ainda precisamos da sala de aula

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Trata sobre as novas formas de ensino.

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  • AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?INOVAO TECNOLGICA, METODOLOGIAS

    DE ENSINO E DESENHO INSTITUCIONAL NAS FACULDADES DE DIREITO

    Jos Garcez Ghirardi

  • LER PARTILH A R C O P I A R P E N S A R

    para

  • A Coleo Acadmica Livre publica obras de livre acesso em formato digital. Nossos livrosabordam o universo jurdico e temas transversais por meio das mais diversas abordagens.Podem ser copiados, compartilhados, citados e divulgados livremente para fins nocomerciais. A coleo uma iniciativa da Escola de Direito de So Paulo da Fundao GetulioVargas (FGV DIREITO SP) e est aberta a novos parceiros interessados em dar acesso livrea seus contedos.

    Esta obra foi avaliada e aprovada pelos membros de seu Conselho Editorial.

    Conselho EditorialFlavia Portella Pschel (FGV DIREITO SP)Gustavo Ferreira Santos (UFPE)Marcos Severino Nobre (Unicamp)Marcus Faro de Castro (UnB)Violeta Refkalefsky Loureiro (UFPA)

  • AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?INOVAO TECNOLGICA, METODOLOGIAS

    DE ENSINO E DESENHO INSTITUCIONAL NAS FACULDADES DE DIREITO

    Jos Garcez Ghirardi

    2015

  • Os livros da Coleo Acadmica Livre podem ser copiados e compartilhados por meios eletrnicos; podem sercitados em outras obras, aulas, sites, apresentaes, blogues, redes sociais etc., desde que mencionadas a fontee a autoria. Podem ser reproduzidos em meio fsico, no todo ou em parte, desde que para fins no comerciais.

    A Coleo Acadmica Livre adota a licena Creative Commons - Atribuio-NoComercial 4.0 Internacional,exceto onde estiver expresso de outro modo.

    EditoraCatarina Helena Cortada BarbieriAssistente editorialBruno Bortoli BrigattoPreparao de originaisCamilla Bazzoni de MedeirosCapa, projeto grfico e editoraoUltravioleta DesignConceito da coleo Jos Rodrigo Rodriguez

    PUBLICADO EM: 11 NOV. 2015

    FGV DIREITO SPCoordenadoria de Publicaes Rua Rocha, 233, 11 andarBela Vista So Paulo SPCEP: 01330-000Tel.: (11) 3799-2172E-mail: [email protected]

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Karl A. Boedecker da Fundao Getulio Vargas SP

    Ghirardi, Jos Garcez.Ainda precisamos da sala de aula? [recurso eletrnico] : inovao tecnolgica, metodologias de

    ensino e desenho institucional nas faculdades de Direito / Jos Garcez Ghirardi. So Paulo : FGVDireito SP, 2015.

    92p.ISBN: 978-85-64678-22-41. Direito Estudo e ensino. 2. Direito - Metodologia. 3. Inovaes tecnolgicas. 4. Ensino

    superior. I. Ttulo.CDU 34

  • sumrio

    PREFCIO: TECENDO A MANH COM JOS GARCEz GHIRARDI 7

    1 | DE COImBRA A LISBOA 15

    2 | O mAnuSCRITO E O ImPRESSO 21

    3 | O CAmInhO DA ESCOLA 27

    4 | um LuGAR PARA CADA COISA, CADA COISA Em SEu LuGAR 31

    5 | O EnSInO DA DISCIPLInA 35

    6 | ESSA TERRA DE DOuTOR 41

    7 | O EnxADRISTA SOLITRIO 49

    8 | TECEnDO A mAnh 61

    9 | DESAFInAR, AFInAR 73

    nOTAS 79

    REFERnCIAS 87

    SOBRE O AuTOR 91

  • PREFCIO: TECENDO A MANH COM JOSGARCEz GHIRARDIContar com as reflexes realizadas pelo amigo e colega Jos GarcezGhirardi na gesto do curso da FGV DIREITO SP e especialmentenos debates e anlises sobre o ensino jurdico um privilgio indis-cutvel. Seja pela figura humana deste professor queridssimo detodos os alunos, seja pelo intelectual que se dispe a debater o di-reito e o ensino do direito sem medo de se arriscar e de repensarsobre o que se consolidou na prtica da formao jurdica no Brasile no mundo, seja sobre os modismos que facilmente constroemnovas narrativas e propostas sobre metodologias inovadoras.

    Garcez leva a srio o Ensino e tambm leva a srio o Direito, oque o particulariza no debate, de forma singular.

    O reconhecimento de que a globalizao econmica, a sociedadede conhecimento e as novas tecnologias impactaram o ensino dequalquer rea de conhecimento pacfico. O diagnstico de que oensino tradicional do sistema jurdico romano-germnico marcadopela produo de um conhecimento descritivo e sistemtico dos ins-titutos e normas jurdicas codificadas, que compe uma formaoformalista e dogmtica do direito, ancorada no protagonismo docen-te e sustentada em aulas excessivamente expositivas, acolhido porGarcez no presente texto, fortalece a preocupao sobre a prtica pe-daggica historicamente desenvolvida nos cursos de Direito.

    Essas premissas tm mobilizado a discusso sobre novas prticasde ensino para a formao jurdica e ressaltado a importncia decurrculos que se preocupem com a formao de competncias e ha-bilidades e valorizem mais o protagonismo discente, alm de faze-rem uso de ferramentas atuais que considerem as novas tecnologiasde ensino.

    [sumrio]7

  • PREFCIO: TECENDO A MANH COM JOS GARCEz GHIRARDI

    Dessas premissas, tambm nasce a pergunta que Garcez se dispea responder, sobre se ainda faz sentido a sala de aula.

    Ao discutir sobre se ainda precisamos da sala de aula, Garcezdemonstra, mais uma vez, a consistncia de sua preocupao, aodebater sobre o Ensino e o Direito, que se sustenta no reconhecimentoda natureza poltica deste debate, desde a construo da racionalidademoderna e das cincias puras (que alimentam a tradio do ensinojurdico), necessidade de superao desta prtica, na atualidade.

    Ao assumir essa posio, sem deixar de ressaltar a importncia deum ensino mais preocupado com a formao de habilidades, Garcezdeixa claro que o desenvolvimento de novas metodologias e/ou tec-nologias do ensino est intrinsicamente ligado ao seu objeto de estudo(no caso o Direito) e o papel poltico que este (assim como o Ensino)responde no aperfeioamento de uma sociedade democrtica.

    Ancorado na concepo poltica que constri o debate sobre oensino do direito, Garcez explicita o sentido da construo da pr-tica pedaggica tradicional assumida pelos cursos jurdicos, articu-lando-o com os valores da sociedade moderna e desvendando parans o motivo das escolhas assumidas, abrindo, assim, a possibili-dade de nos ensinar mais sobre ns mesmos.

    Ao dispor sobre o ensino universitrio, argumenta que: prati-camente unnime a identificao da Universidade com o conhe-cimento cientfico (entendido segundo a racionalidade moderna)e com a educao de sujeitos autnomos, isto , que j possuamdeterminado nvel de maturidade psicolgica e repertrio intelec-tual. A estrutura acadmica da Universidade, sua lgica de fun-cionamento (aulas presenciais regulares) e sua perspectiva meto-dolgica (nos cursos jurdicos, majoritariamente palestras)obedecem a essas premissas sobre o objeto de conhecimento e o su-jeito que aprende.

    [sumrio]8

  • Garcez demonstra com clareza como a razo moderna inspira aestrutura, o discurso e o funcionamento da universidade. E, ao de-finir que a razo moderna se caracteriza fundamentalmente pelomtodo de individualizar os elementos sob anlise, conceituandocada um deles com exatido absoluta, at que cada objeto indivi-dual possa ser claramente diferenciado de tudo o mais que existano mundo, alm do fato de tambm envolver a hierarquizaodos elementos em um sistema coerente, procurando enxergarordem e regularidade no Universo, explica diversos elementos queestruturam a prtica de ensino universitrio tradicional.

    Em ateno a esta racionalidade, o ensino tradicional conta comos valores da especializao, como estratgia de produo de co-nhecimento em favor do rigor cientfico e da hierarquizao doselementos em um sistema coerente, procurando enxergar ordeme regularidade no Universo.

    A partir dos conceitos de especializao e hierarquizao, fica claraa escolha por uma organizao curricular estruturada em disciplina,perfazendo um sistema integrado de progresso vertical. Destaca-se,ainda, que o termo disciplina, como bem explicita Garcez, no remeteapenas ao ensino de uma matria, mas tambm obedincia e con-formidade a regras de conduta ou comportamento.

    Conversando com a estrutura disciplinar, ressalta tambm, e es-pecialmente na tradio de ensino dos cursos de Direito, o quanto essaviso de Universidade influencia a dinmica da sala de aula. Nessesentido, expe como a tarefa atribuda ao docente a construo deum discurso comum, conduzindo o aluno ao objeto de ensino e dis-ciplinando seu modo de pensar. Considera-se que os professores,por seu extenso conhecimento do objeto e do mtodo, devem deterpreferencialmente a palavra, enquanto a participao dos alunos,ignorantes da matria a ser ensinada, residual. Igualmente, a

    AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?

    [sumrio]9

  • PREFCIO: TECENDO A MANH COM JOS GARCEz GHIRARDI

    presena discente em sala desejvel, mas no indispensvel,destacando que a avaliao recai sobre a capacidade de o alunocompreender o objeto.

    Diante desse panorama, nascem as perguntas sobre novos mode-los de ensino: o sentido lastreado na razo moderna que organiza aformao jurdica tradicional est superado? A ps-modernidadearticulada com o processo de globalizao das relaes econmicas,com um acesso ao conhecimento oportunizado por novas tecnolo-gias, assim como a conectividade de pessoas que cada vez mais seinformam por uma sociedade em rede esgotam por si a razo deexistir da sala de aula no processo de formao universitria, em es-pecial nos cursos de Direto?

    No so pequenas essas perguntas e, apesar de Garcez aprofun-dar-se mais na discusso sobre se haveria razes para a sobrevivn-cia da sala de aula, no deixa de apresentar alguns posicionamentossobre os demais elementos decorrentes da razo moderna.

    O texto lembra que a formao dos cursos jurdicos brasileirosteve influncia no apenas do projeto moderno de cincia e Uni-versidade, mas tambm da forte aproximao entre direito e poder.No Brasil, os cursos de Direito, desde sua criao, assumiram comouma de suas funes a criao de redes sociais teis atuao dosfuturos juristas nos centros de poder poltico. Num contexto patri-monialista, natural que se atribua faculdade de Direito a missoprioritria de desenvolver nos estudantes a capacidade de influn-cia poltica, deixando-se em segundo plano a capacidade tcnicade exercer uma carreira jurdica.

    Essa caracterstica dos cursos jurdicos permite entender melhor,como destaca Garcez, o papel secundrio da sala de aula nas fa-culdades de Direito, onde espaos como o ptio e o bar e eventoscomo festas e embates entre grupos polticos estudantis mostram-se

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  • mais adequados para o networking. Trata-se de uma crena noapenas de parte dos alunos, mas tambm eventualmente dos pro-fessores, que no raro priorizam suas atividades profissionais noacadmicas, delegando a funo docente a assistentes.

