aldo agosti - o socialismo real, um balanço necessário

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Aldo Agosti - O socialismo real, um balanço necessário

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  • O SOCIALISMO REAL:UM BALANO

    Aldo AgostiProfessor de Histria Contempornea da Universidade de Turim - Itlia

    Socialismo real, socialismo realmente existente, socialismo realizado:todas essas definies, cunhadas pelos grupos dirigentes dos partidos comunistasno poder, durante o perodo brezneviano, passaram a fazer parte da linguagem po-ltica corrente em meados dos anos 70 para designar, de fato, em polmica com oeuro-comunismo que teorizava uma terceira via entre modelo sovitico e social-democracia, a realidade poltica e social dos pases pertencentes ao bloco socialista,e foram consideradas, desde ento, substancialmente como sinnimos. Na realidade,seria interessante reconstruir a histria de cada uma dessas definies, porque cadauma delas oculta, mesmo que inconscientemente, algumas nuanas. Socialismoreal, por si mesmo, uma expresso ambgua: quando foi cunhada ela podia sig-nificar o socialismo que existia de fato e, conseqentemente, relegar o restante (isto, as diversas formas possveis de socialismo em relao quele, de fato, real) nocampo das discusses acadmicas ou, mais duramente, das aspiraes veleitrias;mas podia deixar entender, tambm, que existisse, ainda, um hiato a ser preenchidoentre a realidade e o ideal. Ao contrrio, a segunda das definies socialismorealmente existente era mais programtica mas, ao mesmo tempo, mais unvoca,

    * Conferncia proferida em 24 de abril de 2002 no Depto. de Histria-FFLCH/USP. Traduo do

    Prof. Dr. Adone Agnolin Depto. de Histria-FFLCH/USP.

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    e parecia resolver qualquer possvel ambivalncia no sentido do primeiro ponto dodilema, concentrando a ateno sobre o socialismo que existia historicamente. Aterceira expresso, socialismo realizado, evocava, por sua vez, duas possveischaves de leitura: um processo em andamento, susceptvel, portanto, de acabamentose melhorias (o socialismo at agora realizado), ou uma construo completada,um caminho que chegou sua etapa final.

    Querendo propor um balano das experincias dos sistemas polticos e econ-micos que se chamaram socialistas, dez anos e mais aps sua definitiva concluso,pelo menos na Europa, das trs definies acima apontadas, aquela que parece maistil a terceira: pelo menos levando em considerao o fato de que abre o caminho possibilidade de cindir a expresso em seus dois termos, o substantivo e o particpiopassado. Um balano, de fato, teria que levar em considerao, por um lado, aquiloque as experincias em questo significaram para o socialismo, entendido comoideal de resgate, de emancipao dos oprimidos e de fraternidade universal, e, poroutro lado, as concretas realizaes que elas deixaram de si.

    A partir do primeiro ponto de vista, o balano no pode ser, seno, ao final, pesada-mente negativo. O socialismo, sobretudo o socialismo que foi prometido s populaesde uma parte do continente devastada pela guerra e passara antes, com poucas excesses,por um perodo de opresso social e de aguda crise econmica, foi uma ideologia queprometia igualdade e prosperidade: da primeira restavam, no fim dos anos 70, poucasmarcas, da segunda no havia nem mesmo uma sombra. A promessa de elevao dospadres de vida da populao no foi sempre s propaganda vazia; mas justamente porcausa disso, agora que estes padres (de vida) precipitavam para baixo (e o quanto parabaixo era possvel aos interessados constat-lo graas maior liberdade de circulaodas pessoas, ou pelo menos difuso do rdio e das televises do Ocidente), a exignciainsatisfeita daquela promessa, alis, seu reviramento numa ttrica condio de penria,representava um golpe gravssimo, infligido pretenso de legitimidade dos sistemasque se reivindicavam socialistas, ou melhor, que haviam cultivado a pretenso de incarnaro socialismo realmente existente. Portanto, os dirigentes comunistas do Leste incluindoaqueles, e no eram muitos, que no haviam deixado, havia bastante tempo, de acredi-

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    tar em sua prpria propaganda , quando, quase sem exceo, deixaram pacificamenteo poder em 1989, tomaram conscincia de uma falncia para a qual no parecia maispossvel encontrar um remdio no interior do sistema.

    Com certeza, como observava em um de seus ltimos livros Giuseppe Boffa entre os mais lcidos historiadores dos pases do socialismo real, hoje injustamentequase esquecido , seria errado reduzir a experincia dos governos comunistas daEuropa centro-oriental a uma simples violncia exercida sobre populaes recalci-trantes, ou a uma arbitrria imposio de uma ideologia preconcebida, alm do maisvinda do exterior. Houve isso tambm, mas no somente isso. No poucos partidoscomunistas conseguiram tecer ligaes profundas e resistentes com diversas camadasda populao, por meio de uma difuso capilar de sua influncia, forjando uma deter-minada conscincia social, um determinado tipo de opinio pblica, um tipo e es-trutura particular de reivindicaes materiais, de expectativas e de necessidades. Masaquelas ligaes foram se desgastando cada vez mais. Os regimes comunistas doLeste europeu, e mais ainda seu modelo original, a URSS, tornaram-se cada vezmais, por muitos aspectos e de forma totalmente evidente no decorrer dos anos 80,estruturas externas quase completamente esvaziadas de seu contedo originrio, efi-cazes quase somente seja como aparato repressivo, seja como pra-vento ideolgicopara paralisar a maturao de uma alternativa.

