agricultura familiar e o novo rural

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O trabalho discute as razões pelas quais se considera ainda necessário noBrasil a implementação de políticas agrícolas e agrárias voltadas para pequenosprodutores familiares. São criticadas as visões predominantes, comuns tanto à esquerda quanto à direita, baseadas em falsas analogias com o caso dos países desenvolvidos, as quais consideram que não há mais espaço no país para políticas dotipo proposto. A importância da produção familiar é enfatizada também atravésde uma breve apresentação dos dados do censo agrícola do IBGE. Finalmente, naseção conclusiva do trabalho são apresentadas algumas propostas de desenvolvimento rural sustentável baseado na produção familiar.

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    Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    DOSSI

    Agricultura Familiar e o NovoMundo Rural1

    1 Este trabalho baseado em grande medida nas pesquisas dos colaboradores consultores do Convnio FAO/INCRA, cujosresultados encontram-se sintetizados em Guanziroli, C. et al (2001). *Professor do Instituto de Economia da Unicamp.** Professor do Instituto de Economia da Unicamp e Chefe Geral da Embrapa Monitoramento por Satlite.*** Professor do Departamento de Economia da UFF e Consultor da FAO.

    debate sobre a questo agrria no Brasil prdigo emcriar falsos dilemas e polmicas. A questo atual tem sidoopor o futuro da agricultura familiar ao que vem sendocaracterizado como novo mundo rural, como se um ex-clusse o outro. Os resultados das pesquisas sobre o rurbano

    brasileiro so ricos e evidenciam a expanso de novas formas de ocupaono meio rural, vinculadas direta ou indiretamente a atividades essencial-mente urbanas. Este fenmeno que, no Brasil, ainda limitado do pontode vista geogrfico, tende, sem dvida, a crescer. No se trata, no entanto,de um fenmeno novo. O desenvolvimento do meio urbano deu-se, sem-pre e em todo lugar, pela apropriao dos espaos rurais. Kautsky, em suaobra clssica, j chamava a ateno para a importncia das ocupaesno-agrcolas no meio rural, associadas tanto expanso da indstria ruralcomo do setor de servios. Tampouco novo o fato de as ocupaesperiurbanas serem impulsionadas por atividades urbanas. Isso vale paratoda a agricultura que produz insumos e bens finais respondendo de-

    O

    ANTNIO M`RCIO BUAINAIN*, ADEMAR R. ROMEIRO**, CARLOS GUANZIROLI***

    DOSSI

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    manda e dinmica do mundo urbano. Neste sentido, no se trata de negarque essas novas atividades vm ganhando espao, mas de perguntar seeste fato, por si s, suficiente para negar que o desenvolvimento comeqidade, no meio rural brasileiro, ainda passa pelo fortalecimento da agri-cultura familiar. Este artigo retoma o debate desde esta perspectiva: aindah espao para a agricultura familiar no Brasil? Trata-se, ento, de decidir oque fazer com uma parte significativa do setor rural brasileiro e no apenascom o segmento dos sem terra ou subocupados que vm sobrevivendocom base em trabalhos no-agrcolas no meio rural.

    1. As anlises sobre as transformaes recentes naagricultura brasileira

    Nos anos 70 e 80, as transformaes que estavam ocorrendo na agri-cultura brasileira eram analisadas como similares quelas ocorridas nospases capitalistas avanados, tanto em seus aspectos positivos como nosnegativos. Nos anos 70, sustentava-se que a chamada questo agrcolahavia sido superada pelo processo de modernizao baseado na mecani-zao e na utilizao de variedades selecionadas de sementes e de insumosqumicos. Nos anos 80, sustentava-se que este processo de modernizaoaprofundara a integrao da agricultura com os capitais industriais, comer-ciais e financeiros que a envolvem, formando o que foi chamado de com-plexos agroindustriais.

    Dentro deste quadro analtico, a reforma agrria vista como ana-crnica, desnecessria e insustentvel. Para ser competitivo e sobreviver, preciso adotar um pacote tecnolgico que exige elevados investimentos,bem como possuir uma rea mnima relativamente grande ou ocupar umnicho de mercado, sobretudo pela integrao ao complexo agroalimentar.O movimento de concentrao da produo agropecuria em um nmerocada vez menor de estabelecimentos cada vez maiores era considerado

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    parte de uma tendncia natural e necessria que j ocorrera nos pasescapitalistas desenvolvidos e que, portanto, no poderia ser freada, sob penade provocar um atraso tecnolgico no setor agropecurio, com impactosnegativos no prprio processo de desenvolvimento econmico.

    Na dcada de 90, a reduo relativa do crescimento do empregorural estritamente agrcola em contraposio ao aumento do emprego ru-ral no-agrcola apresentada como mais uma evidncia de que ...a cria-o de empregos no-agrcolas nas zonas rurais . portanto, a nica estrat-gia possvel capaz de, simultaneamente, reter essa populao rural pobrenos seus atuais locais de moradia e ao mesmo tempo, elevar o seu nvel derenda (Graziano da Silva, 1999, p. 26). Tal como no caso do xodo ruralnos anos 70, este fenmeno interpretado como resultado de um proces-so histrico inelutvel, contra o qual ilusrio lutar. Seriam evidncias deque a estrutura produtiva do setor agrcola brasileiro se aproxima daquelados pases capitalistas desenvolvidos, tornando desnecessrias polticas re-formistas arcaicas, como uma reforma agrria que no fosse apenas decunho social. Nesse sentido, tal como ocorreu nos anos 70 e 80, estaviso do novo rural, tal como vem sendo veiculada, presta-se como justifi-cativa intelectual para polticas que, em ltima instncia, mantm o statusquo agropecurio do pas, caracterizado por forte desigualdade econmi-ca, social, e elevados nveis de pobreza. Com efeito, nos ltimos anos, oargumento do novo rural vem sendo utilizado para justificar a necessidadede abandonar polticas agrrias e agrcolas voltadas para os setores maisfragilizados da produo familiar, em benefcio de polticas de gerao deempregos rurais no-agrcolas, limitando-se o apoio s atividades propria-mente agrcolas das famlias rurais, quelas consideradas competitivas porocuparem nichos de mercado, de produtos especiais de alto valor agrega-do, cuja produo requer o uso intensivo de mo-de-obra.

    Como no passado, essas anlises no levam na devida conta asespecificidades que distinguem a situao do Brasil daquela dos pases

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    capitalistas desenvolvidos. Aqui a proporo da populao economicamenteativa vivendo em reas rurais (pouco menos de um quarto do total dapopulao economicamente ativa) similar quela observada nos EUA enos pases europeus, mas um abismo separa suas condies de inserono mercado de trabalho daquelas observadas nesses pases, fruto de pro-cessos histricos distintos de desenvolvimento rural. Para comear, aqui,cerca de 65% dessa populao trabalha em atividades estritamente agrco-las contra, por exemplo, cerca de 10% nos EUA.

    preciso considerar ainda que, nos EUA, o decrscimo da populaoocupada na agropecuria foi fruto de um processo relativamente equili-brado de xodo rural. Equilibrado, na medida em que impulsionado prin-cipalmente pela expanso das oportunidades de emprego urbano-indus-trial. Durante um longo perodo, uma fronteira agrcola aberta garantiu sondas de imigrantes que l aportavam a possibilidade de acesso terra. Oesgotamento da fronteira agrcola, por sua vez, coincide com o arrefecimentodo ritmo da imigrao. A elevao do custo de oportunidade do trabalho,por sua vez, constituiu-se no fator decisivo no apenas para moldar o pro-cesso de modernizao (principalmente da mecanizao) da agriculturaamericana como para elevar os salrios urbanos e toda a conformao daeconomia americana. A verdade que o xodo rural nos EUA se explicaprincipalmente pela atrao exercida pelo setor urbano-industrial e nopela repulso da falta de alternativas de sobrevivncia minimamente con-digna no campo.

