agamben_notas sobre o gesto

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agamben.

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  • Conselho EditorialGilson Iannini (editor/fi losofi a - [email protected])Elvina Maria Caetano Pereira (teatro)Flvia Lanna (msica)Gilson Motta (teatro)Guilherme Paoliello (msica)Mrio Nogueira (fi losofi a)Romero Alves Freitas (fi losofi a)

    Conselho ConsultivoAntnio Arajo (USP)Ernani Chaves (UFPA)Fernando Iazzetta (USP/PUC-SP)Fernando Mencarelli (UFMG)Guido Antnio de Almeida (UFRJ) Ingrid Koudela (USP) Jamari Oliveira (UFBA) Jeanne-Marie Gagnebin (UNICAMP) Joo Adolfo Hansen (USP) Luiz Fernando Ramos (USP) Olmpio Pimenta (UFOP) Regina Mrcia Simo Santos (UNIRIO) Ricardo Barbosa (UERJ) Rodrigo Duarte (UFMG) Rosangela Pereira Tugny (UFMG)Tnia Alice Feix (UFOP)Vladimir Safatle (USP)

    Reviso Andra Sirinal Werkema ([email protected]) Juliana Arajo ([email protected])

    Projeto Grfi co Anna Paula Iannini Thiago Maioli

    Editorao Anna Paula Iannini

    Universidade Federal de Ouro PretoProf. Dr. Joo Luiz MartinsReitor

    Prof. Dr. Antenor Rodrigues Barbosa JuniorVice-Reitor

    Prof. Dr. Tanus Jorge NagemPr-reitor de Pesquisa e Ps-Graduao

    Instituto de Filosofi a, Artes e CulturaProf. Dra. Guiomar de GrammontDiretora

    Prof. Frederick Magalhes HunzickerChefe do Departamento de Artes

    Prof.Dr. Guilherme PaolielloChefe do Departamento de Msica

    Prof. Dr. Olmpio Pimenta Chefe de Departamento de Filosofia

    Prof. Dr. Douglas Garcia Alves Jnior Coordenador do Mestrado em Esttica e Filosofi a das Artes

    Neide Nativa Bibliotecria

    Rua Coronel Alves, 55, Centro.CEP 35400-000, Ouro Preto / MG Brasil

    Tessitura Editora Ltda.Av. Getulio Vargas, 874, sl. 1503, Belo Horizonte, MG, CEP 30.112-020www.tessituraeditora.com.br [email protected]

  • ARTEFILOSOFIA, OURO PRETO, N.4, P.1-208, JAN.2008

    OURO PRETO . MINAS GERAIS . BRASIL

  • Artefi losofi a / Instituto de Filosofi a, Artes e Cultura / Universidade Federal de Ouro Preto/IFAC, n.4, (jan.2008) - . - Ouro Preto: IFAC, 2008

    Semestral. ISSN:1809-8274 1. Filosofi a Peridicos. 2. Msica Peridicos. 3 Teatro

    Peridicos. 4 Esttica Peridicos. 5 Arte Peridicos. I. Universidade Federal de Ouro Preto. II. Instituto de Filosofi a, Artes e Cultura.

    ARTEFILOSOFIA A revista Artefi losofi a pretende promover o intercmbio de trabalhos acadmicos e de ensaios de pesquisadores brasileiros e estrangeiros de alto nvel nas reas de Filosofi a (principalmente em Esttica e suas interfaces) e Artes (com prioridade para Teatro e Msica). Os artigos submetidos sero apreciados por dois pareceristas. A revista tem periodicidade semestral e publicada pelo Insituto de Filosofi a, Artes e Cultura, com o apoio da Universidade Federal de Ouro Preto.

    Solicita-se permuta / Exchange desired

    artefi losofi [email protected]_artefi losofi [email protected]

    As opinies e idias veiculadas em textos assinadosso de inteira responsabilidade de seus autores.

    Todos os direitos reservados.

