agrotoxicos no brasil

191

Upload: monikbegname

Post on 24-Nov-2015

30 views

Category:

Documents


6 download

TRANSCRIPT

  • AGROTXICOS NO BRASIL um guia para ao em defesa da vida

    Flavia Londres

    Realizao

    ANA - Articulao Nacional de Agroecologia

    RBJA - Rede Brasileira de Justia Ambiental

    2011Rio de Janeiro

  • A AS-PTA e a RBJA estimulam que os leitores circulem livremente os textos aqui publicados. Sempre que for necessria a reproduo total ou parcial deste material, solicitamos que o livro Agrotxicos no Brasil - um guia para ao em defesa da vida seja citado como fonte.

    L847a Londres, FlaviaAgrotxicos no Brasil: um guia para ao em defesa da vida. Rio de Janeiro: AS-PTA Assessoria e Servios a Projetos em Agricultura Alternativa, 2011.190 p. : il. ; 23 cm. IncluiRefernciasbibliogrficas ISBN 978-85-87116-15-41.Aspectos Ambientais. 2. Agricultura. 3. Agrotxico. 4. Sade. 5. Justia Ambiental. I. Ttulo. CDD 632.95 CDU 631.8

    Flavia Londres e Denis MonteiroFlavia Londres e Denis MonteiroPSIKHEdesignZ Luiz Fonseca e PSIKHEdesignDaniela Macedo Jorge (Gerncia Geral de Toxicologia - GGTOX / Anvisa)Luiz Cludio Meirelles (GGTOX / Anvisa)Letcia Rodrigues da Silva (GGTOX / Anvisa)Elkiane Macedo Rama (GGTOX / Anvisa)Heloisa Rey Farza (GGTOX / Anvisa)Toxicologia e Regulao de Agrotxicos

    Raquel Maria Rigotto (Professora do Departamento de Sade Comunitria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Cear - UFC e Coordenadora do Ncleo Tramas Trabalho, Meio Ambiente e Sade)Sade e Intoxicaes

    Fernando Ferreira Carneiro (Professor Adjunto da Universi-dade de Braslia - UnB / Faculdade de Cincias da Sade / Depar-tamento de Sade Coletiva e Pesquisador do Ncleo de Estudos de Sade Pblica da UnB)

    Marcelo Firpo Porto (Pesquisador do Centro de Estudos da Sade do Trabalhador e Ecologia Humana / Fiocruz)

    Coordenao Editorial: Reviso:

    Capa:Diagramao:

    Reviso Tcnica:

    Tiragem: 1a. edio - 2011 - 1.500 exemplares

  • Agradecimentos

    Presto muito especiais agradecimentos

    equipe da Gerncia Geral de Toxicologia (GGTOX) da Anvisa, em primeiro lugar pelo incentivo dado ANA e RBJA para que levassem adian-te o projeto de elaborar esta publicao, como tambm pelo apoio prestado durante a sua execuo. Especialmente, agradeo Daniela Macedo Jorge pela ateno e colaborao fornecendo-me materiais e informaes fundamentais realizao desta pesquisa, e tambm Luiz Claudio Meirelles, Letcia Ro-drigues da Silva, Luiz Bernardo Bieber, Elkiane Macedo Rama e Heloisa Rey Farza;

    Raquel Rigotto, professora da Universidade Federal do Cear e mem-bro da Rede Brasileira de Justia Ambiental, cuja ajuda para a elaborao do captulo sobre Sade foi excepcional. Alm do grande domnio tcnico que Raquel tem sobre o tema, seu envolvimento militante com a questo a coloca entre as mais importantes personagens da luta contra os agrotxicos no Brasil;

    ao Dr. Pedro Serafim, coordenador do Frum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotxicos, pelo admirvel trabalho que desenvolve e pela dedicao com a qual organizou e coordenou a expedio que realizei a Per-nambuco. Agradeo tambm a Lucolo Galindo, Kalua Matos e Silvio Vare-jo, da Adagro-PE, e a Suziane Lopes e Jaime Brito, da Apevisa, pela ateno dedicada em Pernambuco e pelas informaes fornecidas para a elaborao deste material;

    Jandira Maciel, professora da UFMG, pela inestimvel ajuda para des-vendar o emaranhado dos sistemas de registro e notificao de casos de into-xicao por agrotxicos;

    Lia Giraldo, pesquisadora da Fiocruz-PE, pela colaborao no tema dos agrotxicos domissanitrios e para controle qumico de vetores de doen-as;

    ao Marcelo Firpo, pesquisador da Fiocruz e membro da Rede Brasileira de Justia Ambiental, pela grande colaborao para a divulgao do Mapa da Injustia Ambiental e Sade no Brasil;

    ao Wagner Soares, pesquisador do IBGE (Instituto Brasileiro de Geo-grafia e Estatstica), pela presteza com que colaborou com informaes relati-vas sua pesquisa sobre o custo monetrio de algumas das chamadas externa-

  • lidades negativas do uso de agrotxicos na produo agrcola;

    Arline Arcuri, pesquisadora da Fundacentro - SP, pelas dvidas escla-recidas no tema dos limites permitidos de resduos;

    Ftima Aparecida G. Moura (Cidinha), coordenadora regional da FASE Solidariedade e Educao - Mato Grosso, e Kauhana Hellen de Sousa Moreira, bolsista do Ncleo Tramas - UFC, pelo empenho na pesquisa e bus-ca por fotos que ilustram este livro;

    e, por fim, ao Denis Monteiro, Secretrio Executivo da Articulao Nacional de Agroecologia, pela pacincia e confiana com que aguardou ao longo de tantos meses a concluso deste trabalho.

  • Sumrio

    Prefcio ................................................................................................................ 11Apresentao ...................................................................................................... 13

    PARTE 11 - Por que campeo em agrotxicos? ......................................................... 17

    Incentivos expanso ...................................................................... 17 Modelo ineficiente ........................................................................... 20 Contaminao ambiental e intoxicao .............................................. 22 Uma outra agricultura possvel ...................................................... 23

    2 - Informaes Bsicas sobre Sade e Intoxicaes ............................... 25 Grupos de maior risco de intoxicao ............................................. 26 Tipos de intoxicao ........................................................................ 28 Exposio mltipla a vrios agrotxicos diferentes ............................ 29 Classificao toxicolgicados agrotxicos ......................................... 30Como diagnosticar uma contaminao por agrotxico? ..................... 31 Principaisdificuldadesparaodiagnstico ........................................... 32 - Intoxicao aguda ............................................................ 32 - Intoxicao crnica .......................................................... 34Sistemas de Notificao e Registro de Intoxicao por Agrotxicos ... 34 O Sinitox .......................................................................................... 35 O Sinan ............................................................................................ 36 O Notivisa ....................................................................................... 37 Outros sistemas de registro .............................................................. 38 Intoxicaes registradas pelo Sinitox: nmeros .................................... 39 Intoxicados e demitidos ..................................................................... 41O que fazer em caso de acidente com agrotxico .................................. 42E o que fazer quando h suspeita de intoxicao crnica .................... 43Aes preventivas ........................................................................................ 44Venenos domsticos e os usados para o controle de vetores de doenas .. 44O uso seguro de agrotxicos possvel? ................................................... 48Agrotxicos e suicdio entre agricultores ................................................ 52Agrotxicos triplicam casos de cncer e quadruplicam nascimentos de bebs com malformaes na Argentina .......................................... 54Incidncia de cncer no Cear maior entre agricultores ................ 55Mulheres e crianas expostas aos riscos da intoxicao .................. 57

    3 - Veneno na gua de beber ....................................................................... 59Monitoramento de resduos de agrotxicos na gua ............................. 59 E a Portaria 518 sequer pegou... ....................................................... 62 Programa da Anvisa passar a procurar agrotxicos na gua ................ 62

  • Como forar o poder pblico monitorar a presena de resduos de agrotxicos na gua? .................................................................................. 63Laboratrios aptos a detectar presena de agrotxicos na gua ...... 64 Na Chapada do Apodi - CE, a gua que sai das torneiras tem at 12 tipos de veneno ........................................................................................................ 65 A contaminao do Aqufero Jandara ............................................... 66 Aqufero Guarani tambm est sendo contaminado por agrotxicos ... 67

    4 - Os transgnicos e os agrotxicos .......................................................... 69 Como funciona a soja transgnica Roundup Ready (RR) ..................... 70 Mais veneno na lavoura, mais resduo nos alimentos ....................... 71 E os outros tipos de transgnicos? .................................................... 72

    5 - Glifosato (o famoso Roundup): veneno fraquinho? ....................... 73 Glifosato suspeito de provocar nascimento de bebs com malformaes.74

    6 - Mais casos de contaminao e envenenamento ................................ 77Derramamento de Endossulfam no Rio Paraba do Sul, em Resende - RJ ... 77As vtimas da fbrica de abacaxis no Cear ........................................ 80Pesquisas comprovam contaminao de ar, gua da chuva e leite materno em Mato Grosso .......................................................................... 81Pulverizao area: cidades banhadas por agrotxicos ....................... 83Justia condena Shell e Basf a pagar tratamento de ex-trabalhadores contaminados .............................................................................................. 83

    7 - Quanto custa a contaminao provocada pela agricultura com venenos? ............................................................................................................ 87

    8 - O Mapa da Injustia Ambiental e Sade no Brasil ................................... 89

    PARTE II9 - Apontamentos da Legislao Federal sobre Agrotxicos ................ 99

    Temos no Brasil uma legislao de agrotxicos .................................. 99Antes de tudo, a Constituio Federal ................................................. 100A Lei dos Agrotxicos - 7.802/89 .......................................................... 100 I - Restries ao registro .............................................................. 101 II - Fracionamento de agrotxicos ................................................ 103 III - Receiturio agronmico ......................................................... 104 IV - Devoluo de embalagens vazias ........................................ 105 Estabelecimentos comerciais que se recusam a receber de volta embalagens vazias ......................................................................................... 106 Descarte irregular de embalagens de agrotxicos ....................... 107 V - Propaganda comercial de agrotxicos ................................... 107 VI - Pulverizao area ................................................................ 108

  • VII - Outras formas comuns de descumprimento da lei e competncias para fiscalizao ........................................................................................... 111 Uso de agrotxicos em margens de rios ou represas cujas guas so usadas para o abastecimento da populao ................................................................. 111 Trabalhadores rurais sem acesso a equipamentos de segurana ........ 112 Depsito irregular de substncias proibidas ..................................... 112 Prefeituras que usam herbicidas para capina qumica em ambientes urbanos .......................................................................................................... 112 Dicas para que a denncia tenha bom xito ................................... 113 Que aes devemos esperar (e cobrar!) dos rgos aos quais encaminhamos as denncias? .................................................................................................. 113 E como obter o ressarcimento por danos sofridos por contaminao com agrotxicos? .................................................................................................... 114 Como consultar as leis .................................................................... 115

