Águas de ninguém: viagem à porção mineira do rio são francisco

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Bárbara ‘ | Felipe Chimicatti | Tarsila Costa ÁGUAS DE NINGUÉM Viagem à porção mineira do rio São Francisco

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Viagem jornalística ao Rio são Francisco

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Page 1: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

Bárbara ‘ | Felipe Chimicatti | Tarsila Costa

Á g u a s d e N i N g u é mViagem à porção mineira do rio são Francisco

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AgrAdecimentos

As prefeituras das cidades de Três Marias, Andrequicé, Pirapora,

São Romão, Januária, São João das Missões e Matias Cardoso visi-

tadas durante pesquisa de campo, no mês de julho de 2009. As in-

formações, os atendimentos e encaminhamentos prestados foram

de grande valia.Aos entrevistados de cada uma destas localidades

- anônimos e populares da comunidade ribeirinha do rio São Fran-

cisco -, que nos proveram com relatos e depoimentos ímpares que

determinaram o teor crítico das narrativas elaboradas nas grandes-

reportagens do livro.

A Rafael Bottaro que nos acompanhou durante pesquisa de campo

para auxiliar nos trabalhos técnicos. Mais do que isso, sua compa-

nhia foi crucial para equilíbrio do grupo em vários momentos da

viagem.

A Rafael Chimicatti que assumiu o projeto gráfico do livro e a quem

devemos seu formato e configuração.

E, principalmente, ao rio, este vigoroso corpo d’água brasileiro.

PRODUÇÃO EDITORIAL

AUTOREs E ORgAnIzADOREsBárbara CamargoFelipe Chimicatti

Tarsila Costa

LEITURA E REvIsÃO DE TExTOAurélio José da silva

PRODUÇÃO gRÁFICA

PROJETO gRÁFICO

Rafael Chimicatti

ImAgEnsFelipe Chimicatti

Page 5: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

sumário

PREFÁCIO 7

CAPÍTULO 1: O RIO SÃO FRANCISCO 9

O fascínio que as águas causaram 10

A geopolítica do São Francisco 12

O tráfico negreiro no vale, os períodos de isolamento e as barragens 13

CAPÍTULO 2: TRÊS MARIAS: AQUI O RIO CORRE GORDO, REPRESADO 15

Três Marias: aqui o rio corre gordo, represado 17

As dores do São Francisco na ótica de um dos pescadores: o seu Norberto 19

A pesca em Três Marias 25

Dos peixes e dos limites legais da pesca passando por lagoas marginais 28

Andrequicé e a confluência sertão, literatura: Manuel Nardi e João Guimarães Rosa 29

CAPÍTULO 3: PIRAPORA: TERMINAL SUL DA HIDROVIA SÃO FRANCISCO 33

Aportando em Pirapora 34

12 de julho, um passeio pela navegação 37

O processo de implantação dos vapores 42

Um país de rios não melhorados 44

O rio hoje: Solidão 46

Intervalo 49

Lourdes Barroso e os Franciscos 50

CAPÍTULO 4: BARRA DO GUACUÍ: O ENCONTRO DAS ÁGUAS E A HISTÓRIA PERDIDA 59

Falta de culto ao passado 61

A frugal história de ocupação de Barra do Guacuí 61

Ruínas ao léu 64

Um ponto de dois rios 68

Page 6: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

CAPÍTULO 5: SÃO ROMÃO: PERCEPÇÕES DISTANCIADAS DE UMA CIDADE À BEIRA-RIO 73

São Romão: percepções distanciadas de uma cidade à beira-rio 75

O patrimônio histórico ou a falta que ele faz 77

Os batuques que guardam história 79

CAPÍTULO 6: JANUÁRIA : OUTRAS HISTÓRIAS ALÉM DA BOA E VELHA CACHAÇA 87

Antes de Januária, Brejo do Amparo 88

O despontar de Januária até o ciclo da aguardente 88

A transformação da cachaça, curtida nas dornas de umburana 92

A rapadura e arte de sobreviver dela 94

A utopia da modernidade que varreu memórias de Januária 97

A Velha Januária e o rio de São Francisco, segundo Dona Maria e Senhor Binu 100

Patrimônio e identidade: o norte de Minas precisa disso 102

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário: outro emblema de abandono 103

CAPÍTULO 7: SÃO JOÃO DAS MISSÕES: RESISTÊNCIA E LUTA xACRIABÁ 107

O pó da terra vermelha são eles: Os xacriabá 109

O índio do sertão 109

A apresentação do cerrado e os xacriabá 112

Patrimônio Xacriabá 114

Os brasis que não vemos, e o sertão que temos 116

As Histórias sobre as terras Xacriabá não passaram na novela das oito 118

CAPÍTULO 8: MATIAS CARDOSO E O DELUBRUM MIRAE MAGNITUDINIS 123

Falta de reminiscência: a justificável borda do Estado 126

A Igreja de Nossa Senhora da Conceição: a primeira do Estado a se erigir e possivelmente a próxima a ruir 132

Agricultura em meio à seca: uma das proporções do Projeto Jaíba 135

REFERÊNCIAS 139 e 140

Page 7: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

7

Prefácio

O rio São Francisco é maior que qualquer pretensão científica.

A ribeira é larga, as crenças que permeiam, de tão largas, sobre-

nadam o imaginário humano. Chegar às margens do Velho Chico

e ver a mitologia sertaneja não é coisa de cabloco sem instrução:

acreditar nos causos é enfática sabedoria – seja por parte de quem

for -, é o rio que conta suas estórias, é dele a voz premente que

entoa a melodia das mais inauditas crenças – inauditas por não se

fazerem questionar. Assistir uma senhora negra, efusiva, legítima,

de 90 anos descrever meticulosamente o cabloco d’água, trans-

forma-o em realidade, dá-lhe a carapaça que o sustenta enquanto

lógica. Não é necessário recorrer a qualquer descrição naturalista

de século xIx ou a nenhum compêndio das ciências naturais para

saber que ele existe; existe e existe mais que qualquer engenhoca

projetada por nosso racionalismo decadente.

Quando partimos, no mês de julho, para uma viagem de campo

que se baseava em investigação, pesquisa, entrevistas e registros

fotográficos, tínhamos a menor das idéias do que se desvelaria.

A primeira cidade ribeirinha – Três Marias – já carregava a intensa

correlação homem-rio: Não há maneira de separar os homens do

fascinante correr das águas de um rio que corta cinco Estados. O

nosso escopo primeiro era, sim, a degradação ambiental do rio

São Francisco no decorrer de todos os anos, desde a chegada lusa

à costa brasileira. Não obstante, falaríamos também da relação

mítica que entorna tal degradação. A idéia inicial, meio que dissol-

vida nas águas calmas e turvas do Velho e gracioso Chico – o Opará,

em Tupi-Guarani: rio-mar –, foi entoada pela idéia oposta: a partir

da cultura foi possível falar da degradação, e não o oposto. O rio

São Francisco é maior que qualquer pretensão científica. Parece

que o rio-mar dos indígenas que, com sua língua, consegue lidar

mais legitimamente com a natureza, não guarda só investigação,

pois somos mais investigados por ele que o contrário. As mudan-

ças na perspectiva de mundo são notórias em menor viagem pelo

curso do Velho Chico: o retorno à rotina é diverso depois de co-

nhecer tamanha estrutura natural; os olhos passam a ver a vida de

outra maneira, inadvertidamente.

A concepção do livro

O aflorar do projeto nasceu a partir de uma tentativa jornalís-

tica de explorar o Vale de São Francisco em sua porção mineira.

Como não poderia deixar de ser, optamos pela viagem de campo

com duração de um mês, mais por uma tentativa vivaz de perce-

ber as imediações humanas do rio. Foi Cabral, no entanto, que nos

deu acesso à importância hidrográfica de nosso país com seu es-

sencial poema O Cão Sem Plumas no qual o eu – lírico – em uma

quebra acidental na narrativa poética brasileira – é o próprio rio

Capibaribe. O rio narra suas aventuranças pelo sertão nordestino

até desaguar no mar; o rio trovador; o rio que prescruta, o rio que

é metáfora visceral de nós mesmos:

A cidade é passada pelo rio

como uma rua

é passada por um cachorro;

uma fruta

por uma espada.

A cidade que passa, embora seja feita de matizes de amor

de ribeira, é que também lhe corroí. São as cidades que dão ao

nosso rio sumariamente brasileiro a parcela forte de poluição, de

assoreamento, de desdém inveterado: “A cidade que é passada

Page 8: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

8

pelo rio” lhe atravessa também como espada... Desta conclusão

poética – em conformidade à necessidade das águas, sobretudo

àqueles que com ela convivem -, é fato maior das cidades ribeiri-

nhas. Todos os ribeirinhos, sem qualquer exceção que seja, inda-

gados sobre o rio noutros tempos, lamenta-se. Ali corriam vigoro-

sas correntes de água, hoje enormemente comprometidas pelas

cidades. O afluente que carrega a poluição belo-horizontina, por

exemplo, é o principal poluidor do Velho Chico: o rio das Velhas

transporta o esgoto industrial para o oceano, agora, triste é ver o

encontro do Chico com o Velhas: os rios se machucam em razão

de quem dele tanto necessita: nós mesmos.

Outro ponto que determinou a escolha de rio São Francisco

como objeto de estudo e, por conseguinte, de fascínio, foi o tão

discutido projeto de transposição de suas águas. Apesar de nada

abordarmos acerca da temática que, realmente se envereda por

uma discussão demasiadamente técnica, foi a partir dela que pas-

samos a nos interessar pelo São Francisco. Estudamos o seu cur-

so, entendemos melhor suas articulações, bebemos na história de

seus relatos. “O rio sem história” de Capistrano de Abreu – grande

historiador brasileiro – é deveras um rio sem história formal: os

documentos, em grande medida, inexistem. Agora, sua história

vive impetuosa na arquitetura, na oralidade, nos prosaicos ver-

sos cotidianos de cada senhora que lava sua roupa há anos nas

correntes, embora a escassez documental ainda deixe uma tris-

te herança do descaso da coroa para com a atividade agropasto-

ril – predominante no norte de Minas. Reportamo-nos ao norte

mineiro, obviamente, pois nosso relato se interrompe em Matias

Cardoso.

As descobertas que o rio proporciona tangem para além de

conhecimentos técnicos ou científicos; são de ordem existencial,

e, apesar de todo o projeto ter partido da iniciativa pessoal, sem

sequer algum auxílio monetário, os ganhos ficarão para toda a

vida, marcados pelo incessante ricochetear das águas de um rio

que não para de correr dentro de cada um de nós.

Bárbara Camargo, Felipe Chimicatti, Tarsila Costa

Belo Horizonte, 2009

Page 9: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

9

o rio são frAncisco

Euclides da Cunha gostava de atribuir ao rio São Francisco o

cárater formador do país. Chegou a afirmar ser “o cerne vigoroso

de nossa nacionalidade”. Vicente Licínio Cardoso – proeminen-

te intelectual e historiador brasileiro – referia-se ao Velho Chico

como a grande “estrada natural interior”, ou, ainda como gos-

tava de propor, “o tablado geográfico brasileiro”. Capistrano de

Abreu, meticuloso historiador dado à etnografia e a linguísta, já

dizia não haver fio de Ariadne comparável ao Rio.

Em 1501, as naus de Américo Vespúcio se defrontavam com o

suntuoso rio, nomeado pelos portugueses como Rio São Francisco

em razão da data de descobrimento – 04/10 - coincidir com o dia do

Santo de nome homônimo. Obviamente, o nome indígena do mes-

mo rio não permaneceu: o rio Opará (em Tupi-Guarani Rio-Mar)

hoje figura somente na literatura de resistência, relembrando que

nessa época outros povos já haviam descoberto o Brasil há muito.

Entretanto, não tardou a surgir o que seria o primeiro núcleo po-

voador das margens do São Francisco – Penedo, localizado hoje

no Estado de Alagoas. Segundo a historiografia da região, uma in-

cursão bandeirante entre 1522 e 1545 fundara aquelas paragens,

embora a data precisa seja incerta: há ainda muito a se auferir da

história são-franciscana; como disse Licíno, “o rio sem história”

em razão da pouca ciência ou documentação que lhe recobre.

Em 1549, o Governador-Geral Tomé de Souza chega às terras

brasileiras com várias incumbências, incluindo a missão de ex-

plorar o rio e suas potencialidades. A coroa portuguesa lançava

promissores olhares para suas águas, pois, de uma forma ou de

outra, era o caminho mais seguro para o coração do país; além do

mais, não existiam estradas. Com Tomé de Souza, aporta no Brasil

Garcia D’ávila - homem este que será um dos grande agenciadores

de uma enormidade de currais pelas margens do Opará; o Velho

Chico também foi o rio dos currais, sobretudo durante o perío-

do colonial: “Os currais viriam a se tornar os responsáveis pela

formação dos primeiros núcleos povoadores do vale e lançar as

sementes que desabrochariam nas cidades de hoje. O rio se torna

então conhecido por rio dos currais”. 1

Era dele que advinham os gêneros alimentícios que abas-

taciam a região litorânea, em um primeiro momento, sendo em

seguida fornecidos víveres à região aurífera, em Minas Gerais. Fo-

ram esses processos, de modo geral, que determinaram os traços

agro-pastoris da região que até os dias de hoje imperam. Mesmo

assim, o nordeste ainda teve imensas dificuldades de transitar sua

mercadoria pelo país. A coroa portuguesa, para se ter um ideia, du-

rante o período da extração aurífera, proibiu o comércio da região

com a zona do ouro para remediar os contrabandos. No entanto, a

região do ouro padecia de crises imensas de fome porque nenhum

bandeirante das Minas queria investir esforços em algo além do

metal. É nesse sentido, inclusive, que se potencializa um dos tra-

ços mais marcantes do sertão: o compadrio e o coronelismo. A ad-

ministração portuguesa desdenhou a região desde o início, crian-

do lacunas que se preencheram com a criação de uma organização

política paralela. São inúmeras as matanças sertanejas no decurso

da história que se dissiparam no descaso das autoridades compe-

tentes, se é que elas eram suficientemente competentes a tais re-

soluções. A figura do jagunço – recorrente na história sertaneja – é

somente mais uma assertiva da ausência do Estado. O Engenheiro

Teodoro Sampaio observou, no ano de 1879, uma situação desor-

deira: os jagunços de um tal Neco conseguiram dissipar terror na

região do sertão, expulsando agentes do poder público da cidade

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para as imediações de Januária – no norte de Minas. “O estado de

espírito do juiz de direito causava pena (...) o digno magistrado,

com as lágrimas nos olhos, viu nos afastar, como quem pedia uma

esperança, o seu recurso supremo naquele passo difícil. Quanta

desgraça, quanta barbaría naqueles setões, santo Deus”! 2

O sertanejo são-franciscano, uma raça cobocla repleta de mis-

cigenação, é um misto de negros, indígenas e portugueses, exceto

nas extremidades do Vale, onde Donald Pierson observou a predo-

minância da raça negra, relacionando sua existência ao cultivo da

cana. 3 Ainda, o São Francisco foi utilizado como rota de escravos

negros nas zonas açucareiras. Ademais, trata-se de um sujeito his-

tórico esse sertanejo, situado na confluência do processo de po-

voação do país, tendo o São Francisco submetido o trânsito racial

sobremaneira. Daí advém à particularidade do são-franciscano: é

sujeito único no país, sertanejo de traço forte e peculiaridade ím-

par. Geraldo Rocha, engenheiro e conhecedor do rio, afirmou:

(...) a entrosagem [do sertanejo] se deu, assim, fatalmente, entre os

aborígenes repelidos da costa para a região do nordeste e os pionei-

ros dos currais e da mineiração com os primitivos escravos que os

acompanhavam, cujos descendentes haviam conseguido a liberda-

de por serem filhos de índias livres. 4

O rio São Francisco, a grosso modo, é o grande disseminador

dos povos brasileiros, o grande fator desencadeador de nossa

miscigenação, caso não fosse ele nossa natural estrada, o proces-

so de investida portuguesa seria assaz bem demorado.

o fascínio que as águas causaram

Foram vários os visitantes que fizeram incursões científicas pelo

Rio São Francisco, muito deles de notório renome e, por vezes, de origem

estrangeira. Eles tiveram, certamente, motivações diferentes, embora

o fascínio pelo Opará e sua magnitude se estenda a todos os relatos. As

populações eram, por vezes, fadadas ao olhar etnocêntrico do estran-

geiro em terras brasileiras, agora, o rio, esse sempre comoveu a todos

eles. Nessa alçada, não faltaram comparações: o Velho Chico já foi com-

parado ao Nilo, ao Niger, ao Reno e até mesmo Loire, em Orleans.

Os pesquisadores de maior renome que usualmente são ci-

tados nos trabalhos científicos, muito pela ordem dos resultados

obtidos bem como pela envergadura intelectual de cada qual, são:

Richard Burton (Inglês); Spix e Martius (Alemães), Sainte Hilaire

(Francês); Teodoro Sampaio (brasileiro); Halfeld (alemão); Liais

(francês); dentre muitos outros. Fizeram eles várias observações

sobre os modos de vida de sertanejos, sobre a geografia e a orga-

nização sócio-politica, sobre o rio e seu desdobramento na vida de

ribeira. É fundamental perceber que foi Richard Burton, um notá-

vel inglês que falava aproximadamente 25 línguas e dialetos, que

atentou para o termo sertão:

O termo sertão, segundo o viajante inglês Richard Burton, é a con-

tração do aumentativo “desertão”, muito usado na Africa e na Amé-

rica do sul. no Brasil, o tema é utilizado para se referir as regiões

semi-aridas do interior do Brasil pouco habitadas e com a prevalên-

cia do regime pastoril. 5

Já de 1817 a 1820 estiveram nas margens do Velho Chico Dr.

Joahann Baptist von Spix (Zoólogo) e Dr. Carl Friedrich Philipp von

Martius (Médico e Botânico). Escreveram o livro Viagem pelo Brasil,

editado em 1823, em Munchen, na Alemanha. O estudo foi traduzi-

do para o português somente em 1923. Sainte-Hilaire, ao seu turno,

escreveu o livro Viagem às Nascentes do Rio São Francisco e Pro-

víncia de Goyaz. Foi empenhado naturalista que coletou por aqui

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30.000 exemplares de plantas, de 7 mil espécies diferentes, das quais

4. 500 eram desconhecidas. Sua viagem à cabeceira do Rio São Fran-

cisco ocorreu em 1819. Teodoro Sampaio era brasileiro. Formou-se em

engenharia civil, embora fosse também eximil desenhista. Empreen-

deu viagem científica no ano de 1879 junto à comissão hidráulica lide-

rada pelo americano Oville Derby. O percurso teve ínicio em Penedo e

finalizou-se na chapada Diamantina. Teodoro era o único negro da co-

missão, e naqueles tempos pós-escravidão conseguiu ingressar junto

à comitiva muito em razão de sua vultosa capacidade e conhecimen-

to, sobretudo junto à averiguação das condições de navegabilidade do

rio São Francisco. Halfeld foi um engenheiro alemão contratado pelo

Governo Imperial para desenvolver estudos no Rio São Francisco, de

Pirapora a foz. Realizou a pesquisa entre 1852 e 1854. Falece em Juiz de

Fora, local onde possuia um terreno particular. O mais interessante é

que Halfeld participou da batalha de Waterloo nas forças que comba-

teram Napoleão Bonaparte. Liais, por sua vez, recebe a designação do

Governo Imperial de estudar o Velho Chico da nascente a barra do Rio

das Velhas. O fascinante francês era astrônomo e trabalhou no Impé-

rio a convite de Don Pedro II que, na ocasião, desvincunlou o Imperial

Observatório – repartição a qual havia sido convidado – da Escola Mili-

tar: tratava-se de uma dos pedidos do francês para assumir o cargo.

O fascínio de cada um deles, mesmo em suas particularida-

des, era o mesmo quando se falava da magnitude do Velho Chico,

mais velho que o nome pode aludir, certamente: o São Francisco

foi o rio da unidade nacional depois de ter sido aos aborígenes o

grande Opará, que, de tão grande, faz-se parecer mar...

A geo-política do são francisco

Em 1990, já havia desaparecido 66% das matas originais na

bacia do Rio São Francisco, bacia essa que abrange nada mais do

que 2/3 da disponibilidade hídrica do nordeste. Três fatores - ainda

de acordo com o Caderno da Região Hidrográfica do São Francis-

co, desenvolvido pelo Governo Federal no ano de 2006 6 – são

os maiores responsáveis pela pressão da qualidade das águas: a

crescente urbanização, a expansão industrial e a mecanização da

agricultura.

O Rio São Francisco é evidentemente o maior rio estritamente

brasileiro, ou seja, ele tem nascente e foz nas entrâncias do nosso

próprio território. Nasce na Serra da Canastra, em Minas Gerais e de-

ságua entre Sergipe e Alagoas. Em razão disso, acostumou-se cha-

mar o Velho Chico de “rio da unidade nacional”, muito em decorrên-

cia de ter sido ele, também, o grande meio de transporte nos tempos

de colonização, empreendido, inclusive, pelas bandeiras paulistas: o

Velho Chico em 1501 já era conhecido pelos portugueses.

A Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco apresenta 638.323

Km² (8% do território nacional) e abrange 503 municípios. Sua

imensidão abarca sete Estados brasileiros: Bahia (48,2%); Minas

Gerais (36,9%); Pernambuco (10,8%); Alagoas (2,3%); Sergipe (1,1%);

Goias (0,5%) e parte do Distrito Federal (0,2%). Para fins taxonômi-

cos, a região foi dividida em três grandes regiões, embora existam

outros recortes variando de acordo com a necessidade científica.

Existe, então, o Alto, o Médio e o Baixo São Francisco. A parte Alta

localiza-se entre a Serra da Canastra – em sua nascente – e vai até

a cidade de Pirapora; a parte Média situa-se entre Pirapora (MG)

e Paulo Afonso (BA); por fim, a parte Baixa vai de Paulo Afonso à

foz, entre Sergipe e Alagoas.

Diferentemente do que se imagina, o problema da chuva na

região não se detem na falta, mas sim, na irregularidade dos índi-

ces pluviométricos. “Por mais paradoxo que possa parecer, essa

região está sujeita a cheias frequentes dos rios intermitentes que

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13

a integram”. 7 Isso quer dizer, portanto, que os valores medios

anuais das chuvas podem ocorrer em um só mês, proporcionando

assim uma escassez de água nos demais meses do ano. A região

nordestina do rio, como se sabe, é a mais localizada no polígono

das secas. Imperam ainda fortes interesses coronelistas na região

que padece de uma eficaz administração pública – outro fator que

corrobora com a seca.

O relatório do governo aponta também para o problema do

assoreamento: uma das principais causas da degradação do rio.

Como foi citado, boa parte da matas ciliares foi arrancada para fi-

nalidades várias, causando o desmoronamento das encontas para

dentro do rio. Ainda, em razão da atividade agrícola, as nascentes

se degradam violentamente, contribuindo para a diminuição do

fluxo de água.

A região, apesar dos inúmeros problemas de ordem ambien-

tal, é uma das maiores fontes geradoras de energia hídrica do

país, energia esta que é também exportada.

O tráfico negreiro no vale, os períodos de isolamento e as barragens.

De acordo com Bernardo Mata-Machado, na segunda me-

tade do século xIx - além da cultura agropastoril que também

existia na zona açucareira nordestina e a lavoura cafeeira - a eco-

nomia são-franciscana contava com algumas regiões de extração

aurífera, como o município de Paracatu. Durante determinado

período, a mão-de-obra africana era utilizada ali, e em Januária,

nos engenhos de cana. A estrutura escravocrata nesses lugares

demandava a atividade econômica do tráfico negreiro que, atra-

vés das águas do rio São Francisco, trazia uma matriz étnica negra

bem marcante em alguns lugares do vale, sobretudo na região

dos canaviais. Muitos escravos indígenas foram capturados nos

primeiros anos de povoamento, como também foi observado por

Mata-Machado.

O rio São Francisco, apesar de momentos de grande isolamen-

to, teve momentos efêmeros de expansão econômica. Durante a

guerra da Independência e guerra de secessão norte-americana,

a região do vale exportou algodão para a Inglaterra, e, durante o

período aurífero o vale rompeu com o isolamento econômico tão

manifesto nessas paragens até os dias de hoje. Mata-Machado

também trata deste assunto em sua obra história do sertão noro-

este de Minas Gerais.

O vale, no decurso de sua história, passou por várias fases,

mas, um período que é importante ser rememorado é quando co-

meçaram a construir as barragens na década de 40: houve uma

forte mudança da dinâmica das águas que corriam no Velho Chico

e o volume do rio, que antes era controlado pelas secas e enchen-

tes, passou a ser controlado pelo homem. Durante todo o seu

percurso hoje é possível ouvir o quanto a construção das barra-

gens afetou a vida dos peixes, do rio e da população ribeirinha.

No século XX, são feitos inúmeros projetos desenvolvimentistas

que, muitas vezes, sequer foram concluídos. Na porção nordesti-

na, há barragens que simplesmente não foram concretizadas pelo

Governo, deixando ares de decadência.

A natureza foi o bem mais fiel para com o sertanejo desde

os primeiros anos de dominação territorial e política. Esta sempre

tinha algo a oferece ao povo do sertão, mesmo com todas as di-

ficuldades que foram aparecendo devido à intensa ação humana

que este rio sofreu durante a construção de sua história.

Indaga-se, então, acerca dos prumos do Rio São Francisco:

Quais os rumos para o tão importante e histórico rio que desponta

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nos projetos do Governo Federal: revitalização ou transposição?

São, certamente, duas discussões distintas que o Governo Federal

teima em entoar com o mesmo tom, infelizmente.

1 Citação extraida do livro São Francisco: o rio da unidade; a river

for unity, publicado em parceria entre a empresa Mercedes-Benz

do Brasil com a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São

Francisco.

2 Teodoro Sampaio. O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina.

Expedição que originou o livro, realizada entre agosto de 1879 e

janeiro de 1880.

3 Donald Pierson. O Homem no Vale do São Francisco. Publicado

em 1972.

4 Geraldo Rocha. O Rio São Francisco: fator precípuo da existência

do Brasil. Publicado a primeira vez 1946.

5 Bernardo Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de Mi-

nas Gerais. Publicado em 1991.

6 Caderno da Região Hidrográfica. Ministério do Meio Ambiente

(MMA). 2006.

7 Ibidem, pag 70.

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três marias: aqui o rio corre gordo, represado

“ são cinco povos no são Francisco - mineiros, baianos,

sergipanos, alagoanos e pernambucanos, mas as mesmas

características na luta e no sofrimento.”

norberto soares

Felipe Chimicatti

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Page 17: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

17

Três Marias acumulou no decurso de sua recente história uma

série de características peculiares: ali o Velho Chico corre gordo -

em formato de lago -, move-se calado em direção a Pirapora. Mas

se esse rio falasse (de certa maneira fala, embora língua própria,

de verbetes naturais) – quer dizer – se ele falasse em português

claro, sertanejo, falaria de histórias imemoráveis: falaria dos lusi-

tanos chegando às suas barbas em 1501, falaria dos cinco estados

que singra, contando meticulosamente a brecha de terra na qual

fileta, falaria de suas dores, obviamente, dizendo impetuoso dos

metais que lhe pesam o fundo, dos esgotos caídos sem tratamento,

do homem e de sua mão de dois gumes: de carícia e de chibata,

falaria dos seus cílios frondosos arrancados sem dó na moto serra

de som agudo rasgado, falaria, ainda, da sua vivacidade, tentando

ser extinta pelo tal assoreamento, aquele reflexo triste da terra

que amontoa sobre sua lâmina de água; e sua calha vai se alar-

gando e sua potência minguando, minguando, minguando... Se o

rio falasse, bradaria. Inauguração da BR-040; construção da bar-

ragem de Três Marias – umas das maiores do gênero nas proximi-

dades do seu tempo, represando água para gerar energia (e haja

progresso!), controlar a vazão de um gigante (o Velho Chico),

irrigar plantações e permitir navegabilidade; chegada da Compa-

nhia Mineira de Metais (CMM), hoje Votorantim Metais (VM); ele-

vadíssimo capital especulativo; PIB per capta em 2007: R$ 42.000

(o 65º frente aos mais de 5.000 municípios brasileiros).

Em Três Marias a história começou nas imediações do ano de

1956, com Juscelino Kubtischeck, presidente brasileiro responsável

pela audaciosa campanha de enfiar 50 anos de progresso em cinco

(antes o lugar era um vilarejo de nome Barreiro Grande). JK era

homem sisudo; dizia que Minas Gerais se constituía de “ilhas de

rebeldia desenvolvimentista no mar morto da pasmaceira genera-

lizada”, pois para ele “em Minas, mais do que em qualquer outro

Estado, prevalecia à mesma mentalidade dos tempos da República

Velha”. Por essa razão, JK “não queria construir estradinhas de

terra ou as ridículas casinhas de força, mas obras que atingissem

o imaginário, o ego, a sensibilidade, a emoção das pessoas”. 1 Em

1961 a barragem estava pronta e se fazia enquanto uma das maio-

res do gênero em todo mundo. O francês Allan Cullen, autor de

um interessante livro escrito em 1964 - sobre a história das barra-

gens - chamado Rios Prisioneiros, escreveu o seguinte:

Para executá-la [a barragem] foi preciso erigir no local (...) uma ver-

dadeira cidade, onde se pudesse abrigar uma população de cêrca

de 10.000 pessoas. Assim foram construídos além das residências e

alojamentos, todos os demais prédios para as instituições de uma

cidade normal, tais como escola, hospital, cinema, igreja, armazéns,

frigoríficos, clubes, etc. No auge da construção, trabalharam dire-

tamente em Três marias 4.000 pessoas aproximadamente, usando

um parque de equipamentos dos maiores já empregados no Brasil,

principalmente quanto a equipamento de terraplanagem e solda. As

fases críticas da construção foram as de desvio do rio e a de fabri-

cação e montagem de 2.069 metros de tubulação de aço de 6,60

metros de diâmetro. A tubulação foi toda fabricada no local, em

instalações apropriadas que permitiram, em 11 meses, construir 298

secções de tubos, com 36 quilômetros de solda, inteiramente con-

trolada por raio x. 2

Na ocasião da construção, ainda foram atingidas pelas inun-

dações sete cidades: Morada Nova de Minas, Biquinhas, Paineiras,

Pompeu, Martinho Campos, Abaeté e São Gonçalo do Abaeté. A

usina gera hoje 396 megawatts responsáveis por abastecer, em

grande medida, o norte de Minas; tem 2.700 metros de extensão e

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A barragem de Três marias construída no ano de 1956, na gestão Juscelino Kubitscheck. na época de sua construção se caracterizou enquanto uma das maiores do gênero em todo o mundo. Hoje é responsável pela geração de 396 megawatts que abastece, em maior medida, o norte de minas.

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19

75 metros de altura. Usualmente este grande lago que se formou

é chamado de Mar de Minas - espécie de substituto à frustração

criada pela extensa territorialidade do Estado que não pode ver o

mar, exceto no cume do Pico da Bandeira, no limite com o Espírito

Santo. Notadamente não é o bastante.

os dores do são francisco na ótica de um dos pescadores: o seu norberto

Casa rústica de ribeira repleta de gente. Cabeça de dourado

empalhada na parede, retratos do mérito pesqueiro: aquela foto

tirada com um peixe imenso, comum de se ver nas margens do

rio, espécime em troféu. Seu Norberto Antônio, 59 anos, é um

negro aprazível, de serenidade no olhar e tranqüilidade no falar.

Fala seguro do São Francisco porque o conhece profundamente.

É homem de foro político, já viajou para vários estados e países

como o Canadá e a Itália; tudo através da relação com o rio. Quando

indagado do atual estado do Velho Chico, entristece: “o rio sempre

sofreu, as coisas sempre foram tiradas dele”.

Atualmente, a região de Três Marias está perplexa por um fato

que vem se estendendo desde 2004: a mortandade dos peixes.

Aparecem mortos, sobrenadantes em lâmina de água, uma enor-

midade deles anualmente. Tem épocas que se intensificam as

mortes, tem épocas que diminuem. Entretanto, o peixe vem mor-

rendo e para explicar melhor a condição das águas é preciso falar

da Votorantim Metais (VM). Sabe-se que a empresa, até 1983,

lançava seus rejeitos in natura no córrego Consciência, tributário

do Velho Chico. O rejeito, repleto de metais pesados (sobretudo

zinco), depositou-se no fundo do córrego, sendo vez ou outra re-

volvido e lançado no rio por intermédio das chuvas. A empresa já

construiu uma segunda barragem, longe da calha (a primeira ficava

exatamente à margem, muito próxima das águas). Acontece que

essa se mostrou imprópria, apresentando em pouco tempo vaza-

mentos residuais; e pior: foi construída em cima de três nascentes

e duas veredas. Agora a empresa esta em processo para constru-

ção da terceira barragem – a barragem Murici. O rejeito ainda hoje

está bem à margem do rio; o que o seu Norberto enfatizou como o

“cartão postal negativo de Três Marias”. Para ele “o maior proble-

ma do rio se chama Votorantim metais”, entretanto, retirá-la de lá

é parte de uma grandiosa polêmica: as pessoas dependem da em-

presa e a cidade de certa maneira vive em torno da receita gerada

por ela. Para se ter uma idéia, a Votorantim esta presente em mais

três países: Estados Unidos, China e Peru; é a maior produtora

de zinco da América Latina, está também entre as cinco maiores

produtoras do mundo. Emprega atualmente 3,5 mil pessoas e, em

2006, produziu 402,5 toneladas de zinco. E o seu Norberto nos

disse que no seu terreno não era possível furar um poço artesiano

em decorrência da contaminação do lençol freático.

A empresa, por sua vez, afirma categoricamente que não é a

culpada. Diz ainda que ainda que a mortandade se estende acima

e abaixo da empresa no curso do rio (a montante e a jusante),

mostrando que, mesmo antes do peixe passar pela região de Três

Marias, já se verificam eventuais mortes. Leonardo Mansur, asses-

sor de comunicação da VM, disse que a mesma, antes das legisla-

ções ambientais, jogava sim o rejeito no rio, entretanto se tratava

de uma política nacional, ou seja, um modus operandi das empre-

sas brasileiras. Agora que as resuluções existem, a VM cumpre

criteriosamente cada uma delas. Ainda desenvolve um montante

significativo de pesquisas para conseguir se desfazer da alcunha

de culpada: acaba-se com o fato, acaba-se com a denúncia. A

construção da barragem Murici ainda está orçada em 300 milhões

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Ponte da BR-040 que atravessa o velho Chico no trecho de Três marias

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de reais, obedece à determinação de 200 m de qualquer curso hí-

drico e ainda conta com duas camadas impermeabilizantes. Ela

ainda tem vida útil de 20 anos para depósito do rejeito via rejei-

toduto; uma espécie pastosa que será lançada até o deposito de

rejeito por intermédio de uma tubulação específica.