    Revista Artefi losofi aInstituto de Filosofi a, Artes e Cultura (IFAC-UFOP)Rua Coronel Alves, 55, Centro. CEP 35400-000, Ouro Preto MG BrasilTel (31) 3559 1726 Fax (31) 3559 1732artefi losofi [email protected]_artefi losofi [email protected]

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    Sumrio

    EditorialO vento l fora, e mais nada ................................................................ 07

    Notas sobre o gestoGiorgio Agamben .................................................................................... 09

    Convite

    A inconfi dncia da arte(Do sublime crtico: por uma melancolia afi rmativa da arte)Jean Maurel .......................................................................................... 17

    Eros e Filosofi a

    A questo do Eros na obra de BenjaminJeanne Marie Gagnebin .......................................................................... 39

    Eros criativo: cultura e educao ertica nos textos do estudante Walter BenjaminErnani Chaves ...................................................................................... 45

    Pequena incurso sobre imagens femininas nos escritos benjaminianos

    Carla Milani Damio ............................................................................ 54

    Repetio . Fantasia

    A repetio e o instante em Kierkegaard: um entrelaamento de conceitosMarcio Gimenes de Paula ....................................................................... 63

    Notas sobre o Conceito de Fantasia nas Prelees sobre a Esttica de HegelAna Resende ........................................................................................ 75

    Filosofi a da Msica

    O infantil e o selvagem na Filosofi a da nova msicaJess da Costa Rocha ............................................................................. 83

    O problema da forma na msica contemporneaEduardo Socha ...................................................................................... 95

    Cultura popular, msica popular, msica de entretenimento: o que isso, a MPB?Henry Burnett .................................................................................... 105

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    Filosofi a da Literatura

    O efeito de OteloPedro Sssekind .................................................................................. 127

    Fico e/ou realidade? uma questo para o narrador contemporneoBernardo Barros Coelho de Oliveira ....................................................... 136

    Escrever o desaparecimento de si(em torno de Le Coupable de Georges Bataille)Osvaldo Fontes Filho ........................................................................... 148

    Ironia e performance no Primeiro Romantismo Alemo.Os casos de Tieck e Friedrich SchlegelWilma Patricia Marzari Dinardo Maas .................................................. 166

    Kafka: msica e declnioAntonia Soulez ................................................................................... 175

    Resenha

    Lembrar escrever esquecer, de Jeanne Marie Gagnebinpor Maria Cristina Franco Ferraz .......................................................... 189

    Artefi nal

    Oratrio do esmolerMarcelo Dolabela ................................................................................. 195

    Resumos /Abstracts ..................................................................... 201

    Normas para publicao ............................................................ 208

  • 7Editorial

    O vento l fora, e mais nada

    Quando a idade apagar toda a atual grandeza,Tu fi cars, em meio s dores dos demais,

    Amiga, a redizer o dstico imortal:A beleza a verdade, a verdade a beleza tudo o que h para saber, e nada mais.(John Keats, Ode sobre uma urna grega)1

    Quando se evoca o conhecido verso que estabelece a equivalncia da Vnus de Milo com o binmio de Newton, costuma-se tomar a beleza da primeira como certa para toda a gente, e, a do binmio, para uns pou-cos. Bertrand Russell pareceu ter sido um destes poucos, ao qualifi car a suprema beleza da matemtica de fria e austera, como a de uma es-cultura. Porm, a equao potica de lvaro de Campos acena para um gesto fundamentalmente platnico em ndole: dispor a reciprocidade ontolgica da beleza e da verdade. Tal reciprocidade sem resto, adensada nos versos fi nais da ode de Keats aqui em epgrafe, est longe de agradar a gregos, troianos e alemes; didatistas, classicistas e romnticos. T. S. Eliot, por exemplo, bradou contra o que lhe pareceu uma mancha a macular um belo poema. De um ou de outro modo, o referido motivo recor-rentemente tematizado na literatura especializada.

