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1 ALBERT ECKHOUT: O PERCURSO DE UM OLHAR SOBRE A IMAGEM ETNOGRÁFICA por Georgia de Andrade Quintas - Mestre em Antropologia pela UFPE e Pós-graduada em História da Arte pela FAAP-SP O legado iconográfico dos séculos XVI e XVII foi norteado pelos mecanismos (artifícios) idealizatórios e alegóricos da visão de mundo contumaz nesses séculos, que se refletia na profusão imaginária da mente européia. Dessa maneira, as imagens produzidas são o resultado da cumplicidade existente com as crônicas de viagem e a ordem cultural européia (entende-se rotas de navegação, expansão colonizadora e, por conseqüência, a percepção de um desconhecido mundo). Os mesmos mitos fundadores da identidade européia presentes nos relatos de viagem são reconstruídos nas imagens. A saber, os códigos visuais coexistem aos recursos narrativos literários. Como num espectro, é possível apreender elementos cuja associação é imediata com noções de monstruosidade, prodígio e singularidades. O poder do olhar faz com que o universo imaginário se converta em forma, dando margem para que o mundo sensível torne-se mais verídico e sedutor. A iconografia, portanto, transita como auto- referência do pensamento europeu das grandes conquistas territoriais. A priori, devemos considerar que existem duas maneiras de compreender a construção visual do Novo Mundo. Portanto, há aqueles que produzem a imagem baseados em relatos e, consequentemente, estabelecem ícones idealizados; em outra perspectiva estão os que presenciaram pessoalmente uma realidade. No entanto, esses últimos no desejo de seduzir os espectadores, da mesma maneira com que ficaram impressionados pelo exótico, criam uma cena pictórica cuja representação amplia o real com aspectos fantásticos e, freqüentemente, dramáticos (no tocante aos rituais antropofágicos). Todavia, é imprescindível lembrar que, dentre esses que estiveram in loco em terras insólitas, a precisão de alguns viajantes pela catalogação da fauna e da flora fez com que também houvesse um pretenso cunho científico 1 na iconografia. Assim, fragmentos visuais colaboraram com a história natural. 1 . “É inegável a contribuição extraordinária que, nessa época, os portugueses, tanto quanto os espanhóis, ofereceram para o melhor conhecimento da natureza daqueles continentes e daquelas ilhas. Alguns dos seus cronistas mostraram-se, no revelar os aspectos de uma fauna e de uma flora ainda inéditas para o europeu, e também a utilidade das drogas e simples das mesmas paragens, de uma precisão que pouco, se diria científica. E compreende-se que assim se desse, (...)”, considera Buarque de Holanda (1994: p.230). O autor conclui que desse modo num primeiro relance, a novidade de um mundo estranho e o bom proveito que dele se poderia tirar.

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ALBERT ECKHOUT: O PERCURSO DE UM OLHAR SOBRE A IMAGEM ETNOGRÁFICA

por Georgia de Andrade Quintas - Mestre em Antropologia pela UFPE e Pós-graduada em História da Arte pela FAAP-SP

O legado iconográfico dos séculos XVI e XVII foi norteado pelos mecanismos

(artifícios) idealizatórios e alegóricos da visão de mundo contumaz nesses séculos, que se

refletia na profusão imaginária da mente européia. Dessa maneira, as imagens produzidas

são o resultado da cumplicidade existente com as crônicas de viagem e a ordem cultural

européia (entende-se rotas de navegação, expansão colonizadora e, por conseqüência, a

percepção de um desconhecido mundo).

Os mesmos mitos fundadores da identidade européia presentes nos relatos de

viagem são reconstruídos nas imagens. A saber, os códigos visuais coexistem aos recursos

narrativos literários. Como num espectro, é possível apreender elementos cuja associação

é imediata com noções de monstruosidade, prodígio e singularidades. O poder do olhar faz

com que o universo imaginário se converta em forma, dando margem para que o mundo

sensível torne-se mais verídico e sedutor. A iconografia, portanto, transita como auto-

referência do pensamento europeu das grandes conquistas territoriais.

A priori, devemos considerar que existem duas maneiras de compreender a

construção visual do Novo Mundo. Portanto, há aqueles que produzem a imagem baseados

em relatos e, consequentemente, estabelecem ícones idealizados; em outra perspectiva

estão os que presenciaram pessoalmente uma realidade. No entanto, esses últimos no

desejo de seduzir os espectadores, da mesma maneira com que ficaram impressionados

pelo exótico, criam uma cena pictórica cuja representação amplia o real com aspectos

fantásticos e, freqüentemente, dramáticos (no tocante aos rituais antropofágicos). Todavia,

é imprescindível lembrar que, dentre esses que estiveram in loco em terras insólitas, a

precisão de alguns viajantes pela catalogação da fauna e da flora fez com que também

houvesse um pretenso cunho científico1 na iconografia. Assim, fragmentos visuais

colaboraram com a história natural.

1 . “É inegável a contribuição extraordinária que, nessa época, os portugueses, tanto quanto os espanhóis, ofereceram para o melhor conhecimento da natureza daqueles continentes e daquelas ilhas. Alguns dos seus cronistas mostraram-se, no revelar os aspectos de uma fauna e de uma flora ainda inéditas para o europeu, e também a utilidade das drogas e simples das mesmas paragens, de uma precisão que pouco, se diria científica. E compreende-se que assim se desse, (...)”, considera Buarque de Holanda (1994: p.230). O autor conclui que desse modo num primeiro relance, a novidade de um mundo estranho e o bom proveito que dele se poderia tirar.

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A primazia do olhar em comparação aos outros sentidos é, epistemologicamente,

uma questão pertinente para a problemática da construção visual. No tocante à eficiência

do olhar sobre o pensamento humano, Buarque de Holanda lembra a reflexão de Padre

Antônio Vieira, que diz:

“O que entra pelos ouvidos, como tem menos evidência, move com

menos força, mas o que entra pelos olhos, recebe a eficácia da mesma vista e

move fortissimamente” (Sermões, XV, p.66, in Holanda, 1994: p.232)

Além do vigor que o olhar possui, ele é antagônico, pois ao mesmo tempo em que

apreende a autenticidade das coisas visíveis, também tem a magia de sacralizar algo

devido à maneira com que tal representação foi feita. Por conta disso, o arsenal de

imagens elaboradas nos séculos XVI ao XVII tem a particularidade de ser um caleidoscópio

de sensações primárias e de simulacros de realidades estranhas aos olhos europeus.

Passemos, então, para outra característica da iconografia: as evidências suscitadas

pelas terras conquistadas por navegadores. As primeiras imagens que demonstraram o

Novo Mundo para o conhecimento dos europeus, aportaram na Europa no início do século

XVI. Em formato de folhetim, as gravuras acompanhavam as cartas de Amerigo Vespucci.

Segundo Ana Maria de Moraes Belluzzo:

“As figuras e paisagens, talhadas para avivar os textos atribuídos a

Vespucci, não escondem a existência de tradições artísticas locais, a condição

intercultural da elaboração das imagens, nas quais já se impõem significações

que marcam toda a iconografia desse século e podem ser polarizadas na visão

edênica do bom selvagem e na visão ameaçadora do canibal” (Belluzzo, 1995: p.

18).

