aldrovandi, cibele v. - arqueologia da imagem

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  • 5/21/2018 ALDROVANDI, Cibele v. - Arqueologia Da Imagem

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULOMUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUEOLOGIA

    AS EXQUIAS DO BUDA KYAMUNI:MORTE, LAMENTO E TRANSCENDNCIA NA

    ICONOGRAFIA INDIANO-BUDISTA DEGANDHRA

    VOLUME I

    Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduaoem Arqueologia, do Museu de Arqueologia eEtnologia da Universidade de So Paulo, paraobteno do ttulo de Doutor em Arqueologia.

    Orientadora: Profa. Dra. Elaine Farias Veloso Hirata

    So Paulo2006

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    I. FUNDAMENTOS TERICOS E METODOLGICOS PARA A ANLISE DO

    CORPUS DOCUMENTAL

    Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude;

    peregrinei em busca de um livro, talvez do catlogo dos catlogos;agora que meus olhos quase no podem decifrar o que escrevo,preparo-me para morrer, a poucas lguas do hexgono onde nasci.

    Morto, no faltaro mos piedosas que me joguem pela balaustrada;minha sepultura ser o ar insondvel;

    meu corpo cair demoradamente e se corrompere dissolver no vento gerado pela queda, que infinita.(...)

    Em aventuras como essas, prodigalizei e consumi meus anos.No me parece inverossmil que,

    em alguma prateleira do universo, haja um livro total;rogo aos deuses ignorados que um homem um s,

    ainda que seja h mil anos! o tenha examinado e lido.

    (JORGE LUIS BORGES,A biblioteca de Babel, 1941).

    As abordagens tericas e metodolgicas utilizadas para anlise do Corpus

    Documental desta pesquisa tm seu eixo fundamentado nas teorias elaboradas pela

    Arqueologia da Imagem aliadas s reflexes tericas desenvolvidas pela Arqueologia da

    Morte, posto tratar-se, como veremos, de um repertrio iconogrfico o Ciclo do

    Mahparinirvado Buda , cuja temtica envolve o Morrer e a Morte.

    Este captulo trata, portanto, da estrutura terico-metodolgica que embasou a

    anlise e interpretao do conjunto imagtico investigado durante a pesquisa. Divide-se em

    dois eixos tericos: o primeiro apresenta as principais teorias elaboradas pela Arqueologia da

    Imagem, utilizadas durante o desenvolvimento da anlise formal do repertrio iconogrfico; o

    segundo expe, dentro de uma perspectiva historiogrfica, as principais abordagens

    provenientes da Arqueologia da Morte capazes de fornecer elementos para a discusso e

    anlise dessas representaes.

    O objeto de investigao desta pesquisa envolve a incorporao de elementos

    iconogrficos estrangeiros no conjunto de representaes associadas s Exquias do Buda

    akyamuni,que pertencem ao repertrio imagtico-religioso prprio da regio de Gandhra edatados primeiros sculos da era Crist.

    A representao formal do Lamento Fnebre ao redor do Buda no apenas um

    elemento iconogrfico de carter decorativo1como o so, por exemplo, os capitis corntios e

    as folhas de acanto encontrados nas esculturas e relevos daquela escola artstica. A

    1 O levantamento dos elementos iconogrficos greco-romanos presentes nesse repertrio imagtico pode serconsultado em Aldrovandi (2002). Ver tambm a discusso em Aldrovandi e Hirata (2005).

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    representao do lamento a expresso imagtica de um momento do ritual funerrio

    entendido como um rito de passagem, estudado pela Antropologia.

    Assim, as teorias provenientes da Arqueologia da Morte que analisa as prticas,

    rituais, os aspectos simblicos e ideolgicos associados aos vestgios funerrios associadas

    s proposies da Arqueologia da Imagem podem fornecer uma estrutura terico-

    metodolgica capaz de fundamentar a anlise iconogrfica, ao ser confrontada com um

    conjunto iconogrfico de temtica funerria, assim como favorecer a interpretao do discurso

    sobre as Exquias do Buda akyamuni.

    A anlise iconogrfica, exposta mais frente, baseia-se essencialmente nas

    perspectivas tericas elaboradas por pensadores do que chamaremos de Escola Francesa de

    Arqueologia, bem como perspectivas decorrentes de outros tericos voltados para o estudo

    das imagens. Essas teorias, como veremos, fundamentam-se na anlise de dois aspectosinerentes imagem: seu Esquema e seu Tema. Essa classificao dissociativa, por sua vez,

    permitiu embasar as questes que envolvem a presente pesquisa, Enquanto a anlise

    esquemtica forneceu respostas sobre as vias de incorporao de padres iconogrficos

    estrangeiros na cena do Mahparinirvado Buda, o exame da temticaimagtica favoreceu

    a compreenso das possveis razes dessa assimilao iconogrfica que envolve questes mais

    amplas, associadas anlise dos rituais funerrios realizados pelas antigas civilizaes que

    contriburam para formao desse repertrio imagtico Grcia, Roma e ndia.

    PARTE I. PRINCPIOS DA ARQUEOLOGIA DA IMAGEM

    Ao iniciarmos a exposio das teorizaes elaboradas pela Arqueologia da

    Imagem, necessrio observar que essas perspectivas e mtodos fornecem respostas distintas

    daquelas elaboradas pela Histria da Arte.

    A Histria da Arte realiza estudos cuja perspectiva est muitas vezes voltada

    esttica e evoluo estilstica da obra de arte de perodos e escolas artsticas especficas.Assim, sua preocupao est fundamentalmente centrada no objeto artstico propriamente

    dito.2

    2Existe uma quantidade extensa de material bibliogrfico fundamental compreenso das abordagens utilizadaspela Histria da Arte. Para citar apenas alguns estudos em iconografia e iconologia ver Panofsky (1955);Gombrich (1972, e a coletnea de 1996); para interpretao do simbolismo na arte, ver Panofsky (1973); e Saxl(1974). Para uma anlise da psicologia na representao pictrica, ver Gombrich (1960); Arnheim (1965;1992); Read (1955; 1965); e, tambm, o ensaio sobre a imagem na filosofia e na psicologia em Sartre (1987).Em relao s teorias de mudana estilstica e sua ligao com o desenvolvimento histrico, ver Wlfflin

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    A formulao terica desenvolvida por Panosky3, por exemplo, estabeleceu trs

    nveis distintos a agir na obra de arte. Na terminologia do estudioso, o primeiro nvel

    denominado Tema Primrio ou Natural e constitudo pela descrio pr-iconogrfica, a

    identificao das formas puras do objeto. O segundo, o Tema Secundrio ou Convencional,

    envolve o mundo das imagens, histrias e alegorias e chamado pelo estudioso de Anlise

    Iconogrfica. O terceiro estgio, o Significado Intrnseco ou Contedo constitudo pelo

    mundo dos valores simblicos e denominado InterpretaoIconolgica. Nas palavras do

    estudioso4:

    A iconologia um mtodo interpretativo que advm da sntese mais que da anlise. Assimcomo a exata identificao dos motivos o requisito bsico para uma correta anliseiconogrfica, tambm a anlise exata das imagens, histrias e alegorias o requisitoessencial para uma correta interpretao iconolgica (...). Enquanto a anlise iconogrfica

    pressupe a familiaridade com temas especficos e conceitos, transmitidos pelas fontesliterrias, seja por leitura deliberada ou tradio oral. (...) A interpretao iconolgicarequer (...) a compreenso da maneira pela qual, sob diferentes condies histricas, astendncias essenciais da mente humana foram expressas por temas especficos e conceitos.(...) Com base no que pensa ser o significado intrnseco de tantos outros documentos dacivilizao historicamente relacionados a esta obra ou grupo de obras quantos conseguir:de documentos que testemunhem as tendncias polticas, poticas, religiosas, filosficas esociais da personalidade, perodo ou pas sob investigao. Nem preciso dizer que, demodo inverso, o historiador da vida poltica, poesia, religio, filosofia e situaes sociaisdeveria fazer uso anlogo das obras de arte. na pesquisa de significados intrnsecos oucontedo que as diversas disciplinas humansticas se encontram num plano comum, emvez de servirem apenas de criadas umas das outras.

    Assim, nesta disciplina, a Iconografia envolve a descrio e classificao das

    imagens que embora sob certos aspectos possua limitaes metodolgicas, se adequadamente

    embasada, fornece elementos importantes para o estabelecimento de datas, origem e, por

    vezes, autenticidade das peas, assim como fornece as bases necessrias s interpretaes

    ulteriores. Como lembrou o estudioso, esse tratamento que coleta e classifica a evidncia, no

    est capacitado a investigar a gnese e significao da mesma e, por essa razo, constitui

    somente parte dos elementos que compem o contedo intrnseco de uma obra de arte e que

    precisam tornar-se explcitos para que a percepo desse contedo venha a ser articulada e

    comunicvel.

    importante pontuar que muitas vezes o estudo iconogrfico efetuado

    tradicionalmente pela Histria da Arte tratou os problemas de interao transcultural em

    (1963; 1967) e, sobre estilo, Shapiro (1953). Sobre a psicologia do estilo, Worringer (1953); ver, tambm,Wittkower (1987) que estudou a migrao de smbolos. Para uma perspectiva da Histria Social da Arte,Hauser (1951).

    3Panosky (1955, p. 47-87).4Panosky (1955, p. 54, 58, 62-63).

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    termos predominantemente estticos, o que sempre promoveu abordagens restritivas e uma

    propenso apreciao ou depreciao da obra, de acordo com o gosto da poca,

    historicamente determinado. Assim, embasada por uma perspectiva histrica Evolucionista e

    Difusionista, essa disciplina conferiu Arte Grega a condio de paradigma que contraposto

    s manifestaes artsticas das demais civilizaes procurou releg-las ao campo do

    primitivismo.5

    As questes sobre as quais a Arqueologia da Imagem se debrua, por sua vez, no

    envolvem apenas o levantamento e a anlise dos elementos iconogrficos presentes no

    repertrio dos esquemas formais, tratados a partir da elaborao de um corpus documental.

    Essa disciplina volta-se essencialmente anlise dos contedos temticos presentes no

    conjunto imagtico e, alm disso, busca inseri-los em seu contexto de surgimento e

    desenvolvimento no intuito de reconstruir e compreender os aspectos sociais, econmicos,polticos e religiosos que favoreceram sua criao.

    Nesse sentido, alm da necessidade de evidenciar os contedos esquemticos e

    temticos presentes num determinado repertrio iconogrfico, a anlise arqueolgica fornece

    um embasamento terico capaz de interpretar a relao entre a produo imagtica e o

    contexto histrico em que esses elementos formais e temticos se desenvolveram. A

    identificao e interpretao desse tipo de conjunto vestigial, se tratadas a partir dessas

    perspectivas, permitem a elaborao de um quadro analtico e contextual capaz de fornecer

    resultados mais objetivos que aqueles encontrados na abordagem puramente esttica.A Arqueologia da Imagem, como veremos, foi desenvolvida a partir da dcada de

    70 por arquelogos franceses e pautada ora pelo formalismo descritivo e pelo estruturalismo,

    ora sob a influncia da lingstica e semitica.

