.
A urgência com que clama o sistema convencional por alternativas viáveis e imediatistas
à situação atual faz com que seja afastada, momentaneamente, a tensão desenvolvida entre o
ser e o dever ser para dar ensejo às soluções empiricamente factíveis, ainda que em certa
discordância com a deontologia do ordenamento jurídico.
De fato, ainda há muito a ser construído no que tange aos métodos alternativos,
democratização do acesso a esses métodos e à justiça no Brasil de uma forma geral. O fenômeno
social é muito mais volátil e plural do que se pode abarcar o sistema jurídico e, nesse sentido,
a maleabilidade do ordenamento e a sensibilização do mesmo às diversas realidades com as
quais se depara são necessárias, não só para que não se perca em infindáveis teorizações, mas
também para que consiga abarcar a prática, para que andem juntos o ser e o dever ser, o fato e
o discurso.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 268-286, mai/ago, 2016.
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MOURA, B, H. O Estado Islâmico é um Estado?
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O Estado Islâmico (EI, ISIS, ISIL, Daesh, IS) é um Estado? Is The Islamic State (EI, ISIS, ISIL, DAESH, IS) a State?
Bruno Henrique de Moura1
Resumo: O artigo propõe a analisar os movimentos denominados Estado Islâmico (ISIS, ISIL,
DAESH, IS), segundos visões da chamada Teoria Geral do Estado, identificando elementos de sua estrutura de controle e domínio e avaliando se é adequado qualificar essa entidade como Estado, a partir de conceitos elaborados por diversos autores da temática, no que concerne à soberania, território e povo.
Palavras-chave: Estado. Estado Islâmico. Teoria Geral do Estado Abstract: The article aims to analyze the movements called Islamic State (ISIS, ISIL, DAESH, IS),
second visions of the call General State Theory, identifying elements of their control structure and domain and assessing whether it is appropriate to qualify that entity as state, from concepts developed by various authors of the theme, regarding the sovereignty, territory and people.
Key-Word: State. Islamic State. General Theory of State.
1 Bruno Henrique de Moura é Estudante de graduação em Direito na Universidade de Brasília, jornalista e monitor das disciplinas de Introdução ao Direito 1, Ética na Comunicação e Ética e Jornalismo.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 287-302, mai/ago, 2016.
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1. Introdução É um desafio analisar uma entidade contemporânea como o Estado Islâmico, pois não se
trata apenas de uma entidade pouco aberta ao olhar exterior, mas também de uma organização que
tem sido amplamente tipificada como um movimento terrorista, o que implica uma avaliação
bastante negativa.
Esta concepção violenta jihad encontrou apoio nas reivindicações de grupos islâmicos que usam o terrorismo como uma ferramenta para impor a sua visão do mundo sobre os muçulmanos e não-muçulmanos, a fim de "restaurar a glória do passado dos muçulmanos em um grande estado islâmico que se estenda a partir de Marrocos até as Filipinas " (Gendron, 2006, p. 3)”, (MELAMED VISBAL, 2016)
Daquilo que se conhece sobre o Estado Islâmico, trata-se de um conjunto de indivíduos
unidos por princípios baseados em mandamentos religiosos, no caso o Alcorão, interpretados no
sentido de que deve ser estabelecida uma ordem política islâmica de caráter universal, visto que
apenas a vinculação do governo à religião muçulmana pode garantir sua legitimidade. Essa tese é
defendida claramente no texto Promise of Allah, que foi distribuído pelo relações públicas do
grupo, Abu Muhammad Al ‘Adnani Al-Shami, e que funciona como panfleto de divulgação para
a comunidade exterior:
Sem essa condição ser cumprida, a autoridade torna-se nada mais do que a realeza, dominância e regra, acompanhada de destruição, corrupção, opressão, submissão, medo e a decadência do ser humano e sua descida para o nível dos animais. Essa é a realidade da sucessão, que Allah nos criou para. Não é simplesmente reinado, submissão, domínio, e regra. Em vez disso, a sucessão é utilizar tudo o que com a finalidade de obrigar o povo a fazer o que a Sharia (lei de Allah) exige deles sobre os seus interesses no futuro e sobre sua vida mundana, que só podem ser alcançados através da realização do comando de Allah, estabelecer Sua religião, e referindo-se a Sua lei para julgamento. (PROMISE OF
ALLAH, 2014, tradução nossa)
O chamado radicalismo religioso pode ser atribuído com todas suas conotações ao Estado
Islâmico. A ISIS vive de um sonho e objetiva criar uma organização centralizada de poder, com
um núcleo de comando forte, possuindo uma série de indivíduos sujeitos a suas orientações e, com
o controle de dado território. A atual construção do ISIS mostra uma espécie de sociedade,
composta por diversos indivíduos que partilham das concepções baseadas na Sharia, e ligam-se
por laços religiosos e de pensamento sócio-político. Podemos indagar a legitimidade de tais ideias
e dos motivos dos recrutados adentrarem-se no sistema do ISIS, contudo, como atesta Darcy
MOURA, B, H. O Estado Islâmico é um Estado?
Alethes | 289
Azambuja, baseado nas ideias de Karl Jaspers, sociedade constrói-se pela semelhança de
indivíduos na procura de um mote comum “[...] pode-se dizer que uma sociedade é a união moral
de seres racionais e livres, organizados de maneira estável e eficaz para realizar um fim comum e
conhecido de todos (Cf Jolivet, - Traité de Philosophie, I, pag. 283)”. (AZAMBUJA, 2008, p. 2).
Das notícias que chegam pela mídia internacional, o Estado Islâmico já possui controle de um
território, áreas consideráveis do país Iraque e do País Síria; uma população que lhe é submetida,
inclusive pagando impostos; e um poder de mando centralizado.2
2. O Estado Islâmico em Análise.
Ao pegar alguns desses pontos já considerados e ditos sobre o Estado Islâmico para tentar-
se considerá-lo como um Estado, no que tange as teorias que definem o Estado e sua estrutura.
Dentro da teoria clássica e de uso, naquilo que tange ao Estado, e que se pode encontrar
dita por Paulo Nader no cap. 13 de sua obra Introdução ao Direito, o Estado possui três elementos
para sua existência: “É a definição do Estado que nos indica seus três componentes essenciais:
população, território, soberania. Os dois primeiros formam o elemento material e o último, o de
natureza formal.” (NADER, 2014). Necessita, portanto, de um povo, de um governo ou soberano,
e de uma circunscrição territorial na qual houvesse controle daquele considerável território. O povo
compreende-se como uma junção de indivíduos que vivem na circunscrição territorial do possível
Estado, diferenciando-a de nação. Como salientado por Sahid Maluf, em sua obra Teoria Geral do
Estado, Nação e Estado são entes distintos, que não podem ser confundidos. Para o jurista
brasileiro, a Nação se encarna como realidade sociológica, em contraposição à realidade jurídica
do Estado. “O conceito de Nação é essencialmente de ordem subjetiva, enquanto o conceito de
Estado é necessariamente objetivo” (MALUF, 2007, p. 15). Desta forma, parte-se de noção,
voltando a Nader e sua trilogia essencial para o Estado, em que nação e sua carga de conceitos e
significados não fará parte primordial de nossa análise. Em face desses critérios, o Estado Islâmico
aparentemente pode ser considerado Estado, pois existe um território militarmente controlado pelo
grupo, um povo submetido e uma forma de controle administrativo e político que leva a um
governo:
Hoje o EI governa cidades, possui fontes geradoras de recursos financeiros próprios, uma burocracia e forças irregulares numerosas, parte delas formada por estrangeiros, além de contar com uma estratégia de divulgação universal de seus atos, tais como a decapitação
2 BBC BRASIL. Rebeldes declaram Estado Islâmico no Iraque e Síria. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/06/140630_isis_declara_estado_islamico_an. Acesso em: 12 de março de 2016.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 287-302, mai/ago, 2016.
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de jornalistas e reféns estrangeiros, além de punições bárbaras àqueles que transgridam a lei islâmica. (DAMIN, 2015, p.26)
Pode-se, aqui, indagar a validade do chamado governo do Estado Islâmico. Partindo de
concepções nas quais soberania só se relaciona, e aqui se usa soberania como autogoverno e
princípios de escolhas daquilo que dirige, a uma ideia de escolha fundada em princípios
democráticos, o Estado Islâmico não é Estado. Se, da mesma forma, ver Dworkin e sua relação de
constituição, direito, constitucionalismo, implantando umbilicalmente na concepção de Estado de
Direito e constituição, o Estado Islâmico, que a priori não possui uma constituição nem uma forma
democrática de governo, não é Estado. Saindo-se da ideia de que não há Estado sem constituição,
pois ela é premissa básica dos Estados Modernos, democráticos, contemporâneos, o Estado
Islâmico, não é Estado. Essa contudo, é uma perspectiva bastante restrita, pois também
desqualificaria como Estado a Arábia Saudita e o Catar, que são monarquias absolutas, além de
indicar que os Estados tiveram início com a promulgação da constituição dos EUA, em 1786.
No direito internacional, o critério típico de qualificação como Estado é o reconhecimento
dos outros Estados. Nesse caso, o ISIS não será Estado. Contudo, algumas outras formas de pensar
e caracterizar um Estado, podem abarcar concepções que “validem” o EI ser Estado.
Kelsen, por exemplo, crê que o Estado é um ponto comum e ligado umbilicalmente ao
Direito, sendo a ordem jurídica, considerada de forma interna no tratar dos negócios “intra-
sistema” de Estado, o ponto que valida e permeia a teoria e existência dos Estados. Kelsen também
acredita que controle geral, interesse geral, não são pontos que legitimem a ideia de soberania, e
aqui liga-se soberania como princípio e primórdio da validade do Estado como sua existência,
assim como um interesse da sua comunidade.
O Estado como comunidade jurídica não é algo separado de sua ordem jurídica, não mais que a corporação é distinta de sua ordem constitutiva. Uma quantidade de indivíduos forma uma comunidade apenas porque uma ordem normativa regulamenta sua conduta recíproca. A comunidade – como assinalado em capítulo anterior – consiste tão-somente numa ordem normativa que regulamenta a conduta recíproca dos indivíduos. O termo “comunidade” designa o fato de que a conduta reciproca dos indivíduos. O termo “comunidade” designa o fato de que a conduta reciproca de certos indivíduos é regulamentada por uma ordem normativa. A afirmação de que os indivíduos são membros de uma comunidade é uma expressão metafórica, uma descrição figurada de relações específicas entre os indivíduos, relações constituídas por uma ordem normativa. (KELSEN, Hans, 2000, p. 263)
Kelsen não crê no Estado como objeto jurídico, nem como relação jurídica, da mesma
maneira que Jellinek, mas discorda desse quando o último crê no Estado como personalidade
jurídica, naquilo que o faz e o categoriza como fundamento de sua existência. Kelsen vê o Estado
e o direito como ordem jurídica, como poder e como instrumento.
MOURA, B, H. O Estado Islâmico é um Estado?
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Como não temos nenhum motivo para supor que existam duas ordens normativas
diferentes, a ordem do Estado e sua ordem jurídica, devemos admitir que a comunidade
a que chamamos de “Estado” é a “sua” ordem jurídica. O direito francês pode ser
distinguido do Direito suíço ou do mexicano sem a necessidade de recorrer à hipótese de
que um Estado francês, suíço ou mexicano existam como realidades sociais de modo
independente. O Estado como comunidade em sua relação com o Direito não é uma
realidade natural, ou uma realidade social análoga a uma natural, tal como o homem é em
relação ao Direito. Se existe uma realidade social relacionada ao fenômeno que
chamamos de “Estado” e, portanto, um conceito sociológico distinto do conceito jurídico
de Estado, então a prioridade pertence a este, não àquele. (KELSEN, Hans, 2000, p. 263
e 264).
Utiliza-se este termo que por ele não foi cunhado, de validade, que controlará os fatos e
guiará o Estado e aqueles que lhe são submissos, pelo Estado ser soberano.
Soberania é outra palavra que rodeou e permeou todo o texto e continuará sendo
importante. Pacifico, no geral, é a ideia de que o Estado para ser Estado, precisa ser soberano.
Soberania é uma concepção que se liga, desde Tito Livo, Paolo Grossi e Jean Bodin, fazendo aqui
um paralelo e um giro, a força e ao controle e a possibilidade e factividade de se controlar,
comandar e ter direito sobre a vida e a morte de um indivíduo. Ao se ler Bodin e Tito Livo, na
Roma antiga, o Império Romano, o pai, chefe de família, comandava a instituição patriarcal e sua
família, que eram os pilares e núcleos da base de sua conjectura social, de tal maneira que tinham
o poder de decidir sobre a vida e a morte de seus filhos e filhas, além de mando e desmando sob
suas esposas.
Quando ele chega a considerar a estrutura essencial do Estado, ele segue Aristóteles ao considerar que o grupo familiar, e não o indivíduo, é a unidade da qual a comunidade é composta [I, ii]. Ele concordou que a família é uma sociedade natural realizada em conjunto pela autoridade do marido sobre a esposa, o pai sobre seus filhos e do senhor sobre os seus servos, todos compartilhando um meio comum de subsistência. Mas o que ele enfatizou foi a sua moral e política ao invés de seu significado económico, queixando-se que Aristóteles negligenciou este aspecto. Ele discutiu o assunto do ponto de vista do pai, e o pai no seu papel de governante, em vez de no seu papel de organizador da vida em comum.. (BODIN, 1955, p. 17)
E a função das famílias, e dos pais de família como cidadãos, criaria a cidade, que era um
elemento de ligação com os Estados da época.
3. O ISIS Possui a centralização típica do Estado?
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Platão, quando fala na República do que é a cidade, mostra conceito parecido na Grécia
antiga. O importante daquela comunidade era a valorização do todo, da comunidade e da divisões
de tarefas que, para o autor, faziam o todo funcionar, com as três classes: artesãos, soldados e
guardiões, conectadas para a busca do bem final da comunidade. A função de comando viria das
classes sábias, dos reis-filósofos, que teriam a sabedoria de comandar a comunidade. “Os pais”
da Roma, eram os “filósofos” de Platão.3
Como em Roma, e o papel central da figura patriarcal nos negócios da comunidade, e o
papel patriarcal também visto com enorme importância na Grécia Clássica, no sistema islã
tradicional, há um papel de comando central que a séculos é disputado. Quem sucede na liderança
da comunidade o profeta Maomé. Os sunitas e xiitas se separaram exatamente pela problemática
da sucessão no comando da comunidade do profeta Maomé e, sucessivamente, no líder
espiritual/político de seu sistema de comando.
Os ramos sunitas e xiitas do Islã se separaram logo após a morte de Muhammad sobre a questão de quem deve suceder o Profeta do Islã como líder dos muçulmanos, ou legatário. Sunitas acreditam que o califa pode ser escolhido pelas autoridades muçulmanas. Os xiitas acreditam que o califa deve ser um descendente direto do profeta através de seu filho-de-lei e primo Ali. (BERGER & STERN, 2015)
O ISIS procurar a implementação de um califado, centralizando o poder político e de
comando das ações dentro do território que possuírem controle. A criação do califado, que terá
uso legítimo da força (Gewaltmonopol des Staates), comandará a vida dos cidadãos mulçumanos
ou não, é a base da ideologia do grupo, como visto em outra passagem do texto Promise of Alah:
Imam al-Qurtubi disse em seu Tafsir (exegese corânica), "Este verso é uma base fundamental para a nomeação de um líder e Khalifah (califa), que é ouvida e obedecida de modo que a ummah é unida por ele e suas ordens são executadas Fora. Não há disputa sobre este assunto entre a ummah nem entre os estudiosos, exceto para o que tem sido relatada a partir de al-Asamm [o significado de seu nome é "o homem surdo"], por sua surdez impediu de ouvir a Sharia ". que termina as suas palavras, que Allah tenha misericórdia dele. (PROMISE OF ALLAH, 2014,tradução nossa)
Falando de Soberania, pode-se utilizar elementos conceituais sobre a mesma que venham
de Roma. O controle de vida e morte, mesmo sabendo que Foucault, em seu História da
Sexualidade, Cap. V, acredita na já não mais utilização deste princípio de soberano controlar a
morte de seus comandados, sendo o suicídio crime, já que a decisão sobre a morte do indivíduo
não pertencia ao indivíduo e sim ao seu soberano.
3 Para aprofundar nesse debate Platônico, recomenda-se a leitura da Apologia de Sócrates / Platão.
MOURA, B, H. O Estado Islâmico é um Estado?
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Por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte. Sem dúvida, ele derivava formalmente da velha patria potestas que concedia ao pai de família romana o direito de “dispor” da vida de seus filhos e de seus escravos; podia retirar-lhes a vida, já que a tinha “dado”. O direito de vida e morte, como é formulado nos teóricos clássicos, é uma fórmula bem atenuada desse poder. Entre soberano e súditos, já não se admite que seja exercido em termos absolutos e de modo incondicional, mas apenas nos casos em que o soberano se encontre exposto em sua própria existência: uma espécie de direito de réplica. Acaso é ameaçado por inimigos externos que querem derrubá-lo ou contestar seus direitos? Pode, então, legitimamente, entrar em guerra e pedir seus súditos que tomem parte na defesa do Estado; sem “se propor diretamente à sua morte” é-lhe licito “expor-lhes a vida”: nesse sentido, exerce sobre eles um direito “indireto” de vida e morte. (FOUCAULT, 1988, p. 127)
No caso romano, seu pai. Foucault fala sobre a Bio-Política, acreditando que a soberania e
o poder do soberano, que pode-se e deve-se, neste contexto, considerar o Estado, já saiu desse
paradigma de controle sobre a vida e a morte e passa a se valer de instrumentos de ordem, e a
morte e passa a se valer de instrumentos de ordem, de poder, tanto pelo núcleo duro do Estado
como por instituições que a integram, tais como: médicos, escolas, a família, religião e etc.
Foucault disserta acerca de uma soberania “evoluída”, que não tem mais a força como principal
elemento de sua existência, a força no que tange ao matar aquele que o desagrada. Porém, usa de
outros artifícios para submeter e manter suas decisões tanto com validade quanto com eficácia, no
sentido por Kelsen atribuído a esses dois termos, para sustentar seu poder de soberania.
Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antiéticas e constituem, ao contrário, dois polões de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder da vida. (FOUCAULT, 1988, p. 131)
Aqui pode-se ver o que é soberania. Transmitindo a ideia de soberania para o atual estágio
do Estado Islâmico, vê-se que as concepções antigas, Romanas, vistas em Bodin e Tito Livo, e
antes da bio-política de Foucault, existem dentro do espectro do Estado Islâmico. Há uma decisão
sobre o viver e o morrer daqueles que estão no território do EI, pelos seus governantes. Caso dois
homens que vivam em uma região iraquiana controlada pelo EI sejam flagrados em relação sexual
um com o outro, o Estado os irá encaminhar até um prédio e de lá os jogará, terminando com a
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vida dos indivíduos4. Quem não paga os impostos cobrados pelo ISI podem sofrer sanções que
chegam até a eliminação de suas existências.5 Ou seja, há um controle claro e um poder direto
sobre a vida e a morte daqueles que integram o território controlado pelo EI, que vale-se da
soberania imposta.
Portanto, há uma soberania, ainda obscura, no sentido que a relaciona com uma soberania
popular, do Estado Islâmico.
O Alcorão é o direito, básico, a “norma fundamental”, o ponto de partida das decisões
judiciais do Estado Islâmico que possui um governo que valesse do direito que usa, para decidir
sobre seus atos, suas obrigações e seus benefícios, além das obrigações e dos direitos daqueles que
estão sobre seu julgo.
Soberania e Direito, além de um governo que possui força e eficácia nos seus atos, estão
claros nos elementos que o EI possui e o fazem ser um Estado.
Da tríplice básica, faltava apenas o território que, mesmo não sendo reconhecido por outros
Estados como pertencente ao Isis e seus companheiros, está sobre o controle militar,
governamental e soberano, no momento, dessa entidade, que, por sinal, usa dos recursos hídricos,
do subsolo e aéreos da circunscrição territorial quem controlam. Há território do ISIS no momento.
Contudo, apesar dos esforços internacionais para o conter, combater e deslegitimar, o IS não só continua a controlar um vasto território e milhões de pessoas como lançou inclusivamente novas ofensivas em frentes-chave. No Iraque, em Maio de 2015, o IS apoderou-se de Ramadi, capital da província de Anbar, avançou para a refinaria petrolífera de Baiji, a maior do país, e atacou a cidade próxima de Khalidya, reaproximando-se de Bagdade. Na Síria, e no mesmo mês, o IS atacou Deir ez-Zor junto ao rio Eufrates, no leste do país, passou a controlar a cidade de Tadmor e as ruínas da antiga cidade romana de Palmira, “Património da Humanidade”, na Síria central, e desencadeou operações ofensivas também no Norte, nas proximidades de Aleppo, perto da fronteira com a Turquia; no Oeste, nas províncias de Homs e Hama e junto à fronteira com o Líbano; e no Sudoeste, visando a cidade de Quneitra, próximo da fronteira com Israel. ( TOMÉ, 2015, p. 137 e 138)
4. Justiça Social, Estado e ISIS
Pensando o Estado como entidade que busca a concretização da Justiça, ou que tem
como um de seus fins a promoção da justiça dentro de seu povo, podemos partir das ideias de
Nancy Fraser sobre a justiça social, nas quais a autora tem como enfoque os elementos
4 UOL. Estado Islâmico joga cinco gays de alto de edifício no Iraque. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2015/10/09/ei-joga-5-gays-de-alto-de-edificio-no-iraque.htm acessado em: 13 de março de 2016. 5 AZEVEDO, Reinaldo. Decapitações, crucificações, execuções sumárias: o horror imposto pelos jihadistas no Iraque e na Síria. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/decapitacoes-crucificacoes-execucoes-sumarias-o-horror-imposto-pelos-jihadistas-no-iraque-e-na-siria/. Acessado em: 13 de março de 2016.
MOURA, B, H. O Estado Islâmico é um Estado?
Alethes | 295
necessários para a promoção da justiça dentro do Estado, mas não apenas num enfoque local, e
sim em um âmbito globalizado.
A autora parte de três problemas que identifica: substituição, reificação e
enquadramento desajustado. No que tange a substituição, que para a autora caracteriza-se pela
ameaça das disparidades capitalistas que aumentam a desigualdade econômica, a mesma propõe
uma concepção de justiça bidimensional, caracterizada pela distribuição justa dos recursos e
um reconhecimento recíproco dos indivíduos, ambas de forma globalizada. O problema da
reificação dar-se-á pelas diferenças culturais entre diversos povos, que trazem conflitos e
disputas dentro do mundo globalizado, que basicamente hidribiza as diferenças culturais, invés
de tentar abarca-las. A autora quer promover, como ela mesmo fala, “Necessitamos de uma
concepção não-identitária que desencoraje a reificação e promova a interação entre as
diferenças, o que significa rejeitar as definições habituais de reconhecimento.” (FRASER,
2002, p. 14). Por último, o enquadramento desajustado seriam tentativas de pautar no campo
nacional questões que são de matriz transnacional, o que prejudicaria o debate e a efetivação de
uma verdadeira solução globalizada. Para tal problema a autora recomenda “O que precisamos é
de uma concepção múltipla que descentre o enquadramento nacional, pois só tal concepção permite
acomodar toda a extensão de processos sociais que criam disparidades de participação na
globalização.” É interessante notar na teoria de Nancy, que fala sobre soberania e prega uma visão
mais globalizada das questões, numa tentativa de acoplar diferentes e distintas concepções
idiomáticas, culturais, raciais e ideológicas num projeto de grande “conversa”, pontos que abarcam e
destoam de noções caras ao assunto ISIS.
O ISIS busca uma distribuição dos recursos que estão abarcados no território sobre o
seu domínio entre os seus elementos, o que seria uma espécie de substituição, assim como prega
um reconhecimento dos indivíduos, todos como soldados do califado e da causa. Os conflitos
reiferantes podem ter duas visões. O ISIS não recusa combatentes, desde que se adequem ao
seu estilo de atuação e as crenças da Sharia. Contudo, trabalha por eliminar aqueles que não
obedecem os princípios da Sharia. Já o último ponto também nos mostra preceitos dúbios. O
pautar questões que deveriam ser globais no campo nacional se encontra prejudicado no ISIS,
já que o projeto do mesmo é uma expansão por todo o Oriente e partir para o Ocidente, inclusive
atuando de forma cibernética para coletar simpatizantes que venham a trabalhar para seus
quadros. Contudo, a tentativa de aglutinar discursos diversos dos seus não é uma das
ferramentas de trabalho do ISIS, o que não completa as soluções tragam por Nancy e seu
discurso do que seria uma concepção de Justiça Social adequada para os Estados e
comunidades, e para a soberania de múltiplos níveis, a que propõe.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 287-302, mai/ago, 2016.
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5. Soberania Popular a serviço do Povo
Dentre os autores que pensam a atual forma estatal destaca-se, também, o economista e
filósofo Samir Amin, que possui um vasto trabalho acadêmico de análise do imperialismo, desde
as quatro etapas de crise do capitalismo6 até os estágios da crise da União Europeia. Entre as
noções mais caras ao autor, podemos encontrar a de Soberania. Crente na importância de uma
libertação do que chama de ortoliberalismo, para que o progresso das nações se dá com suas
próprias pernas e que haja a construção de um sistema industrial forte, controlado pelo Estado,
este dedicado ao povo e pelo povo, não aos interesses do capital internacional, e aos imperialismo
de mercado das nações fortes, Samir trabalha com a ideia de soberania popular a serviço do povo.
A soberania nacional é o instrumento indispensável de progresso social e progresso da democratização, tanto ao Norte como ao Sul do planeta. Esses avanços são controlados por lógicas que se situam além do capitalismo, numa perspectiva favorável para a emergência de um mundo policêntrico e da consolidação do internacionalismo dos povos. (AMIN, 2016).
A soberania na perspectiva de Amin se relaciona a esses pressupostos. Progresso social e
progresso da democratização, buscando o bem social como meta, não apenas local, mas da
comunidade como um todo, contudo, deve-se partir de um campo local para expandi-la ao global.
O Estado Islâmico, ao que nos parece, procura um progresso social e uma expansão de suas ideias,
que no olhar do ISIS, é um progresso social. Mas a democracia e o entender os desejos dos outros,
numa perspectiva de conversa e convencimento não fazem parte do ISIS, com já foi demonstrado
neste trabalho. A democracia para o ISIS para no que está escrito na Sharia, sendo os preceitos e
as interpretações dos significados que lá são descritos, a linha final do debate democrático. Assim,
também numa perspectiva Amirniana de Soberania, mesmo que de forma rasa, ISIS não possui o
preceito de soberania típica de um Estado, ou ao menos do tipo de Estado que Amir defende que
exista.
6. Os Estados Democráticos de Direito e o Constitucionalismo
Carlos Ari Sundfeld na sua obra Fundamentos de Direito Público, define o Estado
democrático de Direito como “Em termos sintéticos, o Estado Democrático de Direito é a soma e
6 Trabalhados tanto em: AMIN, Samir. Accumulation on a word scale: A critique of the Theory of Underdevelopment, 1974; quanto em A crise do Imperialismo, 1977; ambas obras em que Amir faz uma profunda análise do que considera problemas do sistema capitalista, que se dedicaria ao benefício de um grupo seleto de empresas do grande capital, fazendo assim um novo imperialismo, uma espécie de neocolonialismo baseado, principalmente, na economia.
MOURA, B, H. O Estado Islâmico é um Estado?
Alethes | 297
o entrelaçamento de: constitucionalismo, república, participação popular direta, separação de
Poderes, legalidade e direitos (individuais e políticos).” (SUNDFELD, 2009). A ideia de
constitucionalismo traga por Sundfeld se ligará ao costumeiramente definido sentido estrito do
Constitucionalismo, que conecta-se as garantias fundamentais, direitos exercíveis pelos cidadãos
sem que o Estado oprima-os com o uso da força e do arbítrio.
Dificultado é abalizar, dentro deste princípio, todos os estados atualmente reconhecidos
pela ONU e pela maioria esmagadora de seus pares. Participação popular direta, por exemplo, não
poderia ser dada aos EUA. A eleição presidencial, principal núcleo de poder e prerrogativas de
comando em um sistema presidencialista como o norte-americano, e que possui diversas
semelhanças ao Brasileiro, é realizada a partir de votação do Colégio Eleitoral, que é um meio
indireto de escolha.7
A ideia de democracia, nos estados reconhecidos pela ONU e pela maioria dos seus pares,
não é uníssona. A República Popular da China, O Reino Unido, A África do Sul e o Brasil possuem
ideias de democracia, contidas nas suas constituições, ou leis equivalentes neste escopo, distintas
entre sí, ainda mais no que concerne a forma de manifestação das mesmas. Enquanto a China
possui um partido único, o Brasil contém 35 siglas devidamente registradas no TSE.8 Direitos
individuais e políticos são classificados diversamente em cada nação. Enquanto uns aplicam certas
prerrogativas como políticos, outros países não o fazem, da mesma forma com os direitos
individuais, coletivos, privados e públicos. Não há uma escrita universal destes direitos respeitada
por todos os Estados claramente reconhecidos.
7. É ou não um Estado?
“Em ambos os critérios da Convenção de Montevideo e os critérios mais restritivos do
direito consuetudinário internacional recente, o Estado da Palestina existe - agora. A sua existência
não requer o consentimento de Israel ou de reconhecimento americano. É uma realidade que já
não deve ser ignorada.” (WHITBECK, 2011, p. 66) Esta citação encontra-se na obra “The State of
Palestine Exists” do advogado parisiense John V. Whitbeck, que retrata uma compreensão feita
por pelo menos 112 estados, diversos governos sul americanos e centenas de juristas. Porém, o
Estado da Palestina não contém força o suficiente para entrar como Estado reconhecido pela ONU.
Em demonstração de reconhecimento e força, a Autoridade Palestina conseguiu o estatuto de
8 TSE. Partidos políticos registrados no TSE. Disponível em: http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/registrados-no-tse. Acessado em: 30/04/2016.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 287-302, mai/ago, 2016.
Alethes | 298
Estado-observador não membro das Nações Unidas.9 Mas, podemos encontrar diversos paralelos
entre o ISIS e a Autoridade Palestina. Ambos possuem ligação com o Islamismo, sendo que a
leitura do primeiro se encontra mais radical que a do segundo, mas mesmo assim, ambos
influenciadas fortemente pela Sharia. Durante um longo período de tempo, um grupo denominado
terrorista, o Hamas, foi o representante da Palestina e possuía o controle político daquela terra.
Atualmente o ISIS possui como chefes terroristas, segundo a definição internacional das nações
centrais. Há uma espécie de função jurisdicional em ambos, tanto na Autoridade Palestina, quanto
no ISIS. Ambos ocupariam territórios de outras nações. Cisjordânia no caso Palestino, em alguns
momentos terras hoje ocupadas por Israel, e parcelas do Iraque, Síria pelo ISIS. Mas a primeira
ocupa faixas da Cisjordânia com consentimento do reconhecido Estado, o que não ocorre com o
ISIS. Contudo, a principal diferença entre o Estado Islâmico e a Palestina se encontra na
proximidade do reconhecimento dos pares para sua efetivação como Estado. Enquanto o ISIS não
possui reconhecimento diplomático de nenhuma nação ou Estado Internacional, a Palestina é
reconhecida pela maioria esmagadora das nações e dos Estados.
É importante entender, ao falar de Estado Islâmico, o que seria o Califado, que tanto
procuram. Califado significa em árabe, “sucessão”. Após a morte de Maomé em 632 foi criado o
califado, que objetivava suceder o profeta ad eternum. Desde os primórdios da ideia de califado
há uma disputa entre os que creem que o chamado quarto califa, Ali, possuía legitimidade para
governar, denominados xiitas, e os partidários do vencedor da guerra entre Ali e o governador da
Síria, Moavia, os sunitas. Com o comando de Moavia criou-se o chamado período omíada. O norte
da África, a península ibérica e parte da Europa foram conquistadas durante a dinastia omíada. Em
750 chegou ao fim o perído omíada e iniciou-se o califado abássida, que expandiu-se para o
Oriente. O império Otomano foi o último movimento, dentre vários, que tentou autonomear-se
califado com algum sucesso.
Mas o importante da ideia de califado é a sua função. O califa, sucessor da autoridade
política e religiosa do profeta Maomé, teria a incumbência de comandar a expansão do islamismo
e a manutenção das leis da Sharia e das normas do livro sagrado de Maomé.
Seriam estes velhos reinos, como o califado, Estados? Voltemos a Paulo Nader e seus
ensinamentos sobre o Estado. Território, governo e Povo sobre seu comando caracterizariam um
Estado. Os califados possuíam extensões consideráveis de terra, popularmente habitadas, com seus
habitantes submissos as ordens dos califas pela força e pelo respeito. A manutenção do poder dos
9 UNRIC. Assembleia Geral da ONU votou de forma esmagadora para conceder à Palestina Estatuto de Estado observador “não-membro”. Disponível em: http://www.unric.org/pt/actualidade/30987-assembleia-geral-da-onu-votou-de-forma-esmagadora-para-conceder-a-palestina-estatuto-de-estado-observador-nao-membro- , Acessado em: 29/04/2016
MOURA, B, H. O Estado Islâmico é um Estado?
Alethes | 299
califas se dava pelo papel que representavam. O califa era a “boca da lei” para os mulçumanos
sunitas. A Sharia, nascida dos ensinamentos de Maomé, era a “constituição” dos seguidores do
califado. O Estado impõe suas decisões que são acatadas pelos que dele fazem parte. A ordem
social emana do Estado e no califado do seu governo, do seu califa. Um povo é orientado por ele,
o califa, que tem todo controle dos recursos de um dado território, sejam os naturais ou artificiais.
Enfim, os elementos básicos da teoria do Estado mais pacificada são elementos que o
chamado Estado Islâmico possui. Pode-se indagar se é um Estado Constitucional, o que aparenta
não ser. Democrático, popular, que assim como Estado Constitucional, não aparentar ser, ou um
Estado Moderno de Direito. Porém, a pergunta não é se é um Estado como os europeus ou o
americano. Desta maneira, quem sabe se vê surgir uma espécie de Estado Medieval/Renascentista
como os antigos reinos do medievo, os califados cristãos, que, numa situação distinta daquele que
se veio da última experiência de califado, com os Otamanos, até os dias atuais. O modelo de
califado parece não se adaptar bem ao que se convenciona chamar de Estado e ver com bons olhos
o que seja um Estado. Mas, mesmo que sui generis, o princípio de califado do ISIS, continua
sendo um Estado. O que dificulta este jogo é entender que hoje, mais importante do que definir os
termos de se ser ou não um Estado, ter ou não os elementos da tríplice coroa, Território, Povo e
Soberania, a questão de ser um Estado se encaixa muito mais num jogo político. A justiça Social
e a soberania nacional a serviço do povo atrapalham o Estado Islâmico ser um Estado, mas ao se
comparar com outros atores que são reconhecidos no jogo político e não preenchem os requisitos
tragam, só mostram que estas definições não estão dentro da escolhida disputa teórica dos entes
internacionais que definem, na práxis, o que é ser um Estado ou não.
Os elementos que fazem o ISIS ser um Estado na leitura feita, são os mesmos que fazem
ele não ser um Estado no jogo das disputas de poder internacionais. A única diferença é a visão
que se faz. Povo sobre controle existe, mas esse controle não é reconhecido politicamente pelos
outros Estados. Território sobre julgo existe, mas não é reconhecido politicamente pelos atores
internacionais. Soberania na práxis existe, mas não tem o reconhecimento que lhe faz ter a paz de
controle e governo que necessita para encaminhar as decisões em seu campo de atuação. A
percepção de que o critério de ser Estado ou não perpassa muito mais por uma posição política de
reconhecimento de pares, que incluirão na rede de relações sustentada pela igualdade jurídica,
como ator político relevante, se torna mais característica de um jogo que, mesmo vendo um dos
peões do tabuleiro conter os pressupostos formais para que seja aceito dentro do tabuleiro, decidem
não colocá-lo para jogo.
8. Referências Bibliográficas:
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 287-302, mai/ago, 2016.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 287-302, mai/ago, 2016.
Alethes | 302
SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos
Alethes | 303
Estudo da aplicação simétrica dos institutos da Hipótese de Incidência e do Fato Gerador no ordenamento jurídico brasileiro
Study of symmetrical application of institutes Incidence Hypothesis and Fact Generator in Brazilian law
Igor Dias da Silva 1 Valber Elias Silva 2
Resumo: O presente estudo, de natureza qualitativa e abordagem descritiva, se dirige à aplicação
da hipótese de incidência tributária e do fato gerador in concreto no ordenamento jurídico brasileiro. A tensão existente entre esses dois institutos jurídicos torna-se objeto de divergências doutrinárias acerca de sua aplicação simétrica no caso concreto. Foram utilizados, a título de coleta de dados, livros de autores renomados na seara tributária, além de jurisprudências que retratam a fenomenologia da diferenciação da hipótese de incidência com o fato gerador da obrigação tributária. Assim, a implementação simétrica dos dois institutos (fato gerador e hipótese de incidência) na órbita prática-jurídica, em termos de justiça tributária, pode acarretar em desigualdades pelo fato de considerar elementos que se estendem para além da presunção legal e, portanto, tendem a abalar a segurança jurídica. No entanto, a adoção de atos emanados pelo sujeito ativo da obrigação (Fisco), por meio do Princípio da Praticabilidade Tributária, vem a promover uma adequação desproporcional do fato gerador in concreto, implicando transfiguração da incidência do tributo prevista no dispositivo legal.
Palavras-chave: Hipótese de Incidência Tributária. Fato Gerador do tributo. Obrigação Tributária. Praticabilidade Tributária. Desigualdades.
Abstract:
This study, qualitative and descriptive approach, addresses the application of the tax incidence of the event and the taxable event in concrete in the Brazilian legal system. The tension between these two legal institutions becomes the object of doctrinal disagreements about its symmetrical application in this case. They were used, in the form of data collection, renowned author of books on tax harvest, and jurisprudence that depict the phenomenology of differentiation incidence hypothesis with the taxable event of the tax liability. Thus, the symmetrical implementation of the two institutes (taxable event and the event of incidence) in practice and legal orbit in terms of tax justice, may result in inequalities because consider elements that extend beyond the legal presumption and therefore tend to undermine legal certainty. However, the adoption of acts originating from the active subject of the obligation (IRS), through the Principle of Tax Practicality comes to promoting a disproportionate adequacy of the triggering event in concrete, implying transfiguration of the incidence of the tax provided for in the legal provision.
Keywords: Tax Effect Hypothesis. Fact tribute generator. Tax obligation. Tax practicability. Inequalities
1 Aluno de graduação em Direito pela Universidade Federal de Lavras – UFLA. 2 Aluno de graduação em Direito pela Universidade Federal de Lavras – UFLA.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 303-320, mai/ago, 2016.
Alethes | 304
1. Introdução
O Direito Alemão possui grande relevância nos ordenamentos jurídicos
contemporâneos. Naquilo que tange à aplicação do instituto da hipótese de incidência e do fato
gerador da obrigação tributária, a Suprema Corte Alemã defende uma separação na aplicação
dos institutos mencionados, na medida em que se torna desproporcional um tratamento
simétrico dos institutos no caso concreto.
Por sua vez, o ordenamento jurídico brasileiro não dá primazia a essa diferenciação, por
tratar a hipótese abstrata prevista na lei como uma situação em concreto a ser alcançada pelo
fato gerador. O presente estudo tem por objetivo identificar as ambiguidades existentes no
ordenamento jurídico brasileiro e como a aplicação simétrica dos institutos da hipótese de
incidência tributária e do fato gerador da obrigação tributária podem alcançar resultados,
podendo até mesmo, no caso concreto, desestabilizar a segurança jurídica.
Na aplicação fática desses institutos, a Administração Tributária tem a legitimidade de
instaurar obrigações tributárias por meio do fato gerador in concreto sem observar os critérios
subjetivos da igualdade? A desobediência da norma in abstrato pode gerar desigualdades na
medida em que o Fisco se utiliza da praticabilidade tributária para tributar atos ilícitos? Mesmo
sustentados os atos pelo Princípio da Legalidade, pode a Administração Tributária estabelecer
critérios complexivos, tendo em vista a especificidade da hipótese de incidência?
A construção doutrinária torna-se uma das formas mais abrangentes para a definição e
construção semântica dos institutos objetos deste estudo, na qual permite-se a formação de
novos posicionamentos em decorrência das consequências advindas do plano material de
incidência.
O estudo estrutura-se em oito seções:
Esta primeira seção é destinada à introdução, em que são discutidos alguns aspectos
fundamentais sobre a aplicação simétrica dos dois institutos, isto é, da Hipótese de Incidência
e do Fato Gerador.
A segunda seção retrata a definição jurídica do gênero tributo, em que os elementos
estruturantes na definição presente no Código Tributário Nacional (CTN) são explorados.
A terceira seção aborda a existência da relação obrigacional tributária no ordenamento
jurídico brasileiro, em alusão à definição existente no Direito Privado.
SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos
Alethes | 305
A quarta seção, por sua vez, contempla a conceituação legal da hipótese de incidência
tributária.
Como forma de interpretação analítica, a quinta seção destina-se à compreensão jurídica
do Fato Gerador, em que a aplicação no mundo concreto é permeada de complexidades.
A sexta seção apresenta as consequências da diferenciação entre Hipótese de Incidência
e Fato Gerador.
A sétima seção é reservada às considerações finais.
A oitava seção – e última – é destinada às referências bibliográficas.
2. Definição jurídica do gênero tributo
O processo de formação histórica das nações, numa perspectiva de crescimento
populacional, perpassou por várias etapas, fomentando um desenvolvimento econômico e
social mais adequado à consolidação do Estado Moderno. A prestação de serviços por parte dos
entes públicos fundamenta-se numa necessidade financeira cada vez mais ampla, tendo em vista
a tutela dos direitos humanos, efetivados por políticas públicas emanadas do Poder Executivo.
Nesse cenário, a mudança nos mecanismos de trocas entre indivíduos ganhou uma
formatação cambial, em que o fator monetário surge para uniformizar e quantificar tanto as
despesas particulares dos indivíduos quanto a parcela do patrimônio transferido dos
contribuintes para o Estado, na busca por promover a subsistência da oferta de serviços públicos
aos contribuintes.
A divergência jurídica e doutrinária acerca do conceito de tributo se mostra presente
como forma de crítica ao legislador, em que o tributo é definido, segundo o artigo 3° do Código
Tributário Nacional, em que: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou
cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e
cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
O processo interpretativo do dispositivo supracitado, numa vertente positiva, tende o
legislador a enquadrar em um encadeamento de características aquilo que efetivamente
corresponde ao termo tributo, todavia, uma análise mais detalhada permite uma compreensão
semântica mais racional, na qual a fragmentação de seu conceito possibilita uma valoração do
gênero tributo, sendo os elementos: prestação pecuniária, compulsoriedade, instituição em lei,
cobrada mediante moeda ou em cujo valor nela possa se exprimir, sanção por ilicitude e
vinculação do lançamento, essenciais para o seu entendimento.
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a) Prestação pecuniária: A prestação, como instituto jurídico pertencente ao Direito das
Obrigações, pressupõe o ato de prestar algo. A pecúnia se dá pelo valor monetário que
representa determinado objeto, seja este material ou imaterial, mas que indexa o valor
financeiro em sua estrutura.
b) Compulsoriedade: O instituto da compulsoriedade, pela relevância do termo, mostra-
se como um critério central de distinção do tributo para com outras exações, como o
preço público, o qual, segundo Ribeiro (2013, p. 4), independe da manifestação de
vontade do contribuinte, sendo este ato irrelevante para o nascimento da obrigação
tributária e obrigatório por parte da cobrança por parte do Erário.
c) Instituição em lei: A presunção legal é um requisito de validade dos dispositivos no
ordenamento jurídico. O princípio da legalidade, que tange a diferenciação entre
costumes e normas - sendo estas últimas regidas pelo Direito e vinculadoras de
determinado ato a ser obedecido pelos sujeitos destinadores de tal condicionamento -,
está previsto no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o qual
estabelece que “II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei”.
d) Em moeda ou em cujo valor nela possa se exprimir: A contrapartida do alcance da
obrigação tributária corresponde à prestação em pecúnia a ser paga, de forma a extinguir
o crédito tributário; segundo o doutrinador Hugo de Brito Machado (2015, p. 58), a
instituição da prestação não pode se dar de modo in natura (em natureza) ou in labore
(de forma laborativa), sendo a dívida do tributo satisfeita em moeda. Salvo
circunstâncias especiais, o artigo 156, inciso XI do Código Tributário Nacional (CTN),
introduzido pela Lei Complementar 104/2001, introduz a dação em pagamento de bens
imóveis, que, mediante processo legislativo ordinário, poderá ser extinto o crédito
tributário.
e) Sanção por ilicitude: Em uma análise superficial, a instituição de penalidades
pecuniárias compulsórias pode ser feita pelo Poder Público, mediante descumprimento
de atos normativos, todavia, o tributo não deve ser confundido com multa, na medida
em que não é possível por meio da tributação atingir tal fim. A tributação decorre de
atos lícitos e, portanto, enquadra a sua aplicabilidade no Princípio da Legalidade.
f) Vinculação do lançamento: O lançamento realizado pela autoridade competente,
segundo Vieira (2014, p. 34), não pode ocorrer por conveniência ou oportunidade,
sendo esses atos de natureza discricionária lançados por meio de atos subjetivos. O
lançamento vinculado, por sua vez, possui caráter objetivo, cujo alcance se dá pela
SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos
Alethes | 307
subsunção do caso concreto à hipótese legal de incidência.
A descrição legalista presente no CTN não permite, a priori, uma interpretação
adequada da complexidade de conceituação do gênero tributo. Dessa forma, torna-se necessário
evidenciar como os elementos supracitados podem contribuir para uma subsunção adequada à
configuração do lançamento tributário por parte da Administração Pública, na qual a
conceituação doutrinária pode auxiliar de forma significativa no contraste entre o plano material
e o abstrato presentes no ordenamento jurídico.
Outro apontamento relevante, na composição da estruturação da definição de tributo,
“refere-se à condição de receita pública que é inerente ao mesmo, na qual a receita pode ser
destinada ao próprio ente tributante ou a terceiros [...]” (PAULSEN, 2015, p. 41).