No sentido de reproduzir os nativos da América, diversos exercícios de hermenêutica

através do olhar podem ser notados. Apropriam-se plasticamente das aparências, contudo

a visão européia demonstra fragmentação na percepção. No âmbito da iconografia, como

resultado dessa peculiaridade, tem-se variações sobre um mesmo tema: o nativo da terra

brasilis. A profusão de índices envolvem conceitos como o bom selvagem e o canibal

bárbaro. As formas e suas significações de cunho moral são um marco fundante na

iconografia dos séculos XVI e XVII.

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Os mitos propagados na visão européia também viajaram no imaginário para a

América. Já na Índia, os viajantes “encontraram” monstros que tinham os pés com oito

dedos voltados para trás. O padre Simião de Vasconcelos os reencontram em terra

brasileira. Testemunhos anteriores têm ressonância no Brasil. Outro exemplo que procede

da Índia divulgado por Colombo, verifica que a existência de homens que nasciam com

rabos também habitavam a América Central.

Da Índia, ainda, Montaigne reconhece monstros acéfalos; posteriormente foram

identificados como constituindo uma tribo brasileira, de acordo com informações de um

cartógrafo no começo do século XVII (Franco, 1976: p. 34). Diante desse tráfico das

figuras de linguagem do pensamento do Oriente para o Ocidente, a iconografia segue um

percurso no qual a hibridez entre fantasia e realidade moldam a fruição antropológica dos

europeus no Brasil. Produzindo, com efeito, uma relação de diferenças permeada pela

tensão entre o fato real e a incompreensão sobre este.

ETNOGRAFIA PICTÓRICA: QUANDO A FANTASIA ENCONTRA A REALIDADE

Em meados do século XVI, a iconografia proporcionava uma janela para o Novo

Mundo. Graças aos relatos de viagem, aos gabinetes de curiosidades e às gravuras, era

possível traçar um panorama sobre os trópicos; mesmo que, algumas vezes, distorcendo

uma realidade pelo fato desses mesmos contextos exóticos se tornarem rarefeitos. Devido à

esta elaboração estética, vinculada à alteridade dos europeus a respeito dos nativos

brasileiros, formulou-se um acervo de imagens etnográficas.

No entanto, vale salientar, que poucos foram aqueles que descortinaram a

diversidade cultural com a acuidade visual direcionada para a etnografia. Ou seja, torna-se

tarefa árdua encontrar por trás das gravuras artistas cientes do seu ofício e com a

determinação de elaborar a descrição de povos com desenvoltura plástica e espírito

investigativo.

A autora Anne Marie Pessis avalia que diferentemente da imagem da pré-história,

que conduzidas por outras disciplinas não assimilam a potencialidade da fonte iconográfica,

o importante é trazer o recurso imagético à luz de um contexto de referência, de “dados

históricos concernentes à cultura, de crenças e de valores compartilhados” durante a

diacronia. E ressalva ainda a condução da iconografia pelas correspondências entre figuras

e as significações.

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Durante o domínio holandês no Brasil (1630-1654), o período mais importante da

Companhia das Índias Ocidentais compreende, especificamente, o governo do Conde João

Maurício de Nassau-Siegen (1637-1644). A relevância de seu governo não transita apenas

no campo da liberdade religiosa, de pensamento, mas também, no sentido de conquistar os

nativos do Brasil, ao invés de impingir e praticar a colonização. Desta forma alcançariam

seus objetivos de comercializar (o açúcar e o pau-brasil), bem com extrair os proventos -

dois mecanismos de livre comércio que moviam a perspectiva do governo nassoviano2.

O Conde João Maurício de Nassau trouxe para o nordeste brasileiro uma comitiva

científica e artística. Integravam este grupo os pintores holandeses Albert Eckhout (1610-

1666) e Frans Post (1612-1680); o médico Willem Piso (1611-1678); Georg Marcgraf (1610-

1643), astrônomo, cartógrafo e naturalista; o soldado e artista amador Zacharias Wagener

(1614-1668); Frans Plante, filósofo, poeta e latinista; etc.

No tocante ao trabalho de Frans Post, as paisagens e as descrições topográficas

eram suas temáticas preponderantes. Noutra esfera artística, mais voltada para a descrição

etnográfica próxima da realidade apreendida, estava Albert Eckhout.

A série de pinturas mais importante de Albert Eckhout é a que compreende os tipos

étnicos do Brasil (com exceções de alguns retratos de negros do Congo) e naturezas-

mortas (em especial de vegetais) que, segundo Clarival do Prado Valladares, foram

pintadas no Brasil e registram datas de 1641 e 1643. As telas a óleo foram intituladas,

dentre outras maneiras, como: “Homem Tapuia”, “Mulher Tapuia”, “Mulher Tupinambá”,

“Homem Tupinambá”, “Mameluca”, “Mulato”, “Negra com criança”, “Guerreiro Negro”,

“Dança dos Índios Tapuias” e “Dignatário do Congo”.

Após destacarmos a produção artística de Albert Eckhout inserida na coleção de

pinturas etnográficas em Copenhague, é preciso indicar ainda cinco esboços valiosos a

creiom, no qual pode-se contemplar indígenas tapuia.

De certo, os esboços foram realizados como estudos preliminares por volta de 1641,

no Recife. Esses desenhos condicionam importantes fatores para a análise da concepção

etnográfica. Algumas características são significativas, como a utilização de modelos vivos

tanto masculinos como femininos. Essa, digamos assim, seria uma prova da seriedade

2 Maurício de Nassau se distinguiu dos outros dirigentes da Companhia pela sua sabedoria e visão política. A diferença residia no oposto da conduta de outrem, ou seja, nos limitados propósitos absolutamente mercantis de curto prazo. É de suma importância citarmos a seguinte colocação para se explicitar o perfil empreendedor de Nassau: “(...) A longo prazo, a estabilidade da nova conquista dependia da aceitação do domínio estrangeiro pela comunidade luso-brasileira, tarefa especialmente ingrata devido ao antagonismo religioso e ao conflito de interesses econômicos entre a W.I.C. e os senhores de engenho, que continuavam a ser majoritariamente de origem portuguesa” (Mello, 1999: p.28).

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enquanto artista e que, noutro sentido, nos fornece a certeza da fidelidade com que foi

interpretada e narrada a realidade.

Devemos ressaltar ainda que os esboços remetem à raridade de sua produção. O

autor Peter James Palmer Whitehead escreve que são excepcionais por serem os mais

antigos desenhos de índios americanos feitos in loco com modelos. Logo, pelo ângulo

etnográfico eles são a afirmação da autenticidade da composição pictórica da coleção

etnográfica (telas) realizadas por Eckhout.

O valor da obra de Eckhout se estabelece através do estilo realista e documental

sobre a percepção do outro. Tais pinturas, além de possuírem a aura artística, compartilham

da sinergia entre etnografia e ciência. Compreende-se que os retratos etnográficos

realizados por ele constituíram, particularmente, um divisor de águas para com a concepção

fantástica e monstruosa da gente do Brasil. Certamente, os nativos do Novo Mundo nunca

foram outrora apreendidos pelo olhar europeu como o deste artista.

O fundamental na obra de Eckhout é perceber a visão européia num processo de

decodificação do outro e de reconstrução estética, mas, sobretudo, reverenciando a

diversidade cultural existente. Suas imagens conferem a aura do retrato ao vivo,

diferentemente das ilustrações produzidas a partir de referências literárias.