    1. 1 O TEMA E O ESQUEMA NA IMAGEM

    Entre as principais linhas tericas que abordam a Imagem na Arqueologia francesa

    destaca-se primeiramente a teoria imagtica de P. Bruneau6, fundamental investigao da

    hiptese proposta por esta pesquisa. Nela, o autor exps a diferena entre imageme referente.

    Em suas palavras: a imagem serve para mostrar o universo das coisas numa relao no

    5 Para uma anlise desta questo, ver Gruzinski e Rouveret (1976, p. 159-219). Muito embora os estudiosostrabalhem com a questo da aculturao que atualmente no mais um pressuposto terico vlido, elesabordam algumas questes historiogrficas relevantes e que merecem ateno. Ver tambm as discusses maisrecentes em Molyneaux (1997), especialmente Sparkes (1997, p. 130-155) e Russel (1997, p. 230-246).

    6Bruneau (1986).

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    idntica, mas anloga ao referente. Desse postulado surgem dois aspectos inerentes

    imagem: o tema, que relacionado ao referente, e o esquema, relativo tcnica, ordenao

    de elementos formais com intuito de produzir a aparncia ilusria do referente. Assim, como

    veremos durante a exposio dessa teoria, a imagem compreende a reproduodo referencial

    ou temapor meio de um esquema.7

    Na concepo de Bruneau8as imagens so definidas como as obras que tm por

    fim produzir uma representao natural e, especialmente aqui, entre elas, aquelas que tm por

    objetivo imitar a realidade visvel. Ao qualificar a imagem, o autor a inclui na categoria mais

    ampla de produtos da tcnica, que resulta de uma conduta por meio da qual os meios

    necessrios so fornecidos para sua produo. Como lembrou o estudioso, logo no incio de

    seu artigo9:

    A imagem no uma necessidade universal, ela pode no existir, seja ergologicamente,em razo do savoir-faire, seja, mais freqentemente, axiologicamente, em razo do desejoou direito de produzi-la; mas quando h a imagem, se encontram, obrigatoriamente, osprocessos prprios tcnica e representao o modelo encontra uma validade geralno fato de incluirmos o tnico que tem como efeito particularizar toda produo.

    Bruneau criou uma teoria prpria da Imagem. O estudioso discordou dos trs

    nveis estabelecidos pela teoria de Panofksy, descritos anteriormente. Segundo o arquelogo,

    a boa tradio da Histria da Arte, que se interessa quase que exclusivamente pela esttica,

    considera a obra artstica um mero jogo de formas.Ao arquelogo da imagem caber revelar

    a identidade dos processos sobre a diversidade infinita de realizaespresentes no conjunto

    imagtico.10

    7Bruneau (1986, p. 256-259).8Bruneau (1986, p. 250, 268).

    Entre as muitas definies de imagemencontradas, inclumos a seguir aquelas que nos parecem pertinentes anlise: 1. representao da forma ou do aspecto de ser ou objeto por meios artsticos; 2. representao de seresque so objeto de culto, de venerao; 3. estampa, sem carter de obra original ou rara, que reproduz temasdiversos ou, mais especificamente, motivos religiosos; 4. aspecto particular pelo qual um ser ou um objeto percebido; 5. cena, quadro; reproduo esttica ou dinmica de seres, objetos, cenas etc. obtida por meiostcnicos; 6. em derivaes de sentido figurado: aquilo que apresenta uma relao de analogia, de semelhana(simblica ou real); 7. rplica, retrato, reflexo; 8. na literatura: qualquer maneira particular de expressoliterria que tem por efeito substituir a representao precisa de um fato, situao, etc., por uma alegoria, viso,evocao etc.; 8. na psicologia, a representao ou reproduo mental de uma percepo ou sensaoanteriormente experimentada; 9. representao mental de um ser imaginrio, um princpio ou uma abstrao(HOUAISS, 2001). Na definio de Gombrich (1971, p. 225-237), a imagem, por meio das escolhas que opera, uma formalizao do real, no limite de uma ritualizao, daquilo que ela representa, operao necessria atornar-se legvel aos seus destinatrios.

    9Bruneau (1986, p. 249).10Bruneau (1986, p. 250, 252-256). Aps definir seu campo de ao, no qual distingue o processo artstico

    autoformalizao da tcnica , dos procedimentos arqueolgicos formalizao lgica daquele que adescreve; ele estabelece duas das formas de tecnicizar a representao mental: por meio da imagem quedizemos representar isto ou aquilo; ou por meio da ao, profissional ou no, que chamamos tambm no teatro,uma representao.

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    Nesse sentido, a construo de um modelo terico do referencial visualpertinente

    Arqueologia tem como ponto de partida aquilo que o estudioso considerou definidor de toda

    a imagem e de toda obra e sem o qual ela no pode existir, justamente aquilo que, de acordo

    com ele, o pan-semioticismo reinante,muitas vezes, negligenciou: sua tecnicidade. Em

    seguida, explicou a escolha do termo genrico de referente:

    Definida, a grosso modo, como imitante, a imagem , por sua vez, necessria coisaimitada. preciso um termo para designar genericamente aquilo que, na imagem, atcnica usa como trajeto, o que ela tem por fim mostrar o aspecto. A palavra modelotornou-se uma concepo muito particularizada das cincias humanas e, sobretudo, supeque a imagem deva representar, sempre, uma realidade previamente sensvel, o que no o caso. Acho mais cmodo o termo referente, mas se fiz aqui esse emprstimo dalingstica, no devido atual mania de encontrar em tudo a semntica, nem porconfuso induzida da arte e da linguagem. porque, precisamente nesse ponto, a imagem,que serve para mostrar o universo das coisas, est para ele no numa relao idntica, mas

    anloga quela da palavra, que serve ao dizer.11

    Assim, Bruneau verificou que a tcnica est duplamente associada ao princpio da

    imagem, tanto na prpria imagem quanto em seu referente, mas que isso no modifica em

    nada a sua relao com a referncia12. Em suas palavras:

    A referncia no supe, de modo algum, a realidade da percepo, por isso que preferiqualificar a imagem como referencialao invs de imitativa. O referente muitas vezes no mais que perceptvel e nem efetivamente percebido. O referente pode no ser perceptvelpela simples razo de ser destitudo de toda realidade sensvel, ele surge do que osfranceses precisamente chamam a imaginao. A imagem no serve apenas para

    reproduzir com maior ou menor exatido os aspectos do sensvel de um referente, maspara dar um aspecto sensvel aos referenciais dos quais eles so desprovidos, dentro darealidade no imagtica. Porque a imagem um produto necessariamente tcnico emrelao a um referente, preciso distinguir aquilo que nela cabe ao referente, e que chamode tema; e aquilo que cabe tcnica e que eu chamo de esquema. Em outros termos, otema no , cabe entender, o prprio referente, mas sua marca na imagem, que visamostrar seu aspecto; o esquema a ordenao dos pontos, linhas, superfcies ou volumes,prprios a produzir ilusoriamente a aparncia do referente, resultante do modo como osmeios so ordenados final e reciprocamente.13

    A partir da Tabela 1 possvel observar as estruturas tericas propostas para a

    anlise imagtica em Panofsky e Bruneau:

    11Bruneau (1986, p. 256-257).12 Bruneau (1986, p. 257) citou o caso extremo da rplica definida como algo dotado da mesma eficcia

    ergolgica que seu referente, mas que no tem em comum o mesmo status sociolgico.13 Bruneau (1986, p. 257-258). O estudioso esclareceu que as palavras tema e esquema no tm nada de

    estranho: a primeira vem do sentido comum do grego antigo, do sujeito a tratar; quanto segunda, eu aescolhi, por sua proximidade com o grego antigo, maneira de ser, aparncia exterio r. Sobre a imaginao, vero ensaio de Sartre (1987).

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    Histria da Arte

    (Panofsky)

    Tema Primrio ouNatural Tema Secundrio ouConvencional Significado Intrnseco ouContedo

    Forma Pura Mundo das Imagens Mundo dos ValoresSimblicos

    Descrio Pr-Iconogrfica Anlise IconogrficaDescrio/Classificao

    Interpretao IconolgicaSignificao simblica

    Arqueologia da Imagem

    (Bruneau)

    Imagem Referente

    ESQUEMAFormalizao tcnica

    Ordenao das Unidades Formais Mnimas

    TEMAMundo Real ou Imaginrio

    Anlise IconogrficaDescrio/Classificao

    Anlise InterpretativaSignificao

    Fontes arqueolgicas e textuais

    Tabela 1 A Imagem de acordo com Panofsky e Bruneau.

    De acordo com essa teorizao, as imagens ou, como preferiu Bruneau, todas as

    obras podem ser classificadas temtica ou esquematicamente14. Essa distino entre esquema

    e tema fundamental anlise imagtica, pois todo estudo da imagem supe a escolha de um

    ou outro ponto de vista, uma vez que tais realidades distintas, mas dialeticamente solidrias,

    14 Para Bruneau (1986, p. 259, 261) a diferenciao entre esquema e tema apenas uma comodidade deexpresso para imaginar o efeito de uma dissociao ergolgica geral.

    Mimese e Grama

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    esto mescladas de modo concreto na imagem.15Muitos equvocos interpretativos residem,

    justamente, na ausncia de distino entre esquemae tema.

    A noo de esquema e sua funo mediadora foi tambm discutida por Sartre16,

    que o chamou imagem abreviada, intermediria entre o puro sensvel individual e o puro

    pensamento, a estabelecer uma continuidade entre dois tipos de existncia que, em ltima

    anlise, so inconciliveis, ele supera e resolve em seu seio os conflitos entre imagem e

    pensamento.

    A funo mais evidente da imagem, na teorizao de Bruneau, a de produzir uma

    imitao da realidade percebida e, nesse sentido, ela qualificada pelo pesquisador como

    mimese. Ocorre que o tema implica no apenas na mimese, mas tambm em algo que ele

    denominou o grama17 as inscries que acompanham a imagem. Nas suas palavras:

    Tais inscries nominais, que aparecem na imagtica grega, no so mais que atecnicizao facultativa de um componente constitutivo da imagem. Se a imagticarecorre, to freqentemente, escrita, que tem por fim tecnicizar a linguagem, de seesperar que uma tenha qualquer coisa a ver com a outra. Na falta de inscries inclusas, aimagem quase sempre possui um ttulo constitudo por palavras, por vezes, inscrito,posteriormente, sobre uma etiqueta de museu. Em suma, est claro que a imagem nopassa de uma nica mimese,resultante da representao visual do referente; ela tambmresulta de sua representao verbalizada, aculturada pela linguagem. Aquilo que, no temaparticipa, no mais do universo percebido, mas do universo dito e, portanto, conhecido. Ogramadesigna todo sinal de implicao verbal. A imagem tem algo comum com a escritae no nos surpreendemos que ela seja freqentemente epigrfica. A incluso, constante enecessria, do grama, como componente constitutivo na imagem, no tem nada de

    misterioso, a imagem carrega simplesmente a impresso daquilo que tem por objetivotecnicizar (...). Em poucas palavras, a imagem no mostra apenas aquilo que vemos doreferente, mas tambm aquilo que dizemos dele. O gramaimporta, portanto, teoria daimagem e, por ser passvel de ser marcado tecnicamente contribui, conseqentemente, nasua produo. A imagem no faz ver aquilo que visvel na percepo do referente, masaquilo que somente acessvel por meio da linguagem. Para fazer ver o dificilmentevisvel, a imagem explora apolisemiade uma palavra; ela mostra aquilo que sugere umadas acepes da palavra utilizada.