    O diagnstico apontado, somado possibilidade real de se prescin-dir de encontros presenciais para a transmisso do conhecimento do-cente, em virtude das novas tecnologias de ensino, j no seria sufi-ciente para ensejar novas metodologias de ensino que prescindamda sala de aula?

    Garcez categrico ao afirmar que a inovao metodolgica nose resume incorporao de novas tecnologias, mas demanda abusca por uma alternativa terica viso moderna de conheci-mento e de ensino universitrio.

    Ou seja, o que se destaca em sua reflexo que a deciso sobre aexistncia ou no da sala de aula no processo de ensino dos cursos deDireito no se sustenta ou se rejeita em razo das novas tecnologias,da individualidade do aluno que pode escolher sobre sua participaoou no na sala de aula, ou da relevncia do networking para formaode redes sociais necessrias ao centro de poder poltico dos futurosjuristas, como fatores que interferem na prtica pedaggica vivencia-da. preciso que se assuma o debate sobre o sentido da sala de aulaa partir da compreenso poltica que se tenha do Direito.

    Nessa narrativa, assumindo uma posio sobre o Direito, ou seja,definindo uma nova compreenso do objeto que constitui o ensinojurdico, Garcez arremata em favor de uma sala de aula ressigni-ficada, e consequentemente da instituio que a acolhe (a Univer-sidade) e do curso que a assume (no caso os cursos de Direito):O ensino do Direito no deve consistir unicamente numa nar-

    rativa do fenmeno jurdico, mas precisa abranger a capacidadede performance, que implica que o sujeito seja capaz de reagir

    AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?

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  • PREFCIO: TECENDO A MANH COM JOS GARCEz GHIRARDI

    adequadamente, nos termos dos paradigmas da rea, a situaesno previstas (nem mesmo necessariamente previsveis) de ante-mo, utilizando-se de uma lgica especfica de ponderao. Acapacidade de performance no intuitiva e no se pode desenvol-ver isoladamente (em virtude de sua dimenso relacional), de modoque demanda uma pedagogia. Essa pedagogia deve envolver, emreferncia aos termos de Aristteles, no apenas a epistm e atechne, mas tambm a phronesis o conhecimento daquilo que bom em uma situao especfica e a capacidade de bem julgar.

    Essa nova compreenso do objeto de conhecimento, vistoagora como instvel, provisrio e construdo a partir da interaode sujeitos historicamente situados, acarreta uma nova compreen-so do objeto de ensino, o que tambm implica uma crise da es-trutura acadmica da Universidade, instituda a partir da lgica daestabilidade e da objetividade.

    Dessa redefinio sobre o sentido do Direito emerge a necessi-dade de ressignificar a Universidade e, em especial, a sala deaula e no de rejeit-la ou decidir-se por sua superao.

    O texto ento sugere que a ressignificao da sala de aula, fun-dada nessa nova viso do conhecimento, exige um redesenho ins-titucional mais amplo, propondo alguns eixos para a discusso aesse respeito, como a redefinio do objeto de ensino (menos umconjunto estabilizado de conceitos e mais um feixe de habilidades),a superao do monoplio da fala pelos docentes e a crtica ideiade que a ponderao de elementos subjetivos dos alunos desne-cessria ou prejudicial ao bom desenho de cursos e aulas. Comoaponta Garcez, instituies que tm buscado essa reestruturao pro-curam pautar-se pela valorizao do protagonismo do aluno noprocesso de ensino-aprendizagem e pela superao da lgica decompartimentos estanques que estrutura programas, currculos

    [sumrio]12

  • e grades. A partir das experincias norteadas por tais premissas,pode-se identificar pontos que merecem discusso mais aprofunda-da; por exemplo, a possibilidade de ampliao do espao de ensinopara fora da sala de aula, a seriao e a verticalizao de grades, eas relaes entre pesquisa e ensino. Sem deixar de alertar que a ta-refa de implementao de um novo paradigma terico a partirde instituies estabelecidas segundo outra lgica complexa,especialmente quando consideradas as diferenas contextuais ede propsito que caracterizam as faculdades de Direito no Brasil.

    um texto essencial para quem quiser debater sobre a Universidadee os cursos de Direito hoje, em especial sob a tica da consolidao eexpanso de valores democrticos, para concordar com as conclusesapontadas por Garcez, ou no, afinal se tem algo que este professoracredita radicalmente no processo permanente do dilogo.

    Adriana Ancona de FariaCoordenadora institucional da FGV DIREITO SP

    AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?

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  • 1.DE COImBRA A LISBOA

    Fundada em 1988, a Universidade Aberta (UAb) a nicainstituio de ensino superior pblico a distncia em Portugal.Pela sua vocao e natureza, a UAb utiliza, a todo o tempo, nassuas atividades de ensino, as mais avanadas metodologias etecnologias de ensino a distncia orientadas para a educao semfronteiras geogrficas nem barreiras fsicas [...]. Assim, a UAbdisponibiliza, em qualquer lugar do mundo, formao superior(licenciaturas, mestrados e doutoramentos) e cursos deAprendizagem ao Longo da Vida. Toda a oferta pedaggica estintegrada no Processo de Bolonha e lecionada em regime deelearning, desde 2008, ano em que a UAb se tornou numainstituio europeia de referncia, no domnio avanado doelearning e da aprendizagem online [...]. (UNIVERSIDADEABERTA, 2013)

    O texto de apresentao da Universidade Aberta de Lisboa em-blemtico do movimento de transio que vive hoje o ensino supe-rior ao redor do globo. As universidades, pressionadas pelas trans-formaes que caracterizam o fim da hegemonia do paradigmaindustrial moderno, se vm a braos com o desafio de tentar aliar anova tecnologia de informao ao tipo de saber que ainda garante oprestgio dos tradicionais centros de formao.

    Como ilustra o exemplo da UAb, as instituies hoje buscamfazer com que as mais avanadas metodologias e tecnologias deensino a distncia se tornem veculo para oferecer, a um pblico

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  • DE COImBRA A LISBOA

    exponencialmente expandido, a solidez de um conhecimento vir-tualmente (no duplo sentido do termo) idntico quele que caracte-riza as instituies regulares de ensino (toda a oferta pedaggicaest integrada no Processo de Bolonha).1 A aposta metodolgica que no haja conflito entre o vinho novo do veculo e os odres ve-lhos dos saberes e que uns e outros cheguem intactos a seus milharesou milhes de destinatrios finais.

    O resultado almejado pela UAb uma educao sem fronteirasgeogrficas nem barreiras fsicas que permite disponibilizar for-mao superior (licenciaturas, mestrados e doutoramentos) emqualquer lugar do mundo. As restries fsicas e logsticas que antesconfinavam o ensino aos limites estreitos da sala de aula desapare-cem como que por encanto, pulverizadas pelos clicks e links da tec-nologia de informao. No processo, a global classroom desestabi-liza, radicalmente e sem cerimnias, as noes tradicionais detempo e espao no mbito da educao.

    O notvel sucesso e o reconhecimento social que nessa emprei-tada conquistou a UAb2 reforam a ideia de que ela uma experin-cia exemplar das configuraes que vo assumindo as instituiesde ensino superior nas chamadas sociedades ps-modernas.

    Para os juristas brasileiros, esse protagonismo de Lisboa faz lem-brar, com alguma graa, o prestgio do modelo de ensino adotado,sculos antes, pela vizinha Universidade de Coimbra. Se o mtodocoimbro formou o passado e domina ainda boa parte do presentedos cursos jurdicos no Brasil, o mtodo lisboeta que parece secandidatar a paradigma do futuro.

    Contudo, no s s margens do Tejo floresce a EAD. Pelo con-trrio. Ela planta que se adapta bem a diferentes climas e culturas,e tem se espalhado velozmente por todo o globo. Nos Estados Uni-dos, por exemplo, sua multiplicao vertiginosa. Os cursos online

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  • e abertos dirigidos a grandes massas (MOOCs Massive Open On-line Courses, em ingls) vo se agigantando em suas propores(COLBRAN; GILDING, 2014). cone desse novo movimento, oprofessor Michael Sandel, de Harvard, atingiu status de celebrida-de; suas aulas j foram assistidas por milhares de pessoas em dife-rentes partes do planeta. Ao redor do globo,3 uma variedade de ou-tras iniciativas atesta a vitalidade da EAD (LOCKWOOD, 2003).

    No Brasil, a expanso do fenmeno no impressiona menos. Onmero de alunos que estuda Direito e de professores que o ensinamem cursos a distncia chama a ateno mesmo nessa rea acostu-mada a nmeros elevados de instituies e alunos. S o grupo LFGanuncia ter aprovado, em poucos anos, mais de 230 mil alunos emconcursos diversos. A apresentao que se v no site dessa institui-o indicativa, mais uma vez, da crena na possibilidade de umcasamento harmonioso entre novas tecnologias e concepes tradi-cionais de ensino:

    [...] a Rede LFG, presente em mais de 400 cidades, tem comomisso democratizar o acesso a um contedo de qualidade;por isso, pioneira no ensino via satlite, o que permite atransmisso de aulas ao vivo para todo o territrio nacional e com total interatividade entre professor e aluno. [...] Comtecnologia e pedagogia motivacional, o ambiente virtualpermite ao aluno ter acesso a perguntas e respostas durante as aulas, resoluo de questes, materiais complementares,biblioteca, laboratrio de informtica e sala de estudo. [...] O compromisso da Rede LFG traduzido pelo alto ndicede aprovao dos alunos em concursos pblicos nas diversasreas, bem como no Exame para a OAB, uma vez que o corpodocente formado por renomados professores e autores

    AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?

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  • DE COImBRA A LISBOA

    jurdicos. Hoje, a instituio registra mais de 230 milaprovaes. Em parceria com a Universidade Anhanguera--Uniderp, a LFG tambm ministra cursos de ps-graduao a distncia: o aluno se dirige uma vez por semana unidade eacompanha a aula em telessalas. Entre os cursos oferecidos,esto os jurdicos e MBA na rea de gesto. (REDE LFG, [s.d.])

    Nesse tipo de discurso, democratizao do ensino, pedagogiamotivacional, renomados professores e autores jurdicos se inte-gram e interagem perfeitamente bem nos espaos virtuais que lhesproporcionam satlites e portais. Reduzir a necessidade da presenafsica a uma visita semanal telessala a consequncia lgica dasobreposio do modo moderno de se entender o ensino s novastecnologias da informao.

    A velocidade da disseminao dessa estratgia de apresentar con-tedos tradicionais em mdias novas estonteante. A amplitude desua abrangncia pode ser ilustrada, de forma singularmente clara,por uma propaganda da Anhembi Morumbi que tinha por pblico-alvo milhes de usurios do metr de So Paulo:4

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  • O tablet que emoldura o rosto do estudante sugere a modernidadeda tecnologia, mas a repetio obsessiva da ideia de mesmo (mes-mos professores, mesma aula, mesmo diploma) tranquilizadoraem sua indicao de que nada de substancial mudou. A indicaode que seus cursos obtm as maiores notas do MEC confirma o acer-to da proposta tambm para os rgos reguladores.