O que ratificamos na obra pictórica eckhoutiana denota a antítese da produção do

século XVII e do precedente. Isto significa que sua representação fora destituída de

alegorização em excesso, de índices que resvalam para a afirmação de aspectos culturais

pejorativos, da ênfase nos atos selvagens ou num contexto insólito. Para repassar tais

características pictóricas era necessário criar uma atmosfera repleta de dissimulações e

criações fabulosas que não correspondiam à realidade tropical.

O realismo do olhar de Albert Eckhout congrega fatos etnográficos, formalmente

elaborados pelo estilo hiper-realista de interpretar a realidade, juntamente com um

relativismo cultural. A obra deste artista transparece realismo devido ao detalhismo

documental, o que o faz transitar pelas temáticas exóticas demonstrando a virtuosidade de

registrar a concretude do contexto cultural, empiricamente presenciado por longos sete

anos. Mesmo os aspectos que reverberam conceitos como selvagem ou barbarismo, estes

são interpretados através do enfoque documental de Eckhout, além disso revelam a

parcimônia de conotá-los ao inserir características culturais particulares aos indígenas

brasileiros. Portanto, o olhar de Eckhout refletiu o exótico Novo Mundo com as sutilezas

inerentes às culturas. Nesse sentido, a visão européia muda de perspectiva e começa a

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tentar desvelar a alteridade expondo índices através de signos. Signos estes, repletos de

significados etnográficos.

Albert Eckhout refutou o imaginário fictício estabelecido pela visão de mundo dos

viajantes europeus e incorporou o olhar como possibilidade de entendimento entre as

culturas. As informações etnográficas inventariadas mostram com maestria a interpretação

de Eckhout. Todavia, tais dados incidiram em suas pinturas, mas contudo, foram filtradas

pela eficiência em deslocar os fatos para o plano inanimado da arte. Não obstante, significa

dizer que a imagem da realidade é mais reflexiva (provoca mais questões) do que a

conotação rarefeita da fantasia. E nesse caminho Eckhout iniciou sua viagem.

CONSTRUÇÃO DA ALTERIDADE ARTÍSTICA

As pinturas de gênero e de paisagem compuseram os estilos recorrentes da arte

holandesa. Especificamente, os retratos tiveram grande espaço na elaboração pictórica,

assim como as cenas de interior (de atividades domésticas retratadas no interior das

casas). A preponderância desses temas não era senão um reflexo do padrão estabelecido

pela Reforma: a iconoclastia. Sem santos, nem narrativas bíblicas para se representar o

divino; esses dois segmentos da pintura se expandiram, e então atenderam aos “desejos

profundos de uma sociedade nova”, com diz Paul Zumthor.

O realismo constituía o elemento principal da pintura holandesa no século XVII. As

imagens permitiam que se contemplasse cenas de interior, natureza-morta, paisagem ou um

retrato com detalhes surpreendentes. A precisão do “olhar holandês” dos pintores era

singular.

Por possuir essa mesma formação cultural, Albert Eckhout demonstra em sua obra

semelhanças incontestes com essa forma de perceber o mundo. É possível verificar que, de

fato, não utilizou nenhum tema místico, alegórico ou religioso. Nota-se, no entanto, uma

contundente vertente realística na busca pela apreensão visual dos motivos exóticos.

Eckhout teceu um léxico visual sobreposto ao desejo de registrar, objetivamente, o universo

desconhecido no qual vivenciou. A força de suas imagens projeta a visão artística

holandesa sob duas concepções visuais: a naturalista e a documental.

O entrelaçamento entre a ciência e a arte na cultura holandesa era uma tradição

premente constitutiva das representações visuais do século XVII. Aliás, esse século,

conhecido como a idade de ouro, era tangenciado pela arte de descrever. A ciência

enfatizava os fatores práticos e descritivos, almejando o cientificismo. Tal busca pode ser

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confirmada em obras como “Historia naturalis Brasiliae”. A cartografia também foi outro

campo norteado pela noção descritiva na prática de mapeamento de territórios.

Em outro extremo, estava o indivíduo que consumia as pinturas e movia o mercado

da arte. Com efeito, na Holanda, do século XVII, as coleções (kunstkamer) eram baseadas

no mundo comercial das duas Companhias das Índias. Segundo David Freedberg,

considerando esse comércio, “podemos reconhecer a sua importância para a ciência e para

a representação - seja descritiva, alegórica ou estritamente sujeita às regras da arte e do

intelecto” (1999: p.212). Cabe, aqui, lembrar que a temática fundante da arte holandesa

seiscentista, no âmbito das coleções, era o universo do exótico. Desta maneira, comércio,

arte e fetiche formavam um enredo básico na cultura holandesa de maneira efetiva.

ANTROPOFAGIA: VARIAÇÕES ANTROPOLÓGICAS DE DECODIFICAR O OUTRO O conteúdo antropofágico da documentação visual foi exaustivamente abordada nos

séculos XVI e XVII. Com isto, pretende-se observar que a leitura feita pelos europeus a

respeito da antropofagia nos revela significados que irrompem o visível como fato,

caracterizando assim uma notável interpretação sobre o outro. Interpretação esta,

catapultada pela mentalidade maniqueísta sobre a alteridade. Nesse sentido, a

representação antropológica do outro é virtualmente manifesta segundo interesses de

enfatizar as diferenças sob a ordem da inferioridade.

À guisa da antropologia visual, os documentos histórico-visuais, sobre os quais nos

detemos, representam um valioso acervo de signos - múltiplo de significados. A imagem

como registro etnográfico constitui, portanto, um instrumento de investigação. No âmbito da

antropologia, o objeto iconográfico pode ser apropriado como instrumento de investigação.

De tal modo que, a imagem etnográfica torna-se campo vastíssimo de observação para a

disciplina da Antropologia.

A utilização metodológica da antropologia visual permite que recortemos determinado

aspecto e suas variações, para assim estudarmo-las em suas particularidades e

encontrarmos traços comuns. Através dessa operação de análise, os dados indicam,

sugerem, constatam, ressaltam e, até mesmo, dissipam conotações falaciosas. Os dois

eixos fundamentais do campo antropológico - o tempo e o espaço - são aqui remetidos a

partir de uma imagem distante no tempo e legada pela História. Portanto, campo

antropológico incomum em termos de inserção corporal (do antropólogo), mas, sobretudo,

um universo histórico profícuo de visões, reflexões e significados etnográficos.

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Anne-Marie Pessis, em seu livro “Registro Visual: na pesquisa em ciências humanas”,

descreve o procedimento metodológico quando o suporte iconográfico significa campo de

pesquisa. Em síntese, Pessis afirma que os procedimentos metodológicos tradicionais são o

registro escrito. A inserção do “registro visual no dispositivo de pesquisa, modifica a relação

entre a realidade sensível e os documentos”. Consequentemente, cria-se a possibilidade de

restabelecer com mais precisão e objetividade os fenômenos estudados, segundo Pessis.

Ao tecermos esta perspectiva teórica-metodológica, a antropologia visual nos

respalda no propósito de explorarmos, ao máximo, as singularidades que compõem a

concepção da antropofagia. O homem que come o seu semelhante reflete um fenômeno

cultural, social e simbólico, isto em outras palavras seria o mesmo que atribuir ao ato

canibal a condição humana de determinada sociedade. No entanto, a proporção do

estranhamento que esta conduta causa é indelével.