    15 Tal concepo da Imagem essencial, uma vez que se ope a outras propostas que tendem a confundir aimagem com o referencial o esquema com o tema. Isso ocorre, segundo Bruneau (1986, p. 266; 268),devido ao esquecimento da formalizao tcnica; da interposio do esquema entre a representao noimagtica o referencial e a imagem; uma prtica costumeira entre os arquelogos que conceberam aimagem como uma simples ilustrao dos textos ou ainda atriburam-lhe o papel de transcrio exata e visveldaquilo que representa.

    16Sartre (1987, p. 64-65).17Bruneau (1986, p. 269, 272-273).

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    Steiner18, por sua vez, observou que a eficcia das esttuas, um tipo especfico de

    imagem, depende de uma construo especfica de ligao entre o sujeito e a figurao, um

    lao que no precisa se apoiar em nenhuma semelhana mimtica, mas numa noo de

    substituio, equivalncia ou concordncia uma relao metonmica de aproximao,

    contigidade, e no similaridade.

    Como observou Vernant19, a capacidade do objeto instar, no tanto a aparncia

    fsica do modelo, mas suas propriedades e valor, permite imagem assumir um papel na uma

    dinmica mais extensa de troca:

    Sem se parecer com ele, o equivalente capaz de apresentar algum, de tomar seu lugarno jogo de trocas sociais. Ele o faz, no por uma questo de similaridade com o aspectoexterno da pessoa (como num retrato), mas por meio de um compartilhamento de valor,uma concordncia na questo das qualidades associadas ao prestgio.

    1.2 A IMAGEM E O PODER DO DISCURSO IMAGTICO

    Outro ponto importante, discutido por Bruneau e outros estudiosos, que sempre

    faltar Imagem parte do que existe em seu referente, ou, pelo contrrio, pode haver algo

    includo na imagem que no faz parte de seu referencial original. Assim, a imagem incapaz

    de ser equivalente ao referente, ela reduz o referente ao essencial. Assim:

    A imagem tem por fim reproduzir o aspecto da realidade percebida e, exatamente como alinguagem, essa, entre todas as suas caractersticas, que ns retemos maisespontaneamente: sua capacidade de dizer o mundo, ao invs de sua incapacidade de odizer, em toda sua propriedade20.

    18Steiner (2001, p. 3-5) utilizou o interessante exemplo das esttuas na mitologia e histria gregas que servem derepresentao daquele que est ausente ou do morto, figurando como a parte faltante e mantendo acomunicao entre aqueles separados pelo tempo ou espao. Sobre os cenotfios, ver o Captulo II, nesta.

    19Vernant (1990b, p. 75).20 Bruneau (1986, p. 262-263, 268, 278-282). O autor lembra que o conceito de estratagema concebido por

    Gagnepain, como anlogo artstico do conceito lingstico de discurso, permite precisar a idia que este umdiscurso de imagens e responder queles que questionam se a imagem portadora de um discurso. Existemvrias formas de estratagemaque consistem, basicamente, em figurar aquilo que se deseja mostrar de acordocom determinada circunstncia. O autor utiliza conceitos interessantes a respeito da destinao da imagem que,segundo ele, se dividem em grupos correspondentes aos diversos planos da racionalidade. Entre eles, no planoda representao, o projeto imagtico produzido com a inteno de fazer ver, fazer saber, lembrar, e,portanto, destina-se evocao compreendendo as imagens utpicas que propem uma outra viso demundo. Por outro lado, no plano sociolgico, a imagem que representa toma o lugar,de maneira fictcia, doque est ausente fisicamente, e denominada convocao,o antigo simulacro. Ela , por vezes, to perfeitaque a imagem pode ser tratada exatamente como seu referencial. Esta possibilidade explica, segundo oestudioso, os dois fenmenos inversos de idolatria e iconoclastia. Sobre a ingenuidade da teoria epicuriana dossimulacros,ver Sarte (1987, p. 36).

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    A funo semntica da imagem foi originalmente debatida por C. Dugas21, que

    atribuiu ao seu contedo narrativo um papel preponderante e ao qual est subordinada a

    qualidade esttica da mesma. Trata-se, de acordo com o autor, de um contedo

    fundamentalmente distinto que, condensado em um episdio ou episdios, possui um carter

    eminentemente associado linguagem. Ao evidenciar essa caracterstica narrativa e no

    apenas esttica da imagem, relevou seu carter comunicativo e capaz de estabelecer modelos

    culturais na sociedade. Assim, a contemplao destes paradigmas figurativos sugestiona e

    estimula o indivduo e, portanto, pode instru-lo por meio de mensagens dirigidas

    coletividade.

    Como observou Molyneaux22 mais tarde, muitos acadmicos pensam ser

    impossvel que as imagens existam sem a linguagem. No entanto, compreender uma imagem

    requer educao e direo da ateno para seus aspectos significativos. Assim, revelar a vidacultural das imagenssignifica expor seu poder e influncia como afirmao direta das idias e

    relaes sociais mensagens visuais que podem ser to fortes e distintivas quanto aquelas

    expressas nos textos.

    Essa longa discusso sobre a relao entre a arte, a linguagem e o mundo, que

    parece certa e inevitvel, foi retomada por Molyneaux que observou existir, do ponto de vista

    analtico, um problema em relao integrao perceptvel da imagem:

    O uso de imagens naturalsticas implica, supostamente, numa relao direta entre arepresentao do mundo - transparente e sem obstculos interpretativos. As idiasrepresentadas reivindicam uma verdade natural. por isso, que espectadores e leitores sesentem confortveis diante de imagens de elementos naturais: na arte, tais representaesno requerem muita interveno textual. Uma imagem de um humano pode serreconhecida fora do domnio relativstico da linguagem, quer algum fale hindi, ingls,etc., as aes humanas e objetos familiares podem ser detectados sem um guia. A idia deque representaes de elementos naturais fornecem informaes simples, diretas eseguras, como a prpria natureza, muito sedutora. No de surpreender que onaturalismo (definido, aqui, como uma adeso muito aproximada da natureza ou

    21Dugas (1936, p. 440; ou 1960, p. 35). Ver tambm Dugas (1937), que elaborou a distino entre iconografia eiconologia, antes mesmo de Panofsky (1939). O estudioso analisou um grande conjunto de imagens presentesnos vasos cermicos gregos, ao qual atribuiu autonomia e valor formativo prprios, decorrentes de fatoresfundamentais da cultura imagens que at ento eram consideradas apenas em seu carter decorativo oucomo ilustraes derivadas da tradio literria. Ele foi provavelmente o primeiro a observar a funo ativa dasimagens e revalorizar seu papel social e educativo sua missoe ensinamento, entre as diferentes camadasda sociedade grega. Essa concepo reaparece em Will (1955, p. 290) que concebe o signo, por si prprio,como uma representao simblica qual importa mais significar que ilustrar. Ver, ainda, Lissarrague eSchnapp (1981, p. 281); e Sarian (1987, p. 17), sobre a imagem como instrumento da memria. Sobre ahistria semntica do significado, ver Hoffmann (1988, p. 144) para quem os objetos no tem significao emsi prprios e os smbolos s funcionam em conjunto; e, claro, Gombrich (1960; 1972) sobre a multiplicidadede significados atribudo a uma imagem, de acordo com o contexto. Sobre a mobilidade e circulao dos vasoscermicos em seu uso domstico ou cultual e a onipresena imagtica na cidade grega, ver Bron e Lissarrague(1984, p. 17).

    22Molyneaux (1997, p. 1).

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    realidade - como a natureza parece ser) um instrumento importante de propaganda,tanto poltica, religiosa ou de divulgao, uma vez que d crdito s afirmaes.23

    Sobre a primazia do naturalismo no esquema imagtico, Sartre24ofereceu, uma

    dcada antes, um precioso questionamento:

    Tendes dizeis presentemente, na conscincia, uma representao abreviada, muitoconcreta para ser pensamento, muito indeterminada para ser assimilvel s coisas que noscercam; e denominais essa representao um esquema. Mas porque no seriasimplesmente uma imagem? No confessais, assim, constituindo para essasrepresentaes abreviadas uma classe parte, que reservais o nome de imagem a cpiasfiis e exaustivas das coisas? Mas, talvez, as imagens no sejam nunca cpias de objetos.Talvez no sejam mais do que procedimentos para tornar presentes os objetos de umacerta maneira. Neste caso, o que que passa a ser o esquema? No mais do que umaimagem como as outras, pois o que definir a imagem ser a maneira pela qual ela visa oobjeto e no a riqueza dos detalhes por meio dos quais o torna presente.

    Ressaltamos que se a imagem tem por funo o discurso, diferente do texto

    escrito, que possui maior flexibilidade no que diz respeito sua extenso, ela precisa ser

    concisa e direta, uma vez que est circunscrita ao espao formal da obra. Nesse sentido, esta

    propriedade da imagem, aqui chamada sintticae seu prprio carter visual propiciam uma

    difuso mais ampla e, portanto, tambm mais direta, gil e persuasiva do discurso que

    engendra. Como observou Shapiro25:

    Artistas pictricos vem o mundo de modo distinto dos poetas, que recorrem s palavras.

    Ns no podemos mais reconstruir a experincia de ouvir uma performance de Homeroou Stescoros, ou assistir a uma pea de squilo, como os atenienses do sculo V ofizeram. Ao olhar o vaso grego, no entanto, podemos ter certeza de que estamos vendo omesmo objeto que o comprador original e seus amigos viram. Nesse sentido, as artesvisuais dos gregos, nos falam mais imediatamente e diretamente do que a poesia poderia.No entanto, existe a, tambm, um perigo, pois ns estamos olhando os objetos com olhosdistintos e pressupostos culturais, estticos e perceptivos diferentes.

    Como observou Brard26, em relao qualidade semntica dos vasos, no se trata

    de negar o valor artstico dos vasos no plano da Histria da Arte, mas de verificar uma outra

    importante funo da imagem: a imagtica retm o tema a histria narrada que pretende

    transmitir, assim, enquanto a histria faz os tipos evolurem, o estilo de cada poca os

    modifica.