    E h mesmo muitas e boas razes para celebrar a expanso daEAD e os importantes ganhos sociais e pedaggicos que ela permiterealizar.5 O ambiente virtual possibilita, por exemplo, multiplicarexponencialmente, e a um custo relativamente baixo, o nmero dealunos que podem se beneficiar das aulas. Este potencial democr-tico da educao a distncia tem sido frequentemente apontado,com razo, como um forte argumento para sua expanso.

    Vale lembrar que esta ampliao democrtica de pblico no sed apenas pela extenso da rea geogrfica ao alcance da Universi-dade, mas, tambm, pela customizao que o mundo virtual permiteem graus impensveis nos espaos fsicos tradicionais.6 Podendoacessar contedos em qualquer horrio que desejem, os alunos tmmaior facilidade para conciliar sua agenda de estudos e sua agendade trabalho. Estudantes que encontrariam enormes dificuldadespara seguir um curso superior por causa de seus compromissos pro-fissionais podem agora faz-lo a partir da prpria casa, nos horriosque lhes forem mais convenientes.

    Alm disso, as diferentes plataformas utilizadas para esse tipode projeto (como, por exemplo, Coursera, Edx, Udacity, P2P, eKahn Academy)7 disponibilizam um sem-nmero de apoios didticos(links, tira-dvidas online, chats, banco de materiais etc.) que pro-metem tornar o aprendizado mais agradvel e mais eficaz. Igualmen-te vantajosa, a familiarizao com os recursos e linguagens do cy-berspace que a EAD exige e produz nos usurios ser til aos alunos

    AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?

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  • DE COImBRA A LISBOA

    em sua busca por insero ou promoo profissional. O mundo dotrabalho contemporneo vai se estruturando, mais e mais, com basenesse repertrio tecnolgico.

    Listar ganhos no significa ignorar riscos. E h muitos deles liga-dos EAD, como, de resto, a qualquer modalidade de projeto edu-cacional. A massificao indiscriminada de contedos pode amea-ar a heterogeneidade de ideias, o acesso fcil informao virtualpode embotar a capacidade de pesquisas de outra natureza, a difusode cursos a partir de pases hegemnicos econmica e tecnologica-mente pode levar pasteurizao ideolgica e naturalizao deformas dominantes de pensamento etc.8 Cada um desses riscosmereceria, por sua complexidade e potencial de dano, discussoindividualizada.

    Nesse momento, entretanto, a progresso do argumento solicitaque nos concentremos no cenrio de expanso e de avano que seesboou acima para que possamos enfrentar a pergunta que norteiaa discusso proposta por este texto: ainda precisamos da sala deaula? Ser que os avanos da tecnologia no condenaram extinoessa forma de ensino-aprendizagem da mesma forma que o avanoda educao pblica determinou o fim dos preceptores familiares?

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  • 2.O mAnuSCRITO E O ImPRESSO

    Isso apenas podemos hoje dizer, aquilo que no somos,aquilo que no queremos.

    Eugenio Montale, Ossi di seppia.9

    Aindagao sobre o sentido dos espaos contemporneos deensino pode ser enquadrada na moldura mais ampla dosmodos de transformao das trocas sociais. De fato, o de-safio de ressignificao de prticas e instituies antes percebidascomo funcionais ou no problemticas (como o caso da sala deaula em nossos dias) parece caracterstico daqueles momentos his-tricos em que, semelhana do que se v em nossos dias, ocorreuma sbita, profunda e extensa modificao tecnolgica.10

    Um exemplo ajuda a ilustrar esse ponto. Na Inglaterra do incioda Era Moderna (sculos XVI e XVII), a rpida difuso da tipogra-fia afetou profundamente uma bem estabelecida e longa tradio decirculao de textos manuscritos. Em um perodo razoavelmentebreve, reduziram-se muito os custos de se produzir textos impres-sos, ao mesmo tempo que aumentavam sua qualidade e facilidadede produo (MAROTTI, 1995).

    Essa revoluo tecnolgica alterou, em sua dinmica, um amploconjunto de instituies associadas ao funcionamento social da culturado manuscrito, que agora passava de hegemnica a minoritria. Foidesaparecendo, por exemplo, o hbito de presentear os amigos comlivros elegantemente encadernados mas com as pginas em branco

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  • O mAnuSCRITO E O ImPRESSO

    (para que o presenteado pudesse ali copiar seus manuscritos prefe-ridos poemas, textos, cartas). A liberdade de, ao copi-los, alterartextos alheios foi tambm minguando: o texto impresso estabilizoua autoria. No entanto, foi surgindo a prtica de se dedicar o livro aoamvel leitor que, no emergente mercado editorial, passava a subs-tituir os nobres como verdadeiro patrono da obra.

    De maneira ainda mais relevante para o ponto que vamos discu-tindo, essa transformao na cultura do texto obrigou a dar sentidosnovos s prticas antigas que sobreviveram ao novo modo de pro-duo. Como consequncia das mudanas tecnolgicas, o que antesera um comportamento obrigatrio (circular um texto manuscrito)se tornou um comportamento eletivo (pois j era possvel, e relati-vamente fcil, circular textos impressos), e isso mudou radicalmen-te o sentido social de algumas prticas, sem que, contudo, tenha ha-vido qualquer alterao na prtica em si. sua manuteno em umambiente novo que agora demanda justificativa.

    Uma breve digresso: as razes para a sobrevivncia de algumasprticas e o desaparecimento de outras provavelmente s podemser entendidas se que o podem no estudo caso a caso. pos-svel sugerir, entretanto, que sobrevivero aquelas prticas cujosentido social no possa ser realizado plenamente por meio dasnovas tecnologias. Deste modo, a televiso no acabou com o ci-nema (embora, significativamente, tenha alterado suas estratgias),nem a transmisso dos jogos pela TV determinou o fim dos estdiosde futebol (idem). Em ambos os casos, a fruio coletiva da expe-rincia parece fazer parte importante do que d valor a esses even-tos. Isto , aquilo que se experimenta diferente porque se experi-menta coletivamente. Protegidas por essa dimenso simblica noencampada pelas novas mdias, tais prticas sociais permanecem,ainda que modificadas.

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  • No entanto, tendem a desaparecer aquelas prticas culturais atre-ladas a aparatos cujas funes especficas so totalmente supridaspela nova tecnologia e que no desenvolvem um jogo de interaosocial que ultrapasse o uso individual do aparelho: o CD, por exem-plo, praticamente acabou com o vinil ( exceo de colecionadorese experts que passam a constituir, sinal dos tempos, um tipo de sub-cultura) e o computador mandou para o museu as mquinas de es-crever e o telex.

    Retomando o argumento para apresent-lo de outro modo: aemergncia da dimenso eletiva em condutas que antes eram obri-gatrias determina a necessidade de ressignificao social dessasprticas. Aes antes meramente funcionais (qual o sentido no ins-trumental de enviar uma carta manuscrita se no h outra opo paraa comunicao epistolar?) assumem necessariamente significadossociais diferentes quando comeam a expressar uma dimenso deescolha deliberada.

    Na Inglaterra do sculo XVII, passou a fazer sentido, socialmente,que se mantivesse a circulao de manuscritos para alguns tipos detexto, procedendo-se circulao de outros tipos por meio de versesimpressas. O convvio de uma cultura manuscrita em declnio e deuma cultura impressa em ascenso obrigava os participantes dessejogo a fazerem escolhas baseadas em valores. Mudanas tecnolgi-cas profundas solicitam, simultaneamente, a criao de instituiesnovas e a ressignificao de formas sociais antigas.

    Ressalvadas diferenas pontuais, fenmeno similar afeta hoje (oudeveria afetar) nossa percepo da Universidade, em geral, e da salade aula, em particular. Se h 100 ou 50 anos a necessidade de con-vergir simultaneamente ao mesmo espao era autoevidente, hoje elanecessita de justificativa. Como tecnologia de ensino, a sala de aulano est isenta de enfrentar o desafio de mostrar-se ainda relevante

    AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?

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  • O mAnuSCRITO E O ImPRESSO

    quando, merc do avano tecnolgico, muitas de suas funes podemser realizadas com maior eficincia por outros meios.

    Tais transformaes tecnolgicas no ocorrem desconectadas demudanas na forma de se entender a funo da Universidade. Elas sur-gem de um novo paradigma, ao mesmo em tempo em que ajudam aconstru-lo. H quase 40 anos, Jean-Franois Lyotard chamava aateno para essa relao entre novas tecnologias, crise da noomoderna de cincia e necessidade de relegitimar as instituies:

    Assim, [a cincia] exerce sobre seu prprio estatuto um discursode legitimao chamado filosofia. Quando essa metadiscursorecorre explicitamente a algum grande relato, como a dialticado esprito, a hermenutica do sentido, a emancipao do sujeitoracional ou trabalhador, o desenvolvimento da riqueza,decide-se chamar moderna a cincia a que isto se refere parase legitimar. [...] V-se, neste caso [regra do consenso entreremetente e destinatrio] que, legitimando o saber por ummetarrelato, que implica uma filosofia da histria, somosconduzidos a questionar a validade das instituies que regem o vnculo social: elas tambm devem ser legitimadas. [...] Aodesuso do dispositivo metanarrativo de legitimao correspondesobretudo a crise da filosofia metafsica e da instituiouniversitria que dela dependia. (LYOTARD, 2004, p. xv-xvi)

    O fato de esse debate permanecer perifrico sobretudo em boaparte da academia sugere que a obrigatoriedade da presena fsicade professores e alunos na Universidade ainda percebida como umfato, no uma escolha. A longevidade dessa crena testemunho,por sua vez, de um longo e complexo sistema de legitimao do sabere de suas instituies que, gestado na modernidade, informa ainda

    [sumrio]24

  • nosso imaginrio social e molda nossa forma de pensar a educao,desde o Infantil at a Universidade.

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  • [sumrio]27

    3.O CAmInhO DA ESCOLA

    Aimagem da criana ou jovem indo para a escola se reveste,ainda hoje, de um carter de reconfortante normalidade.Ela sobrevive, sem ironias, mesmo em obras da mass mediadeliberadamente cidas em sua crtica ao mundo ps-industrial: osgarotos de South Park, assim como Bart Simpson, ainda vo es-cola com o mesmo sentido de inevitabilidade com que o fazia o Pi-nquio de Collodi em 1883. Nas primeiras dcadas do sculo XXI,o processo de educao e de socializao para alm do espao do-mstico ainda tem como elemento central a congregao dos edu-candos em um mesmo espao fsico por um perodo de tempo ra-zoavelmente longo.

    Essa permanncia deveria surpreender. Outros percursos tradi-cionais a ida missa com a famlia, por exemplo foram sendogradativamente abandonados ou substancialmente modificados naesteira das transformaes dos modos de interao social. Outrosespaos tradicionais a fbrica e o escritrio, por exemplo foramtambm se transformando por fora da alterao na matriz de pro-duo econmica. Os home-offices so hoje uma realidade bem es-tabelecida, assim como as redes de produo que se pulverizam ese articulam ao longo de extensas reas geogrficas.

    Fenmeno correlato se d no mbito do consumo, em que as tran-saes no espao virtual crescem exponencialmente impulsionadaspela convenincia do home delivery ou pela facilidade de downloadimediato do produto desejado. Conforme j observou Zygmunt Bau-man (2000, p. 91-129), tempo e espao tornaram-se para nossa so-ciedade os obstculos a superar.Mais e mais, as sociedades ocidentais

  • O CAmInhO DA ESCOLA

    buscam eliminar os incmodos gmeos da espera (isto , da acomo-dao ao tempo de um terceiro) e do deslocamento (isto , ter de adap-tar-se s demandas que vm da localizao espacial de um terceiro).