As inúmeras imagens que caracterizam o antropofagismo são uma prova marcante da

não aceitação do outro, daquele que diferencia-se do espectador. Os viajantes europeus,

precursores e balizadores dessa “imagem selvagem” operavam o olhar motivados pelo

espanto, impacto, interesse de colonização e exploração territorial. Desse modo, quanto

mais selvagem parecessem mais catequizados ou domesticados deveriam ser.

As imagens, no entanto, também são complementadas por narrações sobre

alteridade com base em primeiras visões diante do desconhecido. Como exemplifica Afonso

Arinos de Melo Franco ao mencionar:

“Quando as caravelas afortunadas de Cabral se acercaram das praias de Vera

Cruz, o espanto maior dos nautas não foi causado pela estranheza ou formosura da

terra, mas pelo fato de os seus habitantes serem homens, como outros quaisquer,

criaturas normais, iguais às das geografias conhecidas, seres criados à imagem de

Deus” (1976: p. 29).

Este exemplo, demonstra que contrariamente à imaginação preponderante da época, ao

universo de monstros fisicamente impressionantes, o olhar de Cabral encontrava homens

iguais aos europeus. Todavia, então, o fisique du rôle não indicava o estado do ser

selvagem, mas seu comportamento culturalmente instituído. Ao cair a máscara das

bizarrices formais herdadas da antigüidade ocidental, desdobra-se outros artifícios cênicos.

Logo, elabora-se o homem selvagem por seu cotidiano, claro, com a ênfase ao ato de

comer carne humana.

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Os critérios abordados por Rabelais revelam-se sob o domínio do eurocentrismo. As

interpretações sobre os canibais ultrapassam o campo cultural. Rabelais não os observa

através das particularidades, e sim usa esses aspectos para demonstrar a falta de

assimilação a respeito dos silvícolas. Como também, o discurso próprio de quem dialoga

com a esfera dominante da colonização envolta pelo desejo de riqueza e glória. Dessa

forma, lembra Melo Franco, o olhar nada condescendente de Rabelais sobre o outro:

“(...) [Rabelais] considera o canibal na sua apresentação corrente de homem

diferente do normal. E à assombrosa nação se refere em vários trechos da sua obra.

Ora se serve do termo como injúria, chamando canibais a alguns supostos

caluniadores, ora se refere aos canibais entre vários ‘aulutres monstres difformes e

contrefaicts en despit de Nature’, ora alude aos navios que regressavam das ilhas dos

canibais carregados de ouro, sedas, pérolas e pedrarias.” (1976: p.38).

Queremos ressaltar que a antropofagia como mediação antropológica de uma

diferença cultural era um elemento constitutivo de maximização de um hábito em leituras

hiperbólicas de cunho moral. O canibalismo trata-se de uma alegoria tradicional na pintura

dos séculos XVI e XVII. Portugueses, franceses, espanhóis e holandeses potencializaram

esta característica cultural em pinturas e desenhos. Na verdade, existia um ponto

consensual: o barbarismo inerente àqueles que comem carne humana impiedosamente.

As distinções presentes nas alegorias pictóricas, indicam variantes sobre o mesmo

tema. Logo, é perceptível que as leituras antropológicas criam semantizações a partir do

olhar. A alteridade, a decodificação do outro, transitou pela antropofagia na tentativa

implícita de articulação entre o observador e o observado. Desse modo, podemos verificar

as relações do sujeito com o outro e a retórica pictórica desse verdadeiro confronto entre

civilizados/humanos; a barbárie/selvagem e cristãos / não-cristãos.

O ritual antropofágico dos tupinambá fazia parte de um processo social, determinado

por um código de honra e de vingança, praticado contra seus inimigos. O repertório

iconográfico demonstra as várias vertentes de significações da antropofagia, algumas mais

fantasiosas e elaboradas, outras mais simplórias. O importante é observarmos o elo entre

as ilustrações, através da estilização do ato imoral de comer seus semelhantes e dos

procedimentos de composição que distingue as dimensões antropológicas, que poderíamos

chamá-las também de etnográficas, das imagens pictóricas.

Sem embargo, Albert Eckhout foi responsável por uma das interpretações mais

fidedignas sobre a gente do Brasil registradas no século XVII. Os maneirismos foram

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colocados de lado, dando mais espaço para um rebuscamento minucioso da vida de um

povo, com o qual o próprio Eckhout partilhou sua estadia durante os sete anos de governo

nassoviano. O empirismo do artista foi proposto na tela. Dessa maneira, o impacto é

causado pelo realismo exuberante e não pela encenação exagerada e, diríamos até

manipulada, no sentido de idealizar um fato eurocêntricamente.

ARTE E CIÊNCIA

A descrição visual de Eckhout, no entanto, é ampla; e não somente restrita a

esmiuçar o indivíduo centralizado na composição. Seu olhar também focaliza aspectos

ínfimos, que podem ser atribuídos a conotações exóticas, mas que é, contudo, o produto da

minuciosidade do trabalho de apreensão do ambiente, dos hábitos, da flora, da fauna, das

diferenças étnicas existentes; assim como, da impressionante luminosidade tropical

presente nos retratos.

Um dos argumentos relativos à arte holandesa considerava: “A questão era, antes, o

lugar do homem ou, mais especificamente, sua dimensão nesse novo mundo” (Alpers, 1999:

p.71). Dentro deste contexto, a própria proporção e a escala foram discutidas. Com a nova

perspectiva que tudo apreendia em detalhes ínfimos (por meio de lentes microscópica ou

telescópica), como dispor os objetos na obra artística? De certa forma, afirma Alpers, o

problema correlato de como percebemos a distância e avaliamos o tamanho ainda ocupa os

estudiosos da percepção.

Albert Eckhout, insere-se nas convenções da pintura holandesa. Uma delas dizia

respeito ao tratamento da perspectiva, ou seja, a justaposição dos contrários: o perto e o

longe; o pequeno e o grande. Os antagonismos das dimensões3 são o epicentro da busca

pela identidade das coisas. Dessa maneira, ao explorar planos mais próximos e a paisagem

como pano de fundo, ampliada no horizonte (mas com elementos diminutos pela

perspectiva distante). Embora, estivesse praticando regras ópticas usuais de proporção - o

que está mais perto é mais definido e maior do que quando o olhar volta-se para o horizonte

- a utilização deste modo de mostrar o mundo constituiu um artifício visual fundante para a

descrição etnográfica de Eckhout.

3 . Com base na tradição artística holandesa, diferentemente do Renascimento onde o homem era tido como medida de todas as coisa, Huygens admite a ausência de qualquer proporção fixa ou medida humana. Por sua vez, o que “durante muito tempo foi característico da arte setentrional tornou-se a condição humana comprovada no século XVII”. Fica então provado que as pintura ditas “setentrionais holandesa” anteciparam determinados modos de compreender o mundo no século XVII, afirma Alpers.

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Perpassa nos retratos, realizados por Albert Eckhout no Brasil, um aura que mistura

observação documental e licença poética-autoral. Na verdade, o que argumentamos é que a

descrição patente, da qual contemplamos, foi um desdobramento, possivelmente, híbrido na

criação da verossimilhança. Ter sido uma descrição voluntária ou involuntária, eis uma

questão que não se esgota e que, tampouco, promulga assertivas definitivas.

Nossa exegese acredita na coexistência das duas formas de conduta. Afinal, não há

como descrever sem expor também a singularidade do olhar de quem retrata o outro. A

descrição tem implicitamente um toque pessoal e subjetivo do mestre holandês. Cabe

sublinhar a respeito desse assunto, a intenção e o interesse subentendido ao conteúdo

descritivo: a construção da alteridade - esta, mesmo que rarefeita, presente no fluxo cultural

e social da imagem.