Dentro da composição do ordenamento jurídico brasileiro, a definição de tributo
também está presente na Lei Ordinária nº 4.320/64, a qual define as normas gerais de Direito
Financeiro, para elaboração e controle dos orçamentos e dos balanços da União e de demais
entes federados. O artigo 9º da respectiva lei define tributo como:
[...] Art. 9.º Tributo é a receita derivada, instituída pelas entidades de direito público, compreendendo os impostos, as taxas e contribuições, nos termos da Constituição e das leis vigentes em matéria financeira, destinando-se o seu produto ao custeio de atividades gerais ou específicas exercidas por essas entidades. [...]
O Direito Financeiro reconhece a receita pública derivada obtida pela arrecadação
tributária, como base econômica destinada à oferta dos serviços públicos, regulamentando os
processos pelos quais as leis orçamentárias operacionalizam os atos providos da Administração
Pública. Contudo, essa mesma previsão legal, não contempla, a princípio, critérios suficientes
para se obter uma segurança jurídica condizente com o recurso obtido através da receita pública,
o que implica, segundo PAULSEN (2015, p. 41), no afastamento da natureza tributária da
contribuição do Fundo de Garantia da Seguridade Social (FGTS), obtida por decisão do
Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário nº 522.897.
3. Existência da obrigação tributária no ordenamento jurídico brasileiro
O conceito de obrigação, presente em vários ramos da ciência jurídica, expressa-se como
uma reciprocidade de ações firmadas entre as partes envolvidas, estando presentes nos artigos
481 e 586 do Código Civil de 2002, assim sendo:
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[...] Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro. [...] Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade. (BRASIL, 2002). [...]
Na legislação extravagante, pode-se observar no Código Tributário Nacional o artigo
114, o qual dispõe que: “Art. 114. Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em
lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”, ou seja, o fato gerador da obrigação principal
é definido como sendo a situação fática pela qual a hipótese de incidência se manifesta. Nesse
sentido, Geraldo Ataliba (2010, p. 59) leciona que a hipótese de incidência:
[...] é primeiramente a descrição legal de um fato: é a formulação hipotética, prévia e genérica, contida na lei, de um fato (é o espelho do fato, a imagem conceitual de um fato; é o seu desenho). É, portanto, mero conceito, necessariamente abstrato. É formulado pelo legislador, fazendo abstração de qualquer fato concreto. [...]
De outro lado, o fato gerador da obrigação tributária é a realização da descrição legal no
mundo fático (e, portanto, no caso em concreto). Para Vieira (2014, p. 153):
[...] fato gerador é a ocorrência, no mundo real, da hipótese prevista em lei, que faz surgir a obrigação tributária (principal ou acessória). Nesse sentido, são os acontecimentos em virtude dos quais começam as relações jurídicas tributárias. [...]
A natureza obrigacional da relação jurídica, na seara tributária, molda-se numa
subdivisão regida por uma obrigação tributária principal e por outra acessória. Para Hugo de
Brito Machado (2015, p. 125), o objeto da obrigação tributária principal se dá pela pecúnia, de
modo que o patrimônio do sujeito passivo é a sua natureza. Nos moldes do Direito Privado, ela
consiste numa obrigação de dar. Já a obrigação tributária acessória, por sua vez, não se vincula
ao patrimônio, consistindo numa obrigação de fazer. A aplicação do instituto jurídico da
obrigação se faz presente no CTN, mais precisamente no artigo 113, o qual estabelece:
[...] Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.(BRASIL,1966)
SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos
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[...]
Segundo Perez Ayala (1968), citado por Ataliba (2010, p. 59), a relação fática dos
momentos necessários ao surgimento de uma obrigação tributária aplica-se:
[...] a definição por uma lei de certos de fato a cuja hipotética e possível realização a lei atribua determinados efeitos jurídicos (obrigação de pagar o tributo), convertendo-os assim em uma classe de fatos jurídicos(fato imponível) A realização desse fato jurídico, o fato imponível, que origina a obrigação de pagar o tributo. (Derecho Tributario, 1968, Madri, Ed. Derecho Financiero, p.45).
O sistema tributário nacional define, por meio do CTN, os sujeitos da respectiva
obrigação, podendo estes serem ativos ou passivos, da qual apresenta-se como:
a) Sujeito Ativo: A legitimidade do sujeito ativo da obrigação tributária, na tensão Fisco
x Contribuinte, se dá pela pessoa jurídica de Direito Público, que, em suas atribuições,
recolhe os tributos e os repassa como receita pública derivada para que os órgãos
competentes possam executar os serviços públicos inerentes ao seu funcionamento. O
artigo 119, do CTN, categoriza o sujeito ativo como sendo: “Sujeito ativo da obrigação
é a pessoa jurídica de direito público, titular da competência para exigir o seu
cumprimento”.
b) Sujeito Passivo: O agente passivo da relação jurídica consiste no sujeito obrigado ao
pagamento do respectivo tributo ou penalidade in pecúnia, como disposto no artigo
121, do CTN; já o sujeito passivo da obrigação tributária acessória designa-se pelo
contribuinte ou responsável, em que o primeiro tem relação jurídica direta com o Fisco
e o segundo se vincula pode disposição expressa em lei.
A geração de efeitos jurídicos na seara tributária se reveste de consequências
impactantes na sociedade, por meio do qual a não identificação do destinatário legítimo a arcar
com o ônus tributário pode implicar uma vedação da análise empírica dos princípios presentes
na relação Fisco x Contribuinte, de modo com que a capacidade contributiva expressa-se como
pilar fundamental ao identificar o efetivo potencial contributivo da pessoa física ou jurídica na
relação obrigacional.
4. A conceituação ex lege da Hipótese de Incidência Tributária
O elemento abstrato existe em diversas searas, sejam elas filosóficas, políticas,
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 303-320, mai/ago, 2016.
Alethes | 310
sociológicas, entre outras, mas no ordenamento jurídico tributário apresenta-se como um
critério existente na norma, que, segundo Gerado Ataliba (2010, p. 58), se dá por meio de uma
formulação hipotética, prévia e genérica, que está inserida no dispositivo legal, como uma
espécie de desenho do fato.
A adoção de mecanismos lógicos para a interpretação da hipótese de incidência a torna
indivisível, não podendo haver incidência múltipla de atos que venham a fragmentar a
aplicação da hipótese. Segundo Ataliba (2010, p. 58), a consequência a ser alcançada no plano
epistemológico-jurídico, por meio da identificação da hipótese no processo interpretativo,
decorrente de sua aplicação, corresponde ao núcleo do tributo, permitindo uma construção
jurídica mais adequada através da disposição legislativa.
O exemplo citado na obra Hipótese de incidência tributária acerca da venda de
mercadorias ou recebimento de rendimentos, ou ainda introduzir mercadorias no território do
país, segundo Ataliba (2010, p. 65):
[...] Embora se refira a atos complexos ou fatos constituídos de elementos heterogêneos e múltiplos. Uma e indivisível é a h.i, ainda quando a realidade que conceitua seja integrada por elementos vários, como, por exemplo, “transmitir um imóvel” , não constitui h.i só o ato de transmitir, nem só o imóvel, mas a conjugação dos dois termos, conceptualmente, que se reporta ao ato de transmitir que tem por objetivo um imóvel”. Este complexo é que, pela lei, é qualificado como hábil a determinar o nascimento de obrigações tributárias, erigindo-se, pois, em hipótese de incidência. [...]
Portanto, a complexidade dos atos ou a sua quantidade independem para a aplicação
efetiva da hipótese de incidência, na medida em que não é lícita a sua transfiguração em
elementos variados, fugindo, assim, a presunção de legalidade. Nessa situação, a prescrição
legal independente de uma leitura ampla por parte do interprete.
A implicação da hipótese de incidência ao fato concreto configura-se: fato imponível,
em que Dino Jarach, citado por Ataliba (2010, p. 67) discorre que “Em todos os casos,
entretanto, deve-se tratar de fatos que produzem, na realidade, a imagem abstrata, que deles
formulam as normas jurídicas” (“Estrutura e elementos da relação jurídica tributária” in RDP
16/339).
Acerca da diferenciação entre fato imponível e hipótese de incidência, torna-se possível,
segundo Ataliba, evidenciar as suas particularidades.
O quadro comparativo a seguir evidencia a diferenciação entre esses elementos:
HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA FATO IMPONÍVEL
SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos
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- descrição genérica e hipotética de um fato;
- fato concretamente ocorrido no mundo fenomênico, empiricamente verificável
(hic et nunc); - conceito legal (universo do direito); - fato jurígeno (esfera tangível dos fatos);
- designação do sujeito ativo; - sujeito ativo já determinado; - critério genérico de identificação do
sujeito passivo; - sujeito passivo: Tício;
-critério de fixação do momento de configuração;
- ocorrência – dia e hora determinados;
- eventual previsão genérica de circunstâncias de modo e lugar;
Modo determinado e objetivo, local determinado;
- critério genérico de mensuração (base imponível ou base de cálculo).
Medida (dimensão) determinada (base calculada).
Fonte: ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010,
p.74
Desse modo, os elementos diferenciadores presentes na tabela permitem uma
interpretação mais fática da relação, em que os sujeitos, a ocorrência e as dimensões fomentam
uma série de elementos presentes no plano abstrato e concreto da incidência tributária.
4.1. Aspectos da Hipótese de Incidência Tributária
Os institutos da hipótese de incidência tributária e do fato imponível, descritos Geraldo
Ataliba, determinam os sujeitos da obrigação tributária, implicando também os componentes
de nascimento das obrigações. Dentre os quais, o aspecto temporal apresenta-se, na visão do
mesmo autor as circunstâncias trazidas no tempo, que configuram os fatos imponíveis. O
aspecto espacial, por sua vez, se atém ao lugar pelo qual ocorre a obrigação tributária, em que
a hipótese de incidência é essencial para a configuração do fato imponível (ATALIBA, 2010,
p. 78, 94 e 104).
A vertente de materialidade, na visão de Geraldo Ataliba, é o aspecto mais complexo da
hipótese, uma vez que designa os dados de ordem objetiva, sendo configuradores do arquétipo
que a hipótese de incidência consiste. Por fim, mas não menos importante, o aspecto pessoal
possui caráter subjetivo, determinando a qualidade e os sujeitos que o fato imponível fará nascer
(ATALIBA, 2010, p. 80 e 106).
5. Compreensão jurídica do Fato Gerador
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 303-320, mai/ago, 2016.
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Já o fato gerador deve ser compreendido como sendo quando a hipótese de incidência
ocorre concretamente no mundo real, com o nascimento da obrigação tributária,
responsabilizando o sujeito passivo (devedor) a pagar determinado tributo e, portanto, com a
incidência do mesmo. Ou seja, se trata da realização efetiva de situação prevista pelo legislador
como hipótese de incidência. Exemplo disso pode ser citado o Imposto Sobre Serviços – ISS
(cujo fato gerador ocorre quando houve, numa situação concreta, um serviço prestado pela
empresa A e, a par disso, houve surgimento de obrigação de pagar o tributo supramencionado,
que vincula o prestador desse serviço, como sujeito passivo).
Ricardo Lobo Torres (2004, p. 239) defende que “fato gerador é a circunstância da vida
— representada por um fato, ato ou situação jurídica — que, definida em lei, dá nascimento à
obrigação tributária”.
Em análise comparada do fato gerador em relação à hipótese de incidência, Machado
(2004, p. 136) se manifesta:
[...] A expressão hipótese de incidência designa com maior propriedade a descrição, contida na lei, da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, enquanto a expressão fato gerador diz da ocorrência, no mundo dos fatos, daquilo que está descrito na lei. A hipótese é simples descrição, é simples previsão, enquanto o fato é a concretização da hipótese, é o acontecimento do que fora previsto. [...]
Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro adotou igualdade semântica entre fato
gerador e hipótese de incidência. No artigo 4º do Código Tributário Nacional é introduzido o
pontapé inicial do termo fato gerador no ordenamento jurídico, ao dispor o legislador que “a
natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação
[...]”.
Da leitura dos artigos 114 e 115, ambos do Código Tributário Nacional – CTN, que,
respectivamente, dispõem que o “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em
lei como necessária e suficiente à sua ocorrência” e que “fato gerador da obrigação acessória é
qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato
que não configure obrigação principal”, se extraem múltiplas possibilidades interpretativas do
ordenamento jurídico brasileiro quanto aos termos fato gerador e hipótese de incidência.
O que se tem dos referidos dispositivos infraconstitucionais supracitados é que, ocorrido
o fato gerador, nasce o dever de pagar o tributo (obrigação principal – artigo 114 do CTN) ou
de deveres instrumentais (obrigação acessória – artigo 115 CTN).
SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos
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É com o fato gerador que serão indicados o an, si e quando da relação tributária, segundo
Falcão (2013, p. 86), daí a necessidade que ele ocorra estritamente no mundo real, em situação
prática, para que então, como afirmado, ocorra o surgimento da relação obrigacional, em cujo
momento será aplicado o regime jurídico então vigente, com respeito ao direito adquirido ao
sujeito passivo, consagrado constitucionalmente como direito individual (artigo 5º, inciso
XXXII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
5.1 Classificação dos Fatos Geradores vinculados ao estudo.
Nessa ordem de ideias, algumas conceituações são relevantes. Quanto à ordem
estrutural, o fato gerador pode ser simples – no qual se trata de fato único, isolado – ou
complexo – no qual se trata de fato complexo ou, segundo doutrina, conjunto de fatos, segundo
Falcão (2013, p. 92).
Já em relação à integração ou formação do fato gerador, este é subdivido em fato gerador
instantâneo - que se perfazem imediatamente, numa só operação ou momento – e fato gerador
complexivo – que se completam dentro de um determinado período temporal, consistindo num
conjunto de fatos circunstâncias ou acontecimentos globalmente considerados, segundo Falcão
(2013, p. 94-96).
Pode-se citar como exemplo de fato gerador instantâneo quando em fato concreto há
circulação de determinada mercadoria pela empresa A, com a consequente obrigação tributária
de pagar Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços – ICMS, enquanto, como exemplo
de fato gerador complexivo, o imposto de renda, em que o contribuinte B deverá, por declaração
a ser entregue à Receita Federal do Brasil, indicar anualmente o fluxo riqueza (assim, desde
01.01 até 01.12 do ano declarado).
Nessa última diferenciação estabelecida (entre fato gerador instantâneo e complexivo)
há importância, inclusive, para aplicação de direito intertemporal e, assim, conclusão de qual
norma dever-se-á aplicar (no caso do fato gerador instantâneo, o regimento jurídico vigente ao
momento único; no caso do fato gerador complexivo a legislação é a do momento vigente à
época em que haver completado a formação dele, num dado período de tempo, para a produção
de efeitos jurídicos – exemplo: no caso do imposto de renda, alterada a alíquota em novembro
do ano declarado, ela será adotada se persistir vigente até 31.12) e também quanto a prazos
decadenciais.
5.2. Aplicação fática do Fato Gerador
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Para exemplificar a aplicação do fato gerador in concreto, a participação das instituições
jurídicas de caráter recursal possui papel fundamental na condução das jurisprudências
inerentes à promoção da justiça, na qual a incidência do fato gerador complexivo requer uma
interpretação balizada no procedimento de interpretação conjunta dos magistrados. Por sua vez,
o Superior Tribunal de Justiça, por sua 2ª Turma, decidiu o seguinte caso:
TRIBUTÁRIO - IMPOSTO DE RENDA - LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO - PAGAMENTO A MENOR - INCIDÊNCIA DO ART. 150, § 4º, DO CTN FATO GERADOR COMPLEXIVO - DECADÊNCIA AFASTADA. 1. Na hipótese de tributo sujeito a lançamento por homologação, quando o contribuinte constitui o crédito, mas efetua pagamento parcial, sem constatação de dolo, fraude ou simulação, o termo inicial da decadência é o momento do fato gerador. Aplica-se exclusivamente o art. 150, § 4°, do CTN, sem a possibilidade de cumulação com o art. 173, I, do mesmo diploma (REsp 973.733/SC, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, DJe 18/9/2009, submetido ao regime do art. 543-C do CPC). (STJ. 2ª Turma. Rel. Min. Eliana Calmon. j. 15/10/2013).
Ainda, quanto à integração ou formação do fato gerador, Eduardo Sabbag (2015)
acrescenta um terceiro tipo de fato gerador, qual seja, o fato gerador contínuo como sendo:
[...] aquele cuja realização leva um período para se completar, ou seja, não se dá em uma unidade determinada de tempo, mas se protrai em certo período de tempo. Daí haver a necessidade de se fazer um “corte temporal” (dia 1º de janeiro, por exemplo), com o propósito de estabilizar o aspecto temporal do fato gerador. [...]
Exemplo desse terceiro tipo é o Imposto Sobre a Propriedade de Veículo Automotores
– IPVA, regulado por cada Estado e Distrito Federal a teor do artigo 155, inciso III da
Constituição Federal de 1.988. Na Lei 14.937, de 23/12/2003, o Estado de Minas Gerais,
dispondo sobre a matéria, dispõe quanto ao fato gerador:
Art. 2º O fato gerador do imposto ocorre: I - para veículo novo, na data de sua aquisição pelo consumidor; II - para veículo usado, no dia 1º de janeiro de cada exercício; III - para veículo importado pelo consumidor, na data de seu desembaraço aduaneiro. § 1º Para os efeitos desta Lei, considera-se novo o veículo sem uso, até a sua saída promovida por revendedor ou diretamente do fabricante ao consumidor final; § 2º Na hipótese dos incisos I e III e do § 1º deste artigo, o recolhimento do IPVA será proporcional ao número de dias restantes para o fim do exercício; § 3º Tratando-se de veículo usado que não se encontrava anteriormente sujeito a tributação, considera-se ocorrido o fato gerador na data em que se der o fato ensejador da perda da imunidade ou da isenção.
Conforme Falcão (2013, p. 100-101), é também imprescindível que seja o fato gerador
típico, distinguido do fato gerador acessório ou complementar: o primeiro é pressuposto ao
SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos
Alethes | 315
surgimento da obrigação tributária, enquanto no segundo a obrigação jurídica variará,
dependendo de fato auxiliar ou subsidiário, tratando-se de fato gerador completar, que
necessitará de fato gerador típico para a obrigação tributária.
Além disso, o fato gerador é avolitivo, ou seja, não depende da vontade humana, de
forma com que, uma vez existente em situação no mundo real, surge a obrigação de pagar o
tributo. Neste sentido, o Código Nacional Tributário (CTN) dispõe nos artigos 118 e 126 que:
[...] Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos. [...] Art. 126. A capacidade tributária passiva independe: I - da capacidade civil das pessoas naturais; II - de achar-se a pessoa natural sujeita a medidas que importem privação ou limitação do exercício de atividades civis, comerciais ou profissionais, ou da administração direta de seus bens ou negócios; III - de estar a pessoa jurídica regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional. [...]
Para Sabbag (2015), o fato gerador não pode ser considerado ato jurídico, por ser
irrelevante a presença ou não do elemento da vontade humana para o surgimento da obrigação
de pagar determinado tributo, possuindo, destarte, avolitividade.
Falcão (2013, p. 106-107) defende que a base de cálculo significa a expressão
econômica do fato gerador, tanto que a inadequação dela pode significar um fato gerador
distorcido e, consequentemente, o tributo ser desnaturado.
6. Consequências da diferenciação entre hipótese de incidência e fato gerador
O estabelecimento da diferença entre Hipótese de Incidência tributária e Fato Gerador
do tributo beneficia o Fisco, através da praticabilidade tributária, em que a Administração
Tributária pode reconhecer a obrigação tributária (e nela, portanto, o fato gerador) ainda que a
situação não se enquadre exatamente na descrição legal (hipótese de incidência).
A construção doutrinária acerca da praticabilidade tributária permite a Administração
Pública promover meios mais eficientes para que a efetividade no campo da arrecadação possa
permitir ao Estado financiar seus projetos e serviços públicos. Segundo Paulsen (2015, p. 81)
“O exercício da tributação não é um fim em si mesmo, mas um instrumento. Só se permite a
intervenção no patrimônio das pessoas porque é necessário para o financiamento das atividades
que cabe ao Estado promover”.
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Entre as correntes doutrinárias preponderantes no Direito Tributário, existem
divergências acerca da definição legal da praticabilidade tributária. Alguns autores se
posicionam favoravelmente à conceituação da praticabilidade como um princípio que não está
previsto em algum dispositivo expresso da constituição, mas que permeia todo o ordenamento
jurídico.
Para outros autores, em contrapartida a esse posicionamento, interpretam a
praticabilidade tributária como um procedimento facilitador da obtenção de recursos
financeiros. Diante desse entrave conceitual, a justificativa para uma tributação
procedimentalmente facilitada apresenta-se como uma alternativa viável na atual conjuntura do
ordenamento jurídico, devido à complexidade das normas tributárias.
Entretanto, até que ponto a valoração da praticabilidade tributária pode interferir na
interpretação do Fisco mediante a incidência do fato gerador correspondente, de forma a não
comprometer com a interpretação doutrinária relativa a incidência no plano material?
Logo, torna-se necessário um posicionamento cauteloso acerca do princípio ou do
procedimento supracitado, na qual podem existir casos concretos em que a autoridade tributária,
enquadre o contribuinte a uma determinada categoria de indivíduos, em tratamento uniforme,
atribuindo o mesmo fato gerador para esta. Acontece que, na visão de Humberto Ávila (2015,
p. 81), referida situação leva a uma padronização, como instrumento de igualdade geral (isto é,
a presunção legal utiliza critérios objetivos para classificar os contribuintes em uma tributação
específica), o que contrasta com a igualdade particular (ou seja, os contribuintes devem ser
tributados conforme critérios subjetivos de sua capacidade contributiva, para que possa ser
alcançada uma tributação justa).
Oportuno trazer, também, outra consequência nessa diferenciação de hipótese de
incidência e fato gerador, estabelecida por Machado (2015, p. 131), que defende:
[...] A distinção, que devemos ter presente, entre hipótese de incidência tributária e o fato gerador do tributo é de grande importância para a compreensão da tese que temos sustentado, segundo a qual a ilicitude é irrelevante para o surgimento da obrigação tributária, embora seja inadmissível a tributação de atos ilícitos. [...]
E prossegue o eminente doutrinador (MACHADO, 2015, p. 131):
[...] A ilicitude do ato praticado nada tem a ver com a relação tributária. isto não implica admitir-se a tributação de atos ilícitos. É indispensável, a este propósito, estabelecer-se uma diferença entre o ato ilícito como elemento da hipótese de incidência do tributo e a ilicitude que eventualmente pode verificar-se na ocorrência do fato gerador do
SILVA, I.D; SILVA, V.E. Estudo da aplicação simétrica dos institutos
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tributo. Uma coisa é considerar-se, por exemplo, a manutenção de casa de prostituição como hipótese de incidência de um tributo. Outra coisa é admitir-se a incidência do imposto de renda sobre os rendimentos auferidos na referida atividade. A hipótese de incidência do imposto de renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza (CTN, art. 43). É irrelevante que tal aquisição se tenha verificado em decorrência de atividade lícita ou ilícita. [...]
A relação de admissão de um tributo, na qual a sua respectiva hipótese de incidência
inclui ilicitude, é inadmissível, logo, a observância dos momentos em que o legislador descreve
uma situação considerada necessária para o surgimento da obrigação não deve se basear por
atos ilícitos, segundo Machado (2015, p. 131-132).
Portanto, Machado (2015, p. 132) discorre que, no momento da concretização da
situação legalmente descrita, a ilicitude poderá se instaurar eventualmente, todavia a sua
presença não é necessária à concretização da hipótese de incidência do tributo, de tal forma
com que, segundo o mesmo autor, a circunstância ilícita que sobra não deve ser aplicada em
hipótese de incidência tributária, sendo que, para fins tributários, torna-se inteiramente
relevante a sua aplicação.
7. Considerações finais
É pertinente salientar que o sistema constitucional tributário, em sua complexidade,
abarca dispositivos normativos que o define e o conceitua, além de correntes doutrinárias que
se posicionam perante os seus institutos. No decorrer do desenvolvimento intelectual existente
em cada cultura, a importação de determinadas ideologias, sejam elas políticas ou jurídicas,
podem influenciar positivamente na formação dos processos democráticos, que estão presentes
nos Estados Modernos, todavia, a concepção jurídica adotada por cada ordenamento deve ser
compreendida, analisada e respeitada, levando em conta a contribuição mútua entre as
sociedades. Por outro lado, o desenvolvimento das correntes doutrinárias deve se ater aos
institutos jurídicos de modo a realizar uma leitura estrutural, seja dos conceitos, seja dos
princípios, que, através de posicionamentos divergentes, podem contribuir mediante seus
juristas a um aperfeiçoamento do espectro dogmático da própria ciência jurídica.
A diferença entre hipótese de incidência tributária (descrição legal, in abstrato) e fato
gerador da obrigação tributária (ocorrência fática da hipótese de incidência, in concreto) não se
restringe apenas ao aspecto semântico, como também traz consigo consequências práticas, na
qual a possibilidade de tributação de atos não previstos na norma em abstrato poderá ocorrer
tendo em vista a padronização proferida pelo legislador, uma vez que atos não discriminados
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 303-320, mai/ago, 2016.
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na hipótese de incidência poderão tornar-se ilícitos, violando, assim, a presunção de legalidade,
que é fundamental para uma harmonização do ordenamento jurídico brasileiro.
Torna-se plausível que, devido a multiplicidade de retenções, auditorias e declarações
das quais o Fisco é obrigado a monitorar, a capacidade técnica em averiguar os detalhamentos
de cada obrigação tributária traduz-se em uma tarefa complexa e, em alguma medida, inviável
para os procedimentos cotidianos da Administração Tributária. Todavia, o Princípio da
Praticabilidade Tributária, quando trabalhado sob uma perspectiva de manutenção dos
processos arrecadatórios, não deve priorizar somente o processo administrativo, como também
se pautar por situações particulares que ensejam, no caso concreto, uma relação que conduza a
uma justiça tributária na relação Fisco x contribuinte.
Assim, a implementação simétrica dos dois institutos (fato gerador e hipótese de
incidência) na órbita prática-jurídica pode acarretar em desigualdades, por considerar elementos
que se estendem para além da presunção legal e, portanto, tendem a abalar a segurança jurídica,
de modo a instituir possíveis irregularidades na vinculação entre o fato gerador e o seu
enquadramento legal na efetuação do lançamento tributário.
A adoção de atos emanados pelo sujeito ativo da obrigação (Fisco) e pelo sujeito passivo
(contribuinte) necessitam de uma adequação ao próprio ordenamento, com ações típicas do
Poder Legislativo e que possam considerar através da presunção legal formas de compatibilizar,
em um ambiente jurídico-político, as situações inerentes a cada instituto e, assim, promover
uma adequação de fato a incidência dos tributos.
8. Referências Bibliográficas
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ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil
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A Propriedade e a Formação da Sociedade Civil no Jusnaturalismo de Grotius e Locke
The Property and the Formation of Civil Society in Grotius´ and Locke´s Natural Law
André Aarão Rocha1
Resumo: O presente artigo busca apresentar as contribuições teóricas de Hugo Grotius e John
Locke para a racionalização do direito natural existente até então. Com base nas teorias do direito natural, o qual se caracteriza por ser um sistema de proposições morais a serem descobertas pela razão, objetiva-se ressaltar a importância que as mesmas teorias tiveram para a formação da propriedade privada, bem como da sociedade civil. Ademais, através da apresentação de suas teorias bem como das peculiaridades que cada uma possui, busca-se demonstrar que a sociedade civil tem sua origem propulsionada pelo surgimento da propriedade privada na filosofia de ambos. É a partir dessa última, que nascerá o direito positivo, também chamado direito civil (lato sensu), como sendo aquele direito criado no âmbito da sociedade civil, com o objetivo de regê-la.
Palavras-chave: Jusnaturalismo. Propriedade. Sociedade. Grotius. Locke.
Abstract: This article seeks to present the theoretical contributions of Hugo Grotius and John Locke for the rationalization of the existing natural law until then. Based on theories of natural law, which is characterized as a system of moral propositions to be discovered by reason, the objective is to highlight the importance of those theories for the formation of the private property as well as of the civil society. In addition, through the presentation of both theories, as well as the peculiarities which each one has, it seeks to demonstrate that this society has its origin propelled by the emergence of private property in both philosophers. It is from this last one, that the positive law, also known as Civil Law (lato sensu) will be born, as that right created within civil society, in order to rule it.
Key words: Jusnaturalism. Property. Society. Grotius. Locke.
1 Graduando do curso de Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista de Iniciação Científica patrocinado pelo programa Jovens Talentos para a Ciência da CAPES. Edital 26/2014.
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1. Introdução
O direito natural pode ser genericamente definido como um conjunto de regras perfeitas
e naturais de comportamento, que objetivam qualificar o certo e o errado para o convívio social.
Essas regras foram estabelecidas independentemente da vontade do homem. Desse modo, ele
contrasta com o direito positivo, que é aquele que se define como um conjunto de regras
estabelecidas no corpo social pelos homens, geralmente escritas, por excelência, as leis. O
direito natural, além de externo à vontade humana, é eterno. Por isso, não muda de lugar para
lugar, de tempos em tempos e estabelece leis não escritas, mas possíveis de serem positivadas.
Durante muitos anos esse direito foi extremamente ativo e importante, especialmente
através das teorias medievais teológicas de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
Posteriormente, suas bases foram desfeitas e reconstruídas a partir da razão, com a escola
jusnaturalista moderna, na qual figuram os autores explicitados nesse artigo: Hugo Grotius e
John Locke. Esse direito natural racionalizado fora usado como base de explicação para
diversos fenômenos, alguns deles, notadamente presentes na obra dos dois autores em análise.
São eles: a propriedade privada e a formação da sociedade civil - nascida precipuamente para
assegurar a propriedade. Esses objetos, juntamente com o direito natural, serão os pontos
principais a serem discutidos no presente artigo.
A posteriori, o direito natural teve sua importância diminuída, principalmente com o
avanço, nos séculos XVIII e XIX, do positivismo jurídico, o qual enfatiza a significância do
direito positivo como objeto da ciência do Direito. O positivismo jurídico tem como
característica a negação da existência do direito natural, pois para os positivistas a única
fundamentação do direito é a criação legal humana, positivada em um estado social. Exemplo
dessa concepção encontra-se amplamente representado na Teoria Pura do Direito, de Hans
Kelsen. Entretanto, o direito natural foi importante e deixou suas marcas no direito positivo.
Isso é perceptível em diversos documentos mundialmente relevantes, como a Declaração de
Independência dos Estados Unidos (1776), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789) - esta que tornou-se o preâmbulo da Constituição Francesa de 1791 - e a Declaração dos
Direitos do Homem adotada pela ONU em 1948.
2. Origem Histórica do Direito Natural
ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil
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O fundamento do direito natural não é a vontade humana, essa é objeto do direito
positivo, como já foi explicitado. Mas, então, qual é o seu fundamento? Em primeiro lugar, é
importante ressaltar que tal fundamento varia circunstancialmente. Existe uma divisão trifásica
simplificada, organizada por Strauss (1992), mostrando seus principais momentos. Em um
primeiro momento, com os gregos (principalmente Platão e Aristóteles), o direito natural se
funda na natureza (Physis). Já na Idade Média, com o crescimento da Igreja Católica, o
fundamento se torna Deus (principalmente nas obras de Santo Agostinho e São Tomás de
Aquino). Por fim, na Idade Moderna, a razão se torna o fundamento do direito natural,
começando por Hugo Grotius e continuando com Hobbes e Locke, e outros filósofos. Trata-se
agora de apresentar um panorama dessa história.
Segundo Leo Strauss (1992), o direito era inicialmente dado pelos ancestrais através dos
costumes, que passavam de geração para geração. As pessoas acreditavam que esses ancestrais
eram deuses ou semideuses, ou seja, o direito era ditado pela autoridade. No entanto, o
questionamento dessa autoridade aparece com o surgimento da filosofia consequentemente o
entendimento humano acerca das leis sofre modificações. A filosofia fez com que o direito
passasse a não ser mais determinado por aquela autoridade ancestral, mas por algo anterior a
tudo: a natureza.
Segundo Bobbio e Bovero (1994), no modelo aristotélico o direito natural vem da
natureza (Physis) em contraposição ao direito positivo (Nómos). Um dos princípios do direito
natural nessa doutrina é a formação da sociedade. Para Aristóteles, essa não sai da forma natural
direto para a civil, existindo uma progressão que parte da sociedade conjugal até o império.
Para ele o homem é um animal social (Zoon politikon). 2
Subsequentemente surgem duas escolas contrárias de acordo com Rommen (1998): O
Ceticismo, que atinge seu ponto máximo com Carneades (215-125 a.C) e o Estoicismo, fundado
por Zenão de Cítio (340-265 a.C). Os céticos acreditavam que as leis eram feitas pela vontade
arbitrária dos homens. Desse modo, não poderia existir lei da natureza, pois uma vez que ela
não possui vontade, não arbitra nada. Até então os céticos eram os que mais se aproximavam
daquilo que mais tarde veio a ser denominado de positivismo jurídico (pela negação do direito
natural). O estoicismo, por sua vez, teve grande influência no pensamento romano, fazendo
parte dessa escola personalidades como Cícero, Sêneca e o Imperador Marco Aurélio. Foi a
2 Característica parecida pode ser observada na teoria da formação social de Hugo Grotius, que se baseia em Aristóteles e afirma que o homem possui uma vontade natural de sociedade, uma tendência de se organizar na forma de um corpo social, proveniente do direito natural, algo que ele chama de appetitus societattis.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.
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partir desses pensadores que, como afirma Rommen (1998), os ensinamentos estóicos chegaram
até a Idade Média.
Ainda para Rommen (1998), na doutrina dos estóicos o mundo é controlado por uma
razão de Deus, o logos divino. Eles entendem que o mundo é completamente organizado por
esse logos, através de regras prescritas por Deus, que dispõe princípios tais, que serão
alcançados pela reta razão e trarão justiça. O estoicismo prega que a vida adequada seria aquela
organizada de modo a respeitar esse conjunto de proposições divinas. Para tanto, o homem deve
usar a razão. Esse direito natural foi utilizado no direito romano como meio de diminuir as
lacunas da lei (do ius civile). Com o advento do cristianismo, ainda no tempo do Império
Romano, os valores do estoicismo são transmitidos à religião cristã, que os utiliza na Idade
Média, estabelecendo um direito natural fundado no logos do seu Deus, o Deus cristão. De
acordo com Rommen:
Os padres da Igreja em seu início fazem uso do direito natural estóico, encontrando em seus princípios as ‘sementes do mundo’, para proclamar a doutrina cristã do Deus como personalidade criadora, como o autor da lei eterna bem como do direito natural moral, o qual é promulgado na voz da consciência e na razão. (ROMMEN, 1998, p.40, tradução nossa).
A primeira das mais importantes correntes do pensamento cristão, a patrística, possui
como maior representante Santo Agostinho, filósofo que prega a supremacia da cidade de Deus
sobre a cidade terrena. Na escolástica, tem-se como maior representante São Tomás de Aquino,
o qual, em sua Suma Teológica define quatro espécies de leis: a eterna, a natural, a humana e a
divina.
Após esses pensadores, surgem os filósofos da escolástica tardia, representada
primordialmente por Francisco Suárez e Francisco de Vitória. De acordo com Rommen (1998),
os preceptores da escolástica resgataram a teoria de Tomás de Aquino, mas acreditavam que o
direito natural provinha não da vontade de Deus, mas da razão divina, pois tudo aquilo que
Deus fazia tinha origem em sua própria razão e deveria desse modo respeitá-la. Esse
pensamento se aproxima do que será tratado na Idade Moderna.
No jusnaturalimo moderno, claramente um elemento em particular ganhou evidência: a
razão. Ela foi colocada como o fundamento primordial, relegando à religião uma posição
secundária. Os motivos pelos quais isso aconteceu foram bem colocados por André Santos
Campos (2011). Em primeiro lugar, ele considera o advento do renascimento e a visão
mecanicista e matemática. Essa visão é fortemente veiculada, naquele momento, pelo avanço
das ciências naturais, bem como pelo avanço do método científico, principalmente através do
ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil
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empirismo, que irá ganhar ainda mais força ao longo do período moderno. Em segundo lugar,
considera que “da mesma maneira que os fundamentos teológicos se tornaram insuficientes
para justificar os saberes práticos – a moralidade, o direito, e a política tiveram igualmente de
encontrar as suas justificações num método demonstrativo” (CAMPOS, 2015, p.7), ou seja,
tiveram que encontrar justificação na razão e não mais em Deus. Por último, ele cita os conflitos
religiosos ocorridos na época, que influenciaram os teóricos do direito natural no sentido de
buscarem a definição de um conceito de direito que fosse comum a todas as correntes religiosas
ou que, pelo menos, não interferisse em nenhuma delas.
A escola do direito natural moderna surge, para muitos, com Hugo Grotius, embora para
alguns estudiosos, filósofos como Francisco Suárez e Francisco de Vitória já tivessem abordado
o direito natural de forma separada em relação à religião. Foi, porém, com Grotius, que houve
uma real sistematização dessa cisão entre razão e religião no direito natural.
3. O Direito Natural na Obra de Hugo Grotius
Hugo Grotius, Hugo de Groot ou Hugo Grócio (em latim, holandês e português,
respectivamente), nasceu na cidade de Delft na Holanda, no final do século XVI, dentro do
espírito humanista da Holanda protestante. Grotius viveu numa época de transição entre o
medieval teocêntrico e o moderno laicizado. Em sua vida presenciou eventos como a revolta
dos Países Baixos contra o domínio espanhol, a Guerra dos 30 anos no Sacro Império
Germânico e o início das rivalidades mercantis e marítimas das potências européias.
Grotius, nesse contexto, escreve sua principal obra, O Direito da Guerra e da Paz (De
Jure Belli ac Pacis). A finalidade dessa obra foi refutar a tese, segundo a qual, a guerra é
incompatível com o direito. Para conseguir esse feito, Grotius desenvolveu uma teoria do direito
natural, porque na guerra o direito civil de cada Estado não possui força vinculante e até então
não existia o Direito Internacional, como hoje concebido. Com essa teoria do direito natural, o
filósofo teria um elemento que poderia vincular todas as pessoas, independentemente da
religião que cultuavam, em todos os tempos, inclusive na guerra. Sobre isso, afirma Grotius:
“Que as leis se calem, portanto, no meio das armas, mas somente as leis civis, aquelas que
dizem respeito aos tribunais, aquelas que são próprias somente para a paz e não as outras que
são perpétuas e válidas para todos os tempos.” (GROTIUS, 2005, p. 48-49).
Em seus escritos, Grotius tende à racionalização do direito natural, mas não abre mão
totalmente dos preceitos teológicos, como podemos ver nas palavras de Paulo Emílio de
Macedo:
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.
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Não se deve rotular um autor como Grócio de moderno ou medieval. Após séculos de distanciamentos, já se possui noções preconcebidas sobre a quintessência do medievalismo e da modernidade. Mas esses termos não operam numa lógica binária, em que a presença de um excluía do outro. No jurista holandês, há um pouco dos dois. (MACEDO, 2008, p.491).
A definição de direito natural que Grotius apresenta em sua obra de maturidade (O
Direito da Guerra e da Paz) é a seguinte:
O direito natural nos é ditado pela reta razão que nos leva a conhecer que uma ação, dependendo se é ou não conforme a natureza racional é afetada por deformidade moral ou por necessidade moral e que, em decorrência, Deus, o autor da natureza, a proíbe ou a ordena. (GROTIUS, 2005, p.79).
É fácil perceber, por esse enunciado, uma maior aproximação do direito natural com a
reta razão, o que de acordo com Grotius, seria o meio para se conhecer os princípios do direito
natural. Além dessa razão o homem teria que seguir o seu apetite de sociedade, que Grotius
chamava appetitus societatis, para conhecer aqueles princípios. O homem, através da razão,
reconhece os princípios naturais que Deus incluiu em seu ser, na criação humana. A partir do
conhecimento desse conteúdo, o homem dá voz ao seu apetite de sociedade e percebe que a
vida organizada em um corpo social é extremamente vantajosa, principalmente para assegurar
os direitos naturais que já possui - notadamente a vida, a liberdade (ainda que na sociedade civil
se torne limitada) e a propriedade. Nesse momento é que se alcança o verdadeiro direito natural,
como aquele conjunto de regras gerais feitas por Deus para o convívio humano. Esse acesso
pode ser traduzido na seguinte fórmula: reta razão + sociabilidade natural (appetitus societatis)
= acesso ao direito natural. Nesse sentido Grotius afirma:
A natureza do homem que nos impele a buscar o comércio recíproco com nossos semelhantes [appetitus societatis], mesmo quando não nos faltasse absolutamente nada, é ela a própria mãe do direito natural. A mãe do direito civil, no entanto, é a obrigação que a gente se impõe pelo próprio consentimento e, como esta obrigação extrai sua força do direito natural, a natureza pode ser considerada bisavó também do direito civil. (GROTIUS, 2005, p.43).
Richard Tuck, um dos principais intérpretes da obra de Grotius, comenta a definição de
direito natural desse autor:
Isso estava perto da tradição escolástica, com sua ênfase no caráter moral intrínseco das situações, e isso era uma clara quebra com a tradição voluntarista protestante. A vontade de Deus não é mais a única fonte de qualidades morais: as coisas são boas ou ruins por sua própria natureza, e isso é logicamente prévio ao comando ou proibição de Deus em relação a eles. Mas a inquietação vem quando Grotius ainda argumenta que as coisas que são intrinsecamente boas são aquelas as quais são associadas com o natural, com o caráter social do homem. (TUCK, 1995, p. 68. tradução nossa).
ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil
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Ainda segundo Tuck, a lei natural provém da livre vontade de Deus, à qual a nossa razão
nos prescreve submetermo-nos de modo irrefutável. Mesmo que decorra do ser humano e possa
ser entendido a partir da razão humana, esse direito pode ser atribuído a Deus, pois foi ele quem
dispôs para que tais princípios existissem em nós. Assim, pode-se dizer que eles vêm de Deus
de maneira mediata e dos homens de maneira imediata (ao interpretarem-no).
É a partir disso, que Grotius formula a sua hipótese impiíssima, na qual afirma que nem
Deus pode mudar o direito natural, pois esses princípios já foram elaborados pela própria razão
divina e colocados intrinsecamente no homem. Neles, Deus proíbe ou ordena uma ação caso
seja contrária ou condizente com a natureza racional, respectivamente. A razão dessa lei, sendo
tão perfeita, não poderia ser alterada nem mesmo se Deus o quisesse, pois se o fizesse estaria
contrariando a sua própria razão, a qual perderia, assim, seu status de perfeição. Essa hipótese
é o principal indício do afastamento do direito natural de uma determinação (voluntas) divina.
Foi enunciado no Direito da Guerra e da Paz:
O Direito Natural é tão imutável que não pode ser mudado nem pelo próprio Deus. Por mais imenso que seja o poder de Deus, podemos dizer que há coisas que ele não abrange porque aquelas de que fazemos alusão não podem ser senão enunciadas, mas não possuem nenhum sentido que exprima uma realidade e são contraditórias entre si. Do mesmo modo, portanto, que Deus não poderia fazer com que dois mais dois não fossem quatro, de igual modo ele não pode impedir que aquilo que é essencialmente mau não seja mau. (GROTIUS, 2005, p.81).
O filósofo afirma que Deus não pode mudar a lei natural, do mesmo modo que não pode
mudar verdades matemáticas (ele dá como exemplo: 2+2=4). A obra de Deus é perfeita. O
direito natural, como criação de Deus, também o é, conseguindo manter uma harmônica
convivência entre os homens do mundo. Por isso, não pode ser alterado, sob risco do início de
um processo de caos. Desse modo, estabelecida tal criação, as relações racionais e as realidades
ganham autonomia.
A partir da hipótese impiíssima, Grotius afirma ser possível o acesso à lei natural
independentemente da existência de Deus, ou seja, ela é inteligível ao homem, desde que ele
use a razão. De acordo com Bruno de Oliveira Pinho: “A natureza humana, em Grotius, é
suficiente, por si só, para garantir a existência da lei natural”. (PINHO, 2013, p.37). Isso ocorre
devido ao fato de que Deus entrega os princípios do direito natural no coração do homem e dá
possibilidade a ele de descobri-los, dotando-os de razão. Com isso, ele não nega a existência de
Deus ou a possibilidade dele intervir na criação, mas pretende separar o direito natural de um
fundamento teocêntrico. Dessa forma, esse direito está colocado nos homens e depende apenas
deles para existir. Assim, caso os homens fossem criados de outro modo, que não por Deus, o
direito natural de Grotius continuaria a existir.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.
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Ao discutir a hipótese impiíssima, Hans Kelsen (1979) descreve brilhantemente a
certeza da lei natural na obra de Grotius, que poderia ser comparada a certezas físicas e
matemáticas, demonstrando um ponto de proximidade entre Grotius e os modernos:
Se as normas que constituem os valores morais, e especialmente o valor justiça, defluem da razão e não de uma faculdade do homem distinta da razão, da sua vontade, se numa norma moral, que liga a um determinado pressuposto uma determinada conduta como devida (devendo ser), essa ligação se não opera através de um ato da vontade humana e, portanto, – neste sentido – não é arbitrária mas é tão independente da vontade humana como a ligação entre causa e efeito na lei natural, então não existe, sob este aspecto, qualquer distinção entre uma lei física ou matemática e uma lei moral, então pode afirmar-se na razão que ela é tão indiscutível como o enunciado segundo o qual o calor dilata os corpos metálicos ou o enunciado segundo o qual duas vezes dois são quatro. O que pretende Grócio com a sua afirmação de que as normas do direito natural seriam válidas ainda que se pudesse dizer – o que, efetivamente não pode ser dito – que Deus não existe, é que a validade destas normas é tão objetiva, isto é, que essas normas escapam tanto a toda a arbitrariedade e, portanto, são tão indiscutíveis como os enunciados da matemática [...]. (KELSEN, 1979, p.123).
Outro indício de laicização do direito natural na obra de Grotius é a divisão em tipos de
direitos, elaborada pelo autor. Em O Direito da Guerra e da Paz, ele coloca como direitos
voluntários o direito humano e o direito divino, mas o direito natural fica fora dessa
classificação. Com isso, é visível que ele não depende da vontade (voluntas) de nenhum ser, e
sim da razão (ratio). Tal fato apenas confirma a explicação do autor, de que o direito natural
vem imbuído no homem e provém da razão de Deus. Direito esse que o homem entenderá
também por meio da razão. Bruno de Oliveira Pinho assevera, a esse respeito:
Podemos entender então, a partir disso, que o Direito natural não está relacionado com a vontade, ele tem seu fundamento em outra coisa. Segundo Grotius ele pode ser apreendido pela reta razão (recta ratio), como aquilo que conhece o que convém ou não à natureza humana. (PINHO, 2013, p.82).