    No mbito da educao formal, entretanto, essa ressignificao detempo e espao ainda no se faz sentir de maneira substantiva.11 Osesforos por realiz-la e as tentativas de transformar estruturalmentea escola como instituio como o caso, por exemplo, dos diferen-tes experimentos da Escola Nova12 tm sido amide recebidos commal disfarada desconfiana e encontrado considervel resistnciapor parte de diferentes atores no processo educativo. A crena de quea escola solicita, necessariamente, a presena simultnea dos indiv-duos no mesmo espao fsico segue hegemnica.

    Assim, permanecem substancialmente inalteradas tanto a obri-gatoriedade de o jovem deslocar-se at a escola (embora, significa-tivamente, os meios de transporte tenham se transformado muito)como a lgica de organizao das instituies que o acolhem. Aindahoje, o destino final uma sala em que ele tomar lugar junto a umnmero mais ou menos elevado de colegas para ficarem, em grupo,na presena de um professor. Por qu? E para qu?

    As respostas a essas perguntas iro variar segundo o modo comose entende, por um lado, o sentido da educao formal e, de outro,a funo especfica de cada um de seus estgios. As expectativassociais para Educao Infantil, Fundamental I e II, Mdio e EnsinoSuperior so, compreensivelmente, bastante diferentes entre si.

    Em linhas muito gerais, pode-se dizer que o percurso educacionalconfigura um arco que vai de uma ateno prioritria s caractersti-cas do sujeito que aprende (nos primeiros estgios buscam-se desen-volver aptides fsicas, sociais e cognitivas bsicas) s caractersticasdo objeto que se aprende (a crescente especializao disciplinar me-dida que se avana de estgio se articula com o desgnio de fornecer

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  • ao educando o conhecimento objetivo que caracteriza o profissionaladulto). O significado da sala de aula e a avaliao de sua importnciairo variar segundo a leitura que se faa de cada etapa.

    No mbito da Universidade, essas leituras se tornam ainda maisproblemticas, em boa parte, porque, ao contrrio do que ocorre emrelao s etapas anteriores, no h consenso quanto funo dessenvel de ensino. Entendido como espao de formao desejvel, masno obrigatrio (a educao universitria no imperativo consti-tucional, como a educao bsica), o ensino superior se torna ob-jeto de percepes conflitantes. Conforme a visada que se adote, eleter de maneira alternativa uma vocao prioritariamente tcnica,profissionalizante, especulativa, investigativa etc.

    A cacofonia de discursos sobre a misso ltima da Universidadese converte, entretanto, em inesperado unssono quando a reflexo sevolta ao tipo de conhecimento e ao tipo de sujeito que devem carac-terizar este espao. Nesses dois quesitos, existe uma virtual unanimi-dade de entendimento: o conhecimento que caracteriza (ou deveriacaracterizar) a Universidade o conhecimento cientfico, entendidoo termo segundo o paradigma da cincia moderna, e o educando quea frequenta (ou deveria frequentar) um sujeito autnomo, j apare-lhado com todas as habilidades bsicas (intelectuais, psicolgicas,sociais etc.) desenvolvidas nos estgios educacionais anteriores.

    Saberes que no atendam aos requisitos da racionalidade moderna por serem demasiado prticos ou esotricos, por exemplo ten-dem a ser excludos dos currculos da Universidade (isto se v, comclareza, nos discursos que propem a transformao de determina-dos cursos universitrios em cursos tcnicos); sujeitos que no apre-sentam a autonomia intelectual e a maturidade psicolgica supostaspor esse nvel de formao tendem igualmente a ser descartados,uma vez que no dispem das habilidades constitutivas do estudante

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  • O CAmInhO DA ESCOLA

    universitrio. Parte da resistncia s quotas parece se fundar na ale-gao de que, por fora da m qualidade do ensino pblico nos est-gios anteriores, os alunos dele oriundos no disporiam das habilida-des mnimas indispensveis apreenso do saber universitrio.

    a partir dessas premissas sobre objeto de conhecimento e sujeitoque aprende que se desenham a estrutura acadmica da Universidade(departamentos, currculos, grades seriadas, disciplinas obrigatriase eletivas, estgios etc.), sua lgica de funcionamento (aulas presen-ciais regulares) e sua perspectiva metodolgica (nos cursos jurdicos,majoritariamente palestras). As sees seguintes examinam cadauma dessas dimenses em sua articulao com as perspectivas refe-ridas de objeto e de sujeito, sugerindo que h um conflito entre a ma-triz moderna que ainda informa a estruturao, o discurso e o funcio-namento da Universidade e os modos contemporneos de significare organizar as relaes sociais em outros espaos.

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  • 4.um LuGAR PARA CADA COISA, CADA COISAEm SEu LuGAR

    Doce a lio que nos traz a Natureza;Nosso intelecto curiosoDistorce a forma bela das coisas:Matamos para dissecar

    William Wordsworth, The Tables turned 1798(WORDSWORTH, 1994, p. 57)13

    Os versos de Wordsworth e a defesa radical que fazem doideal romntico revelam, pelo avesso, as caractersticasfundamentais que foram se tornando hegemnicas no dis-curso moderno sobre o conhecimento. Para o poeta, nosso meddlingintellect impe a prtica absurda de assassinar os seres vivos sob aalegao de que isso indispensvel para entender a vida; os que agemassim, sugere, desperdiam, por fora dessa crena equivocada, aoportunidade de capturar o que essencial no fenmeno que preten-dem compreender. Coerente com seu argumento central, Wordsworthencerra o poema conclamando os leitores a abandonarem os limitesda cincia e da arte contemporneas e a abraarem os sentimentos ge-nunos como caminho mais seguro para a verdadeira sabedoria.14

    Os alvos principais das crticas de Wordsworth, e dos romnticosem geral, eram o triunfante racionalismo vitoriano e o mundo indus-trial a que ele dava ensejo. A razo moderna, lamentava o poeta, parase constituir em cincia, deve submeter a rica diversidade do mundo

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  • um LuGAR PARA CADA COISA, CADA COISA Em SEu LuGAR

    natural a um tipo de ordem e regularidade que a Natureza desconhe-ce. Mas esse modo de apreender o real, visto como fraqueza para osromnticos, justamente o que d fora e legitima o discurso cientficomoderno. S ele permite estabelecer o universal a partir do particu-lar, o regular a partir do episdico, o objetivo a partir do subjetivo.

    As emoes e sensaes, intrinsecamente ligadas experinciaconcreta de indivduos particulares, so absolutamente incapazesde orientar nossa ao sobre o mundo. Presos s enganosas particu-laridades dos fenmenos, seramos incapazes de compreender e ex-pressar as leis gerais e imutveis que movem o Universo e isso indispensvel para que o possamos amoldar s nossas necessidadese desejos. Essa a funo da cincia. por isso que ela precisa sub-meter a aparente entropia do real a um mtodo e a uma disciplina.15

    A funo do mtodo, como se pode ver, por exemplo, das obrasparadigmticas de Descartes e de Kant, a de garantir que raciocine-mos corretamente, isto , de evitar que imperfeies em nossa formade pensar se tornem pedra de tropeo em nosso caminho at a ver-dade. A preocupao com o bem pensar no moderna, claro. Ela caracterstica do discurso filosfico ocidental desde os gregos; eseria tolice acreditar que medievais e renascentistas dessem poucaateno a essa questo. O que diferencia a proposta moderna, en-tretanto, sua desconfiana em relao a alguns elementos que pe-rodos anteriores tratavam como fontes no problemticas para a au-torizao da verdade cientfica (como a tradio, por exemplo, oua autoridade das Escrituras).

    Experimentando um mundo desencantado (para utilizarmos a ex-presso famosa de Weber), fragmentado irreversivelmente entre su-jeitos que conhecem, de um lado, e objetos que se conhecem, deoutro, os modernos desenvolvem a obsesso por estabelecer as con-dies timas de relao entre os termos, de modo que as caracte-

    [sumrio]32

  • rsticas individuais do primeiro (sujeito) no distoram a compreen-so do segundo (objeto). A busca de uma razo pura , portanto,condio para validar o tipo de razo prtica que nos permitir agircorretamente sobre o mundo. E essa busca traduzir-se- em uma es-tratgia para construir o conhecimento, em um mtodo especficode abordar o objeto.

    O mtodo caracterstico da cincia moderna o de individualizaros elementos sob anlise, conceituando cada um deles com exatidoabsoluta, at que cada objeto individual possa ser claramente dife-renciado de tudo o mais que exista no mundo. Estabelecer os limitesentre A e no A; descrever as caractersticas individuais de que de-rivam tais limites; estabelecer a posio de A no sistema dentro doqual se insere; descrever o funcionamento desse sistema, suas re-gularidades e leis gerais: essas so preocupaes centrais do cien-tista moderno. Seu objetivo a anlise, entendida como a atividadedupla de conceituar (isto , diferenciar cada unidade a ser conhecidade todas as demais) e classificar (isto , situar tal unidade no sistemamais geral em que se insere).

    Vemos esse movimento duplo de conceituao-individualizaoe de hierarquizao em sistema em diferentes reas da cincia mo-derna. A tabela peridica uma instncia paradigmtica dessa formade conhecer: sua organizao em perodos e grupos (linhas verticaise horizontais) permite a um tempo individualizar cada elementoqumico e situ-lo em relao ao todo, sendo possvel agrupar e se-parar sees segundo conjuntos de caractersticas semelhantes oudistintas. A classificao dos seres vivos dentro de uma hierarquiabem definida (reino, filo, classe, ordem, famlia, gnero e espcie) outro bom exemplo do modo moderno de conhecer.

    No campo do ensino jurdico, esse trabalho de conceituao pre-liminar se traduz na distino rigorosa de cada um dos diferentes

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  • um LuGAR PARA CADA COISA, CADA COISA Em SEu LuGAR

    elementos constitutivos do Direito (norma fundamental, normas se-cundrias, validade etc.). Somente depois desse meticuloso trabalhode depurao, que nos apresenta o objeto jurdico em si e cada umade suas partes em relao s demais, que podemos responsavelmen-te passar tarefa de buscar compreender o funcionamento internodo Direito.

    Ora, se essa a forma caracterstica do conhecimento cientfico ese a Universidade, como se apontou acima, entendida como espaoprivilegiado para sua construo e difuso, ento compreensvel queessa percepo de cincia se corporifique em um desenho institucionalque lhe guarde a imagem e a semelhana. E isso mesmo que pareceocorrer no ensino jurdico universitrio, desde a macroestrutura dasinstituies at a microestrutura de suas aulas individuais.

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  • 5.O EnSInO DA DISCIPLInA

    Veja-se, por exemplo, a organizao tradicional dos cursosde Direito que, normalmente, se estruturam em departa-mentos. Cada departamento se distingue dos outros emfuno de seu objeto, isto , da subdiviso do grande objeto Direitoa que todos se dedicam. Cada subdiviso tem seu repertrio concei-tual, suas autoridades especficas e suas caractersticas metodol-gicas prprias, o que a torna terreno exclusivo daqueles versadosem tais repertrios, autoridades e metodologia.