    Com relao evoluo do emprego rural no-agrcola, inicialmenteseu crescimento decorreu da modernizao associada expanso de ativi-dades industriais e de servios, a montante e a jusante das atividades estrita-mente agrcolas. Com o tempo, indstrias de outros setores industriais co-mearam tambm a buscar distritos rurais para expandir suas instalaes.Paralelamente, o emprego rural no-agrcola se expande com o aumento daafluncia, tendo por base um processo de redistribuio dinmica da renda

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    (como por exemplo servios gerados pela expanso das residncias secun-drias campestres) e com a busca de reas rurais por citadinos fugindo dostress das grandes cidades e/ou devido s novas possibilidades de trabalho adomiclio oferecidas pela expanso dos sistemas de comunicaoinformatizados. Como resultado desse processo, a grande massa de residen-tes rurais composta de populaes de origem urbana com nveis de esco-laridade e/ou formao profissional mdio e alto, exercendo todo tipo deatividades industriais e, principalmente, comerciais e de servios.

    Pari passu com o progresso tcnico, que tornava dispensvel o traba-lho de todos os membros da famlia, no campo, a evoluo do empregorural no-agrcola representou uma oportunidade para aumentar a sua rendafamiliar. Como demonstrado em muitos estudos, foi esta evoluo dosempregos rurais no-agrcolas, mais do que as polticas de apoio agricul-tura, que permitiu a equiparao do nvel de renda do produtor familiarcom aquele dos assalariados urbanos. muito importante ter claro, ainda,que as ocupaes rurais no-agrcolas so uma oportunidade decomplementao de renda para agricultores que representam entre 10%(caso dos EUA) a 20% da PEA rural.

    Compare-se esse quadro com o ocorrido no Brasil. O acesso s terraslivres pelas massas de imigrantes e libertos foi bloqueado e, como resulta-do, as massas rurais permaneceram cativas da insegurana da posse daterra, como reserva de trabalho barato de uma classe de latifundirios sema menor viso estratgica de construo de uma nao (com exceo doSul, onde, por razes estratgicas de segurana de fronteiras, criou-se umaforte base de produtores agrcolas familiares).

    A forte concentrao da renda no campo, decorrente dessas condi-es e o tipo de insero do pas na diviso internacional do trabalho limi-taram a expanso do setor urbano-industrial. Essas condies esto na raizdos fortes desequilbrios distributivos observados no processo de urbaniza-o no Brasil. Cada vez mais, o xodo rural configurou-se como um xodo

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    de refugiados do campo, ao contrrio do que ocorreu nos EUA e na Euro-pa, onde os fatores de atrao predominaram sobre os fatores de expul-so. As conseqncias socio-econmicas desse processo so conhecidas.Os que permaneceram no campo continuaram em situao precria, semacesso ou com acesso limitado terra, educao e demais servios deinfra-estrutura social e aos benefcios da poltica agrcola.

    Por conseguinte, para a maior parte da grande massa da PEA rural noBrasil cerca de 65%, que se encontra ocupada em atividades agrcolas a expanso, a partir dos anos 80, dos empregos rurais no-agrcolas vairepresentar no uma ampliao das oportunidades de trabalho para osmembros da famlia tornados suprfluos pelo progresso tcnico, mas simuma chance de sobrevivncia, em geral precria, para produtores sem aces-so ao progresso tcnico, terra suficiente, crdito, etc. Estudos sobre siste-mas de produo familiares (FAO/INCRA) mostram que, quando os pro-dutores familiares contam com apoio suficiente, a tendncia de reduoda importncia das rendas obtidas fora da unidade familiar. Isto porque ocusto de oportunidade do trabalho muito baixo tambm em atividadesno-agrcolas.

    Em outras palavras, o produtor familiar, quando recebe apoio sufici-ente, capaz de produzir uma renda total, incluindo a de autoconsumo,superior ao custo de oportunidade do trabalho. Neste sentido, no socorretas as analogias com a situao nos pases desenvolvidos, onde asremuneraes obtidas com atividades no-agrcolas elevam a renda mdiado setor rural porque, aqui, o potencial de gerao de renda do setoragrcola familiar est longe de ser plenamente utilizado, alm do fato de osdados da PNAD subestimarem as rendas agrcolas.

    Portanto, como esperar que o setor urbano-industrial brasileiro, cujaestrutura produtiva se encontra deformada e limitada pela fortssima con-centrao da renda, tenha o mesmo potencial de gerao de empregosrurais no agrcolas que aquele nos EUA e na Europa? E mais, para atender

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    a uma populao rural ocupada em atividades agrcolas respectivamente 6a 3 vezes maior em termos relativos? O lgico seria estimular ao mximo,sim, a gerao de empregos rurais no-agrcolas, mas principalmente aquelesque seriam gerados atravs do apoio agricultura familiar. preciso, em-bora tardiamente, dar condies para que a produo familiar no Brasilpossa cumprir um papel semelhante quele que cumpriu nos pases capi-talistas desenvolvidos.

    Os fatos e a histria mostram claramente que, apesar de todas asmudanas ocorridas e das oportunidades perdidas, ainda se faz necessriono pas, como condio para a eliminao da pobreza e de suporte essen-cial a um processo de redistribuio dinmica da renda, um projeto dedesenvolvimento rural apoiado na produo familiar. Produo familiarpredominantemente descapitalizada ou pouco capitalizada, mas que ne-nhum bice tecnolgico impede que inicie um processo de modernizaoe se torne progressivamente mdia e grande, na medida em que se eleva ocusto de oportunidade do trabalho. No demais lembrar que h apenas20 anos, o Estado de Mato Grosso era ocupado por agricultores familiaresem busca de terra, trabalho e novas oportunidades. So os mesmos quehoje cultivam centenas de hectares, constroem estradas, hidrovias e geramrenda, trabalho e progresso local, e para todo o Pas.

    Em estudo recente, o Secretrio de Desenvolvimento Rural, Prof. JosEli da Veiga, defende uma posio2 que vai neste sentido, ou seja, de que preciso formular polticas de desenvolvimento rural integrado que con-templem os diversos aspectos de uma mesma realidade: polticas agrriase agrcolas para o fortalecimento da agricultura familiar juntamente compolticas de gerao de novas oportunidades de empregos rurais no-agr-colas. Alm disso, esse conjunto de polticas tenderia a ter uma distribui-o espacial bem determinada, dado que h regies onde predominam asatividades agrcolas e rurais no-agrcolas derivadas da agricultura e regi-

    2 VEIGA, J. E. O Brasil Rural Precisa de uma Estratgia de Desenvolvimento. (Srie Textos para Discusso n. 1) Braslia:NEAD/MDA, 2001.

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    es onde claramente a dinmica econmica nos espaos rurais no maisdeterminada pelas atividades agrcolas.

    Este um quadro analtico bastante consistente. Porm, a maior difi-culdade do estudo est na idia de que os setores de produo familiarque poderiam ser objeto de polticas especficas de apoio so limitados,excluindo como estruturalmente inviveis uma grande massa de produto-res. As evidncias mostram que a viabilidade da agricultura familiar sob asmais diversas formas3 bem maior do que suposto neste estudo. Emsntese, h que se ter cuidado na definio dos critrios de corte, sob penade excluir um contigente importante de produtores hoje marginalizadosno por uma inviabilidade estrutural, mas precisamente pela ausncia depolticas de apoio.

    2. A importncia da agricultura familiar no Brasil

    Segundo o Censo Agropecurio 1995/96, existem no Brasil 4.859.732estabelecimentos rurais, ocupando uma rea de 353,6 milhes de hecta-res. Em 1996 o Valor Bruto da Produo (VBP) Agropecuria foi de R$47,8 bilhes. Destes, 4.139.369 so estabelecimentos familiares,4 ocupandouma rea de 107,8 milhes de ha, sendo responsveis por R$ 18,1 bilhesou 37,9% do VBP total, apesar de receber apenas 25,3% dos financiamen-tos agrcolas. Os agricultores patronais, representados por 554.501 estabe-lecimentos, ocupavam 240 milhes de ha.