Outro ponto interessante a ser enfatizado é o fato de o direito natural, na obra de Hugo
Grotius, não dizer respeito somente às coisas que estão além da vontade dos homens, mas
abarcar, também, coisas que existem por atos dessa vontade. Como exemplo, Grotius (2005)
coloca a propriedade, que foi introduzida pela vontade humana no direito natural. Desde que
ela foi colocada, o direito natural nos diz que é errado tomar aquilo que é de outrem contra sua
vontade.
Como já afirmado, Grotius analisa no Direito da Guerra e da Paz, se é justo, de alguma
forma ou por algum motivo, fazer guerra à luz do direito natural. Para isso se utiliza de
princípios citados por Cícero no De Finibus. O primeiro dever natural é o da autopreservação,
também tratado na obra de John Locke. Em segundo lugar, tem se o dever de procurar seguir a
reta razão. É em decorrência da autopreservação que se tem o direito à legítima defesa, podendo
ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil
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ser observada em todos os homens, em todas as sociedades e também nos animais. Assim sendo,
é legítimo atacar quem está nos atacando ou está na iminência de atacar. A partir disso surge o
direito de punir aquele que ataca, sendo o que resta, na falta de um juiz competente para julgar
a questão e de um Estado para punir o ofensor. Um dos motivos para a organização social é
justamente a autopreservação, juntamente com a proteção da propriedade, pois a partir daquele
momento haveria um Estado (ou ao menos um corpo de cidadãos) para tutelar os direitos
chamados naturais, assegurando-os na forma de leis positivas.
O direito natural de Grotius defende a vida, a liberdade e a propriedade, tal como o de
Locke o fará em tempos futuros. A proteção da vida é uma consequência lógica, pois sem ela
nenhum outro direito teria sentido. Entretanto, não é absoluta. Nas palavras de Grotius:
“Nenhum homem, de fato, pode legitimamente matar outro homem, a menos que esse último
tenha cometido algum crime capital”. (GROTIUS, 2005, p.423). Além dela temos a proteção
da liberdade, que, para Grotius, é um direito inato, mas que os homens abrem mão em certa
medida, em seu contratualismo, ao se organizarem em forma de sociedade civil.
Em relação à propriedade, Grotius acreditava que Deus havia dado a Terra ao homem
para que ele a usasse, ou seja, era patrimônio de todos (res commune). Assim, todo homem
podia se apropriar do que precisasse para sua subsistência e o uso dava origem à propriedade.
3.1. Teoria da Propriedade em Grotius
Antes da formação social, o homem podia se apropriar do que quisesse para sua
subsistência. A concepção da propriedade seria anterior à sociedade. Bens como a terra,
alimentos e alguns utensílios, necessários à sobrevivência, tornavam-se de um só e, como havia
bens para todos, não faria falta que cada um os usasse para a subsistência. A propriedade,
entretanto, apesar de ter sua existência antes do surgimento da sociedade civil, tem sentido de
ser maior nessa sociedade. Enquanto o homem vivia em Estado natural em menor quantidade,
com recursos suficientes a todos, havia menos demanda para os bens, mas após a consolidação
social, tudo passa a ficar mais delimitado e a definição do que é de cada um se faz mais presente.
Grotius (2005) estabelece dois modos de adquirir a propriedade: pela partilha dos bens
(maneira expressa) ou pela ocupação (maneira tácita). No primeiro modo os homens acordariam
em dividir as coisas disponíveis, já no segundo seria por ordem de ocupação. Um exemplo no
qual é possível observar essa segunda forma, em conformidade com o que diria Rousseau
posteriormente é a propriedade da terra. De acordo com Pinho (2013), à medida que se trabalha
na terra, surge o direito à mesma e ao produto do trabalho, a colheita. Portanto, aquele que
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.
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beneficia o bem recebe o direito sobre ele. A maneira tácita ainda é dividida em duas formas,
dependendo do tipo de bem, se ele é móvel ou imóvel:
A ocupação dos bens móveis ocorre por uma captura física, apprehensio, e a dos bens imóveis exige alguma construção ou o estabelecimento de limites e cercas. O sinal exterior da occupatio, aquilo que retirava a coisa do mundo natural e comum para a posse individual e exclusiva, era alguma forma de trabalho: apreensão física ou construção. A ocupação é o modo original de aquisição de propriedade privada, mas esta ocupação só se efetiva com o trabalho. (MACEDO, 2008, p. 59).
Além dessas propriedades adquiridas, o homem possui propriedades inatas. No Direito
da Guerra e da Paz, Grotius diz que a propriedade natural do homem é a vida, o corpo e a
liberdade. Esse é outro elemento comum à obra de John Locke:
(...) mesmo que o direito que ora chamamos propriedade não tivesse sido criado, pois a vida, o corpo, a liberdade teriam sido sempre bens próprios de cada um, contra os quais não se poderia atentar sem injustiça. (GROTIUS, 2005, p. 103).
É importante ainda enfatizar que se a propriedade tivesse sido introduzida pelo homem,
“esta lei era modelada conforme o plano da natureza” (GROTIUS, apud FERNANDES, 2015,
p. 67-68). É por isso que surge a lei da natureza segundo a qual “houve uma espécie de
compromisso mútuo, tacitamente acordado entre os proprietários, que se alguém estivesse de
posse dos bens de outra pessoa, estaria obrigado a restituí-la ao dono” (GROTIUS, apud
FERNANDES, 2015, p.69). Esse compromisso tácito, se torna expresso e é disposto em leis
positivas quando a sociedade se forma.
Grotius afirma que antes do estado social a vida era simples e o homem poderia tê-la
mantido. Entretanto, após usar seu espírito para artes diversas, como a agricultura e a criação
de rebanhos, deixa essa vida simples. Além disso, há um aumento da população, facilitado pela
maior comodidade de vida. Inicialmente existia a partilha de bens, mas depois surgiu a
rivalidade, que originou o emprego de violência exagerada. Segundo Pinho (2013), isso teria
feito com que homens bons fossem corrompidos pelo contato com homens maus, acarretando
um aumento e uma generalização da violência até então existente. Para sanar os problemas
desenvolvidos com as disputas tanto pelas propriedades adquiridas quanto pelas originais
(inatas - vida, liberdade e corpo), é organizada a sociedade civil.
3.2. Teoria da Formação da Sociedade Civil em Grotius
Os homens viviam separados entre si, mas com suas respectivas famílias. Devido à
insegurança que esse estado proporciona, os homens começaram a se unir para se aproveitarem
ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil
Alethes | 331
uns dos outros, pois dessa forma, seriam mais bem sucedidos em sua experiência de vida. Além
disso, Grotius (2005) afirma que existe uma necessidade humana de fazer comércio recíproco
(appetitus societattis), saciada com a sociedade. Esse apetite, tendente à criação de uma
sociedade, cresce com as dificuldades de uma vida desagregada dos homens. Podem trocar
instrumentos, trabalho, alimentos e outros, satisfazendo a necessidade de todos. Segundo
Grotius:
Se o homem é, inegavelmente, um animal, tem ele algumas características muito peculiares que o diferencia, e o faz exceder, dos outros animais, figurando dentre as principais o desejo por sociedade, isto é, uma certa inclinação para viver com aqueles de sua própria espécie, não de qualquer modo, mas de maneira pacífica, em uma comunidade regulada de acordo com o que de melhor há em seu entendimento. (GROTIUS, 2005, p.37).
Essa formação social decorre do somatório de dois fatores, ambos inerentes à natureza
humana, pertencentes ao direito natural: a razão e o apetite de sociedade. Sobre isso explica
Paulo Emílio Borges de Macedo:
O homem não se apresenta como um ser gregário tal como as abelhas. Ele vive em sociedade porque faz escolhas racionais pra isso. Somente pode afirmar-se que a sociabilidade é inerente ao ser humano porque a razão lhe é natural. Ambos, razão e appetitus societatis, revelam-se naturais, mas este (appetitus societatis) é mediatizado por aquela (razão). (MACEDO, 2008, p. 53-54).
Antes da formação da sociedade, entretanto, existiria segundo Grotius (2005), um
pacto, no qual os homens aceitariam formalmente a união em forma social. Esse pacto só
poderia existir porque os homens possuem um elemento que nenhum outro animal possui: a
linguagem. Após esse momento inicial, os próximos homens que se unissem a essa sociedade
o fariam a partir de um acordo tácito. Eles simplesmente, para Grotius (2005), se agregavam ao
corpo social, aceitando tacitamente as regras de convivência e suas obrigações naquela
sociedade.
Pode-se depreender então, que depois do surgimento da sociedade civil, um homem por
exemplo, poderia se dedicar a plantar enquanto outro conseguia uma boa lenha, outro moía o
trigo colhido e um terceiro fazia o pão que alimentava a comunidade. Através da troca dos
produtos produzidos por cada um deles, todos teriam o necessário para sua sobrevivência. À
medida que a comunidade ia crescendo, as atividades se especificavam mais, tornando a vida
de cada homem individualmente mais confortável em comparação ao estado de natureza. Agora
que o homem não precisava se preocupar tanto com a sua subsistência, teria tempo para
melhorar as técnicas e viver mais comodamente.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.
Alethes | 332
A diferença entre essa teoria de Grotius para a de outros contratualistas, como Hobbes
e Rousseau é, como assevera Paulo Emílio Borges de Macedo, a seguinte:
Assim como nos contratualistas que vieram depois de Grócio o estado de natureza é um lugar idílico, mas precário. O único direito vigente resume-se ao Direito Natural. O advento do Direito Positivo, tanto em Grócio como nos jusnaturalistas modernos, é que encerra este estado. Entretanto, de modo diverso do que preceitua estes, a transição ocorre de forma gradual e é marcada não pela constituição do Estado, mas da propriedade privada. (MACEDO, 2008, p.58).
A sociedade civil positiva os direitos naturais através das leis (do ordenamento jurídico).
Essa sociedade surge para assegurar a vida, a liberdade e o corpo, que são as propriedades inatas
e também para assegurar os bens materiais, a propriedade adquirida (em sentido estrito), seja
ela móvel ou imóvel. Essas propriedades (em sentido lato – englobando todas elas) estavam sob
ameaça em um estado inicial da humanidade, desorganizado e desagregado. Para evitar o
excesso de roubos, guerras particulares, assassinatos, dentre outros conflitos, os homens
criaram a sociedade, na qual abriram mão da liberdade que gozavam naquele estado inicial em
busca de manter aquilo que possuíam.
O direito civil surge na sociedade já formada. É criado, segundo Grotius, para o
cumprimento das obrigações, quando por exemplo, se concorda em firmar um contrato de
compra e venda. Para o autor:
A mãe do direito civil, no entanto, é a obrigação que a gente se impõe pelo próprio consentimento e, como esta obrigação extrai sua força do direito natural, a natureza pode ser considerada como bisavó também do direito civil. (GROTIUS, 2005, p.37).
4. O Direito Natural na Obra de John Locke A obra mais famosa de John Locke é o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil.
Entretanto, apesar de abordar o direito natural, ele se dedica mais detidamente a esse tema na
obra Ensaios sobre a Lei da Natureza, que foi traduzida do latim para o português na tese de
mestrado de Luiza de Souza Müller (2005). Nessa última, Locke analisa a existência e a
possibilidade de conhecer a lei da natureza, bem como sua obrigatoriedade.
É preciso distinguir, em Locke, lei natural e direito natural, pois eles são diferentes,
apesar de muitos autores os confundirem e os considerarem sinônimos. Locke afirma que “o
direito, de fato, coloca que temos o livre uso das coisas, enquanto a lei é o que nos permite ou
nos proíbe de fazer algo”. (LOCKE apud MÜLLER, 2005, p.20-21).
A definição que Locke apresenta no primeiro desses tratados sobre as leis da natureza é
a de que elas são regras morais ditadas por um poder superior, são leis obrigatórias, que podem
ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil
Alethes | 333
ser reconhecidas através da razão. Além disso, possuem autoridade vinculante em todos os
lugares. Nas palavras de Locke: “a ordenação da vontade divina, reconhecível pelo esplendor
da natureza, ordena ou proíbe por si mesma, estando em acordo ou não com a natureza
racional”. (LOCKE apud MÜLLER, 2005, p.19-20).
Nesse ponto é interessante observar, por um lado, que esse conceito lockeano de lei da
natureza, se assemelha à definição dada por Grotius, que acaba se resumindo no fato de que a
lei da natureza é feita por Deus e entendida pela razão humana. Entretanto, por outro lado, em
Locke há um elemento a mais, a experiência, a qual é combinada com a razão no acesso à lei
natural. Daí o porquê de Locke ser chamado de pensador empirista. Além desse diferencial, a
lei da natureza de Grotius é mais independente de Deus do que a de Locke, visto que aquele
pressupõe que mesmo se Deus não existisse a lei natural poderia existir, em razão dela decorrer
apenas do homem (hipótese impiíssima). Já em Locke a independência de Deus não existe. A
esse respeito descreve Von Leyden:
A tentativa de Locke, observa Von Leyden, é de tornar a razão uma fonte auto-dependente da obrigação moral. Esta teoria é remanescente, em parte de Grócio, que questionou não tanto os pressupostos teológicos da ética, mas da teoria voluntarista que defendia a vontade divina como sendo fonte da obrigação moral. Grócio procurou mostrar que a despeito de sua origem divina, os princípios da lei natural possuem um poder de obrigação próprio, pois são “intrinsecamente necessários e fundados na razão. (LEYDEN apud BRUM, 2011, p.56).
Segundo Bobbio (1998), Locke ainda estava preso a uma concepção voluntarista do
direito natural, que provinha de Hobbes, enquanto Grotius, em contrapartida, tinha seguido uma
linha intelectualista, ao dar maior protagonismo à razão. A hipótese impiíssima é o ponto de
maior afastamento entre a teoria de Grotius e a teologia. Nas palavras de Bobbio:
Se na definição de Locke fica claro que a lei natural é descoberta pela razão, depois de criada pela vontade de Deus, na definição de Grotius ela só é desejada por Deus enquanto descoberta pela razão. Temos aí claramente uma antítese. (BOBBIO, 1998, p.111).
Nos Ensaios Sobre a Lei da Natureza, Locke coloca como fundamento da lei natural a
vontade de Deus, o voluntarismo. Depois, já nos Tratados Sobre o Governo Civil,
especialmente no segundo, ele muda de idéia, colocando agora o fundamento dessa lei na razão
e, aderindo ao racionalismo, aproxima-se de Grotius. Não chega a formular algo parecido com
a hipótese impiíssima, mas muda os rumos em relação à suas obras de juventude. De acordo
com Bobbio:
Não se deve esperar que Locke nos faça, nessa nova obra, uma exposição filosófica sobre a lei natural. Nos ensaios da mocidade (aqui ele se refere aos Ensaios sobre a lei natural) – já examinados -, Locke se ocupara de todos os problemas inerentes à lei
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.
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natural. Embora suas idéias a respeito do direito natural tenham mudado em parte – sobretudo a idéia do fundamento, que não é mais voluntarista, porém racionalista - ele não volta ao assunto, que assume como pressuposto. (BOBBIO, 1998, p.147).
No segundo ensaio, Locke discute as possibilidades do conhecimento acerca da lei
natural. Ele enumera três formas e verifica se são ou não meios eficazes de se obter esse
conhecimento. Primeiramente fala da inscrição, que seria a colocação dos princípios dessas leis
no homem de maneira inata. Ele nega essa ideia, diferentemente de Grotius, que a acolhe, como
já visto. Locke utiliza-se de sua famosa teoria da tabula rasa para descartar a teoria do inatismo.
Nela afirma ser o homem uma tabula rasa, sem nenhuma inscrição, como uma folha de papel
em branco. Para Locke, ninguém teria conseguido provar o contrário. Em um segundo
momento, Locke coloca a tradição como outra possível forma de conhecimento da lei natural,
em que as leis naturais são transmitidas de geração em geração. Ele nega também essa
possibilidade e utiliza para isso três argumentos.
O primeiro deles parte da afirmação segundo a qual cada povo possui tradições
diferentes e seria difícil extrair quais seriam as melhores. Precisaríamos da lei natural para
encontrar as melhores tradições, e como não a temos, torna-se impossível que seja transmitida.
No segundo argumento, Locke diz que a tradição depende muito da autoridade de quem a
transmite e, por isso, não seria um conhecimento, uma coisa evidenciada através da razão, e
sim proveniente da fé. No terceiro argumento, como bem coloca Luiza de Souza Müller:
Locke sustenta que se formos buscar a origem da tradição nós iremos encontrar o autor da idéia inicial, e aquilo que este autor fez nós poderemos fazer diretamente, pois somos dotados igualmente dos mesmos sentidos e da mesma razão. Uma transmissão não produz o conhecimento de nossos deveres; apenas confiamos naquele que transmite a informação; e se a transmissão do conhecimento fosse a respeito da lei natural, esta lei natural deveria ter sido adquirida uma primeira vez de alguma maneira. A tradição seria assim um modo de transmissão da lei natural, e não uma maneira para conhecê-la. (MÜLLER, 2006, p.28).
A terceira maneira de se conhecer a lei natural seria a sensação, a experiência sensível,
não abordada por Grotius. Locke afirma ser essa a maneira correta de se conhecer a lei natural.
Entretanto, para ele, a experiência sensível sozinha não seria capaz de desvendá-la. Ela
necessita da razão para entender corretamente aquilo que a lei natural nos traz. É a razão que
processará as informações captadas pelos sentidos e dará um significado a elas, recuperando os
princípios do direito natural. Por esse grande papel da experiência, Locke é chamado de filósofo
empirista. Coloca no ensaio IV:
Estas duas faculdades devem servir uma à outra: a sensação fornecendo para a razão idéias de objetos sensíveis particulares e a matéria do discurso; e a razão por outro lado guiando as faculdades dos sentidos, e arranjando as imagens das coisas derivadas dos sentidos, dali formando outras e compondo novas. (LOCKE, apud MÜLLER, 2006, p.80).
ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil
Alethes | 335
A lei natural de Locke ainda possui outras características - ela tem força obrigatória,
perpétua e universal. Primeiramente ela obriga a todos, e isso acontece porque possui “Deus
como autor, que está acima de tudo e nos criou do nada e poderá nos reduzir a nada se assim o
desejar”. (LOCKE, apud MÜLLER, 2006, p.40). A lei da natureza vincula, pois ela é a base de
tudo, inclusive da lei civil, que possui sua força vinculante nessas leis naturais: “uma vez que a
força de comando da lei civil depende da lei natural, e não somos tão coagidos a prestar
obediência ao magistrado pelo poder da lei civil como somos obrigados pelo direito natural”.
(LOCKE, apud MÜLLER, 2006, p.40).
De acordo com Locke a lei da natureza possui força em todos os lugares, pois os homens
têm a razão como elemento em comum. Essa lei possui uma relação intrínseca com a razão,
podendo ser reconhecida por ela, juntamente com a experiência. Desse modo, os homens que
são dotados de razão são obrigados, em todos os lugares, a respeitar essas leis; aí está sua
universalidade. Entretanto, depende de certas circunstâncias, ou seja, dependendo da situação,
as leis vinculam somente algumas pessoas. Segundo Locke: “É obrigação de um pai alimentar
e educar os filhos, mas ninguém é obrigado a ser pai: a conclusão é que a força obrigatória da
lei de natureza é a mesma em todo lugar, apenas as condições da vida são diferentes” (LOCKE,
apud MÜLLER, 2005, p. 43).
A lei da natureza, no estado natural, deve ser respeitada por todos os homens, que são
os responsáveis pela sua aplicação, podendo punir algum infrator, a fim de garantir seu
cumprimento. Como todos são iguais, todos podem punir e serem punidos. A legitimidade de
punir o agressor vem desse malefício que ele comete contra a lei natural (considerada uma
agressão a todos) e contra o agredido. Locke, no entanto, defende que isso deve ser feito de
forma proporcional e racional. Além do direito de punir, que é de todos, há para o ofendido, o
direito de reparação pelo dano sofrido. Assim, compreende-se a propriedade como direito
personalíssimo e não mais como um bem comum de todos, como seria na natureza inicial.
Segundo Locke:
(...) a pessoa lesada possui um direito próprio de buscar a reparação por parte do autor da infração. E qualquer outra pessoa que ache isso justo, pode também juntar-se à vítima e ajudá-la a recuperar do ofensor o quanto ela considere suficiente para reparar o dano sofrido. (LOCKE, 2011, p.18).
4.1. Teoria da Propriedade em Locke
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.
Alethes | 336
A teoria lockeana da propriedade constitui uma importante parte da filosofia de Locke.
Para ele, o termo propriedade (lato sensu), abrange não somente os bens materiais que o homem
possui, mas também uma série de direitos como liberdade, vida, autopreservação e propriedade
(stricto sensu). Leo Strauss resume, de forma brilhante, a ideia de propriedade em Locke:
O direito natural à propriedade é um corolário do direito fundamental à preservação de si mesmo; não decorre do pacto, nem de qualquer ato de sociedade. Se todos têm o direito natural de se preservarem, então tem necessariamente o direito a tudo o que é necessário para a sua preservação. O necessário para a preservação de si não consiste tanto, como Hobbes parece ter acreditado, em facas e armas, mas em víveres. Os alimentos só contribuem para a preservação se forem comidos, isto é, apropriados de tal maneira que se tornam propriedade exclusiva do indivíduo; existe então um direito natural a uma espécie de “domínio privado exclusivo do resto do gênero humano.” O que vale para os alimentos aplica-se mutatis mutandis a todas as outras coisas necessárias para a preservação de si, e até para a preservação confortável, pois o homem tem um direito natural, não só à sua preservação, mas também à procura da felicidade. (STRAUSS, 2009. p. 201-202).
Para John Locke a existência da propriedade não depende de um pacto ou contrato
social. Os homens podem apropriar-se de bens para sua subsistência, mas como o farão? O que
lhe dá o direito de separar algo daquilo que é comum a todos e apropriar-se disso? Locke
responde dizendo que o homem adquire direito à propriedade pelo seu trabalho. O homem já
possui alguns direitos inatos, como a vida, a liberdade e o próprio corpo. Ele utiliza desses
direitos, para beneficiar-se dos bens. Com a força laboral que emprega, faz seu direito se
estender ao produto que criou. Pode-se dizer então que a propriedade que os homens têm sobre
si mesmos seria como uma propriedade primária. Utilizando-se dessa, realiza trabalhos, cujos
frutos formam sua propriedade por direito - essa última chamaremos propriedade secundária ou
derivada da primária. Nas palavras de Locke:
(...) o único modo honesto de apropriar coisas é através do trabalho individual. Por natureza, cada um é proprietário exclusivo do seu corpo e, por conseguinte, do agir do seu corpo, isto é, do seu trabalho. Portanto, se um homem mistura o seu trabalho – mesmo que seja apenas o trabalho de colher amoras – com coisas que ninguém possui, essas coisas convertem-se numa mistura indissolúvel da sua propriedade exclusiva com a propriedade de ninguém, e, portanto convertem-se em sua exclusiva propriedade. O trabalho é o único título de propriedade que é conforme ao direito natural. (LOCKE, 2011, p.202).
Sobre a propriedade secundária, Locke cita o exemplo de um homem que, antes da
existência da sociedade civil, retira da natureza uma maçã, a qual se torna sua. Esse modo de
aquisição da propriedade, ainda valerá depois de ser firmado o contrato social, mas apenas nos
terrenos comunitários, aqueles que são de propriedade de todos (res communis). Sobre a fase
da sociedade civil, Locke cita o exemplo de um homem que pesca um peixe em um rio que é
de todos. Esse peixe passa a ser de sua propriedade no momento em que emprega nele um
ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil
Alethes | 337
trabalho. Pode haver a apropriação pelo trabalho, pois esses produtos na natureza não possuem
quase nenhum valor. É o homem que emprega o valor nos produtos com seu trabalho e por isso
possui direito a eles. Ele faz com que um pedaço de terra que não possui quase nenhum valor
se torne extremamente valioso:
Consideremos a diferença que existe entre um acre de terra plantado com fumo ou cana de açúcar, semeado de trigo ou cevada e um acre da mesma terra comunitária sem qualquer cultura, e verificamos que a melhoria devida ao trabalho constitui a maior parte do valor respectivo. (LOCKE, 2011, P.37).
Além disso, conforme Leo Strauss e Joseph Cropsey (1987) existem duas razões pelas
quais as provisões naturais possuem pouco valor. A primeira delas é a falta de utilidade que
aquelas provisões têm para o homem na natureza, sem um processo de beneficiamento pelo
trabalho, por mínimo que seja. Os autores dão o exemplo de uma fruta, que até ser retirada do
pé de uma grande altura, pelo trabalho, de nada serve. Já a segunda é a grande abundância de
provisões para tão poucos homens no estado natural, fazendo com que não possuam muito valor
agregado.
O homem, entretanto, deve obter para si somente o necessário, pois, acredita Locke, o
restante seria devido a outro homem, que poderia ser prejudicado se o primeiro tomasse para si
um excedente de propriedade. Assim, ninguém deveria poder acumular uma propriedade e
deixá-la perecer sem ser utilizada, como um alimento que ficou podre antes de ser consumido.
Isso se coloca de forma diversa quando surge o contrato social. É nessa fase que o homem
inventa uma maneira de acumular sem causar prejuízo aos outros, o dinheiro. Ou seja, o homem
só pôde obter mais do que aquilo que pode usar e cultivar, por causa do dinheiro, que por ser
algo não perecível, pode ser acumulado. Assim, o homem passa a trabalhar além do necessário
para a sua subsistência. Locke mostra como o dinheiro modificou a propriedade, tornando
possível acumular bens.
Para Grotius diferentemente de Locke, a propriedade surge de uma convenção do
homem, seja tácita ou expressa:
As coisas não começaram a passar à propriedade [dos indivíduos] mediante um simples ato interior da alma, porque os outros não podiam adivinhar aquilo de que nos queríamos apropriar para então absterem-se. Isso se fez por meio de uma convenção expressa, como quando se distribuem coisas que antes eram tidas em comum, ou tácita, quando nos apossamos delas. (GROTIUS apud BOBBIO, 1998, p.192).
Entretanto, em Locke, só há a necessidade do emprego de trabalho em algo, para nascer
um direito de propriedade sobre ele, que será do autor desse trabalho. A convenção que
estabelece Grotius para o nascimento da propriedade é distinta da convenção social. Era uma
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.
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convenção feita no estado de natureza, somente para a divisão (distribuição) ou ocupação dos
bens. Essa convenção não teria funcionado, pois como a propriedade é um direito erga omnes
(oponível a todos), para que isso ocorresse, a convenção deveria ser firmada por todos os
homens no estado de natureza, obrigando todos eles a respeitarem a propriedade do dono. Trata-
se de algo impraticável sem uma maior organização social. Para que essa convenção desse certo,
seria necessário, então, o estado civil. Como deixa claro Bobbio:
Em resumo, dada a natureza da propriedade como direito absoluto, o acordo só pode instituir o direito de propriedade se for universal. No estado de natureza, um acordo universal é impossível. Ele só é possível no estado civil, entre os membros do corpo político. A teoria convencionalista, portanto, leva-nos à figura do Estado. (GROTIUS apud BOBBIO, 1998, p.192).
4.2. Teoria da Formação da Sociedade Civil em Locke
O Estado de natureza em Locke, como em Grotius, não era uma guerra de todos contra
todos, como em Hobbes, mas apenas um estado sem sociedade civil estabelecida, ou seja,
desorganizado. Sobre isso, coloca Leo Strauss:
O estado de natureza, que, à primeira vista, parece ser a idade de ouro governada por Deus ou por bons demônios, é literalmente um estado sem governo, é uma “anarquia pura”. Poderia durar para sempre, “não fosse a corrupção e perversidade dos homens degenerados; mas infelizmente ‘a maior parte não respeita a equidade e a justiça”. (STRAUSS, 2009, p.192).
Para Locke, o principal inconveniente do estado de natureza é a violação da lei natural,
que deve ser punida pela própria vítima, pois não há um juiz equânime, uma lei positiva
estabelecida para todos e nem força estatal para garantir que essa lei seja cumprida da maneira
devida. Esses são os elementos negativos do estado de natureza, que como afirma Bobbio
(1998), possui também elementos positivos, são eles: uma maior liberdade nos agires e fazeres,
bem como a igualdade maior entre os homens e as propriedades. Entretanto, como a vítima irá
punir, não há imparcialidade na punição que pode acabar se excedendo. Além disso, como não
há força estatal coercitiva sobre os indivíduos, os crimes ficariam impunes ou seriam punidos
pelos agredidos ou seus familiares, o que pode gerar desconfortos e ocasionar novos conflitos.
Tudo isso causa no estado natural extrema insegurança em relação às propriedades (em sentido
lato - incluindo vida, liberdade e as propriedades materiais) das pessoas, que ficariam
ameaçadas.
Além da insegurança das propriedades no estado natural, podemos notar também uma
inclinação social na natureza do homem. A linguagem também é mostrada como um fator
ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil
Alethes | 339
primordial na conquista da formação social. Ela permite que os homens se entendam e
concordem em um objetivo comum. Nesse ponto é claramente possível notar a influência que
a teoria de Grotius teve na obra de John Locke.
Deus fez do homem uma criatura tal que não lhe seria conveniente ficar só, e por isso instilou-lhe fortes sentimentos de necessidade, conveniência e inclinação para a vida em sociedade, provendo-o igualmente de entendimento e linguagem para que dela desfrutasse. (LOCKE, 2011, p. 57).
Desse modo, cada homem abre mão daquela intensa liberdade de ter que respeitar
somente ao direito natural e passa a ter que respeitar também as regras positivas do corpo social.
Essas regras devem estar de acordo com os preceitos do direito natural. Os homens abrem mão
também do seu direito de punir para ficar sob a tutela da lei positiva, e para manter esse estado
seguro e unido em um propósito primordial, que é assegurar a propriedade, entendida aqui, no
sentido lato.
O governante recebe o poder que o povo transfere a ele e o utiliza para os fins da
sociedade civil. Entretanto, se esse governante se utiliza do poder, não para o bem comum, mas
para fins pessoais, agindo com excesso de arbitrariedade e ferindo o direito do povo, ele se
caracteriza como tirano. De acordo com Locke:
Aquele rei sábio, que tinha bem claro o que era governar, baseava a distinção entre o rei e o tirano apenas nisto: um faz das leis os vínculos do próprio poder, e o bem do povo, o objetivo do governo; o outro quer que tudo ceda à vontade e ao apetite próprio. (LOCKE, 2011, p.130).
Quando o governante se torna um tirano, Locke defende a possibilidade do povo se opor
ao mesmo, resistir à sua força tirânica. O direito de se posicionar contra o governante é chamado
direito de resistência. Locke deixa bem claro que:
Onde quer que a lei termine, a tirania começa, se a lei for transgredida para dano de outrem. E aquele que exceda em autoridade o poder que a lei lhe conferiu, e lance mão da força de que dispõe para fazer ao súdito o que a lei não lhe permite, deixa de ser magistrado e, já sem autoridade, poderá sofrer oposição como qualquer um que viole o direito de outrem. (LOCKE, 2011, p.131).
Grotius (2005), de maneira contrária, não permite esse direito de resistência e considera
que o direito comum de manter a sociedade funcionando como deveria (a paz pública sendo
atingida), toma precedência e deve sobrepor-se em relação a um direito de resistir ao poder
constituído, o qual, segundo ele, potencialmente geraria um desequilíbrio no governo.
5. Conclusão
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.
Alethes | 340
O direito natural, como aquele conjunto de princípios eternos, perfeitos e independentes
da vontade humana, começa com os gregos, antes mesmo de Sócrates, e sofre modificações ao
longo do tempo. O conceito foi transmitido pelos estóicos, em Roma, e pelos filósofos católicos
na Idade Média, sendo entendido, nessa época, como um conjunto de princípios provenientes
diretamente de Deus. Na Idade Moderna, com o renascimento, com o avanço do cientificismo
e do método demonstrativo-matemático, esse conceito se afastou da teologia e se aproximou da
razão. Importantes autores, nesse contexto, foram Hugo Grotius (1583-1645) e John Locke
(1632-1704).
Hugo Grotius concebeu sua teoria do direito natural com o objetivo de encontrar um
direito que fosse vinculante em todas as nações - independentemente da religião que cultuavam
- e em todos os tempos, inclusive em guerras. Para o autor, o homem teria acesso ao direito
natural, que era intrínseco a ele (colocado por Deus), por meio da razão. O direito natural não
viria da vontade de Deus, e sim de sua razão, que é perfeita. Por ser perfeita, tal razão cria um
direito natural também perfeito, que não pode ser mudado nem mesmo por Deus - sob pena de
perder seu caráter de perfeição. Além disso, como o direito natural é intrínseco ao homem e só
depende de sua razão para ser descoberto, mesmo que o homem fosse criado de outra forma,
que não por Deus, o direito natural continuaria a existir.
A propriedade, que era um direito natural em Grotius, surge antes da sociedade. No
início, pelo próprio direito natural haveria a propriedade inata, composta da vida, do corpo e da
liberdade - elemento comum em relação à obra de Locke. Os bens materiais, por sua vez, seriam
de todos os homens. Porém, poderiam ser apropriados quando necessários à subsistência, sendo,
dessa forma, propriedades adquiridas. Entretanto, após usar seu espírito para artes diversas,
como a agricultura e a criação de rebanhos, o homem deixa a vida simples que possuía até
então. Posteriormente a essa mudança, surge a rivalidade sobre os bens. A partir daí, o
compromisso mútuo passou a não ser respeitado, fato que ocasionou diversos conflitos, como
assassinatos e roubos. Para sanar esses problemas e assegurar tanto as propriedades inatas
quanto as adquiridas, nasce a sociedade civil.
Todavia, essa sociedade não nasce apenas para resguardar a propriedade de possíveis
ameaças, mas também, para satisfazer uma vontade de sociedade que o homem possuía,
decorrente do direito natural, chamada appetitus societatis. Isso fazia com que os indivíduos se
organizassem em forma de corpo social, tornando sua vida mais cômoda. Assim sendo, a
humanidade pôde se desenvolver melhor através do comércio recíproco.
John Locke define o direito natural da mesma maneira que Grotius o faz, como uma
ordenação da vontade divina, reconhecível pela razão e que está de acordo com a natureza de
ROCHA, A. A. A propriedade e a formação da sociedade civil
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tal vontade. Entretanto, em Locke há um elemento a mais: a experiência, que, combinada com
a razão, promove o acesso ao direito natural. Além disso, a lei da natureza de Grotius é mais
independente de Deus do que a de Locke, visto que aquele pressupõe que mesmo se Deus não
existisse, a lei natural poderia existir. Para Locke, o homem não possui nada inscrito em seu ser
de maneira inata, sendo, por sua vez, como uma folha de papel em branco - a chamada Teoria
da Tabula Rasa. Por conseguinte, o direito natural seria aprendido pela razão somada à
experiência sensível.
Em relação à propriedade, ambos estabelecem seu surgimento antes da formação social.
Apesar disso, Locke dá um valor especial ao trabalho. Segundo o autor, é esse elemento que
traz legitimidade à propriedade, na medida em que o homem agrega valor ao objeto trabalhado,
tornando-se dono dele. Sob esse prisma, o indivíduo usa de sua propriedade inata - vida, corpo
e liberdade - para adquirir a propriedade secundária ou derivada. Diferentemente de Grotius,
para Locke não existe forma de criação da propriedade por meio de consenso.
A formação social, de acordo com Locke, surge para evitar conflitos gerados pelas
punições das violações à lei natural, que eram realizadas pelas próprias vítimas, pois não existia
juiz imparcial para julgar, nem mesmo Estado para garantir a realização de uma punição justa.
Dessa maneira, os crimes ficariam impunes ou seriam punidos pelos agredidos ou por seus
familiares, o que pode gerar desconfortos e ocasionar novos conflitos. Tudo isso causa extrema
insegurança em relação às propriedades, que ficariam ameaçadas.
Locke também trata de um apetite natural do homem de viver em sociedade, que é
possibilitado pela linguagem, assim como descreve Grotius. O homem abriria mão de sua
liberdade natural para possuir segurança em suas propriedades lato sensu - tanto as inatas
quanto as adquiridas. Isso seria garantido por um conjunto de leis positivas, baseadas nas leis
da natureza, e por um Estado, que asseguraria seu cumprimento. Locke, todavia, se coloca
contra um Estado resumido a um governante tirano que atua conforme suas vontades e ignora
as necessidades do povo. Por isso, ele diz que a população, nessas situações, tem o direito de
resistência contra tal tirano.
A obra de Grotius teve significativa importância no sentido de efetuar uma cisão entre
direito e teologia, abrindo o caminho para que filósofos posteriores desenvolvessem a ideia de
um direito natural laico. Locke foi um dos que seguiu essa trilha deixada por Grotius, instituindo
um direito em consonância com os valores do direito natural, tanto em sua teoria da
propriedade, quanto em suas teorias sobre formação social e sobre o direito de resistência,
importantíssimas para as revoluções liberais dos séculos seguintes. Sobre o jusnaturalismo
moderno, comenta Celito Meier:
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 321-346, mai/ago, 2016.
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O ideal jusnaturalista do século XVII e XVIII marca a história política. Por exemplo, a Declaração da Independência dos Estados Unidos da América (1776), inspirada na doutrina do direito natural, afirma que todos os homens são possuidores de direitos inalienáveis, como o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Outro exemplo muito ilustrador é a Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão (1789), de natureza genuinamente naturalista. Nessa declaração, que constitui um dos primeiros atos da Revolução Francesa, proclama-se como “direitos naturais”, dentre outros, a liberdade, a igualdade e a propriedade. (MEIER, 2010, p. 295).
Posteriormente, com o surgimento do positivismo jurídico, poder-se-ia pensar que não
fazia mais sentido recorrer ao direito natural, raciocínio esse, inapropriado. Se, por um lado, o
direito natural deixa de ser a única forma possível de fundamentação do direito, não sendo mais
usado como base para se verificar a validade do direito positivo, por outro, ele mantém sua
importância como ideologia do Direito. Como assevera Bobbio: “Em outras palavras, o
jusnaturalismo desempenha bem sua função, quando se apresenta como uma ideologia do
direito; o positivismo, quando se apresenta como teoria do direito.” (BOBBIO, 1998, p. 8).
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PORTO, G.M. Produção do conhecimento a partir da Hermenêutica Jurídica
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Produção do Conhecimento a partir da Hermenêutica Jurídica Production of Knowledge from the Legal Hermeneutics
Giovane Moraes Porto1
Resumo: No intuito de analisar como se dá a produção de conhecimento e a produção de uma
“verdade”, principalmente no âmbito jurídico, a presente pesquisa visa fazer uma análise, a partir da arque-genealogia do saber em Michel Foucault, sobre as principais concepções da hermenêutica. Assim, o objetivo desta pesquisa é estabelecer no que consiste a hermenêutica e quais as consequências dessa produção do saber feita pelo ser humano. A metodologia utilizada será de caráter hipotético-dedutivo a partir de pesquisa bibliográfica, principalmente no que concerne nas construções teóricas do filósofo Michel Foucault. É esperado chamar atenção dos operadores do direito para a importância do debate sobre a produção, a invenção, de uma verdade por meio do discurso racional para se verificar a relação poder-saber exercido por meio de discursos estratégicos que visam, por meio da produção do saber, a construção de uma sociedade dócil e útil. Palavras-chave: Hermenêutica. Conhecimento. Michel Foucault. Giro Linguístico. Poder-saber.
Abstract: The purpose of analyze how is the production of knowledge and the production of a "truth",
mainly in the legal field, the present study aims to analyze, from the arch-genealogy of knowledge in Michel Foucault, on the main concepts of hermeneutics. So the goal of this research is to provide what is hermeneutics and which ones consequences of such knowledge production made by humans. The methodology used is hypothetical-deductive based on literature research, especially regarding the theoretical constructions of the philosopher Michel Foucault. It is expected bring attention of law professionals about the importance of the debate on the production, invention of a truth through rational discourse to verify the relationship power-knowledge exercised through strategic discourses aimed, through the production of namely the construction of a docile and useful society. Keywords: Hermeneutics. Knowledge. Michel Foucault. Linguistic turn. Power-knowledge.
1Giovane Moraes Porto - Graduando em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Bolsista PIBIC/CNPq. Sob orientação do Prof. Dr. Nelson Finotti Silva. Integrante e monitor do grupo de pesquisa Constitucionalização do Direito Processual (CODIP), vinculado ao CNPq-UNIVEM. Contato: e-mail: [email protected]
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 347-364, mai/ago, 2016.
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Introdução:
O tema foi escolhido, porque um dos grandes obstáculos da ciência jurídica é a busca por
métodos de produção de conhecimento que garantam uma racionalidade ao sistema jurídico e
legitimem cada decisão judicial, a fim de manter a aceitação dos jurisdicionados sobre as
“verdades” produzidas pelo conhecimento jurídico.
Assim, em um primeiro momento, este estudo examinará no que consiste a hermenêutica,
qual o seu conceito, sua natureza. Após, serão verificadas as principais concepções da
hermenêutica e suas consequências para a forma jurídica. Tendo como principal referencial a
arqueologia das estruturas jurisdicionais do teórico Michel Foucault.
Ao final, será possível visualizar como se dá de fato a produção do conhecimento e a
relação que se estabelece entre os sujeitos na hora de atribuição de significado a um objeto, com
base na hermenêutica.
No mais, esta pesquisa não tem a pretensão de esgotar o tema, mas apenas de trazer
informações que instiguem o debate, notadamente, sobre a produção do conhecimento na área
jurídica e a relação poder-saber que deriva de discursos estratégicos. A metodologia utilizada foi
de caráter hipotético-dedutivo utilizando a pesquisa bibliográfica como fonte de observação
teórica.
1. Hermenêutica e Teoria do Conhecimento
Muito se tem debatido – durante toda a história da filosofia, da teoria do conhecimento –
o que é o “conhecimento” e como se da a sua produção. Atualmente entendemos que o
conhecimento serve para compreendemos o mundo e a nós mesmos. Conhecer é uma relação que
os sujeitos estabelecem com os objetos. Portanto, analisar-se-á como se dá a justificação do sentido
dos objetos cognoscíveis na história da hermenêutica.
O termo “hermenêutica” deriva do mito grego que predica sobre o Hermes, um semideus
“a quem era atribuído o dom de interpretar a vontade divina” (BETIOLI, 2000, p. 329).
Devido a este dom fazia a comunicação, a mediação, entre os deuses e os mortais. Por isso
– pelo fato de Hermes interpretar a vontade divina –, a hermenêutica é utilizada como sinônimo
de interpretação.
PORTO, G.M. Produção do conhecimento a partir da Hermenêutica Jurídica
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A palavra hermenêutica deriva do grego hermeneuein, adquirindo vários significados no curso da história. Por ela, busca-se traduzir para uma linguagem acessível aquilo que não é compreensível. Daí a idéia de Hermes, um mensageiro divino, que transmite – e, portanto, esclarece – o conteúdo da mensagem dos deuses aos mortais. Ao realizar a tarefa de hermeneus, Hermes tornou-se poderoso. Na verdade, nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que Hermes disse acerca do que os deuses disseram. Trata-se, pois, de uma (inter)mediação. Desse modo, a menos que se acredite na possibilidade de acesso direto às coisas (enfim, à essência das coisas), é na metáfora de Hermes que se localiza toda a complexidade do problema hermenêutico. Trata-se de traduzir linguagens e coisas atribuindo-lhes um determinado sentido. (STRECK, 2008, p. 128).
Contudo, a concepção de hermenêutica como sendo mera interpretação é muito superficial.
Na área jurídica este entendimento é ampliado pela maioria dos autores. Por exemplo, para Betioli
(2000, p. 330), “a Hermenêutica Jurídica vem a ser a teoria científica da arte de interpretar, aplicar
e integrar o direito”.
A diferença entre a hermenêutica e a interpretação firma-se no conceito de que aquela
possui um caráter mais teórico, enquanto que esta possui um caráter mais prático (BETIOLI, 2000,
p. 330).
Utilizando-se dos termos hartianos (HART, 2007), a hermenêutica está na perspectiva do
observador que, no conhecimento, se localiza como o sujeito externo, ao passo que a interpretação
está na perspectiva do participante que, por sua vez, se localiza no conhecimento como o sujeito
interno.
A hermenêutica pode servir para interpretar e compreender qualquer objeto o qual seja
passível à elaboração de um juízo lógico, por isto ela está diretamente relacionada com a teoria do
conhecimento2, uma vez que por meio da hermenêutica é que se constrói e se compreende o saber
sobre o objeto cognoscível. “Sempre que se tem um ato de conhecimento, é inafastável a presença
de três elementos necessários: o eu que conhece, a atividade que o eu cognoscente desenvolve e o
objeto a que se dirige a atividade desenvolvida pelo eu” (FALCÃO, 1997, p. 13). Sendo assim,
verificamos que a hermenêutica não é um termo exclusivo da ciência jurídica, mas inerente a toda
2 Por teoria do conhecimento, por se tratar de uma crítca a partir de Michel Foucault, pode-se considerar o ponto de
vista kantiano, em relação a possibilidade do conhecimento pelo sujeito a partir de sua experiência, ou seja, as faculdades humanas que possibilitam a experiência com base na razão, que significa o alcance da experiência por meio da sensibilidade e do entendimento, nas palavras de Kant (2001, p.65) “Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência; efetivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em ação a nossa capacidade de conhecer senão os objetos que afetam os sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las, transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento que se denomina experiência? Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início.”
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 347-364, mai/ago, 2016.
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construção do saber.
A Hermenêutica, bem como a atividade interpretativa, por ela pesquisada, desvendada e orientada, apresenta [...] profundas vinculações com a teoria do conhecimento. Aquela sem esta não conseguirá sequer ultrapassar os umbrais do saber confiável, estacionando apenas no pátio dos meros palpites apedêuticos ou só pretensamente filosófico (FALCÃO, 1997, p. 87).
Portanto, sem a teoria do conhecimento a hermenêutica não seria capaz de produzir,
construir, um conhecimento confiável, legítimo, capaz de pertencer a “ordem do discurso”. Um
saber construído sem a legitimação da teoria do conhecimento é descartado do plano científico e
desconsiderado, atribuindo, até mesmo, a qualidade de falso saber, “não nos encontramos no
verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada
um de nossos discursos” (FOUCAULT, 1999, p. 35).
O conhecimento produzido pela hermenêutica deve ser justificado com base na teoria do
conhecimento para poder produzir um discurso qualificado como verdadeiro. A teoria do
conhecimento exerce um controle sobre a produção do discurso, se o discurso não satisfizer certas
exigências ele será desqualificado e excluído. A regulamentação do discurso, as regras do discurso,
o caráter científico, excluem tudo o que não está dentro deste quadro que delimita a ordem que o
discurso deve respeitar.