    10 - Leis estaduais e municipais sobre agrotxicos ............................... 117Exemplos interessantes de normas estaduais sobre agrotxicos ...... 118 Proibio de agrotxico proibido no pas de origem .......................... 118 Pulverizao area e piv central ...................................................... 119 Metade do agrotxico aplicado no atinge o alvo ................................. 120 Proibioespecficaadeterminadosagrotxicosperigosos ................... 120 Proibio a fbricas ou comrcio de agrotxicos em zonas residenciais ... 121 Responsabilizao de empregador ou contratante em caso de intoxicao .. 122 Monitoramento da presena de resduos no meio ambiente e da sade das pessoas ............................................................................................................ 122 Anlises de resduos de agrotxicos atravs da Assembleia Legislativa .. 124 Reavaliao dos agrotxicos e possvel cancelamento de registros estaduais . 124 Exigncias mais rigorosas para aplicao de agrotxicos Classes I e II ... 125 Sistema de monitoramento do comrcio de agrotxicos ................. 125 Transporte e treinamento para aplicadores ..................................... 126Municpio tambm tem competncia para proibir agrotxico ....... 127Como influenciar a criao ou o aprimoramento de leis estaduais? .. 127

    11 - Os Programas de Monitoramento de Resduos de Agrotxicos em Alimentos .......................................................................................................... 129

    Em que situaes os nveis de resduos ultrapassam os limites permitidos? . 130 Produtos proibidos ......................................................................... 130I - O PARA da Anvisa ............................................................................ 131 Resultados recentes ....................................................................... 132 Aes nos estados ......................................................................... 134II - O PARA do CEASA de Pernambuco ............................................. 136 E quando os resultados apontam a contaminao irregular de alimentos ... 137 Como o produtor suspenso pelo Ceasa poder voltar a comercializar seus produtos na Central? ......................................................................................... 138III - Parinha dos Supermercados de Recife-PE ....................................... 140

  • 12 - Anvisa encontra irregularidades em todas as fbricas de agrotxicos fiscalizadas ....................................................................................................... 141

    Penalidades .................................................................................... 143

    13 - Reavaliao Toxicolgica dos Agrotxicos aps introduo no mercado ........................................................................................................... 145

    Quem pode solicitar a reavaliao toxicolgica de um agrotxico? ... 146 Como feita a reavaliao toxicolgica? ............................................ 146 Quais os resultados que podem advir de uma reavaliao toxicolgica? . 147 Voc tambm pode contribuir atravs das Consultas Pblicas ............ 148Resultados da reavaliao toxicolgica iniciada em 2008 ................. 150 Agrotxicos banidos continuam a ser usados ................................... 154

    14 - O que observar no rtulo de um agrotxico ............................. 155E o que observar na bula ....................................................................... 156

    PARTE III15 - O Frum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotxicos .. 161

    16 - Mas ser que precisamos de uma agricultura com venenos? ..... 169 A alternativa agroecolgica .............................................................. 169 A insustentabilidade do agronegcio ................................................. 172 A necessidade de uma ampla reforma das polticas para a agricultura ... 173 Programas de transio para a agroecologia em grande escala: uma luz no fimdotnel? .................................................................................................... 174

    17 - Indicaes de Literatura sobre Agrotxicos, Transgnicos e Agroecologia .................................................................................................... 177

    I - Agrotxicos e Transgnicos ................................................................. 177II - Agroecologia, agrobiodiversidade, sementes crioulas .................. 183

    Bibliografia consultada .............................................................................. 185

  • 11

    Prefcio

    O livro Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida uma produo revestida de carter histrico. Leitura essencial para quem luta na defesa da vida e por um modelo de desenvolvimento alternativo para o campo.

    O primeiro motivo dessas afirmaes se deve ao fato da quase ausncia de material educativo produzido pelo setor pblico informando a populao sobre os riscos do uso dos agrotxicos no Brasil. Esse campo hegemonizado por quem produz os agrotxicos, preconizadores de seu uso seguro, mito, ana-lisado e desconstrudo nesse importante livro, escrito com muita competncia por Flavia Londres.

    Outro aspecto merecedor de destaque nessa obra, trata-se da viso dos movimentos sociais liderados pela Articulao Nacional de Agroecologia e Rede Brasileira de Justia Ambiental sobre esse processo, olhar muitas vezes desqualificado pelos grandes grupos econmicos ou mesmo por alguns cien-tistas. Podemos afirmar que os textos apresentados guardam um minucioso cuidado com as fontes e referncias, se baseando em pareceres de pesquisas e documentos oficiais.

    O leitor tem em mos um livro com abordagem interdisciplinar inova-dora. Sua forma de guia propicia um prspero dialogo entre a sade, o meio ambiente e a agricultura sem perder a perspectiva da ao, ou seja, de cons-truir uma prxis. A sade, no contexto apresentado, um verdadeiro term-metro do atual modelo de desenvolvimento no campo. Apesar da precarieda-de da ao pblica em todas as etapas da cadeia produtiva dos agrotxicos, na subnotificao das intoxicaes, na invisibilidade do problema para a nossa sociedade que esse guia vem desnudar de uma forma clara e pedaggica a ne-cessidade de transformarmos o atual quadro de descontrole e contaminao associado ao uso de agrotxicos no Brasil.

    Os textos confirmam a importncia da realizao dos dilogos de sa-beres. Temos um grande desafio para produzir conhecimento voltado para a construo de um sistema de vigilncia da sade que proteja a vida e contribua na implantao de sistemas produtivos mais saudveis. Existe uma experincia acumulada dos povos que vivem nos campos e nas florestas, e essas vozes pre-cisam ser mais ouvidas.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    12

    A informao aqui contida poder ser um grande instrumento para mi-litantes sociais, estudantes, professores, ambientalistas, profissionais de sade, extensionistas rurais e agricultores na luta por um campo mais saudvel.

    Esse guia um grande passo para novos dilogos e convergncias na articulao das redes de agroecologia, justia e sade ambiental, soberania ali-mentar e economia solidria na construo de um outro modelo de desenvol-vimento para o campo no Brasil: sustentvel, saudvel e justo.

    Fernando Ferreira CarneiroDoutor em Epidemiologia pela Escola de Veterinria da Universidade Federal de Minas Gerais, Professor Adjunto da Universidade de Braslia-UnB, Faculdade de Cincias da Sade, Departamento de Sade Coletiva e Pesquisador do Ncleo de Estudos de Sade Pblica da UnB. Membro do GT de Sade e Ambiente da Associao Brasileira de Ps-graduao em Sade Coletiva-ABRASCO

  • 13

    Apresentao:

    A publicao deste livro uma iniciativa da Articulao Nacional de Agroecologia - ANA e da Rede Brasileira de Justia Ambiental - RBJA. Sua elaborao foi motivada pela percepo de que, se de um lado o uso descontro-lado de agrotxicos no Brasil tem crescido muito aceleradamente nos ltimos anos, afetando agricultores familiares e populaes rurais de forma cada vez mais direta e acentuada, do outro lado os tcnicos de assessoria rural, as lide-ranas dos movimentos sociais, os profissionais frente de programas de edu-cao ou de aes comunitrias de promoo da sade tm ainda uma grande carncia de informaes abrangentes e sistematizadas capazes de orientar na prtica as aes de enfrentamento.

    Dessa maneira, o objetivo desta publicao vai alm de simplesmente alertar os agricultores e consumidores sobre os perigos dos venenos usados na agricultura (e tambm nas cidades) e incentivar produtores a adotar prticas ecolgicas de cultivo. Trata-se, em primeiro lugar, de um material de consulta, onde o leitor encontrar informaes relevantes sobre a legislao de agrot-xicos para com elas mobilizar aes no sentido de exigir seu cumprimento; sobre os programas de monitoramento de resduos de venenos nos alimentos para cobrar a sua expanso e aperfeioamento e assim promover o acesso a ali-mentos menos contaminados; sobre como identificar, encaminhar, notificar e prevenir casos de intoxicao e com isso melhorar o apoio s populaes sujeitas aos riscos dos efeitos dos venenos sobre a sade; e sobre os processos de reavaliao toxicolgica dos agrotxicos autorizados no Brasil para ento organizar o apoio luta pelo banimento de produtos perigosos.

    A publicao traz tambm casos reais de intoxicao e de contamina-o ambiental, bem como apresenta, ao final, caminhos para a articulao e a mobilizao das pessoas e organizaes que no se conformam em aceitar passivamente o envenenamento massivo dos campos, das cidades, da gua, do ar e das pessoas.

    Esperamos com este material apoiar o trabalho de todos aqueles que nos campos, nas cidades, nos hospitais, nos rgos de governo, nos laborat-rios ou nas salas de aula lutam por uma agricultura que promova a vida, e no a morte.

  • PARTE

  • 17

    Captulo 1

    Por que campeo em agrotxicos?

    Algumas informaes para iniciar o estudo sobre os venenos agrcolas

    Incentivos expanso

    Embora a agricultura seja praticada pela huma-nidade h mais de dez mil anos, o uso intensivo de agrotxicos para o controle de pragas e doenas das la-vouras existe h pouco mais de meio sculo. Ele teve ori-gem aps as grandes guerras

    mundiais, quando a indstria qumica fabricante de venenos ento usados como armas qumicas encontraram na agricultura um novo mercado para os seus produtos.

    Diversas polticas foram implementadas em todo o mundo para expan-dir e assegurar este mercado. A pesquisa agropecuria voltou-se para o desen-volvimento de sementes selecionadas para responder a aplicaes de adubos qumicos e agrotxicos em sistemas de monoculturas altamente mecanizados. Segundo seus promotores, esta Revoluo Verde seria fundamental para derrotar a fome que assolava boa parte da populao mundial.

    No cenrio mundial, a FAO (rgo das Naes Unidas para a Alimen-tao e Agricultura) e o Banco Mundial foram os maiores promotores da

    SXC

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    18

    difuso do pacote tecnolgico da Revoluo Verde. No Brasil, uma srie de polticas levada a cabo por diferentes governos cumpriu o papel de forar a implementao da chamada modernizao da agricultura, processo que re-sultou em altos custos sociais, ambientais e de sade pblica.

    Neste processo, teve papel central a criao, em 1965, do Sistema Nacio-nal de Crdito Rural, que vinculava a obteno de crdito agrcola obrigato-riedade da compra de insumos qumicos pelos agricultores. Outro elemento chave foi criao, em 1975, do Programa Nacional de Defensivos Agrcolas, no mbito do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que proporcio-nou recursos financeiros para a criao de empresas nacionais e a instalao no pas de subsidirias de empresas transnacionais de insumos agrcolas. Um outro fator ainda a colaborar de forma marcante para a enorme dissemina-o da utilizao dos agrotxicos no Brasil foi o marco regulatrio defasado e pouco rigoroso que vigorou at 1989 (quando foi aprovada a Lei 7.802), que facilitou o registro de centenas de substncias txicas, muitas das quais j proi-bidas nos pases desenvolvidos (Pelaez et al, 2009; Silva, J.M. et al, 2005).