    Os agricultores familiares representam 85,2% do total de estabeleci-mentos, ocupam 30,5% da rea total e so responsveis por 37,9% dovalor bruto da produo agropecuria nacional. Quando considerado ovalor da renda total agropecuria (RT) de todo o Brasil, os estabelecimen-

    3 Especialmente interessante o potencial da agricultura familiar para a produo agroecolgica. Ver, sobre este ponto,LINHARES, R. A Questo Agroecolgica no Brasil Anlise Histrica e Perspectivas. (Tese de Doutoramento) Campinas,SP: IE/Unicamp, 2002.4 Ver Guanziroli et al. (2001) para uma apresentao e discusso da metodologia adotada para classificar o estabelecimentocomo familiar.

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    tos familiares respondem por 50,9% do total de R$ 22 bilhes. A participa-o dos familiares na renda total agropecuria (RT) maior do que no VBP,o que pode ser explicado pelo fato de este ltimo desprezar os gastos deproduo incorridos pelos agricultores. Esse conjunto de informaes re-vela que os agricultores familiares utilizam os recursos produtivos de formamais eficiente que os patronais, pois, mesmo detendo menor proporoda terra e do financiamento disponvel, produzem e empregam mais doque os patronais.

    Os agricultores familiares representam 85,2% do total de estabeleci-mentos, ocupam 30,5% da rea total e so responsveis por 37,9% dovalor bruto da produo agropecuria nacional. Quando considerado ovalor da renda total agropecuria (RT) de todo o Brasil, os estabelecimen-tos familiares respondem por 50,9% do total de R$ 22 bilhes. A participa-o dos familiares na renda total agropecuria (RT) maior do que no VBP,o que pode ser explicado pelo fato de este ltimo desprezar os gastos deproduo incorridos pelos agricultores. Esse conjunto de informaes re-vela que os agricultores familiares utilizam os recursos produtivos de formamais eficiente que os patronais, pois, mesmo detendo menor proporoda terra e do financiamento disponvel, produzem e empregam mais doque os patronais.

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    sairogetaC .batsE latoT.batsE%

    latot/slatoTaer`

    )ah(aer`%latot/s

    PBV)lim$R(

    PBV%latot/s

    TF%latot/s

    railimaF 963.931.4 2,58 054.867.701 5,03 527.711.81 9,73 3,52

    lanortaP 105.455 4,11 221.240.042 9,76 058.931.92 0,16 8,37

    .titsnIasoigileR/aiP 341.7 1,0 718.262 1,0 723.27 2,0 1,0

    edaditnEacilbP 917.851 3,3 475.925.5 6,1 806.564 0,1 8,0

    latoT 237.958.4 0,001 369.206.353 0,001 015.597.74 0,001 0,001

    Tabela 1. Brasil - estabelecimentos, rea e valor bruto da produoe percentual do financiamento total (ft)

    FONTE - Censo Agropecurio 1995/96 IBGEElaborao: Convnio FAO/INCRA

    2.1 Diversidade e viabilidade da agricultura familiar

    A agricultura familiar um universo profundamente heterogneo,seja em termos de disponibilidade de recursos, acesso ao mercado, capa-cidade de gerao de renda e acumulao. Esta diversidade tambmregional. A rea mdia dos estabelecimentos familiares de 26 ha, e otamanho mdio varia de regio para regio. Os estabelecimentos da re-gio Nordeste tm a menor rea mdia (17ha) e os da regio Centro-Oeste a maior (84ha).

    A Renda Total (RT) dos agricultores familiares apresenta grande dife-rena, refletindo tanto diferenas entre estabelecimentos como entre asregies do pas. A RT por estabelecimento familiar para todo o Brasil, foi deR$ 2.717,00, resultando em uma mdia de R$ 104,00 por ha de rea total.Entre os familiares, a RT varia de R$ 1.159,00/ano no Nordeste a R$ 5.152,00no Sul. Quando se considera a RT por unidade de rea, os resultados daagricultura familiar so muito superiores aos dos estabelecimentos patronaisem todas as regies do pas. No Nordeste a RT de R$ 70,00/ha entre os

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    familiares contra R$ 37,00/ha dos patronais; no Centro-Oeste deR$48,00/ha contra R$ 25,00/ha dos patronais e na regio Sul de R$241,00/ha, enquanto a dos patronais no supera R$99,00/ha.

    Tabela 2. Renda Total (RT) e Renda Monetria (RM) por estabelecimento(em R$)

    oigeRrailimaF lanortaP

    batsE/TR batsE/MR batsE/TR batsE/MR

    etsedroN 951.1 696 198.9 764.8

    etseO-ortneC 470.4 340.3 461.33 977.03

    etroN 409.2 539.1 388.11 196.9

    etseduS 428.3 307.2 518.81 748.51

    luS 251.5 513.3 851.82 553.32

    lisarB 717.2 387.1 580.91 004.61

    FONTE - Censo Agropecurio 1995/96 IBGEElaborao: Convnio FAO/INCRA

    A m distribuio da propriedade da terra o trao mais marcante e,ao mesmo tempo, a principal distoro da estruturao fundiria no Brasil.Entre os agricultores familiares, um nmero significativo proprietrio deum lote menor que 5 ha, tamanho que, na maior parte do pas, dificulta,seno inviabiliza, a explorao sustentvel dos estabelecimentosagropecurios. Excluindo atividades de subsistncia, a sustentabilidade daspequenas propriedades crescentemente condicionada pela insero emdeterminadas cadeias produtivas, pela localizao econmica e grau decapitalizao.

    No Brasil, 39,8% dos estabelecimentos familiares tm menos de 5ha, 30% tm entre 5 a 20ha e 17% esto na faixa de 20 e 50 ha. Osagricultores familiares com rea maior que 100 ha e menor que a reamxima regional representam apenas 5,9% dos estabelecimentos, queocupam 44,7% de toda a rea da agricultura familiar brasileira.

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    Grfico 1. Brasil: agricultores familiares percentual de estabelecimentos e rea segundo grupos de rea total

    39,8

    29,6

    17,2

    7,6 5,9

    3,0

    12,2

    20,4 19,7

    44,7

    < 5 5 a 20 20 a 50 50 a 100 100 a 15 MR

    Em ha

    Em %

    Estabelecimentos rea

    Tabela 3. Agricultores familiares: percentual de estabelecimentos e rea segundo grupos de rea total (em ha)

    oigeR

    edsoneMah5

    02ed-a5ah ah05ed-a02

    001ed-a05ah

    ed-a001RM51

    batsE% .batsE% .batsE% .batsE% .batsE%

    etsedroN 8,85 9,12 0,11 8,4 4,3

    etseO-ortneC 7,8 5,02 3,72 8,81 6,42

    etroN 3,12 8,02 5,22 9,71 4,71

    etseduS 5,52 6,53 7,22 9,9 3,6

    luS 0,02 9,74 2,32 9,5 9,2

    lisarB 8,93 0,03 1,71 6,7 9,5

    FONTE - Censo Agropecurio 1995/96 IBGE

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    A rea mdia dos estabelecimentos familiares em cada grupo de reatambm baixa. No estrato de menos de 5 ha, o tamanho mdio dosestabelecimentos para todo o Brasil de apenas 1,9 ha. Mesmo entre oscom rea entre 5 e 20 ha, a mdia de apenas 10,7 ha por estabelecimento.

    A regio Nordeste a que apresenta o maior nmero de minifndios,com 58,9% de estabelecimentos familiares no estrato de menos de 5 ha.Entre estes agricultores, a rea mdia de 1,7 ha por estabelecimento. Naregio Sul, 20% dos estabelecimentos familiares tm menos de 5 ha, 29,6%entre 5 e menos de 20 ha e 23,2% entre 20 e menos de 50 ha.