[...] a Hermenêutica [...] não pode fugir aos seus compromissos perante o saber gnosiológico, devendo ir buscar na teoria do conhecimento os subsídios necessários a que organize a interpretação e, ao mesmo tempo, lhe forneça o instrumental conducente à veracidade, que se não confunde com imobilismo exegético, com indiferença às circunstâncias, com a idolatria da experiência ou com o maniqueísmo do intelecto. (FALCÃO, 1997, p. 93).
Independente da teoria do conhecimento que embasa o saber produzido pela hermenêutica,
este deve ser legitimado para estar de acordo com a “ordem do discurso” e ter a aceitação deste
saber como verdadeiro. A relação entre o eu que conhece e o objeto que é conhecido não é uma
relação de racionalidade, mas uma relação de guerra, de lutas, de batalhas de poder, a relação é
uma relação de poder-saber, ou seja, a fundamentação do poder pelo saber.
E assim como entre instinto e conhecimento encontramos não uma continuidade, mas uma relação de luta, de dominação, de subserviência, de compensação etc., da mesma forma, entre o conhecimento e as coisas que o conhecimento tem a conhecer não pode haver nenhuma relação de continuidade natural. Só pode haver uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, de violação. O conhecimento só pode ser uma violação
PORTO, G.M. Produção do conhecimento a partir da Hermenêutica Jurídica
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das coisas a conhecer e não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas. (FOUCAULT, 2003, p. 18).
A hermenêutica jurídica é o meio responsável por fazer a comunicação do sistema jurídico
com a sociedade, ou, em termos habermasianos (HABERMAS, 1997), fazer o fluxo entre o sistema
do Direito e o Mundo da Vida. O ordenamento jurídico não se aplica sozinho à sociedade, necessita
do hermeneuta para fazer esta mediação – assim como Hermes fazia a mediação entre os homens
e os deuses – e isto se dá por meio da produção de saber exercido por meio da hermenêutica, que
só será válida para a forma jurídica se estiver conforme a “ordem do discurso”.
Não há exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade. Isso é verdadeiro em toda sociedade, mas acho que na nossa essa relação entre poder, direito e verdade se organiza de um modo muito particular. (FOUCAULT, 1999, p. 28-29).
Portanto, poder-se-á conceituar hermenêutica como a ciência acerca da interpretação e
compreensão do objeto cognoscível, a fim de construir um conhecimento por meio de um discurso
de verdade que atribui significado por meio de uma relação de poder-saber.
2. Concepções da Hermenêutica
No presente tópico analisar-se-á as principais concepções da hermenêutica – concepção
naturalista ou essencialista, concepção convencionalista e o giro linguístico – para verificar como
se justifica o sentido dos objetos cognoscíveis – na área jurídica: dos fatos e dos textos
(enunciados) normativos – na história do pensamento ocidental, afim de analisar a relação entre a
construção do saber dos juristas e das teorias do conhecimento.
Por que o pensar dos juristas seria diferente do pensar do filósofo? Por que o jurista teria um diferente “acesso” à “realidade” ? Vejam-se, por exemplo, algumas questões absolutamente intrigantes: se, no campo da filosofia, já não se acredita em essências, qual é a razão de os juristas continuarem a acreditar na “busca da verdade real”? Ou: se a filosofia da consciência foi contestada e superada pelas diversas correntes linguísticas, por que razão no campo jurídico se continua a apostar na “consciência de si do pensamento pensante”? (STRECK, 2013, p. 10).
O conhecimento jurídico deve estar relacionado com as construções da filosofia, deve
acompanhar o desenvolvimento das concepções da filosofia da linguagem, da teoria do
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 347-364, mai/ago, 2016.
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conhecimento e da hermenêutica. O direito e a filosofia devem se relacionar a fim de constatar o
verdadeiro funcionamento dos institutos.
Desde o início, houve um compromisso da filosofia com a verdade; a filosofia sempre procurou esse olhar que desvendasse o que as coisas são. Talvez a obra que melhor simbolize essa procura angustiante seja Crátilo, escrito por Platão no ano de 388 a.C. Esse diálogo pode ser considerado a primeira obra de filosofia da linguagem da história da humanidade. (STRECK, 2013, p. 11).
A “verdade” sempre foi objeto de estudo da filosofia, tentando compreender a relação entre
homem e objeto, como o homem compreende, conhece, os objetos. As duas concepções mais
debatidas são a do naturalismo ou essencialismo e do convencionalismo, estas duas concepções já
estavam presentes na obra Crátilo de Platão, ou seja, desde a Grécia antiga este debate já existia.
Platão, pela boca de Sócrates, contrapõe dialeticamente duas teses: o naturalismo, pela qual cada coisa tem nome por natureza (o logos está na physis), tese defendida no diálogo por Crátilo, e o convencionalismo, posição sofisticada defendida por Hermógenes, pela qual a ligação do nome com as coisas é absolutamente arbitrária e convencional, é dizer, não há qualquer ligação das palavras e as coisas. (STRECK, 2013, p. 11).
A concepção naturalista – ou essencialista – entende que o mundo é interpretado, é
conhecido, pelo paradigma da essência. O objeto seria detentor de uma essência, o sujeito
cognoscente para compreendê-lo apenas extrairia esta essência, uma relação de entre sujeito-
objeto. Por natureza o objeto já seria possuidor de um significado, portanto todos os intérpretes se
interpretassem o objeto de maneira “correta” chegariam ao mesmo significado, conheceriam a
substância do objeto.
Ao passo que a concepção convencionalista entende que o mundo é conhecido,
interpretado, pelo paradigma da consciência, o sujeito cognoscente para compreendê-lo atribuiria
de forma solipsista o significado ao objeto, permanecendo a relação sujeito-objeto. O significado
está na consciência do intérprete que apenas teria de impor este significado ao objeto, que seria
uma tábula rasa, não possuiria um significado por natureza, necessita de um sujeito solipsista para
conferir um significado. Nesta concepção, para o significado ser válido, não precisa de uma
linguagem intersubjetiva, um intérprete já é o suficiente para conferir o significado. Não precisa
da aceitação pelos demais.
Ao enfoque essencialista da língua opõe-se uma concepção convencionalista, em geral defendida hoje pela chamada filosofia analítica (cf. Ayer, 1978). A língua é vista como
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um sistema de signos, cuja relação com a realidade é estabelecida arbitrariamente pelos homens. Dado este arbítrio, o que deve ser levado em conta é o uso (social ou técnico) dos conceitos, que podem variar de comunidade para comunidade. (FERRAZ JR. 2001, p. 36).
A partir do paradigma da essência o texto (enunciado) normativo, que é um dos objetos da
ciência dogmática do direito, possuiria um significado intrínseco a sua existência, ou seja, desde a
sua criação o texto normativo já seria possuidor de um significado e os aplicadores do direito
diante de um caso concreto apenas teria de aplicá-lo.
O paradigma da essência foi superado na modernidade pelo arquétipo da consciência. Na
modernidade o conhecimento se daria pela razão inerente ao sujeito que atribuía um significado
ao objeto analisado, seria subjetivo à como o mundo se apresenta a cada um. O sentido não esta
mais no objeto, mas na consciência de quem o analisa. Nesta corrente o Juiz é senhor do sentido
da lei, pois ele, por meio da decisão, quem atribuiria significa à lei.
Já a ruptura com a filosofia da consciência – esse é o “nome” do paradigma da subjetividade – dá-se no século XX, a partir do que passou a ser denominado giro linguístico. Esse giro “liberta” a filosofia do fundamentum que, da essência, passara, na modernidade, para a consciência. (STRECK, 2013, p. 14).
Com o giro linguístico (linguist turn), formulado por Wittgenstein e Heidegger, aqui
analisado a partir de Lênio Streck (2013, p. 14), o objeto só adquire sentido por meio da linguagem
exercida entre os sujeitos, passa a se ter, portanto, não mais uma relação entre sujeito-objeto, mas
sim entre sujeito-sujeito. Esta concepção, além da relação entre hermenêutica e teoria do
conhecimento, atrai a relação entre a hermenêutica e a filosofia da linguagem, pois por meio da
linguagem é que se produzirá o saber sobre o objeto.
[...] no linguist turn, a invasão que a linguagem promove no campo da filosofia transfere o próprio conhecimento para o âmbito da linguagem, onde o mundo se descortina; é na linguagem que se dá a ação; é na linguagem que se dá o sentido (e não na consciência de si do pensamento pensante). (STRECK, 2013, p. 14).
Sob o amparo da concepção do paradigma linguístico o texto normativo é um mero
aglomerado de símbolos. Só na interpretação/aplicação ao caso concreto é que o aplicador do
direito lhe atribui um significado, o produto desta interpretação do texto normativo e dos fatos do
caso concreto gera a norma jurídica, a partir da norma jurídica deriva-se a norma de decisão que é
a proferida pelo magistrado.
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Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte. (ÁVILA, 2005, p. 30).
Uma norma de decisão só será valida se derivar de um intenso debate contraditório entre
as partes e justificação racional da decisão por parte do magistrado, de modo que se um juiz decidir
apenas de acordo com a sua consciência essa decisão é inválida.
3. Hermenêutica e Filosofia da Linguagem
O ato de julgar nunca poderá ser um ato de vontade, pois a partir do linguist turn a
justificação do sentido não está mais no objeto, ou seja, o objeto não é detentor de uma essência
natural em que o interprete apenas extrairia esta essência do objeto para compreendê-lo (Paradigma
da essência), nem a consciência é detentora desta essência que seria atribuído ao objeto analisado,
de modo subjetivo e relativo à consciência de cada ser (paradigma da consciência), mas a
linguagem, que em um processo é exercido pelas partes, é que atribuirão uma justificação ao
sentido do objeto em análise.
De um lado, a compreensão do significado como o conteúdo conceptual de um texto pressupõe a existência de um significado intrínseco que independa do uso ou da interpretação. Isso, porém, não ocorre, pois o significado não é algo incorporado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende precisamente de seu uso e interpretação, como comprovam as modificações de sentidos dos termos no tempo e no espaço e as controvérsias doutrinárias a respeito de qual o sentido mais adequado que se deve atribuir a um texto legal. (ÁVILA, 2005, p. 31).
O significado do texto é revivido e renovado sempre, sem cessar seu sentido. Por isso que
o texto pode permanecer o mesmo por anos, mas seu significado, sua interpretação, pode mudar
como aconteceu com o termo “mulher honesta” que vigorou de 1942 a 2005 no Código Penal, o
termo permaneceu o mesmo, mas com as transformações da sociedade seu significando foi
sofrendo mudanças.
Todavia, a constatação de que os sentidos são construídos pelo intérprete no processo de interpretação não deve levar à conclusão de que não há significado algum antes do
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término desse processo de interpretação. Afirmar que o significado depende do uso não é o mesmo que sustentar que ele só surja com o uso específico e individual. Isso porque há traços de significado mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem. Wittgenstein refere-se aos jogos de linguagem: há sentidos que preexistem ao processo particular de interpretação, na medida em que resultam de estereótipos de conteúdos já existentes na comunicação linguística geral. Heidegger menciona o enquanto hermenêutico: há estruturas de compreensão existentes de antemão ou a priori, que permitem a compreensão mínima de cada sentença sob certo ponto de vista já incorporado ao uso comum da linguagem. (ÁVILA, 2005, p.32).
Os elementos fáticos do processo, que são anteriores ao conhecimento, só poderiam possuir
algum sentido após o debate entre as partes, de maneira que a interpretação dos fatos assim como
do texto normativo nunca podem ser matérias exclusivas do magistrado. Qual a finalidade das
partes, do contraditório, se ao final estará tudo nas mãos do poder discricionário do juiz?
Sendo assim, estabelecido um quadro mais problemático, descortina-se a formatação do processo civil à luz de um forte contraditório, de um contraditório que assegure às partes o direito de efetivamente influir na construção da decisão judicial, de um contraditório que alcance também a figura do juiz, estabelecendo o dever de debate sobre os temas que darão suporte à construção da decisão judicial. (ROCHA, 2015, p. 298).
As Normas de textura aberta, principalmente os princípios, só acrescentam poder ao
subjetivismo do juiz, pois, possuem uma moldura semântica ampla. Atualmente no Direito
Constitucional os princípios são utilizados como “álibis persuasivos”. Portanto deve haver limites
a esta discricionariedade e a possibilidade de se delimitar, restringir, o quadro semântico (quadro
interpretativo).
A norma imposta pela autoridade é um poder essencialmente normalizador, pois regula a
conduta do indivíduo por meio de um juízo de valor. Determina o que é “normal”, introduz no
indivíduo regras comportamentais a serem seguidas e caso não haja conforme o prescrito a
“anormalidade” deve ser controlada por meio de técnicas disciplinares.
O conhecimento é uma invenção do homem para dominar o outro, para controlar, para
utilizar o outro a fim de concretizar suas vontades. Quem possui o saber, quem impõe o discurso
racional, quem justifica racionalmente uma decisão, possui o poder de dominação. A história do
conhecimento está diretamente relacionada com a história das relações de poder.
Não há, portanto, no conhecimento uma adequação ao objeto, uma relação de assimilação, mas, ao contrário, uma relação de distância e dominação; não há no conhecimento algo como felicidade e amor, mas ódio e hostilidade; não há unificação, mas sistema precário de poder. (FOUCAULT, 2003, p. 22).
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No ordenamento jurídico brasileiro a necessidade de justificar as decisões judiciais é um
imperativo constitucional, previsto no artigo 93, IX da CRFB de 1988, e o novo Código de
Processo Civil (lei 13.105/2015) em seu artigo 489 reafirma este imperativo e estabelece os
elementos necessários para que uma decisão seja considerada como devidamente fundamentada.
A justificação das decisões judiciais encerra um imperativo constitucional, de modo que a referência ainda que rápida às principais constituições do segundo pós-guerra bem demonstra tal assertiva (Constituição da Itália, art. 111; Constituição da Espanha, art. 120.3; e Constituição de Portugal, art. 205). Na Alemanha, não obstante a ausência de texto expresso, a exigência de fundamentação é extraída do art. 103.1, mais claramente do direito que qualquer cidadão tem de ser ouvido em juízo. (ROCHA, 2015, p. 288).
Sendo assim, o controle da atividade judicial e sua legitimação se dão por meio da
fundamentação, portanto o juiz não mais pode justificar suas decisões exclusivamente em sua
autoridade, como era no positivismo, é necessária uma fundamentação racional. O que passa a
justificar a decisão é a “ratio” e não mais a “auctoritas”. Este imperativo constitucional tem como
finalidade evitar decisões arbitrárias e ter maior aceitação por parte da sociedade, a fim de que
realizem a imposição feita na decisão.
Através das teorias da argumentação jurídica, a filosofia jurídica penetra no coração do discurso jurídico para tornar explícita a referência às razões morais que os juízes sempre invocaram para justificar suas decisões. Elas deixam claro que a validade de uma regra jurídica não pode se reduzir à sua autoridade e, mais, permitem reconciliar reason e fiat [Fuller 1946], ratio e auctoritas [Bergholtz 1990], ou facticidade e validade [Habermas 2005-a] em todo e qualquer ordenamento jurídico: uma boa teoria jurídica será aquel que se volte para os fundamentos, para as razões que justificam uma decisão jurídica como correta, que são em grande parte razões de natureza moral (BUSTAMANTE, 2012, p. 186).
Portanto, a fundamentação racional é uma necessidade da soberania, da classe dominante,
para fazer com que os indivíduos sujeitos às imposições da forma jurídica ajam de acordo com o
prescrito e não se rebelem contra esta dominação exercida por meio das disciplinas, mantém os
indivíduos dóceis e úteis.
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. (FOUCAULT, 2009 p. 133-134).
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Quanto à fundamentação das decisões jurídicas que imputam os mecanismos de disciplinas
aos indivíduos que agiram de modo diverso ao imposto pela forma-direito. Por muitas vezes o
julgador utiliza de “álibis persuasivos” devido à textura aberta da linguagem para justificar suas
decisões. Estes mecanismos permitem justificar entendimentos completamente opostos com base
no mesmo texto normativo e o próprio ordenamento jurídico permite esta prática devido aos textos
normativos que possuem molduras semânticas ou quadros interpretativos, muito amplos.
[...] essa perspectiva é perceptível pela utilização descriteriosa dos princípios, transformados em “álibis persuasivos”, fortalecendo-se, uma vez mais, o protagonismo judicial (nas suas diversas roupagens, como o decisionismo, o ativismo, etc.). O uso da ponderação é também nesse ramo do direito outro sintoma de uma espécie de “constitucionalismo da efetividade”, pelo qual o mesmo “princípio” é utilizado para sustentação de teses antitéticas. (STRECK, 2013, p. 51).
Utilizando-se dos “álibis persuasivos” o julgador pode fundamentar praticamente qualquer
coisa, a fundamentação é secundária, primeiro ele decide, depois ele busca um “princípio” para
fundamentar, ou seja, é um caráter finalístico, e esta prática implica em uma ampla
discricionariedade na hora de decidir.
Porém, não podemos confundir arbitrariedade com discricionariedade, desde o positivismo
o julgador já podia decidir de forma discricionária, não precisava justificar sua decisão, o mero
fato de sua autoridade já justificava sua decisão, mas o julgador tinha que atribuir um sentido ao
texto normativo dentro do quadro semântico, esta atribuição, porém, era arbitrária, pois se
considerava um mero ato de escolha que o julgador tinha liberdade para realizar.
No positivismo pós-hartiano, o julgador pode decidir de forma discricionária, ou seja,
dentro dos limites previstos pela forma-direito e pelos fatos do caso concreto (dados da realidade).
“Colocam-se, portanto, dois limitadores: (i) o texto da norma; e (ii) a interpretação dos fatos (dados
da realidade) na revelação da norma jurídica”. (ROCHA, 2015, p. 292).
Contudo a discricionariedade que possui o julgador é muito ampla, devido, ao que dissemos
anteriormente, a textura aberta da linguagem que permite atribuições distintas, e até mesmo
opostas, sobre um mesmo texto, um mesmo aglomerado de signos, portanto o que chamar-se-á de
“álibis persuasivos”. Mas, a atribuição de sentido dentro do quadro semântico não é mais um mero
ato de escolha, conforme já sustentava Kelsen no famoso capítulo VIII de sua insigne obra Teoria
Pura do Direito, o julgador deve justificar racionalmente sua atribuição de sentido, e com a técnica
dos precedentes judiciais o julgador além de justificar sua atribuição de sentido, se houver uma
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decisão anterior contrária em um caso semelhante, deve ainda superar de forma argumentativa o
entendimento anterior.
A formação do direito legítimo [...] se dá com a participação, na formação do direito, de todos os concernidos, ou seja, de todos os cidadãos que podem reivindicar direitos a partir das tematizações feitas dentro da esfera pública política, através do princípio da democracia, do princípio do discurso que sustenta a forma jurídica. (RAMIRO, 2012, p. 112).
Nas decisões judiciais onde o julgador utiliza de álibis persuasivos é como se, ao formular
a decisão, todos os códigos, livros doutrinários fossem revogados, prevalecendo a consciência do
julgador. O paradigma é o do livro O Processo de Kafka (2006).
4. Limites à Discricionariedade Judicial
O julgador não pode decidir do jeito que quiser que forma totalmente livre (arbitrariedade),
mas que ele tem que decidir dentro dos limites do sistema jurídico (discricionariedade), expõem,
também, sobre a necessidade de justificação das decisões judiciais, como forma de atribuir
racionalidade no julgamento e legitimá-lo, diminuindo o caráter subjetivo da decisão, mas esta
discricionariedade possui três importantes limites: a moldura semântica do texto, os fatos e a
experiência jurídica, as decisões anteriores do judiciário sobre casos semelhantes.
A interpretação do texto (enunciado) normativo, não é ilimitada, não se pode falar qualquer
coisa sobre qualquer coisa. O texto possui uma limitação semântica para a interpretação, o que
Hans Kelsen chama de “moldura semântica”, esta moldura não é fixa, imutável, ela pode sofrer
variações de acordo com o uso destes textos por parte da sociedade. O problema dos textos de
cláusulas abertas e os princípios é que estas molduras semânticas são muito amplas, cabendo
diversas atribuições de sentido que podem ser até mesmo antagônicas.
Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. (KELSEN, 1991, p. 366).
A atribuição de sentido ao texto normativo deve ser uniforme, deve ter uma atribuição do
poder judiciário e não deixar a cargo de cada juiz em cada decisão, sob pena de ferir a isonomia,
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a segurança jurídica, a coerência do direito, a integralidade do direito e a previsibilidade das
decisões judiciais (BARBOZA, 2014, p. 194).
Outra característica do giro linguístico é a de que, a atribuição de significado dentro do
quadro semântico deve provir do intersubjetivismo (relação sujeito-sujeito) e não apenas da
vontade de um sujeito solipsista (relação sujeito-objeto) como propõe a concepção
convencionalista. Um limite importante na hora de se atribuir significado ao texto normativo no
caso em concreto são os dados da realidade, os fatos peculiares àquele caso.
Os dados da realidade na revelação da norma jurídica: a norma produzida não apenas a partir do texto normativo, mas também a partir dos elementos do caso ao qual será aplicada (GRAU, 2009, p. 97). Não existe interpretação constitucional independente de problemas concretos (HESSE, 1998, p. 62). (ROCHA, 2015, p. 293).
A experiência jurídica pode ser vista como um importante limitador para a decisão judicial,
sendo, dentre os três, o mais importante, pois na hora de se julgador um caso concreto não pode
desconsiderar ou contrariar as decisões anteriores proferidas em casos semelhantes. Portanto ao se
atribuir significado ao texto normativo, esta atribuição não pode ser diferente das atribuições feita
anteriormente a casos semelhantes. A atribuição só pode ser diferente se superar a atribuição
anterior.
[...] os juízes em cada nova decisão, incorporam o material normativo agregado pelas decisões anteriores, como que fazendo uma síntese compreensiva do conhecimento acumulado pelo tribunal nos julgamentos anteriores, sem ter que, necessariamente, aceitar o que os juízes anteriores tenham predeterminado, mas sabendo que sua tarefa de julgar passa pela reconstrução dos princípios que justificaram os precedentes judiciais. (BUSTAMANTE, 2012).
Portanto, verificamos que a hermenêutica é o meio necessário para legitimar a teoria do
direito contemporâneo – o positivismo pós-hartiano – e que dentre as concepções da hermenêutica
a que prevalece atualmente é a concepção formulado por Wittgeinstein e Heidegeer, a do giro
linguístico, demonstramos como que se dá a produção do significado dos objetos cognoscíveis, no
caso do direito, como que se dá a produção de significado dos textos normativos. Concluímos que
a atribuição de sentido, no âmbito jurídico, se dá por meio da interpretação/aplicação, por meio de
uma decisão judicial racionalmente justificada por meio de um discurso-argumentativo
(linguagem).
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Ocorre que esta uniformização de sentido decorrente do intersubjetivismo, pretendida pelo
linguist turn, pode configurar uma imposição de sentido, uma violência simbólica ao texto
normativo, uma relação de poder-saber.
A uniformização do sentido tem a ver com um fator normativo de poder, o poder de violência simbólica (cf. Bourdieu e Passeron, 1970:18). Trata-se do poder capaz de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da própria força. (FERRAZ JR. 2001, p. 272).
Por mais que haja mais de um significado possível, ao impor um significado a fim de
uniformizar o entendimento, os demais significados são desconsiderados, colocados à margem,
excluídos da ordem do discurso, há uma relação de poder na imposição de significado aos textos
normativos.
E, de outro lado, somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é norma; é discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros; que trazem consigo efeitos específicos de poder. Portanto: regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade. Ou ainda: regras de poder e poder dos discursos verdadeiros. (FOUCAULT, 1999, p. 29).
Apesar de todas as mudanças de paradigmas decorrentes do giro linguístico, a violência
sobre o objeto, a relação entre direito, mecanismo de poder e verdade permanecem, uma vez que
permanece a legitimação da forma jurídica. A produção de conhecimento é uma imposição, uma
invenção do homem, e por meio desta invenção estabelece a maneira “normal” de viver, de agir.
Desse modo, a moderna sociedade capitalista deixa progressivamente de se regrar por uma ordenação estritamente legal, para se transformar numa sociedade de vigilância e regulamentação, em que a norma ultrapassa em importância conferida à estrita legalidade jurídica clássica. Surge assim, a partir do século XIX, um tipo de configuração de poder – complementação entre disciplina e regulamento –, cuja tarefa se especificará, cada vez mais, em termos de ajustamento à norma, pelo agenciamento de ‘mecanismos contínuos, reguladores e corretivos’. (GIACÓIA JR, 2004, p. 11).
Portanto, mesmo com o desenvolvimento das concepções da hermenêutica, a utilização do
poder disciplinar pela forma jurídica permanece, pois alguém sempre terá que decidir sobre o
significado, sobre a produção do saber, a relação de luta, de guerra, de discursos estratégicos
prevalece. A imposição de um significado como o “correto”, como o “verdadeiro” só faz com que
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o indivíduo se ajuste à norma, seja respeitando a norma ou sendo corrigido pelas disciplinas por
ter desrespeitado a norma.
A sociedade contemporânea é uma sociedade de vigilância e regulamentação, pois
determina a norma, determina o “normal”, estabelece como cada um deve agir e vigia a conduta
singular a fim de corrigir as “anormalidades”, ou seja, o “normal” ou o “anormal” não é natural,
mas uma invenção social, invenção que possui força, possui um dever de dever de obediência, com
base em uma racionalidade, em uma justificação intersubjetiva por meio da linguagem.
Independente da concepção utilizada para produzir o conhecimento, o conhecimento
sempre será antinatural, sempre será uma violência sobre o objeto e uma imposição por meio de
uma relação de poder-saber, e quando este conhecimento é utilizado para legitimar a forma jurídica
– que necessita de um conhecimento legitimador para exercer o dever de obediência – estará
legitimando os mecanismos disciplinares e a dominação sobre os sujeitos de direito.
Considerações Finais
O estudo acerca da hermenêutica é de extrema relevância para a teoria jurídica, uma vez
que é por meio dela que irá ocorre a produção do conhecimento e a imputação deste conhecimento
em uma norma, imputação esta que só será legítima se estiver de acordo com a concepção
hermenêutica.
Três teorias principais estabelecem como que o indivíduo conhece um objeto, a teoria da
concepção essencialista ou naturalista, a teoria convencionalista e o giro linguístico (linguist turn).
A concepção essencialista afirma que o objeto possui uma essência por si mesmo, ou seja, pelo
mero fato de existir ele será possuidor de um significado, cabendo apenas ao hermeneuta fazer a
extração correta desta essência. A teoria convencionalista que afirma que o significado está na
consciência do intérprete, bastando apenas que arbitrariamente atribua o significado ao objeto
cognoscível.
Prevalece atualmente a teoria do giro linguístico (linguist turn), onde a atribuição de
significado se dá de forma dialética e intersubjetiva. Deve se dar de forma racional, por meio do
discurso-argumentativo, que atribuem o significado, produzindo um conhecimento ao chegarem a
um consenso pela autoridade do argumento e não por um argumento de autoridade.
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Ocorre que, a produção do conhecimento se dará por meio de uma relação de poder-saber.
Por meio de um discurso estratégico exerce uma relação de poder sobre os demais indivíduos, com
um caráter pedagógico de disciplina-los e fazê-los com que ajam conforme seus interesses
subjetivos. Por exemplo, por meio do discurso as ciências humanas conseguem ditar para toda uma
sociedade o comportamento adequado para cada individuo, como devem se comportar.
O conhecimento sempre será contranatural, sempre será uma violência ao objeto, sempre
será um mecanismo de dominação, pois o conhecimento legitima a presença da forma jurídica e a
utilização de mecanismos disciplinares como forma de produção de um corpo social dócil e útil.
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Partial dissolution of limited liability partnershi p in the light of new CPC: a critic vision of the legislation
Isabela Salomon Reis1
Resumo: Versa o presente trabalho sobre uma análise crítica do procedimento especial de
dissolução parcial de sociedade estabelecido pelo novo Código de Processo Civil, em seus artigos 599 e seguintes. Analisar-se-á, dessa forma, a terminologia adotada pelo poder legiferante, as inovações trazidas pelo novel Códex, bem como a solução para temas controvertidos positivada pelo legislador pátrio, tais quais à possibilidade de dissolução parcial das sociedades anônimas fechadas e à legitimidade ativa do ex-cônjuge para pleitear a apuração de haveres. Ademais, destacar-se-á possíveis novos debates que surgirão em virtude das imprecisões técnicas presentes nos dispositivos em estudo, tal qual a necessidade ou não da sociedade figurar no polo passivo da ação de dissolução.
Palavras-chave: Dissolução Parcial. Novo CPC. Abstract: This article presents a critic analysis of the especial procedure of partial dissolution of
limited liability partnership stated in the new CPC. In this paper will be analyzed the terminology used by the legislator, the innovations presented in this new codex, as well as the solutions for controversial subjects positivized by the legislator, such as the possibility of partial dissolution of closely held corporations and that ex-spouses have standing to file appraisal procedure. Will be also presented new possible controversial themes that will arise in reason of technical imprecisions of the new CPC, such as the standing to be sued of limited liability partnership in partial dissolution procedures.
Key Words: Partial Dissolution. New CPC.
1 Graduada em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 365-388, mai/ago, 2016.
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I – Introdução
A Lei nº 13.105/15 (BRASIL, 2015), mais conhecida como o Novo Código de Processo
Civil, que entrou em vigor em 16 de março de 2016, inovou substancialmente a legislação pátria
ao prever em seu Título III, entre os procedimentos especiais, a ação de dissolução parcial de
sociedade.
Tal previsão legislativa, de suma importância no âmbito societário, preencheu uma
lacuna presente em nosso ordenamento jurídico, na medida em que inexistia, até então,
legislação processual específica que regulasse o assunto, tendo a doutrina e a jurisprudência
pátrias se incumbido de realizar a construção do procedimento da dissolução parcial a partir de
princípios gerais do direito societário, tais quais, o da preservação da sociedade e de sua função
social, bem como mediante a aplicação analógica do disposto no Decreto-Lei 1.608/39 acerca
da dissolução e liquidação das sociedades.
Ademais, este novo procedimento especial pôs uma pá-de-cal em inúmeras divergências
doutrinárias, sobretudo, no que tange à possibilidade de dissolução parcial das sociedades
anônimas fechadas e à legitimidade ativa do ex-cônjuge para pleitear a apuração de haveres.
Contudo, em razão de imprecisões técnicas presentes na referida lei, inquestionável que
surgirão, com a aplicação desta, diversas controvérsias, doutrinárias e jurisprudenciais, acerca
do nela disposto, inclusive, no que se refere ao polo passivo da ação de dissolução e à
possibilidade dos sócios remanescentes arcarem com os haveres do sócio retirante.
Desta forma, o presente trabalho visa apresentar, de forma crítica, o novo procedimento
de dissolução parcial de sociedade trazido pelo legislador, pontuando-se os entendimentos
doutrinários consolidados com esta legislação e às inovações trazidas no novo Códex.
II – Da dissolução parcial da sociedade: aspectos gerais.
Antes de adentrar-se nas peculiaridades do procedimento especial previsto no novo
Código de Processo Civil, mister esclarecer a concepção do termo dissolução parcial adotada
pelo legislador pátrio.
Não se olvida, ao estudar a dissolução parcial, que tal expressão sempre foi alvo de
ferozes críticas, inclusive pelo comercialista Hernani Estrella que assinalava:
Daqui rotular-se de dissolução parcial o que, em boa verdade, não o é. De fato, a exatidão do qualificativo salta aos olhos e fere até o senso lógico. Realmente, o escopo da convenção é, declaradamente, indissolver a sociedade, como falar de dissolução parcial? Se a liquidação de quota social se realiza de modo diferente daquele pelo qual
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a liquidação ordinária se processa, como unificar ou reduzir a um mesmo denominador coisas tão díspares? (,,,) Ainda mais, a dissolução da sociedade, propriamente dita, põe termo à sua existência, ao passo que a ruptura do vínculo em relação unicamente ao sócio, só a respeito desta faz cessar o complexo de direitos provindos do aludido vínculo, deixando-o íntegro quanto aos demais associados, sem afetar a vida do ente coletivo. (ESTRELLA, 2004, p.57)
Não obstante a controvérsia quanto à utilização desta terminologia, a mesma foi
consagrada pela doutrina e jurisprudência pátrias, razão pela qual foi adotada na Lei nº
13.105/15 (BRASIL, 2015).
Tal nomenclatura, ademais, pode ser compreendida sob duas concepções. A primeira -
dissolução parcial stricto sensu – desenvolvida no início do século XX, pelos doutrinadores e
tribunais, como forma de equacionar dois princípios, quais sejam, o da liberdade de associação
e o da função social da empresa, pode ser entendida como a possibilidade do sócio retirar-se da
sociedade, sendo seus haveres calculados do mesmo modo como ocorreria na hipótese de
dissolução total da empresa.
Acerca de tal acepção da dissolução parcial, dispõe Priscila M. P. Corrêa da Fonseca:
Consiste esta no decreto de retirada do sócio que requereu a dissolução total, porquanto se entende que a vontade unilateral do sócio não deva prevalecer sobre a utilidade social e econômica representada pela empresa. Todavia, neste caso, como ao sócio assiste o direito de pleitear a dissolução total da sociedade, permite-se que este saia da sociedade recebendo os respectivos haveres calculados do mesmo modo como sucederia na hipótese de acolhimento do pedido de dissolução total. (FONSECA, 2007, p. 57)
Esclarece-se que tal instituto foi desenvolvido com o fito de mitigar o disposto no artigo
335 do Código Comercial revogado, que previa a dissolução total da empresa, e possibilitar a
continuidade da sociedade e o exercício de sua função social, após a saída de sócio insatisfeito.
Em sua segunda concepção – dissolução parcial lato sensu -, a qual foi consolidada no
novo Código de Processo Civil, a dissolução parcial é compreendida como sinônimo de
rompimento parcial do contrato plurilateral da sociedade, englobando, por consequente, os
direitos de retirada e recesso, a exclusão do sócio e a morte deste.
Tal concepção ampla abrange, ainda, a hipótese de dissolução parcial stricto sensu,
razão pela qual o procedimento especial, disposto no artigo 599 e seguintes da Lei nº 13.105/15
(BRASIL, 2015) deverá ser igualmente aplicável a esta situação, apesar de, por evidente
equívoco do legislador, não haver previsão legislativa expressa neste sentido.
Por fim, quanto à nomenclatura adotada no novo Código de Processo Civil, imperioso
observar ainda que, apesar do procedimento especial denominar-se dissolução parcial da
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sociedade, este disciplina igualmente a apuração de haveres do sócio, conforme se depreende
do disposto no inciso II do artigo 599 do novo CPC.
Assim, denota-se que o poder legiferante ampliou o conceito habitualmente utilizado de
dissolução parcial, de modo a abranger tanto a fase de desconstituição do vínculo societário,
quanto a fase posterior de apuração e satisfação do crédito relativo aos haveres do sócio. Desta
feita, o procedimento especial ora estudado poderá ter por objeto: (i) apenas a resolução da
sociedade em relação a um dos sócios; (ii) apenas a apuração dos haveres; ou (iii) a resolução
e posterior apuração dos haveres.
Quanto à possibilidade prevista no art. 599, III, do novo CPC, de se realizar somente a
resolução da sociedade, sem a posterior apuração dos haveres, tem-se que, caso as partes não
possuam um consenso prévio em relação ao valor dos haveres, esta vai em sentido
diametralmente oposto à ideologia defendida pelo legislador pátrio neste novo Códex. Isso
porque, consoante disposto em seu art. 4º, “as partes têm o direito de obter em prazo razoável
a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.”. Ora, o processo judicial que tem
por objeto exclusivamente a resolução da sociedade, quando as partes discordam tanto da
dissolução quanto do valor dos haveres, não soluciona, em sua integralidade, o embate
apresentado pelos litigantes, na medida em que se mostrará necessária, posteriormente, a
propositura de nova ação para discussão dos haveres eventualmente devidos. Dessa forma, a
decisão final proferida no primeiro processo não englobará, em sua integralidade, a atividade
satisfativa a ser conferida pelo Estado às partes.
Neste diapasão, bem expõe Flávio Luiz Yarshell e Felipe do Amaral Matos:
Segundo, é de se duvidar da possibilidade de ser postulada apenas a resolução do contrato, sem a apuração dos haveres. Sob a ótica do interesse de agir, o provimento seria útil. Mas o fato é que, exceto na muito improvável hipótese de a controvérsia se cingir à dissolução (e não abranger os haveres), a limitação objetiva sugerida pela lei deixa o conflito sem resolução integral. (YARSHELL, MATOS, 2012, p. 219)
III – Do procedimento especial: abrangência.
Conforme exposto alhures, o legislador pátrio denominou o novo procedimento
especial, disposto na Lei nº 13.105/15 (BRASIL, 2015), de ação de dissolução parcial de
sociedade, englobando neste a fase de apuração dos haveres eventualmente devidos ao sócio,
bem como o pagamento destes.
Contudo, mediante uma detida análise dos artigos 599 e seguintes do referido diploma,
denota-se a predileção do poder legiferante pela disciplina minuciosa do método de apuração
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dos haveres, conferindo maior enfoque a esta fase, do que à de desconstituição do vínculo
societário.
Observa-se, inclusive, que nos termos do §2º do art. 6032 do mencionado diploma, na
hipótese de haver controvérsia entre as partes quanto à dissolução parcial ou não da empresa,
será observado o procedimento comum. O procedimento especial propriamente dito, presente
no Capítulo V, do Título III, somente será observado, portanto, na fase de liquidação da
sentença, ou seja, para apuração e pagamento dos haveres eventualmente devidos.
Esse é o entendimento explicitado também por Flávio Luiz Yarshell e Felipe do Amaral
Matos:
Mais do que isso, o parágrafo 2º do art. 589 do Projeto é taxativo ao estatuir que, se houver contestação ao pedido de dissolução, adotar-se-á o procedimento comum. Isso sugere que, mesmo ao ver do Legislador, a especialidade não está propriamente na fase na qual se discute a resolução da sociedade, mas na apuração dos haveres, isto é, naquilo que se denominou de “liquidação”. (YARSHELL, MATOS, 2012, p. 216)
Dessa forma, conclui-se que a especialidade do procedimento ora em análise reside
substancialmente na fase de apuração dos haveres, na medida em que a dissolução parcial
propriamente dita tramitará pelo procedimento comum, não apresentando maiores
peculiaridades até se adentrar na liquidação.
Lado outro, a abrangência do procedimento especial em estudo foi igualmente
restringida pelo legislador pátrio, na medida em que este regulou exclusivamente a dissolução
parcial da empresa, não tendo, contudo, previsto, de forma discriminada, a dissolução total da
mesma.
Ao contrário, tal dissolução observará o procedimento comum por força do previsto nas
disposições transitórias do novel Códex, em seu art. 1.046, §3º que estabelece que “os processos
mencionados no art. 1.218 da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, cujo procedimento ainda não
tenha sido incorporado por lei submetem-se ao procedimento comum previsto neste Código”.
Assim, haja vista que a dissolução total da sociedade é regulada atualmente pelas normas
de dissolução e liquidação previstas nos artigos 655 a 674 do Decreto-lei nº 1.608, de 18 de
setembro de 1939, conforme preceituado no artigo 1.218 do Código de Processo Civil de 1973,
esta ação passará a tramitar pelo procedimento comum.
2 Art. 603. Havendo manifestação expressa e unânime pela concordância da dissolução, o juiz a decretará, passando-se imediatamente à fase de liquidação. §1º Na hipótese prevista no caput, não haverá condenação em honorários advocatícios de nenhuma das partes, e as custas serão rateadas segunda a participação das partes no capital social. §2º Havendo contestação, observar-se-á o procedimento comum, mas a liquidação da sentença seguirá o disposto neste Capítulo.
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É certo que apesar de, como lembra Fábio Ulhoa Coelho (2011), raramente se ver nos
dias de hoje algum sócio postular, em juízo, a dissolução total da sociedade, é de questionar a
falta de uniformidade adotada pelo legislador ao estabelecer o procedimento especial somente
para a dissolução parcial, relegando a dissolução total ao procedimento comum, o que pode
acarretar insegurança jurídica, na medida em que a liquidação e a posterior extinção da empresa
apresentam suas próprias peculiaridades.
Ademais, em virtude da falta de disciplina específica, “não se descarta que a prática leve
o aplicador do direito a situações de dúvidas e que o intérprete venha a cogitar, ainda que por
analogia, de soluções constantes da disciplina do procedimento de dissolução parcial previsto
nos arts. 585/595 do Projeto.” (MATOS; YARSHELL, 2012, p. 218)
IV – Da dissolução parcial das sociedades anônimas.
Em razão da ação de dissolução parcial da sociedade ter sido desenvolvida pelos
doutrinadores e tribunais pátrios, inúmeras eram as controvérsias existentes quanto a sua
disciplina. Dessa forma, com a positivação deste novo procedimento especial, foi posta uma
pá-de-cal no debate quanto à possibilidade ou não de dissolução parcial da sociedade anônima.
Inquestionável que existem renomados doutrinadores e juristas que defendem a
impossibilidade da dissolução parcial das sociedades anônimas fechadas em razão de serem as
sociedades anônimas, a princípio, sociedades de capital (intuitu pecuniae), bem como em
virtude da falta de expressa previsão legal neste sentido.
Esse é o posicionamento inclusive esposado por Nelson Eizerik:
Não existe fundamento jurídico para a chamada “dissolução parcial” da sociedade por ações, por rompimento da affectio, ou por qualquer outra causa, quaisquer que sejam as suas características, pelas seguintes razões: (i) a companhia é, em princípio, uma sociedade de capitais, cujo intuito é o lucro, não tendo relevância as qualidades pessoais do acionista, mas apenas sua contribuição ao capital social; (ii) as causas para dissolução são unicamente aquelas taxativamente previstas no dispositivo legal, que não cogita da dissolução parcial; (iii) a noção de affectio é vaga, podendo dar margem a diferentes conclusões, a depender da interpretação do magistrado; (iv) a Lei das S.A disciplina as hipóteses em que o acionista dissidente pode retirar-se da companhia, mediante o exercício do direito de recesso; (v) a dissolução parcial, sob a justificativa da preservação da empresa, constitui medida que pode causar efeito contrário, ao operar a sua descapitalização, sendo injusta com os acionistas que permanecem; e (vi) ainda que não prevista em lei, é mais benéfica para o acionista retirante do que a medida – esta sim, legal – do direito de recesso, pois os tribunais têm determinado o cálculo dos haveres não com base no patrimônio líquido contábil, mas mediante apuração de seu valor real e presente. (EIZERIK, 2014, p. 161-162)
Não obstante tal posicionamento doutrinário, vem predominando nos tribunais pátrios a
possibilidade da referida dissolução parcial de sociedade anônimas fechadas.
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Tal entendimento, explicitado pelo Superior Tribunal de Justiça em suas decisões mais
recentes, tem como base o fato de no Brasil preponderarem nas sociedades anônimas fechadas
de pequeno e médio portes verdadeira relação familiar, sendo estas, por consequente,
constituídas em razão da afinidade e identificação pessoal entre os acionistas, prevalecendo o
caráter intuitu personae.
Ademais, como bem expõe Priscila M. P. Corrêa da Fonseca:
Não se olvide, outrossim, que nas sociedade anônimas de capital fechado não se faculta, como regra, a livre alienação da participação acionária. Por esta razão, aquele que pretende se retirar da sociedade – se não se lhe outorgar a possibilidade da dissolução parcial – ficará sujeito a vendê-la aos demais acionistas, nem sempre por valor consentâneo com o patrimônio líquido da sociedade. Nada justifica, com efeito, que nesses casos, fiquem os acionistas indefinidamente jungidos à sociedade. Milita, por isso e ademais, a favor da dissolução parcial das sociedades anônimas, o princípio insculpido no art. 5º, XX, da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou permanecer associado” (FONSECA, 2007, p. 80-81)
Assim, percebe-se que o legislador consolidou no parágrafo segundo artigo 599 do novo
Código de Processo Civil entendimento já reiteradamente esposado pelo Superior Tribunal de
Justiça e demais tribunais pátrios, conferindo aos acionistas detentores de cinco ou mais por
cento do capital social a possibilidade de requerer a dissolução parcial da sociedade anônima,
caso demonstrado que esta não pode preencher seu fim.
Esclarece-se que apesar das inúmeras críticas à indiscriminada utilização do conceito de
affectio societatis, inclusive como fundamento para dissolução parcial da sociedade, lideradas
por Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França e Marcelo Vieira Von Adamek3, o Superior
Tribunal de Justiça já sedimentou o entendimento de que a quebra da affectio societatis
possibilita a dissolução parcial da companhia anônima fechada, isso porque, conforme disposto
pelo Ministro Castro Filho no julgamento do Embargos de Divergência no Recurso Especial nº
111.294-PR (BRASIL, 2007)
a ruptura da affectio societatis representa verdadeiro impedimento a que continue a realizar o seu fim, (...) já que dificilmente pode prosperar uma sociedade em que a confiança, a harmonia, a fidelidade e o respeito mútuo entre os seus sócios tenham sido rompidos.4
3 Nesse sentido, dispõem os referidos juristas: “O quadro torna-se ainda mais nefasto quando se constata que a noção de affectio societatis é manejada pelos tribunais, sem qualquer sistematicidade e carregada de um incompreensível empirismo, para justificar soluções as mais díspares possíveis entre si, notadamente em matéria de dissolução parcial da sociedade lato sensu (retirada, exclusão e dissolução parcial em sentido estrito), com total alheamento de outros temas fundamentais envolvidos na questão, como os de juízo de proporcionalidade e de análise de imputação de responsabilidade pela quebra de eventuais deveres de sócio.” (2008, p. 112) 4 No mesmo diapasão: STJ, AgRg no Resp 1079763-SP, 4ª Turma, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 25/08/2009 (BRASIL, 2009); STJ, EREsp 419.174-SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j.28/5/2008 (BRASIL, 2008); e, STJ, REsp 1303284 / PR, 3ª Turma, Min. Nancy Andrigui, j.16/04/2013 (BRASIL, 2013).
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Não de pode olvidar, portanto, que demonstrado pelos acionistas que a sociedade
anônima fechada não cumpre mais seu fim social, inclusive em virtude da ruptura do affectio
societatis, poderá ser requerida a dissolução parcial da mesma e a consequente apuração de
haveres, sendo observados os preceitos dispostos nos art. 599 e seguintes do novo Código de
Processo Civil.