Acontece que qualquer metal pesado, de qualquer proce-

dência, influi sobremaneira na qualidade da vida aquática. Ou

seja, mesmo com políticas corretivas, o rio veio sofrendo ferozes

empreitadas que lhe desregula a lógica biológica. Por mais que as

empresas e as prefeituras tentem se isentar de uma pressuposta

culpa, é inerente à atividade industrial a poluição. A mortandade,

por mais que seja aspecto duvidoso e amplamente negado pela

VM, existe, mesmo que no imaginário do cidadão ribeirinho. Eles

falam disso todo o momento, eles acreditam que isso acontece,

eles vêem os peixes mortos quando vão ao rio: a morte dos peixes,

por mais nebuloso que possa parecer, é sem dúvida um sintoma

do Velho Chico e, de sintomas, a sociedade também se torna en-

ferma. A ciência simplesmente não tem dado conta da degradação

do meio-ambiente... E isso é uma constatação mundial.

A gerente de Gestão da qualidade do solo da Feam (Fundação

Estadual do Meio Ambiente), Rosângela Gurgel Machado, enfa-

tiza a complexidade da questão. Existem alguns estudos sobre

contaminação dos solos e das águas, mas, de maneira geral eles

dizem pouco acerca das medidas mais indicadas a serem tomadas.

Por exemplo, com relação à remoção completa dos resíduos,

não se sabe ao certo se é mais indicado retirá-los ou não. Caso

se retire, as conseqüências podem ser mais impactantes do que

deixá-los (apesar de não se saber ao certo). “Boa parte das retira-

das residuais no Brasil atendeu fins quantitativos e não qualitati-

vos”. Os rejeitos aumentam muito o volume das águas, mudando

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invariavelmente o curso dos rios, rios estes que por vezes cortam

cidades; nestes casos se faz necessário remediar as enchentes.

Rosângela também afirma que, a partir da construção da barra-

gem Murici – que esta em processo de licenciamento pela Feam

- o córrego Consciência será limpo. “Não faz sentido remover os

resíduos antes da construção da barragem; os vazamentos conti-

nuariam”. Ela ainda faz menção ao comprometimento da empresa

com relação às designações do Estado. A Votorantim acompanha

“rigorosamente as condicionantes” e admite a existência de um

problema de contaminação. A empresa ainda financia fortemente

o setor de pesquisa, embora em nosso gracioso sistema o lucro se

amontoe delicadamente sobre as condicionantes ambientais, há,

aí, uma lógica inescrupulosa que garante um bom fio condutor à

publicidade institucional – opinião minha, vale salientar.

Outro problema complexo diz respeito ao lançamento de

efluentes no rio, mesmo com a Estação de Tratamento de Esgoto

(Ete) sendo inaugurada somente este ano. Toda a carga poluidora

do esgoto da cidade recai sobre o córrego Barreiro Grande, outro

tributário do Velho Chico. “Por vezes, a quantidade de esgoto é

maior que a de rejeito industrial”, aponta Rosangela. A Ete, entre-

tanto, será dedicada somente ao lixo residencial, sem dar aporte

ao lixo industrial.

Existem várias teses que tratam do tema dos metais. A Uni-

versidade Federal de São Carlos (UFSCar) fez alguns estudos na

região, embora à causa pontual da mortandade seja ainda hoje

nebulosa. É muito recorrente ouvir falar da instituição na região

de Três Marias. Roberto Rodrigues, Secretário de Meio Ambiente

da cidade, disse-nos que existem ainda estudos de uma ONG ca-

nadense (World Fishery Trust) responsáveis por analisar o proble-

ma da ótica da genética molecular. Mesmo assim, os estudos são

ainda preliminares e não apontam para uma resposta. Uma per-

cepção minha reiterada pela do técnico da VM - o biólogo João

Eudes - é que ao invés da população procurar um culpado, um

álibi para os problemas socioeconômicos, deveria se deter sobre

a busca de alternativas aos problemas eminentes; e isso vale para

todos os cidadãos brasileiros, afinal os recursos hídricos são desti-

nados à vida, e os esforços particulares influem sobremaneira em

sua conservação. Norberto, por exemplo, acredita na importância

da educação ambiental a longo prazo. Mas certamente existem

medidas paliativas funcionais. Educar, entretanto, é o passo largo

de envergadura eminente.

Por mais que a discussão mais pertinente se paute na recons-

trução da relação com o rio, ainda é impraticável perceber os

altos índices de metais pesados nas águas do Velho Chico. Erida F.

Araújo Silva, pesquisadora da UFSCar, constatou em sua diligente

pesquisa – no período chuvoso - um percentual de zinco 22 vezes

acima do nível em que se esperam efeitos negativos ao ambiente

(18,466 mg/kg na foz do córrego Consciência), além da presença

elevada de cádmio e chumbo. Para se estipular esses valores foi

necessário lançar mão de um padrão internacional canadense,

pois no Brasil não existe resolução referente a esse tipo de análise

(SEL, Severe Effect Level, definido pelo Ministério de Meio Ambiente

de Ontário - uma das províncias do país).

Por mais que a ciência lance olhares diversos sobre a região,

repleta de condicionantes, a frustração da população parece pa-

decer com os peixes. A Cemig (Companhia Energética de Minas

Gerais), outra gigante no território de Três Marias, começou a

desenvolver um interesse projeto na jurisdição estadual que se

iniciou no município: o projeto Peixe Vivo. Segundo Marcelo

Micherif, assessor de comunicação da empresa, a empreitada

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se baseia no tripé: programas de conservação, pesquisa e envol-

vimento da comunidade. Atualmente a empresa abre parte de

seus procedimentos técnicos à comunidade e realiza importantes

peixamentos (assim como a Companhia de Desenvolvimento do

Vale do São Francisco, CODEVASF), ou seja, criação de peixes em

cativeiro para repovoamento da ictiofauna. Infelizmente, essa

mobilização dialógica entre empresa e cidadão ribeirinho se deu

a partir uma terrível fatalidade: a mortandade de 2007. Houve um

acidente nesse ano que matou aproximadamente cinco toneladas

de peixes, tudo em razão de uma manobra equivocada da própria

empresa. Ao fechar as comportas, a usina parou de verter água,

formando uma espécie de bacia nas imediações da represa. Ali se

acumulou um imenso número de peixes que não teve como sair;

os peixes morreram por falta de oxigênio. Em seguida, numa ten-

tativa de interromper a morte dos cardumes, a Cemig reabriu o

vertedouro. Os peixes seguiram para a área da turbina seis que,

em razão de um problema técnico, não pôde ser ligada; desta feita

morreram mais toneladas. Foram encontrados peixes mortos a

40 quilômetros para baixo da represa. Seu Norberto só consegue

comparar a tragédia ao dia da construção da represa, em 1961,

onde “até onça morreu afogada”. Norberto diz ter visto peixes

sobrenadantes descendo o rio durante uma noite e um dia inteiro.

Para cada metro quadrados de água, dois ou três peixes boiando.

Aproximadamente metade dos peixes era da espécie dourado,

bastante apreciada na região. Para Norberto, o dia mais triste da

sua vida. A CEMIG recebeu a maior multa por danos ambientais de

sua história, cinco milhões de reais. Para Micherif, “faltou diálogo

entre os ribeirinhos e a empresa até o ano de 2007”, no entanto, a

relação da empresa por ora parece mais transparente. Agora, no

imaginário dos pescadores, o problema técnico ultrapassa a expli-

cação formal e atingi suas próprias vidas de maneira pungente: o

peixe representa vida nestas paragens.

A pesca em três marias

Um detalhado relatório do Ibama acerca do desembarque

pesqueiro na bacia hidrográfica do Rio São Francisco aponta:

O custo do material, consumido para a pescaria (gelo, combustível)

é apontado como alto; os equipamentos de pesca (redes, barco,

motor) também custam caro, e por sua utilização freqüente e intensa,

ou pelas próprias condições naturais, sofrem (...) um desgaste que

contribui para diminuir ainda mais a rentabilidade da pesca. Outras

dificuldades são citadas como maiores empecilhos à pesca, as leis, as

restrições à atividade, e a fiscalização. 3

Sobremaneira, Três Marias ainda é uma das regiões mais privi-

legiadas de toda a bacia do S.Francisco, seja em comparação com

qualquer outro dos quatro Estados que a compõem. Norberto

disse-nos: “à medida que se vai descendo o rio, a tendência é a

pesca ir se tornando mais precária”. Quão mais ao norte, mais es-

sencial vai se tornando o correr do S. Francisco, mais necessária

se faz à água, necessária em ritmo de urgência, pois de demasiado

seco o corpo perece, e isso se sente quando o sol penetra a epi-

derme e agride. De acordo com um estudo de Norma Valência, da

UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e de outros pesquisa-

dores: 50% das famílias dos pescadores do alto-médio S.Francisco

têm renda per capta de até meio salário mínimo, na medida em

que somente 19% têm tem renda per capta de um salário mínimo

ou mais. Em relação à escolaridade, 28% nunca freqüentaram a

escola, 65% têm até quatro anos de escolaridade e apenas 9% têm

escolaridade acima do antigo primário completo. O reflexo disso é

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A pesca em Três marias é, como nos disse o pescador norberto, uma das mais privilegiadas de todaa Bacia do são Francisco. na medida em que o rio vai atingindo suas cercanias nordestinas, a tendência é a atividade ir se tornando mais precária e cada vez mais essencial à vida de ribeira.

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a conglomeração dos pescadores: usualmente eles se organizam

em grupos, nos bairros mais afastados. São figuras humildes que

necessitam da pesca invariavelmente para a subsistência de suas

famílias. Prova disso é que menos da metade dos pescadores -

ainda de acordo com o estudo de Valêncio publicado em 2001 - tra-

balha exclusivamente com a pesca. Normalmente desenvolvem

os mais variados ofícios para complementar a renda; ofícios como

o de garçom, mecânico, entregador de gás, comerciante de peixe,

guia turístico para pesca amadora, pintor ou marceneiro. 4

Ainda a se aglutinar à constante labuta dos pescadores,

existem inúmeras forças contrárias ao exercício sustentável da

profissão. Por exemplo, o truculento embate entre pescadores

amadores e pescadores profissionais artesanais gera conflitos.

A categoria que não depende da pesca para subsistência ataca a

pesca profissional artesanal por julgá-la predatória. Parte dos pes-

cadores profissionais, inclusive, evita a pesca nos finais de semana

por não se sentir confortável. Segundo Mario Olindo Tallarico

de Miranda, analista ambiental do Ibama (Instituto Brasileiro de

Meio Ambiente), “dentre todos os motivos de diminuição do

peixe e da atividade pesqueira, a pesca é a menos impactante”.

Ainda acrescenta, “existem uma série de atividades muito mais

importantes para a depressão dos estoques pesqueiros do que a

pesca; a construção de barragens é a pior delas, a introdução de

espécies exóticas, talvez seja a segunda pior”. O tucunaré, como

colocado por Tallarico, é um caso desses. Trata-se de uma espécie

de origem amazônica, ou seja, de outra bacia: não existem pres-

sões biológicas para o controle desta espécie predadora no Velho

Chico. Outro ponto que provoca debate é dos equipamentos. Na

medida em que a pesca amadora critica a profissional, abaste-

ce-se de equipamentos cada vez mais sofisticados para capturar

o peixe. Certamente o faz por lazer, embora não possa criticar

o pescador que se enquadre nos parâmetros mínimos impostos

pelas legislaturas federais e estaduais.

Outra questão complexa diz respeito ao período de defeso:

trata-se da época do ano – normalmente entre novembro e feve-

reiro (época de chuva), porém passível de ser determinado pelo

órgão estadual competente – em que os peixes de piracema se

reproduzem. Piracema significa em tupi subida do peixe. Para

isso, eles sobem vários quilômetros para se reproduzirem nas

cabeceiras dos rios e, em detrimento do cansaço, tornam-se pro-

pensos à predação. Assim - na época de piracema - o pescador

licenciado nas respectivas Colônias dos Pescadores tem o direito

a um salário mínimo por mês pago pelo Ministério de Agricultura e

Pesca através do FAT (Fundo de Amparo ao trabalhador) durante

a redução da atividade pesqueira. Marcelo Coutinho, gerente de

fauna aquática e de pesca do IEF (Instituto Estadual de Florestas),

responsável pela fiscalização da região de Três Marias, admite que

o salário-desemprego tem que melhorar, entretanto não vê a ati-

vidade pesqueira na região enquanto ofício plenamente sustentá-

vel, longe disso: “só no ano passado apreendemos 14 quilômetros

de rede e 700 kg de pescado fora das determinações legais”, en-

fatiza. Marcelo ainda afirma que o órgão tem diversos problemas

de fiscalização e que parte dos pescadores age de maneira inco-

erente, recebendo o salário-desemprego sem exercer o ofício de

pescador. Conta ainda que na última fiscalização foram apreendidas

quatro armas de fogo. “Alguns pescadores extrapolam a permis-

sividade da atividade acreditando estarem lucrando, mas, com

isso, acabam inibindo a sustentabilidade da pesca: pescam exem-

plares repletos de ovos prontos para desovar” pontua. Marcelo

ainda acredita que a categoria é muita desunida: “eles vêem-se

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enquanto concorrentes uns dos outros, lutando em uma compe-

tição inter-específica”. Hoje parte dos pescadores se comunica

por celular para informar os companheiros da fiscalização (vale

salientar que esses casos existem, mas não se pode em hipótese

alguma generalizá-los). A conscientização parece ser a saída mais

eficiente, pois, as medidas paliativas surtem efeitos muito especí-

ficos. Recordo que, quando Norberto nos convidou a passear pelo

rio em seu barco, alertou-nos das câmeras. Era necessário filmar

e fotografar com parcimônia ou senão os pescadores poderiam

se indignar. A determinação legal para o pescador que for pego

pescando de forma irregular é clara: apreende-se o material pes-

queiro e os peixes; em seguida aplica-se uma multa. Como boa

parte dos pescadores não tem conta em banco ou qualquer filia-

ção financeira formal, a multa entra para a dívida ativa e possivel-

mente nunca será paga: sequer coagi o infrator que, como disse

Marcelo, “volta ao mesmo lugar que foi apanhado para cometer

a mesma infração”.

dos peixes e dos limites legais da pesca passando pelas lagoas marginais

Dourado, cangati, cascudo-preto, corvina, curimatã-pacu,

acará, matrinxã, sarapó, piranha, traíra, tucunaré, surubim: das e 173

espécies catalogadas na porção mineira (12% do total encontrado no

Brasil), certamente há predileções pesqueiras. No caso da porção

mineira do Velho Chico, o dourado e o surubim são muito aprecia-

dos em detrimento dos demais peixes: seu elevado preço de venda

atinge R$ 8,11/kg e R$10,10/kg5, respectivamente, motiva a captura

por parte dos pescadores, obviamente por razões de lucratividade.

Como se sabe, ambos os peixes – como vários outros – são

peixes de piracema: necessitam subir o rio para desovar. Assim

- no período de cheias - os alevinos (filhotes desses peixes) se

encaminham para as lagoas marginais. As lagoas marginais são

imensos berçários de peixes que em tempos de cheia se ligam ao

rio pela inundação do mesmo; nos tempos de seca, no entanto,

isolam-se dos rios. Esse isolamento constitui uma menor ameaça

aos alevinos no período inicial da vida por razões ecossistêmicas

e, quando já estão suficientemente jovens, retornam ao rio por

intermédio de outra cheia: daí decorre a importância da estabili-

dade dos ciclos hidrológicos. Caso ocorram poucas cheias, a po-

pulação dos peixes de piracema inevitavelmente diminui. Essas

lagoas estão desaparecendo por razões antrópicas: pastagens,

plantações de cana, uso indevido das suas águas para fins comer-

cias: tudo isso vai suprimindo a vida aquática no rio S. Francisco.

A região de Três Marias à Pirapora ainda é o maior nascedouro e

reduto de peixes do Velho Chico. Com o desaparecimento dessas

lagoas na região, os impactos se perpetram indefinidamente pelo

curso da vida no rio.

Com relação às proibições, o IEF (Instituto Estadual de Flo-

restas), responsável pela fiscalização da pesca, dispõe da legislação

estadual pesqueira e, recorrentemente são criadas portarias

para adequar a conjuntura pesqueira à legislação vigente. Existe,

porém, a legislação federal destinada à pesca. Como explica

Marcelo Coutinho, gerente de fauna aquática e de pesca do IEF, a

legislação estadual tende a ser mais restritiva que a federal, pois

a federal não leva em conta as características particulares de cada

regionalidade. No caso de Minas Gerais, esta legislação estadual

existe e é mais restritiva. Para se ter uma idéia, hoje é proibida

a pesca no rio Pandeiros, importante afluente do Velho Chico –

um valioso berçário natural de peixes. A legislação federal não

contempla essa especificidade, embora a estadual o faça: uma

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29

forma de setorizar as particularidades. Existe também o tamanho

mínimo para captura dos peixes, variando de acordo com cada

espécie. O dourado e o surubim têm limites de no mínimo 60 e 80

cm respectivamente. Os demais peixes têm limites na ordem de

35 cm, aproximadamente.

É proibido pescar a menos de 300 metros à montante e à ju-

sante de barragens e usinas hidrelétricas (na época da piracema,

em 2008, a distância se estendeu para 1.000 metros); a menos de

200 metros de corredeiras, cachoeiras e confluência de rios (na

piracema a distância também se estendeu para 1.000 metros) e

nas lagoas marginais a pesca é proibida durante todo o ano. Ainda

no período de defeso em 2008 foi proibido pescar a menos de 500

metros de raio da confluência e desembocadura de rios, lagoas,

canais e tubulações de esgotos.

Para esses fins, na piracema, a legislação estadual delimitou

para a represa de Três Marias um limite para a pesca de cinco

quilos mais um exemplar, na medida em que fora da piracema o

limite sobe para dez quilos mais um exemplar. É ainda proibido

reter peixes sem couro ou escama - ou seccionados - para que a

fiscalização possa ser feita. Redes com tamanho inferior a 100 mm

também são proibidas no reservatório de Três Marias � medida que

impede que os pequenos peixes sejam apanhados, postergando

a captura dos mesmos em fases mais adultas. Existem ainda licen-

ças para a pesca desportiva, a despesca � captura de espécimes

para fins de manejo ou emergências ambientais -, pesca científica

e pesca subaquática. Todas as categorias precisam ser registradas

junto ao órgão competente, no caso de Minas Gerais, o IEF. 6

Mas, como gosta de dizer Norberto, “os guardiões do Velho

Chico somos nós”... O pescador é sim a carícia que perpassa pelo

azul do São Francisco e, como seu amante, conhece-o nas me-

nores curvas, nas menores turvas falanges de água que lhe en-

tregam o peixe como alimento. O ribeirinho sabe dos perigos de

arriscar, mas, em despeito a isso, vê o centenário Chico acenar na

sua mais suntuosa envergadura, de rio grande e brasileiro que é.

Seus danos são nossos, sua clara forma de reivindicar pede cuida-

dos sinceros, pois senão o “rio da unidade nacional” perderá seu

cerne vigoroso de único imenso corpo d’água brasileiro da cabeça

aos pés.

Andrequicé e a confluência sertão,literatura: manuel nardi e João guimarães rosa

“Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra

doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se

condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos.

Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava

muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá,

o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei,

umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declara-

do, tive que reforçar a voz: ‘Pai, o senhor está velho, já fez o seu

tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e

eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo

o seu lugar, do senhor, na canoa!...’ E, assim dizendo, meu cora-

ção bateu no compasso do mais certo (...) Sofri o grave frio dos

medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem,

depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.

Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do

mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem

em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa

água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora,

rio a dentro — o rio. 7

Page 30: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

Obra do artista João Wilson (à esquerda) que compõe o memorial manuelzão, em Andrequicé. (Acima) detalhe da pedra inaugural do memorial. O museu foi noutros tempos a casa do próprio manuel nardi. Hoje o local compõe uma coletânea com as memórias do va-queiro, sobretudo àquelas ligadas ao contato com João Guimarães Rosa.

Page 31: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

31

João Guimarães Rosa, o mesmo qual havia dito, por ocasião

do falecimento de um colega do curso de medicina, que “as pes-

soas não morrem, ficam encantadas”; deu ao sertão motivação

lírica. Esta mesma frase seria repetida 40 anos depois na ocasião

da posse na Academia Brasileira de Letras. Três dias depois do dis-

curso, no ano de 1967, João veio a falecer sozinho em seu aparta-

mento em Copacabana, com 59 anos.

Andrequicé, cidade pertencente ao município de Três Marias,

ganhou notória visibilidade depois da estreita relação fundada

por Rosa e Manuel Nardi. A popularidade intelectual da obra de

Guimarães foi tamanha que Manuelzão — personagem da litera-

tura rosiana — fundiu-se a Nardi: hoje praticamente são a mesma

pessoa. Os dois se conheceram na ocasião de uma cavalgada de

dez dias pelo sertão mineiro — da fazenda Sirga, em Três Marias

à fazenda São Francisco, em Araçai. Venceram junto a um grupo

de cavaleiros 240 quilometros com 198 cabeças de gado. Para

Manuelzão, certamente, uma caminhada agradável pelo ínvio

sertão, para Rosa, uma descoberta repleta de percalços. Na pri-

meira manhã - como narra o próprio Nardi — Guimarães se abs-

teve da dose de aguardente e da feijoada com toucinho e carne

seca servida logo pela manhã; nos dias subsequentes, o literato

embarcou na alimentação, pois o sertão requeria uma energia que

os pães com café e leite não poderiam dar. Guimarães ainda nutria

o particular hábito de trazer em suas mãos cadernetas que se en-

chiam com o passar dos dias e, sempre vinham penduradas ao seu

pescoço. Dali saíram as anotações que constituíram o substrato

de sua obra literária, incluindo a figura do Manuelzão. Seu inte-

resse inicial nessa cavalgada consistia em ouvir os “causos” dos

trovadores sertanejos, coisa que Manuelzão ficou encarregado de

providenciar na região; contadores de estórias.

O município, desde então, vangloria-se desse elo histórico. Foi

criado em 2005 um interessante circuito turístico dedicado a João

Guimarães Rosa, o primeiro do gênero onde a rota se baseia em li-

teratura, podendo ser trilhados os caminhos descritos pelo mineiro

de Cordisburgo em sua poética sertanejista. Compõem o circuito:

Araçaí, Buritizeiro, Cordisburgo, Corinto, Curvelo, Felixlândia, Ini-

mutaba, Lassance, Morro da Garça, Pirapora, Presidente Juscelino,

Três Marias e Várzea da Palma. Em Andrequicé - distrito de Três

Marias - existe o Memorial Manuelzão, um museu sediado na casa

em que Nardi morou durante a sua vida. Nele estão instrumentos

do vaqueiro bem como cartas de Guimarães. A estrutura ainda pre-

servada da residência do curioso vaqueiro está à disposição dos visi-

tantes. Convenientemente, todo ano acontece na cidade a Festa do

Manuelzão: um evento cultural que tende a conglomerar os turistas

em torno da riqueza do sertão e das suas particularidades, partindo

da obra de Rosa. A cidade é pequena, tranquila, repleta de verde e,

em suas imediações, existe uma série de veredas (vegetação alagada

típica do sertão, fundamental à vida ne região que ilustra o título de

uma das mais notórias obras do escritor: Grande sertão: veredas). Em

decorrência da degradação ambiental, elas estão se perdendo, so-

bretudo em razão das plantações de eucalipto destinada a diversos

fins, incluindo a atividade carvoeira. Manuel dizia “nada gosta de eu-

calipto”, e de certa maneira a destruição das veredas simboliza isso.

O curioso morador de Andrequicé morreu em 05/05/1997 —

exatos trinta anos depois de Guimarães — e deixou, além de uma

admiração pela sua sinceridade sertaneja, um legado cultural que

notadamente não se encerra na obra literária de nenhum escritor,

mas sim na diversidade da identidade cultural do povo brasileiro: A

obra de Rosa é um fascinante olhar sobre isso, uma das razões de

sua profundidade. Em momento nenhum ela se propõe a inventar

Page 32: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

32

um universo novo e inesperado, antes pelo contrário, propõem-se

recriá-lo e recontá-lo pela ótica de um erudito que soube transitar

magistralmente pelo reino da palavra — seja ela oral ou escrita.

Guimarães - para se deixar registrado — disse a uma prima

por ocasião de uma entrevista que possuia as seguintes aptidões

linguísticas:

Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperan-

to, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com

o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a

gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polo-

nês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do di-

namarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. mas tudo mal.

E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda

muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principal-

mente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração. 8

Formado em medicina, deu-se à diplomacia quanto antes pôde.

Morou em diversos países, incluindo a Alemanha do período nazista.

Foi um facilitador da fuga de diversos judeus em conjunto com sua

segunda esposa - Aracy Moebius de Carvalho -, sendo homenage-

ados os dois em Israel no ano 1985: o nome do casal foi dado ao

bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso à Jerusalém.

Falar de Andrequicé sem falar de João Guimarães Rosa — o

João Rosa, como usualmente o chamava Manuel Nardi — é de-

sapropriar a riqueza da história tão grande de uma cidade tão

pequena que não deixa a literatura morrer, pois, como já dizia

Proust, a única vida plenamente vivida é a literatura.

1 Maria Elisabete Gontijo dos Santos. Revista da Assembleia Legis-

lativa de Minas Gerais. Edição novembro de 2008. Disponível no

endereço: www.almg.gov.br/revistalegis/revista33/maria33.pdf

2 Rios Prisioneiros: (a história das barragens). Allan Cullen.

1964, p. 195-196.

3 Estatísticas de Desembarque Pesqueiro: Censo Estrutural da

Pesca em 2006. IBAMA em parceria com outros orgãos. pag

45. Disponível no endereço: http://www.sfrancisco.bio.br/

arquivos/IBAMA001.pdf

4 Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais.

(Org) Hugo Pereira Godinho e Alexandre Lima Godinho. O artigo

citado foi: A precarização do trabalho no território das águas: li-

mitações atuais ao exercício da pesca profissional no alto-médio

São Francisco produzido pelos pesquisadores Norma Valêncio,

Alessandro Leme, Rodrigo Martins, Sandro Mendonça, Juliano

Gonçalves, Maria Mancuso, Isabel Mendonça e Silvana Felix.

5 Estatísticas de Desembarque Pesqueiro: Censo Estrutural da

Pesca em 2006. IBAMA em parceria com outros orgãos. pag

46. Disponível no endereço: http://www.sfrancisco.bio.br/

arquivos/IBAMA001.pdf

6 Para mais informações a respeito das determinações legais da

pesca bem como dos critérios da emissão da carteira de pesca-

dor, o site do IEF dispõe de tais diretrizes legais: http://www.ief.

mg.gov.br/pesca.

7 Primeiras Estórias. João Guimarães Rosa. Extraído do conto a

Terceira Margem do Rio. Coleção Folha de Grandes Escritores Bra-

sileiros. 2008. p. 36-42.

8 Extraído da biografia do autor no site http://www.releituras.

com/guimarosa_bio.asp

Page 33: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

Pirapora: terminal sul da hidrovia São Francisco

Bárbara Camargo“ Remando vão remadores

barca de grande alegria;

o patrão que a guiava

filho de Deus se dizia;

anjos eram os remeiros,

que remavam à porfia.

Estandarte de esperança,

Oh quão bem que parecia!

O mastro da fortaleza

como cristal reluzia;

a vela, com fé cosida,

todo o mundo esclarecia;

a ribeira mui serena,

que nenhum vento bulia ”

Gil Vicente

Page 34: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

34

No dia 11 de julho deixamos, por volta das 14 horas, a recôn-

dita Andrequicé, rodeada por veredas, e seguimos para Pirapora

onde nos aportamos no mesmo dia. Digo ´aportar` porque apesar

de estarmos de carro, o reencontro com o rio todas às vezes que

chegávamos a uma cidade do roteiro, nos causava a impressão de

que estávamos atracando em um novo porto. Era como se estivés-

semos viajando em uma expedição por água e não por terra. O rio

dificilmente saia da cabeça, mesmo quando não o víamos correr

pelas margens das estradas que passávamos. O primeiro clarão

de lembrança que tenho de Pirapora é a visão do São Francisco,

na Avenida Beira Rio da cidade. A luz vespertina de sol refletida na

água e algumas embarcações atoladas na areia da praia de água

doce. Não me lembro do aspecto da entrada da cidade. Nem do

percurso até chegarmos a ‘Beira do Rio’, onde pedimos a primeira

informação, ainda de dentro do carro. A primeira memória é esta:

O rio. A luz imperativa do sol entrando infrene pelas janelas de vidro

do carro, e a primeira indagação que fizemos a uma pessoa local:

- Oi? Licença... Boa tarde! Amigo, onde tem uma pousada ba-

rata que a gente possa ficar? Depois disso, me lembro vagamente

deste homem com quem conversávamos se aproximando do carro

parado, levantando o braço e apontando para alguma direção,

que não me preocupei em deter. Enquanto ele informava para o

resto do grupo o que acabáramos de perguntar, eu me distraí, e

passei a observar somente a movimentação tranqüila do local e

o espelho d’água do São Francisco, a minha esquerda. Tudo que

veio na seqüência deste diálogo tornou-se fonte de pesquisa. As

informações sobre Pirapora que chegaram até nós, ao longo da

nossa estada, foram profusas. Conhecemos personagens emble-

máticos, em apenas quatro dias de visita e nós, que procurávamos

o cerne dos problemas do rio, principalmente pelo viés ambiental,

começamos a entender de forma taciturna e gradativa, desde

Três Marias, por meio da impressionante figura de Sr. Norberto,

que o rio só pode ser entendido na sua completude pela história

do seu povo – barranqueiro. O homem são-franciscano. É nele que

reside a importância simbólica deste oceânico rio genuinamente

brasileiro. Não existe outra forma de ler o São Francisco, senão

esta: ouvir a narração dos outro que tornam este rio afável. Não

adianta discorrer somente sobre seus problemas físicos. O emblema

do rio é também cultural; histórico. E Pirapora, por sorte, coinci-

dência ou força maior, nos introduziu de vez nestas narrações.

Fez vir a calhar à necessidade de busca por estas estórias e fatos,

que se tornaram o carro-chefe da pesquisa. Inclusive, os aconteci-

mentos que vamos narrar a seguir me fazem lembrar uma epifania

do personagem Manuelzão, de Guimarães Rosa: “Pois minhamen-

te: o mundo era grande. Mas tudo ainda era muito maior quando a

gente ouvia contada, a narração dos outros (...). Muito maior do que

quando a gente mesmo viajava, serra-abaixo-serra-acima, quando a

maior parte do que acontecia era cansativo e dos tristonhos, tudo

trabalho empatoso, (...) sem soberania de sossego. A vida não larga,

mas a vida não farta”.

Anotei esta filosofia sertaneja no diário de viagem, durante

a visita que fizemos ao museu Manoel Nardi, em Andrequicé. A

frase que estava exposta ao lado de algum utensílio do museu –

não lembro-me qual -, protegido por aquelas redomas de vidro

fez total sentido quando a comparei à nossa própria viagem. Sabí-

amos desde a gênese do nosso projeto, que a incursão pelo sertão

mineiro atrás do rio seria um trabalho ‘empatoso’. Seria um mês

na estrada. Sem sossego. Bem como sabíamos da grandeza do rio

que escolhemos investigar. Mas aquilo tudo que ia surgindo – os

relatos surpresa, os personagens extraordinários, não deixariam

Page 35: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

35

O Velho Chico em seu percurso no trecho de Pirapora. A região é uma das mais propícias à navegação e, em outros tempos, foi imprescindível rota de transporte. “Não existe outra forma de ler o São Francisco senão ouvir a narração dos outro que tornam este rio afável”.

Page 36: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

A fumaça que emerge do Benjamim Guimarães, vapor que singrou por muitos anos o Velho Chico. Hoje a embarcação se reduz unicamente aos pas-seios turísticos. Muito da devastação das margens do rio está associada a atividade dos vapores que em outros tempos navegavam o S. Francisco

Page 37: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

37

nada daquilo fartar, nos cansar. Porque quando ouvíamos aquelas

narrações, o mundo (o rio) se tornava maior do que o previsto.

Maior do que qualquer estafa que nossas delimitações físicas e

psicológicas quisessem pregar. A viagem tornava-se de fato o quê

viemos reportar: a grandeza do São Francisco.

Depois de termos rodado por Pirapora à procura de hospe-

dagem a preços módicos, naquele fim de tarde de 11 de julho, - a

pousada que o homem da avenida Beira Rio nos indicou não servia

(era ainda cara para o nosso bolso) -, finalmente, conseguimos nos

instalar em um hotel na avenida Pio XII. Enquanto aguardávamos

na recepção a liberação dos quartos, reparei que na mesa onde

ficava o televisor havia uma réplica (mediana), talhada em madeira,

do vapor Benjamin Guimarães. O Benjamin é uma relíquia dos

tempos áureos da navegação no rio São Francisco. Um tesouro

ambulante: é o único barco movido a lenha no mundo ainda em

funcionamento. Já transportou o exército brasileiro para o litoral

norte do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e, posterior-

mente, soube também, por meio de pesquisa, que até Virgulino

Ferreira Lima – o nosso Lampião – consta na ‘biografia’ do vapor.

O cangaceiro teria armado, no início do século passado, uma em-

boscada para saquear o vapor que seguia abarrotado de cargas

para Juazeiro. A própria âncora almirantada do vapor é peculiar: a

mais antiga em atividade. - O Benjamin é único em muitas coisas...

- Recepcionista, onde fica o vapor Benjamin Guimarães aqui

em Pirapora?

- Não é longe não. Ele fica na avenida São Francisco...

Amanhã mesmo tem passeio.

- E que horas são estes passeios?

- Cedo. Acho que por volta das nove da manhã.

- E... Quanto é o passeio? Dura o dia todo?

- 30 reais. Não, não é o dia todo. Acho que são umas três horas.

- E, a gente tem que fazer reserva, ou nós podemos comprar

o passaporte lá mesmo?

- Pode ser lá mesmo. Mas normalmente o pessoal reserva

porque vem muita gente conhecer o vapor.

Depois disso dei um sorriso de agradecimento, finalizando a

conversa. Neste momento, dois de nós quatro chegaram com o

restante das malas que ainda estavam no carro. O dono do hotel

chegou também com as chaves. - Nós podíamos acordar amanhã

bem cedo e tentar ‘pegar’ o vapor. O que vocês acham? Ajudando

uns aos outros, seguimos pelo corredor do hotel adentro, com as

malas nas mãos e nas costas, discutindo a idéia de irmos conferir

o vapor na manhã seguinte: dia 12 de julho.

Dia 12 de Julho. Um passeio pela navegação

Por volta das oito e meia da manhã, chegamos à avenida

São Francisco - no cais de Pirapora. Próximo ao local onde está

o Comando da Marinha. A entrada que dá acesso ao vapor situa-

se bem em frente ao prédio abandonado da extinta Companhia

de Navegação do São Francisco (Franave). Já era grande a movi-

mentação. Aqueles que não embarcavam no vapor – ali na beira

- deviam estar ali somente para ouvir o apito do Benjamin 1, e ver a

saída magistral daquele ancião das águas são-franciscana que nos

levaria para dar um passeio de 18 quilômetros rio acima, naquela

manhã de domingo, dentro de alguns instantes.