    A anlise da renda total dos estabelecimentos demonstra que existeuma grande variabilidade do nvel de renda. A renda total da grande maioriados estabelecimentos dos agricultores familiares (68,9%) situa-se no inter-valo entre zero e R$ 3.000,00 ao ano. Outros 15,7% possuem renda totalentre R$ 3.000,00 e R$ 8.000,00 e apenas 0,8% tm renda total superiora R$ 27.500,00 ao ano. Cerca de 8,2% dos estabelecimentos familiaresocupando 10,8% da rea total dos agricultores familiares, apresentaramrenda total negativa.5

    5 Estes estabelecimentos so formados por trs grandes grupos de agricultores: (i) o primeiro constitudo por aqueles queesto investindo em novas atividades, que demandam gastos e investimentos mas que ainda no esto gerando retorno; (ii)o segundo formado por agricultores que tiveram prejuzos na safra em que foi realizado o censo, seja por problemas demercado seja por problemas climticos; (iii) o ltimo grupo representado por agricultores que produzem muito pouco ededicam-se a outras atividades; como a renda gerada pela atividade agropecuria pequena e os gastos gerais do estabele-cimento so maiores, a renda agropecuria aparece como negativa. Deve-se destacar que os agricultores com renda nega-tiva que se enquadram nas situaes (i) e (ii) no so necessariamente pobres.

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    latotaeredsopurG )ahmE(aidMaer`

    ah5edsoneM 9,1

    ah02edsonema5 7,01

    ah05edsonema02 0,13

    ah001edsonema05 8,76

    sianoigeRsoludM51aah001 0,891

    serailimaFserotlucirgAsodaidMaer` 0,62

    Tabela 4. Brasil - agricultores familiares: rea mdia dos estabelecimentos segundo os grupos de rea total (em ha)

    FONTE - Censo Agropecurio 1995/96 IBGEElaborao: Convnio FAO/INCRA

    Tabela 5. Agricultura familiar: participao percentual dos estabelecimentos e rea segundo os grupos de renda total (em reais)

    edopurGoigeR/TR

    00,0tAedsiaM

    a00,0000.3

    edsiaMa000.3

    000.8

    edsiaM000.8000.51

    edsiaMa000.51

    005.72

    edsiaM005.72

    %batsE

    %aer`

    %batsE

    %aer`

    %batsE

    %aer`

    %batsE

    %aer`

    %batsE

    %aer`

    %batsE

    %aer`

    etsedroN 0,7 8,8 7,58 9,76 8,5 5,61 0,1 2,4 3,0 7,1 2,0 0,1

    etseO-ortneC 9,41 2,81 4,94 1,33 5,32 5,42 1,7 4,11 1,3 7,6 1,2 0,6

    etroN 2,5 5,8 1,76 6,45 2,22 2,62 0,4 8,6 1,1 5,2 5,0 3,1

    etseduS 7,41 7,41 1,55 9,83 6,91 2,52 4,6 2,11 7,2 9,5 6,1 2,4

    luS 6,6 9,7 8,44 0,03 3,13 8,13 6,11 5,61 0,4 3,8 8,1 5,5

    lisarB 2,8 8,01 9,86 9,84 7,51 7,32 6,4 1,9 7,1 4,4 8,0 1,3

    FONTE - Censo Agropecurio 1995/96 IBGEElaborao: Convnio FAO/INCRA

  • 326 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    Tabela 6. Agricultura familiar: participao percentual dos estabelecimentos segundo grupos de renda monetria (em reais)

    oigeRedlatoT.batsE

    )oremn(

    )%(sotnemicelebatsEedlautnecreP

    0tA 0edsiaM 000.3a

    edsiaMa000.3

    000.8

    edsiaMa000.8

    000.51

    edsiaMa000.51

    005.72

    edsiaM005.72

    etsedroN 751.550.2 6,91 0,67 3,3 7,0 2,0 1,0

    etseO-ortneC 260.261 1,32 0,15 6,61 2,5 3,2 8,1

    etroN 598.083 5,01 6,27 4,31 5,2 7,0 4,0

    etseduS 026.336 5,42 9,35 1,41 4,4 9,1 2,1

    luS 536.709 0,61 7,35 2,02 3,6 4,2 3,1

    lisarB 963.931.4 9,81 5,66 1,01 8,2 1,1 6,0

    FONTE - Censo Agropecurio 1995/96 IBGEElaborao: Convnio FAO/INCRA

    Enquanto 8,2% dos estabelecimentos de agricultores familiares apre-sentam renda total negativa, cerca de 19% apresentam renda monetrianegativa. Esta diferena representa basicamente o valor da produo des-tinada ao autoconsumo, cujo peso grande na agricultura familiar. Muitosdesses agricultores, em especial os mais descapitalizados, lanam mo derendas no-agrcolas para investir em seus estabelecimentos. A renda mo-netria obtida pode ser inferior ao valor gasto (renda monetria negativa),mas a produo para o autoconsumo pode compensar a despesa.

    Este conjunto de informaes confirma que o universo dos agriculto-res familiares extremamente diferenciado e que, enquanto uma partedos estabelecimentos gera um nvel de renda sustentvel, outra parte en-frenta crescentes dificuldades associadas principalmente falta de recur-sos, principalmente terra e capital.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    327SOCIOLOGIAS

    2.2 Sistemas de produo da agricultura familiar:potencialidades e obstculos

    Ao longo do perodo 1994-98, o Convnio FAO/INCRA realizou umasrie de estudos sobre os sistemas de produo adotados pelos agricultoresfamiliares nas diversas regies do pas. O objetivo desses estudos foi aprofundaro conhecimento sobre alguns aspectos do funcionamento da agricultura fami-liar, identificar os obstculos enfrentados, assim como as potencialidades asso-ciadas aos principais sistemas de produo utilizados pelos agricultores famili-ares nas vrias regies do pas. Os resultados representam uma fotografia acuradada situao e das potencialidades da agricultura familiar no Brasil. A seguirapresentam-se as principais concluses, destacando os aspectos relacionadosao tema da resistncia e viabilidade da agricultura familiar.

    Os estudos confirmam que, em todas as regies, a agricultura famili-ar explora de forma intensiva os recursos escassos disponveis e que pos-svel gerar nveis de renda agropecuria superior ao nvel de reproduoda famlia. Naturalmente que nem sempre este potencial se realiza, sejaem razo das severas restries de recursos enfrentados pelos agricultoresfamiliares particularmente na Regio Nordeste, seja por causa das condi-es macroeconmicas negativas e da ausncia/deficincias das polticaspblicas que deveriam, pelo menos, contrabalanar os efeitos negativosdas polticas e da conjuntura macroeconmica.

    Em praticamente todos os sistemas e regies, os agricultores enfren-tam problemas associados disponibilidade de capital de giro e recursospara investimentos. Ao contrrio do que comumente divulgado, parte daagricultura familiar maneja sistemas produtivos modernos que utilizam in-tensivamente os insumos adquiridos no mercado e carregam custos eleva-dos de manuteno/depreciao de equipamentos/instalaes. Apesar daestratgia de combinar atividades com prazos de maturao e fluxos dedespesas e receitas diferentes visando reduzir o risco e a dependncia decapital de giro de terceiros, equivocada a viso da produo familiar

  • 328 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    como auto-suficiente e totalmente avessa ao risco envolvido nas opera-es financeiras. Na prtica, a grande maioria dos produtores necessita derecursos de terceiros para operar suas unidades de maneira mais eficaz,rentvel e sustentvel. A ausncia desses recursos, seja pela insuficinciada oferta de crdito, seja por causa das condies contratuais inadequa-das, impe srias restries ao funcionamento da agricultura familiar maismoderna e, principalmente, a sua capacidade de manter-se competitivaem um mercado cada vez mais agressivo e exigente.

    Essa mesma restrio tambm afeta um grande nmero de produto-res que exploram sistemas potencialmente viveis, mas que no logramalcanar, a partir da renda gerada pela unidade produtiva, o patamar mni-mo de capitalizao necessrio para viabilizar suas unidades de produo.Independentemente da potencialidade dos sistemas adotados e de dispo-rem de um conjunto relevante de recursos necessrios para operar umaunidade vivel, a insuficincia de apenas 1 insumo chave, como o casodo capital-dinheiro, empurra uma massa de produtores para um crculovicioso, cujo resultado quase sempre a reproduo do ciclo da pobreza:renda insuficiente dado o baixo nvel de capitalizao (baixo em relaoao patamar que permite competir e acumular e no necessariamente emtermos absolutos), incapacidade de acumulao, empobrecimento... Emambos os casos, bastaria facilitar o acesso dos agricultores familiares aorecurso marginal escasso, para viabilizar a explorao sustentvel de mui-tos sistemas de produo em todas as regies do Pas e elevar o nvel derenda de, pelo menos, uma parcela de famlias pobres que vivem no meiorural e tem na explorao da terra sua principal fonte de sobrevivncia.