V – Da resolução da sociedade
Noutro norte, em relação à data de resolução da sociedade, certo é que o artigo 1.0315
do CC/2002 (BRASIL, 2002) determina que nos casos em que a sociedade se resolver em
relação a um sócio, o valor de sua quota será liquidado com base na situação patrimonial da
sociedade à data da resolução.
Entrementes, tal diploma legal não disciplinou qual seria a data da resolução da empresa,
razão pela qual predominaram na doutrina e jurisprudências pátrias inúmeros debates acerca do
momento no qual ocorre a resolução da sociedade, sendo este utilizado como marco inicial para
fins de apuração dos haveres.
Frente a tais debates, o novo Código de Processo Civil vem, em seu artigo 605, delimitar
a data da resolução a ser considerada, dispondo in verbis:
Art. 605. A data da resolução da sociedade será: I – no caso de falecimento do sócio, a do óbito; II – na retirada imotivada, o sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio retirante; III – no recesso, o dia do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio dissidente; IV – na retirada por justa causa de sociedade por prazo determinado e na exclusão judicial de sócio, a do trânsito em julgado da decisão que dissolver a sociedade; e V – na exclusão extrajudicial, a data da assembleia ou da reunião de sócios que a tiver deliberado.
Percebe-se da redação do referido artigo que a data fixada nas hipóteses de falecimento
do sócio, recesso e exclusão extrajudicial refletem o posicionamento dominante no Superior
Tribunal de Justiça, segundo o qual o momento da resolução da sociedade, a ser utilizado como
5 Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor de sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado. §1º O capital social sofrerá a correspondente redução, salvo se os demais sócios suprirem o valor da quota. §2º A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário.
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data base para apuração dos haveres, deve ser aquele do evento por meio do qual o sócio deixou
de integrar a sociedade.
Este entendimento é inclusive esposado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cuevo, em
voto proferido no Recurso Especial nº 1352461/DF (BRASIL, 2013), cujo trecho ora se
transcreve em virtude de sua importância:
Em regra, quando o vínculo societário é rompido em virtude do falecimento de sócio, a data do óbito será a necessária referência temporal para a apuração de haveres. Isso porque, com a morte, a pessoa física deixa de existir como sujeito de direitos e obrigações, desaparecendo a condição de sócio com as demais condições jurídicas que possuía.
Ademais, acerca do direito de recesso, Priscila M. P. Corrêa da Fonseca (2007)
preleciona que este é um direito potestativo, que produzirá todos seus efeitos no momento no
qual é recebida pela sociedade a notificação6, de forma que nesta data há a resolução da
sociedade quanto ao sócio dissidente.
Noutro norte, em se tratando da retirada imotivada do sócio extrajudicial, nota-se que o
novo Códex está em consonância com o disposto na primeira parte do artigo 1.029 do Código
Civil (BRASIL, 2002), que prevê que “além dos casos previstos na lei ou no contrato, qualquer
sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais
sócios, com antecedência mínima de sessenta dias; (...)”.
Contudo, o legislador não disciplinou qual a data da resolução da empresa quando
requerida, em juízo, a dissolução parcial de sociedade por prazo indeterminado. Assim,
permanece latente o debate, dividido, predominantemente em duas correntes, acerca da natureza
do provimento jurisdicional que defere a dissolução parcial nesta hipótese, a qual possui
correlação direta com o momento de resolução da sociedade e, por consequência, de apuração
de haveres do sócio.
Segundo a primeira corrente, a decisão que defere a dissolução parcial neste caso possui
natureza desconstitutiva, de modo que somente a partir do trânsito em julgado da referida
decisão há a resolução da sociedade, razão pela qual se utilizará a data do trânsito como base
para apuração dos haveres.
Tal entendimento é explicitado no voto proferido pelo Ministro Humberto Gomes de
Barros, no Recurso Especial nº 646.221/PR (BRASIL, 2005), cujo trecho ora se colaciona:
6 Trata-se de um direito que o sócio exercerá, perante a sociedade, por meio de mera manifestação de vontade, de caráter receptício, a qual produzirá seus efeitos, de modo irretratável, tão logo recebida pela sociedade. (...) Cuida-se, na realidade, do exercício de um direito potestativo diante do qual remanesce à sociedade e aos demais sócios apenas uma posição de mera sujeição.(FONSECA, 2007, p. 11-12)
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O tema tem a ver com a eficácia da sentença que determina a dissolução parcial da sociedade e a apuração dos haveres. Se tal eficácia é declaratória, o sócio já estaria sido excluído da sociedade no momento em que manifestou inequivocamente o desejo de desligamento. Assim, a data base da apuração dos haveres deve ser a do ajuizamento da ação. No entanto, se a sentença de dissolução parcial tem eficácia desconstitutiva, diremos que a apuração dos haveres deve tomar como base a situação da empresa no trânsito em julgado. Só, então, o sócio terá efetivamente se desligado da sociedade. Em que pesem os relevantes argumentos da recorrente, o acórdão recorrido adotou a solução mais adequada. Há que se definir um momento em que o sócio deixa de o ser. No desligamento voluntário, a modificação da situação jurídica ocorre com a alteração do contrato social. Na dissolução judicial, é a sentença que tem essa força. Antes da sentença de procedência, o autor integrava: era sócio, e assim permaneceu enquanto o processo se desenrolava. Evidentemente, a sentença que determinou a dissolução parcial alterou uma situação jurídica. Quem era sócio, deixou de ser. Não há dúvida de que a sentença alterou uma situação jurídica. Sua eficácia é predominantemente constitutiva. Se assim ocorre a apuração dos haveres do sócio retirante terá por base a situação financeira da empresa no momento em que se declarou a dissolução parcial. Isto porque o simples desejo de se desligar não faz com que o sócio deixe de integrar, pelo menos formalmente, o quadro societário.
Já a segunda corrente, que predomina atualmente no Superior Tribunal de Justiça,
reconhece o caráter declaratório da decisão na ação de dissolução parcial de sociedade por prazo
indeterminado requerida pelo sócio retirante. Desta feita, segundo esta corrente, a data base
para apuração dos haveres coincide com a manifestação da vontade do sócio de se retirar da
sociedade, que ocorre no ato de ajuizamento da ação de dissolução parcial, se não houver
notificação extrajudicial prévia.
Neste diapasão, cumpre trazer a baila trecho do voto proferido pela Ministra Nancy
Andrighi, nos autos do já mencionado Recurso Especial nº 646.221/PR (BRASIL, 2005), o qual
foi acompanhado pelos Ministros Castro Filho e Carlos Alberto Menezes Direito:
Não há como compelir o sócio a manter-se indefinidamente na sociedade estabelecida por tempo indeterminado, principalmente quando há ruptura da affectio societatis, como ocorreu na hipótese sob julgamento. Neste caso, permite-se que o sócio deixe espontaneamente a sociedade, com a preservação do ente social e apuração de seus haveres, levando em conta a situação patrimonial da sociedade verificada na data da retirada. Com estes fundamentos, conclui-se que a data base para apuração dos haveres coincide com a manifestação da vontade do sócio de se retirar da sociedade limitada estabelecida por tempo indeterminado, o que, na hipótese, se deu com o ajuizamento da ação de dissolução parcial. Ressalte-se que, mesmo com a retirada do sócio, a sociedade continua a existir, prosseguindo com suas atividades, sendo previsível a alteração de seu patrimônio, que poderá ser valorizado ou esvaziado pelo comportamento exclusivo dos sócios remanescentes, não sendo possível, portanto, admitir que o sócio retirante, que não mais participa ativamente da sociedade, seja beneficiado ou prejudicado no recebimento de seus haveres.
No mesmo sentir, voto de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino no Recurso
Especial nº 1.371.843/SP (BRASIL, 2014), cuja passagem ora se transcreve:
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Assim, correto o entendimento adotado pelo Tribunal de origem de que a apuração de haveres deve ter como marco inicial a data do ajuizamento da presente ação de dissolução, haja vista a demonstração inequívoca da inexistência de affectio societatis.
Se por um lado, na dissolução requerida pelo retirante há controvérsia quanto a natureza
da decisão proferida, com relação à exclusão judicial de sócio, bem como à retirada por justa
causa de sociedade por prazo determinado, denota-se que o legislador pátrio consolidou o
entendimento que o pronunciamento judicial, nestas hipóteses, possui natureza constitutiva
negativa.
Acerca do tema, dispõem Flávio Luiz Yarshell e Felipe do Amaral Matos:
Em outros casos, contudo, há a necessidade de pronunciamento judicial para que se efetive a dissolução – caso de exclusão judicial do sócio ou retirada (sic) por justa causa de sociedade por prazo determinado (art. 591, IV, Projeto). Nesses casos, uma das notas de especialidade do procedimento reside em que, numa primeira fase, discute-se o tema da resolução da sociedade em relação ao sócio – que, em caso de controvérsia, se processa pelo procedimento comum, cf, art. 589, §2º -; e, num segundo momento, passa-se à apuração dos haveres, ao qual o Projeto (art. 589, caput) se referiu como “fase de liquidação”. Portanto, positiva-se o que já era reconhecido pela doutrina: primeiro, o juiz desconstitui o vínculo societário ou julga improcedente tal pedido; em seguida, após o trânsito em julgado de procedência, passa-se à fixação dos haveres. Nessas hipóteses, em que se decreta a resolução (parcial) da sociedade, o provimento tem natureza constitutiva negativa, conforme destacado pela doutrina. (YARSHELL, MATOS, 2012, p. 233)
VI – Da apuração de haveres
Cumpre tecer, ainda, observações acerca do critério de apuração de haveres adotado
pelo novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), bem como sobre a forma de pagamento
deste.
Consoante se infere do disposto no inciso II, do artigo 604 e no artigo 606, ambos do
referido diploma, o critério a ser utilizado para apuração dos haveres deverá ser aquele previsto
no contrato social.
Assim, denota-se que o legislador pátrio conferiu especial importância à autonomia das
partes, devendo ser respeitado o critério escolhido livremente por estas, em estrita observância
ao pacta sunt servanda e à força vinculante dos contratos.
Tal posicionamento adotado pelo poder legiferante encontra-se em consonância com os
entendimentos de parte do Superior Tribunal de Justiça, conforme se observa da ementa de
decisão proferida no Recurso Especial nº 1.239.754/RS (BRASIL, 2012), abaixo transcrita:
DIREITO EMPRESARIAL. RECURSO ESPECIAL. DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE. APURAÇÃO DE HAVERES. FORMA DE PAGAMENTO.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 365-388, mai/ago, 2016.
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1. A apuração de haveres - levantamento dos valores referentes à participação do sócio que se retira ou que é excluído da sociedade - se processa da forma prevista no contrato social, uma vez que, nessa seara, prevalece o princípio da força obrigatória dos contratos, cujo fundamento é a autonomia da vontade, desde que observados os limites legais e os princípios gerais do direito. Precedentes. 2. No caso sob exame, o contrato social previu o pagamento dos haveres parcelados em 48 (quarenta e oito) prestações mensais e sucessivas, tendo o Tribunal estadual determinado o vencimento da primeira por ocasião do trânsito em julgado da decisão. 3. Em ação que versa sobre o inadimplemento dos haveres oriundos da retirada de sócio, a sociedade é constituída em mora com a citação válida, que passa então a ser considerada como termo inicial para o pagamento das parcelas, sendo certo que aquelas que venceram no curso do processo devem ser pagas de imediato, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, enquanto as remanescentes serão adimplidas consoante determinado no contrato social. (Precedentes) 4. Recurso especial parcialmente provido.
Contudo, apesar de significativa parcela dos tribunais pátrios adotarem o entendimento
supra exposto, nota-se nas decisões mais recentes, inclusive do Superior Tribunal de Justiça,
sensível modificação do posicionamento, sendo sustentado que os critérios de apuração de
haveres previstos nos contratos sociais não são vinculantes quando a dissolução parcial da
sociedade é judicial. Assim, cabe, nesta hipótese, ao juiz buscar a melhor forma de apuração de
haveres no caso concreto, mesmo que essa seja diversa da prevista no contrato social.
Nessa esteira, cabe transcrever trecho do recente voto proferido pela Ministra Nancy
Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 1.335.619/SP (BRASIL, 2015), in verbis:
Nesse contexto – em respeito à premissa adrede fixada, de preservação da sociedade e do montante devido ao sócio dissidente – mesmo que o contrato social eleja critério para a apuração de haveres, este somente prevalecerá caso haja a concordância das partes com o resultado alcançado. Havendo dissenso, faculta-se a adoção da via judicial, a fim de que seja determinada a melhor metodologia de liquidação, hipótese em que a cláusula contratual somente será aplicada em relação ao modo de pagamento.
Desta feita, imperioso observar, com cautela, o posicionamento a ser adotado pelos
tribunais pátrios frente às novas disposições da Lei nº 13.105/15 no que diz respeito à
observância dos critérios de apuração de haveres previstos no contrato social da sociedade
dissolvida judicialmente.
Por fim, quanto à forma de pagamento dos haveres apurados, tem-se que, nos termos do
artigo 609 do novo diploma legal, “uma vez apurados, os haveres do sócio retirante serão pagos
conforme disciplinar o contrato social e, no silêncio deste, nos termos do §2º do art. 1.031 da
Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)”.
Certo é que novamente, em relação à forma de pagamento, o legislador pátrio fez
prevalecer a autonomia da vontade das partes representada no contrato social, tendo previsto,
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de forma supletiva, que o pagamento dos haveres será realizado, no prazo de noventa dias, a
partir da liquidação.
Entretanto, permanece a dúvida se, caso o contrato social preveja o pagamento parcelado
dos haveres, sendo estes apurados judicialmente, o parcelamento dos valores será aplicado ou
se, conforme entendimento hoje majoritário do Superior Tribunal de Justiça, deverá ocorrer o
pagamento integral do montante na data do trânsito em julgado, não havendo que se falar em
parcelamento, em virtude do longo período de tempo já transcorrido no curso do processo7.
Assim, tendo em vista que o diploma legal em análise não disciplinou acerca do
pagamento dos haveres judiciais e sua possibilidade ou não de parcelamento, relegando tal
competência ao âmbito da autonomia privada, recomenda-se que o contrato social preveja, de
forma expressa, o modo como será realizado tal pagamento, tanto judicialmente quanto
extrajudicialmente, bem como as hipóteses nas quais serão permitidos ou não o parcelamento
dos valores eventualmente devidos, de forma a não deixar a cargo dos tribunais tal decisão.
VII – Da legitimidade das partes
Certo é que se mostra de suma importância o estudo da legitimidade processual das
partes, prevista nos artigos 600 e 601, para figurar, respectivamente, nos polos ativo e passivo
da ação de dissolução parcial da sociedade.
VII.I – Da legitimidades ativa
Inicialmente, no que se refere à legitimidade ativa, tem-se que o artigo 6008 do novo
Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) dispõe, de forma detalhada, quem poderá propor a
7 Sobre o tema, vide decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos recursos especiais REsp nº 1.239.754/RS (BRASIL, 2012), REsp 1.371.843/SP (BRASIL, 2014) e REsp 143.057/SP (BRASIL, 2001). 8 Art. 600. A ação pode ser proposta: I - pelo espólio do sócio falecido, quando a totalidade dos sucessores não ingressar na sociedade; II - pelos sucessores, após concluída a partilha do sócio falecido; III - pela sociedade, se os sócios sobreviventes não admitirem o ingresso do espólio ou dos sucessores do falecido na sociedade, quando esse direito decorrer do contrato social; IV - pelo sócio que exerceu o direito de retirada ou recesso, se não tiver sido providenciada, pelos demais sócios, a alteração contratual consensual formalizando o desligamento, depois de transcorridos 10 (dez) dias do exercício do direito; V - pela sociedade, nos casos em que a lei não autoriza a exclusão extrajudicial; ou VI - pelo sócio excluído. Parágrafo único. O cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio.
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ação de dissolução parcial, tendo como base cada uma das hipóteses englobadas por tal
procedimento, quais sejam, falecimento, retirada, recesso e exclusão de sócio.
Em se tratando do sócio falecido, o novo Códex disciplina três hipóteses, com três
legitimados diversos para a propositura da demanda (incisos I, II e III do referido artigo 600).
Na primeira hipótese é conferida a legitimidade ativa ao espólio do sócio falecido,
quando a totalidade dos sucessores deste não ingressarem na sociedade. Ora, inquestionável
que o legislador objetivou, em consonância com os entendimentos esposados pelos tribunais
pátrios, possibilitar o espólio do de cujus requerer a dissolução parcial da sociedade em que
este era sócio. Contudo, não obstante tal evidente intenção, este incorreu em atecnia na redação
do referido dispositivo. Isso porque “enquanto não finda a partilha dos bens, não há que se
cogitar de ingresso dos sucessores na sociedade” (ROSSONI, 2012, p. 341), na medida em que
somente ao final desta poderá identificar-se quem herdou as quotas, cabendo somente a esse o
ingresso na empresa. Dessa forma, condicionar a legitimidade do espólio ao não ingresso dos
herdeiros na sociedade mostra-se um verdadeiro contrassenso, haja vista que estes somente
poderiam entrar na empresa após finda a partilha, momento no qual o espólio já não mais
existiria.
Ademais, cumpre observar que, caso o espólio requeira a dissolução parcial, não será
partilhada entre os herdeiros as quotas do de cujus, mas sim o valor monetário correspondente
a estas, apurado nos autos processuais. Conclui-se, portanto, que o poder legiferante incorreu
em inegável imprecisão técnica, podendo ter, caso desejasse, condicionado o requerimento de
dissolução parcial pelo espólio à expressa de concordância da totalidade dos herdeiros, mas não
ao fato destes não ingressarem, de fato, na sociedade, o que somente poderia ocorrer em
momento posterior.
A segunda hipótese prevista na lei é aquela na qual os sucessores do de cujus, após finda
a partilha dos bens, requerem a dissolução parcial da sociedade. Nesta situação há a prévia
definição de quem são os herdeiros e sucessores do sócio falecido que ingressariam na
sociedade, manifestando estes, mediante o requerimento de dissolução parcial, sua intenção de
não integrar ou permanecer na empresa. Esclarece-se, neste ponto, que caso o herdeiro ou
sucessor não tenha ingressado na sociedade, este poderá requerer somente a apuração de seus
haveres, nos termos do inciso terceiro do artigo 599 do novo Códex (BRASIL, 2015).
Por fim, no que tange à terceira hipótese – dissolução requerida pela sociedade, se os
sócios sobreviventes não admitirem o ingresso do espólio ou dos sucessores do falecido na
sociedade, quando esse direito decorrer do contrato social -, cabe explicitar que tal dispositivo
legal prevê somente a hipótese de a sociedade requerer a dissolução parcial, em virtude de
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expressa previsão no contrato social neste sentido. Contudo, o diploma em análise não
estabelece a possibilidade dos sócios remanescentes, sem expressa previsão no contrato social,
requererem a dissolução parcial da empresa, não permitindo a entrada dos sucessores do sócio
falecido, em razão da inexistência de affectio societatis, elemento este reconhecido pelos
tribunais pátrios como de suma importância para a manutenção das sociedades de pessoas,
conforme anteriormente mencionado.
Ultrapassadas as questões relativas ao sócio falecido, o referido art. 600, em seu inciso
IV, estabelece que, na hipótese de não ser efetuada a alteração contratual no prazo de 10 (dez)
dias contados do exercício do direito de retirada ou recesso por um dos sócios, este poderá
propor a ação ora em análise. Cumpre destacar que, nesta hipótese, o sócio deverá requerer
tanto a dissolução parcial da sociedade quanto a apuração dos haveres, se esta não foi
igualmente efetuada. Isso porque, apesar do exercício dos direitos de retirada e de recesso
produzir efeitos de pleno direito, caberá ao Judiciário proferir decisão, de natureza declaratória,
dissolvendo a empresa, na medida em que a alteração contratual desta, com retirada do sócio,
não foi levada a registro para produção dos efeitos erga omnes.
Lado outro, quanto à exclusão do sócio, dispõe a Lei nº 13.105/15 (BRASIL, 2015) que
são legitimados a sociedade, nos casos em que a lei não autoriza a exclusão extrajudicial (art.
600, V), bem como o sócio excluído (art. 600, VI).
Inicialmente, no que se refere ao sócio excluído, este somente possuirá legitimidade
ativa para requerer a apuração de seus haveres, nos termos do artigo 599, inciso III, do Código
ora analisado, não podendo requerer, entretanto, a dissolução parcial da sociedade, haja vista
que o mesmo não mais compõe o quadro societário da empresa.
Em se tratando da legitimidade da ativa para requerer a exclusão de sócio, predominava
na doutrina e na jurisprudência pátrias o embate entorno de três entendimentos, quais sejam: (i)
que a parte legítima é apenas a sociedade;9 (ii) que tal legitimidade é somente dos sócios10; e,
(iii) que é necessária a formação de litisconsórcio necessário entre sócios e sociedade.11. Dessa
9 Nesse sentido, José Marcelo Martins Proença (2012, p. 434): “Dessa forma, por mais que sócios deliberem pela propositura de ação judicial de exclusão de sócio, é a sociedade a pessoa lesada pela falta grave cometida por algum sócio justificadora da exclusão e, portanto, é essa sociedade, e somente ela, que possui a legitimidade para excluir de seu quadro societário a pessoa que está prejudicando a sua continuidade e desenvolvimento.” No mesmo diapasão, decisão proferida pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em voto de relatoria do Desembargador Alexandre Marcondes, nos autos da Apelação nº 0004941-92.2012.8.26.0318, j. 03/02/2015 (SÃO PAULO, 2015). 10Com este entendimento, decisão proferida pela Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em voto de relatoria do Desembargador Romeu Marques Ribeiro Filho, nos autos da Apelação Cível nº 70038895827, j. 21/09/2011 (RIO GRANDE DO SUL, 2011). 11 Neste diapasão, cumpre asseverar entendimento de Pricilla M. P. Corrêa da Fonseca: “Com o advento do novel diploma, a iniciativa da ação, nos casos de expulsão de sócio motivada por falta grave no cumprimento de suas obrigações ou incapacidade superveniente, passou a ser sempre da maioria dos demais sócios (art. 1;030). (...) A sociedade também deverá fazer-se presente no pólo ativo da ação – em litisconsórcio necessário com os sócios –
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forma, a expressa previsão, no inciso V do mencionado art. 600, de que cabe à sociedade o
requerimento de exclusão do sócio pôs uma pá de cal no debate até então existente.
Cumpre asseverar, ademais, com relação à exclusão de sócio que
(...) é importante notar a existência de requisito negativo para se configurar a legitimidade da sociedade e seu interesse processual, qual seja, a impossibilidade de exclusão por via extrajudicial. Consagra-se, dessa forma, a regra da subsidiariedade da exclusão judicial em relação à extrajudicial. Assim, ingressando a sociedade judicialmente visando à exclusão do sócio, mesmo existindo a possibilidade de exclusão por meio de procedimento extrajudicial, faltaria interesse processual a esta. (ROSSINI, 2012, p. 343-344)
No que versa à legitimidade ativa, cabe pontuar, por fim, que o parágrafo primeiro do
referido artigo 600 prevê que “o cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união
estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que
serão pagos à conta da quota titulada por este sócio.”
Percebe-se, portanto, que com esta nova disposição legal, fica revogado tacitamente o
debatido artigo 1.027 do Código Civil (BRASIL, 2002), o qual dispõe que o cônjuge de sócio
que se separou judicialmente não pode exigir, desde logo, a parte que lhe couber na quota social,
podendo este somente concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade.
Certo é que tal artigo do Código Civil foi reiteradamente criticado pelos doutrinadores,
em virtude de sua confusa redação, bem como por não permitir que o ex-cônjuge se desligue
da sociedade, asseverando Priscila M. P. Corrêa da Fonseca que
Parece intuitivo que não se possa constranger o ex-cônjuge ou herdeiros deste a ficar indefinidamente jungidos à sociedade, em situação que se denota, à evidência, inconstitucional – eis que violadora do comando contido no art. 5º, XX, da Lei Maior. Cuida-se, ademais, de condição bastante incômoda e iníqua. É que, não tendo qualquer possibilidade de ingerência sobre a administração e o destino da sociedade, ficarão aqueles à mercê dos demais sócios (...) (FONSECA, 2007, p. 109)
Assim, com o novo Códex, findam-se as discussões então existentes acerca da
possibilidade ou não do ex-cônjuge requerer a apuração dos haveres, sendo retomado o
entendimento perfilhado pelo Superior Tribunal de Justiça, antes do advento do Código Civil
de 2002, nos autos do REsp nº 114.708-MG (BRASIL, 2001), no qual o Ministro Carlos Alberto
Menezes Direito asseverou:
porquanto é dela a obrigação de pagar os haveres do sócio que é compulsoriamente afastado.”(2007, p. 112) Este entendimento foi defendido, ainda, pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo nos autos da Apelação nº 0128274-90.2011.826.0100, julgada em 11/03/2015 (SÃO PAULO, 2015).
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Com mais razão, reconhecendo a controvérsia sobre a matéria e a linha do precedente da Corte, entendo agora que a mulher que recebeu em partilha a metade das cotas sociais tem legitimidade ativa para apurar os seus haveres, divergindo, assim, com todo o maior respeito, do voto do eminente Ministro Waldemar Zveiter, por quem tenho conhecida admiração. Não autorizar que tal seja possível, ou seja, vedar a legitimidade ativa nesses casos, significa negar valor ao bem partilhado, gerando conseqüências lesivas ao patrimônio do cônjuge meeiro. Se sócio não é, não se lhe pode negar o direito de apurar os seus haveres, que judicialmente foram-lhe deferidos.
Por fim, cumpre esclarecer que no dispositivo legal sob análise o legislador pátrio
estabeleceu três hipóteses nas quais o cônjuge ou companheiro podem ingressar com ação de
dissolução parcial, quais sejam, findo o casamento, a união estável ou a convivência. Contudo,
o poder legiferante não explicitou o que configura tal convivência, conceito este não
consolidado pelos tribunais pátrios. Assim, de modo a evitar futuras indagações acerca da
subsunção ou não de uma situação prática a esta norma, recomenda-se que seja pré-estabelecido
entre as partes a definição do conceito de convivência para fins de requerimento da dissolução
parcial da sociedade.
VII.II – Da legitimidade passiva
Em se tratando da legitimidade passiva para figurar na ação de dissolução parcial, o
artigo 601 da Lei nº 13.105/15 (BRASIL, 2015) dispõe em seu caput que “os sócios e a
sociedade serão citados para, no prazo de 15 (quinze) dias, concordar com o pedido ou
apresentar contestação.” Assim, frente a uma primeira leitura deste dispositivo concluir-se-á
que o legislador estabeleceu o litisconsórcio necessário entre os sócios remanescentes e a
sociedade, conforme entendimento majoritário dos tribunais pátrios12.
Contudo, em completa falta de uniformidade e em inquestionável atecnia, no parágrafo
único do referido artigo o poder legiferante estabeleceu que “a sociedade não será citada se
todos os seus sócios o forem, mas ficará sujeita aos efeitos da decisão e à coisa julgada.”
Ora, indene de dúvidas as inúmeras imprecisões técnicas incorridas pelo legislativo no
referido parágrafo, na medida em que, em completo desrespeito à personalidade jurídica
conferida às sociedades pela legislação pátria, a empresa foi igualada a mera totalidade de seus
12 Nesse sentido, cumpre transcrever trecho do voto proferido pelo Ministro Eduardo Ribeiro no julgamento do Recurso Especial nº 44.132/SP (BRASIL, 2015): “Passa a petição de recurso a sustentar a ilegitimidade da sociedade para figurar no processo. Malgrado o brilho com que exposta, a tese não merece ser acolhida. Certo que a pretensão de retirada, enquanto envolve modificação do contrato social, haveria de ser atendida pelos demais sócios e não pela sociedade. Entretanto, julgada procedente a ação, o patrimônio da sociedade, e não o pessoal dos sócios, é que arcará com o pagamento do que for devido aos que se retiram. Justifica-se, pois, sua presença no processo.” No mesmo diapasão, entendimento perfilhado pelo Superior Tribunal de Justiça nos Recursos Especiais nºs 105.667/SC (BRASIL, 2000) e 77.122/PR (BRASIL, 1996).
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sócios, esquecendo-se que esta possui objetivos e interesses próprios, os quais podem ou não
corresponder aos da totalidade dos sócios.
Assim, “a regra considera uma espécie de relação homogênea entre os sócios que não
necessariamente pode se compadecer com a realidade” (MATOS; YARSHELL, 2012, p. 230),
na medida em que
(...) enquanto na sociedade vigora o princípio majoritário, garantindo-se uma unidade de ação mesmo que se manifestem opiniões minoritárias divergentes, os sócios, enquanto sujeitos independentes, podem, no processo, adotar as mais variadas estratégias. Não há regra que imponha que os sócios adotem condutas convergentes ao defenderem os seus interesses. (ROSSONI, 2012, p. 347)
Portanto, haja vista que os sócios possuem ampla liberdade de defenderem, em juízo,
seus respectivos interesses individuais, o interesse da sociedade poderá restar irreversivelmente
prejudicado.
Ademais, tal dispositivo legal ofende, outrossim, princípios basilares de nosso
ordenamento, qual sejam, o devido processo legal e o contraditório (art. 5º, LV e LVI, CR/88),
vez que sujeita a sociedade aos efeitos da decisão a ser proferida no processo e da coisa julgada,
sem ao menos ser esta parte na demanda, impondo a esta, portanto, eventuais ônus processuais,
mas não possibilitando a defesa, em juízo, de seus interesses próprios.
Lado outro, cumpre observar a desarmonia entre os dispositivos integrantes do
procedimento especial em estudo, na medida em que o referido parágrafo primeiro do artigo
600 prevê hipótese na qual a sociedade não precisará integrar o polo passivo da demanda e, o
artigo 602 dispõe que “a sociedade poderá formular pedido de indenização compensável com
o valor dos haveres a apurar.”
Contudo, como a sociedade poderá formular, em sua contestação, pedido de indenização
compensável com o valor dos haveres se nem ao menos integra o polo passivo da demanda,
haja vista que desnecessidade de sua citação? Além disso, ainda que fosse admitida a
possibilidade dos sócios pleitearem a indenização, como substitutos processuais da sociedade,
o que por si só já é problemático em virtude de se tratar de pessoas distintas, surge um novo
questionamento, bem apresentado por Flávio Luiz Yarshell e Felipe do Amaral Matos:
(...) e se nem todos os sócios estiverem de acordo com o pleito de indenização? A hipótese longe de ser remota, é ponderável porque é possível que os sócios remanescentes, embora continuem na sociedade, tenham entre si posições diferentes acerca das providências a adotar em relação ao sócio que deixa ou que deixou a sociedade. (YARSHELL, MATOS, 2012, p. 230)
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Cumpre observar, por fim, que há evidente dissonância entre o mencionado parágrafo
único do artigo 600 e o parágrafo primeiro do artigo 604, o qual prevê que “o juiz determinará
à sociedade ou aos sócios que nela permanecerem que depositem em juízo a parte incontroversa
dos haveres devidos.”
Isso porque no parágrafo primeiro do artigo 604 não explicita de forma clara se, na
hipótese da sociedade não integrar a lide, esta poderá ser chamada a depositar os haveres, na
medida que, consoante anteriormente mencionado, esta está sujeita aos efeitos das decisões
proferidas nos autos, ou se, neste caso, caberá aos sócios o pagamento da parte incontroversa
dos haveres.
Não obstante tal falta de clareza, observa-se, ainda, quanto ao artigo 604, outra
imprecisão técnica incorrida pelo legislador, qual seja, a possibilidade de os sócios
remanescentes virem a arcar, com seu patrimônio pessoal, com haveres dos sócios retirantes,
falecidos ou excluídos. Ora, o pagamento dos haveres cabe única e exclusivamente à sociedade,
a qual possui personalidade e patrimônio diverso dos seus sócios, não podendo estes, em regra,
serem chamados a assumir os deveres da empresa. Tal assunção de custos somente seria
possível caso a responsabilidade dos sócios não fosse limitada, o que não é regra em nosso em
país, ou se houvesse a decretação da desconsideração da personalidade jurídica da empresa.
Dessa forma, frente às imprecisões técnicas supramencionadas, sobretudo, em relação à
possibilidade de a sociedade não integrar o polo passivo da demanda e dos sócios arcarem com
os haveres, os quais deveriam ser pagos pela sociedade, sugere-se a utilização do poder
conferido às partes pelo legislador, no artigo 19013 do diploma em análise, para sanar tais vícios.
Isso porque se depreende do disposto no referido artigo, podem as partes convencionar
as regras aplicáveis à demanda, mesmo antes do processo, de modo que, no caso em análise,
poderiam os sócios, no contrato social, prever que cabe unicamente à sociedade o pagamento
dos haveres, devendo esta necessariamente integrar o polo passivo da ação de dissolução parcial
de sociedade.
VIII - Conclusão
13 “Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.”
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O exame feito neste trabalho, longe de esgotar o tema ora versado, demonstra que o
novo Código de Processo Civil inovou substancialmente o ordenamento pátrio ao positivar o
procedimento de dissolução parcial da sociedade, até então construído, exclusivamente, pela
doutrina e jurisprudência pátrias.
Não obstante tal louvável prática, a qual sedimentou inúmeros temas controvertidos, tais
como, a possibilidade de dissolução parcial da sociedade anônima fechada e a legitimidade
ativa do ex-cônjuge, indene de dúvidas que o poder legiferante incorreu em imprecisões
técnicas, as quais poderão gerar, na aplicação deste novo procedimento especial, novas
controvérsias, sobretudo no que tange à legitimidade passiva da empresa e ao pagamento dos
haveres pelos sócios e não pela sociedade.
Referências Bibliográficas
ALVARES, Samantha Lopes. Ação de dissolução de sociedades. São Paulo: Quartier Latin, 2008. BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17.03.2015. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimental no recurso especial 1079763/SP. Relator: Aldir Passarinho Junior – Quarta Turma. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 05 dez. 2009. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200801715720&dt_publicacao=05/10/2009 Acesso em: 07 set. 2015 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de divergência em recurso especial 111.294/PR. Relator: Castro Filho - Segunda Turma. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 10 set. 2007. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200201005006&dt_publicacao=10/09/2007 Acesso em: 10 set. 2015 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de divergência em recurso especial 419174/SP. Relator: Aldir Passarinho Junior – Segunda Seção. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 04 agosto 2008. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200300409115&dt_publicacao=04/08/2008 Acesso em: 12 set. 2015 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial 44132/PR. Relator: Eduardo Ribeiro – Terceira Turma. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 01 abr. 1996. Disponível em
REIS, I.S. A dissolução parcial da sociedade à luz no novo CPC
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 365-388, mai/ago, 2016.
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SOUZA, M.; PIMENTA, M.P.R.A.; CARVALHO, R.K.M. Descumprimento do interesse público
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Descumprimento do Interesse Público pelo Estado: Uma Análise Crítica do Caso de Pinheirinho
Violation of the Public Interest by the State: A Critical Analysis of the Pinheirinho’s Case
Maria Souza1
Marilene Petruci dos Reis Alves Pimenta2 Rayann Kettuly Massahud de Carvalho3
Resumo: O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise crítica da atuação do Estado na
promoção do interesse público, aqui entendido como efetivação de direitos fundamentais, em um caso específico, qual seja, o da ocupação de Pinheirinho em São José dos Campos. Parte-se de uma pesquisa bibliográfica, que busca a compreensão de conceitos primordiais como interesse público, desapropriação e direito à moradia, para, então, se analisar a ocupação in concreto e o modo pelo qual se deu a remoção. Busca-se, desse modo, fazer uma relação entre a atuação do Estado em relação ao Pinheirinho e seu papel de assegurar o interesse público e a concretização do direito à moradia, bem como de intervir no domínio privado para garantir o cumprimento da função social da propriedade.
Palavras-chave: Pinheirinho. Desapropriação. Moradia. Interesse Público. Abstract: This article has the aim of doing a critical analysis of the State actuation in the promotion
of the public interest, which can be understood as an effectuation of fundamental rights, in a specific case, which is the Pinheirinho’s occupation in São José dos Campos. It starts from a bibliographic search that aims the comprehension of primordial concepts like public interest, expropriation and right to housing to then analyze the occupation in concreto and the way that the removal happened. It pursuits thus to do a relation between the State actuation about Pinheirinho and his role of ensure the public interest and the concretization of the right to housing as well as intervene in the private domain to assure the greeting of social role of property.
Keywords: Pinheirinho. Expropriation. Housing. Public Interest.
1 Graduanda do oitavo período do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras – UFLA. 2 Graduanda do oitavo período do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras – UFLA. 3 Graduando do oitavo período do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras – UFLA.
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1. Introdução
O presente trabalho tem por objetivo fazer um estudo do caso de Pinheirinho, que
consistiu na remoção forçada de quase duas mil famílias de uma propriedade que, há décadas,
já não cumpria sua função social. É feita uma análise acerca do papel do Estado de efetivador
de direitos e garantias fundamentais, dentre eles o direito à moradia, e como tal função se
relaciona com a realização do interesse público.
Para isso, partiu-se de uma pesquisa bibliográfica para melhor entendimento dos
conceitos necessários para a compreensão da temática aqui tratada, bem como de um exame
metodológico indireto, por meio da análise de estudos publicados, realizados em meio à
comunidade do Pinheirinho, que descrevem com riqueza de detalhes a dinâmica de vida na
ocupação e os acontecimentos que levaram à remoção dos moradores ali instalados.
Dessa forma, parte-se da noção de que interesse público, em um Estado Democrático de
Direito, não pode mais ser entendido como simplesmente o interesse da coletividade, mas, de
modo a serem respeitadas as garantias individuais, deve ser relacionado à efetivação de direitos
fundamentais. Assim, o direito à moradia, enquanto direito fundamental e necessário à
concretização do princípio da dignidade humana, deve ser assegurado pelo Estado, com o fim
de se atingir o interesse público.
Tendo em mente o pressuposto de que muitos grupos vulneráveis possuem apenas a
posse do imóvel em que residem e não o título de proprietários, é feita uma análise acerca da
insegurança jurídica que permeia tais grupos. Posteriormente, argumenta-se que a propriedade,
não sendo direito absoluto, deve, necessariamente, cumprir sua função social, sob pena de sofrer
intervenção estatal como meio sancionatório. Assim, necessária se faz uma explanação acerca
do instituto da desapropriação, que pode ocorrer tanto para fins de garantia do interesse social
e de utilidade pública, quanto como meio sancionador pelo descumprimento da função social.
Por fim, passa-se a uma análise da ocupação do Pinheirinho e da remoção violenta por
que passaram as famílias que lá residiam, fazendo uma relação com o papel do Estado em
assegurar o direito à moradia e à dignidade, enquanto direitos fundamentais. Partindo-se do
pressuposto de que o Estado deve pautar seu agir pelo interesse público, o artigo visa a
demonstrar a maneira como ele agiu em sentido oposto ao promover a remoção. Em seguida,
se analisa a necessidade de intervenção do Estado na propriedade, no caso em questão, como
meio sancionador e como forma de atender ao interesse público.
2. Interesse público
SOUZA, M.; PIMENTA, M.P.R.A.; CARVALHO, R.K.M. Descumprimento do interesse público
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Como dito, este trabalho tem como um dos objetivos analisar o modo pelo qual a
Administração utiliza o princípio da supremacia do interesse público para fundamentar suas
ações. Tem-se como elemento basilar a análise de um suporte fático, qual seja, o caso de
Pinheirinho em São José dos Campos.
Contudo, antes de analisar o caso concreto, faz-se necessária a exposição de elementos
teóricos que são essenciais para a compreensão do supracitado caso, bem como uma análise
doutrinária do referido princípio do interesse público e sua evolução, do direito à moradia
enquanto direito fundamental, da relação entre direito à moradia e direito à propriedade e do
modo como ocorre a intervenção do Estado no domínio privado.
2.1. A concepção tradicional do princípio do interesse público
Tradicionalmente, a doutrina compreende o interesse público como um dos elementos
norteadores de todo o Direito Administrativo. Para Hely Lopes Meirelles (2000), há uma
superioridade do interesse público e, em um possível conflito, prevalece este em detrimento do
interesse privado. Nas palavras do próprio autor,
sempre que entrarem em conflito o direito do indivíduo e o interesse da comunidade, há de prevalecer este, uma vez que o objetivo primacial da Administração é o bem comum. As leis administrativas visam, geralmente, a assegurar essa supremacia do poder público sobre os indivíduos, enquanto necessária à consecução dos fins da Administração. (MEIRELLES, 2000, p.43).
Para Bandeira de Mello (2010), em entendimento semelhante ao de Hely Lopes
Meirelles, o interesse público é entendido como o interesse da coletividade, do corpo social; é
o interesse do todo, mas, ao mesmo tempo, não é a mera somatória dos interesses das partes.
Em rigor, o necessário é aclarar-se o que está contido na afirmação de que o interesse público é o interesse do todo, do próprio corpo social, para precatar-se contra o erro de atribuir-lhe o status de algo que existe por si mesmo, dotado de consciência autônoma, ou seja, como realidade independente e estranha a qualquer interesse das partes. O indispensável, em suma, é prevenir-se contra o erro de, consciente ou inconsciente, promover uma separação absoluta entre ambos, ao invés de acentuar como se deveria, que o interesse público, ou seja, o interesse do todo, é “função” qualificada dos interesses das partes, um aspecto, uma forma específica, de sua manifestação. (MELLO, 2010, p.59).
Bandeira de Mello faz uma distinção entre os interesses particulares que os indivíduos
possuem em suas vidas privadas e interesses que expressam no âmbito público. Trata-se de uma
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 389-346, mai/ago, 2016.
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concepção em que há uma projeção de interesses individuais a um plano coletivo, um plano de
interesses comuns de todos os indivíduos. (BINENBONJM, 2008, p.87).
Assim, Bandeira de Mello, ao buscar o elemento de ligação entre o interesse público e
privado, acaba por não analisar a desvinculação entre ambos. A ligação retratada como orgânica
entre indivíduo e coletividade, como sendo intrínseca à ideia de sociedade, de Estado e de
Direito, acaba por levar o autor à compreensão de interesse público e interesse da coletividade
como sinônimos.
Evidencia-se, assim, a concepção da doutrina clássica de compreensão do interesse
público como interesse da coletividade, bem como de que há sobreposição do interesse da
coletividade sobre o interesse particular.
2.2. Interesse público e direitos fundamentais
Parte da doutrina4 vem questionando a compatibilidade entre o princípio do interesse
público (entendido meramente como o interesse da coletividade), a supremacia do interesse
público sobre o particular e a Constituição de 1988. (ACCIOLY; NETO, 2012, p. 53).
Segundo Marçal Justen Filho (2005, p.39), é de importância ímpar que não se confunda
interesse público com o interesse do Estado, com interesse dos agentes públicos, ou mesmo
interesse do aparato administrativo. Não seria possível definir o interesse público como o
interesse da coletividade, da maioria, pois se deve considerar o caráter contramajoritário da
ordem constitucional vigente, ou seja, do Estado Democrático de Direito, que objetiva à
proteção dos direitos das minorias. Também não seria possível buscar um único conteúdo para
o termo interesse público, pois se vive em uma sociedade plural, não havendo um único
interesse público, mas vários distintos e, por vezes, até antagônicos. (JUSTEN FILHO, 2005,
p. 42-43).
Portanto, não é admissível tratar o princípio do interesse público como sendo princípio
norteador do Direito Administrativo, como aponta a doutrina tradicional. Por ser um conceito
aberto, não é possível definir precisamente o que é interesse público. Assim, como a
Constituição de 1988 tutela uma infinidade de direitos públicos e privados, a atividade da
Administração deve pautar-se não pelo princípio da supremacia do interesse público, mas pela
efetivação e maximização dos direitos fundamentais, sejam eles de tutela individual ou coletiva.
(JUSTEN FILHO, 2005, p. 45).
4 Por exemplo: Humberto Ávila, Marçal Justen Filho, Gustavo Binenbojm, entre outros.
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Ao considerar que na democracia constitucional brasileira, tanto os interesses coletivos,
quantos os individuais são tutelados e são igualmente relevantes, o termo amplo “interesse
público” deve ser compreendido como a realização de interesses individuais e coletivos, sendo
ambos diretrizes para a administração pública. (BINENBONJM, 2008, p.104).
Note-se bem: não se nega a existência de um conceito de interesse público, como conjunto de “interesses gerais que a sociedade comete ao Estado para que ele os satisfaça, através de ação política juridicamente embasada (a dicção do Direito) e através de ação jurídica politicamente fundada (a execução administrativa ou judiciária do direito)”. O que se está a afirmar é que o interesse público comporta, desde a sua configuração constitucional, uma imbricação entre interesses difusos da coletividade e interesses individuais e particulares, não se podendo estabelecer a prevalência teórica e antecipada de uns sobre os outros. (BINENBOJM, 2009, p.105).
Para os dois autores, ao invés de se analisar a separação entre interesse privado e
público, eles se incorporam um ao outro. O interesse público é compreendido como garantidor
de demandas coletivas e ao mesmo tempo como garantidor de direitos individuais. Há a
preocupação, desse modo, de se maximizar a efetivação dos direitos fundamentais e não de
sobrepor o interesse de uma maioria sobre o direito de minorias.
Depois de compreender o interesse público não mais como mero direito da coletividade
abstrata, mas agora vinculado à efetivação dos direitos fundamentais, passa-se a analisar o
direito à moradia no caso de Pinheirinho.
3. Direito à moradia e o princípio da dignidade humana
A Constituição Federal de 1988 faz referência expressa ao direito à moradia no artigo
6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, alimentação, o trabalho, a moradia, a segurança
[...] na forma desta Constituição.” (grifo nosso) Ao tratar do direito à moradia, a legislação não
define seu conceito, cabendo à doutrina fazê-lo. Consoante entendimento de José Afonso da
Silva (2004),
o direito à moradia significa ocupar um lugar como residência; ocupar uma casa, apartamento etc., para nele habitar. No “morar” encontramos a idéia básica da habitualidade no permanecer ocupando uma edificação, o que sobressai com sua correlação como o residir e o habitar com a mesma conotação de permanecer ocupando um lugar permanentemente. Quer-se que garanta a todos um teto onde se abrigue com a família de modo permanente, segundo a própria etimologia do verbo morar do latim “morari”, que significa demorar, ficar [...]. (SILVA, 2004, p. 900)
O Professor Bernardo Gonçalves Fernandes (2015, p. 432) aponta o dever de se
interpretar de forma ampla, como qualquer local habitado que não seja aberto ao público,
utilizado para moradia.