    Recentemente, a fi losofi a brasileira foi surpreendida por uma contenda que ops, de um lado, a Sociedade Brasileira de Lgica e, de outro, a Associao Nacional de Ps-Graduao em Filosofi a (ANPOF). A matria em pauta dizia respeito representatividade da comunidade fi -losfi ca junto aos rgos de fomento, disputa que teria efeitos imedia-tos na poltica de gesto da rea. Os lgicos pleiteavam ocupar metade dos assentos do comit de assessoramento da rea de fi losofi a junto ao CNPq. Em resposta, a ANPOF defendia que nenhuma subrea deve-ria gozar de privilgios especfi cos. Seria desnecessrio dizer como a revista ARTEFILOSOFIA por sua natureza plural, e no apenas por sua vinculao esttica se posiciona no debate.

    Mas o que a referida contenda nos ensina, se quisermos dar um passo alm da circunstancial crnica dos fatos recentes? que a fi lo-sofi a contempornea, e no apenas a brasileira, ainda no est altura do empreendimento potico de Pessoa. Quer dizer, ela ainda no foi capaz de inventar dispositivos de pensamento aptos a acolher e a tornar pensvel o que est em jogo ali, do mesmo modo como a fi losofi a de

    1 Trad. Augusto de Campos, Linguaviagem. So Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 153.

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    Aristteles precisou ombrear com Sfocles, Nietzsche com Wagner, Adorno com Schnberg ou Heidegger com Hlderlin. por este motivo que Alain Badiou tem razo em afi rmar que uma tarefa para a fi losofi a contempornea a de ser capaz de pensar altura de Pessoa.

    Neste contexto, peo licena para girar ao avesso o referido verso de Pessoa. Sem perder de vista um certo regime de co-responsabili-dade entre o verdadeiro e o belo, talvez fosse lcito efetuar um sutil deslocamento de perspectiva, a fi m de acentuar outro aspecto da equa-o. Afi nal, se certo que o binmio de Newton to belo quanto a Vnus de Milo, tambm certo que a Vnus to bela quanto o binmio.

    ***

    Em seu quarto nmero, a revista ARTEFILOSOFIA comemora dois anos de existncia, publicando autores conhecidos internacional-mente, ao lado de promissores autores brasileiros. Com exceo dos tex-tos de Giorgio Agamben e de Antonia Soulez, os resumos dos demais artigos esto publicados ao fi nal do volume. Convido o leitor a percorr-los, antes de se decidir por onde iniciar sua leitura do volume.

    A qualidade de uma revista acadmica tem como pano de fundo o trabalho silencioso dos diversos especialistas que ajudam a avaliar os trabalhos submetidos. Agradecemos a todos que emitiram seu jul-gamento, seja na qualidade de membros dos conselhos consultivo e editorial, seja como pareceristas ad-hoc. Nomeadamente: Jeanne-Marie Gagnebin (UNICAMP); Noeli Ramne (PUC-RJ); Cintia Vieira (FU-MEC); Teodoro Renn Assuno (UFMG); Ricardo Barbosa (UERJ); Ernani Chaves (UFPA); Rogrio Lopes (FAJE); Vladimir Safatle (USP); Eduardo Soares (PUC-MG). Da UFOP, agradecemos especialmente a: Tania Alice Feix; Guiomar de Grammont; Imaculada Kangussu; Jos Luiz Furtado; Douglas Garcia; Olmpio Pimenta; Pedro Sssekind; alm dos membros do conselho editorial.

    Gilson IanniniDezembro de 2007

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    1 Publicado originalmente em: AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza Fine. Note sulla politica. Torino: Bollati Boringhieri, 1996. p. 45-53. Traduo autorizada pelo autor.

    * Professor de fi losofi a teortica na IUAV, em Veneza. Publicou, entre tantos: Homo Sacer (Editora UFMG), Linguagem e morte (Editora UFMG).