    No podemos deixar de mencionar ainda as isenes fiscais e tribut-rias concedidas, at hoje, ao comrcio destes produtos. Atravs do Convnio ICMS 100/971, o governo federal concede reduo de 60% da alquota de cobrana do ICMS (Imposto sobre Circulao de Mercadorias e Servios) a todos os agrotxicos. A ltima prorrogao do Convnio estendeu o benefcio at 31/12/2012. Alm disso, o Decreto 6.006/062 isenta completamente da cobrana de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) os agrotxicos fa-bricados a partir de uma lista de dezenas de ingredientes ativos (incluindo al-guns altamente perigosos como o metamidofs e o endossulfam, que recente-mente tiveram o banimento determinado pela Anvisa). E no s. O Decreto 5.630/053 isenta da cobrana de PIS/PASEP (Programa de Integrao Social/Programa de Formao do Patrimnio do Servidor) e de COFINS (Contri-buio para o Financiamento da Seguridade Social) os defensivos agropecu-

    1 Disponvel em: http://www.fazenda.gov.br/confaz/confaz/convenios/ICMS/1997/CV100_97.htm2 O Decreto 6.006/08 est disponvel em: http://www.receita.fazenda.gov.br/legislacao/decre-tos/2006/dec6006.htm - Seu Art. 1 aprova a Tabela de Incidncia do Imposto sobre Produtos Indus-trializados - TIPI, que est disponvel em: http://www.receita.fazenda.gov.br/Aliquotas/Down-loadArqTIPI.htm - os agrotxicos esto na Seo VI - Produtos das Indstrias Qumicas ou das Indstrias Conexas - SEO VI - Cap. 28 a 38 (consultado em 19/05/2011).3 O Decreto 5.630/05 est disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/Decreto/D5630.htm#art4. Ele revogou e substituiu o Decreto 5.195/04 (disponvel em: http://www.receita.fazenda.gov.br/legislacao/decretos/2004/dec5195.htm), que j concedia a iseno de PIS/PASEP e COFINS aos agrotxicos.

  • 19

    rios classificados na posio 38.08 da NCM e suas matrias-primas. A posio 3808 da NCM (Nomenclatura Comum do Mercosul) compreende produtos diversos das indstrias qumicas como inseticidas, fungicidas e herbicidas. Alm das isenes federais, h as isenes complementares determinadas por alguns estados. No Cear, por exemplo, a iseno de ICMS, IPI, COFINS e PIS/PASEP para atividades envolvendo agrotxicos chega a 100%.

    Mas foi na ltima dcada que o uso de agrotxicos no Brasil assumiu as propores mais assustadoras. Entre 2001 e 2008 a venda de venenos agrcolas no pas saltou de pouco mais de US$ 2 bilhes para mais US$ 7 bilhes, quan-do alcanamos a triste posio de maior consumidor mundial de venenos. Fo-ram 986,5 mil toneladas de agrotxicos aplicados. Em 2009 ampliamos ainda mais o consumo e ultrapassamos a marca de 1 milho de toneladas o que representa nada menos que 5,2 kg de veneno por habitante! Os dados so do prprio Sindag (Sindicato Nacional da Indstria de Produtos para Defesa Agrcola), o sindicato das indstrias de veneno. Devido repercusso negativa que o aumento do uso de venenos comeou a causar nos meios de comunica-o, a organizao no divulgou o volume de agrotxicos comercializado em 2010, mas apenas o faturamento do setor: US$ 7,2 bilhes (9% a mais que o ano anterior).

    Nos ltimos anos o Brasil se tornou tambm o principal destino de pro-dutos banidos no exterior. Segundo dados da Anvisa, so usados nas lavouras brasileiras pelo menos dez produtos proscritos na Unio Europeia (UE), Esta-dos Unidos, China e outros pases4.

    Levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) e do Sindicato Nacional da Indstria de Produtos para Defesa Agr-cola (Sindag), ambos de 2009, apresentam o crescimento de 4,59% da rea cultivada no perodo entre 2004 e 2008. Por outro lado, as quantidades ven-didas de agrotxicos, no mesmo perodo, subiram aproximadamente 44,6%. E os nmeros no levam em conta a enorme quantidade de agrotxico contra-bandeado para o pas. (Carneiro, F. e Soares, V., 2010). Ou seja, o aumento recente do envenenamento dos campos gritante.

    A Andef5, associao que congrega as maiores indstrias de agrotxicos, comemora mas ainda acha pouco. Segundo a organizao, ainda h espao

    4 Brasil destino de agrotxicos banidos no exterior - O Estado de So Paulo, 30/05/2010. Disponvel em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-e-destino-de-agrotoxicos-banidos-no-exterior,558953,0.htm 5 Associao Nacional de Defesa Vegetal.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    20

    para o crescimento deste mercado6. Buscando ampliar suas vendas, as inds-trias de venenos esto, inclusive, investindo cada vez mais numa prtica co-nhecida no mercado agrcola como barter: a troca de insumos (adubos, agro-txicos, sementes) pela produo. Ou seja, a indstria financia o agricultor, que paga com sua prpria produo, e no em dinheiro.

    Vale lembrar ainda que este mercado tem caractersticas de oligoplio: em 2007, as seis maiores empresas de venenos (Bayer, Syngenta, Basf, Mon-santo, Dow e DuPont) concentravam 86% das vendas mundiais destes produ-tos. Segundo dados do MDIC (Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior), no Brasil, em 2006, estas mesmas empresas controlavam sozinhas 85% do mercado (Pelaez et al, 2009).

    Modelo ineficiente

    preciso observar, no entanto, a ineficincia deste modelo de produo. Mesmo com uso to intensivo de venenos, as chamadas pragas agrcolas con-seguem desenvolver mecanismos para persistir nos campos.

    6 Menten, J.O. Andef 35 anos - Liderana em tecnologia fitossanitria. Agroanalysis, Edio No. 4, vo-lume 29. Disponvel em: http://www.agroanalysis.com.br/index.php?area=conteudo&mat_id=651&from=gestao

    Com

    unic

    ao

    - A

    nvis

    a

  • 21

    Existem atualmente 366 ingredientes ativos registrados no Brasil para uso agrcola, pertencentes a mais de 200 grupos qumicos diferentes, que do origem a 1.458 produtos formulados para venda no mercado7. So insetici-das, fungicidas, herbicidas, nematicidas, acaricidas, rodenticidas, moluscidas, formicidas, reguladores e inibidores de crescimento. Os herbicidas sozinhos representam 48% deste mercado, seguidos pelos inseticidas (25%) e pelos fun-gicidas (22%) (Pelaez et al, 2009).

    Com estes venenos busca-se varrer da natureza todos os seres vivos que ousam desafiar os modernos e artificiais sistemas de produo. Mas controlar a natureza no tarefa to simples...

    Dados do Departamento de Meio Ambiente do governo dos EUA (EPA, na sigla em ingls) indicam que na dcada de 1970 os agricultores do pas usavam 25 mil toneladas de agrotxicos e perdiam 7% da lavoura antes da colheita. No final da dcada de 1990, usavam 12 vezes mais agrotxicos e perdiam o dobro do que anteriormente (Vaz, 2006).

    Isso se d porque as pragas agrcolas possuem a capacidade de desen-volver resistncia aos venenos aplicados: com o tempo, os agrotxicos vo perdendo eficcia e levando os agricultores a aumentar as doses aplicadas e/ou recorrer a novos produtos. A indstria est sempre trabalhando no desen-volvimento de novas molculas, que so anunciadas como a soluo para o controle das pragas, doenas ou plantas invasoras, que com o tempo sero substitudas por outras novas, e assim infinitamente. Trata-se de um crculo vicioso do qual o agricultor no consegue se libertar.

    Um outro elemento chave neste processo que o desequilbrio ambien-tal provocado por estes sistemas leva tambm ao surgimento de novas pragas. Em outras palavras, insetos ou plantas que antes no provocavam danos s lavouras, passam a se comportar como invasores e atacar as plantaes.

    A ltima novidade da indstria para solucionar os problemas da agri-cultura foi o desenvolvimento das famigeradas sementes transgnicas8. Esta tecnologia segue a mesma lgica da agricultura convencional, ora fabricando plantas inseticidas, ora plantas de uso associado a herbicidas e, desde que foi introduzida h pouco mais de uma dcada, s fez aumentar o consumo de agroqumicos. Alis, como no poderia deixar de ser, pois no seria a indstria

    7 Agrofit - Sistema de Agrotxicos Fitossanitrios / Ministrio da Agricultura - http://extranet.agricul-tura.gov.br/agrofit_cons/principal_agrofit_cons , consultado em 13/09/2010.8 Saiba maiores detalhes sobre as lavouras transgnicas na pgina 69: Os transgnicos e os agrot-xicos.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    22

    de venenos quem desenvolveria uma tecnologia agrcola capaz de encolher o seu principal mercado.

    Com tudo isso, a agricultura qumica vem, ao longo das ltimas dca-das, apresentando resultados cada vez piores na relao produtividade x custos de produo e deixando os agricultores a cada dia mais estrangulados. Com margens de lucro cada vez mais achatadas, somente a produo em escala capaz de proporcionar ganhos satisfatrios um outro elemento a contribuir para a concentrao de terra e renda no pas, marginalizando e expulsando os agricultores familiares refns do modelo convencional. preciso observar ain-da, entretanto, que mesmo em grande escala o sistema de produo convencio-nal comumente d prejuzo e s consegue se manter ativo por ser fortemente subsidiado pelo Estado, com a bancada ruralista ano aps ano renegociando e anistiando dvidas do setor.

    Contaminao ambiental e intoxicao

    Mas h ainda um outro resul-tado nefasto da predominncia deste modelo: os dados de intoxicao hu-mana e de contaminao ambiental provocados pelo uso generalizado de agrotxicos so alarmantes, conforme voc ver ao longo dos prximos cap-tulos desta publicao.

    Por outro lado, o chamado uso seguro, artifcio usado pela indstria para mascarar os perigos de seus pro-dutos, mostra-se absolutamente im-possvel seja pela dificuldade de se seguir no campo todas as recomenda-es de segurana, seja pela prpria in-capacidade destes mtodos de fornecer real segurana.

    Alm disso, importante destacar que os perigos da intoxicao crni-ca, aquela que mata devagar, com o desenvolvimento de doenas neurolgicas, hepticas, respiratrias, renais, cnceres etc., ou que provoca o nascimento de crianas com malformaes genticas, no advm apenas do contato dire-

    Com

    unic

    ao

    - A

    nvisa

  • 23

    to com venenos. O uso massivo de agrotxicos promovido pela expanso do agronegcio est contaminando os alimentos, as guas e o ar! Estudos recen-tes encontraram resduos de agrotxicos em amostras de gua da chuva em escolas pblicas no Mato Grosso! O sangue e a urina dos moradores de regies que sofrem com a pulverizao area de agrotxicos esto envenenados!