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Importante ressaltar que o Direito à moradia só foi positivado na Constituição em 2010,
com a Emenda Constitucional nº 64. No entanto, mesmo antes da positivação, já era protegido
pelo ordenamento jurídico brasileiro, com base em tratados internacionais (DIAS; CALIXTO,
2015, p. 233) dos quais o Brasil é signatário, como por exemplo, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948; o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Nova York,
1966); o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Nova York,
1966).5
Para além dos tratados internacionais, o Direito à moradia era tutelado domesticamente,
de modo implícito pela Constituição, como um direito fundamental decorrente do princípio da
dignidade da pessoa humana, visto que a moradia é mínimo essencial para garantir as
necessidades existenciais, bem como uma vida digna. (MARRA; GOLÇALVES, 2012, p. 142.)
Ao se abordar o direito à moradia, evidencia-se a impossibilidade de se desvincular o
princípio da dignidade humana dos direitos fundamentais e dos direitos sociais. Não há
dignidade se a pessoa não possui um local onde morar, condições mínimas de proteger sua
intimidade, privacidade, nem de se proteger do clima, de garantir segurança, bem-estar físico,
mental e social. Em síntese, para se efetivar a dignidade humana é necessário garantir o direito
à moradia. (MARRA; GOLÇALVES, 2012, p. 142).
Importante destacar que ao abordar do direito à moradia há grande preocupação em desenvolver a noção de moradia adequada. Ou seja, não bastam “quatro paredes e um teto” para que se configure uma moradia. Existem outros fatores que determinam se esta é adequada para atender à dignidade do cidadão ou não. E, além de fatores materiais como localização, acesso a serviços públicos básicos, condições de salubridade entre outros, existem fatores simbólicos ou afetivos ligados à noção de moradia. Trata-se de fatores que podem ser mais difíceis de serem objetivados, mas que devem ser levados em consideração, por exemplo, o vínculo existente entre as pessoas e o lugar em que a moradia está localizada (caso das comunidades quilombolas, indígenas, povos tradicionais da América Latina, entre outros), ou as relações de vizinhança estabelecidas, ou mesmo a existência de laços consanguíneos com determinadas famílias que ocupam o mesmo território. Este último caso pode ser exemplificado no processo de formação das favelas brasileiras. Ou ainda, a relação do morador que construiu a casa em que vive e possui uma série de relações afetivas com o lugar em que presenciou fatos importantes de sua vida. (DIAS; CALIXTO, 2015, p. 235).
5Além dos exemplos citados, há também outras convenções e tratados internacionais: Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Nova York, 1965); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Nova York, 1979); a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (Nova York,1989); a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (Nova York, 1990); e a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (Genebra, 1951).
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Neste ínterim, compreende-se o Direito à moradia como um desdobramento do princípio
da dignidade humana, tutelado por tratados internacionais e pela própria Constituição. O Direito
à moradia deve ser garantido de modo amplo, devendo se considerar uma série de questões
materiais e afetivas.
Feita uma análise teórica, no próximo tópico será analisado o modo como grupos
vulneráveis acessam esse direito fundamental, bem como a insegurança da posse e sua relação
com o direito à moradia.
4. O direito à moradia e o direito à posse e à propriedade
Tendo como base o relatório da ONU-Habitat de 2012, referente à América Latina e ao
Caribe, concluiu-se que, no Brasil, predominantemente, para se efetivar o direito à moradia,
utiliza-se da propriedade da moradia em que se vive. Porém, não se confunde ser proprietário
com a detenção de um título legalmente reconhecido, que garanta a propriedade de um bem.
Há muitos casos em que não há esse título, mas apenas a configuração da posse, o que se
denominou assentamento informal.
Assim, grande parte das pessoas se considera detentora da propriedade, mesmo tendo
apenas a posse. Entretanto, há uma grande fragilidade no exercício do direito à moradia
adequada nos casos em que as pessoas se afirmam como proprietárias de determinadas
moradias, mas sem amparo legal das propriedades do solo em que as construções foram
realizadas. (DIAS; CALIXTO, 2015)
4.1. Grupos vulneráveis e a insegurança jurídica da posse
A fragilidade supracitada afeta os grupos vulneráveis que vivem uma constante
insegurança jurídica da posse, pois historicamente, no Brasil, o solo foi e é ocupado de modo
desordenado, uma vez que não há, em regra, planejamento urbano. Desta feita, visando a
garantir o mínimo existencial, pessoas acabam por ocupar áreas públicas e privadas
(desocupadas, abandonadas, ociosas), dividindo a cidade em formal e informal. (GASPERIN,
2014, p. 2)
Os assentamentos informais são resultado da omissão do Estado, ao não garantir, nem
efetivar o direito fundamental à moradia adequada para esses grupos vulneráveis. Assim, as
populações desses assentamentos informais sofrem com a fragilidade de moradias irregulares.
(GASPERIN, 2014, p.2)
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 389-346, mai/ago, 2016.
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Uma vez que ocupam áreas em que não há proteção legal ou áreas de risco, sofrem a
constante incerteza de terem que sair do local, de serem expulsas, seja por catástrofes naturais,
seja por remoções e despejos forçados, grilagem, entre outros. (DIAS; CALIXTO, 2015, p.
241-242).
Teoricamente, pelo princípio da função social da propriedade, as famílias que ocupam
essas áreas para a moradia, deveriam, com o tempo, tornar-se proprietárias destas. (GASPERIN,
2014). Para além do título individual, é possível o título coletivo, ou mesmo a garantia da posse
por períodos determinados. Contudo, “os ocupantes convivem com a precarização das moradias
e com a incerteza quanto à posse do lugar em que vivem.” (DIAS; CALIXTO, 2015, p. 244)
5. Intervenção do Estado no domínio privado: desapropriação por interesse social
e sancionatória
5.1. Conceito
A desapropriação consiste em um procedimento administrativo e judicial, no qual o
poder público ou seus delegados, com o intuito de atingir o interesse público, tomam para si o
direito de propriedade, mediante prévia e justa indenização. É a forma mais gravosa de
intervenção estatal na propriedade privada, já que a parte, mesmo sendo indenizada, perderá
sua propriedade. Dessa maneira, o Estado, de acordo com um motivo e visando a atingir a
finalidade de garantir que os interesses sociais, a utilidade ou a necessidade pública sejam
cumpridos, influi de forma agressiva no domínio privado. Sendo assim, fazendo uma analogia
à Teoria Geral do Processo, segundo Wilton Luis da Silva Gomes (2009, p. 57), a
desapropriação possui dois objetos, o imediato e o mediato. O primeiro consiste na aquisição
do direito de propriedade, enquanto o segundo é a finalidade na qual se motivou a execução.
Celso Antônio Bandeira de Melo (2014) conceitua a desapropriação com duas visões
diferentes:
Do ponto de vista teórico, pode-se dizer que desapropriação é o procedimento através do qual o poder público compulsoriamente despoja alguém de uma propriedade e a adquire, mediante indenização, fundada em um interesse público. Trata-se, portanto de um sacrifício de direito imposto ao desapropriado. À luz do Direto Positivo brasileiro se define como o procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, normalmente adquirindo para si, em caráter originário, mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais, em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida
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pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservando seu valor real. (MELLO, 2014, p. 889-890)
Embora possa haver essa separação de conceitos, é notável que um complementa o outro
a fim de equilibrar as duas posições. Para haver a intervenção do Estado no domínio privado, é
necessária a indenização justa e prévia, visto que o particular será afetado, perdendo sua
propriedade, com o fim de que sejam garantidos direitos fundamentais, como a moradia.
5.2. Espécies
Dentre as espécies de desapropriação, há duas em específico que serão de necessária
compreensão para a abordagem do presente artigo, quais sejam, a desapropriação sancionatória
e a desapropriação por interesse público.
5.2.1. Desapropriação sancionatória
Esta espécie de desapropriação pode ser denominada extraordinária. Conforme elencado
na Constituição, há dois tipos de desapropriação sancionatória: quando a propriedade deixa de
cumprir sua função social, seja ela urbana (art. 182, §2º, CF/88) ou rural (art. 184, CF/88), caso
em que a indenização será em títulos da dívida pública; ou ainda a expropriação (art. 243,
CF/88). (PIETRO, 2010, p. 159)
No presente trabalho, iremos tratar apenas da desapropriação sancionatória urbana que
está prevista na Lei 10.257/01. Neste caso, a desapropriação ocorre em imóveis urbanos, sendo
necessária legislação específica do município e previsão no plano diretor aprovado por lei. É a
mais drástica sanção oponível àquele que possui uma propriedade não edificada ou não
utilizada.
5.2.2. Desapropriação por interesse público
Esta espécie de desapropriação pode ser denominada ordinária e abrange três tipos:
necessidade pública, utilidade pública e interesse social. Está elencada no art. 5º, XXIV da CF,
que preceitua que a indenização deverá ser paga em dinheiro.
A necessidade e a utilidade pública têm como finalidade fazer com que o Estado atenda
a interesses gerais da sociedade. Já a desapropriação por interesse social está fundada no
principio fundamental da função social da propriedade. Para Bandeira de Melo,
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 389-346, mai/ago, 2016.
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são hipóteses de desapropriação por interesse social, consoante dispõe o art. 2º da Lei 4.132, entre outras: o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve servir ou possa suprir por seu destino econômico; o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola, a construção de casas populares, a proteção do solo e a proteção de cursos e mananciais de água e de reservas florestais. (MELLO, 2014, p. 898).
Quando o Poder Público tenta diminuir as desigualdades se utilizando da desapropriação
como um instrumento fundamental da justiça, ele está pautado no interesse social, visando à
efetivação da função social da propriedade. Por isso, este tipo de desapropriação é a ferramenta
que o poder público possui para poder efetivar direitos fundamentais. (MARTINS, 2002, P. 86)
5.3. A diferença entre desapropriação e remoção
Quando uma propriedade, seja ela pública ou privada, é ocupada por famílias e o poder
público precisa retirá-las do local, há duas alternativas: desapropriação ou remoção.
Quando a área é regularizada e os proprietários possuem documentação, estes são
desapropriados e recebem pelo valor do terreno e pelas benfeitorias construídas. Entretanto,
quando a ocupação ocorre de maneira irregular e não há documentação, ou seja, quando os
moradores da área não são proprietários do terreno, ocorre a remoção, sendo aqueles
indenizados somente pelas benfeitorias. 6
Nos casos em que há a remoção, nota-se que é como se coexistissem duas cidades: a
cidade formal, que obedece aos padrões de urbanização previstos na legislação da cidade e
habitada pelos incluídos; e, do outro lado, o local em que se encontram as minorias, os
excluídos, que não possuem moradia formal, vivendo sem infraestrutura e em condições
precárias. (BERÉ, 2005, p. 164)
No contexto exposto acima, há um grave problema, qual seja, a não efetivação do direito
de moradia, que tem por consequência as ocupações irregulares. Quando o poder público
remove famílias do local onde vivem, é responsabilidade daquele fornecer nova moradia.
6. O caso de Pinheirinho em São José dos Campos
6Diferença entre remoção e desapropriação. Justiça em questão. 8´24´´. Disponível em:
<http://www.tjmg.jus.br/portal/imprensa/justica-em-questao/acervo-ocultado/diferenca-entre-remocao-e-desapropriacao.htm>. Acesso em fevereiro de 2016.
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O município de São José dos Campos está localizado na porção leste de São Paulo,
situado entre os principais eixos econômicos, Rio de Janeiro e São Paulo (Rodovia Presidente
Dutra), e próximo ao litoral norte de São Paulo e Porto de São Sebastião. O município se tornou
um polo tecnológico à custa de uma industrialização rápida e um crescimento sem planejamento
urbano. (MACHADO, 2014, p. 22) Assim, em que pese esse desenvolvimento econômico
surgiram déficits na infraestrutura, moradia e serviços urbanos.
A partir da década de 1970, ocorreu uma reestruturação na área urbana, de modo que
várias pessoas se mudaram para São José dos Campos. Contudo, não havia nenhum plano
habitacional e, com isso, a população de baixa renda foi migrando para regiões periféricas e
ocupou loteamentos e bairros clandestinos. (FORLIN; COSTA, 2010, p. 125)
Devido a esse déficit habitacional, o Pinheirinho, região sul de São José dos Campos,
foi ocupado por quase duas mil pessoas que não tinham onde morar. A ocupação ocorreu no
início de fevereiro de 2004 e perdurou até 2012. O terreno ocupado pertencia à massa falida da
empresa Selecta S/A, cujo proprietário era Naji Nahas, e foi abandonado, com dívidas na
Prefeitura referentes a impostos que não eram pagos há anos (MACHADO, 2014, p. 29).
Percebe-se, portanto, que esta área não estava cumprindo sua função social.
Houve todo um planejamento de ocupação da área de Pinheirinho. “À margem da
legalidade, uma infraestrutura foi montada.” (FORLIN; COSTA, 2010, p. 139) Na localidade
havia parque, comércio em geral, loteamentos distribuídos em porções iguais e, dentro de
Pinheirinho, existia um controle de segurança sobre quem entrava e saia da área.
Entretanto, estes moradores sempre sofreram retaliações por parte do município que não
lhe garantia uma vida digna e não possuía política habitacional capaz de atendê-los, querendo
retirá-los de lá.
A ocupação encontrava na cidade forte resistência, enfrentando inúmeras tentativas de desocupação por parte da Prefeitura. Notícias corriam pela cidade na tentativa de desqualificar seus moradores, como oferta de passagem de ônibus para que famílias retornassem à sua cidade natal, vinculando a idéia que a população residente do Pinheiro era “de fora de São José dos Campos”, como comenta Forlin e Costa (2010, p. 136). Outra notícia ventilada na cidade foi a multa de mil salários mínimos aos moradores, ou mesmo corte de fornecimento de água e luz e restrição de serviços públicos, como atendimento médico público. (MACHADO, 2014, p. 30)
Por meio de Mandados de Reintegração de posse, a Polícia Militar, por diversas vezes,
tentou desocupar a área, mas não obteve êxito. Os sindicatos de São José dos Campos, em
especial o dos metalúrgicos, sempre apoiaram a população de Pinheirinho. Entretanto, foi
concedida a liminar pela 6ª Vara Cível de São José dos Campos, em ação possessória,
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 389-346, mai/ago, 2016.
Alethes | 400
permitindo a reintegração de posse em favor da Massa Falida e, de forma violenta, em janeiro
de 2012, Pinheirinho se tornou cenário de uma violenta reintegração de posse.
No dia 22 de janeiro de 2012, ainda pela madrugada, São José dos Campos entrava para a história do país com a reintegração de posse mais violenta presenciada até então. Um antigo acampamento de sem tetos na zona sul da cidade, ocupado por 1.750 famílias (cerca de 6.000 pessoas) em uma área particular de aproximadamente 1,3 milhão de metros quadrados. A forma com a qual foi tratada a reintegração chamou a atenção de toda mídia nacional e internacional. (VIEIRA, 2015, p. 08)
Este fato levou à destruição da moradia de milhares de pessoas, que acabaram sendo
levadas para abrigos. Quando saíram desses abrigos, passaram a receber R$500,00 para que
pudessem pagar aluguel, sendo-lhes prometido que, dentro de um ano e meio, seriam
construídas moradias populares. (MACHADO, 2014, p. 31) Desse modo, em 2013, as famílias
já deveriam estar realocadas. Contudo, o que se verifica é que, até hoje (2016), esse plano ainda
não foi concluído e as casas ainda não estão prontas.
Quatro anos após a desocupação de Pinheirinho, seus ex-moradores encontram-se
recebendo auxílio de R$500,00 provenientes do estado de São Paulo e do município. As
famílias estão à espera da entrega das moradias no Residencial Pinheirinho dos Palmares, como
foi prometido. Recentemente, após mais um atraso no planejamento, a Prefeitura informou que
em junho de 2016 as obras estarão concluídas.7
6.1. O direito à moradia da população de Pinheirinho e o interesse público
Conforme exposto acima, é assegurado constitucionalmente o direito à moradia, não
podendo ser este entendido como o mero possuir de um teto, mas também como acesso a
serviços básicos que propiciam a concretização da dignidade humana, além de fatores
simbólicos e afetivos e de vínculos entre as pessoas e o local em que moram.
Constata-se que, na ocupação do Pinheirinho, foram formados vínculos que
propiciavam que os moradores se sentissem realmente em um lar. Consoante estudo
aprofundado de Pedro Machado (2014), que realizou entrevistas com moradores do
Pinheirinho, verifica-se que os próprios moradores construíram suas casas, no começo com
apenas lona e estacas e, posteriormente, de alvenaria. Do mesmo modo, foram criados pequenos
7G1, Ex-moradores do Pinheiro protestam em São José dos Campos. Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2016/01/ex-moradores-do-pinheirinho-protestam-em-sao-jose-sp.html.> Acesso em 01 de fevereiro de 2016.
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comércios dentro da ocupação, pelos próprios moradores, de onde retiravam sua fonte de renda,
como bares, bombonieres, brechós, reciclagem, etc.
Desse modo, diante das dificuldades enfrentadas, os moradores do Pinheirinho se
mostravam orgulhosos de ter sua moradia, demonstrando isso em suas falas: “[...] minha casa
era considerada assim, uma [...] [das melhores] casas que tinha no Pinheirinho”; “fizemos
uma casinha muito bem feitinha e todo mundo ficava bobo de ver”. (MACHADO, 2014, p. 85)
Verifica-se, portanto, a construção da identidade daquelas pessoas naquele local e o fato de que,
embora serviços básicos fossem precários, dada a omissão do poder público de garantir
condições mínimas adequadas de sobrevivência, o Pinheirinho se tornou a verdadeira morada
de todas aquelas famílias que, antes, não possuíam nem mesmo um teto sob onde morar.
Portanto, tem-se que a remoção forçada destas famílias, retirando-as do local em que
construíram suas casas, estabeleceram seus comércios e sua fonte de renda, levando-as para
abrigos, com o pretexto de serem construídas moradias populares, que até o presente momento
(março de 2016) ainda não foram finalizadas, constitui grave violação ao direito à moradia,
constitucionalmente positivado. Sendo referido direito consectário do princípio da dignidade
da pessoa humana, percebe-se, por conseguinte, a grave violação de um direito fundamental.
Partindo-se da premissa de que o interesse público está intrinsecamente ligado à
efetivação de direitos fundamentais, superada a noção de que o interesse público se confundiria
com o interesse da coletividade, porquanto contrária à noção de Estado Democrático de Direito,
como já exposto no início deste artigo, infere-se que a remoção das famílias da ocupação do
Pinheirinho, ao violar o direito fundamental à moradia, bem como a dignidade humana, viola
também o interesse público – este entendido como a realização de direitos individuais e
coletivos, que deve pautar a atuação da Administração Pública. (JUSTEN FILHO, 2005)
Nesse sentido, diante do antagonismo entre o direito à moradia da comunidade do
Pinheirinho e o direito à propriedade da massa falida, tomando-se por base o princípio da
dignidade humana e a noção de direitos fundamentais, o Estado deveria garantir o direito à
moradia. Sua atuação no sentido de remover, mediante poder de polícia, tais famílias do local,
vai de encontro ao interesse público, princípio basilar do agir administrativo.
6.2. A intervenção do Estado na propriedade e o interesse público
Consoante já tratado neste artigo, a desapropriação é a forma de intervenção mais
drástica do Estado na propriedade e ocorre tanto por interesse social e utilidade pública, quanto
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 389-346, mai/ago, 2016.
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como meio sancionador para aqueles cuja propriedade não cumpre sua função social, conforme
previsto na Constituição Federal.
A função social, introduzida no conceito de direito subjetivo, suscita o entendimento de que o ordenamento jurídico apenas concederá merecimento à persecução de um interesse individual quando este apresentar uma relação de compatibilidade com os anseios sociais que com ele se relacionam. O individualismo exacerbado cede lugar ao direito subjetivo direcionado à realização dos princípios da justiça e do bem-estar social. (SANTIS, 2009, p. 46)
Desse modo, o que se verifica é que “a função social é uma condição sine qua non para
que seja garantido o direito de propriedade. Esta passa a compor intimamente o instituto da
propriedade, estabelecendo seus contornos. Assim, qualquer propriedade (não só a de bens
imóveis) deverá atender à função social.” (GOMES, 2009, p. 87) Se isso não ocorre, o Estado
tem legitimidade para intervir no direito à propriedade, não podendo este mais ser entendido
em sentido absoluto, para garantir o interesse público – este, como já explanado,
intrinsecamente ligado à concretização de direitos fundamentais.
Constata-se que, em relação ao Pinheirinho, a área ocupada, pertencente à massa falida
da empresa Selecta S/A, “não cumpre sua função social desde a década de 1970, quando foi
adquirida [...]”, pois descumpre o plano diretor do município, sendo que os proprietários não
pagam o IPTU do terreno desde 1983 e a dívida com a Prefeitura de São José dos Campos já
chegaria a R$ 6 milhões de reais, o que corresponde ao valor venal da área. (FORLIN; COSTA,
2010, p. 143)
Portanto, tem-se que, não cumprindo a propriedade de Naji Nahas sua função social, o
Estado detém a legitimidade para realizar sua forma de intervenção mais drástica, qual seja, a
desapropriação.
Mas, para além disso, verifica-se que, no Pinheirinho, não só a propriedade da massa
falida não cumpria sua função social, como seu abandono deu ensejo à ocupação por quase duas
mil famílias que, em virtude da omissão da Prefeitura em suprir o déficit habitacional do
município, não possuíam moradia e, pouco a pouco, sob a liderança de movimentos sociais e
do PSTU, foram construindo suas casas e seus comércios.
Sendo assim, constituindo o direito à moradia um direito fundamental, necessário à
concretização da dignidade humana, e devendo a Administração Pública se pautar na efetivação
de direitos fundamentais como meio de realizar o interesse público, tem-se cabível a
desapropriação da referida área por interesse social e utilidade pública.
Constatado o dever do Estado de desapropriar o terreno da massa falida, seja como meio
sancionatório devido ao descumprimento de sua função social, seja por interesse social para a
SOUZA, M.; PIMENTA, M.P.R.A.; CARVALHO, R.K.M. Descumprimento do interesse público
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concretização do direito fundamental à moradia e, por conseguinte, do interesse público,
verifica-se que ele agiu na contramão daquilo que deveria pautar sua atuação.
Consoante Forlin e Costa (2010),
a PMSJC já tentou por mais de dez vezes desocupar a área. Mandados de reintegração de posse foram efetivados por ela, sendo derrotados pelas diversas iniciativas políticas e jurídicas, tanto dos moradores da ocupação quanto dos sindicatos da cidade, em especial do Sindicato dos Metalúrgicos. [...] A atitude da Prefeitura, desde a ocupação do Pinheirinho, tem sido de desqualificar e atacar o movimento dos sem-teto, [...]. No começo da ocupação, até mesmo multa estipulada em mil salários mínimos foi ventilada a ser aplicada pela Prefeitura caso casas de alvenaria e ruas fossem construídas no acampamento. (FORLIN; COSTA, 2010, p. 140)
Desse modo, conclui Dias e Calixto (2015) que
O Estado – notadamente no contexto brasileiro - ao invés de buscar formas de efetivar a segurança da posse, é responsável pela expulsão dos moradores da ocupação, disponibilizando o aparato policial necessário para o cumprimento de decisões judiciais de despejo. A forma de regulação da propriedade privada urbana e a ação limitada do poder público para tornar efetivo novo paradigma jurídico revelam que a função social da propriedade ainda não é considerada fonte de mudança e de justiça social, a partir da ordem jurídica. (DIAS; CALIXTO, 2015, p. 244)
Portanto, se verifica que, no caso de Pinheirinho, o Estado, ao promover a remoção
forçada das famílias que ocupavam uma extensa propriedade que já não cumpria sua função
social há cerca de três décadas, não promovendo a desapropriação do terreno como meio
sancionador e nem de garantia do interesse social, não apenas violou o direito à moradia, como
também agiu contrário à premissa básica que deve pautar o agir administrativo, qual seja, o
interesse público, entendido aqui como efetivação dos direitos e garantias fundamentais.
7. Conclusão
A partir do exposto no presente trabalho, conclui-se que o atuar da Administração
Pública deve ter sempre por diretriz o interesse público, não podendo ser este mais entendido
como o interesse da coletividade, mas como meio de efetivação dos direitos fundamentais. A
busca pela concretização do interesse público permite a intervenção do Estado na propriedade
privada como meio de garantir, dentre outros direitos, a dignidade humana e a moradia. Além
disso, não é cabível falar em propriedade enquanto direito absoluto após a Constituição de 1988,
visto que deve sempre cumprir sua função social para que seja legítima, sob pena de passar por
um processo de desapropriação como meio sancionador.
A remoção das famílias da comunidade do Pinheirinho por parte da Prefeitura de São
José dos Campos não apenas constitui grave violação ao direito à moradia e à dignidade humana
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 389-346, mai/ago, 2016.
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(e, por conseguinte, ao interesse público), como também representa a violação do princípio
constitucional da função social da propriedade, visto que, se tratando de uma área abandonada
que não adimplia nem mesmo com os impostos municipais, deveria ter sido desapropriada com
finalidade sancionatória.
Portanto, a Prefeitura de São José dos Campos, ao privilegiar o direito à propriedade de
uma massa falida, que sequer cumpria sua função social, em detrimento do direito à moradia
de quase duas mil famílias, age, escancaradamente, em sentido contrário à principal diretriz da
atuação administrativa, qual seja, a efetivação do interesse público.
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VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação
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O Controle de Imigração e o Direito à Educação das Crianças Migrantes Irregulares
Immigration Control and the Right to Education to I rregular Migrant Children
Mariana Ferolla Vallandro do Valle1
Resumo: O presente artigo aborda as prerrogativas dos Estados de tomarem medidas de controle
de imigração em suas fronteiras em oposição à obrigação de garantir o direito à educação a todas as crianças em seu território. Essa obrigação é oponível ao Estado ainda que a criança tenha o estatuto de migrante irregular, sendo que qualquer discriminação com base nesse estatuto só pode ser efetuada em conformidade com estritas condições e não pode equivaler a uma negação total do direito à educação. Apesar disso, nota-se que a prática nos Estados ainda é, em sua maioria, de barrar o acesso à educação a crianças migrantes irregulares, seja diretamente ou pela prática das escolas. Devido aos esforços para minar esse tipo de imigração, a utilização da detenção como medida de controle migratório também é feita de modo a impedir o acesso à educação a essas crianças, violando o direito internacional.
Palavras-chave: Migrantes irregulares. Crianças migrantes. Direito à educação.
Abstract: This article addresses States’ prerrogatives to take measures of immigration control within their borders as opposed to the obligation to guarantee the right to education to all children in their territory. This obligation is opposable to States even if the child has an irregular migratory status and any discrimination based on the latter can be performed only in conformity with strict conditions and cannot be equivalent to a total denial of the right to education. Despite this, we note that the practice in State is, mostly, barring access to education to irregular migrant children, either directly or by the schools’ practice. Due to the efforts taken to undermine this kind of immigration, the use of detention as a measure of migratory control is also made in a way that prevents access to education to these children, in violation of international law.
Keywords: Irregular migrants. Migrant children. Right to education.
1 Universidade Federal de Minas Gerais, atualmente em intercâmbio de graduação na Université Laval (Canadá).
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 407-428, mai/ago, 2016.
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1. Introdução
Nos últimos anos, a comunidade internacional tem presenciado uma intensificação dos
fluxos migratórios, sobretudo aqueles efetuados de maneira irregular. Embora seja difícil
encontrar estatísticas precisas sobre o número de migrantes irregulares, exatamente porque
estes não se conformam às regulações de entrada dos Estados, a Organização Internacional para
a Migração (2014, p. 3) estimou que existem ao menos 50 milhões desses migrantes no mundo
e apenas na União Europeia (2015) foi registrado um aumento de 138% no número de migrantes
irregulares em 2014 comparado a 2013.
Dados acerca de quantos desses migrantes irregulares são crianças são ainda mais raros
(PICUM, 2011, p. 8). Existe, entretanto, um consenso de que existem cada vez mais crianças
migrantes no mundo (BHABHA, 2012, p. 210) e essa situação tem se tornado grande fonte de
preocupação em diversos Estados receptores (PICUM, 2012, p. 1; AFP, 2014).
A irregularidade da entrada cumulada com a pouca idade coloca crianças migrantes não-
documentadas em situação de especial vulnerabilidade. Essas circunstâncias são agravadas pelo
fato de que, ao tentar coibir os fluxos de migrantes irregulares, por vezes Estados acabam por
limitar o acesso dessas crianças a alguns direitos sociais (PICUM, 2011, p. 6), dentre eles o
direito à educação. Cria-se, assim, uma tensão entre os poderes soberanos do Estado em
controlar a imigração e os direitos migrantes irregulares crianças.
O presente artigo analisará a questão do acesso ao direito à educação, conforme disposto
no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e na
Convenção sobre os Direitos da Criança (CDE), das crianças que se encontram sob a jurisdição
de um Estado com um estatuto de imigração irregular e a conciliação desse direito com as
medidas de controle migratório pelo Estado. Mais especificamente, este artigo visa a identificar
em que medida os Estados são obrigados a garantir o acesso à educação a essas crianças e como
a prática dos Estados em geral se conforma, ou não, a essa obrigação, identificando também as
principais dificuldades de menores migrantes irregulares em exercer esse direito.
A fim de responder essas questões, analisaremos a princípio a questão do controle de
imigração e sua relação com os direitos humanos, demonstrando que a prerrogativa dos Estados
de recusar a entrada de pessoas em seu território não o exime de garantir os direitos humanos
daqueles sob sua jurisdição. Em seguida, será discutido se o estatuto migratório pode ser
considerado como um motivo de discriminação segundo o PIDESC e a CDE e quais condições
devem ser preenchidas para justificar um tratamento diferencial com base no mesmo. Serão
avaliadas, então, as circunstâncias do acesso à educação por crianças migrantes irregulares com
VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação
Alethes | 409
base na prática de Estados grandes receptores de imigrantes na Europa – sobretudo Bélgica,
França, Grécia, Holanda, Itália, Reino Unido, Suécia e Espanha – e na América – Brasil, Canadá
e Estados Unidos. Finalmente, serão abordados o uso da detenção administrativa como medida
de controle de imigração para crianças e os impactos dessa medida sobre o acesso à educação.
Nesse ponto, será analisada a prática de Estados que, além de servirem de destino para um
grande número de migrantes irregulares, utilizam-se usualmente de medidas de detenção
administrativa, quais sejam Austrália, Bélgica e Reino Unido.
2. O controle de imigração e o respeito aos direitos humanos
A soberania estatal é um dos princípios de base da ordem internacional e traduz-se pelo
poder de exercer, sobre uma porção de território, de maneira exclusiva, as atividades próprias
de um Estado (INTERNACIONAL, 1928, p. 839). Um corolário dessa prerrogativa é o poder
de controlar suas fronteiras (KOSER, 2005, p. 4). Ao realizar esse controle, cabe ao Estado
decidir quem terá autorização para entrar em seu território e quais procedimentos deverão ser
seguidos para se obter tal autorização. O direito internacional não regula diretamente esses
mecanismos de controle, deixando-os ao domínio reservado (domaine reservé) dos Estados
(GUIRAUDON & GALLYA, 200, p. 167).2
A entrada de indivíduos no território de um Estado sem se conformar aos procedimentos
relevantes é frequentemente vista como uma ameaça a esse poder soberano (KOSER, 2005, p.
10). Em razão disso, as autoridades governamentais estabelecem diversos mecanismos para
processar as pessoas em situação de imigração irregular com vistas a regularizar seu estatuto
ou retirá-las do país.
À primeira vista, todas essas medidas são legítimas, visto que o Estado não é obrigado
a admitir quem quer que seja em seu território. Entretanto, esse fato não o libera de suas outras
obrigações internacionais, particularmente aquelas referentes aos direitos humanos. Estas são
ativadas cada vez que um indivíduo se encontra sob o território ou sob a jurisdição do Estado –
isto é, sob o controle de fato de suas autoridades (MILANOVI Ć, 2008, p. 447).
Apesar do fato de que o PIDESC não contém qualquer dispositivo que precise seu
campo de aplicação, a Corte Internacional de Justiça já estabeleceu que ele se aplica a qualquer
2 O mesmo foi admitido pelo Comitê de Direitos Humanos, embora se referindo ao âmbito específico do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Ver : COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. Observation générale nº 15. Récapitulation des observations générales ou recommandations générales adoptées par les organes crées en vertu d’instruments internationaux relatifs aux droits de l’homme. Doc NU HRI/GEN/1/Rev.6. p. 146-149. 2003. para 5.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 407-428, mai/ago, 2016.
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pessoa sob o território do Estado ou submetida à sua jurisdição (INTERNACIONAL, 2004,
para. 112). Ademais, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CDESC) (2009,
para. 30) também exprimiu que a conformidade com as obrigações do Pacto é exigida
independentemente do estatuto da pessoa segundo o direito interno. Isso é devido ao fato de
que o estatuto migratório pode variar no tempo e pode mesmo ser regularizado.
Por sua vez, a CDE (BRASIL, 1990) estipula expressamente, em seu artigo 2 (1), que
ela é aplicável a qualquer criança sob a jurisdição do Estado. Segundo o Comitê dos Direitos
da Criança,
[a]s obrigações estatais sob a Convenção se aplicam dentro das fronteiras do Estado, incluindo a respeito das crianças que passam a estar sob a jurisdição do Estado ao tentar entrar no território do país. Portanto, o gozo dos direitos estipulados na Convenção não se limita a crianças que são cidadãs do Estado parte e deve, salvo indicação contrária expressa da Convenção, ser acessível a todas as crianças – incluindo as crianças solicitantes de refúgio, refugiadas ou migrantes – sem consideração de sua nacionalidade, de seu estatuto a respeito da imigração ou de sua apatridia (COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA, 2005, para. 12).3
Logo, o status irregular de um migrante não é fator que torna os tratados de direitos
humanos inaplicáveis.
Deve-se ressaltar, contudo, que esses tratados tampouco constituem um impedimento às
medidas de controle de imigração impostas pelo Estado, como a detenção administrativa ou a
expulsão (EUROPA, 1977, para. 4, 7; EUROPA, 1997, para. 3-4). Impõem-se apenas alguns
limites quanto ao modo como são feitas; desde que os direitos dos migrantes sejam respeitados
durante todos os momentos em que eles se encontram sob a jurisdição do Estado – o que inclui,
particularmente, as condições da detenção e a observância do princípio do non-refoulement
(EUROPA, 1977, para. 6) –, as autoridades estatais têm liberdade para agir de modo a barrar a
imigração irregular.
3. O estatuto migratório como um motivo de discriminação
Uma vez que os tratados de direitos humanos são oponíveis a um Estado, os dispositivos
neles contidos devem ser respeitados sem discriminação. Essa obrigação deriva do artigo 2 (2)
3 Tradução feita pela autora. Original: Moreover, State obligations under the Convention apply within the borders of a State, including with respect to those children who come under the State’s jurisdiction while attempting to enter the country’s territory. Therefore, the enjoyment of rights stipulated in the Convention is not limited to children who are citizens of a State party and must therefore, if not explicitly stated otherwise in the Convention, also be available to all children - including asylum-seeking, refugee and migrant children - irrespective of their nationality, immigration status or statelessness. (COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA, 2005, para. 12).
VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação
Alethes | 411
do PIDESC, bem como do artigo 2 (1) da CDE, e é considerada como um pré-requisito essencial
para o gozo dos demais direitos humanos.
A não discriminação constitui uma obrigação de realização imediata para o Estado, de
modo que este não pode se eximir de respeitá-la com base em uma alegada falta de recursos
suficientes (CDESC, 2009, para. 7). Uma discriminação compreende toda distinção, exclusão,
restrição, preferência ou todo outro tratamento diferenciado fundado (direta ou indiretamente)
sobre um motivo proibido e que compromete o gozo dos direitos reconhecidos nos tratados de
direitos humanos (CDESC, 2009, para. 7).
Embora o estatuto migratório não esteja expressamente listado como um motivo
proibido de discriminação nos artigos mencionados acima, essa lista não é exaustiva, visto que
os dois dispositivos se referem também à distinção a respeito de “qualquer outra condição”
(BRASIL, 1992, art. 2 (2); BRASIL, 1990, art. 2(1)). Certos Estados sustentaram então que o
estatuto migratório não poderia ser considerado como um motivo de discriminação, visto que
se trata de uma classificação jurídica e não de uma característica pessoal do indivíduo
(EUROPA, 2011a, para. 25). Todavia, essa interpretação não foi seguida pelos órgãos
internacionais de proteção dos direitos humanos (CDESC, 2009, para. 30; (OEA, 2003, para.
118; EUROPA, 2011a, para. 45-46).
Em sua Observação Geral n. 20, o CDESC (2009, para. 30) menciona que o estatuto
migratório está incluído no critério de nacionalidade enquanto motivo proibido de
discriminação. Além disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), além de
ressaltar o caráter jus cogens da não discriminação (OEA, 2003, para. 101), afirmou também
que a caracterização de um indivíduo como um migrante irregular não justifica a adoção de
medidas discriminatórias (OEA, 2003, para. 118). Por fim, a Corte Europeia de Direitos
Humanos (CEDH) estabeleceu que, embora o estatuto migratório não seja uma característica
imutável do indivíduo, trata-se ainda de um estatuto que pode gerar diferenças de tratamento
entre pessoas em situações semelhantes e, logo, de um motivo de discriminação (EUROPA,
2011a, para. 45-46).
Entretanto, o fato de que o estatuto migratório seja percebido como um motivo proibido
de discriminação não significa que os Estados não possam jamais realizar distinções de
tratamento com base no mesmo. Primeiramente, deve-se reconhecer que o próprio artigo 2 (3)
do PIDESC permite aos Estados em desenvolvimento escolherem em que medida os direitos
dispostos no Pacto serão garantidos aos não-nacionais. Todavia, além das discussões a respeito
de o que seria um Estado em desenvolvimento, esse dispositivo permite tão-somente uma
discriminação entre os nacionais e os estrangeiros, e não entre diferentes categorias destes
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 407-428, mai/ago, 2016.
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últimos. Assim, uma discriminação que afeta unicamente os migrantes irregulares não pode ser
justificada com base no artigo 2 (3).
Por outro lado, como ocorre como todo motivo de discriminação, uma distinção será
admitida se ela é objetiva, razoável e busca a realização de um fim legítimo (CDESC, 2009,
para. 13; COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS, 1990, para. 13; OEA, 2003, para. 105, 119;
EUROPA, 1996, para. 42). Para ser razoável, a discriminação deve ser estabelecida por uma lei
que tenha um liame claro e razoável de proporcionalidade entre seu fim e as medidas tomadas
ou os efeitos destas (CDESC, 2009, para. 13). Essas condições foram abordadas de formas
diferentes pelo CDESC e pela CEDH no que diz respeito à imigração irregular e ao gozo dos
direitos econômicos, sociais e culturais.
De acordo com o CDESC (2009, para. 13), os Estados devem agir sem demora contra a
discriminação e a persistência desta com base em uma falta de recursos disponíveis pode ocorrer
unicamente se o Estado demonstrar que, antes de permitir a diferença de tratamento, fez todos
os seus esforços para eliminá-la. Ausente tal justificativa por parte do Estado, a distinção não
será nem objetiva nem razoável.
Por sua vez, a Corte Europeia não faz referência às considerações do CDESC, mas
enfatiza a discrição que os Estados possuem ao avaliarem se e em que medida um tratamento
diferenciado é justificado entre pessoas em situações semelhantes (EUROPA, 2011b, para. 52).
Ao mesmo tempo, a Corte considerou que uma diferenciação baseada na nacionalidade deve
ser apoiada por “considerações muito fortes” para que ela esteja em conformidade com a
Convenção Europeia de Direitos Humanos (EUROPA, 1996, para. 42; EUROPA, 2010, para.
37). Essa mesma formulação foi empregada pela CEDH em casos nos quais o motivo de
discriminação em questão era o estatuto migratório irregular dos requerentes (EUROPA, 2011a,
para. 37; EUROPA, 2011b, para. 52).
Ademais, a Corte Europeia formulou também algumas observações acerca da legalidade
da discriminação quando o objeto desta compreende direitos econômicos, sociais e culturais.
Segundo a CEDH, como as prestações sociais são serviços públicos que consomem muitos
recursos estatais, a imposição de critérios para a alocação de tais prestações entre a população
e mesmo a limitação do acesso a estas a certas categorias de não-nacionais constituiriam um
fim legítimo (EUROPA, 2011a, para. 49; EUROPA, 2011b, para. 54). Além disso, a Corte
estimou que os Estados possuem uma margem de apreciação bastante ampla a respeito de suas
políticas econômicas e sociais (EUROPA, 2011a, para. 37; EUROPA, 2011b, para. 52), visto
que as autoridades nacionais estão mais bem posicionadas para avaliar a situação no local
(EUROPA, 2011a, para. 37; EUROPA, 2006a, para. 52). Assim, a interferência da CEDH
VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação
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nessas políticas se limitaria aos casos em que estas são manifestamente desprovidas de base
razoável (EUROPA, 2006a, para. 52).
Em razão dessas considerações, a CEDH decidiu, no caso Bah v. Reino Unido, que a
prática do Estado de não conceder prioridade à alocação de moradia a uma mulher cujo filho
tinha um estatuto de imigração irregular não violava a obrigação de não discriminação
(EUROPA, 2011a, para. 52). Todavia, devem-se notar as particularidades desse caso: como a
própria Corte ressaltou, os requerentes não ficaram em momento algum efetivamente sem
moradia e haviam obtido um aluguel no setor privado com o auxílio das autoridades locais
(EUROPA, 2011a, para. 51). Por outro lado, em outros casos em que o acesso às prestações
sociais havia sido completamente negado aos estrangeiros, a Corte considerou a discriminação
como ilícita (EUROPA, 2010, para. 33, 42; EUROPA, 2005, para. 34; EUROPA, 2009, para.
50-52).
Embora se admita que estes últimos casos diziam respeito a refugiados ou migrantes
regulares, a CEDH também julgou existir uma discriminação ilícita no caso Ponomaryovi v.
Bulgária, no qual duas pessoas haviam perdido seu estatuto de imigração regular ao completar
18 anos e não puderam terminar o último ano escolar devido às taxas consideráveis que lhes
foram impostas como consequência (EUROPA, 2011b, para. 63). Nesse caso, a Corte ressaltou
o fato de que os requerentes já haviam iniciado os procedimentos para regularizar seu estatuto
e de que o Estado não havia demonstrado qualquer intenção de deportá-los (EUROPA, 2011b,
para. 60). Portanto houve, na realidade, uma negação total do direito à educação a pessoas que
se encontravam sobre o território e sob a jurisdição do Estado, sem uma justificativa razoável,
mesmo segundo os critérios da CEDH.
O grau de justificativa das medidas discriminatórias relativas aos direitos econômicos,
sociais e culturais adotado pela CEDH é, assim, menos severo do que o estabelecido pelo
CDESC, em razão da ampla margem de apreciação garantida aos Estados. Todavia, embora o
tribunal não o tenha afirmado expressamente, a jurisprudência da CEDH parece levar em
consideração o fato de se o gozo do direito foi limitado ou realmente impedido; enquanto uma
prioridade em relação a tal gozo garantida aos nacionais ou aos migrantes com estatuto
migratório regular foi considerada legítima pela Corte, esta não validou as situações em que o
direito foi de fato negado. Além disso, uma negação do direito poderia mesmo constituir uma
violação da obrigação de garantir ao menos o essencial do direito ao indivíduo, a qual também
possui um caráter imediato aos Estados partes do PIDESC (CDESC, 1990, para. 10).
No que diz respeito às crianças com um estatuto de imigração irregular, o Comitê dos
Direitos da Criança (2005, para. 18) interpretou as regras sobre a não discriminação de maneira
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 407-428, mai/ago, 2016.
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ainda mais restrita. Segundo o mesmo, além dos critérios de razoabilidade e legitimidade do
fim, qualquer discriminação deve ser feita de forma individualizada e nunca de maneira
coletiva. Ademais, o princípio do interesse superior da criança deve ser considerado em todos
os momentos, o que torna ainda mais difícil justificar uma discriminação em relação aos direitos
econômicos, sociais e culturais a uma categoria determinada de crianças (NGUEMA, 2015, p.
28).
Assim, apesar das variações em relação ao grau de justificativa que deve ser apresentado
pelos Estados quando ocorre uma discriminação quanto à garantia dos direitos econômicos,
sociais e culturais a imigrantes irregulares, ainda é claro que uma negação completa desses
direitos, enquanto que outras categorias de migrantes podem gozar dos mesmos, constituirá
uma discriminação ilícita. Em seguida, analisaremos o papel dessas considerações em relação
ao direito à educação e às crianças migrantes irregulares.
4. O direito à educação às crianças migrantes irregulares
O direito à educação está expresso nos artigos 13 e 14 do PIDESC e 28 e 29 da CDE.
Esses dois instrumentos estipulam que os Estados instaurem a gratuidade e o caráter obrigatório
do ensino primário a todos, ao passo que o ensino secundário deve se tornar acessível a todos,
por todos os modos apropriados – por exemplo, pela instauração progressiva da gratuidade e
pelo oferecimento de auxílios financeiros.
O objetivo do direito educação é o pleno desenvolvimento da personalidade humana e
o senso de dignidade da pessoa, criando a possibilidade de que ela tenha um papel útil na
sociedade (CDESC, 1999, para. 4). O Comitê dos Direitos da Criança (2001, para. 2) ressalta
também que o gozo desse direito permite o desenvolvimento da autonomia da criança, de suas
competências e da confiança em si mesmo. À luz desses fins, a educação é uma medida de
proteção especial à criança e possui uma importância fundamental para que esta possa viver sua
vida com dignidade (OEA, 2002, para. 84). Trata-se, então, de um direito que desenvolve as
capacidades da pessoa e permite que esta goze de seus outros direitos (GEDDIE, 2009, p. 30).
A importância desse direito é ainda evidenciada pelos esforços internacionais de garanti-lo a
todos, mesmo em situações de crise humanitária (INEE, 2012, p. 7, 57).
Apesar de seu caráter de direito à realização progressiva, a educação comporta algumas
obrigações imediatas aos Estados, particularmente a garantia de um ensino primário gratuito a
todos, a não discriminação, e a proibição de medidas regressivas (CDESC, 1999, para. 43, 45).
Assim, se um Estado age de maneira a afetar o gozo do direito à educação, ele deve provar que
VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação
Alethes | 415
esgotou todas as alternativas possíveis antes de fazê-lo (CDESC, 1999, para. 45). A CIDH
enfatizou a obrigação dos Estados de garantirem de maneira constante o acesso das crianças a
esse direito com todos os recursos possíveis, evitando regressões e atrasos injustificáveis (OEA,
2002, para. 81).