    No nenhuma novidade que o acesso aos textos escritos na Antiguidade era

    muito mais reduzido e limitado s elites do que as imagens. A linguagem escrita requer um

    23Molyneaux (1997, p. 2).24Sartre (1987, p. 65).25Shapiro (1994, p. 10).26Brard (1974, p. 46-47). Ver a definio clssica de estilo em Shapiro (1953, p. 287-312).

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    conhecimento anterior, bem mais especfico e vagaroso, para compreenso efetiva do

    discurso. A leiturada imagem, por sua vez, tambm exige um conhecimento prvio, mas este

    se d de modo distinto daquele que necessrio leitura do texto. Como recordou Sparkes,

    nas sociedades iletradas ou parcialmente letradas, as imagens tm um papel importante. Entre

    os gregos, observou o estudioso, o grande impulso verificado na oratria e nas imagens indica

    que o ouvir e o olhar eram mais influentes na vida cotidiana do que o ler.27

    Esta funo sinttica, por sua vez, foi interpretada, por Molyneaux28, como a

    inrciada imagem:

    O fortalecimento de idias em algumas imagens muito poderoso. Representaeshistricas ou religiosas de indivduos, episdios ou eventos importantes, fornecem umresumo intenso, denso e engajado de eras inteiras e situaes bastante complexas. Cadaimagem captura literal ou figurativamente, um momento congelado no tempo, mas que

    pode eventualmente durar uma eternidade. Trata-se de um conceito estranho: acompresso de tempo e espao em uma nica imagem. O problema que a imagem superao tempo e a academia, ao capturar a essncia imaginada de um evento de forma facilmentelembrada, replicada e transportada. Se for um evento humano, ainda mais resistente mudana. Ns tendemos a descartar ferramentas e tecnologia que no so maisnecessrias, mas preservamos a arte, como smbolosque ainda so vlidos experinciahumana. Imagens e outras representaes visuais possuem, portanto uma inrciatremenda, um poder de permanncia, que pode persistir por muito tempo, aps as idiaspor trs delas sarem de moda. Essa persistncia e, freqentemente, anacronismo,pode serobservado na arte ao longo da histria.

    Tal continuidade ou capacidade de permanncia da imagem foi abordada por

    Shanks29a partir do conceito de retrica do discursoimagtico.

    Elementos de retrica incluem tcnicas de persuaso, estilos de apresentao, formas deargumentao e arquivos para referncia e apoio. Assim, em Arqueologia, uma afirmaoou uma imagem do passado arqueolgico, no forte e boa porque verdadeira ou

    27Sparkes (1997, p. 132). Para uma abordagem abrangente e mais recente, ver os demais artigos presentes emMolynaeux (1997). Na atualidade isso se confirma quando observamos que a populao tem acesso muito maisfacilitado s formas de expresso visual que literrias, ou constatamos sua utilizao indiscriminada na mdia,por meio de agentes do discurso verbal invariavelmente congregados ao discurso visual. A influncia daimagem nos meios de comunicao de massa foi tema exaustivamente tratado por estudiosos da semitica, masno ser abordado nesta pesquisa.

    28Molyneaux (1997, p. 6).29Shanks (1997, p. 81-82) trabalhou com as imagens presentes em fotografias arqueolgicas. O argumento do

    autor baseiou-se no fato que a fotografia um poderoso instrumento retrico para estabelecer objetividade: elafunciona como imagem e como produto da tcnica que, aparentemente, captura um correlato objetivo. Issolevou o autor a introduzir o discurso como um conceito vital ao entendimento da produo social e histrica doconhecimento. Como j havia sido lembrado por Latour (1990), as imagens podem ter uma tremenda foraretrica porque elas podem reunir vrias coisas: informao, atitudes e relaes. Alguns trabalhos interessantessobre a verdade arqueolgica como um efeito do discurso social e histrico, incluem Hodder (1989); Hodder etal. (1995); Tilley (1990), cujo foco de ateno permaneceu, em grande parte, no discurso como textoepalavra:escrever arqueologia. A imagtica arqueolgica e seu carter discursivo especfico tambm mereceram aateno dos pesquisadores, ver, por exemplo, Berger et al. (1972). Sobre o papel do mito na tradio retricagrega, Loraux (1994).

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    objetiva, mas porque congrega e faz sentido, porque, quando interrogada, consideradaobjetiva. Em que casos ento uma afirmao ou imagem possui fora, se no naobjetividade? Pode no haver resposta, ou elas podem ser muitas. Uma imagem objetiva,uma verdadeira representao da realidade, aquela conectada a algo mais slido que elamesma, de forma que, se for considerada no-representativa, tudo aquilo a que ela estconectada fica ameaado de ruir. Retrica a arte e a cincia de fazer tais conexes epersuadir as pessoas de sua fora. Uma foto possui uma multiplicidade de conexespossveis que fazem parte da heterogenicidade do trabalho fotogrfico. A objetividade deum registro arqueolgico, sua fora, uma realizao retrica, mas nem por isso real.

    Shanks tambm afirmou que aquilo que consideramos realidade objetiva uma

    construo retrica, uma vez que a objetividade e a verdade no se sustentam em si mesmas.

    Elas devem ser argumentadas e, assim, a fora da objetividade advm, em parte, da retrica.

    Isto , para fazer sentido, uma imagem precisa ter conexes e contextos estabelecidos que

    operem dentro e alm da imagem, de forma que o espectador possa reconhecer ali relaes

    sociais especficas. Isso pode ocorrer tanto com seu tema quanto com a composio, o

    esquema.

    Muitos estudiosos nas dcadas passadas voltaram-se para a anlise da produo

    artstica e dos artistas, em detrimento da influncia do contexto na produo das imagens e da

    obra dos artistas, de acordo com as diferentes realidades regionais30.

    A anlise estilstica tradicional no favorece a aproximao da situao de

    produo das imagens, isto , do contexto material e social em que o artista trabalhou, e nem

    mesmo dos indivduos e da sociedade que os produziu. Estilo, como lembrou Molyneaux31,

    presume diferenas individuais e isso encoraja os analistas a generalizar. A alternativa,

    segundo o estudioso, olhar para as referidas imagens com os olhos de um arquelogo de

    campo, v-las como:

    Ambientes materiais que contm vrias reas de atividade material e ideolgica, locaisonde indivduos, imbudos das atitudes de seu tempo, marcaram as superfcies dasparedes. Pois, apesar da noo abrangente de obras de arte, como elemento raro e valioso,imagens so, geral e simplesmente, reas contendo informao de um tipo (e densidade)diferente das paredes ou outras superfcies ao seu redor. Cada imagem registra traos dasituao da produo artstica, que inclui aspectos do estado fsico e intelectual do artista,

    traduzido por meio de um pincel, cinzel ou outro instrumento, em feies materiais nasuperfcie da imagem. Imagens tero, portanto, evidncias visveis das atitudes implcitase explcitas do artista, ou da posio que eles tomam, diante do seu tema.

    30Bandinelli (1961, p. 43-44) foi um dos pioneiros nessa abordagem, ao observar que o repertrio imagticoadaptado a um discurso figurativo referente realidade local e que a imagem possui uma funo educativa e,portanto, social. Para anlises da arte etrusca e das diferenas tipolgicas da escultura funerria, condicionadasa um contexto urbano ou rural, ver Cristofani (1978, p. 140-153) e Torelli (1981). Um estudo interessantesobre contexto cultural e imagem tambm foi realizado por Hoffmann (1988). Ver tambm as observaes emSarian (1987, p. 16).

    31Molyneaux (1997, p. 109).

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    As representaes surgem e permanecem inseridas em circunstncias temporais

    especficas, condicionadas pelas presses sociais, econmicas e polticas de um determinado

    momento. A sucesso do poder por novos grupos tnicos, sociais, religiosos estabelece

    demandas precisas que, por sua vez, condicionam o desenvolvimento do programa

    iconogrfico. Nesse sentido, as observaes de Molyneaux32so bastante pertinentes:

    Imagens so particularmente eficientes para reforar poder e ideologia. A visibilidade dasimagens como formas materiais emprestam fora a qualquer mensagem que elasexpressem. Esse estmulo perceptivo descreve a alterao de algum aspecto do ambientepercebido, de modo a ampliar a probabilidade que ele seja digno da ateno de umadiversidade de espectadores. A manipulao da ateno para chamar a ateno pode serintencional. O esforo pelo efeito,freqentemente, responde ao declnio de um estilo oumoda nas coisas culturais. O que sugere que a anlise do contedo possui um papelpotencialmente significante no estudo das imagens, no estudo das variaes da forma dosignificado, uma vez que este afetado pela variao do estmulo ideolgico. Estmulo

    perceptivo tambm um atributo essencial, pois sugere no apenas que as imagens tmexistncia alm da linguagem textual, mas que imagens e artistas no podem estartotalmente circunscritos pelo relativismo cultural, social ou perceptivo. O uso de estmulosvisuais intensos ajuda a gerar o poder de persuaso utilizado to eficazmente hoje napublicidade. necessrio examinar tanto os atributos matrias como sociais das imagens.

    O estudioso tem uma abordagem bastante relevante em relao a essa temtica,

    fundamentada pela anlise do que chamou de paisagem metafricada arte egpcia durante o

    Novo Imprio, supostamente revestida de uma aura atemporal e constante, a fim de encontrar

    a realidade social por meio das imagens. As mudanas encontradas na perspectiva diacrnica,

    como a localizao e proporo dos templos e palcios, auxiliadas pela escultura monumentale a disseminao de imagens religiosas portteis, sugerem que a adorao estava se tornando

    mais pblica e, portanto, um espetculo poltico de manipulao estatal. O crescimento da

    visibilidade desses instrumentos ideolgicos sugere que o rei e o Estado ajustaram ativamente

    sua produo em resposta s mudanas do clima poltico. O estudioso conseguiu revelar, a

    partir das imagens visuais, a natureza do poder real e o grau de independncia do rei, que na

    verdade estava circunscrito ao sistema do qual ele fazia parte.

    A arte, conclui Molyneaux, uma fonte lgica para o estudo do poder em uma

    sociedade, uma vez que essencial ao aparato que refora a ideologia para as massas. Assim,

    para examinar os efeitos do estmulo metafrico e perceptivo, que Molyneaux considerou a

    essncia do poder das imagens, necessrio estud-las em seu contexto de produo33:

    32 Molyneaux (1997, p. 4-5, 108-129). Para anlise imagtica do outro, na Grcia antiga, e o uso poltico nadefinio de uma identidade helnica ver Lissarrague (1990); Sparkes (1997); e tambm Vickers (1987, p. 20-22). Sobre iconografia e poltica ver tambm Verbank-Pirard (1985, p. 156-157).