    Notas sobre o gesto1Giorgio Agamben *

    1. No fi m do sculo XIX, a burguesia ocidental j tinha defi nitivamente perdido os seus gestos.

    Em 1886, Gilles de La Tourette, ancien interne des Hospitaux de Paris et de la Salpetrire, publicou pela Dalahaye et Lecrosnier os tudes cliniques et physiologiques sur la marche. Era a primeira vez que um dos gestos humanos mais comuns era analisado com mtodos estritamente cien-tfi cos. Cinqenta e trs anos antes, quando a boa conscincia burguesa estava ainda intacta, o programa de uma patologia geral da vida social anunciado por Balzac tinha produzido somente cinqenta folhetins, soma de toda forma decepcionante, da Thorie de la dmarche. Nada revela a distncia, no apenas temporal, que separa as duas tentativas quanto a descrio que Gilles de la Tourette faz de um passo humano. Aquilo que Balzac via apenas como a expresso de um carter moral, aqui visto sob um olhar que j uma profecia do cinematgrafo:

    Enquanto a perna esquerda serve de ponto de apoio, o p direito se eleva da terra sofrendo um movimento de rotao que vai do calcanhar extremidade dos artelhos, que deixam o solo por ltimo; a perna inteira levada adiante e o p vem a tocar o solo pelo calcanhar. Nes-te mesmo momento, o p esquerdo, que terminou sua revoluo e se apia somente sobre as pontas dos ps, se eleva por sua vez do solo; a perna esquerda levada para frente, passa ao lado da perna direita, da qual tende a aproximar-se, ultrapassa-a e o p esquerdo vai tocar o solo com o calcanhar enquanto o direito acaba sua revoluo.

    Somente um olho dotado com uma viso deste gnero podia levar corretamente adiante aquele mtodo das pegadas, de cujo aper-feioamento Gilles de la Tourette com razo se orgulha. Um rolo de papel branco de sete a oito metros de comprimento por cinqenta centmetros de largura pregado ao solo e dividido ao meio, no sentido do comprimento, por uma linha feita a lpis. As plantas dos ps do sujeito do experimento so polvilhadas ento com dixido de ferro em p, que as tinge com uma bela cor vermelha de ferru-gem. As pegadas que o paciente deixa caminhando ao longo da linha diretriz permitem uma perfeita medio da caminhada segundo di-versos parmetros (comprimento do passo, desvio lateral, ngulo de inclinao etc.).

    Observando-se as reprodues das pegadas publicadas por Gil-les de la Tourette impossvel no pensar nas sries instantneas que exatamente naqueles anos Muybridge realiza na Universidade da Pensilvnia, servindo-se de uma bateria de 24 objetivos fotogrfi cos.

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    O homem que anda na velocidade ordinria, o homem que corre carregando um fuzil, a mulher que anda e recolhe um cntaro, a mulher que anda e envia um beijo so os gmeos felizes e visveis das criaturas desconhecidas e sofredoras que deixaram estes traos.

    Um ano antes dos estudos sobre o andar, tinha sido publica-do o tude sur une affection nerveuse caracterise par de lincoordination motrice accompagne decholalie et de coprolalie, que devia fi xar o qua-dro clnico daquela que foi ento chamada sndrome de Gilles de la Tourette. Aqui, o mesmo distanciar do gesto mais quotidiano, que tinha permitido o mtodo das pegadas, aplica-se descrio de uma impressionante proliferao de tiques, de surtos espasmdicos e ma-neirismos, que no podem ser defi nidos seno como uma catstrofe generalizada da esfera da gestualidade. O paciente no mais capaz nem de comear nem de fi nalizar os gestos mais simples; se consegue comear o movimento, este interrompido e deslocado por aba-los privados de coordenao e por frmitos nos quais parece que a musculatura dana (chorea) de maneira totalmente independente de uma fi nalidade motora. O equivalente desta desordem na esfera do caminhar descrito exemplarmente por Charcot nas clebres Leons du mardi:

    Aquele que parte, com o corpo inclinado para frente, com os membros inferiores enrijecidos, em extenso colados, por assim dizer, um ao outro, apoiando-se sobre as pon-tas dos ps; estes deslizam de algum modo sobre o solo, e a progresso efetua-se atravs de uma espcie de rpida trepidao... Quando o sujeito assim lanado para fren-te, parece que ele a cada instante ameaa cair para fren-te; em todo caso, lhe quase impossvel parar a si mesmo. -lhe freqentemente necessrio segurar-se num corpo vizinho. Dir-se-ia um autmato movido por uma mola, e, nestes movimentos de progresso rgidos, espasmdicos, como convulsivos, no h nada que lembre a fl exibilidade do andar... Finalmente, depois de vrias tentativas, aquele partiu e, conforme o mecanismo indicado, desliza sobre o solo mais do que caminha, com as pernas enrijecidas ou, pelo menos, que se fl exionam com difi culdade, enquanto os passos so, de alguma maneira, substitudos por diversas trepidaes bruscas.