A autora Mariët Westermann reflete que a “aparente verossimilhança” nas imagens

holandesas garantia a visibilidade do trabalho e da vida colonial, concentrando-se bastante

nos benefícios dos negócios, da arte e da ciência. David Freedberg afirma o pensamento

que nos coloca um pressuposto fundamental para descrevermos, literalmente, a corrente

artística da Holanda no século XVII. Para ele, em síntese, “se a cultura holandesa for

dotada de particularidades, uma delas, (...) será o casamento do viés clássico da cultura

com a linha realista, científica, descritiva” (1999: p.200).

Não seria exagero, portanto, associarmos as criações de Eckhout a essas

características. Pois, sem tais fatores a obra deste pintor holandês apenas se juntaria ao

vasto arsenal de imagens exóticas manufaturadas por uma alteridade eurocêntrica

dominante da época. Albert Eckhout entrou para a história como aquele que melhor retratou

a fauna, a flora e as etnias existentes no Brasil. Ao descrever visualmente com esmero, a

etnografia passou a ser sua especialidade. Até mesmo nos seus esboços, se é capaz de ver

que Eckhout conseguia captar a aura ou identidade, das etnias transpostas para

bidimensionalidade da tela. Em “Esboço de Mulher Tapuia Sentada” confere-se a intenção

de extrair da modelo uma atitude, um resquício de identidade.

ICONOGRAFIA, CONDUTA SOCIAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS O domínio formal estético, por parte de Albert Eckhout, apresenta uma justaposição

de princípios, relações e conduta sociais. O mosaico das diferentes etnias da região

nordeste do Brasil, transmitidas no trabalho de Eckhout, vão além de símbolos materiais

estabelecidos pela livre representação artística. Ao contrário, a liberdade autoral exercida

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12

por Eckhout propiciou que o repertório visual refletisse as nuances do contexto social e,

intrinsecamente, as ligações culturais.

Os retratos étnicos do artista holandês são reveladores, sobretudo, pela ênfase

marcante em considerar as particularidades de cada etnia. Tanto o povo indígena quanto o

mestiço ou a mameluca possuem aspectos indeléveis. Cada qual revela o que há de

humano, cultural e, sobremaneira, a demarcação do papel que ocupa na “sociedade” do

Brasil holandês.

As imagens de Eckhout são uma revelação dentre a iconografia produzida no século

XVII. Pois, com o registro das pessoas que habitavam o nordeste brasileiro, é possível

perceber as distinções de cada cultura e suas miscigenações. Outro fator interessante tem

relação com a construção da imagem. Ou seja, muito embora se reconheça que os retratos

foram baseados em modelos vivos, a cena (cenário), no entanto, presumivelmente, fora

elaborada devido a uma lógica, na qual vários elementos estão distribuídos para que o

universo em questão fosse assimilado efetivamente.

Assim, cada composição narra o ethos da figura representada, de tal maneira, que

não há margem para que se desenvolva uma história; porém, permite que o personagem

central e único comunique, através de índices plásticos, átimos de sua vida, seu

comportamento, suas vestes e adereços, bem como seu status quo e, de modo mais amplo,

a essência autóctone. Através da sensibilidade do olhar de Albert Eckhout, a diversidade

cultural captada e transformada em alteridade tornou-se perene.

No caso dos retratos de Eckhout, a analogia com o real compreende no modo como

se processa o recorte visual. Afinal, o artista, numa espécie de visão antropológica, através

da apreensão do sensível e da observação da realidade vivenciada escreve por meio de

imagens; ao fazer isto está, impreterivelmente, selecionando traços predominantes das

etnias. E assim, de certa maneira, também formando uma cadeia de encenações na qual

aspectos pontuais no âmbito dos costumes autóctones surgem com a vitalidade de

determinada cultura.

Albert Eckhout, ao estabelecer sua alteridade pelo caminho da representação, criou

uma visibilidade para com o processo de colonização e, portanto, uma conseqüente,

conexão rarefeita entre dois tipos de olhar: aquele que demonstra distinção antropológica

da conquista e outro que sugestiona o próprio olhar europeu. A visão de mundo criada por

Eckhout, entretanto, reafirma e delineia as diferenças nas imagens, mas sem distorcê-las ou

desviá-las eurocêntricamente, com o objetivo de adaptá-las às suas inquietações enquanto

decodificador cultural dos trópicos.

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Consideremos, como possibilidade de análise, dois fatores fundantes para a

construção da imagem do outro pelo artista holandês, segue-se: a relação social entre

holandeses e índios, e a integração (inserção) do artista durante sua longa estadia (cerca

de 7 anos) no nordeste brasileiro. Estes dois fenômenos introduziram e, consequentemente,

imprimiram à estruturação da imagem indicativos fortes que fizeram com que a descrição

iconográfica celebrasse a multiplicidade de significados inerente à organização social,

econômica e, às vezes, política das etnias interpretadas.

Poder-se-ia contextualizar tal hipótese com os retratos dos casais de indígenas. A

tensão existente nestas obras é visível pela exposição de duas nações indígenas: Tapuia4

versus Tupi. Segundo Ronaldo Raminelli, o casal tupi representa a “viabilidade da

constituição de um império no além-mar, contando para tanto com o trabalho dos nativos”.

Diríamos ainda que, as relações e o partidarismo tomados pelo indígena, também

estão interiorizados como metáfora dessas imagens. Afinal, os tupi eram aliados dos

holandeses, cujo inimigo comum era os portugueses. Desse modo, o estado natural dos

tapuia é mantido em contraposição aos tupi, sendo estes bem mais estilizados com

predicados europeus. O “Homem Tupinambá (Tupi)” realizado por Eckhout expressa uma

atmosfera relativamente civilizada e domesticada. Nele,

fora transposto a condição de natural/selvagem e notamos um indígena com uma postura e

modos adaptáveis ao convívio com o europeu. O metal cortante está presente na faca posta

na cintura do homem, revelando outra referência à influência do contato com os europeus

está na mandioca cortada, localizada no canto inferior direito da pintura.

Quanto às vestimentas, Eckhout as utilizou como índice de condição social. Vejamos,

por exemplo, o retrato da “Mulher Tapuia”. As descrições feitas pelo pintor nos remetem a

informações que Hermann Wätjen documentou. De acordo com o autor, os “Tarairyou-

Tapuyas” eram gente forte, com pele trigueira e cabelos longos e pretos; afirmou também

que homens e mulheres não cultuavam o hábito de se vestirem. Porquanto, os homens

desta nação quando vão para a guerra “se enfeitam com pennas [sic] de papagaio e de

corvo” (1938:p.401). Já as mulheres, também possuem cabelos negros e longos e são

consideradas por Wätjen com estatura pequena. Com relação ao corpo, elas apenas

ocultam “as partes pudendas, e cobrem o posterior com um manto de folhas verdes” (Ibid,

p:403).

4 . Os Tarairius pertencem ao grupo lingüístico jê e foram conhecidos também pela denominação de tapuias. Raminelli reconhece que os tupis era um outro grupo lingüístico de conduta canibal, mas que, ao contrário, dos tapuias, eles matavam seus inimigos como repasto canibal. Em contrapartida, os tapuias praticavam o canibalismo motivado pela afetividade, pois dizem que só comiam seus parentes (Raminelli, 1999: p.117).