    33 Molyneaux (1997, p. 5-6). Para as teorias correntes sobre significado pictrico e percepo imagticatranscultural, ver tambm o artigo de Costall (1997). Esse autor divide as teorias em duas categorias

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    A simples razo que o artista, no importa o quo esteja invisvel no contexto cientficoou qualquer outro, trabalha dentro de uma situao mediada por foras sociais e materiais.Infelizmente, a tradio cientfica ocidental suprimiu a individualidade no mtodocientifico, o que causou um desinteresse pelo processo artstico e pelos artistas. Sem essainformao, as representaes s podem fornecer generalizaes. Na Arquelogia, elas sotratadas como objetos inanimados, distribudos em categorias estilsticas e usados paraestabelecer diferenas e mudanas culturais. Na Antropologia, as circunstncias de suacriao podem ser menos significativas que suas funes, pois elas so interpretadas comoparte do processo social, como a religio ou a apresentao de identidades sociais. Artistase espectadores se conectam a um discurso j em progresso, e ns podemos conhecermelhor as foras sociais que geram a imagens dentro desse discurso a partir das variaesformais nas imagens individuais que, como elementos de informao, so manipuladoscomo parte do estmulo perceptivo e metafrico.

    Esse arquelogo utilizou uma abordagem no-estilstica, na qual o que

    significante diz respeito a como o artista representa a relao entre as figuras e outros

    elementos na imagem, em vez de como a representao, como um todo, se compara a outras

    verses do mesmo tema. O contedo importante, mas apenas no nvel temtico. Ele se

    ocupou do estudo da forma particular, que qualquer contedo especfico possui em um

    conjunto de imagens: a forma do seu significado, como essa forma aparece e se modifica ao

    longo do tempo e o que essa variao pode significar em relao ao efeito da ideologia na

    situao produtiva e de seu contexto social. A anlise da forma do significado uma anlise

    de fatores informativos comuns que constituem expresses visuais e ajustes s situaes

    ideolgicas. Um exemplo importante dessa utilizao ideolgica reflete-se no tamanho

    especfico da imagem: a escala.

    Molyneaux34 lembrou, ainda, que possvel identificar a posio do artista sem,

    necessariamente, conhecer o seu significado preciso em pelo menos um aspecto da arte: a

    forma e distribuio das figuras humanas e a representao de cenas e eventos sociais. Assim:

    Representaes de paisagens sociais so bastante sensveis s situaes ideolgicascontemporneas e, claro, suscetveis a uma variedade de leituras modernas, porque elasesto parcialmente preocupadas com o reconhecimento e apresentao do status social dosindivduos. As variaes e diferenas no tamanho relativo e na orientao de figuras

    individuais em uma cena, que a anlise estilstica torna clara, so nossas principais

    principais: 1. teorias perceptivas baseadas na idia de semelhana; 2. teorias sociais que insistem nopapel essencial das prticas e convenes compartilhadas. Embora as duas paream inconciliveis, tanto nalgica como nas implicaes empricas, pois ou o significado pictrico intrnseco e universal ou extrnsecoe culturalmente relativo, possvel observar que as representaes visuais possuem uma vida cultural muitoativa, o que no quer dizer que a teoria perceptualista esteja errada, pois embora tenha limitaes claras, elatem sua abrangncia inegvel. Aps uma longa discusso a respeito da teoria da semelhana, o autor concluique ambos os lados esto relativamente certos no que afirmam, embora amplamente errados no que negam,uma vez que muitas das prticas sociais que envolvem imagens dependem da semelhana postulada pelosperceptualistas.

    34Molyneaux (1997, p. 111-112).

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    preocupaes. Elas podem ser resultado de variaes simples do esboo. Mas, elastambm podem expressar uma atitude consciente ou inconsciente do artista diante dotema. Ao tomar o tamanho relativo como forma de representar significao, uma tcnicacomum em pinturas sem perspectiva, o artista provavelmente pintar a figura maisimportante, ou as cenas, maior que as demais. Mesmo que ns desconheamos mais oumenos os temas, significados, ou detalhes iconogrficos da pintura, ns podemos observara imagem e ao menos compreender a organizao da significao na mesma. Se, nsobservamos que tal padro recorre em uma quantidade de pinturas de diferentes artistas,podemos especular que ela reflete uma atitude social mais predominante. Nesse ponto,conceitos como cdigo, conveno, cone ou gnero, costumam geralmente retirar arepresentao de seu contexto situacional, para poder servir a uma generalizao Histria da Arte ou Semitica. Nosso objetivo resistir a tais tendncias generalizantes,para que possamos manter o foco no nvel da superfcie, nos objetos em si e em seuambiente, nos quais os detalhes formais das pinturas individuais refletem o trabalho deartistas individuais em situaes especficas de produo. Dessa posio, ns podemos sercapazes de ver o dinamismo escondido nas imagens, que na superfcie parece tocontrolado e consistente diferenas formais surgem de variaes situacionais, refletema veracidade da obra representacional do artista influenciada por circunstncias

    psicolgicas e prticas mutveis, no local de trabalho.

    Se o arteso tanto fator causal quanto resultado da evoluo artstica, social e

    religiosa de sua poca e se cada contexto propicia e resulta da interao desses diferentes

    fatores, eles no podem ser desconsiderados numa anlise efetiva. Como lembrou

    Hoffmann35:

    A mera idia, de que as imagens individuais nos vasos geomtricos so imbudas designificadosdiretos e mono-semnticos que o artista tinha em mente, baseada em umequvoco profundo do que so smbolos e de como eles funcionam, e na crena errnea de

    que a expresso simblica se ope, de alguma forma, expresso direta ourepresentacional. O pensamento simblico se torna coerente, e seu estudo interessante,quando os smbolos empregados so examinados em conjuntos e quando a relao entresmbolos e conjuntos de smbolos estudada dentro do contexto cultural como um todo.

    Por outro lado, uma observao essencial feita por J. P. Vernant36 refere-se

    incerteza que envolve decifrar uma imagem. Nas suas palavras:

    Nenhum sistema figurativo a simples ilustrao do discurso oral ou escrito , nem areproduo fotogrfica do real. A imagtica uma construo, no um decalque; umaobra cultural, a criao de uma linguagem que como todas as outras lnguas comporta um

    elemento essencialmente arbitrrio. A palheta de formas figuradas, que cada civilizaoelabora e organiza, a seu modo e estilo, sobre uma determinada superfcie, surge comoum produto filtrado, uma codificao do real a partir das modalidades que lhe soprprias. Tal arbitrariedade social que explica a dificuldade em decifrar as imagens ejustifica o projeto de buscar, por meio delas, os traos especficos de uma cultura.

    Nesse sentido, Brard e Durand37lembraram que:

    35Hoffmann (1985/6, p. 62)36Vernant (1984, p. 5).

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    A leitura de uma imagem exige do observador moderno uma ginstica intelectual que no complicada, mas que precisa de um treino progressivo; sempre preciso considerar quens estamos distanciados das condies que existiram durante sua elaborao. Nem ostextos, literrios ou epigrficos, nem as escavaes em campo, nem o conjunto imagticopermitem reconstituir totalmente a conjuntura histrica que torna compreensvel odocumento em questo (...). na anlise das regras que estruturam a combinao que osentido da cena aparece progressivamente. O documento deve ser inserido em uma sriede imagens e a estas devem ser comparadas as diferentes combinaes que regem a novaimagem. Uma imagem isolada tem grandes chances de permanecer muda; uma rede deimagens, pelo contrrio, quer pelas semelhanas ou diferenas que apresentam suascombinaes, comeam a fornecer as significaes. ai que reside a maior dificuldade dainterpretao: para poder medir os desvios diferenciais que distinguem as imagens e,assim, estabelecer as regras compositivas obedecidas pelos artesos, aquele que deseja asdecifrar deve ter, constantemente, em mente o conjunto imagtico; essa ginsticamnemnica se torna o melhor meio de se abordar as antigas condies de criao.

    Algumas vezes, um repertrio artstico intervm sob a forma de um programa

    iconogrfico preciso e doutrinrio, como no caso da arte religiosa. Como lembrou T.

    Champion38,

    As representaes do passado, que compreendem a pintura e a escultura, so categoriascomplexas. Elas promovem indagaes a respeito do poder de transmitir uma mensagem;tais imagens podem permear a sociedade e se tornarem duradouras se foremcontinuamente projetadas, repetidas e renovadas, se tiverem a capacidade de exercer umainfluncia e deixar um legado para alm do tempo e espao, ou da esfera cultural restritaem que foram originalmente criadas (). O foco primordial est na produo edisseminao das imagens, embora isso no possa estar dissociado de uma consideraosobre o contexto poltico e ideolgico.

    Como bem observou Hoffman39em relao ao papel da imagtica:

    Primeiro, e antes de mais nada, existe a questo da visualizao em geral. A religio no uma simples questo de ver e acreditar. Ela mais como uma enciclopdia, na qual certasvises de mundo so validadas e preservadas de gerao em gerao. O mundo invisveldo mito compartilhado por meio de imagens, especialmente entre as pessoas que nopodem ler. A funo da imagem materializar, equilibrar e estabelecer a ideologia notempo e no espao.

    Nesse sentido, Sparkes

    40

    observou que os mitos eram parte da tradio oral evisual, no eram algo congelado no tempo ou no texto, mas variavam em popularidade e

    contedo. Assim, estavam associados a tempos, espaos e ocasies, tanto como as histrias

    37Brard e Durand (1984, p. 19, 21); e Brard (1974, p. 33). Sobre o uso das pinturas nos vasos gregos comopropaganda poltica ver tambm H. A. Shapiro (1983).

    38Champion (1997, p. 213).39Hoffmann (1988, p. 153); o autor analisou o uso da religio e das artes na difuso de ideologia poltica. Sobre

    o mito como histria e descendncia do povo grego, e o uso do mito como veculo de assuntos polticos,sociais e religiosos, ver Shapiro (1994, p. 1, 4).

    40Sparkes (1997, p. 132).

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    narradas e as apresentaes visuais. As lendas podiam ser usadas para celebrar o sucesso, da

    comunidade ou famlia, reforar status no presente ou justificar novas direes. O passado

    tinha um papel prtico na formao do presente. As histrias no eram fices, eram

    realidades vivas com relevncia social e poltica, podiam ser moldadas e reformatadas para

    persuadir seus espectadores a aceitar novas verses ou novos episdios do passado. Para o

    estudioso:

    Mais que nos contar sobre verdades primordiais, os mitos gregos nos ensinam sobre aspreocupaes contemporneas, tanto do estado como do indivduo. Mitos so um meioextraordinariamente potente de expressar e informar sobre a experincia de cadasociedade no mundo. Assim, na Grcia antiga havia uma relao especfica entre mito ehistria, na qual mitos especficos eram selecionados e, algumas vezes, reformulados afim de serem percebidos como prefiguraes de eventos recentes e passados. Imagenspblicas e privadas, os vasos possuam cenas mitolgicas e da vida cotidiana

    contempornea, s vezes ambas, o que tornava ambgua a distino entre passado epresente. A obra pode se referir ao passado, mas necessariamente responde ao contextoem que foi produzida.