    O mais extraordinrio que estas desordens, depois de terem sido observadas em milhares de casos desde 1885, praticamente deixa-ram de ser registradas nos primeiros anos do sculo XX, at o dia em que, no inverno de 1971, Oliver Sacks, caminhando nas ruas de Nova York, creu poder notar trs casos de tourettismo no espao de alguns minutos. Uma das hipteses que se pode sustentar para explicar este desaparecimento que, neste meio tempo, ataxia, tiques e distonias haviam se tornado a norma e que, a partir de certo momento, todos tinham perdido o controle dos seus gestos, e caminhavam e gesticula-vam freneticamente. Em todo caso, esta a impresso que se tem assis-tindo os fi lmes que Marey e Lumire comearam a rodar precisamente naqueles anos.

  • 112. No cinema, uma sociedade que perdeu seus gestos procura reapropriar-se daquilo que perdeu e, ao mesmo tempo, registrar a perda.

    Uma poca que perdeu seus gestos , por isso mesmo, obcecada por estes; para homens, dos quais toda natureza foi subtrada, cada gesto torna-se um destino. E quanto mais os gestos perdiam a sua desen-voltura sob a ao de potncias invisveis, tanto mais a vida tornava-se indecifrvel. nesta fase que a burguesia, que poucos decnios antes ainda estava solidamente em posse dos seus smbolos, vitimada pela interioridade e se consigna psicologia.

    Nietzsche o ponto em que, na cultura europia, esta tenso polar, de um lado, para o esfacelamento e a perda do gesto e, de outro, para a sua transfi gurao em um fato, atinge o seu cume. Uma vez que somente como um gesto no qual potncia e ato, natureza e maneira, contingncia e necessidade tornam-se indiscernveis (em ltima an-lise, portanto, unicamente como teatro) inteligvel o pensamento do eterno retorno. Assim falava Zaratustra o bal de uma humanidade que perdeu seus gestos. E quando a poca disso se apercebeu, ento (muito tarde!) comeou a tentativa precipitada de recuperar in extremis os gestos perdidos. A dana de Isadora e de Diaghilev, o romance de Proust, a grande poesia do Jugendstil de Pascoli a Rilke e, enfi m, no modo mais exemplar, o cinema mudo traam o crculo mgico no qual a humanidade procurou pela ltima vez evocar aquilo que lhe estava escapando das mos para sempre.

    Nos mesmos anos, Aby Warburg inaugura aquelas pesquisas que somente a miopia de uma histria da arte psicologizante pde defi nir como cincia da imagem, j que, na verdade, tinham no seu centro o gesto como cristal de memria histrica, o seu enrijecer-se num des-tino e a tentativa incansvel dos artistas e dos fi lsofos (para Warburg, no limite da loucura) para deste alforri-lo atravs de uma polariza-o dinmica. Como essas pesquisas atuavam no domnio da imagem, creu-se que a imagem fosse tambm o seu objeto. Ao contrrio, War-burg transformou a imagem (que ainda para Jung fornecer o modelo da esfera metahistrica dos arqutipos) num elemento decididamente histrico e dinmico. Nesse sentido, o atlas Mnemosyne, que ele deixou incompleto, com suas cerca de mil fotografi as, no um imvel reper-trio de imagens, mas uma representao em movimento virtual dos gestos da humanidade ocidental, da Grcia clssica ao fascismo (isto , algo que mais prximo a De Jorio do que a Panofsky); no interior de cada seo, cada uma das imagens considerada mais como fotogramas de um fi lme do que como realidades autnomas (ao menos no mesmo sentido em que Benjamin teve uma vez que comparar a imagem dia-ltica quelas cadernetas, precursoras do cinematgrafo, que, folhadas rapidamente, produzem a impresso do movimento).