    Existe no jargo tcnico da agronomia um conceito chamado deriva tcnica. Deriva o nome que se d disperso de agrotxicos no meio am-biente atravs do vento ou das guas. Trata-se do veneno que no atinge o alvo (a lavoura a ser tratada) e sai pelos ares a contaminar o entorno. E a chamada deriva tcnica a deriva que acontece sempre, mesmo quando todas as nor-mas tcnicas de aplicao so seguidas. Ela estimada em pelo menos 30% do produto aplicado. Em alguns casos a deriva pode ultrapassar 70% (Chaim, 2003). Ou seja, no existe uso de agrotxicos sem a contaminao do meio ambiente que circunda a rea tratada, e consequentemente, sem afetar as pessoas que trabalham ou vivem neste entorno.

    Alm disso, preciso considerar que por falta de estrutura, de pessoal e tambm por outros motivos, os rgos que fazem a fiscalizao a campo at hoje no conseguiram cumprir seu papel e monitorar adequadamente as normas quanto comercializao, ao nmero de aplicaes, dosagens, pero-dos de carncia e uso de produtos ilegais. Ou seja, o chamado uso seguro na prtica realmente no existe9.

    Uma outra agricultura possvel

    Tambm no verdadeira a afirmao de que precisamos dos agrotxi-cos para alimentar uma populao crescente e faminta. Essa mensagem pro-pagada pela indstria de venenos, que visa promover seus lucros, e no a sade e o bem estar das pessoas. No deveria ser necessrio repetir a informao, j amplamente divulgada em diversos meios, de que o mundo produz comida suficiente para alimentar a todos e o que falta igualdade de distribuio e acesso renda para produzir ou comprar alimentos.

    E, ao contrrio do que tentam fazer crer as indstrias e os defensores do status quo social, existem infinitas experincias que mostram ser possvel al-canar boas produtividades a baixssimos custos atravs de sistemas ecolgicos de produo. Trata-se de sistemas diversificados, de baixo impacto ambiental,

    9 Ver artigo O uso seguro de agrotxicos possvel?, de Raquel Rigotto, na p. 48.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    24

    capazes de produzir alimentos saudveis e contribuir para a promoo da se-gurana alimentar e nutricional.

    Estes sistemas no se aplicam ao modelo do agronegcio: evidente que vastas extenses de monoculturas, em que se eliminam completamente os ele-mentos da paisagem natural, reduz-se a biodiversidade ao extremo e exaure-se o solo, torna-se impossvel produzir de maneira sustentvel.

    Os sistemas agroecolgicos, ao contrrio, so adaptados realidade da agricultura familiar e reforam a proposta de um outro modelo de desenvol-vimento para o campo, que prev a repartio das terras e a produo des-centralizada, que possa empregar muita mo de obra, dinamizar economias e abastecer mercados locais com alimentos saudveis.

    em defesa deste tipo de agricultura que lutamos: uma agricultura que respeite o trabalhador e as populaes rurais, os consumidores, as nossas crianas, o planeta.

    E com as informaes aqui apresentadas esperamos contribuir para o trabalho daqueles que tambm lutam contra o modelo de explorao do agro-negcio e em defesa da vida, de uma agricultura sadia e de um meio ambiente sem venenos.

    AS-

    PTA

    - PR

  • 25

    Captulo 2

    Informaes bsicas sobre sade e intoxicaes

    Um dos maiores perigos representados pelos agrotxicos diz respeito aos efeitos que eles podem provocar na sade das pessoas, principalmente da-quelas que, no campo ou na indstria, ficam expostas ao contato direto com os venenos.

    So inmeros os relatos de pessoas que desenvolveram srias doenas provocadas pelos agrotxicos. Muitas deixam sequelas graves. Muitas outras so fatais. H casos de abortos, assim como de bebs que nascem com defeitos congnitos pelo fato de a me ou o pai terem tido contato com agrotxicos em sua vida, ou mesmo durante a gravidez. H pessoas que desenvolvem doenas apenas porque moram prximo a plantaes onde se usa muito veneno, e a

    Foto

    imag

    ens F

    iocr

    uz

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    26

    contaminao chega pelo ar. H outros casos em que o uso intensivo de vene-nos agrcolas atingiu a gua que abastece as pessoas de toda uma regio. At mesmo alimentos com altas taxas de resduos de agrotxicos podem ser ca-pazes de produzir efeitos de longo prazo nos consumidores, que muitas vezes nunca sequer viram uma embalagem de veneno. E estes consumidores muito dificilmente sabero que as doenas que os afligem foram provocadas pelos agrotxicos.

    Os profissionais de sade, por sua vez, enfrentam no Brasil uma enorme dificuldade para diagnosticar, registrar e at mesmo encaminhar pacientes in-toxicados por agrotxicos. Sabe-se que o nmero de registros muito menor do que o nmero real de intoxicaes a prpria Organizao Mundial da Sade reconhece que, para cada caso registrado de intoxicao pelos agrotxi-cos, h 50 no notificados1.

    Grupos de maior risco de intoxicao

    As pessoas mais expostas aos perigos da contaminao pelos agrotxi-cos so aquelas que tm contato com eles no campo. H os aplicadores, pre-paradores de caldas e responsveis por depsitos, que tm contato direto com os produtos, e h tambm os trabalhadores que tm contato indireto com os venenos ao realizar capinas, roadas, colheitas etc. Este segundo grupo , na verdade, o de maior risco, uma vez que o intervalo de reentrada nas lavouras no costuma ser respeitado e estes trabalhadores no usam proteo.

    Moradores de regies de predomnio do agronegcio, onde macias quantidades de agrotxicos so usadas ao longo do ano, formam outro grupo de grande risco. Em vrias regies do pas comum a aplicao area de vene-nos. H estudos que indicam que, nestes casos, muitas vezes apenas 30% do veneno atingem o alvo (Chaim, 2003). O resto contamina solos, gua, planta-es de vizinhos, florestas e, muitas vezes, reas residenciais. Outros estudos indicam tambm que guas subterrneas esto sendo contaminadas, colocan-do em risco a sade de populaes que se abastecem de poos em regies de grande produo agrcola (Rigotto et al, 2010).

    Os profissionais de sade pblica que trabalham com controle de ve-tores de doenas como a dengue tambm sofrem risco de contaminao, as-sim como os funcionrios de empresas dedetizadoras e desratizadoras. Os

    1 Fonte: Anvisa - Gerncia Geral de Toxicologia. Relatrio do Seminrio nacional sobre Agrotxicos, Sa-de e Ambiente - Pernambuco - 6 e 7 de outubro de 2005.

  • 27

    casos de intoxicao aguda de aplicadores so comuns em todo o pas. Alm disso, vrios casos de intoxicao vm ocorrendo em pessoas que vivem nos ambientes onde h aplicao dos produtos.

    Os funcionrios de indstrias que fabricam ou formulam agrotxicos, assim como pessoas que trabalham com transporte e com comrcio destes produtos, constituem outro grupo importante de risco.

    Por fim, temos os consumidores que, ao longo de vrios anos, se alimen-tam de produtos com altas taxas de resduos de agrotxicos. Anlises feitas pela Anvisa tm anualmente demonstrado que diversos produtos de grande importncia na alimentao dos brasileiros tm apresentado resduos de agro-txicos acima dos limites permitidos e tambm de agrotxicos proibidos2. A venda de agrotxicos sem receiturio agronmico e o desrespeito ao perodo de carncia intervalo de tempo exigido entre a ltima aplicao e a comer-cializao do produto so outros agravantes deste quadro.

    2 Ver O PARA da Anvisa na pgina 131.

    Com

    unic

    ao

    - A

    nvis

    a

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    28

    Tipos de intoxicao

    Existem 3 tipos de intoxicao:- Intoxicao aguda: aquela cujos sintomas surgem rapidamente, algumas horas aps a exposio ao veneno. Normalmente trata-se de exposio, por curto perodo, a doses elevadas de produtos muito txicos (os casos de intoxicao que chegam a ser notificados so, basicamente, deste tipo).

    Os efeitos podem incluir dores de cabea, nuseas, vmitos, dificuldades respiratrias, fraqueza, salivao, clicas abdominais, tremores, confuso mental, convulses, entre outros.

    A intoxicao aguda pode ocorrer de forma leve, moderada ou grave, dependendo da quantidade de veneno absorvida. Em muitos casos pode levar morte.

    - Intoxicao subaguda ou sobreaguda: esta ocorre por exposio moderada ou pequena a produtos alta ou medianamente txicos. Os efeitos podem aparecer em alguns dias ou semanas.

    Os sintomas podem incluir dores de cabea, fraqueza, mal-estar, dor de estmago, sonolncia, entre outros.

    - Intoxicao crnica (ou, mais precisamente, efeitos crnicos decorrentes de intoxicao): caracterizam-se pelo surgimento tardio. Aparecem apenas aps meses ou anos da exposio pequena ou moderada a um ou vrios produtos txicos.

    Os sintomas so normalmente subjetivos e podem incluir perda de peso, fraqueza muscular, depresso, irritabilidade, insnia, anemia, dermatites, alteraes hormonais, problemas imunolgicos, efeitos na reproduo (infertilidade, malformaes congnitas, abortos), doenas do fgado e dos rins, doenas respiratrias, efeitos no desenvolvimento da criana, entre outros.

    Normalmente o diagnstico da intoxicao crnica difcil de ser estabelecido. Os danos muitas vezes so irreversveis, incluindo paralisias e vrios tipos de cncer.

  • 29

    Exposio mltipla a vrios agrotxicos diferentes

    Um problema muito frequente a exposio de agricultores a vrios agrotxicos, de grupos qumicos diferentes, e tambm a misturas de agrotxicos. Comumente esta exposio acontece ao longo de vrios anos, com algumas manifestaes agudas de intoxicao por algum veneno especfico.

    Os toxicologistas j sabem que a toxicidade das misturas no equivalente soma das atividades txicas de cada produto. Os produtos podem interagir entre si e produzir efeitos adversos diferentes e por vezes mais graves do que aqueles provocados separadamente por cada um dos diferentes produtos.

    Existe atualmente uma preocupao especial com relao a misturas involuntrias entre produtos. Isto acontece porque alguns venenos podem persistir no meio ambiente por longos perodos. Assim, o agricultor pode, no campo, ficar exposto a diferentes produtos que tenham sido aplicados em ocasies distintas.