    Nesse mesmo sentido, Steiner41props que:

    Como artefatos-chave na paisagem cultural, as imagens tambm se desenvolvem junto dasmudanas e desenvolvimentos no tempo e espao. Colocar as imagens nesse contextomais amplo nos permite recuperar muitas atitudes e crenas acerca das mesmas, e algumasdas respostas que elas teriam suscitado. Nenhuma escultura foi erigida sem uma funo arealizar. Seja com inteno apotropaica, talismnica, admonitria, consoladora, votiva oucomemorativa, esttuas eram, primeiramente e acima de tudo, vistas, no como objetos

    representacionais ou estticos (embora sua beleza e qualidade fossem geralmente cruciaisao desempenho de seu papel), mas como agentes performativos e eficazes, capazes deinteragir em uma variedade de maneiras com aqueles que as patrocinaram e veneraram.

    Esses eram elementos conhecidos e, certamente, empregados, pelos patrocinadores

    da arte e das imagens, na difuso dos ideais contemporneos vigentes, quer polticos ou

    religiosos. O prprio Budismo, que tem sua doutrina fundamentada por um extenso conjunto

    de sutras, perpetuada originalmente por meio da oralidade e, mais tarde, pelos textos escritos,

    recorreu de modo considervel narrativa visual, como um importante fator na difuso de seu

    discurso religioso, de carter eminentemente proselitista

    42

    .

    41Steiner (2001, p. xii) procurou resgatar, em sua anlise, as aes e crenas que envolvem as esculturas gregasdo perodos Arcaico e Clssico, principalmente a partir das fontes literrias que mencionam as esttuas; everificar como a estaturia afeta a imaginao literria e filosfica. Embora a grande maioria das esttuas tenhase perdido, a autora recorre s evidncias de outro tipo como traos no solo, inscries em bases, leis sagradas,indicadores literrios sobre as prticas rituais e eventos que cercavam as imagens; que atestam tais objetoscomo profundamente inseridos no contexto social, poltico e religioso da Grcia antiga.

    42Ver a discusso em Aldrovandi e Hirata (2005).

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    1.3 O TEXTO E A IMAGEM, A IMAGEM E O TEXTO

    Uma outra questo importante e amplamente discutida tambm pelos estudiosos da

    Imagem, diz respeito confrontao entre as fontes textuais e visuais da Antiguidade.

    Ao longo do sculo XIX, as pesquisas iconogrficas foram desenvolvidas sob uma

    perspectiva que tendeu associar ou submeter a imagem ao texto. Baseada na abordagem

    filolgico-histrica, na qual a Arqueologia era considerada subordinada Filologia, a imagem

    era concebida como mera ilustrao das fontes escritas. Se os estudiosos no encontrassem

    respostas nas imagens, procuravam-nas nos textos e, se estes no as fornecessem, imaginavam

    uma fonte literria perdida.

    Nessa poca, os arquelogos imputavam aos atributos um papel determinante nas

    imagens. Mas, o avano das pesquisas revelou que no havia uma relao direta entre imageme texto e que os atributos no eram determinantes, pois existiam outros fatores envolvidos na

    interpretao da imagem, que at ento, tinham sido ignorados.

    O valor absoluto do atributo que recebeu primazia entre os eruditos foi discutido

    por Metzger43, que resumiu a questo ao postulado: a imagem, para aquele que a produz e

    para aquele que a recebe, possui necessariamente um sentido preciso e inequvoco. Por

    vezes, tal sentido escapa perspiccia do erudito moderno e, nesse caso, o temapermanece

    desconhecido. Para esse estudioso, diante de um jogo de imagens em que a composio

    parece clara, mas a sintaxe pouco evidentemente, o arquelogo encontra-se na situao dolingista, procurando decifrar uma lngua morta transcrita em caracteres conhecidos ou, ao

    encontrar uma linguagem iconogrfica incerta, na situao do viajante, cujos interlocutores

    falam uma lngua totalmente desconhecida. O arquelogo dos registros figurativos, que no

    dispe de um cdigo de traduo infalvel, procede a fazer aproximaes e, por vezes, at

    regredir. Assim, a circunstncia da descoberta pode ter um papel decisivo para a pesquisa: um

    documento isolado pode no ser compreendido, mas o surgimento de outro pode ampliar a

    certeza. No entanto, sempre preciso atentar para a ambigidade de um atributo e, portanto,

    na viso desse estudioso, necessrio reduzir o nmero de seus significados e reagir com

    prudncia diante da multiplicidade de significantes.

    Outro problema interpretativo que existiu nesse perodo foi a suposta igualdade

    entre documentos imagticos mais antigos e mais recentes, como se estes constitussem uma

    mera genealogia iconogrfica. Sob a influncia do Evolucionismo, a Antropologia, a Histria

    43Metzger (1985, p. 173-179).

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    das Religies e a Arqueologia Clssica demoraram a perceber que existem marcos

    importantes na constituio da imagem e que, muitas vezes, no possvel instituir uma

    filiao direta.

    Houve, ao mesmo tempo, um exagero na atribuio da influncia da Grande Arte

    nas artes menores. Toda vez que uma pintura era estudada em vaso cermico, imaginava-se

    um original escultrico ou uma pintura que teria servido de modelo, mas que se perdera no

    tempo. No entanto, as pesquisas mais recentes verificaram que no se pode comparar de

    forma direta produtos provenientes de produes intelectuais distintas, muitas vezes

    produzidos e dirigidos a diferentes camadas da sociedade.44

    O positivismo engendrado pela iconografia descritiva durante o sculo XX e que

    deu nfase ao formalismo de inspirao estruturalista foi mais tarde confrontado a abordagens

    de cunho antropolgico e semiolgico. O componente social tambm passou a serconsiderado fundamental para anlise da imagtica grega. Assim, os estudiosos passaram a se

    interessar pela descoberta dos nveis semnticos por trs do fenmeno descritivo.45

    Nas palavras de Lissarrague e Schnapp46:

    As imagens no so mera decorao, arbitrria ou gratuita; elas no podem ser um produtocultural insignificante (...). As imagens no so o complemento figurado de uma realidadesocial que os textos, mais ou menos, nos revelam. No h imagem que seja, em si mesma,um documento sociolgico; identificar um arteso, um escravo, um meteco, por exemplo,no basta. O que apresentado so as vrias categorias: velhos, mulheres, cavaleiros,hoplitas, por exemplo, que na imagem so agentes narrativos, no dados estatsticos. Paraevidenciar as regras funcionais da imagem, nico passo possvel, devemos utilizar a obrados lingistas e dos tericos da arte, para tentar construir uma semntica da imagemvisual. (...) Tal anlise do sistema icnico conduz ao reconhecimento do trabalho doimaginrio social, o modo como os gregos se viam. Fornecer acesso s representaesmentais no o menor paradoxo dessa pesquisa.

    Nesse sentido, como observou Gombrich47, a arte no apenas um instrumento

    de informao, mas tambm um meio de expresso. Entre a lngua falada e figurada, sempre

    haver essa diferena, uma recorrer a signos arbitrrios, a outra s formas que, por serem

    simblicas ou convencionais no tm menos fundamento na realidade, mesmo que j filtradas

    por representaes mentais.

    44 C. Clermont-Ganneau (1878;1880) foi o primeiro a discutir as questes e chamou a ateno para aproeminncia da imagem ao cunhar o termo mitologia iconolgica. Mais tarde, o prprio Dugas (1937) redigiuum artigo em que contraps a tradio literria grfica, no qual abordou a imagem como forma de expressoparticular e independente da produo textual; cada uma com modos de produo diferenciados.

    45A partir da dcada de 80 que os estudos iconogrficos tomam novo flego. Para historiografia dos estudosiconogrficos ver Lissarrague e Schnapp (1981); Hoffman (1985/6, p. 61-66) e a chamada iconologiainterpretativa; e tambm Sarian (1987, p. 15-48).

    46Lissarrague e Schnapp (1981, p. 281).47Gombrich (1960, p. 388-389).

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    A antiga suposio de que as fontes escritas teriam invariavelmente originado o

    repertrio imagtico no se confirmou durante as anlises da iconografia grega, e a existncia

    de uma tradio figurativa independente da tradio literria conseqentemente foi atestada.

    Embora em alguns casos a literatura tenha servido de ponto de partida ou fio condutor na

    produo dos monumentos figurativos, tal premissa revelou-se falaciosa, pois negligenciava

    toda a influncia que no fosse literria.

    A pesquisa realizada por Moret48, por exemplo, conduziu a essas constataes.

    Quanto mais se escrutinou os documentos, menos transpareceu a idia geralmente aceita de

    uma primazia absoluta do texto como fonte de inspirao da imagem. Ao demonstrar que os

    pintores trabalharam a partir de frmulas preestabelecidas, o estudioso pde verificar as

    propores da suposta influncia literria e restituir a parte de criao que coube tradio

    figurativa. O fato de elementos intercambiveis condicionarem a formao das representaeslendrias modificou sensivelmente a idia que se fazia da mitologia figurada. Seu estudo

    mostrou-se extremamente interessante ao verificar que certos procedimentos de composio

    ali analisados revelaram um modo particular de transmisso e evoluo dos mitos em uma

    zona perifrica do mundo grego.

    No caso da Grcia, cabe lembrar, essa dissociao e autonomia entre imagem e

    texto esteve possivelmente associada ao fato da religio grega no possuir uma doutrina

    cannica rgida. Embora o panteo grego seja o mesmo, a fragmentao poltica permitiu a

    cada regio, seja na Grcia ou em suas colnias, apresentar variaes na natureza dasdivindades e lhes imprimir caractersticas regionais prprias e, por vezes, distintas. Tal

    especificidade acabou por se refletir na arte grega, na qual mestres e artesos, favorecidos por

    essa ausncia dogmtica, puderam exercer uma liberdade criativa e expressiva nica, que

    apenas se tornaram cnones formais durante o perodo Clssico e Helenstico. No entanto,

    preciso lembrar que tratavam-se de cnones artsticos, de carter esttico e no-religioso.49

    O conhecimento dos textos indispensvel, mas como demonstrou Panofsky50,

    no podemos aplicar qualquer texto a qualquer imagem. O fato de um determinado texto

    48Moret (1975).49 Nesse sentido, Shapiro (1994, p. 7) observou que a imagtica do mito grego nunca foi constituda por um

    dogma religioso como foi a iconografia crist e,por isso pde ter muito mais liberdade, tanto na escolha dotema como na forma de representao: se os gregos escolheram se cercar de imagens, foi mais por uma razoesttica que religiosa.Como tambm verificou Meneses (1967, p. 35), ao discutir o uso da perspectiva naimagtica Clssica, no havia na Grcia, como em outra civilizaes, entraves a essa busca, pois oindividualismo da vida religiosa grega evitou a formao de cristalizaes formais e no ps obstculos especulao que fazia da natureza, para um grego, e sob todos os seus aspectos, fundamentalmente e antes demais nada, um objeto para um exerccio da razo humana.