    A agricultura familiar enfrenta ainda restries de acesso aos merca-dos de servios em geral, e no apenas ao crdito. Com exceo dos Esta-dos da Regio Sul onde a agricultura familiar tem densidade suficientepara aparecer como a forma de explorao dominante em muitos munic-pios, nas demais regies, os produtores familiares aparecem em geral iso-lados em pequenos grupos em meio explorao patronal dominante.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    329SOCIOLOGIAS

    Esta disperso dificultou o florescimento de prestadores de servios tcni-cos especializados, assim como o baixo nvel de acumulao e a exclusodos agricultores familiares da poltica de crdito subsidiada nos anos 70 e80, alm de no ter estimulado o surgimento de uma indstria produtorade equipamentos dimensionados para as condies e necessidades da agri-cultura familiar. No Nordeste, apesar do adensamento, o nvel de acumu-lao baixo, a maioria dos agricultores familiares pobre e no se cons-titui em mercado relevante a ponto de estimular o desenvolvimento deempresas prestadoras de servios tcnicos especficos para o setor familiar.Se, no passado, esta carncia no impedia de progredir os agricultoresfamiliares que exploravam sistemas conhecidos e estveis, no presente, elase tornou um grave obstculo. O ritmo das mudanas tcnicas etecnolgicas, assim como a necessidade de introduzir novas atividades ede adaptar sistemas de produo tradicionais s exigncias do mercadosuperam, de longe, tanto o conhecimento como o tempo de aprendizadoautnomo dos agricultores. Assistncia tcnica, extenso, servios demeteorologia, comercializao, etc. so fundamentais para a viabilidadedos sistemas mais avanados, e sua ausncia e/ou deficincia restringe odesenvolvimento e consolidao de sistemas produtivos nos quais os agri-cultores familiares poderiam ser competitivos e viveis.

    Finalmente cabe mencionar que historicamente a agricultura familiarenfrentou um quadro macroeconmico adverso, caracterizado pela insta-bilidade monetria e inflao elevada (sem condies de fazer hedge), dis-criminao negativa da poltica agrcola que favorecia os produtores patro-nais, poltica comercial e cambial desfavorvel e deficincia dos serviospblicos de apoio ao desenvolvimento rural. Na realidade, ao invs depromover o desenvolvimento rural e local, o conjunto de polticas pblicaspromoveu o esvaziamento do campo e inibiu o desenvolvimento local, emfavor das grandes metrpoles e cidades mdias.

    A tabela 7 resume os principais trunfos, potencialidades e obstculosde alguns dos sistemas de produo estudados, segundo o nvel de capita-

  • 330 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    lizao dos produtores familiares. Na verdade, a maioria dos sistemas en-frenta, com diferente intensidade, uma ou mais das restries e pontos deestrangulamentos listados acima. Alguns aparecem de forma recorrenteem produtores do mesmo nvel de capitalizao, que exploram sistemasde produo completamente diferentes, sugerindo tratar-se de problemasderivados mais da categoria do produtor que dos sistemas produtivos pro-priamente ditos. Nesta classe de estrangulamento, pode-se mencionar anecessidade de recursos para investimentos. Esta restrio maior entre osfamiliares capitalizados, que exploram sistemas altamente intensivos eminsumos industriais, com auxlio de mquinas e instalaes custosas. Trata-se de sistemas inseridos em mercados altamente competitivos e dinmi-cos, que exigem dos produtores um processo quase contnuo de atualiza-o, adaptao e, at mesmo, de mudanas mais significativas.

    sametsiSsiapicnirP edsairogetaC rotlucirgAesofnuirTavitcepsreP

    edsotnoPotnemalugnartsE

    ,sonuS,sevA,ohliM.1ojieF sodazilatipaC

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    ,sonuS,etieL,ohliM.2edanivobairuceP,ojieF

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    lasneMadneRacingrooabudA

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    ,son-uS,ojieF,ohliM.3airuceP,etieLsevA

    etrocedanivobsodazilatipaC levtnerotiuM sotnemitsevnisotlaegixE arbo-ed-omatiuM

    ojieF,ohliM.4 oisnarTmE

    latipacocuopegixEsartuomoclevtapmoC

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    odagergarolavocuoPaerroiamegixEsievtsnisoerP

    oinlcedmeametsiS

    Tabela 7. Problemas e potencialidades

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    331SOCIOLOGIAS

    sametsiSsiapicnirP edsairogetaC serotlucirgAesofnuirT

    savitcepsrePedsotnoP

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    sonuS,ojieF,ohliM.5 oisnarTmE

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    adneretnaragomuFotidrcaossecA

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    lainomirtapoazirolaVoacifisrevideetielonohlabarT

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    socixtorgAadartnecnocadnameD

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    ocuopmoclevivlatipac

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    siamededadisseceNarret

    Alguns sistemas enfrentam problemas de mo-de-obra, cuja disponi-bilidade limita sua evoluo. De uma maneira geral, esta restrio estassociada a quatro fatores: intensificao do uso do fator trabalho medi-da que os sistemas se tornam mais complexos e integrados aos mercadosagroindustriais; tamanho da famlia e da mo-de-obra familiar disponvel;tecnologia inadequada para as necessidades da agricultura familiar e/ouinvivel economicamente; falhas no mercado de trabalho local.

    Neste campo, a agricultura familiar enfrenta uma contradio: de umlado, a viabilidade e rentabilidade passam, em grande medida, pela estrat-gia de reduzir riscos por meio da diversificao, potencializar a produtivida-

    continuao

  • 332 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    de da mo-de-obra familiar por meio da tecnificao e incorporao deinsumos industriais e buscar segmentos de mercado de alto valor agregado,nos quais possam ser obtidas algumas vantagens associadas prpria organi-zao da produo familiar. Vale destacar o menor custo de gesto e super-viso da mo-de-obra familiar; a reduo do custo operacional associado utilizao do trabalhador familiar, que tem incentivos diretos para evitar odesperdcio, etc.; produtividade mais elevada alcanada pela mo-de-obrafamiliar em tarefas de manuseio e ateno delicados, quando comparada aotrabalho assalariado e, finalmente, a maior qualidade do produto obtido sobos cuidados dos prprios interessados. De outro lado, notrio que tanto otamanho das famlias rurais como da mo-de-obra familiar tende a diminuir.Nas reas mais desenvolvidas, o esvaziamento associado s novas e me-lhores oportunidades oferecidas aos filhos dos agricultores nos centros urba-nos, ou falta de desenvolvimento local, em particular no meio rural. Nacamada de produtores familiares mais prsperos, comum que os filhossejam enviados s cidades para estudar, contribuindo para reduzir a disponi-bilidade de mo-de-obra. Nas reas mais pobres e menos dinmicas, a re-duo da mo-de-obra est associada aos tradicionais fatores de expulso.

    A escassez de mo-de-obra parcialmente compensada pela eleva-o da produtividade e pela utilizao de mo-de-obra assalariada tempo-rria, o que exige maior volume de investimentos outra restrio j apon-tada acima e reduz as vantagens prprias da produo familiar. Em mui-tos casos, os investimentos no so feitos por no compensarem economi-camente, ou pela falta de segurana para investir em projetos que reque-rem alguns anos de depreciao. Embora relevante, este problema nocompromete estruturalmente a competitividade e viabilidade da agricultu-ra familiar, mas sua superao exige a implementao de um conjunto depolticas, em particular tecnolgicas, especificamente desenhadas com oobjetivo de superar este gargalo.