Quem viaja pelo Médio e Baixo São Francisco2 certamente

ouve relatos mais cedo ou mais tarde, sobre como outrora a po-

pulação que morava em cidades margeadas pelo rio, desde Minas

até Alagoas, recebia e se despedia com festa das barcas que o

Page 38: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

38

rio trazia. Lembra-me as histórias que já li sobre os remeiros, que

faziam o comércio ao longo do São Francisco, antes de surgirem

os vapores, e como a população ribeira gostava de ver a chegada

e a partida destas embarcações.

Os remeiros viviam do leva e traz de mercadorias para os vila-

rejos e províncias ao longo do São Francisco, sobretudo, durante

os idos dos séculos XVIII e XIX. Levavam e traziam, sobretudo,

rapadura, sal, café, cachaça, querosene e roupa em canoas e

ajoujos3, antes do transporte de carga em larga escala se sofis-

ticar com os vapores. Preza a história que quando os remeiros

se aproximavam de um vilarejo, apitavam uma corneta feita de

chifre de boi para avisar que estavam chegando, e, os primeiros

a aparecerem nas margens do rio e a entrarem nas barcas eram

os comerciantes. Corriam para disputar os víveres, vestimentas

e artefatos que os barqueiros traziam. E, logo atrás, vinham os

políticos e os letrados, como conta Wilson Lins 4, em busca de

informações sobre as outras bandas do rio, do mundo. Em vista

disso, os remeiros não eram recebidos com festejos unicamente

por trazer o quê comer e vestir aos ribeirinhos. Eles transporta-

vam também as boas novas de outras terras. Eram os repórteres

daquele período. Com a inauguração da era dos vapores e o des-

baratamento dos barqueiros essa popularidade se transferiu para

a tripulação das embarcações a vapor. Os tripulantes passaram a

ser os notórios do São Francisco, e uma relação estreita entre a

guarnição dos barcos e a população ribeirinha se deu. Em razão

de, comumente, prestarem serviços a essa gente das vilas e fa-

zendas. Trazendo e mandando recados. Levando e buscando en-

comendas. Indo e vindo de viagens, durante aproximadamente

um século – tempo pelo qual perduraram os vapores no Velho rio.

É daí que vem a importância dos barcos na vida social do ‘Homem

do Vale do São Francisco’. Assim, eu, já dentro do vapor - vendo

lá do alto - aquelas pessoas se amontoarem ao longo do barranco

onde estava estacionado o portentoso Benjamin, tive a impressão

de estar revivendo, ainda que vagamente, o resquício daquela cul-

tura barranqueira. Dos moradores que vinham correndo ver o que

o rio trazia ao soar de uma corneta, de um apito ou para se despe-

dir do barco que se soltava rio a fora. Pode ter sido só impressão,

mas aquelas pessoas ali paradas, esperando a saída do vapor, não

deviam ser somente turistas que não conseguiram um bilhete

de embarque, e que por isso tiveram de dar meia volta. Eram mo-

radores. Pessoas locais, observando, por simples prazer, aquele

personagem, aquele patrimônio histórico, prestes a iniciar outra

jornada pelo rio. Parecia haver, de fato, um gesto de aporte ao

vapor, ao São Francisco. Ao mesmo tempo, era enternecedor ver

lá do alto – do último andar do vapor - a vastidão do rio. Como era

largo aquele trecho em Pirapora. No cenário, passageiros ainda

em terra esperavam a liberação do fiscal de bordo para entrada

no Benjamin. Alguns cavalos pastavam próximos as beiras do cais.

Chatas e outras embarcações estavam paradas do outro lado do

rio. O foguista já aquecia a casa de maquinário... Lançava toras

de lenha na caldeira. A despenseira preparava os copos do bar

onde são servidas as bebidas, e o capitão, Pedro Feitosa, baiano

de Juazeiro (que recusou um convite do Santos Futebol Clube,

para seguir carreira no rio) já aguardava no seu posto, próximo ao

timão, o momento de dar partida. - Como teria sido esse quadro

50, 80 anos atrás? Quantas pessoas, flagrantes e histórias aquele

barco deve ter consignado? Um passageiro comentou de soslaio,

enquanto eu fotografava no corredor do vapor, que durante muito

tempo os vapores trouxeram muita gente refugiada do nordeste.

Passageiros de segunda classe. Que amontoados dividiam o espaço

Page 39: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

O capitão Pedro Feitoso, baiano de Juaziro, sob o comando de Benjamin Guimarães. Trata-se do último barco a vapor da flotilha do rio São Francisco, que em outros tempos já contabilizou aprozimadamente 30 barcos. No entanto, foi somente em 2004 que a embarcação retornou ao Velho Chico.

Page 40: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

(à esquerda) Benjamin Guimarães atracado, em fotografia noturna. (No topo da página) O foguis-ta responsável por alimentar a fornalha do vapor. (Acima) Fotografia do barco em contraste com o rio, ao fundo: soberba paisagem.

Page 41: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

41

com as cargas, companhia de léguas. - Sem o conforto daquela

viagem que gozamos numa manhã de sol. Este incidente que o

desconhecido relembrou, quase numa espécie de pensamento

em voz alta, refere-se a “descida geral. Descida do sertão e subida

do rio” 6, nos anos de 1920.

Em 1925 houve um intenso trânsito de nordestinos para o sul

e sudeste do país. E, fora, justamente, graças ao rio São Francisco

e seus vapores que aquele povo da seca Graciliana se deslocou

para as terras de promissão do país – para as fazendas cafeeiras e

as áreas industriais de São Paulo -, além de seguirem para outras

localidades do sul e sudeste do Brasil onde o desenvolvimento

grassava, em detrimento do norte e nordeste. Regiões estan-

cadas e marginalizadas do plano político “ordem e progresso”.

Pirapora nesta época foi, inclusive, o ponto final e também de

partida daqueles flagelados que chegavam a busca de uma vida

mais próspera. A cidade funcionava como uma espécie de posto

de inspeção de migrantes, no qual um grupo de médicos recebia

aquela gente em uma “central” para triagem. Muitos não chega-

vam ao destino final - morriam durante a viagem por subnutrição,

diarréia e outras enfermidades banais. Os migrantes mais aptos a

ingressarem no mercado eram despachados via férrea. Em com-

pensação, os retirantes que ficavam para receber tratamento mé-

dico, permaneciam em um refúgio próximo a estação ferroviária

de Pirapora, que servia ao porto da cidade. De tal sorte que de

lá mesmo – desta estação que ligava Pirapora a Belo Horizonte

e ao Rio de Janeiro - partiam, rumo ao desconhecido. Depois de

‘recuperados’. Aqueles que morriam durante o percurso eram dei-

xados nas margens do rio, onde ocorriam os enterros.

- Como fazia calor naquele dia! Olhei em volta e a profusão de

coisas que via acontecer me dava pistas de quão fértil historica-

mente era aquela porção sertaneja. Tudo era indício. E a viagem

estava só começando...

O Benjamin Guimarães é o último vapor da flotilha de aproxima-

damente 30 barcos que o rio São Francisco já teve, no auge de sua

navegação. O primeiro a ser lançado foi o vapor Saldanha Marinho,

inaugurado em 1871. Milagrosamente ele ainda existe. Mas o vapor

que devia estar em algum museu ou coisa afim foi relegado à função

quixotesca de abrigar um restaurante na orla fluvial de Juazeiro, na

Bahia. O próprio Benjamin Guimarães já experimentou a negligên-

cia, permanecendo atracado no porto da extinta Franave, durante

anos. Em 1995, a Capitania dos Portos de Minas Gerais o interditou

alegando problemas estruturais no casco e na caldeira, o quê estaria

comprometendo a segurança da navegação do vapor. A reforma e

a restauração que poderiam ter acontecido, então, a curto e médio

prazos, sofreram uma delonga de uma década e somente em agos-

to de 2004 o Benjamin foi liberado da inércia em que se encontrava,

no porto da Franave, e autorizado a voltar às suas atividades. Três

anos depois, a Franave – responsável por mais de quatro décadas

pelo transporte de cargas no rio - é liquidada e suas instalações de-

sativadas em função de dívidas e prejuízos que o órgão acumulou

nos últimos anos do seu funcionamento. Obrigando a estatal a se

desfazer de seus bens, inclusive do vapor, que foi repassado a Pre-

feitura de Pirapora como parte do Patrimônio Histórico do Municí-

pio. Assim, durante este meio tempo – entre a reforma e o repasse

-, ficara o Benjamin: estagnado e inutilizado no cais da Companhia

de Navegação, que não tardaria a se extinguir. Dois emblemas da

navegação fluvial do São Francisco sendo consumidos pela ação do

tempo e pela inépcia dos órgãos públicos responsáveis. Aliás, desde

a tentativa de instauração dos vapores nas águas do São Francisco

tudo tem sido uma mixórdia política de primeira grandeza.

Page 42: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

42

O processo de implantação dos vapores

Os vapores surgiram de uma iniciativa do governo impe-

rial que queria utilizar o rio São Francisco e seus afluentes atra-

vés de novas formas de navegação que não fossem mais aquelas

rudimentares que os remeiros e barqueiros – aquela brava gente

brasileira -, praticavam com seus ajoujos e canoas, a duras penas.

Dom Pedro e seus contemporâneos queriam interligar e ocupar o

interior brasileiro - isolado do litoral -, por meio de recursos mais

avançados e eficazes que permitissem uma movimentação eco-

nômica mais expressiva no país. Para viabilizar esse plano, estu-

diosos, sobretudo, engenheiros de outras nacionalidades foram

contratados, em meados do século XIX, para estudar as caracte-

rísticas físicas do rio em cada uma de suas porções - alta, média

e baixa. E com base nestes estudos se esperava propostas de

soluções para os eventuais empecilhos que fossem constatados

no curso do rio durante as expedições de reconhecimento. O go-

verno conjeturava chegar a um parecer sobre as condições de

navegação no São Francisco, que ele tentava aprimorar, sobre-

tudo, com a implantação de embarcações movidas à vapor - o que

havia de mais moderno até então – na segunda metade do século

XIX, auge da Revolução Industrial. No entanto, é patente o fato

de que o governo imperial só incentivaria esta empreitada - daria

concessões e subsídios a empresas particulares para explorarem

a navegação no rio - se houvesse justificativas técnicas plausí-

veis que mostrassem a coerência e a viabilidade das obras e dos

planos de modernização, inclusive, o de trazer os tão almejados

vapores para navegar o rio. Assim surgiu Heinrich Halfeld - o en-

genheiro alemão que confeccionou os primeiros estudos científi-

cos que o São Francisco obteve. O francês Emmanuel Liais, também

político e botânico. Carlos Krauss. William Milnor Roberts e Ben-

jamin Franklin de Albuquerque Lima. Todos célebres estudiosos

do rio São Francisco, que empreenderam viagens de exploração

em datas e regiões distintas, do Vale são-franciscano, á mando da

monarquia brasileira, para estabelecerem as condições para na-

vegação. Halfeld foi o primeiro estudioso a produzir complexos

relatórios sobre as inadequações do rio e, de certa forma, o pri-

meiro a arruinar as expectativas do governo. Visto que, apesar de

ter proposto melhorias para os trechos acidentados e encachoei-

rados que observou durante a expedição que partiu de Pirapora

e foi até a foz – Alagoas -, entre 1852 a 1854, a principal conclusão

que o engenheiro chegou foi a de que o trecho ideal para a nave-

gação de barcos a vapor no São Francisco se circunscrevia a um

trecho menor do se esperava, que vai de Pirapora até Juazeiro,

na Bahia. Menos da metade do curso total do rio. Realidade não

quista do ponto de vista político-econômico pelo governo. Afinal,

o rio não desemboca no mar em Juazeiro, e sim, a 720 km mais

ao norte, em Piaçabuçu, Alagoas. O que comprometia, sobrema-

neira, o plano de integrar comercialmente o São Francisco, atra-

vés do plano de escoamento de produtos agrícolas até o litoral,

de onde seriam distribuídos para o mercado consumidor interno

e também da Europa. Para piorar, a construção de estradas de

ferro no Brasil, que poderia ser uma alternativa de transporte

naquele momento, ligando o restante do trecho não navegável

até o mar, ainda era muito incipiente. Portanto, não havia como

compensar, nem mesmo a médio prazo, os trechos sem condição

de navegação. O engenheiro, sem outra idéia indistinta, propõe

então a abertura de um canal artificial paralelo ao curso normal do

rio que ligaria Santa Maria da Boa Vista (com grande vocação para

Page 43: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

o cultivo de grãos), em Pernambuco, ao Pão de Açúcar. Medidas

arquiteturais que mostram, inclusive, o quão remoto, de certa

maneira é o projeto de transposição do São Francisco, hoje já

em fase de concretização na parte nordeste do Brasil. Uma obra

megalomaníaca, diga-se de passagem, de eficácia dúbia e, po-

tencialmente catastrófica do ponto de vista ambiental se for mal

gerida. Aliás, é problemática a síndrome de “obra faraônica” dos

governos brasileiros. Porque, por aqui, as ‘pirâmides de Gizé’ ou

ficam pela metade ou desmoronam antes do tempo. Mas, retor-

nando ao São Francisco da época do Império, e ao desfecho da

proposta de Halfeld – o tal canal não vingou, obviamente. Era uma

obra absurdamente cara e “impraticável”, e o governo resistiu à

tentação de tornar o rio navegável a qualquer custo. Foi aí que

os monarcas, sem outra saída, re-vislumbraram a construção de

estradas de ferro que ligariam alguns municípios nordestinos até

o são Francisco. Este plano, também, faliu a médio prazo porque

as empresas que se dispuseram a participarem do negócio não

tinham recursos suficientes para cumprir as metas. O que levou

o governo a retomar, por volta de 1868, os planos mirabolantes

de desobstrução do rio, que consistiam em estratégias grossei-

ras como retirada de pedras do São Francisco, acabando com ca-

choeiras e comportas naturais – essenciais para a perenidade do

rio. O autor de um destes projetos o engenheiro Carlos Krauss,

garantiu ao governo, nesta época, que as obras como aquela da

desobstrução, e também da construção de uma estrada de ferro

ligando Jatobá na Bahia até Piranhas no Alagoas, eram, daquela

vez, viáveis e com custos suportáveis.

Estes pareceres positivos acabaram criando um apazigua-

mento e uma confiança de que “as obras se acertariam”, fazendo

com que a era de investimentos na navegação no São Francisco

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44

fosse inaugurada, finalmente. No entanto, apesar das confiantes

avaliações que Krauss e, também, Milnor Roberts, engenheiro

norte-americano, transmitiram ao governo, incentivando até par-

ticulares a empregarem capitais na navegação, o fato é que a rea-

lidade não era como idealizavam. Muitos erros foram cometidos.

E muitas obras deram prejuízos constantes. Inclusive, antes de

haver esta retomada de investimentos, chegou-se até a acreditar

que os rios brasileiros eram imprestáveis para à navegação, es-

pecialmente o Velho Chico. Sendo necessário muito dispêndio de

dinheiro e engenhosidade para tornar-lo navegável. O que levou

o governo a negligenciar as vias fluviais durante muito tempo, em

função das tentativas frustradas de viabilizá-las. O surgimento

e a duração dos vapores foram, enfim, uma espécie de milagre.

Além das dificuldades naturais, pouco de realmente funcional e

estratégico foi edificado para atender a navegação. Mesmo de-

pois de todas as expedições de reconhecimento, mapeamentos

e sugestões de regularização do leito empreendidas. Parece até

que algumas delimitações não foram reconhecidas e, sim, igno-

radas. Houve erros de cálculo e de estimativa e obras caríssimas

se tornaram máquinas de déficits. E a tentativa de combinação

entre transporte ferroviário e fluvial no São Francisco se tornou

um projeto sem pulso.

“Um país de rios não melhorados”

É certo que o próprio São Francisco imputava alguns obstá-

culos naturais a navegação, e hoje esta dificuldade está mais acen-

tuada com o assoreamento multiplicado. Mas, é certo igualmen-

te que os problemas perpassavam e ainda continuam perpassar

pelo famigerado imbróglio político. Falo isto, porque, algumas

decisões que comprometeram mais tarde o êxito da navegação,

advieram unicamente de trapalhadas políticas, conforme defen-

dem historiadores e estudiosos do assunto. Como o episódio da

construção das estradas de ferro. Quando o governo imperial,

finalmente, conseguiu empréstimo da Inglaterra – a juros exorbi-

tantes! – para arquitetar as vias férreas no vale do São Francisco,

falhas de planejamento crassas ocorreram. Falhas estas, provo-

cadas propositalmente, em alguns casos. Juazeiro, por exemplo,

foi transformada deliberadamente em um porto, apesar de serem

conhecidas as objeções técnicas para esta decisão. E não foi por

causa do conselho (equivocado) do engenheiro Halfeld – que anos

antes havia apregoado que Juazeiro era o último ponto navegável

do rio -, portanto, potencialmente um porto. Mas, sim, por causa

de vaidades políticas, que impuseram que as estradas de ferro li-

gando a parte média á baixa do rio começassem ali, em Juazeiro.

Quando na verdade os vapores deveriam ir ao encontro das es-

tradas de ferro até no máximo, Sento Sé - 198 quilômetros acima

de Juazeiro - onde bancos de areia, trazidos pela força da corren-

teza já entulhavam o rio comprometendo uma navegação segura

e tranqüila. Esta determinação, prejudicial, que veio a mando de

Fernandes Cunha, que os livros de histórias se referem apenas

como “um Conselheiro de Juazeiro”, e que lembra os tempos de

violência política na figura de um coronel intransigente, obrigou

os vapores – quando finalmente foram implantados - a vencerem

trechos de difícil tráfego, toda vez que eram incumbidos de levar

ou buscar coisas e pessoas em Juazeiro - um porto simulado...

Fruto de um capricho partidário.

Juazeiro nunca deveria ter sido transformado no “terminal”

do São Francisco. Pois, era e ainda é um grande areal, inibidor de

vapores. Assim como Pirapora (encachoeirada e de fundo móvel),

também, não deveria ter se transformado no porto sede-sul do

Page 45: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

45

rio. Esta imposição obrigou os vapores a serem mais rasos, com

pouco calado7, comprometendo a capacidade de transportarem

um maior volume de carga, sobretudo, de forma segura. Não obs-

tante, o frete do transporte foi ás alturas, porque para sulcar as

águas do São Francisco naquela porção baiana, vencendo obstá-

culos, era necessária muita potência. Lenha como combustível,

o que encarecia a condução. Na época de seca, - sofrimento! -,

porque esta ‘potência’ tinha que ser dobrada, triplicada, quando

era possível navegar. Encalhes eram comuns. Os naufrágios, tam-

bém. A história registra dezena: em 1932, próximo a Xique-Xique

o vapor Costa Pereira sucumbiu. Em 1943 o desastre acometeu

o vapor Cordeiro Miranda. Dois anos depois, a 137 quilômetros

de Pirapora foi o vapor Fernão Dias. Afundaram ainda os vapores

Afonso Arinos (1946); Governador Valadares (1959 e 1966); Para-

catuzinho (1960), Wenceslau Braz (1968)... Desta somatória de

acidentes, obstruções de canal, inadequações de infra-estrutura

e má administração, à decadência da navegação foi sendo traça-

da, comprometendo a função econômica para a qual os vapores

vieram: escoamento da produção brasileira. Que não era parca.

Muito pelo contrário. Apesar das dificuldades, eram fartos os

entre portos do Brasil, no início do século passado. Havia muito o

quê transportar: “por toda a parte, em tempo de exportar, vêm-

se fardos de algodão [grande fonte de renda das comunidades

agropastoris do semi-árido], fumo, couros expostos ao tempo,

a espera de lugar a bordo”9. Mas, “na maior parte das cidades,

não haviam portos estáveis; em nenhuma existia serviços de

carga, descarga e armazenagem”9. Nem mesmo embarcações

suficientes. E, quando houve uma mudança de governo – mo-

narquia para república - o rio já estava entregue a decadência.

Os projetos já estavam estancados no meio. Inclusive, foi por

causa desta má administração dos serviços de navegação que

vapores como Benjamin Guimarães surgiram. Sobretudo até os

anos 1930, quando particulares – empresários – enfastiados da

ineficiência das companhias de viação que operavam na época, e,

também, interessados em ampliar a distribuição regional de suas

mercadorias, por outros meios que não fossem no lombo de uma

mula ou em um carro de boi, adquiriram estes barcos para cobrir

a demanda de transporte de suas empresas, que faltava. O Benja-

min, por exemplo, foi comprado da Amazon River Plate & Co pela

empresa de Júlio Mourão Guimarães, um industrial que tinha uma

fábrica de “rendas e tiras bordadas” – a Santa Clara, em Pirapora.

O vapor chegou aàcidade desmontado, por volta de 1925 e veio

lá do Norte do nosso país porque, na época da compra, presta-

va serviços aos rios da bacia amazônica. Apesar de ser originário

dos Estados Unidos – Mississipi, onde também já navegara. Aliás,

vamos interromper a história rapidamente para pontuar uma

coincidência intrigante.

O rio Mississipi está para o São Francisco, como o Vale do

Tenesse está para o Vale do São Francisco aqui no Brasil. Ambos

os rios quebrantaram sonhos de navegação, impuseram gran-

des provações. A diferença é que o Mississipi considerado um rio

“catastrófico”10, extremamente caudaloso, foi curado dos seus

desníveis naturais e a economia do Vale, antes pelas inundações

periódicas e violentas que castigavam plantações e povoados, foi

recuperada. Através de um esforço conjugado entre particulares

e órgãos públicos que investiram em planos técnicos científicos

continuamente. Aqui, o nosso rio da Unidade Nacional ficou en-

tregue simplesmente à sorte, depois de um período. Relegado à

lembrança e a ação de poucos... Em tal grau que foram iniciati-

vas particulares que fizeram com que a frota de vapores no São

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Francisco crescesse. Como aquela de Júlio Mourão, que adquiriu

o Benjamin: o nome é uma homenagem ao patriarca da família

a qual pertencia a firma. O vapor foi usado durante muitos anos

para transportar as matérias-primas da fábrica – comporta 90

toneladas – e permaneceu com esta funcionalidade – cargueira

- durante muitos anos, mesmo depois do vapor ter sido transferi-

do para a Franave, órgão estatal. Sendo que somente mais tarde,

depois que a Prefeitura de Pirapora assumiu seu controle, é que o

Benjamin veio a se tornar o que conhecemos hoje: um transporte

exclusivamente de pessoas, que a população ribeirinha dá alcunha

de “gaiola”, com funcionalidade turística. O empresário chegou

até a abrir uma companhia de navegação fluvial: a Julião Mourão

Guimarães, e, para isso, adquiriu outros vapores, menos ilustres,

mas não menos importantes como o gaiola Francisco Bispo, bati-

zado com o nome de um mecânico, que segundo o empresário,

era – o melhor do Vale São Francisco. Os irmãos Nascimento, pro-

prietários da empresa Nascimento e Cia, também, com sede em

Pirapora, adquiriram, por sua vez, o vapor “Antônio Nascimento”,

para escoar a produção da fazenda da família – Fazenda Prata.

O nome fazia alusão ao líder da família que foi, inclusive, um dos

fundadores da cidade.

O fato é que a navegação a vapor não só teve sua frota ini-

cialmente ampliada pelas mãos de particulares, como também

começou a partir da iniciativa privada. O governo só outorgava

as concessões para exploração fluvial de trechos do rio São Fran-

cisco. O Saldanha Marinho, o primeiro de todos os vapores, sur-

giu também da iniciativa de particulares. Era propriedade de um

grupo financeiro ajustado com o governo imperial para explorar

o rio das Velhas, denominada Banco Viação do Brasil. Mas, em

razão dos prejuízos, a companhia acabou sendo incorporada a

outra empresa, que mais tarde fez um trato com o governo baia-

no. Os políticos baianos, todavia, impuseram uma condição para

dar aquela cobrertura: a navegação deveria acontecer em outros

pontos que não fosse o rio das Velhas – que já era muito difícil em

1879. Mas, também, no trecho baiano do rio São Francisco, inclusi-

ve em dois de seus afluentes que interessava para a região: Gran-

de (350 km) e Corrente (160 km). Para cumprir esta incumbência,

o governo concedeu à empresa outro vapor, o “Presidente Dan-

tas”, o segundo que chegou ao São Francisco. Porém, os prejuízos

eram muitos. A manutenção muito cara e o retorno econômico in-

suficiente para cobrir os gastos. Falida então, a “Viação do Brasil”

passa a ser totalmente administrada pelo Estado da Bahia – maior

acionista da empresa, na época. O que deu origem a Empresa

Viação do São Francisco, a “baiana”, que até 1917 era a única com-

panhia de navegação detentora de licença para exploração fluvial.

Nesta época a companhia já acumulava onze vapores. Com a que-

bra deste monopólio, outras empresas se organizaram, dando ori-

gem inclusive, a companhia estatal de Navegação Mineira do São

Francisco - “a mineira”. Mais tarde, na década de 1960, surgiria,

então, a Companhia de Navegação do São Francisco (Franave),

junção destas duas companhias – mineira e baiana, ao Governo

Federal, mais uma terceira companhia fundada em Pirapora - a

Companhia Indústria e Viação.

O rio hoje: Solidão

Depois de transcorridos mais de 100 anos desde os primeiros

planos de navegação, o rio continua praticamente inexplorado,

com outros agravantes. A emergência do transporte rodoviário

no Brasil e o desaparecimento dos barcos a vapor fizeram com

que as atividades hidroviárias do São Francisco fossem refreadas

Page 47: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

O patio da AHSFRA (Administração da Hidrovia do São Francisco), nas imediações de Pirapora. A precariedade e a ociosidade das estruturas é rigoroso retrato da realidade de navegação são-franciscana nos dias de hoje.

Page 48: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

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drasticamente e o rio passou a sofrer um abandono descomunal.

Ilógico. Afinal, o São Francisco representa, hoje, talvez a forma

mais econômica de ligação entre o nordeste e o centro do sul do

país, e tem uma capacidade fenomenal de transporte estimada

em 2,5 milhões de toneladas de carga, anualmente. No entanto,

em decorrência das carências e das disfunções que acometem a

hidrovia são-franciscana, como falta de portos adequados, falta

de regularidade no transporte, de embarcações mercantes ade-

quadas, este modal de transporte perdeu em competitividade

para outros meios, como o rodoviário, e agoniza com a falta de

políticas públicas que explore adequadamente suas potencialida-

des, através de investimentos pontuais que melhorem a logística

do rio. A própria extinção da Franave, órgão que se responsabili-

zava pelo transporte de cargas entre Pirapora e Juazeiro, trecho

que conjuga quase mil e quatrocentos quilômetros de hidrovia, é

prova do descaso para com as estruturas que prestavam e ainda

prestam serviços ao rio e sociedade.

A Administração da Hidrovia do São Francisco (AHSFRA) que

herdou o patrimônio da Franave, e que hoje se encarrega – com

grande dificuldade – de manter a navegabilidade do rio, também,

entre Pirapora e Juazeiro, é outra prova cabal de como o São

Francisco e o próprio transporte náutico como um todo continua

a ser negligenciado no Brasil. Andando pelo pátio da AHSFRA,

enquanto conversávamos com a Chefe do Núcleo de Operações

- Flávia Oliveira -, pudemos testemunhar a ociosidade das ativida-

des hidroviárias no rio São Francisco. No porto, que parecia fan-

tasma - chatas, empurradores, cábreas11, sobrenadavam quietas e

irresolutas o rio parado... E o entardecer só tornava o panorama

mais taciturno. Aqueles instrumentos que poderiam, em outras

circunstâncias, estar movimentando o porto de Pirapora estavam,

ali, estagnados. Na condição de sucata, quando poderiam estar

auxiliando no escoamento da produção do estado, despachando,

por exemplo, algumas das toneladas de granéis que Minas produz

e que nordeste consome. Milho, por exemplo. Ou, quem sabe, re-

tirando, talvez, contêineres de gipsita12 de alguma embarcação

recém-chegada de Pernambuco, via São Francisco. Mas, ali, em

atividade mesmo, só algumas cabras que passavam por nós com

desapego e serenidade, pastando sem pressa o gramado seco do

porto, enquanto observávamos a paradeira local. E o silêncio que

paraiva denunciava a ausência crônica de políticas e verbas, que

há anos passam longe do rio. Flávia nos contou que a AHSFRA,

que faz o monitoramento das condições hídricas do rio São Fran-

cisco e dos seus afluentes, com o patrocínio da Companhias das

Docas do Maranhão (Codomar), estatal que administra outras

sete vias hidroviárias no país, já passou por boicotes e repasses di-

minutos que comprometeram seriamente o trabalho da empresa

no rio. Em 2007, por exemplo, a verba prevista não foi repassada,

apesar de na época, a empresa ter feito uma previsão de gastos,

com base em um plano de trabalho, na ordem de 11 milhões de

reais. Este ano (2009), somente quatro dos onze milhões previs-

tos, chegaram ao caixa do órgão. “Temos então de nos adaptar e

trabalhamos a margem das condições ideais. Com o que recebe-

mos”. Além destas restrições e volatilidades financeiras, outros

problemas de ordem política infringem a AHSFRA: o contrato com

a Codomar rescinde no final deste ano, e até o momento da nossa

visita, os empregados não sabiam se a empresa continuaria a fun-

cionar em 2010. Em caso de negativa, fica a pergunta: - Quem se

responsabilizará pela sinalização, balizamento13, dragagem do rio

caso a AHSFRA seja desativada? De novo, silêncio. E se a resposta

existe, ela não nos foi passada. “A grande briga, luta de nós da

Page 49: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

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AHSFRA é para que a esfera pública abrace a causa da hidrovia,

inclusive a integrando com outros meios de transporte”. “Mas

isso é briga de leões”. Há muitas questões institucionais envol-

vidas. Desde empecilhos ambientais até falta de iniciativa públi-

ca. A carga tributária sob este transporte, também, é alta. Além

disso, nos últimos anos, o governo gastou em média somente 15

milhões dos 150 milhões necessários para manutenção e amplia-

ção do sistema hidroviário do Brasil, que está estancado. Segundo

a Agência Nacional de Transportes Aqüaviários (Antaq) o Brasil,

transporta somente 13% da sua produção pelas águas. O rio São

Francisco transporta somente irrisórias 3.300 toneladas. Ao passo

que o volume de cargas que circulam anualmente no rio Mississi-

pi, Estados Unidos, chega a 22. 500 toneladas.

Embora sejam necessárias obras caras de engenharia para

corrigir os acidentes naturais e aprimorar a logística de escoa-

mento do rio São Francisco, que pode ajudar junto às outras hi-

drovias a promover o desenvolvimento do mercado interno no

Brasil, tão relegado em detrimento da economia de exportação,

é patente, os benefícios que o transporte hidroviário traz á longo

prazo. A própria manutenção das hidrovias, que a AHSFRA realiza,

é muito simples e barata. No entanto, permanece, inexplicavel-

mente, esta mentalidade retrógada, que lembra nossos monar-

cas de outrora, de que mais vale gastar alguns milhões de reais

de dois em dois anos em operações “Tapa Buracos”, país á fora,

do que despender alguns bilhões de uma única vez com um meio

de transporte prático e barato. Estudos da Agência Nacional das

Águas (ANA) mostra as vantagens já manifestas do modal hidro-

viário. O transporte, por exemplo, de fertilizantes – hoje, feito no

país, quase que inteiramente, por caminhão, poderia ser efetua-

do, pela hidrovia são-franciscana, considerando a mesma origem

e destino por terra, consumindo quase sete vezes menos combus-

tível e emitindo zero de monóxido de carbono na atmosfera, por

menos da metade do preço. Resumindo, a hidrovia do São Fran-

cisco “tem potencial para alavancar as economias e diminuir cus-

tos de transporte das empresas instaladas nas regiões por onde

passa”, como pontua relatório da Antaq, assinado pelo gerente

de Desenvolvimento e Regulação da Navegação Interior, Adalberto

Tokarski. No entanto, o rio que hoje poderia estar contribuindo

para unificar a integração nacional, opera a um percentual ínfimo

da sua capacidade, algo em torno de 1%. Pior, a navegação no São

Francisco continua a ser efetuada por particulares, em pequenas

embarcações, e mesmo assim, somente na porção baiana do rio.

O que acaba criando, inclusive, confusões em torno da capacidade

de navegação da porção mineira do São Francisco. É recorrente a

idéia de que a parte mineira não é navegável. O que não é de se

estranhar... A desativação e o não usufruto do rio, por aqui fazem

parecer que o Velho Chico, de fato, adormeceu pra sempre. Por-

tanto, porque transpô-lo e não revitalizá-lo? Regularizá-lo? É o pas-

sado assombrando o presente. Comprometendo o futuro.

Intervalo

Dia 13 de julho, emergimos do plano onírico das águas do São

Francisco, depois de termos embarcado no vapor, e resolvemos

desbravar em terra outros arcabouços históricos de Pirapora.

Fomos á procura da Secretaria de Cultura. O órgão funciona na

antiga estação ferroviária da cidade – aquela, que abrigou migran-

tes nordestinos, no início do século XX. A linha, de 1910, está de-

sativada. Truncada. Não leva mais a nenhum daqueles lugares que

costumava rumar. A locomotiva, a movimentação do embarque e

desembarque de pessoas, a fumaça do motor a vapor inebriando

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a plataforma, o apito do trem, se resumiram a algumas reminis-

cências do passado. Mas o prédio da estação, de arquitetura de

época, ainda resiste. Abriga cinco secretarias em uma, além de um

centro de apoio ao turista. Neste dia, fazia um calor entristecedor

e a vegetação nas imediações – gramado escasso - estava seco

e amarelado. A paisagem estava árida e antiga ferrovia, naque-

las circunstâncias, lembrava mais um posto de cidade faroeste.