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Diante destes dados etnográficos, as pinturas tanto do homem como da mulher

condizem com as referências textuais de Wätjen. Afirmamos que, as mesmas características

relatadas são observáveis, em ambas as ilustrações. Outro índice importante também

colocado por Wätjen está presente na tela do “Homem Tapuia”. Trata-se do “penis [sic]

atado por um cordel e se este se parte a importância é a mesma que, entre nós, a de

deixarmos descobertos os orgãos genitaes [sic]”(Ibid, p. 401).

Embora, tenhamos encontrado tais correspondências entre imagens e considerações

etnográficas, devemos ultrapassar a fronteira dos fatos e explorar a hermenêutica

antropológica que alinhava as imagens e seus símbolos. Através de “Mulher Tupinambá”

algumas exegeses surgem, como a condição de trabalhador (funcionalidade) e a postura

mais de aproximação com o objeto retratado, que acontece devido a presença materna ao

carregar uma criança no colo; como também, a saia curta de algodão branca que, apesar de

não invocar a finalidade de ornamentação, já propõe uma questão de adaptação cultural e

valores morais.

Revela-se, portanto, duas mulheres díspares. A tapuia e a de origem tupinambá

fazem contraposições relevantes dentro da perspectiva de manutenção de características

dos costumes de cada nação indígena, assim como das relações estabelecidas. Em

“Homem Tupinambá”, há detalhes fundamentais para a afirmação da troca de materiais

provenientes dos europeus e, em conseqüência, a ligação do indígena com as ferramentas

(mesmo que readaptadas) de guerra de seu aliado holandês. É patente tal colocação, pois

em “Homem Tapuia” as lanças são visivelmente mais rústicas que as empunhadas pelo

Tupinambá. Neste último, não se trata mais de lanças, mas sim flechas que se destacam

pelo uso, possivelmente, do metal .

Então, poder-se-ia constatar que a conotação dos signos sugerem implicitamente

caracteres distintos. Afinal, enquanto o indígena “inimigo” - os tapuias aliados aos

portugueses - era fisicamente o bom selvagem composto de seus utensílios de guerra e de

subsistência arcaicos; por sua vez, o homem tupinambá - aliado dos holandeses - refuta os

adereços etnográficos5 presentes na representação do tapuia e demonstra uma tênue

sintonia com os padrões culturais europeus.

5 Nomes como Thomas Thomsen, Clarival do Prado Valladares, José Roberto Teixeira Leite, Peter Whitehead, entre outros repertoriaram em detalhes cada aspecto da etnografia indígena apresentadas nos trabalhos de Albert Eckhout. Devido às análises extraordinárias feitas por esses autores a respeito das nuances de cada objeto, tipo de corte de cabelo, tamanho de adereços, etc.; assim como, outras áreas que envolvem a zoologia e botânica., consideramos que nossas reflexões não pretende achar pontos originais no campo do levantamento etnográfico, mas, contudo, apreendê-los em um contexto de análise cultural no qual os índices icônicos estabelecem seus significados.

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Cabe salientar ainda, os princípios cruciais que causam a percepção comparativa

sobre tais figuras. Ronald Raminelli sintetizou a linguagem pictórica adotada por Eckhout

sobre a qual deixa-nos apreender a perda da identidade de homens selvagens e que, não

obstante, visualiza-se traços de seres colonizados. Tal análise, entretanto, se verifica no

registro do casal tupinambá (tupi). Essas imagens não primam pela intensidade que os

emblemas em torno do canibal e do guerreiro provocam. Por outra vertente da compreensão

sobre estas imagens, Raminelli comenta que , além de trabalhar as diferenças cruciais entre

os Tapuia e os Tupi, as “feições do ameríndio são o detalhe mais original do mestre

holandês”. O autor coloca que a fidelidade da representação afasta-o dos padrões de

humanidade aceitos pelos europeus contemporâneos a Albert Eckhout.

Albert Eckhout delineou sua perspectiva por ser um mediador entre culturas. Parte

dos significados subjetivos presentes nas pinturas deste holandês relaciona-se com a

relação social entre nativos brasileiros e holandeses. Diríamos ainda, que a estadia

prolongada na terra brasilis permitiu que houvesse um mínimo de aproximação com o

desconhecido e, deste modo, uma conseqüente cumplicidade do pintor holandês com o

outro. A capacidade de interagir o modo como as duas culturas se consideravam

socialmente em suas imagens, não chega a ser uma apropriação contundente, nem

tampouco de cunho político; mas é, contudo, a alteridade fragmentada sugestionada pela

percepção dos fatos sociais que permeavam o domínio holandês sob o governo de Maurício

de Nassau.

Nesse sentido, sobre a configuração de informações inerentes às imagens de

Eckhout, de forma sutil, transparece um amplo vínculo de conotações sociais.

Diferentemente, das imagens “portuguesas” nas quais sobressaiam-se temas religiosos

envolvendo a catequização de indígenas e as eventuais valorizações de aspectos

selvagens para que justificassem a conversão; Eckhout demonstra e configura dimensões

interpretativas condizentes aos seus referentes pictóricos. Assim observadas as nuances

dos casais indígenas pintados por Eckhout, em parte alguma das representações existe um

conteúdo religioso. Os retratos são, em sua essência, elaborados esteticamente para

descrever o outro dentro de uma narrativa etnográfica plausível. Por serem os holandeses,

particularmente, iconoclastas, as imagens não servem como argumentação religiosa, mas

sim, social e cultural.

O mapeamento das diferenças étnicas feito por Albert Eckhout incluiu a

representação do homem mulato - também chamado de mameluco e mestiço. Trata-se de

uma das raras representações sobre o mameluco no século XVII; afinal, o foco principal dos

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pintores viajantes ou daqueles que trabalhavam através dos relatos de viagem estava

voltado tão somente para a caracterização do exótico e selvagem habitante do Novo

Mundo: o indígena brasileiro.

Por terem, por um lado da descendência, o sangue europeu cristão, os mestiços

eram homens livres e por causa disso havia a permissão de portarem armas - fato proibido

aos escravos. Essa peculiaridade da descendência lhes davam a possibilidade de lutar ao

lado dos holandeses. Logo, diante desses dados específicos de tal etnia, poder-se-á

analisar a imagem de modo mais complexo. Pois, o tratamento relativo à descrição, revela-

nos leituras pertinentes sobre a antropologia visual empregada, coerentemente, por

Eckhout.

A imagem do mestiço indica a existência de significados sociais. Numa espécie de

decomposição, o sentido que norteia a concepção pictórica do “Mulato” é a da autonomia

etnográfica. Queremos elucidar com esta premissa que, a abordagem realizada por

Eckhout, propõe alguns caminhos específicos sobre a etnia em questão. Poderíamos

considerá-los (os rumos visuais) deste modo: a utilização da arma de fogo e da espada,

como indicativos de homem guerreiro, de certa forma mostrado pacificamente; o semblante

do homem também consiste uma certa placidez; o tipo de roupa (roupa de tecido e boldrié

de pele de felídeo) e a maneira como está completamente vestido, em analogia às escassas

vestes dos indígenas, também alcançam as diferenciações sociais . Por último,

destacaríamos o cenário que cerca o “Mulato”, porque é possível perceber a ausência de

animais e a disposição harmoniosa da vegetação, sem o tom exótico ou sombrio conferidos

nas ilustrações anteriores do casais tupi e tapuia.