    50Panofsky (1939, p. 25-27).

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    fornecer a melhor chave para interpretao de uma cena no implica necessariamente que o

    pintor o tenha utilizado como inspirao para compor sua cena. Alm disso, a comparao

    entre imagens e textos serve para evidenciar a independncia das duas tradies, que se

    medem, nesse caso, em termos de desvios diferenciais.

    A maior parte das cenas lendrias, para as quais existe necessidade de textos

    explicativos, era para os gregos objeto de conhecimento natural. Elas estavam enraizadas de

    alguma forma na mentalidade coletiva, na qual o mundo fabuloso se confundia com o passado

    nacional e os heris mticos eram parte da realidade histrica.

    Como observou Bruneau51, o problema de considerar a imagem como a ilustrao

    dos textos decorria da crena tcita na transparncia da imagem, como se ela fosse a cpia fiel

    das coisas que mostra e a transcrio exata visvel da representao mental que ela informava

    com toda segurana. O estudioso lembrou que nas civilizaes sem texto o gramada imagem esquecido, mas a Arqueologia, desenvolvida a partir das civilizaes com texto, o privilegia

    a tal ponto que a imagem no passa de uma ilustrao, um reflexo, um substituto do texto e,

    assim, deduz-se que a imagem procede apenas da linguagem:

    A imagem pode proceder to bem mimeticamente, de um perceptvel que no pode serconcebido, de um visto que sempre dizvel, e, gramaticamente, de um conhecido quepodemos tornar perceptvel, de um dito visualizvel, porque imagevel, portanto,imagtico. Ela imita to bem o visto, que visualiza o dito. Se a tcnica for colocada delado, as representaes visuais e verbalizadas so, na realidade concreta, muitointimamente mescladas, para que uma preceda ou domine a outra. Por outro lado e,sobretudo do ponto de vista que nos importa, a tcnica, sem a qual no haver imagem,pode indiferentemente servir mimese e ao grama. O esquema no distingue imagensrealistase imaginrias.52

    Em relao anlise imagtica e textual, Steiner53props uma reconciliao:

    Os textos so necessrios porque apenas as fontes literrias contemporneas so capazesde nos fazer entender como os gregos conceituavam a escultura; e, as imagens sonecessrias aos textos porque, sem elas, no podemos compreender o papel da escultura -como uma classe de objetos. E, em certos casos, como um instrumento literrio utilizadona poesia, retrica e filosofia. A escultura uma tipologia nica, a sua

    tridimencionalidade, a ocupao do mesmo espao real que o espectador habita, e seulugar central nas prticas sociais, polticas, religiosas e mgicas, a imbuem de facetasnicas. Os textos contemporneos fornecem informaes a respeito das prticas rituais etradies anedticas a respeito das imagens antigas. Textos posteriores possuemmentalidades e programas diferentes. Por isso, existe a necessidade de uma abordagemmais ampla, em que o todo gere uma narrativa mais coesa e completa do papel dasesttuas na vida cotidiana, nos pensamentos e prticas dos antigos espectadores.

    51Bruneau (1986, p. 266, 174).52Bruneau (1986, p. 175).53Steiner (2001, p. xiv).

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    Dessa forma, a anlise de Shapiro54demonstrou que o repertrio do pintor possua

    um fluxo constante que era em parte uma resposta ao estmulo externo, como as novas obras

    literrias ou, mais tarde, representaes teatrais, mas que ao mesmo tempo era um reflexo da

    dinmica interna dessa forma de arte.

    1.4 O TIPO DE SUPORTE E A LINGUAGEM IMAGTICA

    Embora existam estudos que concebem a anlise imagtica como um campo de

    pesquisa independente, no necessariamente associado ao seu suporte, cabe notar que os

    vasos cermicos gregos so objetos arqueolgicos portadores de imagens55 e que esse

    repertrio se expressou e evoluiu de acordo com o suporte que lhe serviu de apoio. Assim, o

    tipo de suporte em que um conjunto imagtico foi criado tambm merece ateno e sua

    anlise deve considerar a especificidade de cada tipo de objeto.

    Como observou Brard56, outro importante arquelogo francs, diferente da obra

    de arteque encerra uma qualidade esttica de criao original, os vasos cermicos na Grcia

    objeto principal das pesquisas imagticas francesas possuem uma qualidade primria de

    cunho discursivo seja essa de temtica mtico-religiosa ou secular. Os ceramistas, por sua

    vez, tinham um repertrio relativamente limitado de unidades formais mnimas, para

    transcrever temas muito variados. Essa conceituao, mais tarde, foi explicitada da seguinte

    maneira:

    Os elementos constitutivos da imagem so, portanto, estveis e constantes. este quechamamos o repertrio de unidades formais mnimas; este repertrio comum a todos osartesos e conhecido de todos os clientes. Por outro lado, as combinaes variam. nonvel combinatrio que se obtm o sentido da imagem (...). As unidades figurativascombinam-se, entre si, de modo quase mecnico, a fim de produzir um sentido livre, omais possvel, de ambigidade. Nessa perspectiva, a relao de referncia com a realidadeimporta menos que a relao de significao. O imagista constri sua imagem por

    54 Shapiro (1994, p. 6). Sobre a autonomia da imagem e texto, as discordncias e concordncias das duaslinguagens, ver tambm Rinuy (1986, p. 300-304).

    55Ver Lissarrague e Schnapp (1981, p. 275); e Sarian (1987, p. 15). Como lembra essa estudiosa: possvel quenunca uma cultura antiga tenha produzido em um espao de tempo to curto um repertrio imagtico toextenso e to significativo.

    56A posio entre a imagtica e a arte foi discutida por Brard (1974, p. 47, 51, 163). O artista no se prende aoslimites e fronteiras do repertrio de possibilidades pr-conhecidas, representaes pr-fabricadas; suacriao, toda vez, uma construo original e por isso ele evita o uso de convenes coletivas. Nesse sentido,Sparkes (1997, p. 131) lembrou que a ilustrao, assim como traduo, nunca uma simples questo detranscrio. Sobre a riqueza iconogrfica presente nos vasos gregos, sua temtica e o uso dos mesmos, verLissarrague e Schnapp (1981, p. 282); Bron e Lissarrague (1984, p. 7-18); Sarian (1987).

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    aproximao imagtica e no em obedincia fiel s leis da reproduo, quasefotogrfica, da vida cotidiana.57

    Assim, enquanto os artistas buscavam escapar dessa limitao esquemtica do

    sistema imagtico, renunciando ao procedimento icnico e recorrendo aos comentrios de tipolingstico, os melhores artesos eram aqueles que conseguiam bricolaras unidades formais

    mnimas num esquema, por meio de combinaes variadas, at manifestar claramente a

    inteno de comunicao que deveria ser o menos ambgua possvel. A expresso que nesse

    sentido mais prxima da linguagem do que da arte, obtida a partir de um conhecimento

    anterior do repertrio das unidades formais utilizadas pelos artesos para compor suas

    imagens.

    Brard58 observou que a estabilidade formal do esquema fixado pela tradio

    permanece e, mesmo que novas situaes surjam, os elementos figurativos constitutivosprovm de um patrimnio comum. Se o arteso suspeitava da ambigidade de uma

    interpretao, ele a remediava por meio do acrscimode um signo adequadoe conhecido, ou

    seja, recognitivo, que permitir a leitura correta da imagem. O nico meio de se chegar a esse

    objetivo utilizar as unidades figurativas estveis combinadas sistematicamente.

    Assim, para Berrd59, a principal chave de decifrao, tanto no nvel de criao das

    imagens quanto no de sua leitura, reside na incluso de um certo nmero de unidades formais

    que permitam ao leitor operar a passagem do esquemaao tema. Os detalhes das cenas eram,

    segundo o pesquisador, os detentores do sentido da imagem. O funcionamento das unidades

    formais mnimas depende do conhecimento prvio do espectador a populao precisa

    conhec-los para identific-los e, assim, compreend-los, para que possa ento reconhecer a

    cena. Tais unidades, que incluem os personagens, seus atributos e gestos, depois de um longo

    tempo, se tornavam parte da bagagem de toda a coletividade. Um enorme conjunto de

    imagens difundiu-se por todas as camadas sociais e a leitura dessas cenas era feita por

    qualquer camada social, mesmo sem requinte erudito.

    Em alguns casos, as unidades no ocorrem em nmero suficiente para permitir que

    o tema surja claramente a partir do esquema, ou seja, de forma que a imagem possa ser

    identificada. As dificuldades provm precisamente, acredita o estudioso, das tendncias

    erradas adotadas pelos arquelogos que tendem a descrever apenas aquilo que est

    57Brard e Durand (1984, p. 23).58Brard (1974, p. 47, 165).59Berrd (1985, p. 164-166, 168-169).

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    relacionado s imagens o esquema, ao passo que so as unidades formais mnimas que

    criam os elementos diferenciais geradores dos temas o sentido.

    As unidades formais mnimas podem, em certas circunstncias, se tornar um

    atributo de acordo com a sua posio gramatical ou sua funo sinttica, por combinao com

    outras unidades, mas no so definidoras. Como observou Berrd, o resultado que no

    possvel trabalhar sobre uma imagem, ou um grupo de imagens, centrado em um s tema.

    Teoricamente, cada imagem s compreensvel quando estudada em relao a todo o

    conjunto imagtico e a relao entre as unidades formais mnimas deve ser estabelecida in

    praesentiaou in absentiados traos constitutivos da imagem, a fim de determinar aquelas que

    lhe so pertinentes.

    Assim, no existe um atributo distintivo e, jamais, uma nica combinao

    possvel, mas, por outro lado, tambm no h um nmero infinito de combinaes, comohavia previsto Bruneau ao considerar a imagtica greco-romana um sistema fundado sobre

    combinaes infinitas de traos com finalidade temtica igualmente infinita. Nesse caso,

    Brard considera que a imagtica no regida por nenhuma sntese, tudo possvel, e

    portanto, impossvel de compor, impossvel de ler.

    Assim, diferente do sistema lingstico, o sistema iconogrfico fechado porque a

    imensa maioria das unidades formais mnimas, suscetveis de combinao, no arbitrria.

    Existe, portanto, uma limitao esquemtica e, no melhor dos casos, uma abertura temtica

    as diferenas provm, sobretudo, de fatores estilsticos e, portanto, estticos. Contudo, essaabertura obtida artificialmente pelo folheado ou enxerto dos signos icnicos, seno de

    comentrios de tipo lingstico. Essas manipulaes so, segundo o estudioso, de grande

    interesse, porque elas provam a inteno de comunicao, ou seja, a transformao de um

    esquemaem tema. Para o autor, a formao da imagem divina procede no da sobrecarga de

    unidades em que a combinao contrape a sintaxe, mas do despojo e retorno ao denominador

    comum: o esquema.