    Ace

    rvo

    da P

    esqu

    isa A

    grot

    xic

    os/N

    cle

    o T

    ram

    as-U

    FC

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    30

    Classificao toxicolgica dos agrotxicosOs agrotxicos foram classificados3 pela Anvisa do ponto de vista dos

    seus efeitos agudos. Eles esto divididos em quatro classes:

    Classe Toxicidade Cor indicada na embalagem

    I Extremamente txico Faixa vermelha

    II Altamente txico Faixa amarela

    III Moderadamente txico Faixa azul

    IV Pouco txico Faixa verde

    3 A classificao toxicolgica dos agrotxicos feita em funo de estudos laboratoriais com exposio oral, drmica e inalatria para determinar a CL50 e DL50 (Concentrao Letal e Dose Letal, dadas em miligramas do produto txico por quilo de peso corporal necessrios para matar 50% dos ratos ou outros animais expostos ao produto). Para os estudos de DL50 oral, por exemplo, produtos slidos se enquadram na Classe I, Extremamente Txicos, quando a DL50 0,005 grama/kg de peso do rato. Na Classe II, Muito Txicos, quando a DL50 > 0,005 at 0,05 grama/kg. Classe III - Moderadamente Txicos, DL50 > 0,05 a 0,5 gramas/kg. Classe IV - Pouco txicos, DL50 > 0,5 gramas/kg. Ao final da anlise de uma ba-teria de estudos de exposio por via oral, drmica e inalatria, a classe txica do produto ser determinada pela mais txica que aparecer em um dos estudos agudos.

    Aclassificaotoxicolgicaestsempreexpressanortuloenabuladosagrotxicos.

  • 31

    COMO DIAGNOSTICAR UMA CONTAMINAO POR AGROTXICO?

    Existem muito poucos recursos para se constatar, mediante exames, a contaminao por agrotxicos. Apesar dos 366 ingredientes ativos de agro-txicos autorizados no Brasil para uso agrcola pertencerem a mais de 200 grupos qumicos4, o nico mtodo de deteco acessvel em termos de custos e viabilidade tcnica para ser feito em grande escala no SUS (Sistema nico de Sade)5 aplica-se somente aos agrotxicos organofosforados e carbamatos.

    Mesmo assim, este exame s capaz de detectar a conta-minao se for feito at sete dias aps o contato com o veneno. Depois disso, o produto no mais detectvel no organismo. Ou seja, s til em casos de in-toxicao aguda.

    O outro mtodo capaz de identificar venenos no organismo a dosa-gem do prprio princpio ativo do qual se suspeita (a partir da histria clnica), no sangue ou na urina do paciente. Mas este exame no acessvel para todos devido ao custo e complexidade tcnica. A dificuldade agravada pelo fato de existir uma enorme variedade de grupos qumicos no mercado, que so capazes de provocar diferentes efeitos sobre a sade: uns agem sobre o sistema imunolgico, outros no sistema endcrino, outros provocam alteraes hep-ticas, cncer, disfunes na tireide, abortos, partos prematuros, doenas neu-rolgicas, hiperatividade em crianas... h uma gama enorme de patologias que esto crescendo nos ltimos anos.

    Assim, sobretudo nos casos crnicos, o diagnstico da contaminao por agrotxicos normalmente feito pelo conjunto do quadro clnico do pa-ciente (que problemas de sade ele sofreu ou desenvolveu) e pela avaliao da sua histria ocupacional e ambiental. Deve-se tambm levar em conta dados epidemiolgicos (quando, por exemplo, muitas pessoas de uma mesma regio foram expostas a um mesmo produto e desenvolveram sintomas semelhantes), bem como avaliar os dados da literatura, investigando informaes sobre as

    4 Fonte: Agrofit - Sistema de Agrotxicos Fitossanitrios / Ministrio da Agricultura Pecuria e Abas-tecimento (http://extranet.agricultura.gov.br/agrofit_cons/principal_agrofit_cons). Acesso em 13/09/2010.5 Este exame se chama dosagem da atividade da acetilcolinesterase.

    Rau

    l Sa

    ntan

    a/Fi

    ocru

    z Mul

    tim

    agen

    s

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    32

    substncias com as quais o paciente relata ter tido contato. preciso investigar no s o veneno utilizado, mas tambm as circunstncias de uso.

    Na verdade, esta investigao da histria ocupacional do paciente du-rante sua avaliao clnica (chamada de anamnese) deveria ser aplicada em todos os casos, pois a mais importante ferramenta na identificao da ori-gem das doenas. As escassas alternativas existentes de exames laboratoriais podem complementar o diagnstico, mas no substituem a avaliao clnica.

    importante, neste sentido, que o paciente, ou seus parentes, colegas de trabalho etc., relatem ao profissional de sade todas as informaes neces-srias a uma avaliao completa sobre o contexto em que a doena se desen-volveu.

    Principais dificuldades para o diagnstico

    - Intoxicao aguda

    Apenas nos casos em que o paciente que est sentido sintomas de into-xicao capaz de relatar a exposio recente a um determinado veneno que o diagnstico fica evidente. Mas a maioria dos casos no assim.

    Para comear, nota-se grande desinformao dos trabalhadores sobre o uso e os perigos dos agrotxicos. Alm disso, muito comum o medo do trabalhador em reconhecer em si sintomas de intoxicao. Muitos no procu-ram assistncia mdica quando sofrem os efeitos da intoxicao ou resistem em admitir que os sintomas sofridos podem ter relao com o uso de venenos agrcolas. Outros no acreditam que os produtos que manipulam no trabalho possam realmente fazer mal sade.

    Para os casos agudos, um elemento a dificultar o diagnstico nas emer-gncias dos hospitais ou postos de sade o fato de os sintomas da intoxicao serem normalmente inespecficos: dores de cabea, dores abdominais, enjos, vmitos, dermatites (irritaes de pele)... muito comum pessoas intoxicadas por agrotxicos receberem, erroneamente, diagnstico de doenas como den-gue, rotavirose ou alergia.

    Como se no bastasse, existem regies onde comum a interferncia de empresas agrcolas para ocultar a existncia de intoxicaes. Na regio da Cha-pada do Apodi (no Cear), por exemplo, onde forte a presena do agronegcio na produo de frutas, muitos profissionais de sade relatam ser comum os agri-

  • 33

    cultores intoxicados chegarem s emergncias dos hospitais acompanhados de um funcionrio da empresa onde eles trabalham. Nestes casos o funcionrio da empresa quem apresenta o paciente, contando que ele comeu algo estragado e por isso no se sente bem. E o trabalhador, passando mal e comumente exalando cheiro de agrotxico, apenas concorda, em ntida situao de constrangimento.

    muito comum tambm os profissionais que trabalham na triagem das emergncias de hospitais aqueles que fazem o pr-atendimento dos pacientes no investigarem a causa dos sintomas apresentados. Desse modo, pacientes intoxicados que apresentam, por exemplo, dor de cabea, enjo e/ou clicas, re-cebem tratamento para estes sintomas sem que a intoxicao seja identificada e registrada.

    Um exemplo disso o que acontece no Hospital Joo Murilo de Oliveira (do SUS), localizado no municpio de Vitria de Santo Anto, em Pernambuco, a 50 km de Recife. Vitria faz parte do cinturo verde de Recife e o uso de agro-txicos na produo de hortalias absolutamente generalizado. Por este moti-vo, foi implantado no hospital o programa chamado Sentinela, que tem entre seus objetivos realizar a notificao dos casos de intoxicao por agrotxicos. Ocorre que a emergncia do hospital est geralmente lotada e os profissionais do pr-atendimento, que no foram treinados para realizar o diagnstico da con-taminao, esforam-se para encaminhar logo os pacientes para o atendimento e preferem no perder tempo com muitas perguntas. E o nico mdico que re-cebeu treinamento sobre a notificao no trabalha na emergncia. Resultado: entrevistando a enfermeira-chefe do hospital em abril de 2010 fomos informados que, tanto em 2009 como em 2010, no houve nenhum caso de intoxicao por agrotxicos registrado. Todos os profissionais consultados concordam, entretan-to, ser absolutamente improvvel que o hospital no tenha recebido pacientes in-toxicados neste perodo.

    Outro exemplo neste sentido foi uma experincia realizada por estudantes de medicina da Universidade Federal do Cear durante o ms de julho de 2009. Durante todo o ms eles ficaram na seo de acolhimento (a triagem) do Hos-pital So Raimundo Nonato (do SUS), no municpio de Limoeiro do Norte, no Cear, buscando casos de intoxicao por agrotxicos. Durante esses 30 dias, os estudantes identificaram diversos casos por dia de intoxicao aguda por agrot-xicos. Mas quando foi publicado o dado oficial do DATASUS6 de Limoeiro do Norte referente a 2009, no havia nenhum caso de intoxicao registrado. Ou seja, o sistema de sade cego para esta questo.

    6 Banco de Dados do Sistema nico de Sade - http://www.datasus.gov.br.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    34

    - Intoxicao crnica

    Nos casos de intoxicao crnica, a dificuldade do diag-nstico se deve principalmente existncia de mltiplas poss-veis causas para as doenas pro-vocadas por agrotxicos, como o cncer, insuficincia renal ou problemas neurolgicos, por exemplo. Como j menciona-mos, so raros e pouco acessveis os exames laboratoriais capazes de detectar a contaminao em pequenas doses e por longos perodos a determinado agrot-xico e comprovar a sua relao com a doena desenvolvida.

    Para dificultar ainda mais o diagnstico, trabalhadores rurais expostos aos agrotxicos dificilmente sabem relatar com preciso com quais produtos tiveram contato ao longo dos anos anteriores. Normalmente, houve exposio prolongada a uma grande variedade de venenos.

    SISTEMAS DE NOTIFICAO E REGISTRO DE INTOXICAO POR AGROTXICOS

    Existe no Brasil no um, mas uma srie de sistemas de notificao e registro que, entre outros, renem e sistematizam dados sobre intoxicaes provocadas por agrotxicos no pas.

    O fato destes sistemas serem muitos e dispersos gera muitas dificulda-des para a anlise dos dados sobre intoxicao. Alm disso, h sistemas cujos dados se sobrepem, o que os torna ainda mais frgeis. E infelizmente o trao comum mais marcante entre todos eles a grande subnotificao (avalia-se que para cada caso de intoxicao por agrotxico registrado h outros 50 casos no registrados).

    Os dois sistemas de notificao mais importantes no Brasil so o Si-nitox (Sistema Nacional de Informaes Txico Farmacolgicas), gerenciado

    Pete

    r Ilic

    ciev

    /Fio

    cruz

    Mul

    tim

    agen

    s

  • 35

    pela Fiocruz (Fundao Oswaldo Cruz), e o Sinan (Sistema de Informao de Agravos de Notificao), gerenciado pelo Ministrio da Sade. Mais recente-mente foi criado o Notivisa (gerenciado pela Anvisa) que, em parte associado ao Sinitox, pretende compilar dados bastante abrangentes envolvendo casos de intoxicao, mas que ainda no est operando plenamente.

    O Sinitox

    O Sinitox coleta, compila, analisa e divulga os dados sobre intoxicao e envenenamento (no s por agrotxicos, mas tambm por remdios, ani-mais peonhentos, produtos de uso domissanitrio etc.) que so registrados pela Rede Nacional de Centros de Informao e Assistncia Toxicolgica, a Renaciat.