Com estas características, poderemos desenvolver a reflexão sobre a qual o

personagem retratado por Eckhout corresponde a um aliado dos holandeses. A

miscigenação de raças contribui para a distinção social com relação aos indígenas. A

descendência européia transcorre na tela de forma bem distinta aos signos visuais

trabalhados nas imagens dos indígenas. Ou seja, na pintura “Mulato” não há

acontecimentos que denotem uma fruição estética respaldada por noções de selvagem,

antropofagia ou de autóctone natural.

Enfim, com efeito, na ilustração “Mulato” se apreende uma representação autêntica

do outro percebido, mas, contudo, híbrida em sua descrição. Afinal, estamos diante de um

homem que não é nem indígena nem europeu, porém evoca uma mistura de culturas e

raças. E, portanto, capaz de provocar semelhanças no tocante à cor da pele e à fisionomia

com a etnia indígena. No entanto, por outra perspectiva, demonstra-se propriedades de

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ordem européia como o uso de armas “militares”, assim como a referência da roupa.

Socialmente, este homem tem seu lugar definido pela sua atuação ao lado dos holandeses

e por seus interesses pelo combate contra o inimigo, fosse ele francês, português ou das

respectivas tribos aliadas a estes.

Outro enfoque, que deve-se ponderar, sobre as relações sociais decorre da

habilidade política organizada por João Maurício. Determinados fatores favoreceram a

tranqüila relação social dos indígenas com os holandeses, tais como: a não-escravização e

as medidas de proteção, como a proibição do escambo e a obrigação de pagamento justo

pelo trabalho, de acordo com as medidas adotadas pela administração holandesa. Poder-

se-á ressaltar ainda como a apropriação do território fora capaz de caracterizar, de maneira

incólume, a liberdade quanto ao trânsito do indígena durante o domínio holandês em terras

brasileiras. João Baptista Cavalcanti de Mello explica:

“A ocupação holandesa, vista como fenômeno eminentemente urbano, pouco

interferia como elemento de choque interétnico no campo, onde a densidade

demográfica indígena era predominante. Isto propiciava uma relativa tranqüilidade no

trato entre as duas etnias, graças à pequena área de contacto físico. (...) Uma

apreciação geral do relacionamento entre holandeses e indígenas mostra que houve

boa paz entre ambos, ditada mais por motivos práticos, da parte do invasor, que por

supostas razões de ordem moral (...)” (s.d.: p.41).

Dentre as nações indígenas, os aliados e inimigos dos holandeses foram tratados e

eram identificados distintamente. Os traços dos indígenas, que combatiam e estavam do

lado dos portugueses, eram bem definidos. O próprio João Maurício reflete a distinção e o

tratamento dado aos indígenas não-aliados - os denominados “não-Tupis”. Câmara

Cascudo cita dados de autoria de Wätjen sobre esta relação delicada entre holandeses e

indígenas não-aliados. Sobre um episódio envolvendo esta questão, Nassau, então,

discorre se não seria melhor adotar uma escravidão branda e legalmente regulada do que a

liberdade ilimitada para a qual aqueles indígenas não estariam ainda preparados. E conclui

que: “Os Tapuias devem estar sujeitos a uma nação civilizada, porquanto doutro modo só

males poderão causar” (1956: p.65).

Em suma, os desdobramentos hermenêuticos, que a iconografia produz, dialogam e

complementam-se com os aspectos das relações sociais. A retórica e o pragmatismo dos

holandeses teceram uma sinergia edificante no universo imagético de Albert Eckhout.

Trabalhando com destreza tais problemáticas, a alteridade se coloca formalmente através

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de componentes cênicos que, longe de serem assertivos e rigorosos, mais indiciam e

sugestionam do que impõem significações.

Nessa perspectiva, a produção artística de Albert Eckhout mostra a variedade e o

valor que a sustentam. Mais vale lançar o vislumbre de possíveis significados e a profusão

de discursos correspondentes do que a simplória identificação de uma cena estéril e

hermética na possibilidade de entendimento sobre a transposição antropológica da

realidade para a ilusão desta na tela.

ANÁLISE ETNOGRÁFICA: REPRESENTAÇÃO DO OUTRO COMO ÍNDICE CULTURAL A discussão sobre a consolidação da linguagem visual no corpo dos estudos

etnográficos tem uma importância fundamental para o desenvolvimento da temática

proposta neste paper. A premissa que tangência as análises etnográficas e as descrições

culturais dos nativos brasileiros trata as imagens como espécies de “ideogramas” de um

contexto social, cuja alteridade, por sua vez, constrói uma antropologia visual. Dever-se-ia

considerar a pertinência sobre essa perspectiva teórica, através do relevante comentário

feito pela antropóloga Ana Luiza Carvalho da Rocha. Consideremos:

“(...) O antropólogo está condenado a avançar na sua narrativa etnográfica a

partir do pensamento imagético, aquele através do qual ele adquire maior competência

no entendimento da estética que rege a dramática das diversas formas de vida social.

Sob esse ângulo, pode-se afirmar que a imaginação criativa orienta e modela a

percepção dos dados sensíveis que configuram o mundo social” (1995: p.85).

É importante notarmos, tal argumento propõe, segundo Carvalho da Rocha, a

legitimidade sobre a “compreensão intelectual do mundo e das coisas”. E, por conseguinte,

a afirmação do papel da imaginação criadora na construção da própria solidez científica do

texto etnográfico. Com isso, as questões da percepção a respeito do outro são configuradas

através da maneira como o registro visual é abordado. No que concerne a Eckhout, seus

retratos consistem do resultado da fusão entre autonomia do olhar e o reconhecimento do

outro enquanto onipresença de uma identidade cultural particular.

Cabe, no entanto, elucidar quanto à hipótese sugerida sobre a qual a imagem

etnográfica, juntamente com o direcionamento tomado pela alteridade, é suscetível de

afirmação do surgimento da antropologia visual. Imaginação (abstração), forma, linguagem

e narrativa participam desta possibilidade antropológica. A saber, o discurso visual, inicia-se

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com o imaginário e ganha a condição de léxico etnográfico a partir do momento em que se

expressa pela estética. Desse modo, portanto, tem-se a construção da apreensão da

realidade. Sendo qual seja o enfoque adotado, a linguagem dos signos e símbolos revela

uma visão de mundo ou, como diria Carvalho da Rocha, “um modo de dizer através das

imagens aquilo que não pode ser aprendido de outra forma”.

A obra de Albert Eckhout simboliza e sintetiza os parágrafos acima. A narrativa

visual, existente em seus registros, prima pela coerência social vigente do período no qual

viveu no nordeste brasileiro e, além disso, a descrição precisa do suposto estranhamento

diante das etnias. Calcado no esmero pictórico, Eckhout refutou os excessos alegóricos e

pormenorizou as características etnográficas existentes - sem descuidar de sua liberdade

idiossincrática. Fato que o permitiu colocar o turning point no mosaico dos significados

inerentes às imagens. Afinal, a complexidade das narrativas visuais-etnográficas não

postula apenas a realidade, mas sim, verifica-se no lugar e no tempo vivido pelo sujeito da

enunciação (Rocha, 1995:p.90).