    3. O elemento do cinema o gesto e no a imagem.

    Gilles Deleuze mostrou que o cinema apaga a falaciosa distino psicolgica entre imagem como realidade psquica e o movimento como realidade fsica. As imagens cinematogrfi cas no so nem poses eternelles (como as formas do mundo clssico), nem coupes immobiles

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  • 12do movimento, mas coupes mobiles, imagens mesmas em movimento, que Deleuze chama images-mouvement. preciso estender a anlise de Deleuze e mostrar que ela concerne, de maneira geral, ao estatuto da imagem na modernidade. Mas isso signifi ca que a rigidez mtica da imagem foi aqui despedaada, e que no de imagem se deveria propriamente falar, mas de gestos. De fato, toda imagem animada por uma polaridade antinmica: de um lado, ela a reifi cao e a anulao de um gesto ( a imago como mscara de cera do morto ou como smbolo), do outro, ela conserva-lhe intacta a dynamis (como nos instantes de Muybridge ou em qualquer fotografi a esportiva). A primeira corresponde lembrana de que se apodera a memria voluntria, a segunda imagem que lampeja na epifania da memria involuntria. E, enquanto a primeira vive num mgico isolamento, a segunda envia sempre para alm de si mesma, para um todo do qual faz parte. Mesmo a Monalisa, mesmo Las Meninas podem ser vistas no como formas imveis e eternas, mas como fragmentos de um gesto ou de fotogramas de um fi lme perdido, somente no qual read-quiririam o seu verdadeiro sentido. Pois em toda imagem est sempre em ao uma espcie de ligatio, um poder paralisante que preciso desencantar, e como se de toda histria da arte se elevasse um mudo chamado para a liberao da imagem no gesto. aquilo que na Grcia era expresso pelas lendas sobre as esttuas que rompem os entraves que lhes aprisionam e comeam a se mover; mas tambm a inteno que a fi losofi a agrega idia, que no , de fato, segundo a interpretao comum, um arqutipo imvel, mas muito mais uma constelao na qual os fenmenos se compem num gesto.

    O cinema reconduz as imagens para a ptria do gesto. Segundo a bela defi nio implcita em Traum und Nacht de Beckett, o cinema o sonho de um gesto. Introduzir neste sonho o elemento do despertar a tarefa do diretor.

    4. Uma vez que tem o seu centro no gesto e no na imagem, o cinema pertence essencialmente ordem da tica e da poltica (e no simplesmente quela da esttica).

    O que o gesto? Uma observao de Varro contm uma indicao preciosa. Ele inscreve o gesto na esfera da ao, mas o distingue clara-mente do agir (agere) e do fazer (facere).

    De fato, pode-se fazer algo e no agir, como o poeta que faz um drama, mas no o age [agere no sentido de recitar uma parte]: ao contrrio, o ator age o drama, mas no o faz. Analogamente o drama feito [fi t] pelo poeta, mas no agido [agitur]; pelo ator agido, mas no feito. Por ou-tro lado, o imperator [o magistrado investido com o poder supremo], em relao ao qual se usa a expresso res gerere [cumprir algo, no sentido de apreend-la em si, assumir-lhe a inteira responsabilidade], neste nem faz, nem age, mas gerit, isto , suporta [sustinet]. (De lingua latina, VI, VIII, 77.)

    O que caracteriza o gesto que, nele, no se produz, nem se age, mas se assume e suporta. Isto , o gesto abre a esfera do ethos como es-

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  • 13fera mais prpria do homem. Mas de que modo uma ao assumida e suportada? De que modo uma res torna-se res gesta e um simples fato, um evento? A distino varroniana entre facere e agere deriva, em ltima anlise, de Aristteles. Numa clebre passagem da Etica nicomachea, ele os ope deste modo: O gnero do agir [da praxis] diferente daquele do fazer [da poiesis]. O fi m do fazer , de fato, outro que o prprio fazer; o fi m da prxis no poderia, ao contrrio, ser outro: agir bem , de fato, em si mesmo o fi m (VI, 1140b). Nova , por outro lado, a identifi cao, ao lado destas, de um terceiro gnero da ao: se o fazer um meio em vista de um fi m e a prxis um fi m sem meios, o gesto rompe a falsa alternativa entre fi ns e meios que paralisa a moral e apre-senta meios que, como tais, se subtraem ao mbito da medialidade, sem por isso tornarem-se fi ns.