    Muitos sistemas so negativamente afetados pela baixa produtivida-de, que em muitas situaes os inviabiliza. Outros sistemas enfrentam res-

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    333SOCIOLOGIAS

    tries associadas ao tamanho do estabelecimento. Outros, devido de-gradao dos solos e ambiental em geral, provocada pelo encurtamentodo tempo de descanso da terra e pela adoo de prticas insustentveisdevido falta de recursos e nvel de pobreza. Nestes casos, caberia per-guntar que razes levam os produtores a adotar sistemas possivelmenteinsustentveis e aparentemente incompatveis com a dotao de recursos.O argumento central que eles adotam sistemas possveis e viveis (nascondies reais que enfrentam) que melhor respondem ao conjunto derestries enfrentadas em cada momento, no havendo nenhuma garantia(claim) de que todos os sistemas sejam eficientes do ponto de vista macronem sustentveis no longo prazo. Que atividades, alm da pecuria exten-siva e da roa/capoeira, pode desenvolver um produtor perdido no Estadodo Par, com acesso precrio aos mercados locais pouco estruturados, quedispe de uma pequena parcela de terra e quase nenhum dinheiro? Mes-mo no sendo rentvel pela contabilidade empresarial e ou sustentvelsocialmente, pode ser sua melhor e, no raramente, nica opo.

    A instabilidade dos mercados e dos preos no nvel do produtor tambm um ponto de estrangulamento importante, em particular para os sistemasque exigem investimento significativo (pelo menos em relao capacidadedos agricultores), incorrem em custos operacionais elevados e no esto inse-ridos contratualmente na cadeia agroindustrial. Em geral, os agricultores fami-liares enfrentam, em condies de relativa desvantagem, a concorrncia deprodutos importados e/ou de grandes produtores que se beneficiaram de sub-sdios no passado e que ainda hoje tm acesso privilegiado aos servios ecanais de comercializao. Em muitos casos, esta insero privilegiada chega aanular as eventuais vantagens competitivas da agricultura familiar, advindas,como j foi mencionado, da reduo dos custos de transao, do menor custode gesto da mo-de-obra em relao ao trabalho assalariado em atividadesintensivas em trabalho e em ateno, e da produtividade mais elevada dotrabalho familiar. Operando com margens lquidas reduzidas, espremidos en-

  • 334 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    tre os fornecedores de insumos em mercados incompletos e com poucas op-es para vender sua produo, esses sistemas so sensveis s quedas dospreos e flutuaes dos mercados agrcolas.

    A tabela 7 tambm resume os trunfos e perspectivas comuns a vriossistemas encontrados de norte a sul do pas. Em alguns casos, os trunfos decor-rem mais da prpria natureza da produo familiar que do sistema em simesmo. Por exemplo: j se comentou que o produtor familiar procura diver-sificar sua produo. Embora em sua origem a diversificao fosse determina-da pelo carter de subsistncia da produo familiar, hoje uma clara e cons-ciente estratgia de reduo de riscos e incerteza, sem dvida um trunfo demuitos sistemas de produo explorados por produtores familiares.

    Em outros casos, a potencialidade decorre do prprio sistema, comopor exemplo a possibilidade e viabilidade de utilizar a adubao orgnicade modo mais significativo, aumentando o valor agregado total produzidopelo sistema. A adubao orgnica vem crescendo em muitas regies dopas, sendo especialmente aplicada a produtos que exigem cuidado e mo-de-obra intensivos, exatamente aqueles segmentos nos quais a agriculturafamiliar tem maiores vantagens para competir com os agricultores patronais.A crescente demanda por produtos orgnicos abre, portanto, novas possibi-lidades de expanso e gerao da renda para os produtores familiares.

    Em outros casos, a viabilidade, sustentabilidade e perspectiva demuitos sistemas assentam-se precisamente na baixa exigncia de capitalfixo e no baixo nvel de investimentos, caractersticas que a anlise tradici-onal insiste em ver apenas pelo lado do atraso. Inseridos em contextosfortemente instveis e em mercados com baixo nvel de eficincia, emmuitas regies um dos grandes trunfos de vrios sistemas o baixo nvel decapitalizao e de gastos com insumos industriais. Tal caracterstica reduz adependncia de insumos e servios raramente disponveis nos mercadoslocais a preos e condies compatveis com o nvel de capitalizao dosagricultores, reduz o custo de produo e o risco, elevando, portanto, a

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    335SOCIOLOGIAS

    viabilidade e sustentabilidade dos sistemas. Naturalmente que essa situa-o no esttica, e o grande desafio apoiar a agricultura familiar paraque a mesma possa responder e adequar-se, de forma consistente, smudanas do contexto econmico e institucional.

    A tabela 8 confirma que a renda agropecuria gerada pelos agriculto-res familiares varia sensivelmente de regio para regio, entre os sistemasprodutivos adotados e o grau de capitalizao dos agricultores. No entan-to, a anlise das informaes indica que, em muitos casos, a rendaagropecuria dos agricultores familiares superior ao custo de oportunida-de da mo-de-obra familiar. Mais do que isto, mesmo nos casos em que onvel de renda gerado baixo e insuficiente para elevar o nvel de vida dasfamlias acima do patamar da pobreza e assegurar a reproduo sustenta-da da unidade produtiva, os produtores familiares auferem renda superiorao da populao pobre local.

    O autoconsumo tambm varia intensamente entre os sistemas pro-dutivos e o nvel de capitalizao, mas, mesmo entre os produtores maiscapitalizados da Regio Sul, o consumo da famlia corresponde a quase20% do produto gerado pela unidade produtiva. Em algumas reas doNorte e Nordeste, este percentual consideravelmente mais elevado, re-fletindo no apenas a precariedade dos meios disposio do agricultor,mas tambm, e principalmente, seu isolamento e distncia dos mercados.

    Entre os agricultores familiares descapitalizados so freqentes os casosde renda monetria agrcola negativa. A forte presena de rendas monet-rias externas nesta categoria, representando s vezes at 80% da rendamonetria total da famlia, contra aproximadamente 25% entre os agricul-tores familiares em transio e menos de 5% entre os capitalizados, de-monstra a necessidade de busca de outras rendas para garantir a sobrevi-vncia da famlia. Essas rendas so oriundas principalmente de aposenta-dorias, penses, servios pblicos (servente de escola, professora, motoris-ta) e venda de mo-de-obra em atividades agrcolas. A aposentadoria, prin-

  • 336 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

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    ramop,mipia00,617.67

    ,raca-ed-anaC,mipia,ojief,ohlim

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    00,696.27

    ,seva,odnauG,ohlim,acoidnam

    ,ramop,ojiefairucep

    00,843.51

    ,ramop,sonus,atroH-ed-anaceananab

    raca00,464.91

    Tabela 8. Renda agropecuria dos principais sistemas de produo tpicos da agricultura familiar por regio

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    337SOCIOLOGIAS

    seigeR edsametsiS oudorP

    airuceporgAadneR

    aminM aidM amixM

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    anivobairucePsarutluc+arietiel

    eojief,zorra(siaunalatniuq+)ohlim

    00,870.33 00,609.36

    edanivobairucePsarutluc+etroc

    eojief,zorra(siauna-ed-anac+)ohlimlatniuq+raca

    00,001.8 00,801.63

    anivobairucePsarutluc+arietiel

    eojief,zorra(siaunasarutluc+)ohlim

    ,ajnaral(setnenamrep+)facearieugnires

    latniuq

    00,870.33 00,030.27

    etrocedanivobairucsiaunasarutluc+

    ,)ohlimeojief(,lij(saluctroharobba,arobbaeotnemip,aninem

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    00,202.56

    sarutluc,acoidnaMeojief,zorra(siauna

    +latniuq+)ohlimanivobairuceP

    arietiel

    00,043.11

    continuao

  • 338 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n 10, jul/dez 2003, p. 312-347

    seigeR edsametsiS oudorP

    airuceporgAadneR

    aminM aidM amixM

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    edsarutluC,zorra(aicntsisbuS

    eohlim,ojief)acoidnam

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    edsarutluC,zorra(aicntsisbuS

    eohlim,ojief+)acoidnam

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    edsarutluC,zorra(aicntsisbuS

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    etieLed

    01,078.7 03,549.21

    -sisbuSedsarutluCairuceP+aicnt

    aircedanivoB00,386.4

    ojieFeohlim+ajoS 07,032.3 03,515.92

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    continuao

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    3. Indicaes para a formulao de uma estratgia para odesenvolvimento e fortalecimento da agricultura familiar

    A agricultura familiar respondia por 38,9 % do PIB agrcola do Brasil,mas apenas 16% dos agricultores familiares tinham assistncia tcnica; em1996, 38 % dos mesmos tinham uma rea inferior a 5 ha, 50 % usavamtecnologia manual e apenas 25% usavam trator. Ou seja, havia limitaestanto na disponibilidade de terra como de tecnologia e de financiamento,que impediam um melhor desempenho desse segmento dentro do con-texto da agricultura do pas.