Outrossim, o trabalho de Albert Eckhout nos revela a representação do outro como

índice cultural. Nas imagens feitas dos índios tapuia e tupi, da mameluca, da negra, do

negro guerreiro e dos negros congoleses, poder-se-á perceber aspectos singulares da

representação sobre a cultura material (roupas e artefactos). E, principalmente, ao que se

refere sobre as informações subjacentes da percepção política e econômica da hegemonia

holandesa a respeito do território e do desempenho das figuras retratadas dentro desse

contexto do Novo Mundo.

Sobre os documentos visuais para a formação etnológica é preciso, entretanto,

compreendermos quanto o conhecimento acerca das diferenças culturais é importante. Ao

descrever em imagens uma determinada sociedade, intrinsecamente, se tipifica e classifica

o conhecimento sobre realidades desconhecidas. Para os autores Berta Ribeiro e Lucia van

Velthem, a arregimentação de materiais etnográficos exibe não apenas a classificação de

um mundo exterior, mas também a possibilidade de inserir-se nele, intermediado pela sua

“compreensão e domínio”. Por isto, dever-se-ia observar a iconografia realizada por Eckhout

como uma vertente do recolhimento de dados etnográficos. Afinal o material (enquanto

objeto) foi selecionado e representado - o que, por fim, permite leituras analíticas e

descritivas sobre a etnologia. Avaliemos, então, o seguinte comentário:

“Uma coleção retrata, por isso, a história de uma parte do mundo e,

concomitantemente, a história e a realidade do colecionador e da sociedade que a

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formou. Para Clifford (1988:219), o colecionamento se apresenta como uma ‘arte de

viver intimamente associada à memória, à obsessão, à salvação da ordem contra a

desordem’” (1992: p.103).

Ainda de acordo com a exegese sobre a importância da análise etnográfica, as

autoras apresentam a necessidade de olhar o artefato além dele mesmo (fisicamente). Ou

seja, a contextualização, o ambiente ecológico e a organização sócio-econômica compõem

as facetas inerentes aos “conteúdos estéticos e simbólicos que os objetos trazem

embutidos. Dessa forma, mesmo aquele solitário artefato ganha vida e significado” (1992:p.

111). Esta acepção que as coleções etnográficas possuem, estende-se, especificamente,

para a coleção de retratos de Albert Eckhout. A profusão de elementos visuais autóctones

enseja que se amplie e, sobretudo, auxilie na recomposição de fragmentos de uma

realidade cultural.

Então, voltemos o assunto diretamente para a análise etnográfica mediada pelas

imagens do pintor holandês em estudo. O retrato “Mameluca” suscita pontos relevantes

para a compreensão da condição social que enlaça a concepção imagética. A personagem

apresenta-se com um camisolão branco, decotado e com mangas bufantes; observa-se

também “uma ombreira caprichosamente bordada com ilhoses e pontos cheios”, decifra

Clarival do Prado Valladares. Quanto à compleição física das mamelucas, diz ele, que estas

são dotadas de um vigor físico talvez explicável pelo efeito da mistura racial, sendo filhas de

branco com índia. Socialmente, por meio do casamento ou do concubinato, elas obtinham

ascensão.

No âmbito das representações femininas, os contrastes culturais são visíveis. E,

ornamentos, vestimentas e paisagens descrevem aspectos sempre diversos entre as

imagens produzidas. Em “Mulher Tupinambá”, a figura está com os seios desnudos e veste

uma saia branca aparentemente de tecido mais grosso que o citado em “Mameluca”, de

algodão (Valladares, 1989:p.117) e enrolado na cintura. A mulher carrega sobre a cabeça

um cesta quadrangular (panacu); no braço esquerdo, sustenta uma criança e no pulso deste

mesmo braço, preso por um cordel, ela carrega uma cabaça para transporte de água. A

sensação notada por Clarival do Prado Valladares por este retrato (precisamente a

expressão facial) é um misto de “mansidão de espírito” e de um “sentimento de resignação”.

Já a criança, sem roupas, tem na cabeça um faixa frontal que segura os cabelos para trás .

Na análise feita por Prado Valladares, Eckhout retratou esta índia a pretexto de

revelar sua condição dita civilizada. Tratava-se de uma mão-de-obra que prestava serviços

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a colonos em atividades, como a pesca, a caça, o cultivo da mandioca e do fumo, etc. As

atividades eram ainda estendidas para a execução de cerâmica e tecelagem de cestaria e

redes. Não eram, entretanto, escravizadas.

Relacionemos, também, os dados etnográficos ligados ao “Homem Tapuia” e

“Homem Tupinambá”, através dos quais poderemos apreender as diferenças materiais dos

ornamentos usados em ambos. O homem tapuia coloca-se desnudo, mas demonstra uma

certa riqueza de detalhes nos objetos decorativos pessoais. Compreende-se assim um tipo

de arranjo com plumas na cabeça que, de fato, é uma “cobertura ornamental encimada por

um tufo de penas de arara e a cor predominante é o vermelho. Registra-se ainda o detalhe

de adornos auriculares e faciais. Perto dos lábios, duas peças em madeira são perceptíveis,

como também, no lábio inferior um pedaço de massa de resina, segundo consta em texto de

Prado Valladares (mas, há divergências quanto à esta informação, outros dizem que se

trata de uma pedra esverdeada).

Localizado na cabeça, aparece um cobre-nuca cujo material é plumas de ema. Ele

inicia-se da cabeça e vai até embaixo, na altura dos rins. Outro tipo de peculiaridade tem

relação com os artefatos de subsistência (caça) e de guerra. Desse modo, percebe-se na

mão direita (lado esquerdo da ilustração) um tacape decorado com plumas, tendo ainda

incrustações de anéis. É interessante considerarmos que este registro do tacape é um dos

raros exemplares deixados do século XVII.

Diante do homem tupinambá, deve-se analisar o contexto que o cerca na

representação. Albert Eckhout mostra no cenário, do lado direito da tela, um plantio de

mandioca e vestígios de raízes colhidas sobre o chão. A solução em termos de composição

foi colocá-la cortada longitudinalmente, numa perspectiva pictórica que valoriza a superfície

e a coloração da raiz em questão. De outro ponto, as flechas e o arco empunhados pelo

indígena conotam um significado sobre a divisão social do trabalho, frisando tarefas do

nativo como a caça, a pesca e as atividades de confronto com o inimigo. São retratados

assim, ocupações particularmente masculinas, em contrapartida, as mulheres trabalhavam

nas demais tarefas.

Ao pontuarmos traços estéticos que exprimem dados etnográficos ligados aos

retratos de Eckhout, consideramos apenas alguns aspectos. Propusemos uma espécie de

revisão etnográfica de particularidades significativas para a compreensão da delimitação

imagética como índice cultural, o que por conseguinte, qualifica as diferenças culturais

exploradas pelo pintor.

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Com essas colocações etnográficas, esperamos ter preenchido um segmento

importante para a hermenêutica antropológica da obra de Eckhout. E que, certamente, terá

desdobramentos para futuras pesquisas. Ao situarmos e indicarmos algumas características

da cultura material, metodologicamente, outras perspectivas podem surgir no campo de

investigação da antropologia visual. Envolvendo, mais especificamente, discussões sobre

os grupos étnicos, as atividades artesanais, os aspectos dos artefatos, etc. Desse modo, ao

cruzar informações e referências, facetas da cultura e do seu contexto surgirão, dando vida

aos símbolos existentes nas produções culturais dos povos do século XVII – suas variações

étnicas e etnográficas.

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