    A Renaciat conta hoje com 37 Centros, localizados em 19 estados e no Distrito Federal. Os Centros, por sua vez, fornecem informao e orientao sobre o diagnstico, o prognstico, o tratamento e a preveno de intoxica-es. Eles tambm prestam atendimento diretamente aos pacientes e possuem uma linha telefnica exclusiva para dar orientao a profissionais de sade ou outros que precisem atender pessoas intoxicadas. Os chamados CIATs comu-mente atendem casos graves de intoxicao aguda.

    Cada atendimento prestado, seja pessoalmente ou por telefone, gera um registro de informao. Estes registros so bastante variveis em termos de riqueza de informaes e limitados aos casos de intoxicao aguda.

    Disque Intoxicao: 0800 - 722 6001

    Quem atende um profissional treinado para dar orientaes em casos de intoxicaes ou acidentes com agrotxicos, animais peonhentos, produtos saneantes e medicamentos.

    O servio funciona 24h por dia, todos os dias do ano, a ligao gratuita e os dados relatados viraro notificaes dos casos de intoxicao.

    Uma outra questo relevante que, na verdade, em funo da sua for-ma de funcionamento (especializados em atender urgncias graves), a grande procura pelos CIATs relacionada aos agrotxicos so as tentativas de suicdio, e no as intoxicaes ocupacionais. Embora as intoxicaes ocupacionais co-

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    36

    mumente tambm sejam graves, pois refletem longos perodos de exposio a altas doses de venenos, elas muitas vezes no so to urgentes e os trabalhado-res intoxicados no procuram atendimento nenhum ou, quando procuram, vo a hospitais ou postos de sade que geralmente no registram a intoxica-o (como j dito, na maioria dos casos sequer a diagnosticam).

    O Sinan

    O Sinan um sistema que rene dados sobre doenas e agravos de no-tificao compulsria, ou seja, que por questes epidemiolgicas os profissio-nais de sade so obrigados a registrar.

    At recentemente as intoxicaes por agrotxicos no faziam parte da lista de agravos de notificao compulsria, o que quer dizer que o seu registro era voluntrio e no obrigatrio.

    Em 2004, o Ministrio da Sade publicou a Portaria 777, que incluiu as intoxicaes por agrotxicos na Lista de Notificao Compulsria (LNC), mas restringiu, em seu Art. 1o, a obrigatoriedade de notificao aos acidentes e doenas relacionadas ao trabalho (excluindo acidentes e intoxicaes ocorri-dos fora do ambiente de trabalho), determinando ainda que o registro deveria ser feito em rede de servios sentinela especfica, e no em toda a rede de sade.

    A Rede Sentinela um projeto criado pela Anvisa em parceria com diversos servios de sade (hospitais, servios de diagnstico etc.) para noti-ficar eventos adversos com diversos tipos de produtos. Atualmente existem 188 hospitais sentinelas em todo o Brasil. Infelizmente, entretanto, nem to-dos esto realmente preparados para realizar a notificao de intoxicaes por agrotxicos.

    Somente em agosto de 2010 a obrigao quanto notificao de into-xicaes por agrotxicos passou a ser universal, com a publicao da Portaria 2.472 do Ministrio da Sade que incluiu, sem restries, as intoxicaes ex-genas por substncias qumicas, incluindo agrotxicos e metais pesados na Lista de Notificao Compulsria. Em janeiro de 2011 esta Portaria foi revogada e substituda pela Portaria 1047, que manteve a intoxicao por agrotxicos na Lista.

    Mas um aspecto a limitar a notificao pelo Sinan que s so notifi-

    7 Disponvel em: http://www.renastonline.org/index.php?option=com_content&view=article&id=560:portaria-no-104-de-25-de-janeiro-de-2011&catid=6:legislacao&Itemid=5

  • 37

    cados os casos confirmados de intoxicao. Conhecendo as dificuldades do diagnstico de intoxicaes por agrotxicos (mencionadas anteriormente), como podemos imaginar que os casos de suspeita de intoxicao possam ser confirmados? Com tanta dificuldade de profissionais especializados ou ao menos preparados nesta rea, quem confirmaria esses casos?

    Com efeito, o que se observa que os registros de intoxicaes por agro-txicos no Sinan tm sido escassos em todo o Brasil.

    O Notivisa

    O Notivisa (Sistema de Notificaes em Vigilncia Sanitria), sistema informatizado online, foi criado pela Anvisa em 2007 para receber tanto as notificaes de eventos adversos sade, como as queixas tcnicas relaciona-das aos diferentes produtos sob vigilncia sanitria, inclusive os agrotxicos.

    Alm das fichas das Gerncias da Anvisa, que so preenchidas voluntariamente por profissionais de sade, agncias estaduais e municipais de vigilncia sanitria, hospitais sentinelas e empresas, foram criadas trs fichas de notificao especialmente para os Centros de Informao e Assistncia Toxicolgica da Renaciat. As fichas so bastante detalhadas e todo este sistema tem o objetivo de registrar as demandas sobre intoxicaes e, assim, viabilizar a realizao de anlises acerca do impacto dos produtos na fase de ps-comercializao e orientar a implementao de novas polticas pblicas de preveno de agravos e de promoo da sade da populao.

    Entre agosto de 2007 e dezembro de 2009, progressivamente, vrios CIATs comearam, alm de reportar seus dados ao Sinitox, a realizar tam-bm suas notificaes diretamente no Notivisa. No entanto, o subdimensio-namento em relao ao volume de notificadores e de fichas preenchidas fez com o que o Sistema comeasse a tornar-se lento e a apresentar frequentes in-terrupes de funcionamento. Assim, o nmero de Centros que continuaram a utilizar o Notivisa diminuiu significativamente a partir de janeiro de 2010. Desde ento a Anvisa trabalha na construo de um novo sistema, o Notivisa 2, que ser capaz de recuperar as informaes j registradas e aceitar volumes superiores de dados. A previso da Agncia que ele entre em funcionamento no final de 2011.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    38

    Outros sistemas de registro

    Embora o Sinitox (mais recentemente associado ao Notivisa) e o Sinan sejam os mais importantes sistemas de notificao levando em considerao o nmero de intoxicaes por agrotxicos registradas, h no Brasil outros siste-mas que tambm notificam ou deveriam notificar este tipo de intoxicao.

    Um deles a CAT - Comunicao de Acidente de Trabalho, da Previ-dncia Social, gerido pelo INSS. A Lei n 8.213/91 determina no seu artigo 22 que todo acidente do trabalho ou doena profissional dever ser comunicado pela empresa ao INSS, sob pena de multa em caso de omisso. a CAT que viabilizar, por exemplo, que o trabalhador possa, se necessrio, ser afastado do trabalho e receber benefcios como o auxlio-doena ou o auxlio-acidente.

    Mas a CAT muito limitada sob a tica do registro de intoxicaes. Note-se, em primeiro lugar, que ela s abrange trabalhadores do mercado for-mal embora a grande massa de trabalhadores rurais que lidam com agrot-xicos no esteja includa neste setor. Em segundo lugar, assim como nos outros sistemas de notificao, apenas uma pequena parcela das intoxicaes chega de fato a ser registrada.

    As outras fontes oficiais de registros de intoxicaes por agrotxicos so o SIM - Sistema de Informao de Mortalidade, o SIH - Sistema de Interna-o Hospitalar e o SIAB - Sistema de Informao da Ateno Bsica, os trs geridos pelo SUS (Sistema nico de Sade) atravs da vigilncia epidemio-lgica e das equipes de internao dos hospitais. Infelizmente, devido falta de preparo destas equipes, as intoxicaes por agrotxicos dificilmente so diagnosticadas como tais e raramente so registradas.

    Em suma, o que se observa que, embora existam vrios sistemas oficiais que registram intoxicaes por agrotxicos, eles no esto integrados e nenhum deles o faz de maneira realmente abrangente. Na prtica somente os casos agudos e mais graves so registrados, e mesmo para os casos agudos o sub-registro muito grande.

  • 39

    Intoxicaes registradas pelo Sinitox: nmeros

    Apresentaremos aqui alguns nmeros referentes aos casos de intoxica-o registrados nos ltimos anos pelo Sinitox, gerido pela Fiocruz. A escolha deste sistema se deu pelo fato de ser ele o que tem realizado o maior nmero de registros no Brasil.

    Antes de apresentar os nmeros convm, entretanto, reconsiderar al-guns fatos j expostos em mais detalhe neste captulo:

    1) A subnotificao dos casos de intoxicao imensa;

    2) Os registros referem-se basicamente aos casos de intoxicao aguda;

    3) O Sinitox rene os dados provenientes dos atendimentos prestados pelos CIATs (Centros de Informao e Assistncia Toxicolgica), e estes, por sua vez, so unidades preparadas para atender casos de intoxicao aguda gra-ve. Este fato explica a altssima proporo das tentativas de suicdio entre os casos registrados. Como j se disse, os trabalhadores que sofrem intoxica-es ocupacionais e acidentais, que muitas vezes no configuram urgncias graves, quando procuram algum atendimento, procuram os postos de sade, ambulatrios ou emergncias dos hospitais, que dificilmente diagnosticam corretamente a intoxicao e rarissimamente registram os casos.

    4) justamente o fato de a maior parte das intoxicaes registradas se referir s tentativas de suicdio e no exposio aos venenos no ambiente de trabalho o motivo pelo qual o nmero de casos registrados no evoluiu nos ltimos dez anos ao mesmo passo em que aumentou o consumo de venenos agrcolas no pas (o Brasil alcanou, em 2008, o recorde mundial do uso de agrotxicos).

    Mesmo considerando todas estas questes, o nmero de intoxicaes registrado no pas no desprezvel e representa uma amostra dos gravssimos riscos aos quais estes produtos expem a populao.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    40

    Para algumas informaes complementares (uma vez que no h varia-o significativa no nmero de casos de um ano para outro), tomemos como exemplo o ano de 2008:

    Do total de 4.074 casos de intoxicao registrados:

  • 41

    Intoxicados e demitidos

    Segundo diversos relatos, muito comum a prtica de fazendas ou empresas demitirem trabalhadores que comeam a apresentar sintomas de intoxicao crnica. Nestes casos, a intoxicao no oficialmente diagnosticada e o empregador se exime de qualquer responsabilidade sobre os problemas de sade do (ex)funcionrio.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    42

    O QUE FAZER EM CASO DE ACIDENTE COM AGROTXICO (INTOXICAO AGUDA)

    Ler e seguir as instrues do rtulo, bula ou folheto explicativo;

    Remover o acidentado para local limpo e arejado, protegendo-o do calor e do frio;

    Lavar as partes do corpo atingidas pelo produto com muita gua e sabo;

    Retirar vestimentas contaminadas com o produto;

    Caso precise manusear objetos e roupas contaminadas, a pessoa que socorrer o acidentado deve usar luvas;

    Manter o paciente calmo e confortvel;

    Nunca dar leite ou medicamento sem a devida orientao;

    Nunca provocar vmito sem antes verificar se tal procedimento recomendado para o produto utilizado;

    No provocar vmito e nem dar nada por via oral a uma pessoa inconsciente;

    Antdotos s devem ser ministrados por pessoas qualificadas;

    Procurar assessoria do Centro de Informao e Assistncia Toxicolgica - Ciat mais prximo para obter esclarecimentos dos procedimentos a serem tomados, atravs do Disque Intoxicao: 0800 722 6001. Se for necessrio, voc pode encontrar a lista de todos os Ciats existentes no pas no seguinte endereo eletrnico: http://www.anvisa.gov.br/toxicologia/centros.htm.