    Na lgica da cincia moderna, a especializao sinnimo de rigorcientfico e o rigor cientfico a razo de ser da Universidade. Docen-tes que passeiam por mais de uma rea so vistos com desconfiana,como diletantes ou mesmo embusteiros que misturam o que deveriaser mantido separado e que se permitem emitir opinies sobre umaseo do objeto cujas caractersticas desconhecem ou conhecem mal.

    Dentro de cada departamento, a subdiviso se d em cadeiras quereplicam, uma escala abaixo, o mesmo jogo de definio e exclusoque estrutura os departamentos. E, dentro das cadeiras, a lgica daespecializao como caminho para a verdade se traduz em uma gradeseriada de disciplinas, arranjo que reproduz em seus dois termos(grade seriada, disciplinas) a mesma perspectiva de fundo sobre osentido de conhecimento e a funo das instituies que o reprodu-zem e disseminam.

    Organizar as disciplinas em uma srie linear harmoniza-se semsobressaltos com a visada de que as reas de conhecimento consti-tuem sistemas integrados em que cada parte , ao mesmo tempo,claramente diferenciada das demais (conceituao) e articulada com

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  • O EnSInO DA DISCIPLInA

    todas as outras (hierarquizao/sistematizao). O desenho geral nodeixa de lembrar o da tabela peridica ou o das famlias de seres vivos.

    Assim, a rea de conhecimento direito civil (o todo de que seocupa o Departamento de Direito Civil) segmentada em unidadesmenores (disciplinas) arranjadas em um percurso de acumulaogradativa. A premissa implcita a de que o aluno exposto sucessi-vamente a cada uma das partes em que se subdivide o sistema ad-quirir, ao final do percurso, a compreenso do todo. Os nmerosque frequentemente acompanham o nome das disciplinas nesse tipode grade seriada (por exemplo, Direito Civil I, II, III...) atestam essanoo de um todo formado cumulativamente em etapas sucessivase coordenadas.

    Corolrio bastante comum (mas no obrigatrio) desse arranjo o estabelecimento de algumas disciplinas como pr-requisito paradisciplinas posteriores. Se a crena de que a progresso cumulativado conhecimento vai de elementos mais simples ou mais gerais paraos mais complexos ou mais especializados, ento necessrio que oencadeamento linear no seja quebrado, pois no possvel que al-gum possa entender conceitos mais avanados (novamente a met-fora de deslocamento linear se deixa ver) sem, antes, ter se apropriadodos conceitos mais bsicos (metfora da progresso vertical).

    Os materiais tradicionais de ensino como os manuais, porexemplo abraam, mais ou menos conscientemente, essa mesmalgica de organizao. Tipicamente, eles estabelecem uma categoriaaxial (por exemplo, contrato), passando depois a defini-la (isto ,tornando-a inconfundvel com qualquer outro instituto jurdico);descrevendo e detalhando a seguir suas caractersticas essenciaispara, posteriormente, explicitar seus tipos ou categorias (e subtiposou subcategorias). No ser acaso que desenhos muito semelhantes seencontrem nos cdigos e na organizao das instituies judiciais.

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  • Nessa perspectiva de segmentao como mtodo e especializa-o como refinamento, o bom docente sentir que no legtimoque ele venha a lecionar cadeira ou disciplina para a qual no tenhasido autorizado e sem que tenha recebido o beneplcito daquelesque dominem o objeto altamente especializado que dever ensinar.No infrequente, assim, que haja por vezes concursos de ingressoque, tendo por base uma disciplina especfica, tornem difcil ou cus-toso ao aprovado mudar de rea ao longo da carreira. Para ser res-peitvel, ele deve ser proficiente em uma disciplina.

    Denominar disciplina a uma rea de ensino no um acidente dalinguagem. A confluncia de sentidos no mesmo termo e os elemen-tos que compem sua polissemia manifestam o quo profundamentea lgica da cincia moderna molda nossa forma de pensar as insti-tuies (modernas) de ensino, pois o termo disciplina no designaapenas uma matria (outro termo que nos lembra a mesma perspec-tiva de natureza bruta sendo moldada pelo intelecto) a ser lecionadadentro de uma grade seriada; ele apresenta tambm os sentidos deobedincia e conformidade a regras de conduta ou comportamento;de desenvolvimento de um hbito ou rotina frequentemente avessos inclinaes naturais de quem deseja desenvolv-lo. preciso terdisciplina para seguir um rigoroso regime alimentar e as crianasse tornam insuportveis se fazem o que desejam porque no rece-bem dos pais a disciplina necessria.

    Charles Taylor (1989, p. 147) comenta essa vocao disciplina-dora da razo moderna:

    A opo cartesiana enxergar a racionalidade, ou o Poder dopensamento, como uma capacidade que temos de construirordens que atendem aos padres exigidos pelo conhecimento,pela compreenso ou pela certeza. [] Se seguirmos essa

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  • O EnSInO DA DISCIPLInA

    linha, o autodomnio da razo deve ento significar que essacapacidade seja o elemento controlador de nossas vidas, nolugar dos sentidos; o autodomnio consiste em que nossasvidas sejam conformadas pelas ordens que nossa capacidadede raciocnio constri segundo os padres apropriados.16

    Disciplinar um sujeito , assim, configur-lo para que se adequea uma forma de agir ou pensar que se entende ser desejvel. Dadasas vicissitudes da natureza humana, tais formas desejveis de agir oupensar so muitas vezes penosas, aborrecidas ou mesmo inacessveisao indivduo comum. Por isso, temos necessidade de instituies so-ciais que operem essa transformao de um sujeito indisciplinadoem um sujeito disciplinado.

    Ressurge, aqui, a premissa de objetividade do projeto moderno.As instituies educacionais tm por misso preparar e moldar osujeito ao objeto. As caractersticas desse ltimo tm precednciasobre as idiossincrasias do primeiro. Se, como tantas vezes o caso,tais idiossincrasias se mostrarem obstculos boa conformao dosujeito ao objeto, elas devem ser eliminadas. A uniformizao (osuniformes escolares ainda persistem, por uma srie de razes) umdos compromissos sociais das instituies de ensino.

    No mbito da Universidade, como se observou acima, essa uni-formizao no incide sobre hbitos ou comportamentos, mas sobrea forma de pensar. Os sujeitos que ascendem ao nvel mximo de en-sino j devem ter sido disciplinados em relao s condutas e aoscdigos sociais hegemnicos; no espao universitrio, sua formade pensar que deve ser disciplinada.

    Vem da o entendimento de que preocupaes com as caracters-ticas individuais de cada aluno so descabidas na Universidade. Parao docente (enquanto docente), devem ser absolutamente irrelevantes,

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  • segundo essa perspectiva, gnero, idade, condio socioeconmicaou crenas religiosas do aluno sua frente. Lev-las em considera-o significaria fazer valer as caractersticas do sujeito sobre as ca-ractersticas do objeto, exatamente o inverso do que deve ocorrer emuma disciplina sria. Isso aqui no Ensino Fundamental, afir-mam alguns quando peculiaridades individuais so trazidas tonana discusso da situao de uma aluna ou de um aluno.

    Os que assim se manifestam parecem querer dizer no que so in-sensveis s agruras alheias (muitos que argumentam nesse sentidosero, na verdade, profundamente solidrios com o sofrimento dosoutros), mas que, como docentes do Ensino Superior, eles tm comocompromisso fundamental garantir que o sujeito aperfeioe suaforma de pensar de modo que possa apropriar-se adequadamente doobjeto. Sua certificao a dessa proficincia objetivamente men-survel e no deve ser obscurecida ou distorcida por consideraesde natureza subjetiva. Considerar idiossincrasias pessoais seria trairseu papel de docente.

    Nos cursos de Direito, tende a decorrer da a crena de que a rela-o ideal na sala de aula da Universidade aquela em que o docente o detentor da palavra, posto que o nico que conhece as carac-tersticas do objeto e a metodologia necessria para sua compreen-so. Ao aluno cabe prestar ateno e, eventualmente, solicitar domestre alguma ajuda em algum ponto que, merc de suas limitaesintelectuais (do aluno, claro), no pode compreender com clareza.A relao entre docente e discente fundada e legitimada pela tarefade construir um discurso comum em relao ao objeto: ao primeirocabe educar (conduzir) o aluno ao objeto, disciplinando-o para queadote os hbitos mentais necessrios a essa apropriao.

    No incomum que, nesse contexto e nessa perspectiva, a presenado aluno em sala seja considerada desejvel mas no indispensvel.

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  • O EnSInO DA DISCIPLInA

    Se o que ocorre em sala de aula , prioritariamente, a exposio me-tdica, disciplinar e disciplinarizante, de um objeto claramente de-limitado, e se o aprendiz, por definio, ignorante justamente desseobjeto e dessa metodologia, ento a contribuio que ele poder tra-zer aula ser, no mximo, residual. Ele poder ser valioso formu-lando bem questes relevantes que outros colegas teriam dificulda-de em articular; pode tambm fornecer ao professor um ponto deapoio para a exposio; e pode mesmo, eventualmente, contribuir coma apresentao do resultado de alguma tarefa (pesquisa, leitura, le-vantamento) que lhe tenha sido solicitada de antemo.

    Em nenhum desses casos, contudo, alterar-se- a perspectiva quesupe que o objeto de ensino existe antes e a despeito do aluno. (Digoobjeto de ensino porque creio ser importante diferenci-lo de objetode conhecimento. A distino, que faz parte do argumento centraldesta obra, ser desenvolvida adiante). Ao aluno caber a participa-o sobretudo passiva de esclarecer-se sobre o objeto e se submeter avaliao (objetiva) de sua capacidade de compreend-lo.

    No caso dos cursos de Direito no Brasil, no apenas este influxoda forma moderna de se pensar a cincia e a Universidade que agepara reduzir a relevncia da participao do aluno em sala. Em nos-sos cursos jurdicos, este influxo encontra e se molda a um dilogosingular entre os discursos do saber e do poder.