Quando entramos, uma mulher se encarregou de nos atender. –

Boa tarde. Devemos procurar quem na cidade para conversarmos

sobre a cultura local? Num gesto providencial, a mulher recorreu á

agenda de trabalho e conferiu alguns catálogos para responder à

indagação, em seguida, um homem de sobrenome Brasil, que pas-

sava provavelmente para se servir um café, se dispôs, também, a

ajudar. Em consonância com a mulher, iam discutindo se fulano ou

beltrano poderia ser útil, até que por fim, entraram em consenso

sobre alguns contatos e de forma breve descreveram quem eram

aquelas pessoas. Uma dessas ‘figuras’ vivera oito anos, exilada,

em vapores, durante o regime militar. Sobressaltados, saímos do

prédio, em silêncio, debaixo de um sol alucinante pensando na-

quelas histórias que tínhamos que ir buscar. O nome de uma delas

era Lourdes Barroso...Lourdes Barroso e os Franciscos

Descemos do carro e conferimos a numeração: estava cor-

reto. Lourdes Barroso morava ali. Do portão de grade já tivemos

um prelúdio do encontro. Carranca16 na varanda. Uma pintura

do vapor Benjamin Guimarães dependurada ao lado da porta de

entrada. Logo abaixo, uma escultura mediana do santo São Fran-

cisco de Assis, talhada em madeira, e, no canto esquerdo, uma

mesa repleta de ferramentas artesanais. Batemos então as pal-

mas como quem quer chamar alguém, - havia campainha, mas

preferimos usar o método interiorano, que soa mais cortês -, e

eis que aparece Lourdes, respondendo ao chamado. Lourdes é

dona de um semblante sereno; uma fala mansa de sotaque baia-

no, - herança do seu estado natal, apesar de morar a quarenta

anos em Pirapora. Sua compleição, de idade, apesar da vaidade

visível – unhas feitas, cabelo estrategicamente penteado, jóias

nas mãos, - mostrava que aquela pessoa que nos recebia com

uma naturalidade chocante guardava lembranças insuperáveis. É

uma senhora nostálgica, que enxerga sua vida como um grande

sonho que não volta mais. Sabe de cor suas peripécias, embora

tenha perdido várias vezes o fio da meada dos casos que relata-

va durante a entrevista, mas, não era esquecimento. Ela parecia

estar revivendo, simplesmente, algumas cenas e em vez de nos

contar, preferia senti-las, em silêncio, interrompendo, então, o re-

lato. Como se não houvesse ninguém a observando, esperando a

continuidade do enredo. Quando se confundia, pedia desculpas e

prontamente respondíamos que não tinha o menor problema. E

não tinha mesmo. Estávamos ao dispor da sua história. A parede

de sua sala estava repleta de fotos e cada canto da casa era um

memorial vivo, pulsante. E ela era herdeira de uma época singular

do rio São Francisco: testemunha especial da navegação a vapor.

Sobretudo, representante da força altiva que o rio tem na vida de

infindáveis pessoas deste rico sertão. Depois das idas e vindas na

lembrança, conseguimos entender, enfim, o quê Lourdes queria

explicar. Sua vida foi mesmo uma real ficção.

Década de 1950, Bahia. Lourdes era apenas uma menina que

gostava de cantar músicas de Ângela Maria, quando um circo che-

gou à sua interiorana cidade natal, e pôs á prova sua vontade de

mostrar a voz. Ela que já amanhecia melodiosa, cantando para

quem quisesse ouvir, acabou chamando a atenção da trupe que

estava instalada próxima a sua casa e recebeu um convite informal

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para que fosse se apresentar, se sentisse á vontade. Apesar das

convenções machistas dizerem “não, isso não é coisa que moça

de família faça”, e de ganhar um NÃO bem repreensivo da mãe,

Lourdes não resistiu ao seu ímpeto de menina predestinada e aca-

bou investindo na travessura. Passou a pular a janela de casa para

ir até o circo e, sob luzes e tendas, imitar as divas da música brasi-

leira da época. Apanhava todas as vezes que ousava, e foram vá-

rias. Como castigo: palmatória e correiadas. Mas a gratidão pelas

alegrias que aquela “brincadeira” lhe proporcionava, deviam falar

mais alto do que os membros condoídos depois de uma surra.

Lourdes não cedia, e as represálias eram em vão. Foi aí, por causa

do falatório na cidade, e da preocupação dos pais em torno de

suas atuações, que Lourdes recebeu a visita providencial de seu

padrinho - um delegado – que vai imprimir a primeira grande vira-

da na sua vida, ao convencê-la a se tornar uma cantora profissio-

nal, longe do amadorismo em praça pública. Aconselhou-a para

tanto a ir para a orquestra sinfônica de Serrinha, e iniciar, assim,

uma carreira artística, de forma oficiosa. O que de fato lhe foi fru-

tífero... Depois da experiência na orquestra, foi parar em Salva-

dor com ajuda do pai, e lá começou se expandir artisticamente.

Conseguiu contrato com as rádios Cultura e Exlcesior, para quem

fez muitos shows. O Teatro ‘Das cinco’, do antigo Hotel Bahia e a

boate Clock da cidade também testemunharam suas performan-

ces. E, Lourdes que atendia a princípio por ‘Lourdes Gonçalves’ –

um nome artístico formal - acabou se transformando na “Cigarra

Boêmia de Serrinha”, tamanha singularice.

Foi neste período, - em que se popularizou na cidade sotero-

politana - que surgiu na vida dela, já com vinte e poucos anos, um

tenente baiano chamado Dr. Waldir Pires, que lhe fez um convite

inusitado: cantar em comícios. O pedido que vinha por intermédio

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de Pires era, na verdade, uma solicitação de um oficial disfarçado,

que se identificava como Dr. Rubens. Sem avistar nenhum impedi-

mento, e com um cachê atraente Lourdes concordou em assumir a

tarefa, apesar de não imaginar que aquela tomada de decisão repre-

sentaria mais tarde um divisor de águas na sua vida. A sua segunda

grande virada. Mas, até que as coisas não começassem a perturbar,

Lourdes viveu em relativa tranqüilidade, apesar das atribulações

que aquele seu novo emprego lhe impunha: passou a viajar conti-

nuamente pelo interior da Bahia fazendo os tais showmícios. Esteve

em Pituba, Ondina, Itapoã, Estela Mares, Euclides da Cunha, Urucuia,

Araci... Até que, recebeu uma nova incumbência: de madrugada, á

surdina, deveria pregar em postes, panfletos políticos partidários.

Para tanto, lhe enviariam dinheiro e material, via trem, e as orien-

tações seriam repassadas durante reuniões secretas e combinadas.

Assim, mais uma vez Lourdes acatou. Fazia o trabalho sem nenhuma

desconfiança, na mais cândida inocência de que aquilo não era pérfi-

do e não havia com o que se preocupar. Pagava inclusive a garotada

local para lhe ajudar com a enfadonha tarefa de pregar panfletos.

Era véspera do golpe militar de 1964, e Lourdes seguia trabalhando,

quando, enfim, ouviu do seu superior, da boca de ‘Dr. Rubens’, uma

advertência confusa, mas que a fez atinar pela primeira vez para a

gravidade do esquema que participava: - “Quando dermos o golpe,

não se importe, pois sua família não sofrerá nada”. Sobressaltada

com o que tinha ouvido, Lourdes voltou para casa, em Serrinha, e

contou o que lhe tinham dito. Para sua surpresa ficara sabendo que

algumas pessoas estavam atrás de seu paradeiro, também. Á esta

altura, revistas, panfletos e todo o material que ela guardava em

casa, usado durante as viagens e apresentações foram queimados

pelo pai, quando descobriram a enrascada. - Abrimos uma vala no

fundo do quintal da casa e papai incendiou tudo...

Dias de apreensão e desnorteio transcorreram até que a situ-

ação se complicou, e Lourdes foi informada que deveria partir de

Serrinha, em definitivo. Pois, corria risco de vida. Pessoas ligadas a

ela armaram, então, um esquema para que fosse embora, aconse-

lhando-a seguir para Juazeiro onde deveria se juntar à Companhia

de Teatro de Juazeiro, que lhe daria retaguarda até o vapor São

Francisco, no porto da cidade. Para qual cidade Lourdes deveria ir

depois disso, ela não deixou claro. Mas o fato é que ela obedeceu,

e embarcou no vapor. Era novembro e o natal de 1964 seria longe

de casa. Foi neste episódio que o rio São Francisco introduziu-se,

em definiivo, na sua vida, e Serrinha começou a cindir-se do seu

futuro. É que nos próximos sete anos que se sucederiam àquela

fuga, a Cigarra Boêmia não teria mais residência fixa. A terra firme

passaria a ser as águas do rio São Francisco, e os vapores seu refú-

gio. O regime militar começava... O exílio para ela também, apesar

de não ter sido quase nada trágico. Talvez o momento mais es-

tarrecedor que Lourdes viveu foi naquela primeira viagem como

refugiada, a bordo do vapor São Francisco, quando, durante o

percurso, um capanga que, também, embarcou disfarçado como

ela, tentou obrigá-la a saltar do vapor em um ponto próximo a

Xique-Xique (Bahia) para dar-lhe um fim. Lourdes se desesperou.

Sozinha e com medo de contar seu dilema a um desconhecido,

passou a se trancar na cabine do quarto do vapor e a faltar nos

horários de refeição, pois estava na mira do capanga. Foi quando,

os passageiros mais próximos, notando o isolamento repentino de

Lourdes, passaram a procurá-la e a insistir que contasse o que es-

tava, afinal, acontecendo. – Eu chorava muito, e não respondia.

Não queria contar. Até que o comandante em pessoa – Francis-

co Barroso Lopes – foi acionado, aparecendo em seu aposento.

Conseguiu arrancar a verdade que estava sufocando Lourdes.

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Mandou a tripulação fazer o cerco ao capanga e colocá-lo para

fora, mesmo ele estando armado. Era o fim da intimação sobre

ela, mas, o começo de um romance que perdurou 30 anos... - Lour-

des se enamorou pelo capitão durante o restante da viagem, e até

a década de 70 viveu dentro dos vapores, atrás de Francisco, seu

marido, e do rio. Naquela primeira viagem foi para Pirapora, mas

não desembarcou na cidade. Seu destino seria até o fim da dita-

dura as rotas de cada vapor que embarcava: Engenheiro Alfred,

Antônio Nascimento... Sempre trilhando os passos de seu coman-

dante. Mas isto, nem de longe, se torou aborrecimento. – Apesar

dos anos de chumbo, estava apaixonada e era livre. Além disso, a

vida nos vapores não era de todo mal. Á noite, vez por outra, fazia

pequenos shows nos barcos, para alegrar a si própria e aos passa-

geiros. Barroso tinha um violão, e ás vezes, a tripulação se reunia

para contar as estórias das águas do São Francisco, ao anoitecer.

Sobre os cavalos pampas d’água e da mulher dos cabelos verdes...

Ela mesma nos jurou já ter visto o vapor encantado em Juazeiro.

Segundo esta lenda, o vapor aparece á noite, belamente ilumina-

do, nas proximidades de um porto, mas nunca chega ao cais. E de-

pois de alguns minutos de aparição, some no breu da noite. A tal

aparição seriam os fantasmas das vítimas dos trágicos naufrágios

que ocorreram no rio São Francisco. Lourdes disse que se arrepia

até hoje com o que viu, e esta confissão confirma o quanto ela já

estava imersa naquele mundo são-franciscano.

O fato é que com o passar do tempo dona Cigarra encontrou

também uma forma de gerar renda e passou a fazer trocas comer-

ciais com os passageiros. Comprava produtos da terra nos vapores

e em seguida revendia nas feiras de algumas das cidades em que

passava. Com o lucro que conseguia das vendas, pagava suas des-

pesas nos vapores. Foi assim até que, dois anos depois, conheceu

Francisco Biquiba Dy Lafluente Guarany17 – o insuperável mestre das

carrancas – durante uma de suas viagens por Santa Maria da Vitória,

Bahia. Foi a primeira vez que Lourdes presenciava a arte de talhar

em madeira apesar do contato com mestre ter sido duro e breve.

Biquiba fora ríspido e impaciente quanto algumas curiosidades téc-

nicas que Lourdes lhe apresentou. Chegou até a explicar para ela

que a carranca era ‘mistura do homem com o animal’, mas, nada

mais que isso. No entanto, a austeridade de Biquiba não ressentiu

Lourdes. Pelo contrário, a concisão do ‘mestre’ acabou por incen-

tivá-la, indiretamente, a procurar pelos seus próprios métodos um

modo de fazer aquilo (as antigas figuras de proa). – Eu senti que

conseguiria fazer aquilo, e depois daquele encontro ficou obcecada

por fazer algo parecido e, nos vapores, passou a insistir na tal arte.

Em aprimorar formas e traços, em uma espécie de autodidatismo.

Foi aí que começou a enxergar de forma diferente aquelas toras de

madeira macia que eram queimadas nas caldeiras que alimentavam

os vapores. Passou a tentar esculpir um e outro pedaço que tira-

va da pilha de lenha. O capitão Barroso, por sua vez, passou a lhe

presentear com ferramentas mais adequadas para o trabalho que

Lourdes dificilmente largava, fazendo nascer na Cigarra Boêmia seu

lado carranqueiro que hoje toda Pirapora e o país conhecem. Aliás,

Lourdes àquela altura da história, não era mais Lourdes Gonçalves

– a cigarra, e sim, Lourdes Barroso – a carranqueira. No princípio,

passou a comercializar as carrancas dentro dos próprios vapores,

o único espaço que tinha para desenvolver o ofício e expor suas

peças. Mas depois, com o fim do regime militar, Lourdes rearranjou

seu trabalho em Pirapora, onde acabou fixando residência com Bar-

roso, que também não era de lá. - No início não gostei da cidade...

Só havia mato e uma igreja. Também sofri muito com o preconcei-

to das pessoas que implicavam com o fato de eu não ser casada,

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(À esquerda) Lourdes enquanto cantava a melodia de Cartola figurando a fren-te de um dos seus retratos de moça. (No topo da página) Ela e seu capitão, Francisco Barroso Lopes. (Acima) Pintura do vapor Benjamin Guimarães em óleo, feita por ela.

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apesar de viver com Barroso. Mas com o tempo, Lourdes adotou

Pirapora. Até porque a população precursora, que contribuiu para

o aumento demográfico da cidade, era composta, sobretudo, de

seus conterrâneos – os baianos. A própria criação da companhia

Navegação Mineira do São Francisco, em 1925, explica grande parte

desta história, pois, foi com o surgimento da empresa, que ribeiri-

nhos da Bahia e Pernambuco vieram para Pirapora (porto sul do

São Francisco) para as lides fluviais: “os baianos e pernambucanos

possuíam uma longa tradição como navegantes. Essa cultura, que en-

volvia o conhecimento do rio e das condições ambientais da região,

foi fundamental para a segurança das embarcações que as empresas

mineiras adquiriram em grande número até os anos 40”. 18

Por isso, quem viaja pela cidade nota com estranheza o forte so-

taque baiano em terra mineira. – É difícil ter uma família em Pirapora

que não tenha o baiano no meio, como disse Lourdes, que depois que

se afixou na cidade, acabou assumindo sua carreira como carranquei-

ra, o que lhe proporcionou renda e reconhecimento. Com o dinheiro

das vendas de suas carrancas – e nenhuma é igual á outra, visto que,

Lourdes não trabalha com peças em série -, comprou a casa que hoje

mora. O nome do ex-proprietário era também Francisco. Mas, apesar

da gratidão por tudo que as carrancas lhe proporcionaram, inclusive,

o prestígio pelo trabalho que desenvolveu, ela guarda certa mágoa

quanto ao fato de ter sido tolhida do desejo de continuar com a carrei-

ra de cantora, que o marido lhe prometeu que iria retomar, mas que

nunca aconteceu de fato. Tinha esperanças de ir para o Rio de Janei-

ro, e lá grassar carreira solo. Ali mesmo, em Pirapora, teve chance de

retomar, chegando até a compor uma música para ser cantada com

Sá e Guarabira, quando a dupla esteve na cidade: ‘Distância’. Mas não

pôde comparecer em função do veto de Barroso, fazendo com que

a “distância”, segundo ela, ficasse, de fato, cada vez mais distante. E

de uma Lourdes de voz rouca e entristecida ouvimos “Meu sonho era

cantar, mas hoje não posso mais”. Hoje, com mais de seis décadas de

vida, tenta adaptar com forte depressão o ritmo de seu corpo, mais

cansado e ligeiramente delimitado ao seu espírito que ainda continua

buliçoso, juvenil, melodioso. Refém daquelas memórias vivazes, pre-

sas em um corpo envelhecido. Para passar o tempo, borda pedrarias

nas roupas de diva que tem no seu guarda-roupa – lembra o tempo

dos palcos. Borda, também, na roupa dos filhos e netos, dois deles

também chamados Francisco. Pinta quando tem vontade. - O colorido

quadro do vapor Benjamin Guimarães na entrada da porta de sua casa

é obra desse passatempo. Esculpe quando tem inspiração. Mas, estes

afazeres são soluções paliativas que não dão cabo a sua inquietude

frente ao passado, constantemente presente. Cultiva lembranças em

fotografias, miudezas e mobílias de uma época que não se apaga. Mas

que infelizmente não volta. Mostrou-nos um bracelete que o saudoso

capitão Barroso a presenteou certa vez. Entristecia... Pedimos a ela,

então, para que cantasse. Sem hesitar, Lourdes aceitou o microfone

da câmera que o grupo lhe ofereceu, e de forma providencial soltou

com rouquidão o primeiro verso de uma música de Cartola que arre-

matava, de forma lindamente triste, a dor pelo término de uma histó-

ria – de Franciscos - que de tão peculiar parece fictícia:

Volto ao jardim

Com a certeza que devo chorar

Pois bem sei que não queres voltar

Para mim

Devias vir

Para ver os meus olhos tristonhos

E, quem sabe, sonhavas meus sonhos

Por fim

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As carrancas, figuras esculpidas na madeira, eram usadas na proa das barcas para orna-mentar e assustar maus espíritos - poder má-gico que os navegantes acreditavam que ela tinha. Curiosamente, as carrancas no Ocidente só se desenvolveram no rio São Francisco, no seu curso médio e surgiram por volta de 1875/1880. Os barqueiros são-franciscanos acreditavam que elas os protegiam contra os seres míticos que acreditavam ter no rio, como o cabloco d’água. Com o fim das barcas, elas se tornaram artigo de decoração, souvenir das cidades ribeirinhas, como Pirapora. A própria força do nome indica sua forma bruta -mistura de homem e bicho. Também são chamadas de figura de proa, cara-de-pau e leão-de-barca

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¹ “Além da natural economia de palavras, é importante ressaltar

que o uso da abreviado dos nomes denota intimidade e afetivi-

dade para com os vapores a exemplo dos velhos ferroviários que

amam suas locomotivas. “Assim, aquelas embarcações eram tra-

tadas como “gente de família”, especialmente entre os vaporzei-

ros”. (NEVES. 1999, p. 43)

² O Médio São Francisco: de Pirapora, MG á Santana do Sobradi-

nho, BA, com 1328 km de navegação franca. Baixo São Francis-

co: de Santana do Sobradinho ao Oceano Atlântico, com 748 km.

(PARDAL, 2006, p.26-28)

3 Junção de várias canoas amarradas umas as outras, com um ta-

buado por cima, servindo de piso. (LINS, 1983).

4 O médio São Francisco: uma sociedade de pastores guerreiros.

3a ed., definitiva

5 Peça disposta em todo o comprimento do casco no plano diame-

tral e na parte mais baixa do navio: constitui a “espinha dorsal”

e é a parte mais importante do navio, a que suporta os maiores

esforços. (Arte Naval p. 09 1-52 a.)

6 Pirapora: ensaio de tempos idos. Zazoni Neves, 1999, p. 34.

7 É a distância vertical entre a superfície da água e a parte mais

baixa do navio naquele ponto. (Arte Naval p. 72 2-60)

8, 9 LACERDA, Carlos. 1937, p. 119-20

10 O Médio São Francisco: Uma Sociedade de Pastores Guerreiros.

Wilson Lins, 1983, p. 145.

11 Minério Sulfato de cálcio hidratado, que se cristaliza no sistema

monoclínico; gesso. (Dicionário Michaelis, 1998-2009)

12 Designação de várias máquinas para levantar grandes pesos,

especialmente um tripé, formado por três pontaletes unidos no

topo, com roldana ou cadernal e cordas. (Dicionário Michaelis,

1998-2009)

13, 14 História do sertão noroeste de Minas Gerais (1690-1930). Ber-

nardo Mata-Machado, 1991, p.135.

15 “Continuador da tradição dos grandes escultores populares do

século XVIII, Francisco Biquiba Guarany, autor da maior parte das

carrancas que já vi” (PARDAL, 2006, p. XXXI)

16 Pirapora: ensaio de tempos idos. Zazoni Neves, 1999, p. 36.

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Bárbara Camargo

Barra do Guacuí: o encontro das águas e a história perdida

“Quando se visita [...] Guacuí, sente-se repassar ante os olhos, os

restos indeléteveis de um painel antigo. A alma cívica se volta quase

de joelhos para um Passado, no Presente esquecido. No cenário tran-

quilo, evocativo de grandes meditações, renascem como por mila-

gre, figuras revividas de audazes bandeirantes, de sertanistas e dos

humildes anônimos nordestinos que subiram o Rio São Francisco.

Como marcos permanentes na paisagem, apenas o Rio das Velhas,

presente para todo o sempre na íntegra de suas águas diminutas, ao

caudal lendário do Rio São Francisco, espinha dorsal, mediterrânea

que deu origem ao Brasil. É crime, grave crime o presente esquecer

o passado”.

Simeão Pires

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Chegamos a Barra do Guacuí, no início da noite de 14 de julho, depois

que encerramos nossa atribulada visita a Pirapora. No entanto, só

fomos conhecer seus segredos na manhã seguinte - dia 15. Foram

menos de 24 horas no lugarejo... Tempo suficiente para entender a

peculiaridade do distrito e perceber o severo abandono dos restos

de um mosaico histórico que ainda teima em resistir.

Falta de culto ao passado

Quem passa pela placa rodoviária na BR-365, que indica a en-

trada de Barra do Guacuí, a 23 quilômetros ao norte de Pirapora, não

consegue conceber que naquele pequeno distrito está enterrado

os restos de um passado, que congrega bandeirantes como Fernão

Dias, índios Cariris, grandes fazendeiros baianos do século XVIII e

jesuítas. Ou ainda, que ali acontece um encontro de águas... O rio

São Francisco se entrecruza naquele ponto com o rio das Velhas

– seu maior afluente em extensão! No entanto, não há nenhuma

demarcação ou placa, por mais rudimentar que seja para informar

os desavisados sobre as coisas substanciosas que se escondem

naquele arraial, - preterido em um norte já esquecido.

A entrada da cidade também deixa a desejar. Nenhuma indi-

cação dentro do distrito facilita a procura de visitantes pelos mar-

cos histórico que lá estão: a impactante Igreja de Pedra e também

a de Bom Jesus do Matozinhos... O encontro dos rios... Pistas,

talvez, do antigo e transviado cemitério de Guacuí, onde estaria

enterrado os restos mortais de Fernão Dias, e de seu genro, Ma-

noel Borba Gato – dois grandes desbravadores que participaram

juntos da Bandeira de 1674 que arroteou este grande território de

Minas Gerais em busca de prata e esmeraldas. Inclusive, o início

desta bandeira não foi muito longe dali: começou na cabeceira do

Rio das Velhas – em Ouro Preto, e deixou rastros permanentes

por onde passou, fundando arraiais como o de Sumidouro, hoje

Pedro Leopoldo. Outras histórias envolvendo Barra do Guacuí –

que já foi vila e município, mas que hoje é jurisdição de Várzea

da Palma –, são também, praticamente desconhecidas. Como o

episódio que conta que Barra teria sido cogitada para ser a nova

capital de Minas Gerais.

Todavia, apesar da monta cívica deste distrito e de se tratar

de um lugarejo de no máximo cinco longas vias, o que o torna

relativamente fácil de ser vasculhado, não é fácil fazer o levanta-

mento de sua historicidade. Juntar as peças de seu quebra-cabe-

ça: incompleto. As informações são assustadoramente escassas,

quando inexistentes. Raras foram as explicações que consegui-

mos in loco. E uma vez que se chega aos pontos lendários do dis-

trito, só resta o exercício da observação. Imaginar e pressupor.

Pois, não há alguém ou coisa alguma que demarque ou explique

o patrimônio que está defronte de quem passa. Cheguei a pensar,

inclusive, que este capítulo resultaria em um ensaio unicamente

sobre ‘ausências’. No entanto, aprofundando na pesquisa, foi

possível obter alguns dados sobre Guacuí, e o que era completa

‘ausência’ se transformou em uma breve história...

A frugal história de ocupação de Barra do Guacuí

O nome Guacuí vem da palavra Guaimihy-Uaimii 1 e significa

Rio das Velhas no dialeto indígena. No entanto, não está claro se é

no linguajar dos Tupi-Guaranis ou dos índios Cariris, que vieram do

Ceará para esta região - entre Pirapora e Barra do Guacuí-durante

o século XVII, em busca de caça e pesca, abundantes naquela épo-

ca, por estas paragens.

No entanto, o arraial foi fundado mesmo por Manoel de Bor-

ba Gato, em 16792, por conta daquela bandeira de 1674 que visava

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encontrar esmeraldas e prata por estas bandas do norte de Minas.

Guacuí – antigo arraial das Porteiras - foi escolhido porque ali, a

localização permitia aos bandeirantes que tivessem fácil acesso

à navegação tanto via rio das Velhas, que levaria até as serras e

minas onde seriam procuradas as preciosidades, quanto via rio

São Francisco - que interligava o arraial até Bahia e Pernambuco,

de onde vinham mercadorias (couro e sal) e a quem o território,

nesta época, pertencia. Visto que, até meados do século XVIII o

sistema político em vigência no Brasil remontava a época do início

da colonização e a região norte-mineira era divida em duas partes:

as porções localizadas na margem direita do São Francisco - de

responsabilidade da Bahia, e as porções á margem esquerda do

rio pertencentes às capitanias de Pernambuco. Barra do Guacuí,

por exemplo, foi até 1778 3, povoado subordinado do arcebispo da

Bahia. “Aqui o que se deve reter de fundamental é a articulação

entre o São Francisco e as cidades da Bahia e de Pernambuco, ver-

dadeiras cabeças de ponte do processo colonizador”. 4

Sendo inclusive, esta, a grande importância, legado, da ban-

deira de Fernão Dias para esta porção do país: substituíram-se,

pela primeira vez, as rotas das expedições no país até aquele mo-

mento, direcionadas somente para o sul, pelas marchas para o

norte, que passaram a desbravar territórios incógnitos do sertão

(interior brasileiro). Fundaram-se vilas e aos poucos o retrógado

sistema de capitanias foi se pulverizando, em função da movimen-

tação e organizações geopolíticas que passaram a existir em Minas

e no resto do Brasil com outras bandeiras:

Parte enfim para os serros pretendidos,

Deixando a Pátria transformada em fontes,

Por termos nunca usados, nem sabidos,

Cortando matos, e arrasando montes;

Os rios vadeando mais temidos

Em jangadas, canoas, balsas, pontes,

Sofrendo calmas, padecendo frios

Por montes, campos, serras, vales, rios. 5

Preza a lenda que Fernão Dias, morto por enfermidades du-

rante esta bandeira, estaria enterrado em Barra do Guacuí, depois

de seu corpo ter naufragado no Rio das Velhas enquanto era leva-

do para São Paulo, onde deveria ter sido sepultado. Porém, túmulo

teria sido abandonado, segundo o historiador Simeão Ribeiro

Pires6. Conta-se que Fernão Dias chegou a receber em praça pú-

blica um monumento em sua homenagem, mas não há docu-

mentário que comprove a eventualidade, pois, não haviam escri-

vães na época, e os registros da cidade datam somente a partir de

1843. Manoel Borba Gato também teria sido enterrado em Guacuí,

segundo boatos. Dizem que certa vez encontraram no antigo ce-

mitério, onde só haviam restos das muretas e uma remota cruz, a

inscrição ‘MBG’ – possivelmente, iniciais de Manoel Borba Gato.

No entanto, são apenas rumores, de uma terra sem confirmação.

Neste mesmo período – entre os séculos XVII e XVIII – padres

jesuítas também teriam feito suas andanças por Guacuí, e de certa

forma ‘contribuído’, deixando como rastro as, hoje, cortejadas e

características obras arquitetônicas desta ordem religiosa na ci-

dade. Herança do tempo das ‘cruzadas’ pelo Brasil. De busca e

conquista de “paraísos”. Ainda que fosse pela força catequiza-

dora. A Igreja da Pedra ou de Nossa Senhora de Matozinhos é o

testemunho desses momentos que os parcos documentários não

dão conta de aclarar ou rememorar com precisão o que, ao certo,

teria ocorrido naquelas conturbadas centúrias, que ficaram para

sempre enterradas no passado. Grandes fazendeiros baianos vieram,

da mesma forma, se estabelecer por ali. No Médio São Francisco de

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forma geral. E ao longo do rio assentaram seus currais. Na época,

buscavam expandir a criação de gado, até então extensiva – e

que necessitava de grandes espaços para a pastagem, o que de

forma intuitiva acabaram encontrando nos chapadões norte-mi-

neiro. Além disso, tinham interesse em adquirir com facilidade o

sal para seu gado, que era transportado pelo rio São Francisco, e

mais adiante, aspiraram a proximidade dos centros aurífero e dia-

mantífero, que dali a pouco, entrariam em efervescência, depois

que o rush do ouro foi inaugurado pelos paulistas. Afinal, nestas

regiões necessitada de víveres, teriam um mercado consumidor

promissório.

O fato é que Barra do Guacuí, que era um entreposto relativa-

mente importante até meados do século XIX, acabou não prospe-

rando como deveria, sobretudo, em função das grandes epidemias

de malária que assolavam constantemente a população na época das

cheias, o que acabou afastando negociantes e moradores. E que

com o passar do tempo, acabou por ruir suas chances de se emanci-

par e deixar de ser somente terra de lendas e de destroços esqueci-

dos... Como sua mais simbólica construção: a Igreja da Pedra.

Ruínas ao léu

Manhã de 15 de julho. Estacionamos o carro na sombra de

uma árvore e saímos em direção ao porta-malas para pegarmos

os equipamentos. Conferi minha bolsa, peguei a câmera fotográ-

fica e quando, finalmente, fitei a Igreja da Pedra: magnetismo...

O que havia acontecido ali? Enquanto caminhava em direção

aquelas ruínas fui reparando a estranha beleza daquilo. Era uma

robusta Gameleira no topo de uma construção secular. As raízes

enervadas e grossas da árvore tomaram conta de toda a parede

posterior da igreja e, a copa, imperiosa, se abriu lá no alto, onde

deveria estar o telhado do templo. A impressão que se tem é a de

que as raízes desceram, e não que subiram brotadas do chão. O

que é muito provável que tenha acontecido. Afinal, a gameleira é

uma árvore parasita que nasce de outra já existente e pode brotar

em situações das mais adversas. Inclusive, no topo de uma ruína,

se sustentando provisoriamente de outro vegetal. Desde que seja

semeada, tarefa que algum pássaro, abelha ou o próprio vento,

pode ter executado ao germinar com a semente ou o pólen da

gameleira outra planta qualquer, que já vivia lá no alto das pedras

da igreja e que com o tempo acabou por se desenvolver, buscan-

do por fim o solo distante. Engenhosidade do acaso. Inclusive,

é interessante notar outro fortuito: a ligação que as gameleiras

têm com o plano místico-religioso. Nos rituais afro-brasileiros a

árvore é considerada uma espécie de ‘planta-deus’ e suas folhas

são utilizadas no preparo de uma efusão sagrada para os cerimo-

niais sagrados. Para alguns povos da Antiguidade, a morte de uma

gameleira era um indicativo de maus presságios, e na Índia, é co-

mum a presença de gameleiras próximas aos templos budistas,

por serem consideradas sagradas.

Independente do misticismo envolto nesta planta e de qual

for a denotação que queiram dar àquela gameleira na Igreja da

Pedra, alegórica ou não, o fato é que, naquele templo, a árvore

tem uma função simbólica flagrante: ela preenche literalmente

uma lacuna arquitetônica do passado. A igreja que foi construída,

no século XVII, por escravos, provavelmente sob supervisão de

jesuítas, foi abandonada ainda em construção. A nave, por exem-

plo, não chegou a ser erguida. Isto porque, freqüentemente, nas

épocas de chuvas, o rio das Velhas – hoje diminuto, inundava o

local e o infestava de malária - “febre pútrida e intermitente”. 7 O

que acabou obrigando a população, doente e castigada, a migrar

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A gameleira e a Igreja da Pedra: a frondosa árvore brotou no topo das ruínas desta construção que remonta três séculos de existência. A igreja foi abandona-da antes de ser concluída e, ainda hoje, encontra-se enjeitada, não fosse a presença vivaz da planta que dela se apoderou. Trata-se de uma edificação jesuíta.

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para terrenos mais elevados e a fundar novo povoado: Várzea da

Palma. Casas e construções em Guacuí foram deixadas, inclusive

a Igreja da Pedra, ainda inconclusa. Assim, apesar da gameleira

ter apenas três décadas de idade – a Igreja tem mais de trezentos

anos, pois foi edificada entre 1650 e 1679 8 (não se sabe a data

ao certo) -, é cabal a sustança que a árvore forja dar, hoje, as ruí-

nas do templo, feito somente de pedras e argamassa de cal. Está

evidente a presente simbiose entre aquela obra e a natureza. As

raízes estão esparramadas por toda parte, e onde ainda resta pe-

dra sob pedra, há tentáculo da gameleira. Onde ela ainda não al-

cançou, está tentando alcançar... Por isso, se o Departamento de

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional não dá a devida impor-

tância aquele suntuoso elo de um passado remoto com o presen-

te, ao léu e à deleite das intempéries e do tempo, aquela frondosa

gameleira assumiu a diligência. Resolveu cuidar em definitivo.

Em Várzea da Palma, onde foram edificadas as igrejas do novo

povoado, uma delas inclusive em substituição a da Igreja Pedra,

o desmazelo com os bens nacionais também vigora. Em 1879, o

geógrafo e historiador Teodoro Sampaio que estudou a navegação

no Rio São Francisco, já observara o comprometedor estado das

Igrejas do município: “A obra, interior, seria, porém, digna de ad-

miração e de todo apreço, [...] se não fora o muito estrago e a

péssima conservação da belíssima arquitetura. [...] o vigário, coi-

tado, não tinha a mínima esperança de ver as coisas melhorarem;

encontrara-as assim, assim haviam de ficar...”. 9 E ficaram mesmo.

Hoje, cento e trinta anos depois, a situação é a mesma. Não há

conservação do que restou, e ninguém responde pelas edifica-

ções. Por essa razão me senti sobressaltada quando percebi mo-

vimento na casa ao lado da igreja. Aliás, se não fosse esta casa a

margem e os postes de iluminação em frente às ruínas, eu ficaria

confusa quanto ao tempo real daquela circunstância – século XXI

ou século XVII? -, tamanha vivacidade e caracterização da igreja.

Lá mora Luís - Lula, um homem de meia idade e de sotaque

nordestino, que, no início, ficou meio cabreiro com a minha apro-

ximação. Chamei-o para conversar e uma das poucas coisas que

me disse a respeito foi que, era ele quem mantinha os restos da

igreja em relativa segurança e limpeza, além de ter relembrado

alguns casos de tentativa de saque.

– Queriam levar o quê exatamente, Luís?, perguntei.

– As portas! Ameacei atirar uma pedra em um enxame que

tem aí dentro, e a pessoa acabou desistindo. Deu-se por vencida.