    Para enfrentar essa situao, no possvel continuar com a polticade apagar incndios via assentamentos de reforma agrria e de apoio loca-lizado agricultura familiar, necessria uma srie muito mais ampla ediversa de polticas, que inclui desde o agrcola at educao. No se trataaqui de propor, de forma detalhada, polticas especficas de apoio pro-duo familiar, mas to somente de, com base na anlise das polticasadotadas no passado, recomendar as linhas gerais que podero orientar adefinio de uma estratgia e a formulao de polticas com o objetivo defortalecer e estimular o desenvolvimento da agricultura familiar no Brasil.

    O desempenho da agricultura familiar reflete um conjunto amplo decondicionantes, desde a disponibilidade de recursos, a inserosocioeconmica, a localizao geogrfica, as oportunidades e a conjunturaeconmica, as instituies e valores culturais da famlia, do grupo social eat mesmo do pas. Apesar da importncia desses fatores, pode-se consi-derar, com certo grau de simplificao, que os quatro principaiscondicionantes do desenvolvimento rural so os incentivos que os produ-tores tm para investir e produzir, a disponibilidade de recursos, particu-larmente terras, gua, mo-de-obra, capital e tecnologia, que determinamo potencial de produo, o acesso aos mercados, insumos, informaes eservios que influem de forma decisiva na capacidade efetiva de produo

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    e, finalmente, as instituies, que influenciam as decises dos agentes einclusive sua capacidade, possibilidade e disposio para produzir. Destamaneira, qualquer poltica de desenvolvimento e promoo da agriculturafamiliar deve necessariamente levar em conta a situao desses quatrofatores e sua influncia sobre a dinmica da produo familiar.6

    Essas consideraes iniciais tm o objetivo de mostrar que a promo-o da agricultura familiar no pode ser concebida e enfrentada a partir depolticas e instrumentos isolados como vem ocorrendo no Brasil. preciso,portanto, ter uma viso global do problema e reconhecer que, dada suadimenso, no se trata apenas de integrar organicamente as polticas espe-cficas de apoio agricultura familiar poltica macroeconmica e s pol-ticas setoriais; ao contrrio, trata-se de definir uma estratgia de desenvol-vimento nacional, polticas macroeconmicas e setoriais compatveis coma proposta de estimular um padro de crescimento econmico com eqi-dade social, fortalecer as iniciativas individuais da pequena e mdia em-presa urbana, a agricultura familiar, gerar empregos urbanos e rurais, redu-zir a pobreza, etc.

    necessrio que as chamadas polticas sociais deixem de ser apenascompensatrias como no passado, quando eram concebidas para reduziros efeitos negativos de estratgias e polticas macroeconmicas e setoriaisque no conduziam aos objetivos de desenvolvimento com eqidade. Aabordagem da poltica compensatria equivale a tentar manter o nvel darepresa apenas atravs do controle da vazo de gua, que, no entanto, muito inferior vazo do prprio riacho.

    Independentemente de erros de desenho e implementao dessaspolticas que muitas vezes privilegiaram os efeitos e sintomas e no ascausas reais dos problemas , foroso reconhecer que polticas especfi-cas e localizadas no so eficazes para combater problemas abrangentes.

    6 Por exemplo, poderia ser intil desenhar uma poltica que melhorasse os incentivos (preos reais), sem resolver pontos deestrangulamento na dotao de recursos (terra insuficiente, falta de gua nas regies semi-ridas), problemas de acesso ainsumos bsicos ou mercados eficientes ou ainda problemas institucionais como a falta de titulao da terra ou informaesdeficientes.

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    Se fracassaram no passado quando a disponibilidade de recursos e a capa-cidade de interveno do setor pblico era muito maior do que atualmen-te, no h por que considerar que possam ter xito no presente, quando oEstado dispe de menos recursos e enfrenta talvez maiores presses e de-safios. necessrio, portanto, que a poltica de desenvolvimento nacionale setorial sejam apropriadas e conducentes aos objetivos de desenvolvi-mento da agricultura familiar, criao de emprego, reduo da pobreza,etc. Sem isso, qualquer poltica especfica estar fadada ao fracasso.

    O fortalecimento e desenvolvimento da agricultura familiar requer,pois, a integrao das polticas macroeconmica, agrcola e de desenvolvi-mento rural, de forma a reduzir os atritos e aumentar a convergncia esinergia entre os diversos nveis de interveno do setor pblico. Em rela-o poltica macroeconmica, cabe aqui apenas pontuar que ela incidediretamente sobre os incentivos e a disponibilidade de recursos. Os pre-os reais, o grau de proteo efetiva, a disponibilidade de recursos e ocusto de oportunidade para a utilizao desses recursos so fortementeinfluenciados pelas polticas e preos macroeconmicos. Alm disso, essaspolticas afetam tambm as variveis estruturais como a dinmica da ofertae demanda, a distribuio de renda e a disponibilidade e qualidade dainfra-estrutura.

    Em relao poltica setorial, mesmo correndo o risco de simplificardemasiadamente o problema, pode-se indicar que seus principais objeti-vos deveriam ser dois: (i) assegurar condies gerais favorveis ao desen-volvimento do setor, removendo os pontos de estrangulamento especfi-cos, falhas de mercado, precariedade institucional e contribuindo paraequacionar os problemas decorrentes das particularidades da atividadeagropecuria, tais como risco mais elevado, tecnologia apropriada, desen-volvimento de mercados, informaes, etc. A vantagem desta orientao no ser excludente, pois, ao deslocar seu foco de interveno do nvelmicro e de cultivos especficos para os condicionantes gerais particular-

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    mente os quatro fatores bsicos mencionados acima , o conjunto dosprodutores pode beneficiar-se, ainda que de forma diferenciada. Funda-mentalmente a poltica agrcola deve melhorar, para o conjunto dos pro-dutores e no apenas para alguns, os incentivos, o acesso, a disponibilida-de e as instituies; (ii) promover o fortalecimento e desenvolvimento daagricultura familiar como eixo central de uma estratgia de reduo dapobreza urbana e rural, geral de empregos rurais e urbanos, distribuiode renda e fortalecimento das economias regionais e do mercado interno.A eleio desta prioridade requer a mobilizao de um conjunto de instru-mentos que contribua para criar condies bsicas e um contexto favor-vel ao desenvolvimento da agricultura familiar, assim como para removerobstculos particulares que vm dificultando este processo.

    Em relao propriamente s polticas agrcolas, preciso reconhecerque, no passado, seus diversos instrumentos foram manejados em funode objetivos compensatrios, direcionados a um produto ou grupo de pro-dutos. Dentro do marco conceitual que estamos propondo, preciso des-tacar que polticas que afetam todo o setor devem ser manejados paracriar condies gerais favorveis para o setor agropecurio, e no para umou outro produto, um ou outro produtor. No contexto de uma polticaagropecuria consistente e conducente ao desenvolvimento setorial, o apoioparticular a determinados produtos ou grupos de produtores deve plas-mar-se em programas especficos, como o Pronaf, e no no manejo dosinstrumentos gerais da poltica agrcola. A utilizao desses instrumentosem benefcio de um ou outro produto ou grupo de produtor, mesmo quandobem sucedido, termina por introduzir distores que, em geral, afetamnegativamente a grande maioria dos demais produtores que ficaram forado esquema, em particular os familiares que tm mais dificuldade paraacessar as polticas oficiais. A prpria experincia brasileira est cheia deexemplos de como os interesses da grande maioria dos produtores afeta-da negativamente pela opo de defender a renda ou a situao de umgrupo pequeno de agricultores.