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  • 6.Essa tErra dE doutor

    Tinha eu 14 anos de idadeQuando meu pai me chamou Perguntou se eu no queriaEstudar filosofia Medicina ou engenhariaTinha eu que ser doutor

    Mas a minha aspiraoEra ter um violoPara me tornar sambistaEle ento me aconselhou Sambista no tem valorNesta terra de doutorE seu doutorO meu pai tinha razo

    Paulinho da Viola, Quatorze anos

    Aconcepo moderna de Universidade com a ntida separa-o entre sujeito e objeto, a lgica de disciplina que ela arti-cula e a hierarquia implcita a que d lugar conheceu refra-es peculiares quando traduzida para as instituies de ensinojurdico no Brasil.Desde a criao dos primeiros cursos em 1832, as faculdades de

    Direito construram sua identidade e consolidaram seu prestgio nas

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  • Essa tErra dE doutor

    relaes com as instituies formais do poder do Estado.17 Surgidaspara aparelhar a alta burocracia estatal do pas independente, elass podiam atender satisfatoriamente s expectativas sociais quenelas se depositavam se fossem proficientes no trato com a autori-dade poltica.18A quantidade de acadmicos de Direito que ocupavam cargos de

    grande relevo e funes estratgicas no governo nesses primrdiosdos cursos jurdicos assombrosa. Durante todo o perodo da Pri-meira Repblica (1889-1930), por exemplo, no houve no Brasilpresidente civil que no fosse tambm bacharel em Direito (KOIF-MAN, 2002). O lugar-comum de referir-se ao pas como repblicados bacharis tem origem nessa simbiose entre ao poltica e for-mao jurdica.Essa aproximao entre Direito e poder no , evidentemente,

    acidental. O aparato jurdico (em sentido amplo: discursos, insti-tuies, prticas) absolutamente indispensvel para que os gover-nos possam implementar suas aes. A confuso dos discursos dopoder e do Direito, e a confuso ou camaradagem entre os ocupantesdos palcios e dos tribunais (que podem, inclusive, alternar suas po-sies conforme as convenincias do tempo) no assim acaso, masemerge diretamente do modo como funciona o Direito dentro (nos) da sociedade brasileira.19A configurao dos primeiros cursos tornou-se a matriz a partir

    da qual se estruturou a expanso posterior do ensino jurdico nopas.20As caractersticas da vida acadmica na Faculdade do Recifee no Largo de So Francisco, em So Paulo, e o programtico bara-lhamento entre o poltico e o jurdico que realizavam, influenciaramdecisivamente a forma como se estabeleceram e organizaram sub-sequentemente nossas faculdades de Direito. Ressalvadas diferen-as pontuais, todas incorporaram (ainda que em graus variados) o

    [sumrio]42

  • carter de lcus para a criao de redes sociais e polticas que semostraro indispensveis ao futuro jurista.Essa caracterstica repleta de consequncias. O desenvolvimen-

    to da capacidade de influncia poltica se torna, nesse contexto,mais imediatamente relevante que o desenvolvimento da capacida-de tcnica de exercer uma carreira jurdica. Esta hierarquizao no um capricho. Dadas as caractersticas do patrimonialismo brasi-leiro, o mais urgente era mesmo garantir, desde a faculdade, a apro-vao de quem controla a distribuio de cargos pblicos e o pres-tgio das bancas privadas. E isso se faz no jogo de trocas simblicasque no apenas independe do conhecimento tcnico, mas que podeser inviabilizado por uma nfase indevida nesse tipo de saber: nemsempre sbio trazer tona a questo do mrito profissional em so-ciedades que se esforam por disfarar o compadrio que lhes regeo funcionamento.21Nesse ambiente de juristas polticos, os colegas que insistem na

    importncia da qualificao tcnico-profissional so frequentemen-te alvo de zombaria ou desprezo. comum que sejam chamados pe-jorativamente de rbulas, estudantes obtusos que no percebem agrandeza da vocao humanista, em sentido amplo, dos cursos ju-rdicos. As confrarias de estudantes preocupados com as grandesquestes (entre as quais se encontra, muitas vezes, a prpria carreirapoltica), como a lendria Bucha do Largo de So Francisco, cons-troem seu prestgio, em larga medida, diferenciando-se dos inspi-dos colegas que confinam seus horizontes sala de aula.Essa valorizao secundria do conhecimento tcnico nos cursos

    de Direito no tem equivalente, ao menos no que tange sua inten-sidade, em outros cursos tambm frequentados pela elite, como Me-dicina ou Engenharia. Nesses cursos, o sucesso profissional est in-timamente ligado capacidade de demonstrar expertise na rea

    AindA precisAmos dA sAlA de AulA?

    [sumrio]43

  • Essa tErra dE doutor

    escolhida, embora, tambm aqui, haja vantagens em se contar como beneplcito do poder.No caso dos cursos de Direito, em razo das peculiaridades de

    origem j apontadas, amide possvel ao bacharel conseguir umaboa colocao, mesmo que ele disponha de um saber jurdico bastantedifano, desde que seu sobrenome ou contatos sociais sejam slidos.Ter comprovado potencial de influenciar o poder credencial maisimportante que o domnio da tcnica jurdica avaliao que, comoj se viu, pode perfeitamente fazer sentido para quem contrata.Dada essa dinmica formadora dos cursos jurdicos, no espanta,

    portanto, que neles o ptio ou o bar sejam, para os fins da consolidaodesse tipo de laos, locais muito mais adequados do que a sala de aula.Nem, surpreende, tampouco, que as disputas eleitorais por rgos derepresentao estudantil e os embates entre grupos polticos rivais,bem como as festas, os jogos e as penduras, tenham precedncia ab-soluta sobre as lies formais. A imagem dos acadmicos e poetas ro-mnticos do sculo XIX ainda inspira muitos jovens estudantes.Quando, com a multiplicao dos cursos jurdicos (proletarizao,

    no dizer de alguns), essa ligao com o poder se torna menos crvel oudireta, e o domnio do conhecimento tcnico passa a constituir veculopossvel para a ascenso social, a sala de aula alvo de outro tipo dedesqualificao: agora a defasagem crnica dos alunos o argumentoutilizado para dizer que so irrelevantes as lies. Alega-se que objetoda aula est to alm do que pode compreender essa nova massa deuniversitrios que faz pouco sentido insistir em que venham aula. Apartir dessa perspectiva, ganha flego a crena de que a nica soluo fechar em massa cursos que foram autorizados na mesma escala.A crena na importncia relativa ou secundria da sala de aula

    no se v apenas entre os alunos, claro, mas poder eventualmentese manifestar tambm entre os docentes. Haver talvez, na prtica

    [sumrio]44

  • quotidiana, ocasio em que a obrigao de ministrar as aulas seja trans-ferida de nvel em nvel, em uma escala descendente de prestgio: o ti-tular delega a aula ao assistente, que a transmite ao ps-graduando quea atribui ao graduado. Se isso de fato ocorrer, poder ser ndice de queo exerccio efetivo da docncia possa eventualmente no ser a priori-dade para docentes que, atribulados por mltiplos afazeres dentro efora da Universidade, o delegam a professores de menor projeo.Essa afirmao tcita do lugar perifrico da sala de aula faz sur-

    gir, entretanto, uma contradio que perpassa muitos dos discursosnos e sobre os cursos jurdicos: embora ocupe posio reconheci-damente secundria na economia das faculdades, a sala de aula nopode, contudo, ser completamente eliminada sem custos elevados.E isso no em razo da sua eficincia prtica, mas a seu valor sim-blico. O imaginrio social sobre o que constitua uma formaouniversitria, conforme se apontou acima, resiste ainda aboliodessa forma de ensino. Dizer faculdade continua a ser, prioritaria-mente, dizer local onde se ministram aulas. Os cursos podem terminoradas suas obrigaes de gerar pesquisa (dependendo do tipode organizao), mas ningum pode funcionar como Universidadese no oferecer aulas.A sala de aula continua a ser, malgrado suas mazelas, a corpori-

    ficao da ideia de espao de qualificao intelectual e profissionalque d validade social Universidade. O bacharel pode (deve), cer-tamente, fazer poltica, desenvolver laos, construir redes, mas,tambm para isso, necessrio que siga sendo um bacharel, isto ,que atenda s solicitaes formais da instituio de ensino em queest matriculado.Esse descompasso entre estrutura acadmica e funcionamento so-

    cial dos cursos jurdicos se complica e se compe com os descompas-sos entre a noo moderna de cincia e as diferentes noes do Direito

    AindA precisAmos dA sAlA de AulA?

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  • ESSA TERRA DE DOuTOR

    como cincia. Enquanto os cursos cujos objetos se estruturam maisdiretamente em linha com os pressupostos da cincia moderna (aBiologia ou a Qumica, por exemplo) tm como objetivo formar umegresso cujo agir profissional exigir impessoalidade, neutralidadee objetividade etc., a formao poltico-jurdica dos cursos de Di-reito demanda que os bacharis sejam capazes de manejar, com efi-ccia, justamente aquelas situaes que so organizadas segundo algica da pessoalidade, do interesse e da subjetividade.

    O sucesso profissional, em um e outro campo, depende em largamedida do desenvolvimento de habilidades antagnicas. Essa pe-culiaridade da formao jurdica, mesmo dentro do mbito das Hu-manidades, e os desafios que ela traz para docentes e discentes sodescritos por Anthony Kronman (1993, p. 264-265) como uma di-viso patolgica:

    Em um importante aspecto, a situao do professor de Direitodifere daquela dos docentes de nvel superior em muitasoutras disciplinas. A pessoa que leciona para estudantes deHistria ou Filosofia, por exemplo, prepara-os para uma vidasemelhante sua prpria uma vida universitria dedicada,em grande parte, pesquisa acadmica e escrita. [] Mas o objetivo do ensino do Direito no preparar os estudantespara a participao na mesma comunidade [acadmica]. Ameta equip-los no para uma vida essencialmente similar do professor, mas para uma vida de carter diverso, deimplicaes prticas, que requer habilidades diferentes daquelasde que um acadmico precisa. [] Assim, h uma diviso de fato, uma tenso entre os objetivos da academia jurdica e as exigncias do ensino do Direito que no encontra paraleloem disciplinas como Histria e Filosofia. 22

    [sumrio]46

  • No cabe nos limites estreitos desta obra elencar aqui as impor-tantes controvrsias sobre a natureza do Direito enquanto cincia,nem adentrar o interessante debate sobre se e qual tipo de positivis-mo d forma a nossa academia, embora sejam ambos os temas ab-solutamente relevantes para o campo mais amplo em que se inserea presente reflexo (FARIA, 1987). Mas importa observar que essaspeculiaridades impactam tambm a forma (sobretudo defensiva)como os cursos jurdicos respondem proliferao das novas tec-nologias de ensino e no s no Brasil:

    O aprendizado a distncia cada vez mais se torna umaimportante metodologia de ensino para milhes de estudantes.Essa modalidade de ensino capaz de alterar o lugar, o tempo e o mtodo de aprendizado, oferecendo numerosos benefciostanto para professores quanto para alunos. Alm disso, oaprendizado a distncia cria oportunidades para a colaboraoentre instituies educacionais, e novos meios para que seestenda o alcance das estruturas existentes. O ensino do Direito,no entanto, segue um modelo existente h dcadas. A recusaem aceitar um uso mais amplo do aprendizado a distncia naeducao jurdica desanima alguns dos envolvidos na reformado ensino do Direito. Mas o cenrio geral sugere que a educaojurdica, no obstante seu conservadorismo, e no obstante aresistncia das elites arraigadas, deve (e em algum momento ir)aceitar o aprendizado a distncia. (BENNETT, 2014, p. 2) 23

    Alm disso, a composio entre noes modernas de Universi-dade e a dinmica de funcionamento dos cursos jurdicos brasileirosacaba por ficar um pouco desconjuntada e por dar ensejo a que surja,em seu interior, uma mistura peculiar de dois tipos de prestgio: o

    AindA precisAmos dA sAlA de AulA?

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  • ESSA TERRA DE DOuTOR

    cientfico e o poltico-social. Derivando, em tese, de mritos de na-tureza absolutamente diversa, esses dois tipos de prestgio se fun-dem e se confundem sem qualquer sobressalto na prtica mais cor-rente das faculdades de Direito.