Já tentaram até tirar as pedras... Levantei as sobrancelhas surpre-

sa, como quem acaba de se encabular com um disparate. - Que tipo

de pessoa rouba a porta carcomida de uma ruína, pensei. O enxa-

me, que por sua vez Luís se referia, era de uma espécie de abelha

indígena sem ferrão, que existe ali, próximo a gameleira. E que,

curiosamente - do seu modo - auxilia na defesa da igreja (natureza

providencial?). Este tipo de abelha, de cor preta, prega um susto

em quem se aproxima. Pois, grudam – digo por observação da ex-

periência alheia – no cabelo do ‘intruso’ e lá ficam zunindo até ser

encontrada e removida. O que atemoriza, embora não pique. Esta

abelha é conhecida como ‘torce cabelo’ apesar de Luís, ter me dito,

que aquilo que azucrinava quem ousasse ameaçar o tesouro que

habitavam, era o ‘bicho Inhê’... Depois, divagou outra informação

relapsa: - As folhas da gameleira caem entre setembro e outubro...

Enquanto ouvi essa digressão, olhei para o topo da igreja contra a

luz do sol, com os olhos semicerrados, e pensei: talvez tenham sido

aquelas abelhas “indígenas” que polinizaram essa gameleira...

Momentos depois, já sozinha e, sentada próxima a cruz, pen-

sei de novo, desta vez mais desolada: onde anda, afinal, a historio-

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grafia desta terra? Guacuí, deveras, deveria ser um dos pontos da

inexistente “Estrada Colonial” do norte de Minas Gerais.

Um ponto de dois rios

Depois de vasculharmos a Igreja da Pedra, migramos, por volta

de meio dia, para a vizinhança do templo, um pouco mais ao norte,

onde acontece a confluência do rio das Velhas com o rio São Fran-

cisco. O calor era assaz. No momento em que chegamos, alguns

pescadores estavam reunidos na beira do Velhas discutindo coisas

da lida pesqueira, próximos a alguns capões e arvoredos. Porém,

não demorou muito para que concluíssemos que do ponto onde

estávamos não era ainda possível avistar a junção das águas. Além

disso, a idéia desde o início era observarmos a região por água e

não por terra. Tratamos, então, de prosear com alguns homens

locais e conseguimos negociar com um deles, nossa ida de lancha

até o ponto onde pudesse ser vistas as águas do rio das Velhas de-

sembocando no rio São Francisco. Oito reais fora o preço que ele

nos cobrara por cabeça. Partimos então barco adentro...

O Rio das Velhas nasce em Ouro Preto, próximo a uma área

de preservação ambiental. Cristalino, passa pelos municípios de

São Bartolomeu, Acuruí e até a confluência com o rio Itabirito, a

qualidade de sua água é desejável. Passado este ponto, sua trans-

formação se inicia. À medida que seu curso avança pela área cen-

tral do Estado, emissões de esgoto vão sendo despejadas em seu

leito. As quantidades só aumentam com a aproximação da região

metropolitana de Belo Horizonte – a principal responsável pela

degradação do rio, apesar de corresponder a somente 10% da área

territorial da bacia do Velhas. Em Sabará, recebe uma carga bruta

de esgoto in natura, sem qualquer tipo de tratamento prévio. Mas

é em Belo Horizonte que o Velhas se deteriora por completo: re-

cebe efluentes pútridos e industriais de vertedouros vindos dos

ribeirões Arrudas, do Onça, da Mata – todos tributários, alta-

mente poluídos. O ápice de sua degradação se dá em Santa Luzia,

quando já se congrega grande nível de toxidade, tamanha carga de

poluentes recebidos. Depois, aos poucos, quando começa a entrar

na porção média de sua bacia, e a contribuição negativa de seus

afluentes vai diminuindo, a água começa a se depurar. Nesta parte

já entrecorta as cidades de Curvelo, Corinto... Até que por fim, en-

contra sua Baixa porção e se extingui em Várzea da Palma (Barra do

Guacuí), onde se funde com o seu receptor: o rio São Francisco.

Pela coloração e pela viscosidade das águas já se nota: os

rios também têm tipificação. O Velhas é avermelhado, tem um as-

pecto barrento e denso... O São Francisco é menos turvo e mais

moroso. E é esse descompasso das aparências entre os dois rios

que facilita a observância do fenômeno da junção das águas, que

depois de certo ponto, se tornam um só feixe líquido em busca

da foz, em Alagoas. Apesar da poluição grotesca do Velhas con-

tribuir, sobremaneira, para que suas águas tenham aquela apa-

rência infetuosa, a explicação para sua coloração reside, também,

no fato de seu leito correr sob um terreno composto de minério

férreo, que geralmente, quando pulverizado em água, desprende

uma tonalidade avermelhada. Embora, esta pigmentação ferrosa

da água tenha se camuflado, nos últimos anos, em um marrom

escuro, conseqüência do alto índice de poluição acumulada no rio,

e que acabou por tirá-lo da brilhosa posição de ‘rio do Ciclo do

Ouro’– em função das descobertas de aluvião que Manoel Borba

Gato e Garcia Rodrigues fizeram durante pesquisas pelo Velhas e

seus afluentes -, imputando-o a pejorativa categoria de água pútrida,

de doenças, mau-cheiro e mortandade. Richard Burton 10, ficaria

no mínimo decepcionado se visse o atual estado do Velhas, que

Page 69: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

Encontro das águas: “pela coloração e pela viscosidade das águas já se nota: os rios também têm tipificação. O Velhas é avermelhado, tem um as-pecto barrento e denso... O São Francisco é menos turvo e mais moroso”. A pesca na intercessão das águas é evidentemente bastante recorrente.

Page 70: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

Ponto de dois rios: nesta localidade o Rio São Francisco (ao fundo) se entrecruza com o Rio das Velhas, seu maior afluente em extensão e seu maior agente poluidor: é da região metropolita de Belo Horizonte é de onde advém a maior carga poluidora de toda a Bacia do São Francisco. A coloração é bem distinta

Page 71: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

71

outrora descrevera-o como um rio de empolgante piscosidade, no

qual bastaria submergir um balde em suas águas para pegar, pelo

menos, uma dúzia de peixes. Realidade bem diferente da atual

que não é nada agradável de ser vista. Se antes o Velhas era si-

nônimo de abastança, hoje a bacia é considerada uma das mais

degradadas do estado, inclusive a maior tributária de poluição do

rio São Francisco. Apesar de sua importância sócio-econômica ser

indiscutível: concentra 4,5 milhões de pessoas no entorno de seus

761 quilômetros de extensão, e sua bacia é a mais próspera das

sub-bacias do Rio São Francisco – tem o maior Produto Interno

Bruto. Tendo sido, inclusive, o desenvolvimento econômico não-

sustentável dos 51 municípios que entrecruza, o maior algoz de

sua decadência ambiental. Principalmente, nos últimos 30 anos.

Quando sua riqueza natural foi ceifada pela mentalidade do de-

senvolvimento a todo custo.

Atualmente, graças a uma iniciativa pioneira de alunos do curso

de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, que deram

origem ao Projeto Manuelzão em 1997, a poluição mitigou e hou-

ve uma melhora na qualidade da água do rio Velhas que chega

ao São Francisco em comparação a uma década atrás. Em função

deste progresso, tem sido até noticiada a volta de algumas espé-

cies de peixes, então desaparecidas pelo comprometimento das

condições naturais do rio, como o mantrixã, dourado e piau. No

entanto, é patente o fato de que o volume de coisas a serem feitas

para reestruturar e revitalizar o Velhas seja ainda tão grande quan-

to todas as emissões de esgoto doméstico e industrial que o rio

recebeu nas últimas décadas. O que nas palavras do secretário de

Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, José

Carlos Carvalho, se resume em “tratar o rio como uma coisa efe-

tiva”. Premissa, que ao que parece, vem sendo cumprida desde

que o projeto de recuperação da bacia do Rio das Velhas foi posto

em vigor, em 2003. Nesse ano, empreendeu-se uma viagem para

monitorar as áreas de degradação do rio, desde sua cabeceira até

a foz, em Guacuí, perfazendo 801 quilômetros de travessia, e re-

sultou em estudos e planos de ação para reverter desgaste eco-

lógico do corpo d’água, hoje postos em prática. Dessa expedição

de 29 dias, surgiu, também, a meta do projeto: “navegar, pescar e

nadar no Rio das Velhas até 2010”, atualmente, amplamente difun-

dida pelo Estado em função dos resultados que vem sendo observa-

dos. Inclusive, um dos grandes feitos do Projeto foi ter conseguido

inculcar suas metas no plano de políticas públicas do Estado, que até

então se abstinha da responsabilidade. E, no presente, a Copasa e

Governo estadual integram a bandeira Meta 2010 – Revitalização

do Rio das Velhas. Entre as medidas prioritárias atuais de despolui-

ção da bacia estão a construção de Estação de Tratamento de Es-

goto (ETE), em Santa Luzia e Pedro Leopoldo, e também a inten-

sificação do tratamento de esgoto do ribeirão Arrudas e da Onça,

que devem ser construídas em 2010, quando análises da qualidade

da água do Velhas serão feitas de novo, para que se estude a via-

bilidade de enquadrar suas águas ao nível que estudiosos da área

classificaram como “dois”, ou seja, que podem ser utilizadas para

plantio de hortaliças e frutas, criação de peixes, para o lazer e ao

abastecimento domiciliar. Depois, é claro, de ser tratada.

Três canoístas que integram a equipe de mobilização do Pro-

jeto Manuelzão: Erik Wagner, Rafael Bernardes e Ronald Guerra

adiantaram parte deste processo de reavaliação do rio, viajando

de caiaque pelo Velhas, um mês antes da nossa incursão, em ju-

lho, pelo São Francisco. E apesar de terem concluído o que já era

esperado: que “as ações de revitalização não podem parar” 11, ou

nas palavras do Apolo Heringer 12 “a meta não está assegurada”,

Page 72: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

72

notaram um avanço considerável tanto na organização da po-

pulação ribeirinha em torno do Velhas como nas próprias con-

dições ambientais da bacia. Contaram para a revista Manuelzão

que chegaram até a consumir o peixe do rio – do baixo Velhas 13 -,

apesar de terem tomado as devidas precauções, como a avaliação

do aspecto do peixe por dentro e por fora.

Engraçado notar que embarcamos na mesma aventura dos

canoístas quando, na noite que chegamos a Guacuí, onde o Velhas

se encerra, pedimos em um boteco local (o único) - peixe para o

‘jantar’. O dono do estabelecimento nos serviu um tipo de pes-

cado que nenhum de nós ainda havia experimentado: a corvina,

espécie que muitos pescadores e funcionários de secretarias de

meio ambiente disseram, durante a pesquisa, estar em extinção.

Se o peixe veio do Velhas, nunca saberemos apesar de ser prová-

vel que tenha vindo, pois, mesmo com notificações como as do

Instituto Estadual de Floresta (IEF) que, vez ou outra baixa porta-

ria proibindo a pesca na região, entre Jequitibá e Barra do Guacuí,

pescadores continuam pescando, como pudemos flagrar nas adja-

cências do encontro das águas. O fato é que aquele peixe acom-

panhado de limão e mandioca frita, foi o melhor que comemos

durante toda a viagem – e foram mais de 900 quilômetros percor-

ridos! Talvez ele tenha vindo mesmo, da rede de algum daqueles

insistentes pescadores... Ou não. Se, veio, e estava contaminado

será um eterno mistério como tantas outras coisas são em Guacuí,

morada do Velhas. O fato é que nenhum de nós se sentiu mal de-

pois daquela simples, mas, deleitosa refeição. Muito pelo contrá-

rio. Se o peixe deixou algum resquício em nós, foi a nostalgia de

um afável sabor. E a dúvida de um momento vital para a bacia

do Velhas: estaria mesmo o Velhas se recuperando? Trazendo ani-

mosidade e alento também para o São Francisco, igualmente tão

avariado? Talvez tenhamos testemunhado, sem saber, o indício da

recuperação de duas hidrovias históricas tão pormenorizadas em

suas grandezas.

1 (CASAL, 1945-47)

2 Miliet de SAINT-ADOLPH, Dicionário Gráfico

3 VIEIRA NETO. 1982, p.84

4 NEVES, Z. 1998, p.32

5 Oitava 35 do poema “Descobrimento das Esmeraldas” de

1629, publicada pelo pseudônimo de Diogo Grasson Tinoco,

cujo real do autor é desconhecido.

6 Raízes de Minas, p. 95-96.

7 VIEIRA NETO. 1982, p. 80

8 Estimativa da Prefeitura Municipal de Pirapora

9 O Rio São Francisco e a Chapada Diamantinense, p. 147.

10 Richard Burton foi, entre outras coisas, escritor e explorador

que viajou pelo Rio São Francisco.

11 Revista Manuelzão n˚52, ano 12, julho de 2009, p. 14-17.

12 Apolo Heringer é o idealizador do Projeto Manuelzão e o de-

poimento foi retirado da Revista Manuelzão n˚53, ano 12, se-

tembro de 2009, p. 3

13 Baixo Velhas se circunscreve a confluência do Rio das Velhas

com o Rio Paraúna até a foz no Rio São Francisco (Guimarães,

1953)

Page 73: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

Tarsila Costa

São Romão: percepções distanciadas de uma cidade à beira-rio

“O saber deve ser como um rio, cujas águas doces, grossas, copiosas,

transbordem do indivíduo, e se espraiem, estancando a sede dos ou-

tros. Sem um fim social, o saber será a maior das futilidades”.

Gilberto Freyre

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Page 75: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

75

Lembro-me do dia que chegamos a São Romão como se fosse

hoje - dia 16/07/09 - quarta-feira. Era o começo de uma tarde bem

quente, senti aquele inverno sertanejo quando observei na balsa

as pessoas de blusa de frio. Na chegada à margem são romanense,

dirigi-me a um butequim, perguntei se alguém sabia onde havia

um hotel de preço modesto. Uma senhora de feição bem turva

disse não saber; olhei para outras pessoas do bar e todos balan-

çaram a cabeça afirmando o desconhecimento de um hotel na ci-

dade. Até que um rapaz gritou lá do fundo do bar: “Sobe essa rua

aí a direita que perto da rodoviária tem um hotel”. Agradeci e me

retirei do lugar, começara ali nossa imersão num espaço repleto

de histórias.

Quem chega pela estrada de Ibiaí avista uma cidade que

quando olhada de longe parece uma ilha. Três rios cortam a vila:

o Velho Chico, Paracatu e o Urucuia. Para chegar a São Romão

vindo por ibiaí é necessário pegar uma balsa que atravessa o Velho

Chico. Tive a impressão durante a travessia até a outra margem

que o tempo escorria junto com aquelas águas, tive o sentimento

que estava indo para um lugar que transgredia a lógica linear do

tempo urbano. Podia ver as pessoas da cidade observando quem

vinha com a balsa; mas não tinham uma feição alegre, e o rio São

Francisco com certeza já tinha trazido muitas alegrias e tristezas

em suas águas para aquela gente.

O município de São Romão guarda um acervo histórico di-

verso na tradição oral que alguns poucos moradores daqui ainda

guardam em suas memórias e recontam para manterem viva a

história tão mal documentada dessas paragens. Para quem chega

de fora querendo descobrir mais sobre a emblemática transversal

do tempo que se instalou na história do município, pode ficar

confuso com as várias versões que gravitam entorno de fatos

não documentados. Portanto, faz-se necessário traçar uma linha

entre a imaginação e alguns fatos que são recontados por meio

de historiadores e da memória social dos são romanenses para

que possamos ter um panorama situacional da cidade. Para se ter

idéia, a secretária de cultura da atual gestão, Cândida Dionísia do

Nascimento, declarou: “registro da história, documentação nos

não temos praticamente nada”. Ela ainda afirmou que se podem

encontrar alguns documentos históricos em Uberaba e Portugal.

As impressões da Coroa no século XVII sobre o sertão mineiro

são bem alegóricas, embora correspondessem de certa dose de

veracidade. De acordo com o trecho da obra de Romeiro Botelho

utilizado no Inventário de Proteção do Acervo Cultural, feito pela

Prefeitura de São Romão:

Essa região era denominada sertão das Minas. Era uma área que

além de contar com uma população que não estava inserida nas

engrenagens da economia mineradora – geralmente índios bravos,

facinorosos, bandoleiros, vadios e quilombolas – não possuía ouro.

Nos primeiros relatos sobre a região aurífera, em fins do século XVII,

o sertão aparece como lugar inóspito, de difícil acesso, cortado por

rios caudalosos e intransponíveis, envolto em matas fechadas e es-

curas. Entretanto o povoamento rápido e intenso, acelerado nos pri-

meiros anos oitocentistas, resultou na territorialização do sertão.

Para as autoridades, o sertão afigurava-se-lhes como lugar de revol-

ta e motim, cenário por excelência da insubmissão política, espécie

de terra sem lei que resistia à implantação do poder e da ordem.

Nele imperavam potentados. (Botelho, Romeiro, 2003:271)

A história desse antigo entreposto comercial que fazia o elo co-

mercial entre os sertões e o litoral no século XVIII é mais antiga do

que as fachadas mal-tratadas e casas antigas derrubadas presentes

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76

e ausentes nesta cidade. Conflitos e contendas marcaram a data

em que São Romão foi fundada enquanto arraial. Os índios nati-

vos caiapós e a bandeira de Manoel Francisco Toledo travaram in-

tenso conflito, datado em 23 de outubro de 1719. Segundo Telêmaco

William Dias Palma, artista plástico e morador do munícipio, “São

Romão antes dos portugueses era habitado por índios caiapós;

aqui tinha a aldeia Guaíba. Então para os portugueses coloniza-

rem o Brasil central, a única via era o rio São Francisco. Eles [os

portugueses] tiveram que matar os índios, foi a maior matança

do Rio São Francisco; posteriormente a essa matança fundou-se o

arraial de Santo Antônio da Manga, o nome São Romão foi dado

à ilha após o extermínio”. Ainda, os índios que não foram mortos

foram expulsos de suas terras, como datado no Inventário do pa-

trimônio da cidade. Segundo a biblioteca digital do IBGE (Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística), a causa de tal nome foi em

razão de ser o santo do dia. O sangue indígena derramado foi ce-

lebrado pela Igreja nesse dia, pelo fato dos bandeirantes terem

conseguido tomar a ilha. A aldeia dos Guaíbas é localizada numa

ilha que segundo o IBGE dividia o grande rio em dois braços.

Como já foi dito a única via de acesso aos sertões era o Rio

São Francisco, e, junto com suas águas, metais preciosos, pro-

dutos agropastoris, descia o sangue indígena do povo sertanejo.

A primeira metade do século XVII foi palco para violentos embates

entre o povo do sertão e a Coroa no alto do Vale do São Francisco.

Após o massacre indígena, mais um conflito trouxe o dissabor

para os são romanenses. Em 1736 houve outro conflito no arraial.

A população se rebelou com a coroa devido à tarifa de captação

que havia sido implantada pelos portugueses; parecia que os são

romanenses resistiam à dominação do império, não apenas por

valentia, mas, conta-se que a pobreza era farta por aqui. De acordo

com o Inventário, a região pouco sofria com os tributos impostos

pela Coroa. Os pobres nessa época, segundo a historiadora Carla

Maria Junho de Anastásia, eram chamados de arraia-miúda e re-

sistiram a pagar a taxa, o que culminou em outro violento capítulo

da história de São Romão com inúmeros mortos e feridos. Mas o

povo sertanejo que se envolveu em tal conflito não queria apenas

a liberação da taxa, queria a soberania da região dos sertões. Estes

movimentos buscavam a libertação da política vigente: na época

foram denominados “motins do sertão”. O trecho da dissertação

de mestrado de Carla Maria, intitulado a sedição de 1736, ilustra o

contexto dos chamados “motins do sertão do São Francisco”:

Em 6 de julho de 1736, os amotinados, mais de 900 homens, vindos

das beiras do São Francisco, de “baixo e de cima”, entraram em São

Romão, exigindo que o governador aliviasse a capitação. Caso con-

trário, voltariam, no prazo de 33 dias, e dali, partiriam armados para

as minas (...) Após o prazo de 33 dias, os amotinados seguiram para

São Romão, liderados por Pedro Cardoso, investido do cargo de pro-

curador do povo (...) A pretexto do chamado dos moradores das

minas, os amotinados pretendiam conquistar Sabará e chegar até

Vila Rica(...)”(Anastásia Apud Botelho, Romeiro, 2003:206).

Depois de uma série de revoltas, a coroa reprimiu mais uma vez

com toda força que poderia, matando os que se manifestaram contra

a taxa e, em seguida, implementou o sistema de capitação. Após o

ocorrido, parece que foi selada uma paz com ares de um passado san-

grento, um passado de lutas e rebeliões. Certo estranhamento pelos

forasteiros parece ser cultivado até os dias de hoje no imaginário co-

letivo do povo de São Romão, embora a história não seja uma lacu-

na que se encerre em si mesma: em todos os lugares há pessoas que

transgridem com a mentalidade do espaço tempo que se encontram.

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O patrimônio histórico ou a falta que ele faz

Telêmaco nasceu e foi criado na cidade de São Romão, e, um

pouco mais tarde foi morar na capital Baiana, Salvador, onde resi-

diu quinze anos. Segundo o artista, quando chegou a Salvador era

viciado em álcool e cigarro, embora tenha abandonado esses vícios

ao descobrir sua paixão pela pintura. Na ocasião da conversa, escu-

tava Led Zeppelin. Havia ainda vários quadros na sua varanda, qua-

dros produzidos na sua estadia em Salvador retratando a própria

cidade. As crianças se enlaçavam curiosas entorno dos quadros

que ele colocara para fora; elas discutiam as pinturas que gostavam

mais ou menos e algumas obras que pareciam formas mais abstra-

tas. Telêmaco mostrou uma série que fez sobre os vendedores de

cafezinho de Salvador; falou do campeonato que havia entre eles

onde o carrinho mais belo era premiado, falou da época que morou

na parte antiga da cidade e de um episódio que o marcou profun-

damente: a casa em que morava pegou fogo e ele perdeu muitas

coisas. Disse que havia ficado muito angustiado de ter perdido um

caderno de anotações sobre a sua vida que carregava com ele pra

todos os lugares. O quadro sobre os 500 anos do Brasil chamou

muito minha atenção. No desenho da bandeira brasileira não des-

pontava o escrito ordem e progresso, antes, um negro sangrando

sentado no centro do losango amarelo; embaixo um prato onde o

sangue escorria, servindo de alimento aos insetos e ratos.

Telêmaco falou sobre a intolerância racial em São Romão, a

não valoração da cultura e história dos são romanenses e do pró-

prio poder público local. Ele nos mostrou uma foto antiga da cida-

de com as casas que a compunham outrora. Estas tinham fortes

característica da arquitetura portuguesa; hoje restam poucas edi-

ficações dessas que estavam na foto. Falou inclusive sobre uma

casa azul que se localiza na avenida Newton Gonçalves Pereira,

não muito longe da beira-rio. Na parte superior da parede fron-

tal ainda é possível ver o brasão da república. Conta-se por aqui

que a ali era uma casa da moeda instalada pela Coroa. Telêmaco

desmentiu, dizendo que naquela casa morava uma família, nada

mais. O artista parece ser um trovador nessas bandas. A antiga

cadeia, fundada em 1880, localizada na praça dos fróis, segundo

Telêmaco, também não abrigou o assassino do marido da famosa

proprietária de muitas terras, Joaquina de Pompeu. Essa é a his-

tória que povoa o imaginário dos moradores de São Romão. Telê-

maco conta outra história: “Joaquina de Pompéu não frequentou

São Romão. O que houve é que teve uma Joaquina de Rafael, uma

fazendeira de Ribeirão da Conceição, de riachinho. Ela mandou

matar o genro dela, só que ele era de uma família de Paracatu;

a família dele então jurou que ia se vingar. Prenderam-na. Então

era Joaquina do Rafael, o pessoal veio com a história de Joaquina

do Pompeu e era Joaquina do Rafael”. Ainda se conta que na An-

tiga Cadeia, atual casa da cultura, havia um porão onde os presos

eram colocados. No local havia forcas entre outros acessórios que

marcam a opressão e o sofrimento dos que passaram pela antiga

cadeia. Não se vê hoje em dia nem esses acessórios nem mesmo

o porão: esse foi soterrado segundo o plano de inventário da ci-

dade, por volta de 1930, numa tentativa de apagar um passado de

sofrimento e opressão. Diz-se, ainda de acordo com o inventário,

que sacas de sal foram colocadas no antigo porão com o objetivo

de esfriar o local, “Aos poucos os presos sentiam os efeitos no or-

ganismo: inchavam, ficavam pálidos e sem ar, até virem a falecer”.

Este sal encontrado nos porões da antiga cadeia chegou a São

Romão, segundo Mata-Machado, no período colonial, no século

XVII, devido ao município ter sido um dos portos distribuidores de

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Uma das obras de Telêmaco William Dias Palma

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sal da época. Ainda Mata Machado diz que a farinha de mandio-

ca, a rapadura, a cachaça e o peixe eram produtos fornecidos ao

pessoal que trabalhava nas minas. O sertão mineiro, ou os Gerais,

abasteciam as minas com sua produção agropastoril.

Há tantas histórias nesses sertões, que quando vejo a capital

do Estado de Minas Gerais, pergunto-me, onde estão os Gerais?

Infelizmente só percebo os mineiros recontando eternamente a

Inconfidência Mineira.

Os batuques que guardam história

A formação racial diversa dos são romanenses é presente na

cor morena e negra que pode ser percebida nos moradores, em-

bora já fosse percebido por Donald Pierson na década de 50, du-

rante pesquisa feita para a produção do livro “O homem do Vale

do São Francisco”. Ele notou grande participação africana nas ex-

tremidades do Vale, principalmente onde havia o plantio de cana-

de-açúcar. Outras observações interessantes foram feitas sobre

São Romão, quando Teodoro Sampaio passou por aqui por volta

de 1890. O antigo arraial ainda se chamava Vila Risonha de Santo

Antônio da Manga de São Romão. Ele observou uma grande tris-

teza no povoado, além da pobreza e da feiúra que levou com suas

impressões etnocêntricas da vila.

De negros tristes, restaram algumas histórias como a de dona

Maria da Conceição Gomes de Moura, mais conhecida como dona

Maria do Batuque. Senhora de 81 anos, mora na antiga parte da

cidade, que de antiga atualmente apenas possui algumas poucas

casas com características portuguesas: a Igreja do Rosário, a an-

tiga cadeia e um antigo pé de Tamarindo. Mostrando que algum

dia, em algum tempo que não foi documentado, a coroa portu-

guesa tentou instalar-se de maneira eficaz por aqui. Dona Maria

tem o olhar cerrado, e, quando fala do seu batuque e dos seus

antepassados, é possível ver a relação de cuidado que tem com a

herança cultural que herdou dos seus antecessores. No chamado

batuque de Ernestina, guiado por ela, acontecem festejos, can-

tos e danças folclóricas como o bumba-meu-boi, caboclo e o São

Gonçalo, realizados em seu terreiro desde os seus sete anos. Os

instrumentos usados no batuque são de confecção própria: ron-

cador, caixa, tambor. Com a trança amarrada e o lenço na cabeça

ela fala que já plantou e colheu nessa terra; muito brava, ela diz

que no dia em que morrer quer que pegue todo o seu batuque e

enterre com ela: ”Não quero deixar nada pra essa cidade”, protesta.

Dona Maria diz que as manifestações de seu povo não são valori-

zadas, nem pela população, nem pela prefeitura. Diz também que

São Romão é uma cidade muito racista. Apesar de tudo isso, dona

Maria nunca saiu da cidade e seus antepassados foram todos en-

terrados ali. É como se fosse muito ruim ficar nesta situação de

descaso, mas pior seria ficar longe de suas raízes. Pareceu-me que

há uma relação de necessidade entre dona Maria e São Romão,

embora ambos não tenham percebido isso. D. Maria representa a

cultura negra da cidade com seus cantos, suas histórias, seu com-

portamento, sua oralidade. Não queria se filiar ao inventário do

patrimônio histórico de São Romão por se julgar abandonada pela

administração pública. Daqui alguns anos, quando dona Maria se

for e enterrar consigo todo seu batuque, parte importante da his-

tória de São Romão mais uma vez irá se perder.

Ela conversava e tentava nos olhar, embora tivesse muita di-

ficuldade em razão de sua limitada visão. Não há como esquecer

dona Maria dançando a dança do xién (determinação de xien), se

coçando e se batendo para fazer menção à coceira que esse bicho

dá quando gruda no cabelo: “Ô xien bicho danado”, ela dançava e

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cantava celebrando um passado que faz parte da história de São

Romão e que indiscutivelmente faz parte da história do povo bra-

sileiro, povo este que possui uma matriz negra marcante. Há mui-

tas histórias que foram soterradas pelo tempo devido o descaso

com o patrimônio. No entorno da casa de Dona Maria, encontra-

se um patrimônio largado, esquecido. A Igreja de Nossa Senhora

do Rosário está pintada por fora, mas no inventário do patrimô-

nio cultural se diz que muitas imagens e adereços se perderam:

roubos, descuidos podem ser uma das razões dos monumentos

estarem assim.

Quando olho para dona Maria vejo-a, por ora, como esses pa-

trimônios mal-preservados e desvalorizados. Há, todavia, uma re-

lação entre ela e esse contexto de desamor com a própria história

e cultura. Dona Maria resiste, toda vez que reúne sua banda e fes-

teja sua cultura em seu terreiro. Os cantos afro-brasileiros toma-

ram forma num belo trabalho produzido pelo músico Rafael Duarte,

intitulado: “Batuquim vai abaixo, vai não”, no ano de 2007. Dona

Maria do Batuque é o maior símbolo de resistência cultural de São

Romão, a história deverá justiça a tanto esquecimento.

Quando se caminha pela parte antiga, há alguns vestígios histó-

ricos como a igreja Nossa Senhora do Rosário, símbolo importante

da colonização portuguesa datada no século XVII. Outras casas de

estilo português ainda são possíveis de se ver. Estas casas destruídas

ou depredadas atestam uma história que remonta nosso processo

de colonização, embora antes dos portugueses chegarem aqui com

suas bandeiras em busca de pedras preciosas e poder no século XVII,

nas margens do grande opará - ou rio-mar (nome em tupi guarani do

Velho Chico) - os índios Caiapós já estivessem aqui.

São Romão era um arraial que abrigava forasteiros de toda

sorte. Segundo a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, índios

nômades ou aldeados, de escravos fugidos, infestavam as mar-

gens do grande rio, assaltando caravanas e contrabandeando

ouro. Um mar populacional desaguava da Bahia de Todos os Santos

em direção ao centro das Minas, movidos pelas promessas de

pedras preciosas e riqueza fácil, além do que, nesses sertões não

havia fiscalização intensa da coroa. É possível imaginar quantas ri-

quezas eram escoadas pelo São Francisco nessa época e quantos

conflitos, roubos e saques eram travados nessas terras, sobretu-

dono auge da extração aurífera. Mais especificamente no norte de

Minas era fomentada a atividade agropastoril. O fluxo de pessoas

e mercadorias motivadas pelas descobertas trouxe os negros, ban-

deirantes, portugueses para as terras interioranas do Brasil que

outrora fora dos índios; muitos fugiam da costa brasileira, que, a

partir do século XVI já estava colonizada pelos portugueses.

No processo de povoamento dos sertões, vários arraiais co-

meçaram a aparecer devido ao fluxo de pessoas e produtos que

passavam pelo Rio. Esses arraiais não se formavam e permaneciam

fixos - muitos desapareciam -, perdiam o fórum de Vila porque as

pessoas em determinado tempo simplesmente iam embora em

decorrência das condições gerais de sobrevivência. Teodoro Sam-

paio quando passou por aqui se sentiu intrigado com o apareci-

mento de determinadas vilas, mesmo sob condições precárias. Ele

refletia que algumas cidades nas quais chegou não havia ninguém:

o biólogo se sentiu impressionado com a situação de instabilidade

que o povo sertanejo estava entregue. Segundo Telêmaco, como

o desenvolvimento e com o nascimento de outros povoados e

vilas na região, a cidade entrou em decadência. Algumas famílias

brancas foram embora, evadindo da cidade. Chegou-se ao ponto

de São Romão, em 1873, perder o fórum de Vila. Ainda não havia

funcionários para trabalharem na comarca, denominada enquanto

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Os padrões de conservação do patrimônio em São Romão, como em boa parte do norte de Minas, praticamente inexistem. As herenças históricas passam por reformas aleatórias sem a conservação da estrutura original, perdendo a maior parte das características arquitetônicas: a memória se perde com a forma; e São Romão é uma das cidades mais antigas de todo o Vale do Sâo Francisco. O Governo Federal não está, certamente

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Cabeça do São Francisco. Com o desenvolvimento de São José da

Pedra dos Angicos, atual cidade São Francisco, São Romão perdeu

a importância econômica, sobretudo pelo fato de outras alternati-

vas de vias serem criadas para suprir as necessidades dos lugares

que havia atividades de mineração, como a abertura da estrada

para o Rio de Janeiro. Descentrou-se, a partir daí, a necessidade

de abastecimento de mercadorias vindas do vale para as regiões

de atividades de mineração.

Em relação à densidade demográfica de São Romão, há um

dado curioso: se observarmos a tabela sobre o número de pes-

soas que habitam no município desde 1991, veremos que a popu-

lação está decrescendo. Se em 1991 havia 14.562 habitantes, no

ano 2000 o censo realizado pelo IBGE calculou 7.783 habitantes.

Já no ano de 2007 houve um pequeno crescimento populacional

- foram registradas 9.080 pessoas. Muitas pessoas migraram da

zona rural para zona urbana de São Romão, embora a cidade pa-

deça de uma verdadeira estrutura comercial. O que, segundo uma

são romanense de mais ou menos 10 anos, é muito ruim para a

economia das famílias da cidade. Rememoro-me da indignação da

pequenina em relação aos altos preços dos produtos: “Imagina

que o quilo da carne aqui é R$15,00, o gás está saindo a R$50,00, o

caderno brochura está R$4,00, o lápis R$0,20. Para complementar

a indignação da preocupada garotinha, disse que uma calça jeans

está saindo a R$100,00. “Não tem como comprar nada aqui, quan-

do precisamos de algo compramos fora” palpita. O Produto In-

terno Bruto (PIB) per capta de São Romão é de R$4.269,00 reais,

embora o rendimento médio mensal de um são romanense seja

de R$306,42. De acordo com o Departamento Intersidical de Esta-

tística e Estudos Socioeconômicos, DIEESE, a cesta básica - tendo

como referência a cidade de Belo Horizonte e o mês de agosto de

2009 - alcançou R$213,51 reais. Para a população de São Romão

isso já é caro, mas ao que parece, a cesta básica em São Romão

não é uma necessidade essencial. Há um luxo capcioso nesses

preços; mas quando falamos de necessidade por aqui, temos que

considerar que a população vive, ainda, praticamente de subsis-

tência, vista na pecuária, na agricultura e em alguns poucos servi-

ços. O caráter histórico dessa ausência de serviços foi observado

por Teodoro Sampaio quando passou pelo Vale no século XIX:

“vive-se com pouco por aqui (...) vive-se de brisa”.