    O panorama deixado atrs de si pelo socialismo realizado , portanto, por muitosaspectos, um panorama de desolao social, de corrupo poltica e moral, de apatia,de desnimo. Com certeza no fcil medir quanto deste panorama pertence he-rana negativa deixada por aqueles sistemas, e quanto, ao contrrio, tambm im-putvel adoo enlouquecida de um modelo de privatizao selvagem da economia,que produziu o enriquecimento de poucos e o empobrecimento de uma grande maio-ria da populao. As situaes so muito diferentes, dependendo tambm dos espaosque foram deixados antes de 1989 auto-organizao espontnea da sociedade civile, portanto, criao pelo menos embrionria, de uma nova classe dirigente.

    Por outro lado, se deslocarmos a ateno para o segundo termo do binmio eolharmos para as realizaes dos sistemas socialistas, prescindindo de sua corres-

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    pondncia aos ideais do socialismo, no poderemos deixar de reconhecer, acredito,que elas mudaram a face das realidades dentro das quais tomaram forma, e no so-mente para pior.

    No que diz respeito Rssia, no h dvida que a revoluo de outubro foi umpotente fator de modernizao do pas: em quarenta anos, a Urss se transformou,de um pas atrasado e essencialemente campons, numa grande potncia industrial.De fato, na segunda metade do sculo XX, o modelo de comunismo sovitico tornou-se, antes de mais nada, um programa para transformar os pases atrasados em pasesavanados, uma espcie de atalho para a modernizao. Entre as duas guerras, espe-cialmente nos anos 30, a taxa de crescimento da economia sovitica superou a maiorparte dos pases europeus e durante os primeiros quinze anos depois da SegundaGuerra mundial as economias do campo socialista cresceram de forma conside-ravelmente mais rpida que as do Ocidente. Na medida em que a modernizao podeser identificada com o progresso, difcil negar que a Revoluo Russa tenha sido,e no somente em termos econmicos, um fato progressivo. A transformao deum pas predominantemente analfabeto num Estado moderno, com altos nveis deescolarizao e pontas de excelncia na pesquisa cientfica, no um detalhesecundrio. Para milhes de pessoas significou uma via de sada do obscurantismoe da ignorncia, perspectivas de avano social e abertura de novos horizontes cul-turais. E, em escala mais reduzida, o fenmeno se reproduziu naquelas democraciaspopulares que descontavam um passado de atraso (isto , todas menos a Checos-lovquia e a Repblica Democrtica Alem). Naturalmente, os preos dessa mo-dernizao foram extremamente pesados em termos sociais e humanos, e os sucessosalcanados pela industrializao nunca foram igualados pela agricultura e pela dis-tribuio; permanece em aberto, alm do mais, o problema de se pudessem ser per-corridas alternativas menos carregadas de lgrimas e sangue. A maior parte dospases que experimentaram o socialismo real, no intil lembr-lo, havia co-nhecido, sobretudo, regimes autoritrios ou formas de democracia no mnimomutiladas: as eleies que se realizavam antes da Segunda Guerra mundial no erammuito mais livres daquelas que tiveram lugar depois de 1947. Representar sua

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    sovietizao como uma cada do reino da liberdade para aquele da ditaduraconstitui, pois, uma maneira de forar as coisas. Em contrapartida, resulta inegvelque foi quebrado, uma vez por todas, o poder de classes dirigentes vidas e corruptas(especialmente os grandes proprietrios de terras) e que um modesto teor de vida foigarantido a todos, com um alargamento dos direitos de cidadania social. Isto nosignifica, necessariamente, que essas realizaes no teriam tido a possibilidade dese realizar, tambm, com um modelo diferente daquele socialista, nem que no po-deriam ter sido conseguidas com menores custos sociais e humanos, com um maisalto grau de participao popular e com uma maior (garantia) das liberdades funda-mentais: mas aqui aventura-se no terreno sempre inacessvel da histria contra-factual.Aquilo que impossvel ignorar que, de qualquer forma, herana do socialismoreal pertencem, tambm, essas profundas transformaes econmicas, sociais e civis.

    O problema que, a partir de um certo momento, essas transformaes deixaramde ser o motor de um progresso geral das sociedades das quais haviam transformadoa face. E aquelas sociedades se emaranharam nas contradies de um crescimentosem desenvolvimento, na impossibilidade de uma auto-reforma (como emergiu dra-maticamente em 1968 na Checoslovquia); no fim perderam o desafio com o capi-talismo tambm no plano econmico. No plano poltico o desafio j fora perdidodesde o comeo dos anos Cinqenta, quando a represso, o controle completo dapolcia secreta, o sufocamento da liberdade intelectual e das formas de auto-orga-nizao da classe operria, a esclerotizao de uma burocracia cada vez mais distantedos cidados, tornaram-se seu trao dominante e inverteram as promessas do futurosocialista em sua negao.