    Nos cursos jurdicos, o prestgio dos docentes frequentemente secompe de um hbrido de seus talentos como intelectual e de seus ta-lentos como ator poltico, em sentido amplo. Os debates sobre o tipoideal de professor revelam a presena dessa tenso: o melhor docenteser o professor em tempo integral que renunciou prtica de outraprofisso jurdica que no a da docncia? Ser o advogado, juiz oudesembargador que, contando com larga experincia prtica e eleva-da reputao no meio jurdico, sacrificou, no entanto, o aprofunda-mento na pesquisa acadmica? Ser, ainda, a figura proeminente nomeio jurdico nacional, familiarizada com os meandros das altas es-feras do poder que, tendo se retirado da vida pblica, pode enriqueceros alunos com o relato de seu percurso?

    Decidir sobre um ou outro tipo, ou pela proporo ideal de cadaum deles dentro da instituio, implica posicionar-se sobre o que ca-racteriza o saber jurdico, sobre os espaos em que ele se constri esobre a hierarquia entre tais espaos no processo de ensino. Emboraa teoria oferea uma pluralidade de respostas para a primeira dessasperguntas, a prtica dominante tende a escamotear o debate sobre asduas ltimas ao propor, simultaneamente, que a sala de aula im-portante, mas que sua frequncia pelos alunos deva ser opcional. Oargumento, simptico na superfcie (quem h de ser contra a liber-dade de escolha?), tem inquietantes implicaes prticas e tericas.O argumento pode ser mais claramente apresentado a partir da dis-cusso sobre o emocionante duelo entre os grandes-mestres BorisSpassky e Bobby Fisher.24

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  • 7.O EnxADRISTA SOLITRIO

    Em 1972, a final do campeonato mundial de xadrez ganhouateno sem precedentes do pblico e da mdia. O embateentre o russo Boris Spassky, que defendia o ttulo, e o desa-fiante Bobby Fischer, dos Estados Unidos passou a ser visto por boaparte da opinio pblica (e mesmo dos governos) como uma snteseda luta ideolgica e da competio por hegemonia poltica, econ-mica e militar a que geralmente se chama de Guerra Fria. Vencerera uma questo de honra para os dois lados.

    Aps ter sido derrotado na primeira partida, Fischer (que viria avencer o certame) reclamou que as cmeras de televiso atrapalha-vam sua concentrao e exigiu que fossem retiradas. Como teve seupedido negado pelos organizadores, ele simplesmente no apareceupara jogar o segundo encontro. Fisher foi imediatamente declaradoperdedor por W.O.

    Imaginemos que algum, pouco afeito dinmica do xadrez, per-guntasse a essa altura: mas s porque um dos jogadores no com-pareceu no houve partida? Ser que o Spassky no poderia jogarsozinho? Talvez a ausncia do oponente at o ajudasse a fazer jo-gadas mais mirabolantes, lances mais geniais. Afinal, as peas es-tavam todas l, o tabuleiro tambm e Spassky conhecia todas as re-gras, tradies e teorias relevantes para o jogo. Por que dar tantaimportncia ausncia de um dos contendores se o outro estava l?

    Essas perguntas parecem ingnuas ou estapafrdias para aquelesfamiliarizados com esse esporte porque eles sabem que o jogo dexadrez um jogo relacional, isto , ele necessita, para sua existn-cia, da presena de dois jogadores.25 Isso porque a partida s pode

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  • O EnxADRISTA SOLITRIO

    se desenvolver de maneira dialgica, ou seja, o lance posterior temcomo condio necessria o lance anterior da outra parte. Vale dizer,o jogo de xadrez uma criao coletiva.26

    Por isso, no possvel dizer que, nesse jogo, a presena do opo-nente desejvel, mas no obrigatria, que melhor que ele no vse no estiver motivado ou interessado. Se ele no estiver presente, simplesmente impossvel que o jogo acontea, ainda mesmo queseu adversrio seja absolutamente talentoso e brilhante, e que estejamuito disposto a jogar.27

    Tampouco possvel que um enxadrista contrariado se sente frente do tabuleiro e fique olhando para cima ou para a tela do com-putador, conferindo as palpitantes novidades do Facebook. Se eleno estiver ativamente engajado, se ele no se relacionar com ooutro, o jogo no se realiza. Participar no uma opo: uma con-dio necessria para que o jogo de xadrez possa existir.

    Portanto, se algum se define como enxadrista est necessaria-mente se definindo como algum que se engaja em uma atividaderelacional. O termo significa aquele que se dedica ao jogo de xadreze o jogo de xadrez se define como um jogo em que dois oponentesmovem suas pedras alternadamente com o objetivo de capturar orei adversrio. O compromisso de colaborao ativa e permanentena construo do jogo comum condio sine qua non para que al-gum possa ser efetivamente um enxadrista. Dito de outra forma:no possvel dissociar a noo de reciprocidade ativa da noo deenxadrista.

    Esse tipo de contradio em termos (jogador que no joga), entre-tanto, tem curso tranquilo em nosso tempo e emerge muitas vezes comfora de verdade no discurso do quotidiano. Ouvimos com frequn-cia, por exemplo, algum se apresentar como um cidado que exercepacificamente seus direitos mas que se declara, simultaneamente,

    [sumrio]50

  • desvinculado de qualquer comunidade poltica, como se isso fossepossvel, isto , como se as categorias cidado e direitos no exigissemnecessariamente, para fazer sentido, a pertena a um corpo poltico.

    Essa crena de que a contribuio de cada um ao coletivo fa-cultativa ou opcional uma das caractersticas daquilo que AlainTouraine (1992) caracteriza como sociedade de indivduos. Nessasociedade, se uma ao no faz sentido para o sujeito, ele se sentedesobrigado a realiz-la. A sociedade de indivduos tem enorme di-ficuldade em admitir que algum possa ter de submeter seus senti-mentos e convenincias individuais a qualquer outro valor.

    No campo da educao (em que tm curso corriqueiro expressescomo estudante que no estuda, professor que no leciona, escolaque no forma), isso se traduz na crena de que descabido ou ile-gtimo exigir ou controlar a presena em sala de aula. Envolto nesseargumento de liberdade individual (desvinculada de responsabili-dade pelo desenvolvimento da aula) est o entendimento de queesta no um objeto dialgico, construdo coletivamente por alunose professores. melhor que o aluno no v mesmo, se no estiver com vontade

    de participar, um argumento bastante corrente em defesa da pre-sena opcional. De que adianta ele ir e ficar ali apenas fisicamente,desenvolvendo atividades que nada tm a ver com a aula?. Para queesse argumento faa sentido, entretanto, preciso que seja possvelestar em aula sem participar. Se na prtica quotidiana isso poss-vel, se a interao e a troca entre os colegas e o professor so deta-lhes cuja realizao depende do apetite de cada indivduo, ento nomesmo h por que exigir presena a ningum. Mas fica tambm di-fcil justificar a existncia da sala de aula.

    Em paralelo ao argumento da liberdade, aqui parece se insinuartambm uma leitura absolutamente individualista da formao. Est

    AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?

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  • O EnxADRISTA SOLITRIO

    nas mos do aluno decidir se quer ou no se empenhar no processode prprio desenvolvimento porque se acredita que, no fim, ser eleo prejudicado, e mais ningum. A relevncia social da formao ficabastante obscurecida nesse entendimento do espao universitrio.Ele parece ser visto aqui, prioritariamente, como uma plataformade lanamento de carreiras profissionais cujo objetivo permitir aoeducando melhores condies de vida no futuro. As propagandasdas instituies, que frequentemente assumem o tom invista emvoc para angariar alunos, sugere o quanto tem avanado essa pers-pectiva do Voc S.A., que v o aluno como algum interessado so-bretudo no prprio bem-estar.

    Richard Sennett (1976, p. 325-326) chamar de narcisismo essetipo de percepo que entende ser legtimo ou mesmo imprescind-vel fazer prevalecer o individual sobre o coletivo:

    O ego formado nesses termos passa a se identificar com ahistria da personalidade e da cultura que nos diz respeito;trata-se de um ego para quem os limites do sentido se estendemapenas at aquilo que o espelho pode refletir; medida que o reflexo esmorece e que relaes impessoais se iniciam,encerra-se o sentido. [] O que estou realmente sentindo? torna-se uma pergunta que, nesse perfil de personalidade,gradualmente se destaca e assume precedncia sobre a perguntaO que estou fazendo? [] A partilha de impulsos, em vezdo engajamento em atividades comunais, passou a definirum peculiar senso de comunidade no final do sculo passado[XIX], e agora se atrela localizao da comunidade demodo que a partilha ocorre apenas conforme o reflexo doespelho do ego.28

    [sumrio]52

  • O sentido das prticas coletivas torna-se, nesse contexto, depen-dente do significado que tais prticas assumam para cada indivduoenvolvido. Essa legitimao a partir dos sentimentos individuaisvai se tornando caracterstica dos novos tempos no apenas nomodo de entender a Universidade (no legtimo exigir que algumesteja em sala se no est disposto a faz-lo), mas tambm na formade se pensar a vida poltica como um todo.

    Em Critique de la Modernit, Alain Touraine (1992, p. 298-299)indica que h razes profundas para essa prtica de se negar legitimi-dade aos discursos que postulam existir obrigaes para o sujeito queestariam fundadas em sua eventual responsabilidade para com o co-letivo e no em sua capacidade de signific-las biograficamente:

    Hoje, a ideia de modernidade associada, mais do que aoimprio da razo, libertao de desejos e satisfao dedemandas. Essa rejeio das amarras coletivas, das proibiesreligiosas, polticas ou familiares, a liberdade de locomoo,de opinio e de expresso so demandas fundamentais querejeitam, sob a pecha de obsoletas ou mesmo reacionrias,todas as formas de organizao social e cultural que dificultama liberdade de escolha e de comportamento. Um modelo liberalsubstituiu um modelo tcnico e mobilizador. Em particular, as imagens da juventude so em sua maior parte imagens delibertao dos desejos e dos sentimentos. Esse liberalismodefine o sujeito assim como a democracia de maneiranegativa, atravs da rejeio daquilo que obstaculiza aliberdade individual e coletiva. 29

    Espao de formao tanto da juventude como de ideias de demo-cracia, a Universidade estratgica para a naturalizao ou crtica

    AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?

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  • O EnxADRISTA SOLITRIO

    desse entendimento especfico de indivduo e de liberdade. Por isso,assumir como ideologicamente neutra qualquer postura em relao sala de aula deixar de esclarecer as razes para escolhas pedag-gicas com profundas implicaes polticas.

    A apresentao dessas escolhas como menores ou irrelevantesmantm na penumbra uma srie de questes que mereceriam umaponderao mais cuidadosa: o estudante da universidade pblica,por exemplo, que tem seus estudos financiados por toda a socieda-de, pode mesmo, sem maiores justificativas, descuidar de sua qua-lificao porque tem outros interesses, mais urgentes, a que se de-dicar? Essa uma forma legtima de se ocupar uma vaga para a qualhouve intensa competio? O estudante da instituio privada, mui-tas vezes tambm beneficiado, direta ou indiretamente, pelos recur-sos produzidos por todos, pode entender que sua capacitao algoque interessa s a ele e a mais ningum?