É interessante acompanhar a trajetória histórica dessa cidade

que em 1831 foi elevada e nomeada de Vila Risonha de Santo Antônio

da manga de São Romão depois de tantos conflitos e problemas,

sendo em seguida reduzida a um simples distrito de Angicos. Foi

em 1923 que se emancipou enquanto município, embora sofra de

lá pra cá constantes tentativas de apagar sua própria história. De

alguma herança do patrimônio indígena em São Romão restou a

ilha dos Caiapós e alguns artefatos que até hoje - quando se fazem

obras no município - são achados pelos moradores, que, em sua

maioria, não guardam nem em suas memórias e nem em algum

espaço público, se não vendem aos antiquários ou apreciadores.

Júlio César, segundo reportagem feita no jornal Hoje em Dia, o

baiano nascido em Petrolina (BA) chegou a São Romão menino e

sempre tentou cuidar do patrimônio de sua cidade. Em uma casa

alugada em Ceilândia do Sul, Distrito Federal, Júlio guarda um

acervo de 2800 peças. São artefatos indígenas, algemas, até um

baú cheio de moedas de prata e cobre da época do Brasil colônia

que, segundo ele, foi descoberto quando a prefeitura realizou al-

gumas obras de asfaltamento na cidade.

É necessário ter muita imaginação para desvendar o que ocor-

reu por aqui, mas há uma aura que acompanha São Romão e que

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(Esquerda) Cartaz afixado logo na entrada da prefeitura da cidade. (Acima) Garoto assistindo às obras do artista local Telêmaco William Dias Palmas. São Romão é tão histórica quanto isolada no vale do São Francisco. (Direita) Garotos em primeiro plano com outra obra de Telêmaco ao fundo, só que agora retratando os vendedores de cafezinho em Salvador.

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jamais será apagada: a maioria das histórias desta cidade veio tra-

zida pelo Rio São Francisco. Olhar para suas águas é como se olhar

para uma espécie de espelho turvo que mostra no seu reflexo sua

atual condição: um passado repleto de histórias e de vestígios em-

blemáticos que se encontram ameaçado pelo descaso e abandono

da população e da administração pública federal e estadual.

1 Plano de Inventário de São Romão. 2007. Cedido pela prefeitura

local. O documento não possui paginação.

2 Disponível no site do IBGE, www.ibge.gov.br

3 Carla Maria Junho Anastasia. A sedição de 1736: estudo compa-

rativo entre a zona dinâmica da mineração e a zona marginal do

sertão agro-pastoril do São Francisco. Belo Horizonte: Dissertação

de Mestrado, DCP-UFMG, 1983.

4 Plano de Inventário de São Romão. 2007. Cedido pela prefeitura

local. O documento não possui paginação.

1 Bernardo Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de Mi-

nas Gerais. Publicado em 1991, p.37

5 Donald Pierson. O Homem no Vale do São Francisco. 1972.

6 Teodoro Sampaio. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina.

2002.

7 Disponível no endereço www.dieese.gov.br

8 Teodoro Sampaio. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina.

2002, p.47.

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Bárbara Camargo

Januária: outras histórias além da boa e velha cachaça

“À Januária eu ia, mais Diadorim, ver o vapor chegar com apito, a

gente esperando toda no porto. Ali, o tempo, a rapaziada suava,

cuidando nos alambiques, como perfeito se faz. Assim essas cacha-

ças — a vinte-e-seis cheirosa — tomando gosto e cor queimada, nas

grandes dornas de umburana”.

João Guimarães Rosa

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Antes de Januária, Brejo do Amparo

Antes de Januária constar no mapa de Minas Gerais, em 1860,

e ficar conhecida por sua velha e boa cachaça, um povoado cha-

mado Brejo do Amparo já existia há quase 200 anos. E foi este

distrito, ainda hoje rural, que deu origem a Januária.

Este lugarejo, que exala cheiro de rapadura, está localizado a

cinco quilômetros de distância do rio São Francisco, na parte alta,

e foi um dos pedaços de terra que os bandeirantes granjearam no

sertão brasileiro, no século XVII. Nesta época, aqueles que não se

aventuravam nas expedições à procura de gemas e de quinhões

de ouro, fundavam fazendas nas margens do rio São Francisco

para criar gado e roça a fim de abastecer a população das minera-

ções, recém-descobertas. Visto que, essas minas geratrizes sacia-

vam somente o capricho de seus desbravadores com suas rique-

zas minerais, e mais nada. Pois, neste período das bandeiras, não

havia ainda nas cercanias, cultivo de frutas e hortaliças que pudesse

abastecer o povoado, que ao redor das minas, ia se formando. A

natureza por estas bandas ainda era virgem. Daí, estas incursões

em busca, também, de terras que tivessem potencial para o plan-

tio e para o pasto, provendo, assim, sustento para esta região au-

rífera que inchava sem controle. Esta fase, inclusive, é conhecida

como “Ciclo do Gado” e o São Francisco como o “rio dos Currais”,

pois, de suas margens, tomadas por fazendeiros, despachava-se,

além de alimentos, animais para montaria e serviços pesados.

O “rio São Francisco tornara-se despensa das Minas”1, neste

momento. Dessas fazendas mandava-se, principalmente, carne

seca, rapadura e peixe, e Brejo do Amparo, que nos primórdios

chamava-se Brejo do Salgado, foi um desses domínios fundados

por bandeirantes que queriam se enriquecer fazendo intercâmbio

com a região das minas e, também, com o nordeste, outro mercado

consumidor, então, importante. O local foi escolhido por causa

das ótimas condições de plantio que o terreno apresentava. Era

fértil e naturalmente irrigado, com uma água salinizada - daí vem

o nome brejeiro e a designação ‘Salgado’ -, e foi esta fertilidade

que impeliu o bandeirante português Manuel Pires Maciel2 a fun-

dar o vilarejo e a iniciar as atividades campesinas tão requisitadas

nesse tempo: criação de animais e a produção dos derivados da

cana, como açúcar. Pires instalou, inclusive, um engenho movido

por água, que dizem ter sido o primeiro do tipo no sertão, e já

em 1670, as pioneiras instalações do Salgado produziam os pri-

meiros litros da cachaça que, séculos depois, correria fama pelo

país inteiro. A produção do brejo prosperou tanto, que no século

XVIII, despontava como “o maior empório comercial entre o Alto

e o Médio São Francisco”3, tamanha demanda e produção de suas

iguarias. E foi o escoamento massivo destas mercadorias que o

povoado do Salgado produzia, por intermédio do São Francisco, o

grande progenitor de Januária.

O despontar de Januária até o novo ciclo da aguardente

Cachaça, rapadura, garapa... Estas e outras provisões saíam

constantemente do Brejo do Salgado no lombo de burros e carros

de boi e seguiam para a margem mais próxima do rio São Francisco,

onde a estrada desembocava. Lá, à beira rio, eram estocadas e ne-

gociadas com barqueiros e sertanistas, e foi esta movimentação

constante de embarque e desembarque de cargas, sempre em um

mesmo ponto, que acabou por regularizar um porto, um ‘depósito

de mercadorias’ na riba do Velho Chico: o ‘Porto do Salgado’, pri-

meiro codinome de Januária. Simultaneamente, com o desenrolar

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Foto histórica adquirida junto ao acervo da cachaçaria Claudionor

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O cais de Januária em fotografia de decada de 40. Sabe-se pela historiografia da região que o porto foi fator precípuo para formação do povoado.

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dos anos e com a intensificação dessas atividades comerciais, fora

se ajustando ali, novos moradores atraídos pelas facilidades que o

escambo, naquela informal beira portuária, ia dispondo. E o ‘porto’,

que foi durante certo tempo somente o escoadouro de produtos

do Salgado, cresceu em importância, passando a ter, igualmente,

um núcleo povoador. Esta monta que o Porto alcançou contribuiu

para que os dois lugarejos - o Brejo e o Porto – fossem transformados

em uma só jurisdição em 1811, quando se unificaram na condição

de distrito, até que, em 7 de outubro de 1860, o distrito se tornou

município. Inclusive, o Brejo passa a ser um bairro (Bairro Alto) da,

então, nova cidade: Januária.

Este nome (Januária), que nada tem a ver com os nomes an-

teriores – Brejo e Porto do ‘Salgado’ – tem três versões explicativas

para sua origem, e nenhuma delas parece fazer muito sentido,

segundo os próprios historiadores. A primeira conta sobre uma

suposta ex-escrava, chamada Januária, que teria se tornado po-

pular no povoado por ter criado, próximo ao porto, uma ‘casa’ de

bebedeira e de prostituição conhecida dos navegantes que viviam

a zanzar. Acontece que, nesta época, como explica o pesquisador

e conterrâneo de Januária, Antônio Emílio Pereira4, era pratica-

mente impossível que uma pessoa de cor preta fosse homena-

geada, ainda mais nestas condições envolvendo um escravo e a

balbúrdia. A outra hipótese, também, pouco provável, conta que

o nome teria sido uma honorificação à princesa Januária, irmã de

Dom Pedro II, que nunca esteve na cidade e nunca teve nenhum

vínculo com a região. Além disso, no período em que o município

foi homologado, ela só tinha 11 anos de idade e nenhuma influência

política. A terceira hipótese para o nome da cidade versa sobre

Januário Cardoso, sertanista que dominou, no século XVII e XVIII,

a região do norte de Minas. Daí a suposta referência. Entretanto,

questiona-se a razão de querer homenageá-lo mudando seu nome

para o feminino e não deixando como no original. Mas, seja qual

for o motivo da denominação Januária ter vindo a calhar, o fato

é que o município experimentaria, dali a pouco, outros episódios

determinantes para a sua história como o início da navegação a

vapor no rio São Francisco, por volta de 1870; a eclosão do ciclo

da borracha, em 1900, e o próprio começo da industrialização da

cachaça, na década de 1920. Estes ciclos econômicos, só para citar

alguns, imprimiram mudanças cruciais na trajetória de Januária.

O surgimento dos vapores, por exemplo, fez com que as ati-

vidades portuárias da cidade se intensificassem, sobremodo, uma

vez que o volume de carga transportado se agigantou com a che-

gada de embarcações de maior porte que faziam escalas cada vez

mais freqüentes e fartas, destacando ainda mais a importância

mercantil da cidade na região. Inclusive, o cais que foi construído

em Januária, chamado Coronel Rocha, foi resultado desta era de

ouro do porto. Tinha como ornamento duas pilastras de estilo

clássico que simbolizavam a entrada da cidade para aqueles que

chegavam do rio. Pareciam dois totens de um portal para o Novo

Mundo e era orgulho dos antigos moradores da cidade que, hoje,

lamentam sua derrubada.

O ciclo da borracha, por sua vez, foi outra atividade que im-

primiu novas alterações na cidade. Mormente, na paisagem local,

que sofreu uma degradação ímpar com o início da extração do

látex da mangaba e da maniçoba, duas plantas nativas da caatin-

ga, que tinham em exuberância nas margens do rio São Francisco,

na faixa de Januária. A intensidade da exploração iniciada em

1900, fez com que a cidade ganhasse o título de “Manaus Sertaneja”

tamanha produção láctea do município que perdurou até 1918,

quando a atividade sofreu um decurso em função do aumento da

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oferta de látex no mundo e, também, pela falta de políticas públi-

cas que regularizasse a atividade na região. E é no término deste

ciclo, que surge outra prática laboral, desta vez, mais expressiva

para o município no âmbito econômico e cultural, que vai aduzir

provas da verdade de que Januária é a terra da cachaça. Era o co-

meço do engarrafamento da bebida, até então inédita, que vai

criar distintivos nas bebidas, antes inexistentes, e desencadear,

por isso, uma corrida entre os produtores pelo título de melhor

aguardente do local.

A transformação da cachaça, curtida nas dornas de umburana

Se durante os séculos XVIII e XIX o fornecimento de aguar-

dente fora providência de apenas alguns fazendeiros da bucólica

Brejo do Amparo, que processavam de forma artesanal nos seus

rústicos engenhos, cana de primeira qualidade como a caiana,

rosa, manteiga e java, também usada para produzir a famosa ra-

padura que adoçava o cafezinho dos moradores da zona rural, em

meados da década de 1920, a transformação da cachaça ganha

novas técnicas e passa a ser do interesse de muitos. Isto ocorreu

porque, neste período, a exportação da cachaça januarense eclo-

diu, alcançando cifras antes nunca vistas, como a de 1917, que che-

gou a casa dos 450 mil litros. Todavia, a venda da bebida era feita

a granel, o que barateava seu custo e eximia os produtores da ne-

cessidade de identificar sua iguaria, já que era vendida em tonéis,

fosse para um país da Ásia ou para tropeiros e comerciantes locais.

E foi esta disparidade entre a grande requisição do mercado pela

cachaça produzida em Januária e seu baixo valor de compra, o que

despertou os produtores para a necessidade de encontrar meios

de diferenciar sua produção e tirar proveito disso. A solução foi

o engarrafamento da aguardente e a rotulação das garrafas com

marcas de procedência que vão surgir para qualificar os tipos de

cachaça fabricados no local. O primeiro engarrafador de Januá-

ria foi Abílio Magalhães, que lançou a marca ‘Januária Crystal’ em

1925. Três anos depois, surgiu uma marca semelhante - a ‘Janu-

ária’, que mais tarde, vai ser substituída pelo nome ‘Claudionor’

– nome do proprietário da marca, em função da maneira como os

consumidores se referiam a cachaça nos balcões dos estabeleci-

mentos: - vou querer uma ‘Januária’ do ‘Claudionor’. Além disso,

o aparecimento de outras cachaças nas prateleiras dos mercadi-

nhos, empórios e botecos da cidade, dali adiante, faria com que

fosse preciso, de fato, distinguir com exatidão qual das (XXXX)

‘Januária’ desejava-se beber.

Esta preocupação em personalizar a bebida foi uma decisão

indiscutivelmente oportuna e providencial, pois, trouxe para o

setor a concorrência e a busca por novas formas de customização

da aguardente, o que desencadeou o aumento da qualidade das

bebidas produzida na região. O ofício da destilação se consagrou

em Januária, transformando-a tradicionalmente na “terra da velha

e boa cachaça”. Não é à toa que a cidade consta como sinônimo

de cachaça no dicionário da língua portuguesa. Além, é claro, de

ter outras célebres notificações alusivas a iguaria do município,

como a peculiar descrição de Guimarães Rosa sobre a cachaça e

os vapores em Januária, eternizada em Grande Sertão Veredas,

obra bela e copiosa de 1956, dita na voz de Riobaldo5: “À Januária

eu ia, mais Diadorim, ver o vapor chegar com apito, a gente espe-

rando toda no porto. Ali, o tempo, a rapaziada suava, cuidando nos

alambiques, como perfeito se faz. Assim essas cachaças — a vinte-e-

seis cheirosa — tomando gosto e cor queimada, nas grandes dornas

de umburana”6.

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A Umburana, também conhecida como cerejeira, é uma ár-

vore típica da caatinga nordestina, mas que, também, ocorre em

outras faixas florestais do país e no norte da Argentina. Tem uma

madeira de gosto adocicado e de cheiro marcante, que lembra a

fragrância da baunilha. Com ela costuma-se fabricar tonéis de ca-

chaça por conta destas características que acabam beneficiando a

aguardente quando curtida neste tipo de dorna. Inclusive, a “cor

queimada” da cachaça, descrita por Guimarães Rosa, é justamen-

te a tonalidade que madeiras como a umburana imprimem à bebi-

da no processo de envelhecimento. Ainda que alguns fabricantes

usem outros artifícios, como o melado, para dar à bebida, além

desta coloração dourada, um sabor distinto. E foram estas combi-

nações de ingredientes no processo de transformação, às vezes,

nem sempre decorosas, que comprometeram mais tarde – na dé-

cada de 1970 -, este avanço anterior, com falsificações e com a

introdução do alambique inoxidável.

Neste período, - cinqüenta anos depois da grande reforma do

processo artesanal da cachaça -, houve uma tentativa grosseira

de enriquecimento ilícito por parte de alguns produtores que pas-

saram a misturar cachaças mais baratas, de qualidade inferior à

cachaça local. De mais a mais, houve, igualmente, a introdução do

alambique de aço, como parte de um plano que visava industrializar

a fabricação da cachaça - ampliar a escala da produção. Os res-

ponsáveis por este plano pernicioso intencionavam o aumento de

seus lucros no compasso da produção em série. Contudo, não se

preocuparam com a manutenção da qualidade do produto, o que

foi fatal para o ramo. Com o tempo, os consumidores notando a

discrepante diferença entre o que costumavam pedir nos balcões

e o que passaram a beber, migraram para marcas de outras loca-

lidades, também produtoras de boa cachaça, como o município

de Salinas. O declínio das vendas de garrafas e doses com proce-

dência de Januária se acentuou e a categoria viu anos de tradição

ser pulverizados pela ação de ‘meia dúzia’ de gananciosos. Alguns

dos centenários alambiques do Brejo do Amparo tiveram de ser

desativados com a diminuição da demanda, e antigos produtores

tiveram de sair da zona rural e procurar outras atividades no cen-

tro urbano de Januária.

Atualmente, mesmo tendo transcorrido mais de três déca-

das desde o início da sinistra prática de adulteração, a artimanha

ainda continua a acometer o ramo da cachaçaria na cidade, como

ponderou o Secretário de Turismo de Januária, Antônio Vidal

Júnior, durante uma visita que fizemos a Prefeitura. Segundo

ele, aproveitadores de plantão compram cachaça de qualidade

dos pequenos produtores, que repassam a preços bem módicos,

e as vende para o nordeste com rótulo de cachaça caribenha, a

preços quadruplicados. Esse tipo de violação deriva-se da falta

de percepção empresarial e de mercado do pequeno produtor,

que entrega sua mercadoria a preços baixos, além de ser desti-

tuído de qualquer tipo de suporte publicitário e de logística que

ajude na comercialização correta de seu produto artesanal – o

mais estimado pelos consumidores. Pois a cachaça, ao contrário

da pinga, demanda um preparo mais cuidadoso para se chegar às

características ideais de consumo como ter aroma suave, – que

não agrida o olfato-, coloração transparente ou rosada e dou-

rada, como gracejou Guimarães, além de um gosto amaneirado. O

gosto do álcool deve ser suprimido no envelhecimento, visto que,

não é normal o degustador sentir queimação nos olhos e na boca

ao ingeri-la, fazendo-o com que sinta vontade de expelir o que

acabou de experimentar. Portanto, sua industrialização deve ser

ponderada. Visto que, a cachaça é como qualquer outra bebida

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destilada e precisa ser confeccionada em etapas meticulosas para

resultar em boas safras. Ao contrário da pinga, por exemplo, que

é feita, basicamente, só da moagem da cana, tendo-se, somente,

a preocupação em retirar o primeiro suco da tritura, considerado

tóxico. Apesar dos desavisados inferirem que os dois tipos tratam-se

da mesma coisa.

A rapadura e a arte de sobreviver dela

A rapadura, por sua vez, especialidade primogênita do antigo

Brejo do Amparo, que ficou ofuscada pela fabricação de cachaça, tem,

hoje, uma produção reminiscente no município. Apesar de o municí-

pio ter algumas dezenas de produtores, tivemos conhecimento de

apenas um fabricante que processa o doce na cidade de forma legal e

cooperada – o Vicente da rapadura – como é conhecido na praça. Seu

engenho está localizado numa das vielas de chão batido do bucólico

Bairro Alto de Januária, vulgo, Brejo do Amparo, e quando lá chega-

mos para conhecer o processamento da tal rapadura que remonta o

tempo colonial, o cheiro e o vapor vindos dos grandes tachos onde

se cozinhava a garapa embeveciam toda a instalação, inclusive, a vi-

zinhança. O próprio Brejo do Amparo é um lugar muito sinestésico.

Aqui e ali se vê plantações de cana, ranchos, corredores de árvores

entrelaçadas, flor de mato no meio da vegetação selvagem e o cheiro

doce de alecrim e garapa paira no ar do lugarejo, que hoje, em nada

mais lembra um brejo. Se é que já foi parecido. Mas, retornando ao

engenho e a rapadura que Vicente, um homem de meia idade e de

poucas palavras, produz, o processo é todo artesanal e sua produção

é comprada pelo Governo Federal, com recursos do Ministério do

Desenvolvimento e Combate à Fome, através de uma cooperativa. O

doce é repassado pelo governo para entidades e escolas públicas de

todo país para ser servido como sobremesa na merenda.

A medida faz parte do programa da Companhia Nacional

de Abastecimento (Conab), que compra a produção agrícola de

pequenos produtores para incentivar a permanência do homem

no campo. Uma estratégia sustentável que beneficia, a princípio,

todos os envolvidos: as entidades que recebem este suplemento

nutricional, o governo que compra produtos de qualidade a cus-

tos relativamente baixos, e o produtor, que recebe a verba, e de

certa forma acaba gerando renda para a comunidade local. Apesar,

de serem justamente os produtores quem menos tira proveito

nesta cadeia, como ponderou Vicente – hoje, presidente de uma

cooperativa dos produtores de cana de açúcar e derivados. “Os

impostos são altos, a mão de obra é cara, o produto é muito ba-

rato e a fiscalização do Ministério do Trabalho, rigorosa. Impõe

regulamentos que não podemos manter”.

No caso de Vicente, seu empreendimento é todo mantido em

família, com exceção de alguns empregados sazonais, que execu-

tam o serviço bruto durante o período de safra. Como conduzir

os robustos bois de carga que trazem, na carroça, as frações de

cana para serem moídas, como parte do processo de fabricação.

Parte desta cana que Vicente transforma em rapadura, ele mesmo

cultiva. A outra porção é fornecida por outros agricultores da

região que são pagos em rapadura, em troca da matéria-prima.

Esses por sua vez vendem o doce para o governo, que compra nas

cooperativas agrícolas do Brasil este, e outros tipos de produto.

Sendo que, o lucro de Vicente fica circunscrito ao excedente da

sua produção. Ou seja, aquilo que ele não permuta com outros

produtores para pagar a cana que processou, ele mesmo vende

para empresas de alimento. Cada unidade de doce é vendida a 14

centavos, e mensalmente é produzida, em média, uma tonelada e

meia de rapadura. Considerando que metade de sua produção é

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Processo de feitura da rapadura. Uma das partes do processo consiste em fermentar a garapa, como ilustrado na fotografia ao lado. (Página seguinte) Rapadura pronta para o consumo. Januária é tradicional nos confecção de gêneros derivados da cana.

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repassada a cooperativa, sobrando somente a outra metade para

venda, a renda líquida de Vicente não deve ultrapassar mil reais.

- Mas não é muito pouco? Com muita hombridade, Vicente me res-

pondeu de forma lacônica seu impasse: “Não tive muita escolha,

a nossa região norte mineira é muito pobre. Porém, me dedico

a atividade com toda a garra possível. E, apesar das vantagens

serem poucas, me sinto satisfeito em saber que os produtos que

faço são saudáveis e alimenta o homem com qualidade. Além do

mais, é a produção de rapadura e cachaça que vem, de geração

em geração, sustentando o povo de Januária e do Brejo do Amparo,

ainda que de maneira humilde”.

A utopia da modernidade que varreu memórias de Januária

No final da década de 1950, começava a ser erguida a nova

capital do Brasil. E, Brasília era a consumação de uma onda pro-

gressista no país Era principalmente, utopia dos gentílicos do

sertão, povo que esperançava um milagre transformador, que

colocasse sua terra - o cerrado, o interior do Brasil -, no eixo do

desenvolvimento, pela primeira vez, depois de 450 anos de esque-

cimento em detrimento do litoral, sempre priorizado. E Juscelino

Kubitscheck foi o homem de vanguarda que concretizou as preces

da gente sertaneja esquecida. Tão esquecida que prometeu com-

pensar 50 anos de atraso em cinco de progresso. Construiu em

mil dias o novo centro político do Brasil, consolidando o chavão

“marcha para diante”, iniciado pelo governo de Getúlio Vargas,

um ufanista incorrigível. E a ‘modernidade’ - ideologia introduzida

por Vargas começava a se consolidar como palavra de ordem. Coi-

sas antes inimagináveis, para regiões deslembradas como a Ama-

zônia e o interior do nordeste foram feitas. Vargas, por exemplo,

criou o Plano de valorização da economia da Amazônia, o Banco

do Nordeste e infra-estrutura para áreas totalmente desprovidas

dela, como a Bahia, que recebeu a hidrelétrica de Paulo Afonso,

no rio São Francisco. Com a chegada de JK à presidência, em 1956,

a mania do ‘novo’ só veio a calhar com seu plano de metas desen-

volvimentistas. E o efeito desta tendência fez sentir-se de várias

formas pelo país.

Em Januária, o mote foi o conjunto arquitetônico da cidade,

que, vai sofrer danos irreparáveis em função do vislumbre pelas

coisas frescas e inovadas, que vão sentenciar algumas constru-

ções centenárias como ultrapassadas e arcaicas, portanto, descar-

táveis. Fazendo com que peculiares edificações da cidade, princi-

palmente as religiosas, fossem demolidas para dar espaço a uma

arquitetura de gosto moderno. Em 1970, esta prática de descons-

trução na cidade chegou a seu ápice, e, lendo o livro comemo-

rativo do centenário do município – Januária: 1860-1960 -, pude

perceber boquiaberta, o quanto aquela crença de progresso pre-

ponderava. Neste livro, fica evidente como a população de Janu-

ária, e também, do Norte de Minas debitou suas esperanças neste

novo movimento econômico que despontou no Brasil: “O Norte

de Minas se transformará num imenso laboratório onde o gênio e

a audácia do sertanejo, fecundarão uma área das mais promissoras

e férteis do nosso território. O homem daqui que esteve sempre li-

gado ao rio São Francisco, sentirá, agora, ao acenar da terra [...] o

caminho que vem e vai até Brasília, como roteiro de novas entradas,

de nova era, e da integração nacional”7.

Assim, muitas ações de desmonte de construções históricas,

cheia de memórias foram justificadas: - era pelo progresso. E Janu-

ária, subordinada as ações indiscriminadas de seus dirigentes po-

líticos, fortemente inclinados ao plano de modernização, acabou

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98

perdendo parte de suas edificações que poderiam estar compondo,

atualmente, o acervo patrimonial do município, tão carente desta

caracterização. Quem visita a cidade e conversa com antigos mo-

radores, logo ressente a falta que estas construções fazem para

a comunidade, justamente, pelo fato de elas representarem um

elo com os tempos findos da cidade, porém jubilosos, como o

período dos vapores e das festas religiosas em torno dos santu-

ários demolidos. A desfiguração do cais da cidade, por exemplo,

o maior emblema do período portuário, é uma dessas reclama-

ções. Perdeu suas colunas, sua principal feição, tendo sido, inclu-

sive, registrado no livro do centenário uma apelação que pedia,

na época, a volta das pilastras: “assim, vai, aqui, a solicitação que

todos os januarenses [...] fazem ao prefeito de Januária: promover

a reconstituição imediata das duas artísticas colunas, que tanto em-

belezam a cidade”9. Além disso, a demolição de outros marcos de

Januária – edificações religiosas da história da colonização do São

Francisco - causou um abalo moral nos moradores, que não en-

tendiam a intransigência das medidas, que sempre eram tomadas

sem consulta prévia à população. Em 1940, a Capela colonial, que

ficava de frente para o rio e fazia parte do conjunto urbanístico,

junto ao cais e seus pilares na entrada da cidade, foi derrubada a

mando do intendente Roberto Fonseca, que recebeu a incumbência

de construir uma praça no lugar. Neste tempo, os prefeitos não

eram eleitos democraticamente e, sim, diretamente pelo gover-

nador do estado. E esta era uma demanda vinda das políticas de

renovação de Vargas a todos seus subalternos.

Mais tarde, por volta de 1968, foi a vez da Matriz de Nossa

Senhora do Amparo ir ao chão. Em 1972, a antiga catedral de

Nossa Senhora das Dores, inaugurada em 1833, com dinheiro do

povo, começou a ser demolida em plena semana santa, no mesmo

dia em que foi celebrada a última missa. “Não se prestou infor-

mação aos fiéis sobre o paradeiro das imagens e dos belíssimos

púlpitos”10. As lousas sepulcrais, bem como os restos mortais

dos clérigos que estavam enterrados ali, sumiram. Inclusive, os

do padre que fundou a igreja – Cônego Levínio -, também, impor-

tante por suas prestezas políticas na cidade, em razão de ter sido

ele quem realizou os trâmites do período imperial para o republi-

cano, na Câmara de Januária. Assim, a população testemunhou

inexpressiva a derrubada morosa da igreja, que levou meses para

ser concluída. Visto que, naquela época, a demolição era pratica-

mente manual. A igreja iria completar 100 anos na ocasião e, tinha

chegado até a receber reformas nas suas torres, em decorrência

de sua importância, que se esvaiu com a vinda da premissa pelo

novo, que estacionou na mentalidade das pessoas do período. No

seu lugar foi construída outra, com linhas e traços mais contem-

porâneos: geométrica, sem ornamentos, monótona e estéril, que

mais lembra um prédio de repartição pública. Eu mesma não a re-

conheci enquanto igreja enquanto estive na cidade.

Outra história desta arquitetura de destruição, que afroxou a

fé dos januarenses, desiludidos com a violação de seus bens de es-

timação, foi o aniquilamento da Igreja de Santa Cruz, cuja data de

sua inauguração é imprecisa. Esta capelinha atendia a população

de pescadores que morava na margem do rio São Francisco, e em

torno dela realizavam-se cerimônias católicas e confraternizações

daquela gente humilde e devota. Mas, em 1972, foi desmontada,

sem nenhum pedido de opinião da comunidade, para dar lugar

a uma quadra poliesportiva e um grupo escolar. A perda foi tão

sentida que duas senhoras acabaram por se tornar personagens

conhecidas do município, por conta de suas investidas contra a

afronta que marcou a história local. Uma delas é Dona Meiru que

Page 99: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

“Há comunidades onde se formou sólida consciên-cia de preservação, que se transmitiu para o poder público e os empresários locais. Em outras cidades ocorreu o inverso; a população, a iniciativa privada e o poder público parecem irmanados no descaso e mesmo na agressão ao patrimônio cultural, que vai se desfazendo”

Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Relatório de Participação Técnica. Campanha Rio São Francisco Patrimônio Mundial – Expedição Engenheiro Halfeld. 2002

Page 100: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

100

depois da demolição passou a pedir, de porta em porta, qualquer

tipo de quantia para construção de uma nova igreja, em uma loca-

lidade próxima a da antiga – na vila dos pescadores. Tirou, inclusive,

durante todo o processo de arrecadação, dinheiro da sua própria

e mirrada pensão, para o custeio da promessa, que foi uma res-

posta arremetida contra a injúria que sentiu. E conseguiu. Con-

sumou seu projeto, depois de muita labuta e esmola. A outra figu-

ra é Dona Maria do Binu, que, apesar da similaridade dos nomes,

nada têm em comum; nenhum parentesco ou vínculo com Dona

Meiru, a não ser o desmonte da igreja. Fato nuclear que afetou

a vida de ambas. Dona Maria do Binu, outra brava senhora, fez,

também, algo notável no ensejo do desmonte da Igreja de Santa

Cruz. Arrastou sozinha, até sua casa, um pedaço do corpulento

cruzeiro que havia sido estraçalhado durante a demolição e que

ia para o desterro.

A Velha Januária e o rio de São Francisco segundo dona Maria e Senhor Binu

O pedaço de madeira que dona Maria do Binu, uma senhora

franzina de 93 anos de idade, guarda até hoje é parte do braço

da enorme cruz que vigiava o frontispício da capela. Só este toco

deve pesar prováveis 35 quilos, e, atualmente, fica escorada na

parede do quarto de Dona Maria, que, também, tem Madalena

no nome. Na ocasião em que o trouxe para sua diminuta casa de

pau a pique, já tinha 56 anos de idade, o que deve ter sido uma ta-

refa custosa. Quando a questionamos sobre o motivo praticar tal

sacrilégio, Dona Maria respondeu com lisura que fora o estado na

qual a cruz se encontrava, no meio daquela ‘pauzada’, das ruínas

daquilo que tinha sido a casa de reza que freqüentara, o que havia

a comovido. Segundo ela, dava pena ver as pessoas sentarem,

cuspirem nos pedaços do cruzeiro, que a esta altura, eram trata-

das como mero entulho. - A cruz é uma madeira santa.

Desolada, então, ao ver, aquela afronta durante o desman-

telamento da capelinha, disse a um dos homens responsáveis

pela demolição, que se pudesse levaria para casa o que restara da

cruz. O funcionário, sem avistar nenhum problema e cujo nome

ela ainda recorda – Roca -, pôs, á vista disso, o toco no seu ombro

para que ela o levasse embora e guardasse do modo que achasse

mais direito e digno. – E este resto de cruz te ajuda, hoje, Dona

Maria? “Ajuda! A cruz me ajuda pela fé que eu tenho. Sem a fé

nada vale”. Romeira há 25 anos e devota de Nossa da Aparecida,

Dona Maria só parece ter perdido as esperanças na melhora do

rio São Francisco. “Tenho saudade da Velha Januária, mas acima

de tudo tenho saudade do meu rio”. Seu marido, Sr. Benedito, o

pescador mais antigo de Januária, também desacreditou do aviva-

mento do rio que já quase não palpita mais. Aos 99 anos, com uma

robustez física e uma memória assombrosa, Sr. Binu lamenta que

o São Francisco não seja mais o rião que era.

- Esse rio era estreito e fundo, mas com a desmatação foi se-

cando... E tinha muntiu peixe! Todo ano, na época de chuva, tinha

arribação de peixe neste rio. Primeiro vinha as ribadas de piaba,

vocês conhecem piaba? Depois vinham as de piau e surubim. Dava

para ver as levas de surubim subindo o rio com os bigodes para

fora d’água. Esta ribada que Sr. Binu se referiu durante a conversa

que tivemos com o casal, na pequena sala do gracioso casebre, é

o período em que os peixes migram pelo rio em busca de lugares

favoráveis para habitar. Neste ciclo, que perdura de abril a julho –

época chuvosa – os peixes se movimentam em bando, na casa dos

milhares, e cardumes de cinco, seis mil animais são vistos. Sendo

que, de dezembro a março, os peixes se reproduzem, e não há

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(Acima) Senhor Binu (um dos mais antigos pescadores de Januária) e Dona Maria: “Tenho saudade da Velha Januária, mas acima de tudo tenho saudade do meu rio”. O rio de São Francisco. (À direita) Dona Maria do Binu e o pedaço do cruzeiro da Igreja de Santa Cruz, demolida em 1972. A capela atendia a população de pes-cadores que morava na margem do rio São Francisco.

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102

pesca. Somente de agosto a outubro, quando a água está límpida e

os peixes parados no nicho encontrado, é que está no momento de

os pescadores garantirem sua safra. Mas tudo isso, acabou, segun-

do Sr. Binu, que só largou as redes e varas aos 80 anos de idade.

O casal que pescou durante 10 anos ininterruptos no rio

Pandeiros – um dos 36 afluentes do São Francisco, considerado

um berçário de peixes, por suas águas abrigarem a reprodução e

o desenvolvimento de 70% da ictiofauna11 do médio São Francisco -,

não comem surubim há uma década, apesar de morarem na riba

do São Francisco, ao lado do antigo cais de Januária. A fartura de

outrora, que dava ao pescador alimento fácil para o seu prato,

perdeu-se com a míngua do rio, e os petrechos de pesca que Sr.