Deve-se notar que, em vista da importância e dos objetivos da educação, o acesso efetivo
a esta figura apenas como um dos indicadores para a realização desse direito (SPREEN &
VALLY, 2012, p. 73) – os outros sendo a dotação, a aceitabilidade e a adaptabilidade da
educação (CDESC, 1999, para. 6). Todavia, é sobretudo o aspecto da acessibilidade que não é
respeitado quanto à educação a crianças migrantes irregulares (CHOLEWINSKI, 2005, p. 39).
No plano jurídico, o acesso à educação de forma não discriminatória aos menores com
estatuto irregular é reiterado por diversos órgãos internacionais. Particularmente, a Observação
Geral n. 13 do CDESC (1999, para. 34) confirma que qualquer pessoa em idade escolar, mesmo
os migrantes irregulares, deve ter acesso ao ensino, tal como também dispõe a Observação Geral
n. 6 do Comitê dos Direitos da Criança (2005, para. 41). A CIDH emitiu igualmente uma
opinião consultiva ressaltando o direito dos Estados de garantir o acesso à educação a todas as
crianças migrantes (OEA, 2014, para. 104). A União Europeia (1997, art. 3 (6); 2003, art. 10),
por sua vez, adotou resoluções afirmando o direito à educação em igualdade de condições às
crianças migrantes desacompanhadas – as quais, na maior parte dos casos, chegam ao Estado
de forma irregular –e aos menores solicitantes de refúgio – os quais são frequentemente
migrantes irregulares até que a decisão final sobre o pedido de refúgio seja proferida.
A posição desses órgãos, cumulada com a prática do CDESC, do Comitê dos Direitos
da Criança e da CEDH a respeito da não discriminação, confirma que os Estados não podem
simplesmente excluir o acesso dos menores aos serviços de educação em razão de seu estatuto
de imigração irregular. Embora os Estados possam se utilizar de seus poderes para agir contra
esse tipo de imigração e, excepcionalmente, quando razoável e objetivo, limitar o direito à
educação a essas crianças, um acesso mínimo deve ser garantido. Contudo, a prática dos
Estados não está sempre em conformidade com essa obrigação.
De uma maneira geral, a legislação interna dos Estados permite uma acessibilidade
formal à educação às crianças migrantes irregulares. Em primeiro lugar, certos Estados fazem
referência expressa a tais crianças. Particularmente, a Bélgica possui leis garantindo que, desde
que o menor esteja com seus pais ou com um guardião, ele será admitido aos estabelecimentos
escolares e estes não serão obrigados a relatar às autoridades o estatuto irregular da criança
(BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 16). Por sua vez, a Itália e a Holanda possuem normas que
impedem a exigência de documentos para o registro da criança na escola (UNICEF, 2010, p.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 407-428, mai/ago, 2016.
Alethes | 416
18), o que favorece a integração dos menores com estatuto irregular. Não obstante, a maior
parte dos Estados possuem apenas uma norma geral sobre o direito à educação, de forma a
incluir implicitamente os migrantes irregulares. É o caso de diversos Estados europeus (dentre
os quais a França, a Espanha, a Polônia e o Reino Unido) (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 18-
20), do Canadá (2016, p. 14), dos Estados Unidos (1982, p. 230) e do Brasil (1988, art. 205).
Entretanto, essas legislações evitam apenas uma discriminação direta; há ainda diversos
meios de discriminação indireta contra esses migrantes, isto é, políticas e práticas que parecem
ser neutras em um primeiro momento, mas que na realidade afetam de maneira desproporcional
certos indivíduos em razão de um motivo de discriminação proibido. O próprio CDESC (2009,
para. 10) reconheceu a exigência de uma certidão de nascimento para inscrever uma criança na
escola como um fator potencial de discriminação contra certos não nacionais. No que diz
respeito aos menores migrantes irregulares, esse tipo de discriminação constitui o maior
obstáculo ao acesso à educação (CHOLEWINSKI, 2005, p. 39).
Entre os meios de discriminação indireta, a barreira mais comum às crianças migrantes
irregulares é a prática das escolas de solicitar um comprovante de residência para efetuar a
inscrição do aluno (SPREEN & VALLY, 2012, p. 78). Embora o fim de tal exigência seja
comumente de garantir que a criança resida no distrito escolar adequado, ela tem por efeito
impedir o registro dos que possuem um estatuto migratório irregular (BICOCCHI & LEVOY,
2008, p. 23). Por exemplo, existem diversos casos na França nos quais a falta de comprovante
de residência acarretou a recusa de inscrição da criança na escola (BICOCCHI & LEVOY,
2008, p. 23). No Canadá, sobretudo na província do Québec, as crianças que não apresentam
um comprovante de residência não podem se beneficiar da gratuidade do ensino primário (Le
Protecteur du Citoyen, 2014, p. 7, 12). Como a imigração irregular está frequentemente ligada
a condições de vida precárias, esse impedimento efetivamente nega o acesso à educação a tais
crianças, gerando preocupações do CDESC (2016, para. 55).
Ademais, diversos estabelecimentos escolares solicitam documentos que atestem o
estatuto migratório regular antes de permitir a inscrição do menor, mesmo em Estados em que
a lei admite o acesso às escolas aos migrantes irregulares. Na Holanda, por exemplo, requerem-
se que as escolas apresentem documentos para comprovar a inscrição dos alunos e estas são
multadas se não são capazes de fazê-lo, o que as deixa receosas de admitir migrantes irregulares
(BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 23). Por sua vez, no Brasil, uma resolução do estado de São
Paulo, em vigor de 1990 até 1995, proibia a inscrição nas escolas de qualquer migrante
irregular, estabelecia o cancelamento das inscrições já realizadas e ordenava a notificação do
Ministério da Justiça a respeito desses alunos para que medidas de controle de imigração fossem
VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação
Alethes | 417
tomadas (WALDMAN, 2013, p. 2). Nos Estados Unidos (1982, p. 230), apesar do
reconhecimento do direito à educação aos migrantes irregulares pela Suprema Corte no caso
Plyler v. Doe, diversas tentativas de estabelecer a apresentação de documentação como
obrigatória para a inscrição na escola ainda são feitas (American Immigration Council, 2012,
p. 2-3).
A CIDH teve a oportunidade de se pronunciar sobre esse tipo de situação no caso
Garotas Yean e Bosico v. República Dominicana (OEA, 2005). Nesse caso, as crianças haviam
nascido na República Dominicana e tinham, portanto, direito à nacionalidade dominicana. Não
obstante, em razão do estatuto migratório irregular de seus pais, a emissão das certidões de
nascimento das crianças havia sido negada pelas autoridades. Por causa da falta de
documentação das crianças, elas não puderem se inscrever na escola de forma regular.
Utilizando o artigo 19 da Convenção Americana de Direitos Humanos o qual prevê que os
menores têm direito a uma proteção especial, a jurisdição interamericana reafirmou a ilicitude
de medidas discriminatórias baseadas no estatuto migratório irregular de um indivíduo (OEA,
2005, p. 155) e declarou o dever do Estado de fornecer uma educação primária gratuita a todas
as crianças em um ambiente adequado e nas condições necessárias para garantir seu
desenvolvimento intelectual (OEA, 2005, p. 185). Embora a Corte não tenha ido tão longe a
ponto de ordenar que a República Dominicana reformasse a exigência de documentos pelas
escolas quando da inscrição, a ênfase colocada sobre a obrigação de não discriminação em
relação aos migrantes irregulares é uma maneira clara de conduzir a esse resultado.
Em alguns Estados, existem ainda problemas ligados ao poder discricionário das escolas
ou das comissões escolares para admitir ou não que imigrantes irregulares sejam inscritos. O
exemplo mencionado acima da Holanda demonstra bem que, apesar da existência de leis
inclusivas, a prática não está necessariamente em conformidade com elas (BICOCCHI &
LEVOY, 2008, p. 18). Na França, essa discrição foi empregada como um modo de
discriminação contra a minoria Roma, a qual compreende diversas pessoas em situação de
imigração irregular (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 25). No Reino Unido, existem também
alguns casos em que a inscrição de menores migrantes irregulares foi recusada por medo de que
esses alunos não obtivessem bons resultados nos exames públicos, impactando negativamente
a média da escola (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 26). Além disso, em 2003, o próprio
governo grego tentou barrar a inscrição de migrantes irregulares nas escolas, a despeito do fato
de que a legislação nacional relevante não traz qualquer exigência a respeito do estatuto
migratório (CHOLEWINSKI, 2005, p. 40).
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 407-428, mai/ago, 2016.
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A discrição dos estabelecimentos escolares quando da inscrição provocou várias críticas
também na Suécia. Lá, esse poder, cumulado com a falta de leis estabelecendo expressamente
o acesso à educação aos migrantes irregulares, resultou na negação desse direito a diversas
crianças, sobretudo aquelas cuja solicitação de refúgio não foi aceita, mas que continuaram no
país – comumente chamadas “crianças escondidas” (children in hiding) (BOURGONJE, 2010,
p. 51-52). Embora o governo sueco tenha tentado aportar modificações legislativas para
resolver essa situação (Save the Children Sweden, 2008, p. 23), ela ainda persiste e foi objeto
de diversas críticas do Comitê dos Direitos da Criança, como em suas Observações Finais de
2009 (para. 54-55) e 2015 (para. 51-52).
Esse problema é encontrado mesmo em Estados onde os estabelecimentos escolares não
possuem discrição e são obrigados a admitir os alunos, como na Bélgica. Organizações não
governamentais belgas notaram que existem ainda casos em que a escola se utiliza da desculpa
de que não há mais vagas disponíveis para que a criança migrante irregular não possa se
inscrever (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 27).
Deve-se admitir, entretanto, que boas práticas a esse respeito existem; particularmente,
na região da Andaluzia, na Espanha, os migrantes irregulares possuem acesso à maior parte dos
serviços sociais, dentre os quais a educação (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 27),
demonstrando um exemplo a ser seguido.
Um último obstáculo comum ao acesso à educação aos migrantes irregulares é o medo
da família de ter seu estatuto irregular comunicado às autoridades governamentais (CDH, 2010,
para. 68). Embora esse fator, à primeira vista, derive das ações da família, o comportamento
das escolas e das autoridades locais face aos migrantes, como a exigência de documentos,
contribui diretamente para fomentar esse medo. A título de exemplo, na França, ocorreram
diversos incidentes em que a polícia levou crianças na frente de uma escola suspeitas de serem
migrantes irregulares à estação de polícia a fim de prender suas famílias quando elas chegassem
(BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 27, 29).
Na maior parte dos casos, todavia, o medo das famílias não está ligado a uma supervisão
específica da documentação pelas escolas, mas a um quadro geral de repressão contra os
migrantes irregulares (LEVOY & GEDDIE, 2010, p. 101). Na Itália e na Espanha, onde não é
comum que se haja problemas com a inscrição de menores migrantes irregulares nos
estabelecimentos escolares, o temor de algumas famílias faz com que seus filhos não sejam
enviados à escola (BICOCCHI & LEVOY, 2008, p. 28). No Reino Unido, apesar da legislação
estabelecendo que as escolas não são obrigadas de informar as autoridades sobre a presença de
alunos migrantes irregulares, uma má compreensão da lei, a qual impõe tal obrigação às
VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação
Alethes | 419
autoridades locais, conduz ao temor das famílias de serem relatas e a não inscreverem suas
crianças nas escolas (Coram Children’s Legal Centre, 2013, p. 27-28).
Assim, vê-se que, apesar da legislação à primeira vista inclusiva – ou ao menos não
explicitamente excludente – dos Estados, ela não é suficiente para garantir o acesso à educação
às crianças com estatuto migratório irregular. A discriminação é feita de forma indireta, na
prática, devido a uma lógica de repressão à imigração irregular. Para que as crianças em situação
de imigração irregular possam realmente gozar de seu direito à educação, os esforços dos
Estados devem então ir além de uma simples não discriminação formal.
A questão do acesso à educação é ainda mais problemática quando as crianças estão
submetidas à privação de liberdade em virtude de seu estatuto irregular, como será demonstrado
a seguir.
5. A detenção administrativa e a educação
Uma medida de controle de imigração comumente empregada pelos Estados é a de
manter os imigrantes irregulares em um centro de detenção até que uma decisão sobre sua
permanência ou não no território seja tomada. Essa prática não é proibida em si pelo direito
internacional e sua utilidade é reconhecida para garantir, por exemplo, a deportação efetiva do
imigrante (OEA, 2010, para. 169). Contudo, qualquer detenção deve ser feita em estrita
conformidade com as obrigações internacionais do Estado, particularmente aquelas relativas
aos direitos humanos. Como disposto pela CEDH, deve-se conciliar a proteção dos direitos
fundamentais e os imperativos da política de imigração dos Estados (EUROPA, 2006b, para.
81).
No que diz respeito às crianças migrantes, a possibilidade de prendê-los em razão do
estatuto irregular é ainda mais restrita, em virtude do princípio do interesse superior da criança
(BHABHA, 2008, p. 4). Alguns argumentam que esse princípio seria mesmo incompatível com
a privação de liberdade, proibindo a detenção de crianças migrantes em qualquer caso
(CERNADAS, GARCÍA & SALAS, 2014, p. 18). Analisando o interesse superior da criança e
a regra de que a detenção de imigrantes pode ser aplicada tão-somente como último recurso, a
CIDH concluiu que a detenção de um menor migrante baseada exclusivamente em seu estatuto
irregular será sempre arbitrária (OEA, 2014, para. 154). Na prática, o critério estabelecido pela
Corte torna quase todos os casos de detenção de crianças migrantes ilícitos, pois raramente
existem outras razões além da imigração irregular que justifiquem a privação de liberdade de
um menor.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 407-428, mai/ago, 2016.
Alethes | 420
Independentemente da legalidade da detenção, deve-se ressaltar que esta não libera os
Estados da obrigação de respeitar os outros direitos da criança detida, dentre os quais o direito
à educação. Ora, mesmo quando um indivíduo é detido, ele continua a estar submetido à
jurisdição do Estado e, logo, esse direito é plenamente aplicável. Esse raciocínio foi
reconhecido pela União Europeia (2008, art. 17 (3)), por meio da Diretiva 2008/115/CE, a qual
estabelece que o acesso à educação aos menores detidos com um estatuto migratório irregular
é garantido em função da duração da estadia. Segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados (1997, para. 7.8) e a CIDH (OEA, 2014, para. 183), esse direito deve ser
garantido preferivelmente fora dos centros de detenção. Ademais, a CEDH, no caso
Mubilanzila Mayeka e Kaniki Mitunga v. Bélgica, analisou a questão da falta de acesso à
educação por uma criança migrante no centro de detenção como um fator para determinar se as
condições de privação de liberdade constituíam tratamento desumano (EUROPA, 2006b, para.
50).
A prática geral, entretanto, é que a educação não seja bem garantida quando da detenção.
O Comitê dos Direitos da Criança, em suas Observações Finais sobre a Bélgica em 2002 (para.
26 (b)), fez referência igualmente à obrigação de garantir tal acesso aos menores
desacompanhados nos centros de recepção onde eles eram detidos ao chegarem no país. Além
disso, na França, a educação é comumente descontinuada depois que as crianças são detidas
(LEVOY & GEDDIE, 2010, p. 101).
Como exposto, as obrigações internacionais do Estado não permitem que nenhuma
educação seja dispensada, mesmo em razão das medidas de controle de imigração. Assim,
mesmo quando os estudos são ofertados nos próprios centros de detenção – uma limitação que
pode, teoricamente, ser legítima se ela é razoável, objetiva e feita com base individual –, esse
direito deve ser garantido em certa medida. Em vista dessas considerações, em alguns Estados,
particularmente no Reino Unido e na Austrália, os centros de detenção contam com
profissionais para ministrar aulas às crianças migrantes ali presentes. Todavia, o direito à
educação não é verdadeiramente garantido pela mera existência de atividades que o Estado
chama de educativas. O ensino oferecido deve ter ao menos o potencial de alcançar os fins da
educação, o pleno desenvolvimento das capacidades da pessoa (CDESC, 1999, para. 4).
Infelizmente, vê-se que a prática nos centros de detenção não leva em consideração esses
objetivos.
No Reino Unido, os professores designados pelas crianças em detenção não são
informados sobre o nível de escolaridade que os alunos já possuem e não são preparados para
tratar das necessidades de aprendizagem dos mesmos (BOURGONJE, 2010, p. 40). Às crianças
VALLE, M.F.V. Controle de imigração e o direito à educação
Alethes | 421
mais novas, são oferecidas atividades de laser, como desenhos, ao invés de uma educação bem
planejada (BOURGONJE, 2010, p. 40-41). Ademais, foi relatado que alguns professores nos
centros escolhem ao acaso um tema do currículo nacional para dar a aula (BOURGONJE, 2010,
p. 41), o que demonstra uma falta de organização e de continuidade que não realiza as funções
da educação.
Por sua vez, na Austrália, os centros de detenção devem fornecer diversos recursos
educacionais às crianças migrantes, incluindo professores, aulas, esportes, materiais para artes
e computadores (BOURGONJE, 2010, p. 71). Não obstante, a realidade é que esses recursos
não são bem distribuídos e os professores por vezes contam com um número demasiadamente
elevado de alunos para lhes dar a atenção necessária nas aulas (BOURGONJE, 2010, p. 72-73).
Além disso, a existência de traumas e outras condições adversas relativas ao tratamento na
detenção, pelo qual a Austrália já foi condenada diante do Comitê de Direitos Humanos (2013,
para. 9.8; 2003, para. 9.7; 2002, para. 8.4), impacta negativamente o desempenho dessas
crianças migrantes nos estudos (BOURGONJE, 2010, p. 74). O fato que as autoridades
consideram que esses imigrantes se encontram nos centros de forma unicamente temporária –
embora muitos entre eles estejam detidos há vários anos –as torna resistentes em relação aos
esforços para melhorar a qualidade da educação (BOURGONJE, 2010, p. 71, 73).
Por conseguinte, as situações de detenção administrativa de crianças migrantes tendem
a restringir ainda mais seu acesso à educação. Apesar de algumas tentativas dos Estados de ter
aulas ministradas em centros de detenção, a falta de organização das mesmas e seu conteúdo
duvidoso as transforma em atividades de laser ao invés de educação de fato.
6. Conclusão
No direito internacional, praticamente não existem dúvidas de que as normas de direitos
humanos são aplicáveis a qualquer indivíduo sob a jurisdição do Estado, independentemente de
seu estatuto migratório. Ao lidar com migrantes irregulares, uma das normas mais relevantes é
a não-discriminação, a qual garante que qualquer diferença de tratamento entre indivíduos na
fruição de seus direitos deverá ser proporcional e não-arbitrária e não poderá constituir uma
negação total do direito em questão. No caso de crianças migrantes, a ênfase dada pelo Comitê
dos Direitos da Criança ao princípio do melhor interesse da criança e à análise individual sobre
a qual deve ser fundada a discriminação fazem com que seja quase impossível que um menor
tenha seus direitos limitados tão-somente pelo fato de ser um migrante irregular.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 407-428, mai/ago, 2016.
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No que tange ao direito à educação, a proteção deste é sólida em convenções
internacionais. Tanto o PIDESC quanto a CDE preveem que esse direito, compreendendo um
ensino primário gratuito e obrigatório e um ensino secundário a ser tornado progressivamente
acessível pelos meios apropriados, deve ser garantido a todos. Nada na formulação dos
dispositivos acarreta, portanto, a exclusão de migrantes irregulares.
Apesar desses limites jurídicos, a preocupação das autoridades estatais de barrar a
crescente imigração irregular faz com que as políticas internas criem vários obstáculos a que
crianças em situação irregular se beneficiem do direito à educação, sobretudo no que diz
respeito ao acesso à mesma. As leis a princípio inclusivas ou neutras não são suficientes para
impedir práticas nocivas a esse direito pelas escolas e comissões escolares e os Estados fazem
muito pouco para remediar essa situação. Assim, diversas crianças migrantes irregulares têm
seu acesso à educação impedido devido a formas de discriminação indireta – quais sejam, não
possuírem a documentação exigida para o registro nas escolas, a discricionariedade das mesmas
em admitirem alunos e o medo de que o estatuto migratório do menor seja denunciado às
autoridades. Mesmo em casos em que a criança já está submetida à detenção administrativa
como medida de controle pelos Estados, estes se mostram reticentes em providenciar
verdadeiras oportunidades de educação nos centros de detenção, limitando-se a fornecer
atividades de conteúdo educacional questionável.
Dessa forma, verifica-se que as políticas estatais enfatizam o estatuto irregular do menor
ao invés de sua condição de criança e sujeito de direitos. O acesso à educação é então sacrificado
a fim de que não se encoraje esse tipo de imigração, aumentando ainda mais a situação de
vulnerabilidade de crianças migrantes irregulares.
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Alethes | 428
ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais
Alethes | 429
O Suporte Fático de Normas de Direitos Fundamentais The Factual Support of Norms of Fundamental Rights
Priscila Carvalho de Andrade_1
Resumo: Este estudo, que se situa nas discussões acerca do direito constitucional e argumentação jurídica, trata dos procedimentos de justificação de decisões jurídicas a partir da noção de suporte fático de normas de direitos fundamentais. Considerando que é a ocorrência fática do que está implicitamente descrito nos textos normativos que enseja a consequência jurídica dos direitos que consagram, tem-se, por hipótese, que a análise do suporte fático das normas deve assumir papel central na fundamentação da aplicação ou do não aplicação de determinado direito em certo caso. Assim, faz-se investigação sobre o conceito de suporte fático de normas, seu papel no que se refere a direitos fundamentais e sua potencialidade no campo da argumentação jurídica. Como resultado das análises, alcança-se, através do método dedutivo, a possibilidade de construção do discurso jurídico em etapas, verificável, e que tem por efeito a concessão de proteção a direitos fundamentais na maior medida possível. Palavras-chave: Argumentação jurídica. Direitos fundamentais. Suporte fático de normas. Correção. Controlabilidade de decisões jurídicas. Abstract: The current study, which stands in the fields of constitutional law and legal argumentation, is about the use of the concept “factual support of norms” in the justification proceedings of legal decisions. Considering that it is actually the factual occurrence of what is implicitly described in normative texts that triggers the legal consequence of the rights they declare, the factual support of norms should, by hypothesis, play a central role in the justification of the applicability or inapplicability of a right in a case. Hence, the concept of factual support of norms, its application to fundamental rights and its potential in the field of legal argumentation are in this study investigated. As a result of the analysis, conducted in accordance to the deductive approach, it is reached the possibility to construct the legal discourse in stages, in a verifiable manner, and that entails the protection of fundamental rights as extensively as possible. Palavras-chave: Legal argumentation. Fundamental rights. Factual support of norms. Correction. Controllability of legal decisions.
1 Graduação em andamento na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), parcialmente cursada na Universtät Passau, Alemanha. Endereço eletrônico: [email protected].
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 429-448, mai/ago, 2016.
Alethes | 430
1. Introdução
A racionalidade do discurso jurídico está atrelada à fundamentação correta das
premissas que conduzem à decisão jurídica. Caso se sustente uma decisão a partir de
argumentos formulados com correção, há que se falar em um resultado racional, e, assim,
verificável. Contrariamente, quando não se fundamenta as premissas, ou, ainda, quando não as
justifica suficientemente, se atinge decisão jurídica cujo resultado não se pode controlar.
Este estudo trabalha com o conceito de suporte fático de normas, que, já bem
desenvolvido em diversas áreas do direito, ainda não possui delimitado seu lugar no direito
constitucional, em especial na teoria dos direitos fundamentais, tratando-se de conceito quase
inexplorado pela doutrina. Considera-se que estudos nesse campo podem se revelar como sendo
de grande relevo para aperfeiçoamento não só da aplicação dos direitos fundamentais, como
também da teoria da argumentação no que se refere a esses direitos, uma vez que, estudando o
que desencadeia, no mundo dos fatos, a aplicação de uma norma, isto é, examinando seu suporte
fático, permite-se que se separe, de forma clara, no discurso, os casos em que há violação de
norma, e que, portanto, sua consequência jurídica deve ocorrer, dos que se referem apenas a
uma restrição permitida, hipótese em que há fundamentação constitucional para a não
realização de um direito. É mesmo a ocorrência fática do que está implicitamente descrito na
redação dos dispositivos constitucionais que garantem direitos fundamentais que enseja suas
aplicações, e, por isso, esse é o fenômeno que deve prevalecer na construção da fundamentação
da aplicabilidade ou não aplicabilidade de certo dispositivo constitucional em um determinado
caso concreto. Quer dizer: debruçar-se sobre a teoria do suporte fático na perspectiva
constitucional significa, por hipótese, lançar mão de uma técnica racional, aplicável em etapas,
e, portanto, verificável, para dizer onde há e onde não há direito no discurso jurídico.
Sendo assim, pretende-se, neste trabalho, a partir do método dedutivo, demonstrar a
potencialidade da noção de suporte fático no campo da argumentação jurídica. Considera-se,
por hipótese, que as fundamentações sobre aplicação ou afastamento de direitos fundamentais
devem avançar em correção se estruturadas a partir de uma compreensão sistemática do suporte
fático das normas que consagram esses direitos. A partir das circunstancias fáticas do caso
concreto cujos exames são exigidos pela noção de suporte fático que aqui será apresentado, é
possível que se demonstre, objetivamente, a incidência de normas em um caso concreto, e, por
consequência, que se identifique eventuais colisões normativas.
Para o desenvolvimento deste estudo, é imperioso que se aceitem os pressupostos
teóricos desenvolvidos por Robert Alexy em sua teoria dos princípios, que estão
ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais
Alethes | 431
indissociavelmente ligados à adoção de uma teoria de suporte fático amplo, como se verá
adiante. Nesse sentido, é necessário considerar o caráter principiológico das normas que
preveem direitos fundamentais, o que faz com que esses possam ser concretizados em graus,
segundo as condições fáticas e jurídicas, sendo, por isso, considerados mandamentos de
otimização. Assim, se diz que normas-princípio guardam direitos prima facie, e têm suas
colisões solucionadas através da determinação de regras de prevalência no caso concreto,
estabelecidas por ponderação. Diferentemente, as chamadas normas-regra guardam direitos
definitivos, e, por isso, têm seus conflitos solucionados no campo da validade, em que ou se
elimina uma delas ou se cria uma regra de exceção, sendo impossível sua realização apenas
parcial. Como será verificado, é a partir da noção de suporte fático que aqui se defende, em sua
acepção ampla, que a teoria de Alexy encontra espaço para sua aplicabilidade, o que não
ocorreria, contrariamente, caso se adotasse o conceito em seu sentido estrito.
Este trabalho se estrutura em três tópicos de desenvolvimento. No primeiro, se discute
o papel da análise das circunstâncias fáticas na fundamentação de decisões jurídicas. No
segundo, se apresenta o conceito de suporte fático, bem como se examina seus elementos. No
terceiro, finalmente, se demonstra de que maneira a noção de suporte fático pode auxiliar na
investigação da incidência de normas em uma caso concreto.
2. O papel da análise sobre as circunstâncias fáticas nos processos de justificação de
decisões jurídicas
Hodiernamente, tem-se, em grande parte dos estudos sobre metodologia, que a
jurisprudência não pode dispensar as chamadas valorações. Esse termo, usado com frequência
em teorias da decisão, é utilizado para designar a ação de preferir, em situações em que resta
ao intérprete um campo de ação no qual deve-se escolher entre as várias soluções possíveis para
o caso, a partir de normas jurídicas e metodológicas. Segundo a definição trazida pela Standford
Encyclopedia of Philosophy (2012), tem-se a relação entre valorações e preferências extraída a
partir da utilidade atribuída ao objeto, e expressa pela pelo enunciado lógico que segue:
Preferences can be interpreted as expressions of value. A≻B then means that more value is assigned to A than to B, and A∼B that the same value is assigned to the two. Values are usually taken to be adequately expressible in numerical terms. Let u (as in “utility”) be a value function that assigns a real number to each element of the alternative set. We can then construct a model of preference logic in the following way: A≻B iff u(A)>u(B) (Exact value representation)”
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 429-448, mai/ago, 2016.
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As valorações, que anunciam, portanto, um estado de coisas preferido em detrimento
de outro, são ditas necessárias, especialmente, quando não resta claro da observação das normas
vigentes como se deve decidir, isto é, quando não há certeza sobre qual norma se deve aplicar
em um caso, em um contexto em que, aparentemente, mais de uma se aplicam. Tais valorações
necessárias, como informa Robert Alexy (2005, p.40), mesmo havendo discussão na literatura
especializada se são de caráter moral ou não, sempre são, ao menos, relevantes moralmente.
Apesar disso, não se pode admitir que essas valorizações, necessárias e relevantes moralmente,
abram um espaço livre para aplicação de convicções morais subjetivas do intérprete e que essas
sirvam de fundamento para a tomada de uma decisão jurídica. É necessário objetivar tais
valorações, o que implica na correção da atribuição da “utility”, e sobre isso vem se debruçando
a teoria da argumentação jurídica moderna.
A objetivação das valorações utilizadas pelos intérpretes pode se dar através do uso
“valores da comunidade” e do “sistema interno de valorações do ordenamento jurídico” e, por
vezes, até mesmo com o apelo a enunciados de direito natural (ALEXY, 2005, p. 40-43). As
convicções derivadas dessas três vias de obtenção de valorações objetivadas podem ser
admitidas no processo decisório e sua consideração se revela, sim, legítima. Quer dizer: tanto
as concepções da coletividade, quanto diretrizes postas pelo ordenamento jurídico como um
todo e, em especial, pela Constituição, bem como premissas jusnaturalistas, podem constar do
processo decisório. Não podem, contudo, exclusivamente sustentá-lo. Conforme Alexy (2005,
p. 41-42), é impossível que se determinem os valores da coletividade com exatidão, não sendo
concretos o suficiente para, por si só, fundamentarem uma decisão; o sistema interno de
valorações do ordenamento jurídico também é impreciso, e muitas vezes não se pode nem
mesmo verificar com clareza quais são as valores contidos em uma norma, sem mencionar que
essas, com frequência, cristalizam pontos de vistas valorativos contraditórios entre si;
igualmente, enunciados de direito natural não raro incluem premissas incertas e discutíveis.
Sendo assim, valorações, sozinhas, ainda que objetivadas geram fundamentações insuficientes
e imprecisas sobre a aplicabilidade de um direito em um caso concreto. Disso decorre a
inviabilização da controlabilidade de decisões jurídicas, já que, se assentadas
preponderantemente sobre valorações, dificilmente podem ser demonstradas de maneira lógica,
verificável. Isso é, caso se justifique a aplicação de uma norma em um caso a partir de
valorações sobre ela construídas, através da consideração dos valores da comunidade, do
sistema interno de valorações do ordenamento jurídico e de enunciados de direito natural, se
nega aos jurisdicionados o controle da correção da decisão.
ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais
Alethes | 433
Sendo assim, considerando a insuficiência das valorações sobre normas para
fundamentar a aplicação ou não aplicação de direitos, em razão de seu descomprometimento
com a realidades dos fatos, se dedica este estudo ao papel da análise das circunstâncias dos
casos concretos nos processos de justificações de decisões jurídicas.
A relevância da investigação sobre o suporte fático de normas é evidente no que se
refere à incidência normativa, e, assim, especialmente, à existência de colisões principiológicas
em determinado caso. São as circunstâncias empíricas das situações fáticas que determinam o
embate entre normas, e, portanto, se não se conhece, com alguma profundidade, tais
circunstâncias, não se pode também vislumbrar os conflitos. Direitos fundamentais são normas-
princípio, sendo, portanto, mandamentos de otimização. Como tais, por definição, possuem
tendência expansiva, o que facilita a ocorrência de colisões com outras normas do ordenamento
jurídico. Da teoria das normas de Robert Alexy (2009, p.85-176), constata-se, como sendo
indispensável para o estabelecimento de regras de precedência, isto é, para solução de conflitos
normativos, o exame do caso concreto. Isso se torna explícito quando se percebe que um dado
princípio prevalece (P) sobre outro apenas à luz de um dado caso, sem que aquele que foi
aplicado em medida menor, o “vencido” na ponderação, seja expulso do ordenamento jurídico;
quer dizer, o fato de que (P¹ P P²) C¹, em que C é tanto a condição de uma relação de
precedência, quanto o pressuposto do suporte fático da regra:
‘verificadas as condições C¹, a aplicação de P¹ prevalece em detrimento de P², no exata
proporção em que a proteção de P¹ se faz mais importante do que a de P² em C¹’,
não impede que, em um caso C², P² P P¹, já que diferentes circunstâncias fáticas
demandam diferentes soluções normativas. Se, contudo, são ignoradas as circunstâncias
concretas e se procede com a ponderação apenas através de valorações, conforme antes
analisadas, a tendência é que, nas soluções de conflitos, sempre prevaleçam aquelas normas
que, segundo as convicções das ordens anteriormente mencionadas, já foram cristalizados, em
abstrato, como sendo os mais importantes, independentemente do caso em análise. Sendo assim,
decisões que se baseiam apenas em valorizações sobre normas tendem a tratar certos direitos
fundamentais como sendo absolutos, razão pela qual pulsa a necessidade do exame do suporte
fático nos procedimentos de justificação do discurso jurídico quanto a aplicabilidade ou não
aplicabilidade de certa norma de direito fundamental em dado caso.
Faz-se mister ressaltar, neste ponto, que, por óbvio, o que aqui se defende não é que
os Tribunais Constitucionais - no caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) - devam
revolver matéria de provas em grau recursal. Na jurisdição brasileira, conforme se sabe, quando
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 429-448, mai/ago, 2016.
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exerce o STF sua competência para julgamento de recursos, restam as circunstâncias do fato,
ao chegar ao Tribunal, já consolidadas pelo arcabouço probatório produzido nas instâncias
inferiores, e, por isso, no sistema recursal brasileiro, não se admite que se argua matérias de
provas no referido órgão da jurisdição. Não obstante, nos limites do fato, nas peculiaridades do
caso, na individualização fática do ocorrido, traçadas anteriormente e trazidas ao conhecimento
dos ministros através dos relatórios, há circunstâncias que não podem ser ignoradas na
fundamentação das decisões, pois, como já visto, apenas à luz delas se podem aplicar normas-
princípio. Seria um contrassenso dizer que o Tribunal Constitucional brasileiro, protetor da
Constituição, cujo conteúdo é caracterizado pela predominância de normas-princípio, não
processa técnicas de aplicação próprias desse tipo de norma, como a ponderação, pois, no
sistema brasileiro, o STF não pode considerar questões de ordem fática. Revela-se equivocado
tal entendimento, na medida em que há uma sutil diferença entre reapreciação da matéria fática,
que visaria alterar seus contornos, e a consideração, ainda que em um nível mínimo, das
circunstâncias do caso para fins de fundamentação.
3. O conceito de suporte fático e seus elementos
A análise do suporte fático equivale à investigação sobre a incidência normativa. A
condição para a ocorrência da consequência jurídica de certa norma em determinado caso é o
preenchimento de seu suporte fático. O desenvolvimento técnico da noção de suporte fático
alcançou níveis de notável sofisticação em alguns âmbitos da Ciência do Direito, como é o caso
do direito penal, em que o suporte fático é facilmente identificado como o conjunto dos
elementos do fato punível descrito na lei penal. A partir de uma operação intelectual de conexão
entre a possibilidade infinita de ocorrência de fatos no mundo e o modelo típico descrito em lei,
tem-se o juízo de tipicidade, que, se positivo, fundamenta a análise dos outros componentes do
conceito analítico de crime. Também no direito tributário encontra-se a noção de suporte fático
sob a denominação de fato gerador, que consiste no fato ou no conjunto de fatos que o legislador
define na lei para o nascimento da obrigação tributária. Assim, percebe-se o importante papel
do conceito de suporte fático em tais áreas do direito, visto que é a partir dele que as normas
encontram sua aplicabilidade. Contudo, não obstante a clareza desse conceito nos referidos
ramos, no direito constitucional a noção de suporte fático ainda se encontra em estado de atrofia.
Analisando as disposições penais, a definição de suporte fático é razoavelmente simples,
e talvez por isso essa noção encontra grande espaço nesse ramo do direito. Com a redação do
ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais
Alethes | 435
art. 121 do Código Penal, por exemplo, segundo o qual “Matar alguém: Pena – reclusão de seis
a vinte anos”, não há dificuldade em delimitar o suporte fático da norma, que poderá ter,
segundo o exame do juízo de tipicidade, isolado dos demais elementos do conceito analítico de
crime, sua consequência jurídica aplicada quando o fenômeno descrito no dispositivo for
verificado no mundo dos fatos; quer dizer, quando alguém for morto por outra pessoa.
Diversamente, no que se refere a disposições que consagram direitos fundamentais, percebe-se
que a noção de suporte fático não resta assim tão bem evidenciada, visto que as redações
constitucionais que positivam tais direitos não deixam explícita suas relações com o mundo
naturalístico. Não é intuitiva a definição do conceito de suporte fático para uma norma cuja
disposição consiste em, por exemplo, “A educação, direito de todos e dever do Estado e da
família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho”, como previsto pelo art. 205 da CF. É preciso, então, analisar a redação construída
pelos constituintes originário e derivado, à luz da teoria dos direitos fundamentais, para que se
possa vislumbrar a definição de suporte fático aplicável a tais dispositivos.
Transportando os entendimentos encontrados nos ramos do direito que trabalham
largamente com teorias sobre o suporte fático para o âmbito do direito constitucional, e, mais
precisamente, para a teoria dos direitos fundamentais, se percebe, imediatamente, a presença
do chamado âmbito de proteção das normas fundamentais nesse conceito, sendo esse o
elemento mais facilmente detectado da noção de suporte fático com a qual nesse estudo se
trabalha. É evidente que somente se terá a consequência jurídica de uma dada norma se o
acontecimento no mundo da vida se referir a atos, fatos ou estados por ela protegidos. Dessa
forma, se se identifica o âmbito de proteção como elemento de um conceito de suporte fático
quando esse está voltado para os direitos fundamentais, percebe-se a essencial implicação
prática de sua delimitação já pela relevância de um de seus elementos para aplicação de normas.
A verificação da existência de colisões, por exemplo, e possibilidade de criação de regras de
prevalência, que determina, no caso concreto, qual das normas será atendida em maior grau,
sem, contudo, destacar a outra do ordenamento jurídico, está intimamente ligada à delimitação
de âmbitos de proteção das normas colidentes, mas não só dela depende. Isto é, para se verificar
e solucionar colisões entre normas, não é suficiente a análise de seus âmbitos de proteção, sendo
necessário encarar a matéria mais ampla do suporte fático.
Levando em conta, portanto, que o suporte fático engloba o âmbito de proteção de uma
norma, mas não é com ele confundido, como é comumente imaginado, deve-se considerar os
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outros elementos que o compõe, cujas presenças não são tão facilmente extraídas. Neste estudo,
se adota a fórmula lógica se APx e não-FC(IEx), então CJx apresentada por Virgílio Afonso
da Silva (2009, p. 75). Para que esse modelo seja adequado ao estudo, seus elementos devem
ser entendidos da seguinte maneira:
a) AP = âmbito de proteção:
Engloba os atos, fatos, estados ou posições jurídicas que fomentam a realização do direito,
e que, portanto, estão protegidos pela norma. Se se considera o chamado (1) âmbito de proteção
restrito, significa que se exclui, de antemão, certos atos, fatos, estados e posições do âmbito de
proteção de uma norma que protege um direito fundamental através de uma “triagem prévia”.
Nessa triagem, se define a não-garantia de algumas condutas, que, em abstrato, poderiam ser
subsumidas no âmbito de proteção dessa norma. Contrariamente, ao tratar de um (2) âmbito de
proteção amplo, todos os atos, fatos, estados e posições que, em uma análise isolada de
qualquer outra variável, seja ela de caráter moral, legal ou proporcional, possam ser
reconduzidos ao “âmbito temático” de um determinado direito fundamental estão incluídos em
seu âmbito de proteção. No presente estudo, se adota a noção de um âmbito de proteção amplo
(2), garantindo um maior grau de proteção dos direitos fundamentais. Nesse sentido, se
considera dentro do âmbito de proteção de uma norma o que é protegido prima facie por um
direito, diferentemente do que ocorre com estudos que adotam a essa noção em sua acepção
restrita (1), em que o que está no âmbito de proteção é definitivamente protegido. Ao adotar
(2), admite-se a ocorrência de colisões normativas, visto que âmbitos de proteção amplos
facilmente esbarram um no outro, e, ao mesmo tempo, permite-se a realização de sopesamentos
para que se solucione eventuais colisões, visto que é possível, em (2), a restrição da aplicação
de uma certa norma-princípio sem que essa seja expulsa do ordenamento. Não é possível
concluir que, ao adotar uma concepção ampla de âmbito de proteção de direitos fundamentais,
se reconhece seu caráter absoluto, pois, ao identificar os atos, os fatos, os estados e posições
incluídos nesse âmbito apenas se identifica o que é prima facie protegido, restando possíveis
eventuais restrições fundamentadas, conforme a teoria dos princípios de Alexy (2009, p. 85-
176).
Na fórmula-lógica com a qual nesse estudo se trabalha, se APx e não-FC(IEx), então CJx ,
APx deve ser entendido da seguinte maneira: x é ato, fato, estado ou posição jurídica que está
incluído no âmbito de proteção do direito fundamental que se analisa, pois x pode ser
reconduzido ao seu “âmbito temático”.
ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais
Alethes | 437
b) IE = intervenção estatal:
Segundo Virgílio Afonso da Silva (2009, p. 77), em se tratando de liberdades públicas,
“intervir” significa agir de forma restritiva, enquanto na esfera dos direitos sociais “intervir” é
não agir ou agir de forma insuficiente. Ressalva-se aqui, contudo, que melhor entendimento
para esse elemento do conceito de suporte fático seria a noção de obstaculização do direito
protegido pela norma, que pode ocorrer tanto através de uma ação quanto de uma omissão,
independentemente de se tratar de direito de liberdades ou direitos sociais, afinal, como é
contemporaneamente admitido, direitos fundamentais possuem, ao mesmo tempo, uma
dimensão positiva, suscetível a omissões, e, ainda, uma dimensão negativa, ferida através de
ações restritivas. Dessa forma, ao considerar a coexistência de duas dimensões nos direitos
fundamentais, admite-se, automaticamente, a possibilidade de sua violação através tanto de uma
omissão quanto de uma ação. Assim, neste trabalho, se considera “intervenção estatal” não
somente as ações restritivas no que se refere às liberdades, mas também as omissões que as
afetam; ao mesmo tempo, configuram “intervenção estatal” não somente as omissões do Poder
Público no que se refere a direitos sociais, mas também as ações, capazes, igualmente, de
obstaculizar a realização desses direitos. Essa é, portanto, uma noção que confere aos direitos
fundamentais proteção mais extensa.
Assim como o conceito de âmbito de proteção, intervenção estatal também pode ser
encarada sob uma ótica mais restrita ou mais ampla. A noção de intervenção em sua (1’)
acepção restrita, deve ser desenvolvida de antemão, em lista exaustiva de tudo que ela
configura, ao passo que, intervenção em (2’) acepção ampla, compreende, na esteira de Virgílio
Afonso da Silva (2009, p.112 ), todas as mínimas regulamentações relativas à forma de
exercício de um direito, isto é, toda potencial restrição ao âmbito de proteção de uma norma,
como, por exemplo, a determinação, para seu exercício, de horário, local, modo e etc. Ao se
adotar combinadamente (1), quer dizer, âmbito de proteção restrito, e (1’), a saber, intervenção
estatal restrita, trabalha-se com o conceito de suporte fático também restrito, em que não há que
se falar em restrição a direitos fundamentais ou sopesamentos entre princípios. Nunca se
configura situação de colisão entre normas, pois, para essa teoria, os âmbitos de proteção já
estão, de antemão, delimitados, e duas delas, simultaneamente, por questões de coesão do
ordenamento jurídico, não poderiam proteger e violar x, respectivamente, ou se teria
configurado o fenômeno da antinomia – contrariedade ou contraditoriedade –, resolvida pelos
critérios hierárquico, cronológico ou da especialidade, e não através de ponderação, como
ocorreria se ambas tratassem de uma posição jurídica x em caráter prima facie. Também, para
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 429-448, mai/ago, 2016.
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essa acepção, não há o ônus argumentativo do aplicador para fundamentar a constitucionalidade
ou inconstitucionalidade de uma intervenção i, pois ou i está dentre as intervenções que, de
antemão, se definiram como prejudiciais ao direito ou não está. Então,
(1) + (1’) = suporte fático restrito, em que atos, fatos, estados e posições estão definitivamente
protegidos por um direito fundamental, e em que o rol de intervenções (i) que podem
atingi-lo é taxativo.
Neste estudo, contudo, adota-se (2) e (2’), cujo produto é um suporte fático amplo. Um
suporte fático amplo confere aos direitos fundamentais o maior grau de proteção possível ao
ampliar o espectro do que é x, e, ao mesmo tempo, ao exigir, em todas as situações, como
pressuposto para o aceite de intervenções em direitos, ônus argumentativo para o aplicador. Isto
é, há a obrigatoriedade de fundamentação quanto à constitucionalidade de toda e qualquer
intervenção em direitos fundamentais, por menores que sejam. A formulação lógica APx e
não-FC(IEx), então CJx destaca a essencialidade do exame das fundamentações das
intervenções em direitos, já que, se se retira a negação antes de FC, se tem uma ação, posição
ou estado, protegida, prima facie, por um direito fundamental, que sofreu uma intervenção
estatal fundamentada, e, portanto, permitida. Não obstante, para que se decida pela
constitucionalidade da restrição posta pela intervenção estatal, é exigido pela acepção ampla de
suporte fático grande esforço argumentativo do aplicador para demonstrar a existência de
fundamentação para as mínimas intervenções, o que não ocorre se se adota o conceito de suporte
fático em seu sentido restrito. Além disso, no que se refere a conflito entre normas, é na acepção
ampla de suporte fático que o caso concreto ganha relevância, já que é a partir dele que juízos
de ponderação deverão ser empregados para delimitar, à luz das circunstâncias fáticas, qual
norma princípio deve ser aplicada em maior medida. Nessa acepção ampla, colisões entre
princípios, por sua tendência expansiva, conferido pelo seu âmbito de proteção amplo, são
frequentes. Então,
(2) + (2’) = suporte fático amplo, em que todos os atos, fatos estados e posições abstratamente
passíveis de recondução ao âmbito temático de um direito fundamental é por ele, prima facie,
protegido, e que exige fundamentação constitucional para que qualquer intervenção a ele
imposta seja aceita.