    A mesma idia foi compartilhada por Moret60, outro estudioso da Imagem, pois

    longe de ter um papel passivo o espectador tambm constri a cena que tem diante dos olhos

    em funo dos esquemas preexistentes. O conhecimento que ele tem do mito ou que, em

    60Moret (1975, p. 4, 299) utilizou uma abordagem semitica em sua anlise iconogrfica a fim de verificar opapel dos vasos pintados como meio de difuso, a agir sobre toda a massa da populao. Sua pesquisa acaboupor denotar a independncia da tradio figurativa em relao tradio literria. Nas palavras do autor, ocdigo icnico estabelece uma relao semntica entre um signo grfico e um significado perceptivo jcodificado. Existe uma relao entre a unidade pertinente do sistema grfico e a unidade pertinente do sistemasmico que depende da codificao precedente de uma experincia perceptiva. Ver tambm Gombrich (1960,p. 203-240).

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    alguns casos precisamente, no tem, dita o seu comportamento diante da imagem: ele projeta

    sobre a mesma aquilo que j sabe, aquilo que espera encontrar. Nos vasos, o observador no

    saber o sentido se no conhecer antes o tema e entender de mitologia grega para decifrar o

    contedo das representaes. Mesmo o especialista, diante de uma cena que no descrita nos

    textos ou cujas fontes no fornecem um testemunho correspondente, ser incapaz de encontrar

    a chave para a interpretao. Para o arquelogo:

    O elemento visual , sem dvida, primordial, mas apenas um modo de representao. Aimagem tem uma semntica de segundo grau. A leitura sempre referencial, ou seja, elaremete a um dado que no est inteiramente contido na imagem. O termo leitura, nessesentido, mais que uma metfora na medida em que h uma assimetria entre a leitura e aviso.

    Tal fenmeno foi explicitado por Barthes61, que observou:

    A imagem se torna escrita no instante em que se torna significativa, ao ser atravessadapelo olhar que se carrega de sentido aniquilada enquanto imagem pelo olhar-leitor. Nosignificante mtico, a forma vazia, mas presente, o sentido est ausente e, portanto,pleno. A imagem tem, de alguma maneira, o papel de catalisador, despertando no espritomecanismos reminiscentes e associativos que fazem com que o espectador conecte a cenaque tem diante dos olhos a um contexto familiar.

    Nesse sentido, Sarian62observou que:

    Na narrao e na transmisso de mitos e ritos, o pintor imprime nas imagens uma verso

    que corresponde s crenas coletivas, aquelas que se cristalizaram na aceitao popular. Ouniverso imagtico tinha, por isto, um grande alcance: inspirado na tradio e voltado parao grande pblico estava na confluncia dessas direes, o meio propulsor e o meioreceptor. A tal ponto que para o grego antigo, identificar imagem mtica ou religiosa erareconhecer o seu prprio patrimnio espiritual.

    1.5 A SEMNTICA IMAGTICA: CONTINUIDADE E INOVAO NA IMAGEM

    O modo como o repertrio imagtico evolui, seja na forma ou significado,

    sincrnica ou diacronicamente, algo extremamente pertinente e abordado de modo

    recorrente pelos estudiosos da Imagem. Assim, a verificao dos elementos intrnsecos ou

    extrnsecos que condicionam a estabilidade ou as modificaes esquemticas e temticas e

    que afetam diretamente a semntica imagtica merecem algumas consideraes.

    Como observou Focillon63, pode-se conceber a iconografia de muitos modos:

    61Ver Barthes (1970, p. 195, 209).62Sarian (1987, p. 48).63Focillon (1970, p. 6).

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    Seja como a variao das formas sobre um mesmo sentido, seja como a variao dossentidos sobre a mesma forma. Um mtodo ou outro traz, igualmente, luz aindependncia respectiva dos dois termos. Tanto , que a forma exerce uma espcie demagnetismo sobre os diferentes sentidos, ou mais que isso, ela se apresenta como umaconcha oca, na qual o homem derrama, de vez em vez, matrias muito diferentes que sesubmetem curva que as comprime e, assim, obtm uma significao inesperada. Logo, arigidez obsessiva do mesmo sentido se apropria de experincias formais que ela nonecessariamente provocou. Acontece que a forma se esgota completamente, ela sobrevivepor um longo tempo morte de seu contedo, mesmo que ela se renove de uma estranhariqueza.

    Alguns conceitos da lingstica, pertinentes presente pesquisa, foram utilizados

    por Moret64 como emprstimos comparativos para anlise da linguagem iconogrfica nas

    cenas presentes em um conjunto imagtico. O primeiro deles se refere diacronia e

    sincronia. O estudioso observou que o arquelogo tem sua disposio um material que se

    estende por muitos sculos e pode, portanto, englobar, em um s olhar, toda a histria de um

    tema iconogrfico e, assim, conhecer no apenas os antecedentes, mas tambm as

    transformaes ulteriores das cenas que estuda.

    No entanto, a situao dos antigos era outra: o costume de enterrar os vasos junto

    com os mortos e mesmo o carter frivel das peas de uso cotidiano, as colocava logo fora de

    circulao65. Nesse sentido, as geraes sucessivas de pintores e clientes puderam conhecer

    somente uma poro nfima da imensa produo que as escavaes recuperaram. Assim,

    segundo o estudioso, no adequado lhes emprestar uma viso que s o erudito de hoje pode

    ter graas ao suficiente distanciamento e documentao que dispe. Essa uma observao

    importante, pois embora o arquelogo trabalhe com um registro fragmentrio do passado,

    este mesmo oferece, certamente, possibilidades analticas interessantes.

    A abordagem diacrnicaque a Arqueologia utiliza , portanto, consideravelmente

    relevante para evidenciar a criao e evoluo do esquema, bem como do tema, no conjunto

    imagtico. De incio, necessrio pormenorizar a origem do motivo iconogrfico e, em

    seguida, descrever sua aplicao temtica. Tal anlise permite esclarecer a relao entre o

    64Moret (1975, p. 293), que utilizou as teorias saussurianas em sua anlise, questionou quais so as condiespara que o mito mantenha sua significao na imagem. Para o autor, as cenas lendrias que decoram os vasosgregos ou italianos so imagens falantes; uma espcie de narrativa figurada, um equivalente grfico do mitoque ela representa na tradio oral ou escrita.

    65Sobre o assunto ver a observao de Hoffman (1985/6, p. 64). Sobre a questo do valor dos bens oferecidosnas tumbas no estar diretamente associado riqueza e estabilidade poltica, ver Hoffmann (1988, p. 151-152).

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    sentido original de um motivo e as diferentes aceitaes que ele recebeu ao longo da

    evoluo. Como lembrou Moret66:

    A significao de um motivo, em um determinado momento de sua evoluo, no depende

    apenas de sua histria, mas deve ser estabelecida a partir dos documentoscontemporneos. A dimenso histrica, por outro lado, permite compreender como ascenas se constituem em seu estado presente e como atuam sobre as demais. Muitas vezes,existe um arqutipo, uma representao-modelo, a partir da qual a influncia se difundiu eque originou as demais dentro de sua rbita. Algumas so derivadas da primeira. Esseponto de vista genealgico no tem sentido, entretanto, no plano horizontal ou sincrnico.Dizer que um motivo est esvaziado de sentido, ou que seu emprego inapropriado emdeterminado contexto, s concebvel em uma perspectiva histrica; na tica do pintor ede sua poca, uma assero desse tipo seria imprecisa ou mesmo errnea.

    Outro conceito proveniente da lingstica, emprestado por Moret67, diz respeito s

    transformaes analgicas. O princpio da analogia aquele que rege a maior parte das

    transformaes iconogrficas. Na prpria imagem deve haver uma afinidade iconogrfica que

    facilite a evoluo analgica das duas cenas. Essa semelhana pode ocorrer no nvel do mito,

    como um paralelismo de situao que permita a convergncia das representaes figuradas.

    Para o estudioso, o caso mais freqente o da associao de idias temas , algumas

    vezes, no entanto, a similitude formal o esquema suficiente para justificar a passagem

    de um motivo de uma cena a outra.

    Ocorre que a analogia tanto um fator de transformao e renovao quanto pode

    desenvolver uma tendncia simplificao e banalizao, uma vez que opera em favor daregularidade e unificao dos procedimentos de formao e flexo. Nesse caso, ela remodela,

    sobre um mesmo paradigma, cenas de origens diferentes. Mas, tambm, pode, muitas vezes,

    empobrecer a linguagem iconogrfica, mais que a enriquecer. medida que seu emprego se

    torna mais freqente, o valor original do motivo se altera. De modo inverso, essa atenuao do

    sentido original permite que ele se adapte a cenas mais numerosas. Para o pesquisador68,

    66Moret (1975, p. 294). Como lembra Shanks (1997, p. 102), necessrio conceber texto e imagem dialticoscomo tangenciais ao passado um vetor (do presente) que toca o passado no ponto do sentido e depois semove para explorar seu prprio curso, compartilhando da atualidade, a temporalidade da memria.

    67Moret (1975, p. 295) lembrou que Panofsky [zum Problem der Beschreibung und Inhaltsdeutung von Werkender bildenden Kunst inAufstze zu Grundfragen der Kunstwissenchaft, 1964, p. 90-91] j havia demonstradoque a ao da analogia na imagtica antiga foi mais marcante que a de qualquer fonte literria.

    68 Moret (1975, p. 296) observou que a Histria das linguagens ensina que o uso freqente incorpora umemprego difcil de explicar, que se manifesta notadamente na lexicologia. Os exemplo de tal desvalorizao deum motivo iconogrfico so numerosos na cermica italiota que no incio aparece carregada de sentido precisoe acaba por ter um aspecto fragilizado mais tarde. O autor lembra que a passagem de um sentido forte a umfrgil caracteriza a Histria do tipo ajoelhado, inicialmente uma posio de defesa, depois de ataque, na pocaHelenstica e Romana, se tornou um dos esquemas passe-partout, dos quais os imagistas freqentemente seserviram. Tambm cita exemplos em que o altar ou a esttua aparecem tanto nas cenas de morte ou splica,assim sendo, tais elementos no permitem mais distinguir umas das outras.

  • 5/21/2018 ALDROVANDI, Cibele v. - Arqueologia Da Imagem

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    As transformaes funcionais podem ser explicadas tanto como inovaes ouconservadorismo iconogrficos: em um sintagma icnico (...) intervm relaescontextuais to complexas que parece difcil distinguir entre elas as unidades pertinentesde variantes facultativas, as variantes facultativas se tornam traos pertinentes e vice-

    versa, de acordo com o cdigo decidido pelo desenhista, os cdigos frgeis fazem partedos cdigos icnicos.

    Assim, pode acontecer de uma cena lendria ser destituda de seu sentido original

    para tornar-se apenas um quadro vivo suscetvel a receber o contedo de um outro mito 69.

    Aquilo que Barthes chamou