Binu ainda guarda em um latão de óleo antigo, porém, bem con-

servado, tornaram-se objetos de memória, de um tempo em que

o São Francisco, ainda era o Novo Chico. De dentro deste recipiente

Sr. Binu tirou, entre outras coisas, uma manjubeira, rede usada

para capturar peixes de pequeno porte que servem como isca

para os maiores. Mostrou-nos a variedade de anzóis, que eram

usados em cada tipo de pesca. O surubim, por exemplo, espécie

grande e sagaz, requer um gancho mais reforçado. Para pegar

peixes de hábitos noturnos, o surubim é um deles, os anzóis is-

cados eram lançados à noite, na água, e retirados somente no dia

seguinte, pela manhã, quando se conferia as surpresas ou a falta

delas. Mostrou-nos seu candeeiro, “que iluminava meio mundo”

durante as pescarias, na beira do rio. Fico imaginando a falta que

isso não devia fazer sob o céu estrelado do sertão, refletido na

água, à luz do luar. O próprio latão era do tempo da pesca, onde

armazenava a comida que levava para a jornada.

Foi arrebatador ver a alegria do casal de velhos quase cente-

nários desterrar da memória suas histórias de pastores guerreiros,

que pescavam e plantavam às margens do rio de São Francisco.

Tinham canteiros de cebola, alho, feijão, milho e tudo era roçado

nas terras à margem do rio, altamente férteis, em função do pe-

ríodo de cheias que adubava os terrenos para o posterior cultivo.

Ciclo totalmente regrado pela natureza, cabendo somente aos

camponeses semear. Mas como disse Dona Maria “tudo que é bo-

nito só passa uma vez”. E é com razão sua nostalgia. O rio de que

tem saudade trazia freqüentemente muitas alegrias. Vivia movi-

mentado de vapores, barcas, lanchas. As vazantes12 eram certas.

Sua cidade tinha grandes folguedos e o peixe tinha em abundân-

cia. Muita fartura – barracas vendendo cana e peixe frito -, e ‘sua’

igrejinha estava no lugar onde devia estar até hoje. Na vila dos

pescadores, onde reside. Nela ia constantemente agradecer os

proventos que o rio e a terra davam. Agradecer pela vida. No pre-

sente momento, imagino que Dona Maria deva rezar por outras

causas. Pela melhora do assoreamento do rio – que chora de tanta

saudade. Pela volta dos peixes, pela tranqüilidade perdida...

Patrimônio e identidade: o norte de Minas precisa disso

É indispensável dizer o quanto a demolição de edificações

exemplares do patrimônio de Januária, na década de 70, trouxe

prejuízos a história local. Embora essas ausências não sejam a única

razão que explica a falta de interesse da comunidade pelos seus

bens históricos. A pesquisadora e historiadora Ana Alaíde Amaral,

que há algum tempo desenvolve trabalhos na área de educação

patrimonial, nos explicou durante uma entrevista a beira rio, que

a falta de preservação e de acervo histórico que ressentimos na ci-

dade é um problema mais complexo, que atinge toda a região do

Norte de Minas, para não falarmos do assunto em nível nacional.

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103

Alaíde lembrou que a raiz desta deficiência está na própria

história de colonização do estado. Enquanto a elite culta, de ori-

gem européia, colonizou a região das Minas, que tinha intrínseca

à sua cultura e a seus costumes o apreço pelo registro documen-

tal, a parte Gerais do estado foi colonizada pela elite financeira do

país. Por fazendeiros e sertanistas da época colonial que tinham

outras premissas e valores, que passavam ao largo das questões

culturais. Suas preocupações se circunscreviam, sobretudo, a seus

latifúndios e as contendas econômicas. Portanto, a organização

social em torno da cultura sertaneja praticamente inexistiu. Não

se preocupavam com a preservação de referências simbólicas do

ponto de vista histórico. Com a coletividade em prol de identidade.

Era cada um por si, e essa mentalidade de desapego ao patrimô-

nio se estendeu ao longo dos séculos. Prova disso é a diferença

entre o nível de preservação das cidades mineradoras, como Ouro

Preto, e a de uma cidade do norte do estado. Quando relatamos

a pesquisadora, o quanto estávamos atônitos com o abandono

da igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Brejo do Amparo, pro-

vavelmente uma das construções mais antigas de Minas Gerais,

Alaíde consentiu dizendo que isto é um reflexo desta herança cul-

tural errônea, que menosprezou a importância da história na vida

social. “As pessoas só valorizam aquilo que conhecem. Se não

existem políticas públicas que auxiliem no reavivamento destas

memórias que estão impregnadas nas antigas construções, que

auxilie a sociedade a se identificar com esta história, não existe

ressonância. E o indivíduo não consegue olhar para aquele bem

público como uma coisa que lhe pertence. Por isso não há esti-

ma e apreço. O patrimônio histórico só é interessante quando a

comunidade consegue usufruir dele. E para que isso aconteça é

preciso que haja uma linguagem que faça esta intermediação, que

permita as pessoas criar relações simbólicas”. Ou seja, o norte de

Minas precisa contar suas histórias para seu povo, que não a co-

nhece e que por isso não a aprecia.

Recuperar o tempo perdido e preservar o pouco que sobra é

uma demanda urgente. E, de fato, o que restou é ínfimo e está em

um ritmo de degradação assustador. Além disso, são escassos os

registros e estudos dos patrimônios locais. A catedral de Nossa

Senhora das Dores, por exemplo, aquela que começou a ser de-

molida em plena semana santa, não tem nenhuma descrição ofi-

cial sobre suas características arquitetônicas e históricas. O único

relato que se tem do seu interior foi feito por um viajante, Paulo

Japyassen, em 1956. Mesmo a Igreja de Nossa senhora do Rosário,

um marco fundante do povoamento na região, tem raríssimas in-

formações historiográficas sobre sua existência.

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário: outro emblema de abandono

A igreja de Nossa Senhora do Rosário, é um casario colonial

da época dos bandeirantes e foi erguida no meio da mata do Brejo

do Amparo. Na sua fachada está estampada uma pintura com a

data de 1688, ainda que historiadores aleguem que seja muito

pouco provável que esta datação esteja correta. Dois registros

falam de sua inauguração em 1744, e esta diferença de mais de

50 anos entre a primeira e a segunda data teria sido uma trapaça

de época. Questões políticas e religiosas que aqui não cabe aden-

trar. Quando lá chegamos, dia 24 de julho, o sol estava a pino, e o

silêncio era ensurdecedor. Barulho mesmo só da vegetação que

mexia com o vento e da meia dúzia de bois que pastavam enfas-

tiados próximo ao cemitério da igreja, soltando mugidos de vez

em quando, quebrando a monotonia circunscrita.

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“Sua conservação até os nossos dias se deve mais a uma feliz casualidade do que qualquer esforço oficial nesse sentido”.

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA/MG

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A construção está visivelmente arruinada, e o bucolismo do

lugar só nos faz ter mais compaixão da igreja, que fica fechada,

com resignação, em conseqüência do seu estado precário. Os fes-

tejos de época, que aconteciam no seu interior, como as missas

em comemoração ao dia da padroeira da cidade – Nossa Senhora

das Dores -, e que coincide com o aniversário de Januária, - no

dia 7 de outubro -, atualmente, são realizadas do lado de fora, no

adro da igreja, por falta de segurança de suas estruturas. Mas,

fora estas ocasiões, a paróquia tricentenária que só foi tombada,

em 1989, pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artís-

tico de Minas Gerais (Iepha/MG), fica sozinha, entregue a própria

sorte e à divina providência. Embora haja uma guardiã local que

tenta com todas as suas limitações cuidar do que resta. Até o

sino da igreja, que pesava 300 quilos, foi roubado com destreza

por saqueadores de peças sacras e históricas. O nome desta in-

formal tutora é Maria Conceição. Dona Maria Conceição. Era ela,

conforme nos disseram alguns moradores locais, quem guardava

as chaves do patrimônio. Quem deveríamos procurar se quisés-

semos conhecer o interior da igreja do Rosário. Todavia, nós que

não tínhamos qualquer informação sobre o paradeiro da senhora,

decidimos ir até o local e fazer os registros somente do lado de

fora, e mais tarde, se houvesse tempo, tentaríamos localizá-la

para terminarmos de vasculhar a avelhantada, porém, notória

igreja por dentro. E, assim foi feito. Ficamos circundando a igreja

do lado de fora procurando bons ângulos, pistas escondidas, sem

sabermos que a igreja, na realidade, estava aberta como viemos

saber em seguida, quando finalmente encontramos Dona Maria,

em um sítio próximo dali.

A senhora que apesar dos reumatismos, tem uma aparência

saudável e serena, nos disse que as chaves não são mais funcio-

nais na tarefa de resguardar o templo de Nossa Senhora do

Rosário. Visto que, o avançado estágio de deterioração das portas

invalidou a utilidade das fechaduras, por isso, as portas laterais só

ficam semifechadas. Quando perguntamos o por quê de ela ter

as ‘chaves’, e não algum órgão de política pública cultural, Dona

Conceição disse com uma voz sóbria, em tom de conformação,

que a igreja há décadas é mantida somente pela população. Por

sua família, mais exatamente, que tinha vínculo com os párocos

locais. À prefeitura de Januária, já tinha encaminhado quatro pe-

didos formais, para que a executiva assumisse a proteção da igre-

ja que, freqüentemente, sofre com a ação de vândalos. Inclusive,

na própria conservação da igreja que está esmaecendo. Mas, até

hoje, não obteve retorno.

Atualmente, Dona Conceição vive só, numa casa cercada de

pomar e não tem condição de fazer nada pela igreja. Nem a capina,

nem a limpeza artificial da construção que está tomada de sujeira.

Quando lá voltamos para fotografar o feitio interno da igreja, se-

guindo as orientações de dona Maria que pediu que, depois que

terminássemos o trabalho, a fechássemos novamente com o de-

vido cuidado, ficamos embasbacados com a decadência. Quando

empurramos a porta e vi, ao som do primeiro ranger, o feixe de

luz invadir a igreja, desnuda, senti uma consternação enorme.

Lá dentro não há mais bancos, nem imagens sagradas. Somente

campas e ripas carcomidas e despregadas. Rachaduras. Falta de

reboco. E um aviso pregado na porta frontal, com os seguintes

dizeres: “Não rabisque as paredes. Não acenda velas próximo às

portas da igreja. Não a destrua. Este patrimônio é seu. Preserve-o.

Grato.” Quando finalmente terminamos de fotografá-la, todos em

silêncio, foi entristecedor cerrar suas portas. Submetê-la a escuridão

novamente. Era como se estivéssemos largando um enfermo ao

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desamparo e à solidão. Usurpando de uma débil construção re-

ligiosa que pedia misericórdia. A última memória que guardo do

seu interior, antes de fechar a última porta, são algumas flores

ressequidas dentro de um vaso, que me fez lembrar – murcha de

comiseração - duas filosofias que resumem aquilo que testemu-

nhei. Uma é de Paulo Barreto e diz o seguinte: “cada povo que

pretenda ser mais do que uma aglomeração humana, deve ter

seu patrimônio histórico”. Arthur Schopenhauer, por sua vez, com-

pleta o raciocínio com a assertiva: “se [...] um povo não conhece a

sua história está limitado ao presente da atual geração. Esse povo

não compreende nem sua própria existência [...] muito menos pode

antecipar coisa alguma sobre o futuro”. É aí, que reside o aflitivo

atraso do Norte de Minas, pensei comigo. A razão para aquela de-

cadência. Saímos então em direção ao carro, sem olhar para trás. E,

fomos embora, pensando taciturnos nos erros passados, na inglória

do presente, por estas cercanias, que já atestou tão importantes

acontecimentos, hoje, arruinados.

1 Ribeiro, Ricardo Ferreira. O Rio Santo Verde, artigo do estado

de Minas de 01-12-2001

2 Por volta de 1690 a 1705, fundaram-se os povoados sob o poder

dos Cardosos e experimentaram rápido desenvolvimento

3 ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes, p.67

4 Memorial Januária: terra, rios e gente, 2004.

5 Riobaldo é o narrador da obra Grande Sertão: Veredas, de

João Guimarães Rosa, quem ausculta as particularidades e ca-

racterísticas do sertão brasileiro, onde vive e morre.

6 Grande Sertão: Veredas. In: Guimarães Rosa: Ficção Completa.

Nova Aguilar, 1994, vol. II, p. 478

7 Januária: 1860-1960. Imprensa Oficial, p.61

8 Januária: 1860-1960. Imprensa Oficial, p.59

9 Januária: 1860-1960. Imprensa Oficial, p.109

10 PEREIRA, Antônio Emílio. Memorial Januária: terra, rios e

gente, p. 413

11 Em ecologia e ciência pesqueira, chama-se ictiofauna o con-

junto das espécies de peixes que existem numa determinada

região biogeográfica.

12 Cultura que se faz no leito dos rios e nas margens dos açu-

des, à medida que o nível das águas vai baixando. Terreno

baixo e úmido; largos vales ao longo dos rios do interior; baixa

próxima às aguadas e lagoas em geral; todas as terras baixas e

planas, alagadas temporariamente, quando recebem as águas

das enchentes dos rios. (Dicionário Michaelis, 1998-2009)

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Tarsila Costa

São João das Missões: resistência e luta Xacriabá

“ (...)o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Cons-

truímo-nos queimando milhões de índios.Depois,queimamos milhões

de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhões

de mestiços brasileiros, na produção não do que eles consomem, mas

do que dá lucro às classes empresariais.”

Darcy Ribeiro

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O pó da terra vermelha são eles: Os Xacriabá Data da chegada: 28/07/2009

Chegamos meio-dia a São João das Missões. Antes de chegar

ao município, já havia algumas anotações em meu diário sobre os

Xacriabá, mas de maneira muito catequizada, sempre enfatizando o

papel dos jesuítas, principalmente com a imposição cultural que este

povo foi submetido há tempos. O nome do município já nos con-

cede algumas pistas do que houve por aqui, ao saber da existêcia

forte da presença dos jesuítas e de suas diretrizes religiosas na vida

indígena nesta região no século XVIII: este traço perdura e mistura

as crenças índigenas com o catolicismo pregado pelos missionários

de outrora.

À imagem de um santo achada por um índio durante este pe-

ríodo foi dado o nome de São João dos Índios. Em seguida, mis-

sionários jesuítas receberam a notícia da tal imagem achada, e a

colocaram na igreja de Matias Cardoso – construída pelo trabalho

forçado dos índios. Mas, segundo reza a lenda por aqui, a imagem

voltava sempre para o mesmo local que havia sido encontrada.

Desta maneira, os jesuítas pensaram que ali havia ocorrido um mi-

lagre e ordenaram a feitura de outra capela para o santo denomi-

nado São João. Hoje é possível vê-la na igreja de São João Batista,

no centro do município de São João das Missões. Neste mesmo

lugar, há a biblioteca municipal, farmácia, e algumas poucas lojas;

acontecia também uma feira no dia que chegamos, mas era algo

bem reduzida, embora houvesse de verduras até cds pirateados

sendo comercializado naquele espaço.

Diferentemente do que se pensa, quando se chega aqui nos

dias de hoje, a vida indígena edênica, que povoa o imaginário bra-

sileiro de índios nús, é uma simples alegoria. Tampouco, existe a fi-

gura guaranesca do índio. O índio sertanejo obviamente é diferente

do índio litorâneo. Contudo, há um povo que coexiste nesta terra há

muito tempo. Registros confirmam que por volta do ano 1531 que

os Xacriabá já estavam aqui. E mesmo hoje, no ano 2009, eles ainda

lutam para se manterem em sua própria terra. Durante a estada dos

Xacriabá nesta região do noroeste mineiro, inúmeras vezes eles ti-

veram conflitos contra bandeirantes, índios ou fazendeiros.

Apesar de não estarem na beira do rio São Francisco, eles

têm a ciência de saber que seus antepassados estiveram ali. Os

Xacriabá tentam resgatar algumas perdas que tiveram de seu

universo cultural na conflituosa trajetória de lutas que remonta a

história desses índios sertanejos.

Segundo a obra Documentar para Preservar 1, o território dos

Xacriabá atualmente é concentrado no norte de Minas. Possui

uma extensão de 52.660 hectares e se localiza as margens do rio

Itacarambizinho, embora os Xacriabá antes de virem para essa re-

gião estivessem localizados em várias áreas do vale do Tocantins,

Goiás e às margens do São Francisco. Na época do contato com os

portugueses, de acordo com a obra Documentar para Preservar,

“os indígenas existentes na região dos rios Carinhanha e São Fran-

cisco se dispersaram por várias regiões”. 2

O índio do sertão

No século XVI, quando portugueses adentraram o vale em

busca de pedras preciosas e de mão de obra escrava, foi deixado

um antigo registro datado entre os anos de 1553 e 1555 de índios

que já habitavam a região do norte de Minas, como citado no re-

latório da pesquisadora Ana Flávia Santos. 3 Segundo trechos do

relatório, os escritos do padre jesuíta João Aspicuelta Navarro,

Capitão da entrada de Francisco Bruzza de Espinoza, desbravador

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(Pagina anterior à esquerda) Rosalvo - Cacique da aldeia Itapicuru. Além de amistoso, foi ele quem cedeu os depoimentos mais passionais li-gados à condição indígena. Seu orgulho e since-ridade são traços fortes de sua personalidade. (Pagina anterior à direita) Josué de Carvalho, zelador da igreja matriz de São João Batista, no município de São João das Missões. Ele segura a histórica estatua de São João dos Índios. A imagem faz parte do acervo da Igreja que, de maneira geral, tem escassos padrões de conser-vação. Algumas centenas de anos adormecem nesta estatua e, mesmo assim, qualquer um pode tocá-la e levantá-la do chão, basta pedir. (À direita) Ipê amarelo: parte do patrimônio natural dos Xacriabá; indubtavelmente a maior riqueza desse povo é a natureza.

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112

das regiões do interior da Bahia e do norte de Minas:

(...) no outro dia fomos e passamos muitos despovoados especial-

mente um de vinte e três jornadas por entre uns índios que cha-

mam Tapuyas, que é uma geração de índios bestiaes e feros, porque

andam pelo bosque, como manadas de veados (...).4

Esses adjetivos eram calcados na moral essencialista cristã

que pautava a vida do império português na época. Mas, tratando

da maneira como os índios sertanejos se relacionavam com a terra,

há de entender que não havia uma definição de demarcação terri-

torial para esses povos baseada na propriedade privada, situação

que foi mudando devido aos intensos conflitos em razão da terra.

Segundo o supervisor do meio-ambiente do município, Adailton

José de Santana, essa é uma das características do povo Xacriabá;

ainda falou de alguns problemas referentes à terra, recorrentes

na região. Contudo, tratarei desta questão mais a frente. Antes,

gostaria de apresentar o cerrado e sua atual condição. Penso que

é um bom ponto de partida para entendermos um pouco sobre

a história Xacriabá, entendendo que a natureza é um patrimônio

supremo para os povos indígenas.

Apresentação do cerrado e os Xacriabá

A variedade da fauna e flora do cerrado engana os olhos de

quem pensa que nessa terra não há diversidade natural. São pés de

pequi, aroeira, juá, jurema, braúna, pau-d`arque numa vegetação

nativa que infelizmente se encontra bem desmatada, muito em

razão da criação de gado e da agricultura, apesar do esforço da po-

pulação local e das lideranças em revitalizar o espaço e o território

Xacriabá. A mata seca e a vereda são partes da vegetação nativa.

As frutas cagaita, cabeça de negro, jabuticaba, maracujá, melão

de São Caetano e xixá são essencialmente desse bioma, embora

a ação do homem na natureza, nesse caso, venha aumentando

progressivamente a extinção de várias espécies. Falando da fauna

do cerradinho, os animais que compõem este cenário são: veado,

cutia, tatu, onça, coelho, raposa, tamanduá, gambá, seriema, entre

outros bichos. Para os povos indígenas, todas essas árvores, frutas

e bichos são importante patrimônio natural que deve ser preservado,

em razão de ser da natureza que se extrai o alimento, matérias

para confeccionarem seus artesanatos, água limpa dos rios e la-

goas. É como colocou o cacique da Aldeia Itapicuru, Rosaldo Fiúza

da Silva: “acabou até a alegria da gente, porque a alegria nossa é

entrar dentro da mata. Somos pó da terra”.

Disse esta frase de uma maneira extremamente consciente;

tinha um brilho nos olhos, de quem sente cada palavra que fala.

A reserva Xacriabá está no município de São João das Missões

e confesso que é um pouco difícil seccionar a cidade da reserva.

O território é dividido em 32 aldeias. São elas: Brejo Mata Fome,

Barreiro Preto, Sumaré I, Sumaré II, Sumaré III, Forges, Sapé, Itapi-

curu, Caatinguinha, Barra do Sumaré, Itacarambizinho, Imbaúba,

Morro Fachado, Vargens, Riacho dos Buritis (antigo defuntos),

Pindaíba, Riachinho, Prata, Peruaçu, Santa Cruz, São Domingos,

Rancharia, Custódia, Pedrinha, Riachão, Possões, Olhos d´água,

Riacho do Brejo, Boqueirão, Furado dos Patos, Furado do Meio e

Caatinguinha de Rancharia. Ainda, existem aldeias limítrofes com

os seguintes municípios: Manga, Miravânia, Montalvânia, Januária

e Itacarambi. Há aldeias que se localizam nas proximidades do

município de São João das Missões e outras ficam mais distantes.

O povo Xacriabá tenta atualmente resgatar sua cultura.

Construir um espaço onde as relações sociais possam criar seus

modos de expressão, e, modos de pensar: trata-se de algo essen-

Page 113: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

Os Xacriabá hoje se encontram bastante descaracterizados, embora haja uma forte resistência contra esse processo – resistência essa que tenta resgatar inclusive o dialeto indígena. Em maior parte são católicos, encontram dificuldades em perpetrarem seus aspectos culturais e, ao que parece, estão em constante luta em direção aos seus direitos. A miscigenação desse povo é traço elementar: em seus traços estão índios, brancos e negros de forma bastante perceptível.

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114

cial à formação cultural de um povo. Os povos indígenas brasileiros,

muito além de questões sobre sua língua, danças e crenças, dife-

renciavam-se: sinal manifesto mostrando que mais do que haver

uma diversidade entre esses povos havia uma comparação entre

os mesmos. A declaração de Carlos Fausto em sua obra Os índios

Antes do Brasil, descreve que:

Os Tupi-Guarani do litoral chamavam os povos do sertão de

Tapuia e os descreviam como gente bárbara, desprovida de al-

deia, agricultura, canoa, rede e cerâmica5.

Essa observação não levava em consideração que o povo Xa-

criabá - o qual constitui a família lingüística Gê 6, subdivisão akwê

- tinha uma organização social bem distinta dos índios do litoral.

De acordo com a associação Carlos Ubialli e o Instituto Ekos:

Os povos de língua e cultura Jê, diferentemente dos Tupi, vivem,

em geral, na região dos cerrados. Possuem não somente uma língua

totalmente diferente da dos Tupi como, também, mitos, crenças e

organização social próprias. Os povos Jê manifestam sua cultura de

forma mais explícita e visível. Os numerosos ritos a serem realizados

e respeitados, aparecem com mais clareza que nos povos Tupi7

Boa parte dessas manifestações se perdeu em sua plenitude,

ou seja, os índios foram bastante descaracterizados, mas, há ainda

a preservação de certos rituais religiosos, como o Toré - dança con-

siderada sagrada pelos Xacriabá. Segundo o índio Xacriabá João

Gomes de Oliveira (intimamente conhecido como João Zoropa),

quando a comunidade indígena quer apresentar o Toré, precisam

pedir autorização para os pajés. João disse ainda que quando rea-

lizam determinados rituais, os não-índios não podem participar. O

Toré tem música, reza e alguns objetos como o cachimbo, maracá,

fumo e borduna. Além desses artefatos, há uma bebida preparada

com a jurema para iniciar a apresentação do Toré. Há ainda a crença

na onça cabocla, a Iaiá. Os Xacriabá acreditam que além de Iaiá pro-

teger o seu território de invasores, ela também cuida da natureza e

do povo Xacriabá. Segundo a obra Xacriabá, documentar para pre-

servar, a Iaiá Cabocla é uma das guardiãs do território deles.

Patrimônio Xacriabá

Deixando de lado um pouco da racionalidade que calca a so-

ciedade ocidental, é muito difícil não considerar que essas lendas

representam uma trajetória histórica de um povo que luta pela sua

terra e pela sua cultura, desde o século XVI, quando os portugueses

chegaram ao Vale do São Francisco. A luta desse povo se encontra

muito na figura de lendas como Iaiá, ou em acessórios como fuso8

e a roda de fiar linha. Alves de Barros explica na obra Xacriabá

(Documentar para Preservar) que o fuso era muito importante,

embora na atualidade, não se use mais tal técnica. Ela coloca que

há pouco tempo atrás se usavam roupas feitas no fuso e na roda.

Outros bens materiais também compõem a cultura deste povo:

a tapera (casa indígena), a olaria, o forno de queimar telha, o en-

genho com suas engrenagens puxadas pelos bois que produziam

garapa para fazer rapadura e a oficina de fazer farinha. Alimento

este, que não somente está diariamente presente no prato dos ín-

dios, mas também na culinária das famílias brasileiras. Todos esses

artefatos são patrimônios que constituem a cultura Xacriabá.

Os patrimônios naturais também são tão importantes quanto os

bens culturais, móveis ou imóveis, bens emocionais ou bens intelec-

tuais. Tudo o que é produzido por eles tem a natureza como matéria-

prima, e, mais do que isso, é na natureza que este povo guarda muita

de suas lendas e histórias. Inclusive, havia índios que dormiam nas

cavernas do território Xacriabá. Por exemplo, na aldeia Imbaúba, há

Page 115: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

A família de Hilário junto a João Zoropa demonstrando um dos rituais sagra-dos Xacriabá: o Toré. Eles possuem uma variedade de rituais, embora nem todos possam ser contemplados pelos não-indígenas. Há uma preservação dos cultos, como nos foi dito.

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116

uma gruta que um senhor com o nome de Roberto adorava repousar

tranquilamente. Dizia que o clima era mais fresco do que em sua pró-

pria casa: a gruta possui 1,5 metros de altura e 1 metro de largura e há

um pé de gameleira bem perto da entrada. Um problema manifesto

que percebi por meio da entrevista com o Cacique Domingos, e com

outros índios, é que na maioria das vezes que se referiam aos bens

naturais, sempre falavam de seu péssimo estado de conservação, do

desmatamento e de lagoas que simplesmente secaram.

Um bom exemplo para ilustrar essa situação pode ser visto

na Aldeia dos Pindaíbas. Diz-se que a lagoa que havia lá era usada

tanto pelos animais quanto pela população para finalidades diver-

sas: banho, lavar roupas e louças. Conta-se que até cinco anos atrás

não havia nem uma gota de água nesta lagoa, Adailton José Santa-

na, supervisor de meio-ambiente do munícipio, disse que depois do

cercamento a lagoa voltou a ter água, apesar de deixar bem claro

que é pouca água. Já a lagoa da aldeia Rancharia também, segundo

Adailton, está em péssimas condições, bem assoreada. O supervisor

ainda coloca que a atual situação da lagoa afeta a fauna que antes

coabitava naquele local: a lagoa está poluída e há muito lixo ao seu

redor. Há uma curiosa história sobre essa lagoa que, de acordo com

relato de um morador da reserva, em determinada época, quando

ocorriam obras para fazer o asfalto, o prefeito que estava em exercí-

cio permitiu que a firma responsável por fazer as vias pavimentadas

pudessem secar a lagoa, chegando a gerar energia elétrica para tra-

balhar período diurno e noturno. A água da lagoa foi usada para a

geração de energia da respectiva empresa. Foi feito ainda um aterro

ao redor dela que, desta maneira, aumentava cada vez mais. Antô-

nio - o cacique da aldeia Rancharia – chegou a ir à Brasília denunciar

tal ação de degradação que na época tinha o aval da admnistração

pública local.

Os brasis que não vemos, e o sertão que temos

A prefeitura do município de São João das Missões tem como

prefeito, hoje, um índio Xacriabá. Seu nome é José Nunes de Olivei-

ra e o vice-prefeito é João Pereira da Silva, eleito no ano de 2004.

José Nunes alcançou 2.736 eleitores, algo equivalente a 45,3% de

um contingente eleitoral que é composto de 6.039 eleitores, em-

bora a população do município seja de 10.769 habitantes 9.

Aqui em São João das Missões o sistema político mostra uma

faceta interessante: as chamadas minorias étnicas, quando bem

organizadas e informadas sobre seus direitos, conseguem usu-

fruir e utilizar de uma parcela desse sistema de representação po-

lítica. E mais do que isso, conseguem trazer parceiros tantos para

pesquisas, quanto parceiros para programas assistenciais básicos.

Bom exemplo é o papel exercido pela Funasa (Fundação Nacio-

nal do Índio) - instituição que é responsável por ações ligadas ao

saneamento ambiental em todos os municípios brasileiros e tam-

bém atende a população indígena, oferecendo atenção integral à

saúde: é um subgrupo do SUS (Sistema Único de Saúde), mas foi

criado para atender minorias.

Em entrevista com Marcos Aurélio Fulgêncio Malacco, médi-

co epidemologista - responsável pelo SIASI (Sistema de Informa-

ção da Atenção a Saúde Indígena) Distrital - ele atribuiu os bons

resultados do trabalho desenvolvido pela Funasa na reserva à boa

organização dos Xacriabá: “Os Xacriabá é o povo indígena mais

bem organizado do estado de Minas Gerais”, reitera. Para exem-

plificar um pouco desta organização interna, ele afirmou que na

reserva Xacriabá há três reuniões antes dos assuntos serem leva-

dos às representações políticas: uma ocorre entre as lideranças

(os caciques de cada aldeia), a segunda com os subsecretários das

Page 117: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

Fotomontagem de Domingos Nunes de Oliveira: Cacique Geral Xacriabá. Seu pai - Rosalino Gomes de Oliveira – foi assassinado em 12 de fevereiro de 1987 em razão de um embate por terra. Jagunços eram enviados a mando de fazendeiros da região para fazerem acerto de contas; uma prática que, sem sombra de dúvida, atacou o orgulho indígena sobremaneira. “O acerto de contas hoje diminuiu bastante, mas o preconceito contra os indígenas ainda existe”, protesta.

Page 118: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

118

lideranças que escutam a população que vive em cada aldeia, e, a

última, é organizada uma assembléia geral, onde eles conseguem

finalmente colocar em votação suas demandas.

Malacco comemora mostrando dados que apontam para uma

situação interessante. No ano de 2008, os Xacriabá tiveram ape-

nas uma morte infantil, enquanto na tribo indígena dos Maxakali,

também no estado de Minas Gerais - no mesmo ano - foram regis-

tradas a morte de 30 crianças, com o agravante de que a popula-

ção dos Maxakali correspondem a mais ou menos 1000 habitantes.

O médico ainda afirma que depois do decreto feito em 1999 pela

Presidência da República, onde houve a transferência da respon-

sabilidade da saúde indígena para a Funasa - o que antes era feito

pela Funai (Fundação Nacional do Índio) de maneira bem desorga-

nizada - aconteceram melhoras no atendimento à população Xa-

criabá. Muito em razão de a Funasa conseguir digitalizar os dados

e, assim, passar a conhecer os problemas respectivos de cada po-

voação indígena. Ele lembra que, antigamente, havia apenas um

posto de saúde na Aldeia Brejo Mata fome; hoje existem postos na

aldeia de Itapicuru, Sumaré, Sumaré 3, Rancharia e Pindaíba.

Mallaco ainda disse que as mortes na reserva Xacriabá geralmen-

te ocorrem em razão de doenças infecciosas e parasitárias. Ele reitera

que as enfermidades respiratórias e circulatórias também necessitam

de atenção especial, pois um número considerável de indígenas já

morreu em razão delas. Malacco durante a conversa falou sobre uma

situação que merece atenção especial: há um número apreciável de

suicídio entre os Xacriabá. As causas ainda não são sabidas. Mas, senti

um incomodo perturbador neste médico que desde 1983 trabalha para

a melhora da saúde indígena. Infelizmente não entrarei mais profun-

damente neste assunto por ser uma situação pouco explorada ainda,

mas, confesso-lhes que este fato também me intrigou bastante.

As Histórias sobre as terras Xacriabá não passaram na novela das oito

Domingos Nunes de Oliveira é o cacique geral das 32 aldeias

que compõem a reserva Xacriabá. Ele conta um passado sombrio

que povoou essas terras:

O ex-cacique geral, Rosalino Gomes de Oliveira, pai de Do-

mingos, foi assassinado em 12 de fevereiro de 1987. De acordo

com Domingos, a homologação das terras indígenas naquelas

bandas foi à razão da morte de Rosalino e de mais dois índios.

Seu Rosaldo Fiúza da Silva - cacique da aldeia de Itapicuru - diz

que as duas outras vítimas eram seu irmão e cunhado. Ele ainda

conta que sua irmã no momento do ataque fora baleada, e, ela

estava na ocasião com sua criança no colo. O irmão que já havia

sido baleado e esfaqueado; antes de morrer disse-lhe para ir em-

bora senão os pistoleiros o matariam também. Rosalvo conta que

na época dos conflitos, especificamente na década de 80, os ja-

gunços vinham a mando dos fazendeiros da região. Eles chega-

vam às terras indígenas, montados em caminhões com armas e

foguetes, dando tiros para o alto para assustar os índios. Muitos

índios com medo abandonavam a região, largavam sua terra. Ro-

salvo ainda colocou que nessa época os conflitos foram intensos:

“tivemos uma batalha muito dura, mas se não a fizéssemos, as

coisas estariam iguais”, relembra. Ele nos contou que, neste perí-

odo, passavam pessoas a mando dos fazendeiros com fichas para

denominarem o povo indígena que habitava a região enquanto

posseiros. Seu Rosalvo diz que não preencheu a ficha em razão de

não se considerar posseiro. Muito antes seus antepassados já es-

tavam nessas terras. Ele disse que muitos índios assinaram a ficha

enquanto posseiros por pura falta de informação.

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119

Já no relatório sobre identidade e pesquisa da antropóloga

Ana Flávia Moreira Santos, a situação do preenchimento das tais

fichas é tratada de outra maneira.

A partir da década de 70 é possível observar que grupos de pos-

seiros, dentro da área, se posicionavam contra a intervenção da

Funai (Fundação Nacional do Índio), interessados em obter a regu-

larização fundiária de suas posses. A tensão que se instala entre uns

(posseiros) e outros (índios) torna-se insuportável, na medida em

que os primeiros são identificados como aliados dos fazendeiros (...)