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    As atuais propostas de poltica agrcola j esto incorporando estaconcepo, que representa uma mudana considervel em relao ao pa-dro de interveno do passado. As intervenes localizadas em favor deprodutos devero ser substitudas por polticas horizontais que beneficiamo conjunto do setor e por polticas especficas em favor dos setores maisdebilitados como os agricultores familiares e assentados.

    Nesse sentido, as polticas de financiamento com juros ou condiesespeciais para este ou aquele produto devero dar lugar a um esquema definanciamento mais neutro entre produtos e com possibilidade de alcanarum maior nmero de produtores; dentro dessa concepo, no lugar desubsidiar as taxas de juros e tentar assegurar, atravs de regulamentaes emedidas administrativas, o acesso dos produtores familiares e pequenosagricultores aos recursos, poderia ser mais eficaz atuar no sentido de anu-lar as conhecidas desvantagens que estes produtores enfrentam para obterfinanciamento. Vrias aes poderiam ser realizadas neste sentido, desdecobrir os custos de transao mais elevados dos produtores familiares; de-senvolver fundos de aval para reduzir o risco e resolver o problema dasgarantias; desburocratizar as regulamentaes para o funcionamento decaixas de poupana e para o crdito coletivo.

    As polticas de sustentao de alguns preos devem ser substitudas,ou complementadas, por polticas de preos para facilitar o acesso aosmercados e para desenvolver os mercados atravs de gerao e difuso deinformaes, desenvolvimento de infra-estrutura de comercializao, pro-moo da descentralizao das agroindstrias, renovao da legislao sobrecomercializao, democratizao do sistema de transportes. Especial n-fase dever ser dada ao desenvolvimento de infra-estrutura, ao refinamen-to do zoneamento agropecurio como instrumento para orientar a alocaomais eficiente e sustentvel dos recursos, ao desenvolvimento de tecnologiasagropecurias e modernizao do marco legal que condiciona o desen-volvimento do setor.

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    Tambm so particularmente relevantes as polticas de educao ru-ral e de desenvolvimento agroindustrial. Em relao a esta ltima, cabenotar que o Brasil no conta com uma institucionalidade adequada paraesse fim, j que o corte tradicional por setores retalha a agroindstria entremuitos ministrios e instituies. Apesar disso, o fortalecimento daagroindstria e sua descentralizao so fundamentais para o desenvolvi-mento da agricultura e do chamado mundo rural, assim como para a gera-o de empregos rurais no-agrcola.

    necessrio reforar e melhorar os resultados das polticas agrrias,cuja implementao deve apoiar-se em diagnsticos regionais e instru-mentos de planejamento participativo. Em um pas como o Brasil, im-possvel ignorar as diferenas regionais e especificidades locais. de fun-damental importncia conhecer as potencialidades e o desenvolvimentolocal, buscando solues locais concertadas com os agentes relevantes.Estes diagnsticos evidenciam a enorme heterogeneidade de problemas ea enorme variao de polticas a serem aplicadas. Em algumas partes, oproblema a terra, mas em outros, a educao, tecnologia, gua, institui-es, etc. ocupam um lugar predominante.

    Esses diagnsticos permitem a definio de polticas diferenciadasem favor dos agricultores familiares. Em primeiro lugar, preciso indicarque as polticas devem ser desenhadas a partir de diagnsticos precisossobre a situao da agricultura familiar, identificando o meio fsico, os prin-cipais sistemas de produo, a potencialidade da regio e dos sistemas deproduo dominantes, a disponibidade de infra-estrutura, as instituieslocais relevantes para a agricultura familiar, para os pontos de estrangula-mentos econmicos, polticos e institucionais, alm de informaes sobrea tipologia dos produtores.

    A partir desses diagnsticos que podem ser preparados com o auxliode alguns dos mtodos de elaborao rpida de diagnsticos, a polticadiferenciada deve ter como objetivo a superao dos pontos de estrangu-

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    lamento identificados e a criao de condies que possibilitem agricul-tura familiar superar suas eventuais debilidades, qualificando-as assim paraganhar competitividade e enfrentar o mercado, sem restries. Portanto, apoltica diferenciada est orientada para a emancipao dos seusbeneficirios e no deve ser desenhada como poltica compensatria que,em geral, no remove as deficincias estruturais e tende a ser necessriaindefinidamente.

    Cumpre fortalecer os espaos institucionais de negociao como, porexemplo, os diferentes conselhos municipais, em particular o conselhomunicipal de desenvolvimento rural, para garantir a participao efetivadas comunidades locais na definio de prioridades para o desenvolvi-mento municipal ou pode ser necessrio, tambm, criar novos espaos denegociao ou de articulao, a partir da percepo que problemas co-muns a vrios municpios de uma mesma microrregio podem ser negoci-ados e solucionados mais facilmente de forma conjunta. Neste sentido, oprprio Imposto Territorial Rural (ITR) poderia passar esfera municipal.

    Um aspecto importante a ser ressaltado que no possvel pensarno fortalecimento da agricultura familiar e no desenvolvimento rural comoilhas sociais em meio a um mar de grandes unidades monocultoras, ge-radoras de poucos postos de trabalho, concentradora de renda e riqueza,etc. A experincia dos pases avanados, nos quais a agricultura familiar forte, demonstra que seu desenvolvimento requer uma certa concentra-o em espaos geogrficos bem definidos. Aqui mesmo no Brasil, a agri-cultura familiar forte onde dominante, ou, pelo menos, expressiva.Poder-se-ia inverter e afirmar que ela dominante porque forte, e aca-baramos na discusso do ovo e da galinha.

    A concentrao geogrfica de agricultores familiares no importan-te apenas para o desenvolvimento das associaes e dos elementos cultu-rais solidariedade comunitria, troca de favores, relaes familiares, etc. que so caractersticos s comunidades nas quais a presena desses agri-

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    cultores numericamente relevante. O desenvolvimento da agriculturafamiliar moderna requer o apoio de um conjunto de servios tcnicosespecializados, alm de equipamentos apropriados sua escala e sistemasde produo. Dificilmente esses servios se desenvolvem de forma eficien-te com base em meia dzia de clientes, espalhados pelo municpio oumicrorregio; como a prpria experincia recente dos assentamentos noBrasil vem demonstrando, os projetos maiores vm provocando impactospositivos na comunidade local, desencadeando um conjunto de iniciativasque se reforam e se alimentam, de tal maneira que o saldo final tem sidomuito maior e mais abrangente do que o emprego e renda gerados nointerior dos assentamentos. Em resumo, a existncia de uma massa crticamnima de agricultores familiares coloca-se como condio fundamentalpara o desenvolvimento das formas associativas, dos servios de apoio ne-cessrios ao seu fortalecimento e para produzir sinergia com outras inici-ativas, funcionando como um estopim para o desenvolvimento local, sem oque, dificilmente o prprio crescimento da agricultura familiar sustentvel.

    Finalmente, guisa de concluso, devemos esclarecer que a necessi-dade desta massa crtica no significa que a agricultura familiar no possaconviver com outras formas de organizao da produo. Ao contrrio, aexperincia dos pases avanados indica que os agricultores familiares soexcelentes vizinhos e que sua presena contribui tambm para o desen-volvimento eficiente das empresas capitalistas e unidades patronais. O quese quer dizer que o desenvolvimento e fortalecimento da agriculturafamiliar deve ter como ponto de partida uma massa crtica de unidadesfamiliares concentradas geograficamente.

    Referncias

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    Resumo

    O trabalho discute as razes pelas quais se considera ainda necessrio noBrasil a implementao de polticas agrcolas e agrrias voltadas para pequenosprodutores familiares. So criticadas as vises predominantes, comuns tanto es-querda quanto direita, baseadas em falsas analogias com o caso dos pases de-senvolvidos, as quais consideram que no h mais espao no pas para polticas dotipo proposto. A importncia da produo familiar enfatizada tambm atravsde uma breve apresentao dos dados do censo agrcola do IBGE. Finalmente, naseo conclusiva do trabalho so apresentadas algumas propostas de desenvolvi-mento rural sustentvel baseado na produo familiar.

    Palavras-chave: agricultura familiar, desenvolvimento sustentvel, equidade.