    Providenciar atendimento mdico imediato levando a embalagem, rtulo, bula, folheto explicativo do produto ou a receita agronmica;

    Providenciar o preenchimento da Comunicao de Acidente de Trabalho (CAT) para assegurar cobertura previdenciria.

    Fonte: Curso Toxicologia - Ncleo de Tecnologia Educacional para a Sade /

    Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • 43

    E O QUE FAZER QUANDO H SUSPEITA DE INTOXICAO CRNICA

    Como j se disse, a intoxicao crnica por agrotxicos ir se manifestar com o passar do tempo atravs de alguma doena como disfuno renal, distrbios neurolgicos, depresso, doenas do fgado, cncer etc. O desafio, neste caso, ser relacionar a doena desenvolvida com a exposio a agrotxicos no passado.

    Para isso, normalmente, o ideal que o paciente seja encaminhado para um Centro de Referncia em Sade do Trabalhador (Cerest). Alm de atender diretamente o trabalhador, o Cerest deve procurar descobrir se as doenas ou os sintomas das pessoas atendidas esto relacionados com as atividades que elas exercem, na regio onde se encontram.

    O Ministrio da Sade mantm atualmente uma rede de 150 Centros (Cerests) que prestam assistncia especializada aos trabalhadores que adoecem ou se acidentam, alm de investigar as condies de segurana dos ambientes de trabalho. Em alguns estados, os Cerests funcionam bem e prestam de fato muito apoio aos trabalhadores intoxicados. Em outros, infelizmente, o bom funcionamento dos Cerests um desafio ainda a ser conquistado.

    preciso notar, entretanto, que o Cerest no uma porta de entrada do SUS, o Sistema nico de Sade. Apenas quando h suspeita de relao entre a doena e o ambiente de trabalho que a Rede Bsica de Sade ou a Urgncia e Emergncia dos hospitais encaminha o paciente para o Cerest. Por isso tambm muito importante que o paciente ou seus parentes e amigos forneam informaes, as mais completas possveis, sobre a exposio do paciente aos venenos, ainda que a exposio tenha ocorrido h muito tempo.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    44

    AES PREVENTIVAS

    muito importante que as organizaes de agricultores e trabalhadores rurais se articulem para apresentar aos servios de sade preventiva as suas preocupaes com relao aos riscos a que so expostos em seu ambiente de trabalho, sobretudo em relao aos agrotxicos.

    Um caminho para isso a articulao com os agentes da chamada Aten-o Bsica do SUS, com destaque para os Agentes Comunitrios de Sade.

    Outra instncia fundamental neste sentido o Cerest, que tambm tem o papel de atuar em medidas de preveno de agravos sade dos traba-lhadores e de investigar as condies dos ambientes de trabalho utilizando dados epidemiolgicos em conjunto com a Vigilncia Sanitria.

    Os Conselhos Estaduais de Sade representam outro importante es-pao de participao da sociedade no sentido de pautar as preocupaes com relao aos problemas que o uso de agrotxicos tem provocado nas popula-es, sobretudo aquelas do meio rural. Est entre as atribuies dos Conselhos de Sade propor a criao de polticas a serem implementadas pelos governos nesta rea.

    Tambm os rgos de Vigilncia em Sade devem ser procurados e sensibilizados sobre a problemtica dos agrotxicos. A eles compete, entre ou-tras atribuies, coordenar a execuo das atividades relativas preveno e controle de doenas e outros agravos sade; fomentar e implementar o de-senvolvimento de estudos e pesquisas que contribuam para o aperfeioamento das aes de vigilncia epidemiolgica e ambiental; e propor polticas e aes de educao, comunicao e mobilizao social referentes s reas de epide-miologia, preveno e controle de doenas.

    Por fim, importante lembrar da importncia da mdia no sentido de alertar e conscientizar a sociedade e o poder pblico ao denunciar os abusos cometidos pelas indstrias e pelos agentes do agronegcio, bem como os dra-mas vividos pelas vtimas da contaminao pelos venenos agrcolas.

    VENENOS DOMSTICOS E OS USADOS PARA O CONTROLE DE VETORES DE DOENAS

    A maioria das pessoas no sabe que os inseticidas disponveis nos super-mercados e usados inocentemente por donas de casa em geral so fabricados a

  • 45

    partir dos mesmos princpios ativos dos agrotxicos. Trata-se, na verda-de, de carbamatos, piretroides e orga-nofosforados, que provocam os mes-mos efeitos negativos sobre a sade que os agrotxicos usados no campo. E, no caso dos inseticidas domsti-cos, chamados no jargo tcnico de

    domissanitrios, o problema se agrava em funo do contato, dentro de casa, com crianas, idosos, gestantes, alrgicos e pessoas com outras doenas.

    Os produtos domissanitrios no dependem da aprovao dos rgos de agricultura e meio ambiente. Sua aprovao e registro dependem apenas da Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa) / Ministrio da Sade. Por este motivo eles escapam de ser classificados e fiscalizados como agrotxicos.

    Alm disso, como no Brasil temos graves problemas de saneamento ambiental e, consequentemente, existem muitas pragas urbanas (baratas, mosquitos, ratos etc.), a Anvisa tem sido muito tolerante com o comrcio dos agrotxicos domissanitrios.

    Trata-se, na verdade, de uma distoro da legislao, pois segundo a definio contida na Lei 7.802/89, so considerados agrotxicos todosos produtos e os agentes de processos fsicos, qumicos ou biolgicos, destinados ao uso nos setores de produo, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrcolas, nas pastagens, na proteo de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e tambm de ambientes urbanos, hdricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composio da flora ou da fauna, a fim de preserv-las da ao danosa de seres vivos considerados nocivos. Ou seja, a definio prevista em lei inclui os venenos de uso domstico.

    A consequncia mais grave desta distoro que ela afasta destes pro-dutos as restries impostas pela legislao de agrotxicos, permitindo muitos abusos por parte das indstrias de venenos. Um exemplo marcante disso a publicidade que feita para inseticidas domsticos, comumente sugerindo tratar-se de produtos benficos para a sade e mostrando mes utilizando-os na presena de crianas.

    Isso extremamente grave, pois retira-se a ideia de risco. Por influncia deste tipo de propaganda milhares de mes compram venenos a base de pire-troides, com os quais ficam fumegando o quarto de seus bebs.

    Rau

    l San

    tana

    /Fio

    cruz

    Mul

    tiim

    agen

    ss

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    46

    Na propaganda sobre agrotxicos proibida a presena de crianas, bem como obrigatria clara advertncia sobre os riscos do produto sade dos homens, animais e ao meio ambiente8. Mas os agrotxicos domissanitrios tm escapado destas exigncias.

    Outro aspecto grave deste problema o fato de que o Ministrio da Sa-de tem autonomia para usar todos os venenos registrados no pas para o con-trole de vetores de doenas como a dengue, malria ou doena de chagas, por exemplo. Comumente agentes de sade colocam larvicidas na gua de consu-mo das pessoas (caixas dgua de casas e prdios). Alm disso, na maioria dos municpios obrigam-se escolas, hospitais, teatros etc. a realizar desinsetizao (comumente chamada de dedetizao) e desratizao a cada seis meses.

    Tudo isso acaba contribuindo para o ocultamento do risco: ao aplicar esses produtos em ruas, casas, caixas dgua etc., o Estado acaba passando para a populao a impresso de que estes produtos so seguros.

    O mesmo modelo de dependncia qumica

    importante ressaltar que esta abordagem adotada pelos rgos de sa-de para o controle de vetores de doenas um reflexo do modelo de depen-dncia qumica no qual vivemos (assim como acontece na agricultura conven-cional ou transgnica).

    Ao invs de promover o saneamento ambiental e investir mais em aes educativas e fiscalizatrias no sentido de eliminar os focos de vetores, opta-se pelo uso de venenos. Mas, assim como acontece na agricultura9, os insetos, moluscos e outros parasitas rapidamente desenvolvem resistncia aos produtos aplicados. Com isso, eles vo perdendo eficcia e levando os rgos de sade a aumentar as doses aplicadas ou mudar os princpios ativos usados. Mas as pra-gas tambm desenvolvem resistncia aos novos venenos... um crculo vicioso do qual nunca nos libertamos. Alm disso, estes produtos acabam matando outros animais, que so predadores naturais destes vetores de doenas, e pro-vocando desequilbrios ambientais.

    Porm, ainda mais grave que isso, o fato de que os venenos aplicados dentro de nossas residncias fragilizam nossos sistemas imunolgico, nervoso e endcrino, deixando-nos mais vulnerveis s infeces e alergias. Estamos

    8 Ver Propaganda comercial de agrotxicos, na pgina 107.9 Ver Os transgnicos e os agrotxicos, na pgina 69.

  • 47

    expondo massivamente crianas, gestantes, pessoas idosas, imunodeprimidos, pessoas que esto com outras doenas e, com isso, fragilizando a imunidade que essas mesmas pessoas precisam para reagir s infeces.

    No por outro motivo que estas doenas esto se tornando cada vez mais graves. H alguns anos, por exemplo, havia muito menos casos de com-plicaes provocadas pela dengue. Com todo o controle qumico realizado, a letalidade desta doena tem crescido cada vez mais, mostrando a ineficcia do modelo oficial.

    A alternativa mais adequada para a reverso deste quadro seria o Esta-do mudar seu foco de ao, investindo prioritariamente em saneamento am-biental: destinao correta de embalagens, tratamento de lixo, melhoria dos sistemas de drenagem, oferta regular de gua e proteo de seus reservatrios.

    Complementarmente, de suma importncia a ampliao do acesso ao atendimento s pessoas doentes, bem como a realizao da vigilncia mdica sobre as pessoas com febre, de modo a evitar o agravamento do quadro clnico das viroses entre elas a dengue.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    48

    O uso seguro de agrotxicos possvel?

    O debate acerca dos agrotxicos e suas implicaes sobre o ambiente e a sade humana tem sido majoritariamente encaminhado, desde o comeo da Revoluo Verde, para a possibilidade e a necessidade de aceitar o uso deles e estabelecer regras que garantiriam a proteo das diferentes formas de vida expostas a biocidas seria o paradigma do uso seguro, tambm aplicvel a outros agentes nocivos, como o amianto.

    Mas a pergunta que se faz : no contexto em que vivemos hoje, possvel fazer valer o uso seguro dos agrotxicos?