Na década de 80, os enfrentamentos diretos, envolvendo Xacriabá e

posseiros, passam a ser constantes”.10

Em seguida, a pesquisadora faz uma interessante reflexão

acerca de um depoimentos de um indígena:

(...) mais eu estive pençano sobre isto que muito deles sendos pos-

seiros pobres mais tenho muitos nos matratado torcendo pelos gri-

leiros. Outros não queres ser índios por cer uma classe baixa e pobre

e outros só quere o Estado para dividir as terras para vender para

eles e por isto eu não poço se defender eles e mesmo os outros não

são de acordo (...). 11

Na análise dela, a situação de os índios assinarem enquanto

tais correspondia um certo retorno, um espécie de atraso. Segundo

ela, é como se fosse “retornar a um estágio primitivo”. Entenden-

do-se que eles se viam desta maneira pejorativa pelo fato de, his-

toricamente, serem marginalizados e tidos como uma espécie de

raça inferior. Além da representação de desordeiros e facínoras

que os acompanhava, eram tidos também marginilazados, muito

por resistir à dominação desde os tempos coloniais. A dura resis-

tência dos povos indígenas à imposição da cultura do “homem

branco” trouxe a perdura de impressões alegóricas sobre este

povo que se estendeu até os dias de hoje.

Para se entender o ponto de partida dessa identidade pejora-

tiva sobre os povos indígenas é fundamental contar o início dos

problemas relativos a terra. O bandeirante Mathias Cardoso foi

bem conhecido pela maneira austera e sanguínária com que do-

minou aos povos indígenas que encontrou pela frente em sua mis-

são de dominação do alto-médio vale do São Francisco no fim do

século XVII. Daquelas terras sertanejas que já eram muito impor-

tantes em razão das criações de gado - a pedido do Governador

da Província - Mathias Cardoso seguiu a caçar índios. Observe a

colocação extraída do Laudo Antropológico de Maria Hilda Paraíso

presente no relatório da pesquisadora Ana Flávia:

Seguindo seu caminho de destruição, Matias Cardoso, após atacar e

escravizar os Arayo, Kiriri, Pimenteira, Piacú, Janduí e Icó, voltou-se

para atacar a aldeia de Tapiraçaba, onde construiu com concurso do

trabalho escravo dos índios, sua fazenda, com a capela localizada

sobre a área antiga da aldeia.(...) Os Xacriabá se organizam e quei-

mam a sede da fazenda, que é reconstruída pelo filho de Matias

Cardoso, Januario Cardoso de Almeida, sob nome de Nossa Senhora

do Amparo do Brejo Salgado. 12

Os conflitos entre bandeirantes e índios continuaram levando

os Xacriabá a se deslocarem para o rio Urucuia. Contudo, por volta

da segunda década do século XVIII, os Xacriabá tiveram proble-

mas com os índios Kaiapó. Fato este que os levou a se aliarem a Ja-

nuário Cardoso para combatê-los. Após consecutivos conflitos da

bandeira de Januário Cardoso aliada aos Xacriabá contra os Kaia-

pó, foi doada uma parte da terra que eram demarcadas pelos rios

Itacarambi, Peruaçu, São Francisco e pela Serra Geral e Boa Vista.

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Hoje a terra dos Xacriabá corresponde a apenas um terço

comparada à doação atestada na carta que Januário Cardoso re-

digiu em 1728. Abaixo, um trecho da carta do proóprio Januário

Cardoso:

deministrador dos Indios da Missão do Snr. S. João do Riaxo do Ita-

caramby Ordena a Cap. M. Mandante Domingos Dias ajunte todos os

indios tanto maxos como femias q~andarem por fóra pª ad-missão

com zello e cuidado os que forem rebeldes fará prender com cau-

tella para hirem para ad-Missão Copio e Christão e zello Mandando

lhe ensinar se Doutrina pellos os q~ mais soberem os doutrinatos

que vivão bem e se cazem os Mancebados não tendo empedimento

ou avendo empedimento fazendo se caze com outro q~ não tenha

empedimento fazendo os trabalhar pª terem qi comer, e não furta-

rem e o que for rebelde a esta Doutrina (entrelinhas e sublinhado)

que expendo neste papel os prenderá e castigará como merecer sua

culpa... [porque] tenho ordi de quem podi para castigar e prendellos

etirar o abuso de serem Bravos. 13

Esta carta diz muito. Não apenas sobre como eram vistos os

índios ao olhar do “homem branco”, mas do problema relacionado a

terra que até hoje vivem os Xacriabás. A questão agrária no Brasil

para os povos indígenas continua a ser o espaço onde despontam

problemas que esbarram na concentração fundiária, seja na refor-

ma agrária que não têm a merecida atenção ou no direito à terra

que os povos nativos e as minorias étnicas têm. Segundo João

Zoropa, o objetivo dos Xacriabá é voltar para a margem do rio São

Francisco. Ele tem a ciência de saber que há tempos atrás seus

antepassados estavam lá, e que conflitos com a ordem vigente e

com fazendeiros, desde o século XVII até o século XX, foi a razão

pela qual se distanciaram do velho Chico.

Há de se entender que nem as lutas contra dominadores de

suas terras não os tiraram daqui, nem o período de seca que se

estende de março a setembro fez com que eles desistam de sua

terra. É normal por aqui, nos períodos de seca, os índios irem tra-

balhar no interior de São Paulo, Goiás e do Mato Grosso - o que

os coloca na condição de índios retirantes. Mas, quando a seca

termina e a chuva começa a chegar molhando suas terras, lagos

e rios, eles retornam. Mesmo sabendo, como coloca o índio João

Gomes de Oliveira, que o que falta aqui é água. O vínculo com a

terra se mostra ainda maior do que todas essas dificuldades vis-

tas na trajetória do povo Xacriabá. E a insatisfação de estar longe

do Rio São Francisco também é notória. Rosaldo Fiúza, cacique

da aldeia Itapicuru fala de um sonho: “a preocupação nossa é só

chegar à beira dele [O Velho Chico]. Estamos afastados dele. Na

época do coronelismo fomos nos espalhando por não ter havido

espaço para nós”.

Gostaria de terminar este breve relato com uma frase que

ouvi bastante na reserva indígena e que se transformou em uma

bandeira de luta: “Os Xacriabá não foram criados hoje, somos um

povo muito antigo”.

1 (Org) Alenice Baeta, Henrique Piló, Vitor Moura, Ésio Rubbioli,

Vitor Ribeiro. 2005.

2 Documentar e Preservar. (Org) Alenice Baeta, Henrique Piló,

Vitor Moura, Ésio Rubbioli, Vitor Ribeiro. 2005, p.15.

3 Xacriabá: Identidade e História. 1994.

4 Ana Flavia Moreira Santos. Xacriabá: Identidade e História. 1994,

p.4.

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122

5 Carlos Fausto. 2000, p.62.

6 Na literatura Xacriabá é usual perceber essa família linguistíca

grafada enquanto Gê ou Jê. Há uma variação que não parece se-

guir uma lógica específica.

7 Artigo disponívelno endereço: http://www.combonianosbne.

org/PgAnteriores/Povos/indios_MA_1.html

8 Instrumento para fiar à roca. Pelos Xacriabá era usado para tecer

roupas.

9 Informação disponível no site do IBGE (Instituto Brasileiro de Ge-

ografia e Estatística): www.ibge.gov.br

10 Ana Flavia Moreira Santos. Xacriabá: Identidade e História. 1994,

p.18.

11 Transcrição literal de um indígena.

12 Ana Flavia Moreira Santos. Xacriabá: Identidade e História. 1994,

p.5

13 Ibdem

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Matias Cardoso e o delubrum mirae magnitudinis

“Um povo que não conhece a sua história está limitado ao presente da

atual geração; esse povo não compreende nem sua geração; esse povo

não compreende nem sua própria natureza e existência, na impossibi-

lidade em que se acha de relacioná-las com o passado que as explica;

muito menos pode antecipar coisa alguma sobre o futuro. Somente a

história pode dar a um povo a consciência de si mesmo”.

Schopenhaeur

Felipe Chimicatti

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125

À primeira vista se tratava tão somente de uma igreja suntuosa

erguida arguta no centro da praça principal de Matias Cardoso –

cidade mineira limítrofe com o Estado da Bahia. Ao seu redor des-

pontava casas antigas que oscilavam seus estados de conservação,

embora a maior parte tenda, infelizmente, à ruína ou à descaracte-

rização dos traços arquitetônicos. Novamente, como em boa parte

das cidades são-franciscanas visitadas, a igreja apontava seu adro

em direção ao Velho Chico, postando-se frontalmente aos viajan-

tes de outros tempos que, certamente, empreendiam o meio flu-

vial com mais regularidade que os demais; os olhos de Deus ainda

miram o ininterrupto correr das águas são-franciscanas.

A receptividade da população matiense é aspecto assaz curio-

so: sentem-se bastante inclinados em dialogar – muito por se lo-

calizarem na borda da dobra geográfica – e, na maior parte das

vezes, mostram interesse exacerbado pela razão da visita à ci-

dade. O turismo naquelas bandas é parco e pouco habitual, perce-

bido, sobretudo, pela estruturas desconservadas e pelo pequeno

número de estabelecimentos declinado ao pernoite. Ficamos na

pensão da Dona Rita: uma senhora mais idosa com hábitos católi-

cos e uma nostalgia impecável. Em seu estabelecimento, que nos

custou à módica quantia de R$ 10 por noite, pode-se adentrar pro-

fundamente na estrutura familiar do interior desta ribeira. A casa

conserva todos os móveis e toda a estrutura intacta, só que inte-

ressantemente se trata de uma pensão. A sensação que se tem

é que se todos os hóspedes deixassem a casa, ela se tornaria em

um lar conservador radicado no catolicismo mineiro. Dona Rita –

senhora muito agradável repleta de histórias – guarda algumas

antiguidades bastante particulares, como um imenso filtro do co-

meço do século que abasteceu de água filtrada sua pensão por

algum tempo. Agora, o objeto mais curioso era uma cadeira de

tamanho modesto – cerca de um metro – que era seu assento nas

missas de antigamente. Conta ela que há muitos anos atrás era

necessário levar o próprio assento, caso contrário, à missa deveria

ser assistida de pé. O assento, pelo que foi dito, era um elemento

de distinção social. Dono Rita morava exatamente de frente para

o adro da Igreja matriz, a alguns passos da entrada.

Todavia, o instante mais avassalador da visita à cidade se con-

teve no deslumbrar mais detido dessa mesma igreja. Nada poderá

se igualar a distinção assombrosa de perceber tamanha enver-

gadura histórica delegada ao ostracismo público generalizado: a

edificação não possui a data precisa de sua construção, mas se

estima que seja do final do século XVII, de acordo com uma telha

encontrada com o ano de 1703 grafado nela. Logo, a partir daí,

estima-se algo na ordem do ano de 1673 para a construção. No

entanto, uma recente teoria partindo de um documento histórico

localizado na Bahia deu à matriz de Nossa Senhora da Conceição

o ano de fundação no dia 8 de dezembro de 1695, jogando por

terra a teoria originária a partir da telha. De qualquer maneira,

uma construção de envergadura histórica mais pungente que a

maior parte das igrejas mineiras, datada do final do século XVII,

ruindo penosamente frente a sua capacidade histórica de retratar

a origem das Minas Gerais como um todo. Outrora, a igreja fez

parte da capitania da Bahia, quando sequer existia o Estado de

Minas Gerias; e seus traços fulgurais são relíquias de um remoto

passado abandonado.

A sua estrutura, no mais prosaico dos adjetivos, consiste num

afronta à história e à memória regional das Minas Gerais como um

todo. Seu adro está carcomido pelo tempo, faltando ruir; a nave,

dilacerada, guarda uma estruturação mal tratada; o altar também

foi notadamente saqueado – e isso é ilustrado em grande parte

Page 126: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

126

das literaturas históricas; as ripas madeiradas que compõem o

teto, em razão do tempo, vão se contraindo, destruindo as pintu-

ras originais que nelas despontam; as escadas de madeira rangem

em qualquer menor esforço: quanto mais escorre o tempo, mais

volátil se faz à estrutura física da primeira igreja do Estado; e o Go-

verno Federal e Estadual só olham para as Minas, distendendo os

Gerais da sua importância histórica; os Gerais do gado e da agricul-

tura, não do ouro. Pedro Cristóvão, professor de matemática e pes-

quisador autônomo da história da região, lamenta-se fortemente

do descaso. “Os Gerais são tão discriminados que só serviu para

compor o nome. Quem nasce em Mato-Grosso é mato-grossense;

quem nasce em Rio Grande é rio-grandense; quem nasce em Minas

Gerais é mineiro”, protesta. Ele ainda pontua: “não tivemos um

governador do Estado que saiu das Gerais”. O descaso político é

acintoso. As pessoas parecem viver num espaço obtuso delegado

à corrosão pelo tempo. Matias Cardoso é berço das Minas Gerais e,

mesmo assim, esse berço está largado ao esquecimento por parte

da porção mineira, ligada ao período aurífero: prova disso é a (des)

estrutura da primeira igreja construída no Estado, mesmo que nos

tempos da capitania baiana em que o mapa geopolítico do Brasil

era bem diferente: e os processos de restauração, como bem se

sabe, são cada vez mais difíceis à medida que o tempo passa.

Não obstante, para entender um pouco melhor a importância

do município para a formação do Estado - e porque não dizer do

país - é necessário uma sucinta digressão histórica.

Faltosa reminiscência: a justificável borda do Estado

Existem várias hipóteses para a fundação do município de

Matias Cardoso de acordo com a historiografia da região. O leitor

pode se perguntar: por quais razões existem diferentes caminhos

para uma só origem? Em primeiro lugar, todas as cidades do norte

mineiro passam por processos de degradação histórica que se ve-

rificam, por exemplo, nas vastas incertezas digressivas de toda a

porção mineira do vale do São Francisco: remontar o passado do

norte de Minas é tarefa de adivinhação, em muitos casos. Os his-

toriadores tendem a partir de flutuantes hipóteses, pois a confir-

mação oficiosa dos ocorridos é demasiadamente incerta e quase

nada documental. Somente para se ter uma idéia da parca noção

de passado da região, transcrevo aqui uma passagem datada do

começo do século XX - do livro de Wilson Lins - chamado O Médio

São Francisco: Uma Sociedade de Pastores Guerreiros:

(...) Para chegarmos a esse inventário, tivemos que recorrer a vários

arquivos particulares, pois, devido às lutas entre famílias rivais e às

constantes inundações do São Francisco, os cartórios das cidades

ribeirinhas estão reduzidos às mais constrangedoras inutilidades.

Por isto, poucos documentos existem para orientar as incursões do

curioso nos assuntos históricos que se proponha a conhecer fatos

relacionados com a formação dos latifúndios no São Francisco. 1

O relato, embora com seus quase cem anos de procedência,

é ainda atual. As pessoas de ribeira desconhecem as próprias

origens históricas e, a despeito do que disse Euclides da Cunha,

referindo-se ao rio como “o cerne vigoroso de nossa naciona-

lidade” 2, a história parece se deparar com o hipotético desco-

nhecimento de suas raízes, muito em razão do pequeno estímu-

lo científico delegado à região. Para um rio que serviu de fator

geográfico preponderante na descoberta do interior do país – o

grande rio genuinamente brasileiro – a atenção delegada a ele é

demasiadamente econômica.

Page 127: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

127

João Batista de Almeida, pesquisador da região e doutor em

antropologia pela UNB (Universidade de Brasília), lança mão de

três hipóteses para a gênese: o município de Matias Cardoso, na

primeira delas, foi fundado pelo intrépido bandeirante Mathias

Cardoso de Almeida. O perspicaz colono tinha como objetivo de

suas bandeiras a captura e venda de indígenas para o mercado

escravista (durante algum tempo os índios foram mão-de-obra

escrava no vale do São Francisco, a despeito do litoral, que em-

preendeu largamente a mão-de-obra de escravos negros vindos

da África). Em uma de suas andanças pelo sertão, parou e fundou

o respectivo município, denominado na ocasião por Morrinhos.

Ao que parece, uma das vertentes historiográficas registrou que

“desde antes de 1664 esse bandeirante paulista andava com seus

companheiros pelo sertão do São Francisco”. 3

A segunda hipótese consta que o arraial de Morrinhos fora

fundado por um tal de Domingo Dias do Prado. Em razão de uma

enchente no arraial fundado por Mathias, o seu filho – Januário

Cardoso – fixou residência no município fundado por volta de

1600, levando toda a sua genealogia para aquelas bandas.

A terceira hipótese – aventando ser a mais nebulosa – diz res-

peito à fundação da cidade por negros. A partir de uma enchente,

a população migrou para a cidade que hoje é Januária. Os negros

que não se dispuseram a ir, ficaram na localidade e imprimiram

suas características culturais à cidade. Pedro Cristóvão – cito isso

para nortear o leitor – no seu relato misturou as três hipóteses em

uma só; o que pode gerar uma quarta, embora também incerta. 4

A localidade na qual o sertão norte-mineiro se encontra –

como um terceiro lugar; sequer mineiro ou baiano – gera uma

série de conveniências socioculturais, decerto. Contudo, gera tam-

bém um descaso administrativo. Por se tratar de uma economia de

traço “agropastoril, estratificada, com predomínio do compadrio e

organização política baseada na ordem privada” perpassou pelos

“séculos isolada das regiões mais desenvolvidas do país e manteve

um ritmo de crescimento lento e retardatário”; 5 tudo em razão da

administração pública da coroa, leviana e avarenta o suficiente para

em 1711 proibir terminantemente as trocas comerciais entre o norte

de Minas Gerais e a região do ouro. Em razão desse descaso admi-

nistrativo, de acordo com João Batista, tentou-se por 36 vezes criar

um Estado próprio para a bacia do São Francisco – diferentes dos

demais já existentes. Em 1873, por exemplo, o projeto teve bastan-

te fôlego nas discussões. O Estado são-franciscano compreenderia

territórios de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, teria como capital

Vila da Barra (BA): a nova província ainda daria a União quatro de-

putados e dois senadores. A comissão de estatística em seu parecer

favorável julgou que a nova administração provincial chegaria mais

eficazmente aos cidadãos são-franciscanos; que exerceria influên-

cia positiva sobre a prosperidade, segurança e integridade do Im-

pério Brasileiro e que levaria aos 240.000 habitantes o progresso.

O projeto, mesmo tenazmente debatido, foi levado ao Senado que,

em instância superior, o vetou. Hoje, inclusive, existe em tramitação

na câmara dos deputados um novo projeto para separar o norte de

Minas proposto pelo deputado federal Romeu Queiroz (PPS-MG).

Tudo parte da necessidade de auto-afirmação de um povo acostu-

mado a ser esquecido. Provavelmente, a região do Brasil que mais

tentou se distender de sua jurisdição: há realmente algo de sintomá-

tico nisso. Isso mostra, em outras medidas, que a região sempre

se sentiu marginalizada frente ao Estado. No caso de Minas Gerais,

por exemplo, não é raro ouvir isso que a capital mineira da porção

são-franciscana irá se permutar a Montes Claros. Trata-se de uma

espécie de necessidade de afirmar tamanha marginalização.

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128

Destas três hipóteses a ciência de que a localidade foi tam-

bém, assim como boa parte do sertão norte-mineiro, um entre-

posto comercial no qual passavam as mercadorias e as valiosas

quantias metalistas. Inclusive a criação da estrada que interliga-

va Minas-Rio de Janeiro consiste um fator preponderante para a

crise norte-mineira. Tanto é que, “a cidade de São Sebastião do

Rio de Janeiro cresceu e desenvolveu-se tanto que, em 1763, reu-

nia todos os elementos para poder roubar a situação de Capital

administrativa do Brasil”. 6

Boa parte dos contrabandos usava o rio S.Francisco como a

principal via de escoamento. Fizeram-se bastante na região dos

Gerais, afinal, naquele sem fim de terras agrestes a fiscalização

da coroa era escassa. Na medida em que a coroa portuguesa co-

brava a lancinante quantias do quinto na região aurífera em um

monopólio ostensivo, o sertão pouco importava à administração

portuguesa e, se importava, fazia-se por motivos de abastecimento;

os incentivos agropastoris eram de ordem privada, para se ter

uma idéia. A região foi a que abasteceu em gêneros alimentícios a

região aurífera por algum tempo. Os Gerais, por se tratar de uma

região até hoje basicamente agropastoril –, não impediu que a

vertiginosa procura por ouro padecesse sem alimento, pois, nas

paragens do ouro, os caboclos não queriam saber de mais nada

além de procurar o grande Eldorado brasileiro. Ainda a se avultar

a isso, a coroa mantinha os estúpidos privilégios a extração meta-

lista. A região de Mariana chegou, inclusive, a ser acometida por

intensos ciclos de fome, tendo a população local que se deslocar

da região para não morrer de fome. Já em 1711 o comércio com o

norte mineiro fora proibido, comércio esse que se constitui com

muito mais agilidade que os demais: tudo por razões financeiras.

O tráfico de ouro era inconcebível à coroa e a forma proposta de

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(Páginas anteriores) Pintura que compõe o teto da Igreja de Nossa Senhora da Conceição e fotomontagem da edificação. Hoje, ao fundo, ergue-se uma rigorosa antena das telecomuni-cações. As paisagens ao redor vão mudando na medida em que a igreja vão se deteriorando. (À esquerda) Detalhe da edificação que, como consta na documentação histórica, foi restau-rada em 1913 pelo Cônego Maurício Gaspar.

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Um dos retratos que remete ao precário estado de conservação da Igreja de Nossa Senhora da Conceição. As precárias condições estão para além da palavra ou da imagem. Precisa-se ver para crer tamanho descaso. Trata-se de uma das igrejas mais antigas do país largada pelo patrimônio histórico.

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132

se abortá-lo foi isolando toda uma região, amputando-lhe o de-

senvolvimento; elementos fundamentais para se entender a ad-

ministração exploratória da coroa portuguesa no Brasil.

Segundo João Batista, a igreja bem como o município de Matias

Cardoso – fundamentais para se entender a conjuntura histórica

de Minas Gerais – não fazem parte do patrimônio mineiro. Ela

sequer consta na lista de cidades históricas de Minas Gerais. “O

norte de Minas só começou a ser estudado por nós, da Universi-

dade Estadual do Norte de Minas, agora”, reforça. Ele se refere ao

tempo em que lecionava e pesquisava pela instituição. No atual

momento o pesquisador está atuante na Fundação Darcy Ribeiro,

no Rio de Janeiro. E realmente; poucos estudos existem sobre a

região, sobretudo estudos mais recentes.

A Igreja de Nossa Senhora da Conceição: a primeira do Estado a se eregir e possivelmente a próxima a ruir

Pude ter acesso, em consulta ao acervo do Iphan (Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a duas pequenas pastas

com informações da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, tom-

bada pelo patrimônio histórico federal em 1954. Pude perceber

dentro dessas duas pastas algumas fotografias antigas, em preto

e branco, com a estrutura já carcomida e um conjunto de plantas

do ano de 1981 que aponta as precariedades da edificação. Nelas

despontam observações da seguinte ordem: “painéis em tabuado

liso em estado precário”; “revestimento em madeira com tábuas

deterioradas e despregadas”; “púlpitos em madeira almofadada

atacados por insetos xilófagos e com peças despregadas”; “re-

vestimento com violentas infiltrações”. As observações de 1981

apontavam uma necessidade urgente de reestruturação da base

arquitetônica da igreja, hoje ela se torna cada vez mais precária.

Ainda, segundo o pesquisador João Batista, “se a igreja está de pé

até hoje, seguramente, é a população que não deixa ela cair”. De

acordo com ele, até algum tempo os próprios moradores pinta-

vam a igreja, o que foi posteriormente proibido pelo Iphan. Acho

inclusive difícil achar adjetivos bastantes à descrição da ruína

dessa edificação, pois, para além de “precária” ou “violentas in-

filtrações” só imagino em substituição “estado de emergência”.

Richard Burton – um auspicioso gênio inglês – que correu o rio São

Francisco da nascente à foz no século XIX assim escreveu sobre a

cidade de Matias Cardoso, na ocasião Morrinhos:

(...) O lado oriental da praça é ocupado pela Igreja de Nossa

Senhora da Conceição de Morrinhos, que deu nome ao lugar. É

um ‘delubrum mirae magnitudinis’, que goza de grande fama, o

que leva os forasteiros a perguntar como isso aconteceu (...) Ti-

vemos alguma dificuldade em encontrar as chaves; afinal, apare-

ceu o sacristão, com o ‘rabo’ habitual. O interior estava em pior

estado que o exterior: no teto faltavam algumas das tábuas de

cedro que o cobriam, o coro estava em ruínas – em geral é onde a

decadência começa – e os púlpitos estavam, igualmente, na emi-

nência de cair (...). 7

O tal Burton, figura fascinante - somente para fins de contex-

tualização – era admirado por viagens, o que não o impediu de

exercer cargos burocráticos, sendo ele célebre cônsul britânico,

atuando inclusive em Santos, no Brasil. Foi ele quem traduziu para

o português o Kama Sutra e as Mil e uma Noites, além de ter em-

preendido uma sólida viagem da nascente do São Francisco à foz,

de canoa, no século XIX. Assim como Guimarães Rosa, detinha

elevados conhecimentos lingüísticos, totalizando por volta de 25

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133

idiomas e dialetos conhecidos. Foi explorador intrépido da África

e do Oriente Médio em um tempo onde não se podia usar a pa-

lavra turismo na mesma acepção de hoje. Sua obra é importante

leitura sobre o Brasil dos tempos de Império. Ele certamente ficou

admirado com a proporção de tamanha arquitetura em meio a um

povoado tão modesto, provavelmente, a razão pela qual lança

mão da faustosa adjetivação em latim.

Voltando: mesmo no século XIX Burton já verificava a precária

estruturação da edificação do século XVII. Sabe-se, entretanto,

que um cônego chamado Maurício Gaspar empreendeu, em 1913,

uma restauração na igreja. Certamente muito dela hoje é fruto

desta obra. Houve um outra reforma, embora não tenha passado

de uma tentativa, no ano de 1989: as obras ficaram pela metade.

Pouco se sabe sobre as reformas e sobre as mudanças empre-

endidas. O visível é que mesmo reformada há quase cem anos, a

igreja demanda outra reestruturação.

O histórico de expropriação da Igreja de Nossa Senhora da

Conceição não se limita unicamente ao descaso corrosivo do Estado.

Um pároco de São Romão, no início do século XX, levou para a sua

paróquia os candelabros de prata e os ostensórios de ouro que

existiam desde os tempos das bandeiras de Mathias Cardoso de

Almeida após a missa da comemoração do Divino que fora convi-

dado a celebrar. Outro padre, de Januária, transferiu para a sede

da paróquia - na ocasião de sua visita a igreja – a imagem do Se-

nhor dos Passos e da Nossa Senhora das Dores, relíquias históricas

da edificação. A imagem do Senhor Morto só não foi levada por-

que a população literalmente se armou de paus, pedras e foices,

impedindo o transporte da peça. Em 1940, outro padre de Januária

teria vendido um sobrado que dizem ter pertencido a Januário

Cardoso, no entanto, vendeu a um particular.

Além dessas atrocidades, constam na tradição oral dois casos

de queima completa dos arquivos da igreja. Em 1700 é contado

pelos mais idosos que o pároco queimou toda a documentação

da igreja em um acesso desconhecido. No século XIX consta no-

vamente uma queima dos arquivos sacros; embora tudo isso se

afigure na tradição oral. 8

Marcos Cambraia, assessor de comunicação do Iphan, disse

ser também uma das atribuições do pároco da igreja se deter em

possíveis meios para manter a igreja conservada. É possível hoje,

por exemplo, recorrer à lei de incentivo federal (Lei Rouanet) ou ao

Pronac (Programa Nacional de Apoio a Cultura) para captar verba

junto às empresas através do abatimento fiscal. Oras, a grande in-

dagação que não pode deixar de ser feita é: Por que razão uma em-

presa privada, ou estatal que seja, investiria na restauração de uma

cidade que pouquíssimo tem de turístico? A cidade já conseguiu

ter a restauração aprovada e o crédito financeiro liberado pela lei,

no entanto, a captação da verba sempre é inexistente. As empre-

sas simplesmente não investem. O pior é que uma igreja do porte

da matriz de Matias Cardoso não deveria passar por esse tipo de

triagem: trata-se da primeira igreja de todo o Estado de Minas Gerias;

uma reminiscência viva pronta a recontar sua história.

A questão da não conservação, todavia, serve muito para

apontar a já tratada distensão do norte de Minas com relação à re-

gião aurífera. João Batista de Almeida, integrante do movimento

Catrumano 9, diz que os Gerais – habitualmente reconhecidos en-

quanto sertão, e não enquanto pertencente às Minas Gerais – só

vai se fazer notar na medida em que a população local “reconhecer

que ela não foi só ouro, que ela foi também gado e agricultura”,

propõe. Para ele a Igreja de Nossa Senhora da Conceição revela

muito bem essa constituição. Mas a luta pelo reconhecimento não

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se encerra no coração desse povo tão rico culturalmente e tão

afundado em políticas públicas que não querem ver o que a história

insite em mostrar.

Com relação ao estilo da igreja - estilo esse que Burton adjetivou

com deslumbre – muito historiadores investem na possibilidade da

estilística jesuítica. João Batista lança opinião contrária: “Ao que me

parece aquela igreja nunca seria jesuítica; não existe registro histó-

rico dos jesuítas no norte de Minas”, enfatiza. Narra ainda que nos

anos 80 foi encontrada em uma das eventuais obras que eram fei-

tas na edificação uma adaga de estilo árabe. Arrisca ele que a igreja

tenda mais a esse estilo do que propriamente ao jesuítico. De qual-

quer maneira, encerra-se como outro enigma do norte mineiro que

padece sem esclarecimentos por parte dos estudiosos.

Agricultura em meio à seca: uma das proporções do Projeto Jaíba

Em meio ao sertão matiense, de terra seca, sol e luminosidade

implacáveis, existe o projeto responsável por fornecer água para

as plantações durante todo o ano. Quem nos apresentou às plan-

tações ligadas ao projeto Jaíba foi um Pernambucano amistoso de

olhos azuis de apelido Caboclo. Seu semblante de longe se parecia

com o de um caboclo, mas, como na lógica dos apelidos adormece

sempre um sarcasmo desmedido, detive-me em sua postura cor-

dial. O Jaíba, como estava tratando, constitui-se enquanto o maior

projeto público de irrigação em área contínua da América Latina.

Nesse sentido, o norte de Minas Gerais tem parte de suas atribula-

ções empresariais sanadas, muito em razão de ser um projeto que

se adequou muito bem ao agronegócio. A implementação deste

braço agroindustrial no norte de Minas tem, a princípio, a neces-

sidade de desenvolver uma região sempre esquecida pelo capital

privado e público. E, em algum sentido, existe força econômica

por lá nos dias de hoje. O Projeto Jaíba é responsável por levar

água para essas plantações durante todo o ano, produzindo gêne-

ros agricultáveis ininterruptamente de janeiro a janeiro. São canais

que deslocam a água direto dos rios S.Francisco, Verde Grande,

Gurutuba, Jequitaí e das Velhas, e, literalmente passando em meio

às propriedades, geram para as empresas capacidade produtiva

anual para a fruticultura e a produção de grãos. É impressionante

notar que hoje, no Vale do São Francisco, são produzidos até vi-

nhos de boa qualidade, vale esse que antes se mostrava inapto à

agricultura em razão das constantes secas.

Shiguetushi Kojima – descendente de japonês e empreendedor

do projeto Jaíba – está trabalhando há dez anos com o método

de irrigação. Sua empresa chamada Água da Prata exporta frutas

para Alemanha e Portugal, produzindo por mês 200 toneladas

de frutas. “A exportação paga melhor – cerca de 50% a mais que

importação, apesar de serem mais criteriosos”, explica. Ele ainda

esclarece a quantidade de água que é gasta por dia: “são aproxi-

madamente 1.000 m³ de água/dia em cada lote de 50 hectares”. A

irrigação de sua plantação é praticamente toda computadorizada,

prescrevendo através de um software a quantidade de água ideal

para as frutas em cada ocasião do ano, basta informar a respeito

das chuvas e das proporções pluviais: coisas na ordem dos índices

pluviométricos. A plantação de Kojima trabalha basicamente com

mangas, tendo mais saída para a do tipo Palmer, embora esteja

agora no início da implantação da cultura abacateira. Quando in-

dagado a respeito dos subsídios, Kojima se lamenta dizendo que

já foram melhores.

O projeto Jaíba nasceu em plena ditadura militar, no ano de

1975, apesar de sua articulação ter começado a ser projetada na

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década de 50: trata-se de uma parceria entre Governo do Estado e

a União, representados, respectivamente por Ruralminas (Secreta-

ria de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e Codevasf

(Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do

Parnaíba).

Foram arqueadas quatro fases para o projeto e se estima que,

ao final da empreitada, tenham-se implantados 100.000 hectares

de perímetro irrigado. Trata-se de um projeto produtivo, principal-

mente durante a entressafra dos mercados internacionais, uma

vez que o projeto tem produção anual. Entretanto, constitui-se

majoritariamente de um projeto de latifúndios. A fase de recolo-

cação dos ribeirinhos que plantavam as margens do Velho Chico

– a primeira fase – teve um êxito regular. Alguns casos prospera-

ram outros não, mas, o projeto teve seu maior êxito no sentido

do agronegócio.

1 Wilson Lins. 1983, p.31

2 Bernardo da Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de

Minas Gerais. 1991, p.19

3 Afonso Taunay. História Geral das Bandeiras Paulistas. 1948,

p.45

4 De acordo com a tese de doutoramento João Batista de Almeida

intitulado: Mineiros e Baianeiros: Englobamento, Exclusão e Re-

sistência obtida em 2003.

5 Bernardo da Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de

Minas Gerais. 1991, p.19

6 Ibidem

7 Richard Burton. Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico.

1977, p.220

8 João Batista de Almeida. Mineiros e Baianeiros: Englobamento,

Exclusão e Resistência. 2003, p. 185

9 Catrumano é um movimento político que tenta resgatar a diver-

sidade e pluralidade do norte de Minas – tão rico culturalmente.

Trata-se de uma tentativa de fortalecer a imagem do norte-mi-

neiro no cenário nacional. Catrumano é uma palavra que foi dita

pelo botânico francês Saint-Hilaire na ocasião de sua visita a Minas

Gerais. De acordo com ele, tudo o que aquele povo fazia era por

intermédio da montaria; tratava-se um povo cavaleiro, munido de

quatro mãos – aludindo às patas dos eqüinos.

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falá”: Mitos e Ritos da Narrativa Oral nas Barrancas do Rio

São Francisco. 2001. 119 f. Dissertação (Mestrado em Letras

da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH) Uni-

versidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001.

Page 140: Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

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“Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra

doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não

se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então,

todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu

estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu,

aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito.

Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e

declarado, tive que reforçar a voz: ‘Pai, o senhor está velho,

já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais...

O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas

vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...’ E, assim

dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo (...)

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube

mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não

foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abre-

viar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos,

que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem

também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de

longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio”.

João Guimarães Rosa,

extraído do conto a Terceira Margem