A adoção, em termos de prática judicial, portanto, de um suporte fático restrito ou amplo
implica no deslocamento de concentração argumentativa. Caso se reconheça o restrito, a
principal tarefa do aplicador é identificar o que se inclui e, portanto, o que se exclui do âmbito
ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais
Alethes | 439
de proteção de cada direito fundamental, bem como determinar qual é a extensão do conceito
de intervenção estatal. Se, contrariamente, se admite o suporte fático amplo, o aplicador estará
isento de tais tarefas, restando a carga da argumentação concentrada no momento da justificação
da intervenção. É a partir da fundamentação que se determina se certa intervenção em direito
fundamental é ou não aceita, segundo a Constituição (SILVA, 2009, p. 94). Nesse sentido, da
fórmula-lógica, se APx e não-FC(IEx), então CJx, extrai-se que, para que o suporte fático se
preencha, é necessário que a intervenção estatal que, através de ação ou omissão, obstaculizou
a realização do direito, por atingir algo que pertença ao âmbito de proteção da norma (x), não
possua fundamentação constitucional, configurando uma violação inconstitucional de direito,
ao passo que, na hipótese de haver FC, está-se diante apenas de uma restrição
constitucionalmente aceita, razão pela qual não ocorre a CJx. Isto é, para que a consequência
jurídica ocorra, é preciso que não seja possível fundamentar a omissão, o agir insuficiente ou o
agir restritivo com base na Constituição.
c) CJx = consequência jurídica
A consequência jurídica é o que ocorre quando o suporte fático de uma norma é preenchido.
Se, no caso em questão, a intervenção estatal é uma omissão ou ação insuficiente em relação a
x, que pertence ao âmbito de proteção de uma norma, a consequência jurídica é a exigência de
realizar x ou realizar x de forma completa. Se, contrariamente, a intervenção estatal que
prejudica a realização do direito fundamental é uma ação restritiva com relação a x, a
consequência jurídica é a exigência de abstenção estatal no que se refere a x.
Em resumo, não obstante a redação pouco comprometida com mundo dos fatos das normas
de direitos fundamentais, pode-se concluir acerca de seus suportes fáticos: sendo x uma posição,
positiva ou negativa, que fomente um direito fundamental por estar no âmbito de proteção da
norma que o consagra (APx), e se a intervenção estatal, revelada em uma omissão, omissão
parcial ou ação restritiva, que obstaculiza a realização do direito por ser contrária a x, não
possui fundamento constitucional {não-FC(IEX)}, o suporte fático abstrato da norma é
preenchido por sua realização em concreto, e, assim, há a consequência jurídica (CJx), que deve
ser realizar x, se a intervenção estatal for omissão total ou parcial, ou, ainda, abster com relação
à x, se a intervenção estatal for uma ação restritiva.
4. A análise do suporte fático de normas como instrumento para a definição da
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 429-448, mai/ago, 2016.
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incidência normativa e sua fundamentação
Na apuração da incidência normativa, uma argumentação baseada em valorações sobre
normas apenas se restringe ao exame da partícula APx da fórmula se APx e não-FC(IEx), então
CJx, ignorando as demais. Assim, quando percebido que x pode ser reconduzido ao AP de um
direito, em uma análise de âmbito temático, entende-se que esse direito deve ser aplicado, vez
que a) há relação entre o caso e a norma; b) é possível que se formulem valorações sobre a
norma que indicam a essencialidade, em abstrato, do direito que protege. Não obstante,
defende-se que, para a determinação da incidência normativa, além de AP e x, deve-se analisar
outro elemento indispensável do caso concreto, a IEx, de forma que um direito apenas se aplicará
a um caso se x, protegido em seu AP, foi violado por IE, que não possui fundamentação
constitucional para ter ocorrido. Uma norma incide em determinado caso, porque seu suporte
fático, tomadas as circunstâncias, se preencheu, e não apenas porque se verificou relação
temática entre um direito e o objeto da ação que se decide e a essencialidade do direito segundo
convicções subjetivas e objetivas antes analisadas.
Assim, tendo em vista a potencialidade da teoria do suporte fático de aproximar os fatos e
atos descritos em abstrato, quer dizer, a norma, e a sua ocorrência no mundo da vida, pretende-
se aqui fortificar a correção do discurso, atrelando-o à noção de suporte fático, de modo a (a)
abrir espaço para a racionalização na construção de fundamentos, que significa controlabilidade
das decisões judiciais, (b) e imbricar tais fundamentos às circunstâncias do caso concreto,
facilitando a identificação das normas aplicáveis, das eventuais colisões entre direitos
fundamentais, bem como suas corretas soluções, que, idealmente, se apoiam não somente em
valorações sobre normas.
Desmembrando-se a fórmula lógica APx e não-FC(IEx), então CJx, e tendo em vista a
estrutura de direitos fundamentais, deve-se analisar:
(1) O que é x?
A resposta para tal pergunta revela os atos, fatos, estados, condições ou posições em
discussão em uma determinada ação judicial sobre direitos fundamentais. Em última análise, x
é o objeto da “intervenção estatal” discutida. Em uma ação que verse, a título ilustrativo, sobre
concessão de tratamento médico, x é o tratamento médico. Se denomina “não-x”, neste estudo,
a posição contrária a x, isto é, no exemplo dado, o “não tratamento médico”, de forma que não-
x representa a negação da concessão.
ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais
Alethes | 441
(2) Quais normas fundamentais protegem x?
Neste estágio, devem ser suscitadas todas aquelas normas que, prima facie, guardam x em
seu âmbito de proteção. Considerando um âmbito de proteção amplo – que pode conduzir a um
suporte fático também amplo –, as normas nesta etapa levantadas são todas aquelas a cujos
âmbitos temáticos x pode ser conduzido, em um análise abstrata, isolada e irrestrita, quer dizer,
livre de qualquer variável e sem exclusões prévias.
Da resposta, é possível que se extraiam duas regras distintas, a saber:
(a) Se x está prima facie protegido pela(s) norma(s) a(b,c,...), é possível que x deva ser
realizado.
(b) Se não-x está prima facie protegido pela(s) norma(s) w(y,z...), é possível que x deva ser
abstido.
Havendo apenas a formulação da regra produzida em (a), pode-se dizer que todos os direitos
protetores de x exigem uma prestação positiva do Estado e, por isso, não há colisão, pois,
mesmo que a, b, c... demandem x em extensões diferentes, todos o demandam, e sua realização
deve se dar na maior medida possível, segundo as condições fáticas e jurídicas. É provável que
a(s) norma(s) a(b,c,...) consagre(m), portanto, direito(s) social(ais), apesar de ser possível que
essa (algumas ou todas) expresse(m) direito(s) de liberdade, em que x esteja no âmbito de sua
dimensão positiva.
Se, contrariamente, no caso concreto, for necessária a formação não só da regra expressa
em (a), mas também da descrita em (b), há um indício de configuração de uma colisão, pois
a(b,c,d...) e w(y,z...) demandam posições contrárias do Estado no que se refere a x.
Se se identifica uma pluralidade de direitos que protegem x e também não-x, é necessário
que a análise siga para todos, tornando imperioso que as perguntas subsequentes sejam
respondidas para cada um deles, em separado. Isso é especialmente relevante nos casos em que,
além de (a), se formulou também a regra disposta em (b), pois é possível que se configure, neste
caso, uma colisão de normas. Não é possível dizer que essa já exista, pois, neste estágio, ainda
não se sabe se as normas são aplicáveis ao caso concreto, pois nenhum dos suportes fáticos, até
aqui, foi preenchido.
(3) O que é a intervenção estatal?
Para a situação que gera (a), intervenção estatal é a ação, omissão total ou parcial i do
Estado, que obstaculiza a realização de x, protegido pelo(s) direito(s) fundamentais a(b,c...).
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Isso é, i é o que descumpre a regra posta em (a). No exemplo sobre a concessão de tratamento
médico, é a intervenção estatal a omissão, que embaraça, potencialmente, o direito à saúde.
Já em (b), essa mesma intervenção i, que constitui obstáculo ao(s) direito(s)
fundamental(ais) a(b,c...), fomenta o(s) direito(s) fundamental(ais) w(y,z...). Em uma situação
em que, simultaneamente, há formação das regras descritas em (a) e (b), portanto, como já dito
em (2), há uma possível colisão das normas, pois a mesma posição do Estado i, não pode
respeitar os direitos envolvidos em (a) e em (b) ao mesmo tempo, pois um, o expresso em (a),
exige uma atuação positiva com relação a x, enquanto o outro, disposto em (b), exige uma
posição negativa (não-x).
Considerando a intervenção estatal i em direitos fundamentais, pode-se complementar as
regras anteriormente construídas:
(c) Se x está prima facie protegido pela(s) norma(s) a(b,c...), é possível que x deva ser
realizado, sendo que a intervenção i, que nega x, é prima facie proibida.
(d) Se não-x está prima facie protegido pela(s) norma(s) w(y,z...), é possível que x deva
ser abstido, sendo que a intervenção i, que nega x, é prima facie obrigatória.
Se, em um mesmo caso, há necessidade de construção das duas regras, e não só as expressa
em (c), é possível afirmar que há uma provável colisão de direitos fundamentais no caso em
exame – que só poderá ser confirmada ao final dessa análise, vencidas todas as etapas -, cuja
identificação, defende-se, depende da análise prévia da fórmula se APx e não-FC(IEx), então
CJx, e cuja solução se apoia nas informações fornecidas pelo estudo das partículas que
compõem a referida fórmula. Formadas ambas as regras descritas no estágio (3), (c) e (d), pode-
se dizer, com maior segurança da que havia em (2), que a colisão entre normas deve se formar,
já que, aqui, se tem em vista um elemento do suporte fático que em (2) ainda não se cogitava.
Assim, pode-se concluir que, quanto mais avançada for a etapa do roteiro em que se esteja, mais
certeza há quanto a formação de um eventual conflito normativo entre as normas-princípios
sobre as quais as regras (c) e (d) versam.
(4) A intervenção estatal i, e, por consequência, sua negação não-i, possuem fundamentação
constitucional?
A resposta para essa pergunta depende de análise sistemática dos textos constitucionais.
No caso de resposta afirmativa para a pergunta em (4), a intervenção estatal i quanto aos
direitos fundamentais que se estuda em determinada ação judicial deve ser admitida,
ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais
Alethes | 443
constituindo restrição permitida aos direitos em análise. Contrariamente, se negativa a resposta,
trata-se de intervenção estatal i que, injustamente, restringe direito fundamental. Nesse caso, a
possibilidade de configuração de colisão entre direitos subsiste.
Assim, existem as seguintes possibilidades, distinguidas em duas situações, a saber:
(e) Se x está prima facie protegido pela(s) norma(s) a(b,c,...), é possível que x deva ser
realizado, sendo que a intervenção i, que nega x, mas possui fundamentação
constitucional, é definitivamente permitida.
Conclusão: a intervenção i é permitida, ainda que a(b,c,...) exija(m) não-i para a
realização de x.
(f) Se não-x está prima facie protegido pela(s) norma(s) w(y,z...), é possível que x deva
ser abstido, sendo que a intervenção i, que nega x e possui fundamentação
constitucional, é definitivamente obrigatória.
Conclusão: a intervenção i é obrigatória, já que w(y,z...) exige(m) i para negar x (isto é,
não-x).
Nessa hipótese, em que há fundamento constitucional para a obstaculização de direito a (b,
c ...) no que se refere a x, como manifestado em (e), a colisão de direitos fundamentais não
persiste. Isso ocorre pois os mandamentos definitivos extraídos das regras, a saber, permissão
e obrigação, sendo figuras de qualificação normativa subalternas, são perfeitamente
harmonizáveis, no sentido de que, se se presume que a obrigatoriedade intervenção i posta em
(f) é verdadeira, deduz-se a verdade também da permissão expressa em (e). Há uma relação de
implicação necessária entre a obrigatoriedade e a permissão no sentido de que, ao se assumir a
verdade de (f) se admite também (e), e, por isso, não há antinomia. (BOBBIO, 1999, p.84).
Contrariamente, tem-se:
(g) Se x está prima facie protegido pela(s) norma(s) a(b,c...), é possível que x deva ser
realizado, sendo que a intervenção i, que nega x e não possui fundamentação
constitucional, é definitivamente proibida.
Conclusão: a intervenção i é proibida, e a(b,c,...) exige(m) não-i para que se realize x.
(h) Se não-x está prima facie protegido pela(s) norma(s) w(y,z...), é possível que x deva
ser abstido, sendo que a intervenção não-i, que realiza x e não possui fundamentação
constitucional, é definitivamente proibida.
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 429-448, mai/ago, 2016.
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Conclusão: a intervenção i é obrigatória, e w(y,z..) exige(m) i para que se negue x (isto
é, não-x).
Neste caso, houve preenchimento do suporte fático tanto da(s) norma(s) a(b,c...), quanto
da(s) w(y,z...). O fato de não haver fundamentação constitucional para a postura i do Estado,
que bloqueia a realização de direito social quanto a x, torna i uma restrição proibida na
perspectiva de a(b,c...), de modo que essas normas exigem não-i. Apesar disso, caso se resolva
a demanda judicial com a obrigatoriedade de não-i, se restringe a(s) norma(s) w(y,z...). Se há
fundamentação constitucional para a restrição, não há problema, pois os suportes fáticos das
referidas normas não se preencheriam. Em (h), contudo, trabalha-se com a hipótese de que não
haja fundamentação para a intervenção, de modo a configurar a colisão, uma vez que não se
pode conciliar a proibição de i determinada em (g) com a obrigação de i que se exige em (h).
Há, na esteira de Norberto Bobbio, um relação de contrariedade estabelecida entre as regras
expressas em (g) e (h), o que determina a antinomia, de modo que ambas não podem ser
verdadeiras, mas podem ser, as duas ou apenas uma, falsas (1999, p.81-114). Como os critérios
de resolução de antinomia – cronológico, hierárquico, e de especialidade - não possuem
aplicabilidade para (g) e (h), Bobbio afirma que a solução do conflito deve ser confiada à
liberdade do intérprete, já que, de fato, há casos em que nenhum dos critérios por ele
apresentados são suficientes para solucionar a antinomia (1999, p.100). Ocorre que as normas
que deram origem as regras elaboradas, as quais demonstram a colisão, são normas-princípio,
de modo que o aplicador deve se voltar, obrigatoriamente, para técnica hermenêutica da
proporcionalidade com relação a a(b,c,d...) e w(y,z...).
(5) Deve haver consequência jurídica?
Se, da resposta em (4), chegou-se as regras expressas em (e) e (f), o suporte fático da(s)
norma(s) do(s) direito(s) em debate, isso é, a(b,c,d...), não foi preenchido, e, por isso, não se
deve falar no desencadeamento da(s) consequência(s) jurídica(s) do(s) direito(s) analisado(s),
sendo esse o sentido que deve ser seguido pela decisão.
Contrariamente, se a regra formulada no estágio (4) foi aquela descrita em (g), ou, ainda,
foram, simultaneamente, as expressas em (g) e (h), os suportes fáticos dos direitos envolvidos
na ação se preencheram, e, por isso, deve-se proceder ao estágio (5), em que considera a CJx.
Assim, há as seguintes possibilidades:
• Se, da resposta em (4), apenas se formulou a regra em (g), resta a seguinte regra final:
(i) Se x está protegido pela(s) norma(s) a(b,c...), x deve ser realizado (CJx), sendo a
ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais
Alethes | 445
intervenção i, que nega x e não possui fundamentação constitucional, definitivamente
proibida.
Nesse caso, a decisão judicial deve apontar para a submissão do Poder Público à
consequência jurídica da(s) norma(s) em análise; quer dizer, o Estado deve ser condenado a
realizar x.
• Por outro lado, se, da resposta em (4), se formulou as regras (g) e também (h), restam as
regras finais em (5):
(j) Se x está protegido pela(s) norma(s) a(b,c...), x deve ser realizado (CJx), sendo a
permissão da intervenção i, que nega x e não possui fundamentação constitucional,
definitivamente proibida.
Conclusão: a intervenção i é proibida; a(b,c,d...) exige(m) a intervenção não-i para que
se realize x.
(k) Se não-x está protegido pela(s) norma(s) w(y,z...), x deve ser abstido (CJx), sendo que
a intervenção não-i, que realiza x e não possui fundamentação constitucional, é
definitivamente proibida.
Conclusão: a intervenção i é obrigatória, de modo a negar x (isto é, não-x).
Nessa última hipótese, resta confirmada a colisão de direitos fundamentais, identificada pela
aplicação da noção de suporte fático, e para solução da qual a análise demonstrada possui
grande relevo, visto que dela levantam-se as circunstâncias do caso concreto relevantes para
que se proceda com os juízos de ponderação, nos quais se confrontam os direitos expressos
pelas normas a(b,c...) e, de outro lado, w(y,z...).
Tendo em vista, portanto, a hipótese que implicou na formação das regras descritas em (j)
e (k), tem-se a colisão principiológica:
[se x está no AP de a(b,c...) e não-FC(i em x), então CJ de a(b,c...) para não-x]¹ X
[se não-x está no AP de w(y,z...) e não-FC(não-i em não-x), então CJ de w(y,z..) para x]².
Considerando-se o caso concreto, é possível - contrariamente do que ocorre em abstrato -
estabelecer dimensões de peso para cada norma-princípio colidente (ALEXY, 2009, p.94). A
partir disso, é possível que se configurem relações de precedência condicionada entre
princípios, que determinam que, nas condições C do caso concreto, a aplicação de um princípio
tem preferência em face do outro; quer dizer, (P¹ P P²) C. É, assim, a criação de regras de
precedência que faz com que, mesmo que uma norma-princípio² tenha seu suporte fático
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 11, pp. 429-448, mai/ago, 2016.
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preenchido - [se APx e não-FC(IEx), então CJx]² -, essa não encontre aplicação, ou encontre-
a, mas restringida, para que a norma-princípio¹, que possui maior dimensão de peso sob as
condições C, seja aplicada em maior medida, segundo as possibilidades fáticas e jurídicas de
sua realização. Atribuir maior peso à norma P¹, em detrimento de uma P², significa, portanto,
que há, no caso concreto, razões suficientes para que P¹ prevaleça sobre P². A relação de
prevalência, destarte, depende de fundamentação segundo o caso concreto para P¹ P P², pois
nenhuma norma pode pretender precedência em abstrato.
Uma vez opostos P¹ e P², portanto, como dito, deve ser aplicada a proporcionalidade. Do
resultado correto dessa, chega-se a solução da colisão entre princípios (P¹ P P²) C, a partir da
qual pode ser formulada a chamada norma fundamental atribuída, que tem estrutura de uma
regra e à qual o caso pode ser subsumido (ALEXY, 2009, p. 102). Essa regra pode ser
genericamente estabelecida da seguinte forma:
(l) Sob as condições C, que envolve as circunstâncias R¹(R², R³...) a interferência i é
definitivamente obrigatória/ proibida.
É, então, com a regra l que a discussão judicial se encerra.
5. Conclusão
1. Valorações, embora admitidas em argumentação jurídica, não são suficientes para
sustentar decisões sobre direitos fundamentais, visto que para a investigação da incidência
normativa (se APx e não-FC(IEx), então CJx), bem como para a aplicação da técnica da
ponderação, é necessária a consideração de certas circunstâncias do caso concreto;
2. Defendeu-se, neste estudo, a análise da fórmula se APx e não-FC(IEx), então CJx,
que engloba o exame dos elementos fáticos mínimos necessários para a determinação da
incidência normativa, identificação e solução de colisões. Por ser uma técnica racional, e,
portanto, verificável, tem potência para auxiliar o discurso jurídico no alcance de uma decisão
correta.
3. A acepção ampla da noção de suporte fático tem como implicação prática a exigência
de grande esforço argumentativo do aplicador, que deve demonstrar a constitucionalidade das
mínimas IE para que essas sejam aceitas, ao contrário do que ocorre se se adota o suporte fático
restrito, em que o ônus argumentativo está em definir, a priori, o que está definitivamente
ANDRADE, P.C. O suporte fático de normas de direitos fundamentais
Alethes | 447
protegido pelos APs dos direitos, e ainda construir rol taxativo de IE para cada. Percebe-se,
assim, que, pela ampliação de AP e IE e, ainda, pelas exigências impostas por este modelo à
argumentação, que importam no deslocamento do foco argumentativo, é possível que se alcance
a proteção de direitos fundamentais na maior medida possível – excluída sua proteção absoluta.
Ademais, vê-se que aceitar a acepção ampla é pressuposto da teoria dos princípios de Alexy e
da possibilidade de ocorrência de colisões entre princípios, pois, na acepção restrita, apenas se
configuram conflitos do tipo contrariedade ou contraditoriedade – antinomias.
4. Encarando os elementos dessa noção como etapas do discurso, tem-se a necessidade
de se proceder: 1º) ao reconhecimento e à análise dos APs dos direitos que prima facie
protegem x, e, por questões de coerência, não-x, e 2º) à fundamentação da IE em x e não-x com
relação a cada direito. Ao final da análise, se atinge as conclusões sobre as normas aplicáveis.
5. A referida fórmula lógica, exige, no discurso, portanto, a) a investigação de todos os
direitos que, potencialmente, incidam em um caso, conferindo-lhes extensa proteção ao atribuir
pesado ônus argumentativo para que o aplicador demonstre o fundamento de toda e qualquer IE
sofrida por cada um deles, b) a consideração, ao menos, daqueles aspectos do caso
indispensáveis para aplicação de normas principiológicas, pois necessários para a identificação
e solução das colisões normativas através de regras de precedência. Dessa maneira, se assegura
controlabilidade ao discurso jurídico, pois o torna verificável e capaz de esclarecer, de forma
lógica, o motivo pelo qual P¹ é aplicado nas circunstâncias C e a proporção em que esse se
aplica, justificando a aplicação mais restrita de P².
6. Referências bibliográficas
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Entrevista com Bonita
Entrevista com Bonita
Entrevista com Bonita
EntrevistaEntrevistaEntrevistaEntrevista
Bonita Meyersfeld é uma acadêmica e advogada em Direitos Humanos. Ela é diretora
do Centro de Estudos Jurídicos Aplicado e professora associada da Wits Law School, onde
leciona Direito Internacional e direitos humanos e direito penal internacional. É também editora
da South African Journal of Human Rights e editora e fundadora do Conselho de Advogados
contra Abusos. É Mestre e Doutora pela Yale Law School e autora do livro Vioência Doméstica
e Direito Internacional.
Bonita Meyersfeld: Olá, Rafael!
Rafael: Olá, então, primeiramente gostaria
de agradecê-la imensamente por aceitar dar
esta entrevista, ela é muito importante para
nós.
B: Imagina, é um prazer!
R: Vou fazer as perguntas na ordem que te
envei por e-mail.
B: Claro.
R: A primeira é: Levando em consideração
a crise institucional enfrentada ultimamente
pelo Sistema jurídico, gostaríamos de saber
quais são os desafios e obstáculos em
relação ao Sistema educacional na África do
Sul.
B: O primeiro obstáculo é financeiro. Os
estudantes sul-africanos em geral enfrentam
grandes níveis de pobreza e isso, mais do
que qualquer outro fator, impede os
estudantes de entrarem para as
Universidades. Aqueles que entram, que
são capazes de juntar dinheiro suficiente
para entrar para uma Universidade
frequentemente não tem dinheiro suficiente
para pagar as taxas para ficar na
Universidade. Então, você pode perceber
que as finanças são uma barreira para uma
educação superior na África do Sul.
Igualmente, porém, é importante relembrar
que os problemas financeiros estão ligados
à raça, na África do Sul. A maioria do país
vive na pobreza e a maioria é negra. Então,
há um alinhamento entre a raça e a pobreza
neste país, o que é legado do apartheid. 80%
da riqueza deste país pertence a 10% da
população e esses 10% são
predominantemente brancos. Então, isso
significa que as pessoas negras estão
efetivamente sendo excluídas da educação.
O segundo problema que é bastante hostil
para os estudantes é o problema do
privilégio branco e do conteúdo do que nós
ensinamos em nossas disciplinas.
Tendemos a ensinar sobre teorias, valores,
princípios e leis ocidentais, europeias ou
estadunidenses e nós não olhamos para o
Entrevista com Bonita
continente africano ou o hemisfério sul para
basearmos nosso trabalho. Então… há um
problema em que vários estudantes vêm
para a universidade e consideram-na
alienante. Acredito que esses são alguns dos
elementos principais.
R: Ok. Então, a segunda pergunta. Você
estudou e atualmente trabalha na África do
Sul, um país em desenvolvimento. Contudo,
você também passou algum tempo em
países como a Inglaterra e os Estados
Unidos, tanto para propósitos acadêmicos,
quanto a trabalho. Portanto, com isso em
mente, quais as discrepâncias observadas
por você nas tradições desses países em
relação à educação em direito? E você
acredita que o direito e o Sistema jurídico
tem o mesmo papel nestes países ou são
diferentes?
B: Bem, a discrepância entre a África do
Sul, a Inglaterra e os Estados Unidos são, eu
diria, relacionadas de novo aos recursos. As
universidades nos Estados Unidos são
muito ricas, com recursos grandiosos. A
biblioteca da universidade que frequentei,
por exemplo, era cinco estrelas em
infraestrutura, computadores, havia um
sistema integrado de empréstimo, que era
ligado a outras quatro Universidades da Ivy
league e às bibliotecas em Washington.
Logo, é o contrário da África do Sul, onde
nós temos uma biblioteca de apenas um
andar de livros didáticos, ao menos na
Faculdade de Direito. O sistema de
universidades é simplesmente privado de
recursos. E então, creio que havia também
um ethos diferente na preparação,
preparação para exames e preparação para
as aulas, uma diferente cultura de leitura
para as aulas e de estar preparado, mas
acredito que tenha mais a ver com a
universidade que eu frequentei e menos a
ver com o sistema educacional dos Estados
Unidos. É uma Universidade da Ivy league
e há um nível de competição maior, o que
acredito que faça diferença. Eu não creio,
porém, que essa é uma diferença de todas as
Universidades nos Estados Unidos, mas
diria que é sim uma diferença de calibre dos
professores. Penso que há muita competição
para conseguir um trabalho acadêmico nos
Estados Unidos, então são realmente os
melhores do mais alto nível que estão
ensinando. Mas, de novo, acredito que é
algo somente do nível de uma Universidade
da Ivy league e não necessariamente dos
Estados Unidos e da Inglaterra. Eu diria que
o nível dos melhores estudantes é o mesmo
tanto na África do Sul, quanto nos Estados
Unidos e na Inglaterra. Os melhores
estudantes dessas universidades têm igual
inteligência, igual capacidade e acredito que
isso é apenas a medida em que há uma
extremidade inferior de estudantes que não
vão bem, o que é diferente, certo? Nas
Universidades da Ivy League, os estudantes
mais pobres, que não vão tão bem, mesmo
Entrevista com Bonita
assim, acabam tendo sucesso. Enquanto
isso, estudantes na África do Sul que não
vão bem geralmente acabam falhando. E, de
novo, acredito que é por causa da diferença
da Ivy League. Imagino que se estivesse em
uma universidade pública nos Estados
Unidos haveria um grande nível de
fracassos também.
R: Entendo. Então, a segunda parte da
questão: você pensa que o direito e o
Sistema jurídico têm o mesmo papel nestes
países? Como é a África do Sul em relação
à Inglaterra e aos Estados Unidos.
B: Sim, acredito que eles têm. Acredito que
eles são... certamente todos uma
democracia. Os Estados Unidos e a África
do Sul, claro, são democracias
constitucionais. Todos os três têm o
tradicional como um terceiro braço do
governo e que fornece verificação e saldos
no executivo, acho que fizeram muito bem ,
então eu acho que alguns de há alguns dos
graus de respeito pelo direito. E acredito
que há outros níveis de acesso limitado à
justiça baseados na pobreza. Então, as
pessoas que vivem na pobreza, que se
encaixam nas minorias raciais nesses
países, a maioria das pessoas não pode
pagar pelo acesso ao sistema legal. E
acredito também que há outra semelhança
entre eles: frequentemente os juízes nesses
sistemas têm preconceitos que agem contra
essas pessoas que vivem na pobreza, e isso
é um problema da mesma forma. E, entre
essas três jurisdições, acho que há também
uma falta de diversidade na traditionary,
pois as mulheres, em particular as mulheres
negras, são muito sub-representadas em
todos os três países. É claro que é
particularmente problemático na África do
Sul, porque as mulheres negras representam
40% da população, sendo consideradas
como o maior grupo no país. As mulheres
em geral constituem 51 % do país. Então é
realmente problemático na África do Sul.
R: É a mesma coisa no Brasil. A terceira
questão é: Qual a amplitude e qual a
importância dada à pesquisa acadêmica na
África do Sul? E, dado este cenário, como
você avalia o envolvimento de graduandos
na pesquisa na África do sul, se é que há
algum?
B: Acredito que o governo é… você sabe,
depende da perspectiva. O governo sul-
africano tem um fundo que subsidia o
ensino superior e que aloca um pouco de
dinheiro na pesquisa. Você sabe, acredito
que ninguém vai dizer que é suficiente, mas
acho que nós valorizamos bastante a
pesquisa. E quanto aos graduandos, acredito
que não são suficientemente encorajados
em fazer sua própria pesquisa. Acredito que
há um problema que está ligado a todo o
nosso Sistema educacional. Por causa da
história do apartheid, nosso Sistema
educacional é ainda muito falho e não
Entrevista com Bonita
prepara as pessoas adequadamente para a
educação universitária, que requer que os
estudantes escrevam, pesquisem e
desenvolvam suas próprias teorias e
pensamentos. Então acredito que o governo
não é ruim, e que nossas instituições não são
ruins, mas esse legado do apartheid que
continua a determinar os estudantes aptos
na universidade e no nível de graduação
para realizar pesquisa.
R: Ok. Agora, a quarta questão: Como você
vê a importância da participação feminina
na área acadêmica? Dado que o campo
acadêmico é comumente representado por
figuras masculinas.
B: Bem, isso é essencial! Existem várias
razões pelas quais a inclusão das mulheres
na academia é importante. A primeira é por
causa da representação. Quando estudantes
vêm para aula, não é bom que vejam apenas
homens lecionando, eles têm que ver
diversidade. Assim, as mulheres podem
acreditar que também podem aspirar a isso.
Claro que mulheres têm a mesma
capacidade que os homens. Então, se elas
não são admitidas na Academia significa
que estamos perdendo 50% do potencial das
pessoas, o que demonstra que temos uma
academia fraca. E, por último, eu penso que
há uma perspectiva feminina trazida pelas
mulheres, não porque elas são
biologicamente inclinadas nesse sentido,
mas porque elas têm uma experiência de
vida sobre discriminação, o que influencia o
trabalho delas. E isso cria um contexto
acadêmico mais diversificado, em que tanto
estudantes quanto alunos podem florescer.
R: A segunda parte desta questão é sobre
como você analisa a existência do que nós
podemos chamar de sexismo acadêmico, e
as dificuldades enfrentadas pelas mulheres
nessa área. Ao tentar entrar na área
acadêmica, quais os desafios elas enfrentam
que os homens usualmente não enfrentam?
B: Há um nível muito alto de sexismo na
academia. Isso significa que há um sexismo
para iniciar, o que inclui comentários sobre
suas habilidades pessoais para fazer o
trabalho deles, e que elas não podem fazer o
trabalho por serem mulheres. Ou
comentários sobre seus aspectos físicos ou
que subestimam sua capacidade intelectual
como pessoa. Então, eu penso que também
existem barreiras implícitas, as pessoas
tendem a usar autoridades masculinas em
suas pesquisas e não femininas. Homens
são mais aceitos quando eles estão em busca
de promoções, enquanto as mulheres são
consideradas menos capazes, sendo que são
tão capazes quanto eles. Então, eu acho que
existem estruturas e barreiras que
conduzem as mulheres, ou impedem seu
desenvolvimento na academia, então elas
acabam desistindo. O outro grande
problema é o assédio. Existem altos níveis
de assédio sexual de membras da academia
Entrevista com Bonita
e de alunas. Esse nível de assédio sexual
não é somente por palavras ou ser
dispensada por ser mulher, é também
violência física. As estruturas da
universidade não impedem que essa
violência aconteça, também não lidam
quando isso acontece. Então você tem
impunidade para essa violência, o que
naturaliza a violência contra mulheres,
transformando a universidade em um lugar
muito hostil para estarem.
R: Obrigado. Agora a última questão. Como
advogada internacionalista e defensora dos
direitos das mulheres, como você pensa que
o Direito Internacional é capaz de atuar na
defesa da mulher? E, se você puder, apontar
os maiores desafios e mecanismos em atuar
nesta área.
B: Bem… Direito Internacional é sobre
padronização de ações pelos Estados. E os
direitos das mulheres são
fundamentalmente protegidos pelos
Estados. Então, ele serve para criar um
padrão maior de proteção dos direitos das
mulheres em nível estatal. Alguns Estados
são fortemente influenciados pelo que é
chamado de direito tradicional, ou direito
costumeiro, que pode se opor aos direitos
das mulheres ou ter princípios que impeçam
as mulheres de escapar da discriminação e
da opressão. O Direito Internacional
também tem uma notável habilidade para
executar campanhas, como por exemplo a
“16 dias de ativismo contra a violência
contra mulheres e crianças”. E enquanto a
campanha não é uma resposta, uma solução
em si mesma, certamente ajuda a lidar com
isso e traz atenção para alguns dos danos
sofridos pelas mulheres, em razão de
violência em razão do sexo e do gênero Eu
penso que as cortes internacionais têm
também um papel a cumprir, em termos de
desenvolvimento jurisprudencial que pode
ser aplicado em cortes nacionais para
proteger direitos das mulheres. As cortes
internacionais, como a Corte Europeia de
direitos Humanos, por exemplo, ou a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, são
tribunais que frequentemente têm julgados
sobre direitos das mulheres. Esses julgados
não estão restritos a tais tribunais, mas eles
começam a influenciar o Direito e as
decisões dos tribunais nacionais. Por
exemplo, havia um caso na Corte Europeia
de Direitos Humanos, sobre uma jovem que
foi estuprada quando tinha 14 anos, e por
não ter chorado e permanecido em silêncio
por estar tão assustada, a corte do país
entendeu que não havia estupro. O país era
a Bulgária. Esse caso foi para a Corte
Europeia dos Direitos Humanos, onde os
juízes entenderam que simplesmente
porque ela se manteve silêncio, isso não
significa que ela consentiu. Silêncio é, na
verdade, uma manifestação de extremo
terror e trauma, uma vez que nem todo
mundo se defenderia e não há uma resposta
Entrevista com Bonita
uniforme ao estupro. Essa decisão foi
incorporada ao Direito búlgaro, que se
alterou, e foi também incorporada a outras
decisões de tribunais nacionais e
legislações. Então, você pode ver como o
Direito Internacional pode atuar partindo de
um nível internacional e global para as
especificidades dos sistemas judicial e legal
nacionais.
R: Bem, acho que é isso. Essa foi a última
pergunta.
B: Ótimo!
R: Ok. Então, muito obrigado novamente!
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ALFORRIA-ME! Mateus P. Gomes1 Não, não tive alforria. Não, enquanto me assola a vil miséria e a cor da minha pele é razão de pilhéria. Não, não tive alforria. Não, enquanto os chicotes que me açoitaram Substituírem-se pelos cassetetes que me calam. Não, não tive alforria. Não, quando, na minha luta, o âmago For fugir da fome que violenta o estômago. Não, não terei alforria. Não, enquanto eu for pária do mundo que me parira. Não, enquanto for semente e fruto de tantas iras.
1 Graduando do 5° Período de Direito da Faculdade Católica do Tocantins. Membro do Centro Acadêmico de Direito da Faculdade Católica do Tocantins. Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).
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PEDAÇO DE POESIA. Mateus P. Gomes
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Que minha poesia Tenhas vozes, Além das vozes Que tivera um dia. Que essa poesia, Que já nasce morta E não sabe onde cair viva, Seja mais. Mais que as palavras dessa folha, Mais que as letras, Em conjunturas gramaticais, Na tela desse computador. Que esses versos tão indolentes Tenham dolo na intenção De abusar da tua alma E, por isso, recebam “perpétua”. Que essa poesia tão frágil Possa pegar o universo com as mãos E rasgá-lo em dois - Matéria e metafísica. Pra depois transformá-lo em um. Que essa poesia seja isso tudo E não seja nada. Que ela seja tudo que desejar, Exatamente por nada desejar. Que essa poesia seja um eterno Que ressuscita em vários efêmeros. Porque essa poesia sou eu! Essa poesia é tudo que tenho. Essa poesia é um punhado divino
2 Graduando do 5° Período de Direito da Faculdade Católica do Tocantins. Membro do Centro Acadêmico de Direito da Faculdade Católica do Tocantins. Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).
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Que resolveu se profanar em mim. Eu sou essa poesia morta Com hora marcada pra nascer.
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NO FUNDO DA MENTE Eduardo Gonçalves Monteiro3 A gente de credo e cor A gente do sexo frágil Quem ama e não tem amor A gente que pecou nascendo O fruto podre no pomar demétrio Que feito praga Rodeia todo o belo e o estraga A gente que comete erros Que não orna o total Que cai frente as regras Dos dois pesos Das duas medidas Acostumados à sombra da mente No desritmar do cotidiano esquecemos Que também nascemos gente
3 Estudante de Relações Internacionais no Centro Universitário Curitiba.
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RIACHO
eu sou um riacho em pessoa
rio at� do meu pr�prio fiasco
e n�o sei mais � descaso ou sorte
o fato de rir ante o atraso da morte
Rafael Pinter4
4 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (9º semestre).
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José Renato Venâncio Resende5
colore folha branca
boca muda, mão que fala
letras d’alma arranca
*****
em três versos
encaixo completo
todo o universo
*****
MANDAMENTO
ame
alguém
amém
*****
Quando se mesclam coração e cruz
Abra seu caderno
Para a dor que a tinta traduz
5 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia.
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Epílogo
como dádiva, o presente
de todos os tempos perdidos
meu passado desfeito
aquele devir do subjuntivo
e o pretérito eterno imperfeito
se eu fosse intuitivo
o que faria
como seria se um dia
eu terminasse o que dizia
entrelaçados
eu encontrasse todos eles
na face dos espelhos
muito mais do que tempos verbais
inertes, esperando apenas meu sim
sim
de agora em diante
cada verso é um novo fim
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PUDERA EU! Augusto Silva Ávila6 Pudera eu na cegueira em latência Ao menos alguns instantes, enfim, Não ver o supérfluo e as aparências, Que criam as ilusões deste confim. Pudera eu, alguém conhecer, Quem sabe não enxergar, Não ver, mas reconhecer, E assim me conectar. Pudera eu ter desconfiado, Que meus olhos têm mentido. Quisera eu ter enxergado O que deveria ser sentido. Pudera eu cego, ainda ver a vida De todas suas formas ser vidente, Não só a luz fracionada, refletida, Mas a do coração e da mente. Pudera sermos todos cegos, Mudos, surdos, intangíveis Transpor aparências, egos, Ser luz que ilumina, iniludíveis.
6 Graduando em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Itajubá.
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SAMSARA Igor Ladeira dos Santos7 Na viagem da alma, conheci o Verbo. E o Verbo ensinou-me a oração. Aprendi a juntar as duas coisas e criar a minha religião. Nessa viagem foram muitas as minhas moradas. Todas me fizeram mudanças. Em cada uma recebi várias visitas, mas de poucas trago lembranças. Eu já fui pó, já fui planta, já fui gente. Já fui Deus, herói, vilão e inocente. Essa minha estrada é muito comprida. Tão longa que desconheço o ponto de partida. Hoje em dia, gosto de visitar a Capela, pois ela lembra-me minha infância. Relembro os velhos tempos em que era mais do que uma pequena criança. Meu espírito faz parte do Brama, incluso nessa roda de acontecimentos. Minha vida é a água da chuva. Minha alma é a brisa do vento. A viagem da alma não cessa. O Verbo não para. Vou vivendo e aprendendo, Enquanto aguardo o término de meu Samsara!
7 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
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Normas de PublicaçãoNormas de PublicaçãoNormas de PublicaçãoNormas de Publicação
1. Regras Gerais 1.1 Todo artigo deve ser de autoria exclusiva de graduandos, não havendo restrições
com relação a área de conhecimento abordada, desde que dialoguem com a temática jurídica. 1.2 Para cada artigo submetido será aceito para avaliação apenas 1(um) trabalho como
primeiro autor e os demais como co-autor, não podendo ultrapassar o máximo de 3 (três) no total.
1.3 Para a submissão de trabalhos, o autor deve enviar três arquivos em formato Word (.doc ou .docx) para o e-mail do periódico ([email protected]): um arquivo com o texto completo do artigo; um segundo arquivo com o mesmo texto, mas sem a identificação do autor; e um terceiro arquivo apenas com os dados (nome completo, filiação institucional e contatos) do(s) autor(es) e área do Direito que abordada diretamente no trabalho.
1.4 Os trabalhos devem conter de 15 a 20 laudas e estar de acordo com a formatação descrita nos itens abaixo e disponíveis no site do periódico: http://periodicoalethes.com.br/.
1.5 O artigo submetido deverá ser inédito, e não estar sob avaliação de nenhuma outra revista. Entretanto, obras publicadas em anais de congressos e outros eventos acadêmicos podem ser republicados na revista, contanto que tenham ocorrido alterações substanciais.
2. Critérios de avaliação e aceitação dos artigos. 2.1 Todo artigo será submetido à análise do Conselho Editorial, sendo enviados a dois
pareceristas anônimos para avaliação qualitativa de conteúdo, segundo o método da avaliação duplo-cega por pares.
2.2 Os pareceristas serão definidos pelos editores de acordo com a área de atuação/formação, a qual deverá ser, na máxima medida do possível, coincidente com a temática do artigo a ser avaliado.
2.3 Os pareceristas deverão optar por uma das seguintes recomendações: Aprovado; reprovado; aprovado com necessidade de alterações. Caso haja uma aprovação e uma reprovação, o artigo será enviado a um novo pareceristas para decisão final.
2.4 Recebidos os pareceres pelo Editor, esse definirá a publicação ou não dos artigos, enviando as justificativas e especificações necessárias ao autor, com o intuito que ele possa adequar seu trabalho às sugestões feitas e reenviá-lo para nova avaliação.
2.5 Os pareceres poderão conter indicações de bibliografia, sugestões de mudanças na estrutura dos textos, acréscimo ou subtração de informações, críticas, elogios, sugestões e outras observações julgadas pelo pareceristas como pertinentes para a melhoria do conteúdo do artigo e para a adequação deste aos critérios definidos pela revista.
2.6 Feitas as alterações pelos autores, caso sejam aprovadas pelo conselho editorial, o artigo será publicado. A ALETHES, no entanto, reserva-se o direito de colocar as obras nos números seguintes, conforme for a conveniência.
2.7 O processo de análise dos artigos terá o prazo de 30 a 45 dias, que se iniciará ao fim da chamada de artigos, definido neste edital.
2.8 Serão utilizados como critérios: a adequação à metodologia científica; a relevância do tema e a originalidade da abordagem; o bom delineamento do objeto de pesquisa; a qualidade na seleção e no manejo da bibliografia pertinente; a utilização da norma culta da língua portuguesa; e outros que forem julgados pertinentes.
2.9 A decisão dos editores é final, e dela não cabe recurso.
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3. Estrutura e Formatação dos artigos. 3.1 Os artigos devem ser apresentados digitados em folha A4 (210 x 297 mm). 3.2 Editor de texto Word for Windows 6.0 ou posteriores. Times New Roman, tamanho
12. 3.3 Margens esquerda, direita, superior e inferior de 2 cm. 3.4 Espaçamento e Parágrafos: Espaçamento 1,5 entre linhas, com texto justificado.
Parágrafo recuado 1,25 da margem esquerda e sem espaço entre parágrafos. 3.5 Texto.
3.5.1 A primeira página deve conter título (português e inglês) com no máximo 15 palavras, com alinhamento centralizado, fonte Times New Roman, tamanho 14, destacado em negrito
3.5.2 O nome do(s) autor(es) deve vir logo abaixo do título, com duplo espaço, fonte Times New Roman, tamanho 12 e alinhados à direita.
3.5.3 O nome do autor deve ser acompanhado pela primeira nota de rodapé, contendo um breve currículo do autor, levando em consideração a Instituição e o curso do graduando
3.5.4 A primeira página deve conter um resumo em português – antecedidas pela expressão “Resumo:”, também em português e inglês - com no máximo 300 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 12.
3.5.5 As palavras-chave devem figurar logo abaixo do resumo, em um número máximo de 5 palavras, com espaçamento simples, antecedidas da expressão “Palavras-chave:”, em português e inglês; separadas entre si por ponto e finalizadas também por ponto.
3.5.6 O texto, de forma geral, deve ser digitado, fonte Times New Roman, tamanho 12, alinhamento justificado.
3.5.7 As notas devem ser postas no rodapé do texto, numeradas em sequência, fonte Times New Roman, tamanho 10, alinhamento justificado.
3.5.8 As citações devem seguir a regra: se menores que três linhas, serem inseridas diretamente no texto, entre aspas, com indicação da devida referência, de acordo com as normas da ABNT. E, se maiores que três linhas, devem ser destacadas com recuo à esquerda de 4 centímetros, fonte Times New Roman, tamanho 10, com a indicação da devida referência, de acordo com as normas da ABNT. 3.6 Referências Bibliográficas: As referências completas deverão ser apresentadas, em
ordem alfabética e no final do texto, de acordo com as normas da ABNT. 4. Disposições Finais 4.1 As opiniões contidas nos artigos são de inteira responsabilidade dos seus autores, de
modo que a ALETHES não se responsabiliza pelo conteúdo dos textos que publica. 4.2 A publicação dos artigos não terá por contrapartida qualquer tipo de remuneração
aos autores, especialmente financeira. 4.3 Os autores, ao concordarem com a publicação de seus artigos, estarão concedendo
do direito da primeira publicação à ALETHES. Ficam autorizados a republicá-los futuramente, aceitando, contudo, citar o nome e edição da revista, fazendo referência ao fato de a publicação original ter ocorrido na ALETHES.
4.4 A constatação de qualquer imoralidade, ilegalidade, fraude ou outra atitude que coloque em dúvida a lisura da publicação, em especial a prática de plágio, importarão imediato
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abortamento do processo de avaliação do artigo; caso este já tenha sido publicado, ele será retirado da base da revista, sendo proibida sua posterior citação vinculada ao nome da ALETHES, e, no número seguinte da revista, será publicado texto divulgando e justificando o cancelamento da publicação.