    Para a compreenso do gesto nada , por isso, mais enganador do que se representar uma esfera dos meios dirigidos a um fi m (por exemplo, o andar, como meio de deslocar o corpo do ponto A ao ponto B) e, portanto, distinta desta e a esta superior, uma esfera do gesto como movimento que tem em si mesmo o seu fi m (por exem-plo, a dana como dimenso esttica). Uma fi nalidade sem meios to abstrada de uma medialidade que tem sentido somente em relao a um fi m. Se a dana gesto, porque, ao contrrio, esta somente o suportar e a exibio do carter medial dos movimentos corporais. O gesto a exibio de uma medialidade, o tornar visvel um meio como tal. Este faz aparecer o ser-num-meio do homem e, deste modo, abre para ele a dimenso tica. Assim como, num fi lme pornogrfi co, uma pessoa apreendida no ato de cumprir um gesto que simplesmente um meio dirigido ao fi m de procurar dar prazer aos outros (ou a si mesma), pelo nico fato de ser fotografada e exibida na sua prpria medialidade, suspensa desta e pode tornar-se, para os espectadores, meio de um novo prazer (que seria de outro modo incompreensvel): ou como, na mmica, os gestos dirigidos aos fi ns mais familiares so exibidos como tais e, por isso, mantidos suspensos entre le dsir et laccomplissement, la perptration et son souvenir, naquilo que Mallarm chama um milieu pur; assim, no gesto, a esfera no de um fi m em si, mas de uma medialidade pura e sem fi m que se comunica aos homens.

    Somente desta maneira a obscura expresso kantiana de fi na-lidade sem fi m adquire um signifi cado concreto. Ela , num meio, aquela potncia do gesto que o interrompe no seu prprio ser-meio e apenas assim o exibe, faz de uma res uma res gesta. Do mesmo modo, compreendendo-se por palavra o meio da comunicao, mostrar uma palavra no signifi ca dispor de um plano mais elevado (uma metalin-guagem, esta mesma incomunicvel no interior do primeiro nvel), a partir do qual se faz dela objeto da comunicao, mas exp-la sem nenhuma transcendncia na sua prpria medialidade, no seu prprio ser meio. O gesto , neste sentido, comunicao de uma comunica-bilidade. Este no tem propriamente nada a dizer, porque aquilo que mostra o ser-na-linguagem do homem como pura medialidade. Mas, assim como o ser-na-linguagem no algo que possa ser dito em proposies, o gesto , na sua essncia, sempre gesto de no se en-tender na linguagem, sempre gag no signifi cado prprio do termo, que indica, antes de tudo, algo que se coloca na boca para impedir a

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  • 14palavra, e tambm a improvisao do ator para superar uma falha de memria ou uma impossibilidade de falar. Daqui no somente a pro-ximidade entre gesto e fi losofi a, mas tambm entre fi losofi a e cinema. O mutismo essencial do cinema (que no tem nada a ver com a presena ou ausncia de uma banda-sonora) , como o mutismo da fi -losofi a, exposio do ser-na-linguagem do homem: gestualidade pura. A defi nio wittgensteiniana do mstico, como mostrar-se daquilo que no pode ser dito, ao p da letra uma defi nio do gag. E todo gran-de texto fi losfi co o gag que exibe a prpria linguagem, o prprio ser-na-linguagem como uma gigantesca falha de memria, como um incurvel defeito de palavra.

    5. A poltica a esfera dos puros meios, isto , da absoluta e integral gestualidade dos homens.

    Traduo. Vincius Nicastro Honesko Reviso. Fernando L. Nicastro Honesko

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