    Em primeiro lugar, preciso considerar a magnitude do uso de agrotxicos no pas: o Brasil o pas que mais consumiu estes produtos no mundo em 2008, ultrapassando sua prpria marca em 2009. No ltimo ano para os quais se tem dados, foram consumidas mais de 1 milho de toneladas, o que corresponde a mais de 22 kg por hectare de lavoura, ou ainda cerca de 5,2 quilos de agrotxicos por habitante (e transferiu US$ 6,62 bilhes para a indstria qumica)1.

    Em segundo lugar, preciso avaliar a extenso do universo em que o uso seguro dos agrotxicos teria que ser garantido: segundo dados do IBGE oriundos do Censo de 2006, so 5,2 milhes de estabelecimentos agropecurios, espalhados por todo o pas, ocupando rea correspondente a 36,75% do territrio nacional. O setor envolve 16.567.544 pessoas ocupadas (incluindo produtores, seus familiares e empregados temporrios ou

    1 Segundo dados do Sindag - Sindicato Nacional da Indstria de Produ-tos para Defesa Agrcola, 2010.

    por Raquel Rigotto*

  • 49

    permanentes), que correspondem a quase 20% da populao ocupada no pas. Haveria que incluir aqui ainda, entre a populao exposta, os trabalhadores das fbricas e do comrcio destes produtos, os moradores do entorno desta indstria, os expostos em usos no-agrcolas (as dedetizadoras, por exemplo) e, afinal, todos ns consumidores de alimentos contaminados nossa dose diria de venenos...

    Em terceiro lugar, estariam as condies institucionais para o Estado fazer valer as regras do jogo em toda esta extenso: aqui vo pesar as deficincias das polticas pblicas, feridas pelo peso do neoliberalismo sobre a composio dos quadros de pessoal e a infraestrutura para execuo das polticas, inclusive da fiscalizao e vigilncia. No faltam exemplos sobre as dificuldades de implementao do receiturio agronmico ou notcias sobre o uso de produtos ilegais.

    Estando clara a extenso e a complexidade da questo dos agrotxicos no Brasil hoje, podemos abordar o quarto grupo de fatores para avaliar o uso seguro, que se refere s dificuldades para implantar efetivamente, em cada local de produo e trabalho, as medidas mitigadoras de risco e protetoras da sade e do ambiente. De acordo com o IBGE, a grande maioria dos produtores analfabeta ou sabe ler e escrever mas no frequentou a escola (39%), ou no possua o ensino fundamental completo (43%), totalizando mais de 80% de produtores rurais com baixa escolaridade. No se pode considerar, a priori, que baixa escolaridade signifique pouco conhecimento: h extenso e fecundo saber popular e tradicional entre os diferentes grupos de trabalhadores do campo, mas no exatamente em relao aos agrotxicos, que um problema criado pela civilizao ocidental urbano-industrial.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    50

    Com este perfil, eles vm sendo culpabilizados e responsabilizados pela contaminao (e pelo adoecimento!), at mesmo em alguns estudos acadmicos.

    Agravando esta condio de vulnerabilidade, acrescente-se que h mais de 1 milho de crianas com menos de 14 anos de idade trabalhando na agropecuria, e quase 12 milhes dos trabalhadores so temporrios o que dificulta a capacitao e o acmulo de experincia profissional. A assistncia tcnica seria de ajuda, mas tambm o Censo de 2006 evidenciou que a orientao tcnica continua muito limitada, sendo praticada em apenas 22% dos estabelecimentos aqueles cuja rea mdia de 228 hectares. Ou seja, mais da metade dos estabelecimentos onde houve utilizao de agrotxicos no recebeu orientao tcnica. O pulverizador costal, que o equipamento de aplicao que apresenta maior potencial de exposio aos agrotxicos, o utilizado em 973 mil estabelecimentos. As embalagens vazias so queimadas ou enterradas em 358 mil estabelecimentos. Cerca de 296 mil estabelecimentos no utilizaram nenhum equipamento de proteo individual quando usam, a maioria adota apenas botas e chapu.

    Desta forma, para implementar de forma consequente e responsvel o paradigma do uso seguro dos agrotxicos, seria preciso conceber um vultoso e complexo programa, que incluiria a alfabetizao dos trabalhadores, a sua formao para o trabalho com agrotxicos, a assistncia tcnica, o financiamento das medidas e equipamentos de proteo, a estrutura necessria para o monitoramento, a vigilncia e assistncia pelos rgos pblicos, as formas de participao dos atores sociais no processo de tomada de decises,

  • 51

    e muita coisa mais! Quanto tempo levaria para isto? E quantos recursos? Eles esto garantidos e disponibilizados? Enquanto isto, quantas vidas sero ceifadas?

    Talvez caiba aqui a analogia do brinquedo perigoso demais para ficar na mo de criana: reconhecer que no temos condies de fazer o uso seguro. J que as consequncias do uso (in)seguro de agrotxicos para a vida so graves, extensas, de longo prazo e algumas irreversveis ou ainda desconhecidas... No seria o caso de priorizar a eliminao do risco, como quer a legislao trabalhista? No estaria na hora de ouvir ambientalistas, movimentos sociais, trabalhadores e profissionais de sade que vm, h dcadas, falando e fazendo agroecologia?

    * Professora do Departamento de Sade Comunitria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Cear (UFC) e Coordenadora do Ncleo Tramas Trabalho, Meio Ambiente e Sade.

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    52

    AGROTXICOS E SUICDIO ENTRE AGRICULTORES

    H uma srie de estudos que indicam haver forte relao entre o uso de certos agrotxicos e o alto ndice de suicdios entre agricultores. Algumas substncias podem afetar o sistema nervoso central, provocando transtor-nos psiquitricos como ansiedade, irritabilidade, insnia ou sono conturba-do (com excesso de sonhos e/ou pesadelos), depresso e, muitas vezes, levar a pessoa intoxicada ao ato extremo de eliminar a prpria vida comumente, bebendo o veneno usado na lavoura.

    Em 1996 teve grande repercusso na imprensa o estudo intitulado Suicdio e Doena Mental em Venncio Aires - RS: consequncia do uso de agrotxicos organofosforados?. No pequeno municpio do Rio Grande do Sul predomina a cultura do fumo na qual so usadas macias doses de agrotxicos todos os anos.

    De acordo com o documento, em 1992 trs quartos da arrecadao do Imposto de Circulao de Mercadorias de Venncio Aires vinham da inds-tria do tabaco. Na cultura do fumo usavam-se em mdia 60 Kg de agrotxi-cos por hectare. Em 1995, devido seca e o consequente aumento de pragas, elevou-se esta quantidade para 100 Kg por hectare. E o ndice de suicdios em 1995 no municpio quase duplicou em relao aos dois anos anteriores, atin-gindo a marca 37,22 em cada 100 mil habitantes uma das taxas mais altas do mundo. Destas mortes, quase 60% ocorreram na rea rural.

    Segundo a pesquisa, os agrotxicos organofosforados utilizados no fumo seriam os causadores dos distrbios neurolgicos nos agricultores.

    O documento tambm informa que, dentro da 3 Delegacia Regional de Sade - DRS, nos dois anos anteriores, os municpios com maior concen-trao de hectares plantados de fumo possuam maiores ndices de suicdio. Mostra ainda que os safristas, pessoas que trabalham apenas nos perodos de safra, tambm aparecem nos ndices de suicdios.

    Outra suspeita levantada pelos pesquisadores sobre uma possvel rela-o das intoxicaes agudas ou subagudas com agrotxicos e os consequentes suicdios o fato de a maioria dos bitos ocorrer no perodo em que mais se usa veneno nas lavouras de fumo. Entretanto, eles salientam que grande parte das mortes pode ter como um dos fatores de risco as intoxicaes crnicas e cumulativas.

    Posteriormente, em fevereiro de 2007, a revista Galileu publicou uma grande reportagem sobre a relao entre o uso de agrotxicos e os suicdios,

  • 53

    divulgando, entre muitas outras informaes, que pesquisadores da Unisc (Universidade de Santa Cruz do Sul), da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) haviam encontrado novos indcios de que o mangans, presente em alguns fungicidas, pode provocar danos muito mais graves do que os organofosforados.

    O mangans age diretamente no sistema nervoso central, provocando tambm tremores e outros sintomas semelhantes aos do mal de Parkinson.

    A reportagem menciona ainda uma pesquisa com agricultores de toma-te e morango no interior de So Paulo, realizada pelo neurologista da Unifesp (Universidade Federal de So Paulo) Henrique Ballalai Ferraz. O pesquisa-dor tambm constatou ansiedade e nervosismo nas pessoas que manipulavam o agrotxico. Para ele, tanto no caso do organofosforado, como no do man-gans, intoxicaes agudas ou uma exposio longa aos agrotxicos deixam sequelas neurocomportamentais que podem evoluir para um quadro de de-presso. Esse quadro, aliado a uma srie de problemas econmicos e sociais, poderia levar ao suicdio.

    Um outro estudo semelhante, que abordou a sade mental de agriculto-res da Serra Gacha, em 1996, tambm apontou transtornos psiquitricos nos colonos das lavouras de uva e ma. A pesquisadora Neice Faria, do Departa-mento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas, descobriu que quem j teve alguma intoxicao aguda por agrotxico tinha trs vezes mais transtorno psiquitrico.

    Mais recentemente, em julho de 2010, o jornal Folha de So Paulo pu-blicou outra longa reportagem relatando casos em que fica evidente a relao entre os agrotxicos e os suicdios cometidos por agricultores de Ftima do Sul, no Mato Grosso do Sul. No municpio tem destaque a produo de algo-do, tambm intensiva no uso de venenos, em especial os organofosforados.

    Segundo a reportagem, em 2004 e 2005 um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul fez um levantamento sobre os estados depressivos em 261 agricultores expostos a organofosforados no municpio. Deles, 149 (57,1%) relataram algum sintoma aps o uso de agro-txicos e 30 apresentaram distrbios psiquitricos menores. Trs tentaram o suicdio.

    So extremamente tristes as histrias contadas por familiares dos agri-cultores vtimas dos efeitos dos agrotxicos. A matria da Folha destaca o caso de Antnia de Souza Lucas, 64, me de uns 14 filhos. Seu filho Mauro, de

  • Agrotxicos no Brasil um guia para ao em defesa da vida

    54

    26 anos, cometeu suicdio com veneno da lavoura de algodo. Ele havia briga-do com um irmo em uma festa de fim de ano e, de volta para casa, foi direto para o quarto dos agrotxicos. Escolheu um dos mais fortes e bebeu.

    O episdio ocorreu h quase dez anos, mas o cheiro de veneno presente no velrio ainda no saiu do nariz de Antnia. Ela no sabe por que o filho se matou. Era uma nervosia, muita raiva, ele ps na cabea e se matou logo.

    Depois de Mauro, outros dois filhos de Antnia, Jonas e Luiz, tambm se mataram em um ano. Uma terceira, Ceclia, tentou.

    So histrias assim que tristemente se repetem na zona rural, em lavou-ras onde o uso de venenos agrcolas por vezes garante a lavoura, mas ao custo de destruir as fa