    Assim, h perigo de que uma postura aparentemente liberal (oindivduo deve poder fazer o que quer) possa ter como desdobra-mento inesperado a consolidao, na prtica, de um certo descom-promisso coletivo com o impacto real que as instituies de ensinosuperior tm sobre a sociedade. Por isso, o docente que opta por noaferir a competncia efetiva daqueles que supostamente deveria qua-lificar no est adotando uma postura politicamente neutra, mascomprometendo-se com um tipo de leitura poltica da Universidade.

    Se certo que a vida ensina, no menos verdade que a faculdadeque certifica. E se aqueles que ela certifica no dispem das habilidadesque deveriam ter, ento caber ao todo da sociedade arcar com o nusde egressos mal formados. O custo de aprenderem na prtica o quedeveriam ter aprendido na Universidade transferido para o coletivo.

    O carter residual ou acessrio do aluno na construo desse tipode dinmica de aula se torna mais claro se invertermos o argumento

    [sumrio]54

  • da necessidade da presena. No ocorre a ningum sustentar que apresena do professor em sala de aula desejvel, mas no indispen-svel (ao menos na teoria). Sem o docente (seja qual deles for), aaula no acontece, argumenta-se, sem que se veja nisso incompati-bilidade com a alegao do carter opcional da presena discente.

    E, de fato, dentro dessa perspectiva de transmisso de um objetoque existe anteriormente e independente a seu contexto de exposi-o, a ausncia de pblico em nada afeta a construo do argumento,uma vez que essa se estrutura a partir da lgica interna ao objeto deconhecimento, no a partir da lgica relacional do espao de sala.

    Segundo esse entendimento, como j se indicou acima, a aula um produto da atividade do professor a que o aluno tem acesso, umaexteriorizao da atividade intelectual do docente a qual o discpulotestemunha.30 O objeto aula fruto de um trabalho autoral singular,no uma obra coletiva.

    Associada a essa perspectiva est a ideia de que o aluno ir aulase o professor for um expositor interessante, isto , a ideia de que aulasconcorridas so resultado e ndice da qualidade do professor que asministra. Tambm essa leitura do prestgio pessoal como razo paraa presena supe para o discente uma responsabilidade bastantesecundria.

    Para exercer esse papel residual que lhe atribudo, papel que noafeta substancialmente o objeto da palestra, no mesmo imperativoque o aluno esteja fisicamente presente na sala de aula. Se, ao final,ele demonstrar, provar que dominou o objeto nos termos supostospelo mestre e em grau mnimo de suficincia, ento sua presena naslies absolutamente indiferente, pelo menos do ponto de vista dequem ensina e certifica.

    Alm disso, como j se notou, essa liberdade se coaduna bem coma noo de autonomia que estrutura nossa viso do aluno universitrio

    AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?

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  • O EnxADRISTA SOLITRIO

    (j grandinho; tem que saber o que faz; deve aprender a arcarcom as consequncias etc.); com o tipo narcsico de identidade(SENNETT, 1976) e a natureza do individualismo (TOURAINE,1992) que surgem como caractersticos de nosso tempo.

    Importa observar, entretanto, que a autonomia de que se trataaqui comportamental, no intelectual. O docente no abraa aideia de presena opcional do aluno porque acredita que este jtenha apreendido aquilo que ele apresentar em sala, mas porqueentende no ser de sua responsabilidade verificar se esta apreensoocorre ou no. Seu compromisso apresentar a aula, que obra sua,e isso pode ocorrer quer haja pblico presente, quer no. Talvez al-guns de ns tenhamos lembrana de cursos inteiros ministrados ape-nas para uma modesta frao dos alunos inscritos sem que isso in-comodasse quer ao docente, quer aos colegas. Nesses casos, o nicomomento de presena indispensvel (e de salas cheias) , significa-tivamente, o da aplicao da prova.31

    O argumento de que o aluno deve ir se e quando quiser se ancora,assim, em uma noo tradicional de autonomia como autodetermi-nao individual, que, em nossos dias, vai sendo radicalizada porsua associao aos modos das relaes de consumo que, possvelsugerir, se tornaram matriciais para as trocas sociais em boa partedo Ocidente.32 O aluno est pagando pela aula, que vista ora comoproduto, ora como servio oferecido regularmente; como consumi-dor, ele tem o direito de utilizar ou no o produto ou servio peloqual pagou.

    Sua deciso, como deciso de consumo, essencialmente indi-vidual e nos lembra como so profundas as implicaes de passar-mos de uma sociedade de produtores (que se articulava em espaoscoletivos) para uma sociedade de consumidores (que se fragmentaem individualidades absolutas). Bauman (2007, p. 61) prope que

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  • o cidado dessa nova sociedade de consumidores o homo eligens,isto , o indivduo que pode perpetuamente fazer, revogar e alterarescolhas baseado unicamente em seus prprios interesses.

    No mbito dos cursos jurdicos, a figura do que se poderia chamarde alumnus eligens se adensa merc de sua insero em uma culturabacharelesca que tradicionalmente entende a Universidade como es-pao prioritariamente de networking. Para essa cultura, como seapontou acima, a sala de aula se torna secundria aos ambientes decamaradagem, como os cafs e os bares, em que se alinhavam cone-xes polticas e sociais.33

    Mas, se isso verdade, cabe indagar: ainda precisamos da sala deaula? Ser mesmo necessria a presena fsica dos alunos no mesmoespao, simultaneamente, quando muitas das razes que a exigiamdesapareceram por fora das novas tecnologias? Se possvel trans-mitir a palestra do professor, por uma variedade enorme de mdias,para qualquer nmero de alunos que se deseje, e se esta palestra ,tudo somado, o corao do que ocorre em sala de aula, porque exigirque alunos e docentes, com os considerveis custos e inconvenientesassociados ao deslocamento em nossos dias (morosidade do trnsito,dificuldades de transporte, riscos segurana etc.), tenham ainda dese encontrar na sala de aula e no no cyberspace?

    As razes para a insistncia nesse formato tradicional de trans-misso se tornam ainda mais minguadas quando se observa que atecnologia hoje permite mltiplas formas de interao em tempo realque do perfeitamente conta dos papis desempenhados pelos alunosnessa perspectiva tradicional de ensino (perguntar, anotar etc.). Almdo mais, essa mesma tecnologia permite que cada aluno reveja, se-gundo sua convenincia e comodidade, a palestra apresentada, quiacelerando os trechos em que encontrar mais facilidades e repassan-do aqueles que lhe parecerem mais obscuros.

    AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?

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  • O EnxADRISTA SOLITRIO

    Enfraquece ainda mais o argumento em favor da manuteno dasala de aula como lcus privilegiado de ensino a crena hegemnicade que as disciplinas so, sobretudo, um conjunto de informaesou repertrio conceitual bem organizado. H apenas algumas dca-das, este era um motivo que, por si s, emprestava alguma legitimi-dade aula presencial. Como as fontes de informao, antes da dis-seminao planetria da internet, eram exponencialmente maisreduzidas do que hoje, fazia sentido ir faculdade para copiar a ma-tria da lousa. As informaes sintetizadas ali demandariam um pe-noso trabalho de pesquisa com razoveis possibilidades de fracasso:apenas os mais jovens no se lembraro das dificuldades de ter aces-so a livros e journals importados (e mesmo nacionais) h apenas al-gumas dcadas, e da dificuldade de se obter mesmo documentosbastante corriqueiros.

    Para ilustrar com um exemplo: a busca pelo Regimento Interno doSenado Federal e Congresso Nacional demora hoje, literalmente,uma frao de segundo nos sites de busca da internet. No h muito,a busca a documento semelhante poderia facilmente exigir uma via-gem at Braslia. Se a transmisso da informao o elemento quedefine a dinmica de sala de aula, difcil justific-la hoje. Basta,como dizem os alunos, que o professor lhes envie por e-mail a apre-sentao em Power Point que ele planejara ler em voz alta durante oencontro, ou que grave em vdeo sua exposio e a envie em um linkpara todo o grupo.

    Assim, a combinao entre a crena moderna na relao objeto-su-jeito no processo de conhecimento, a perspectiva de ensino que deladeriva, a noo de autonomia que a ela se associa e as possibilidadesoriundas das novas tecnologias parecem sugerir, quando vistas emconjunto, que existem hoje poucos argumentos slidos para responderafirmativamente pergunta ainda precisamos da sala de aula?

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  • O fato de que, na prtica, um nmero expressivo de professoresno exija a frequncia em sala (por no fazerem chamada ou por cir-cularem listas de presena sem controle de quem assina), e de que boaparte dos alunos decida eximir-se de comparecer s aulas, aprovei-tando-se da possibilidade de ter registrada a presena quando estoausentes (muitos bacharis talvez pudessem contar histrias instru-tivas a respeito), refora, ainda mais, a ideia de que a sala de aula pas-sou a desempenhar papel to secundrio na formao dos educandosque deveria talvez desaparecer, ao menos como espao prioritriopara o ensino. A concluso talvez seja outra, entretanto, se outro foro entendimento da funo da sala de aula na Universidade.

    AINDA PRECISAMOS DA SALA DE AULA?

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  • 8.TECEnDO A mAnh

    Um galo sozinho no tece uma manh: ele precisar sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galosque com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo,para que a manh, desde uma teia tnue, se v tecendo, entre todos os galos.

    (MELO NETO, 2008)34

    Abeleza da poesia de Joo Cabral de Melo Neto nos ajuda aimaginar outros sentidos para nossas aes e nossos espa-os coletivos, dentro e fora da Universidade. Ela nos pro-pe contemplar a possibilidade de criao de objetos sempre novos( preciso, a cada dia, tecer a manh), uma tarefa (pois a manh nose faz por si s) que no pode, por sua natureza, ser realizada apenaspor um indivduo (para que a manh nasa, preciso que um apanheesse grito e o lance a outro).

    A sempre renovada originalidade do objeto, sua provisoriedadeconstitutiva e seu carter de criao coletiva se contrapem, emlarga medida, s premissas modernas de relao sujeito-mundo queestivemos examinando at aqui. Transportadas para o mbito da

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  • TECEnDO A mAnh

    educao universitria, elas podem sugerir outros modos de significaro processo de ensino-aprendizagem, em geral, e a sala de aula, emparticular. Vale a pena, portanto, tentar esmiuar um pouco mais a in-tuio que o poema expressa de forma sinttica empreitada que nose pode levar a efeito sem que se enfrentem algumas dificuldades.

    A primeira dessas dificuldades a de entender em que sentido umgalo tece a manh. Com toda a certeza, o poeta no est querendosugerir que, na ausncia de galos madrugadores, o sol deixaria desurgir no horizonte. Mesmo um poeta sabe que o movimento dos as-tros no depende em nada do que todos os galos do mundo possamfazer ou deixar de fazer aqui embaixo. Portanto, se o nascer do sol um fato objetivo e se, ainda assim, o poema indica a necessidade detecer a manh, preciso supor que as duas situaes, embora idn-ticas na superfcie (o nascer do sol, a tessitura da manh), apresentemdiferenas entre si. possvel sugerir que essas diferenas derivem,ao menos em parte, do intervalo que se interpe entre um objeto eseu significado para o sujeito que o contempla ou vivencia.

    Vale dizer que, desde esse ponto de vista, a ideia de manh se ar-ticula, mas no se restringe, ao fenmeno fsico a que est, contudo,associada. O dilogo das vozes individuais vai estabelecendo umateia tnue cujo significado, para os sujeitos envolvidos, ultrapass