agamben. entrevista por vladimir safatle

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  • 25/3/2014 Folha de S.Paulo - A poltica da profanao - 18/09/2005

    http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200505.htm 1/6

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    So Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005

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    A poltica da profanao

    O filsofo italiano Giorgio Agamben diz que a polticaexterna norte-americana o exemplo maior do Estado

    contemporneo - uma mquina que produz a desordem e

    ganha legitimidade ao administr-la

    VLADIMIR SAFATLEESPECIAL PARA A FOLHA

    A tradio dos oprimidos nos ensina que o estado de exceo

    em que vivemos , na verdade, regra geral. Precisamos construir

    um conceito de histria que corresponda a essa verdade." Estaafirmao programtica de Walter Benjamin resume bem o que

    anima o projeto intelectual de Giorgio Agamben nos ltimos

    anos.Responsvel pela edio italiana das obras completas de

    Benjamin, ex-aluno de Heidegger, autor, juntamente comDeleuze, de trabalhos sobre teoria literria e filosofia, este

    professor da Universidade de Verona, nascido em 1942,

    atualmente um dos filsofos mais importantes de sua gerao.Uma das razes para tanto , para alm da multiplicidade de

    seus objetos de interesse, sua capacidade em fornecer um

    quadro de anlises para a situao scio-jurdica que marca a

    poltica contempornea.Partindo das vias abertas por Michel Foucault [1926-1984] por

    meio das anlises dos mecanismos de normatizao da vida na

    sociedade contempornea, Agamben vem desenvolvendo um

    amplo estudo sobre os desdobramentos dos dispositivos do

    poder em vrios livros que compem a srie "Homo Sacer".

    No cerne de tal projeto est a compreenso da centralidade doestado de exceo enquanto paradigma de funcionamento das

    estruturas jurdicas que procuram normatizar o campo da poltica

    e da ao social. Que o espectro da "suspenso legal" da lei, que

    este reconhecimento da lei que pode conviver com sua prpria

    suspenso seja o "motor imvel" das democracias

    contemporneas: eis algo que Benjamin indicara, mas que

    Agamben soube explorar como ningum antes dele.Contribuiu para isso o estado atual do mundo, onde os governos

    so cada vez mais marcados pela lgica da segurana e da

    guerra infinita. O mesmo curso que levou Agamben a recusar-se

    a lecionar nos EUA a fim de protestar contra a poltica de

    segurana norte-americana.Para ele, os Estados contemporneos -especialmente os EUA-,

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    Para ele, os Estados contemporneos -especialmente os EUA-,

    mais do que garantidores e administradores da ordem, so

    mquinas de produo e gesto da desordem -que permitem

    intervenes que lhes do legitimidade e poder. Agamben

    compara o mecanismo ao princpio teolgico da Providncia -

    segundo ele, a teoria do "governo divino" do mundo."O que define a ao providencial que, na verdade, ela no se

    impe do exterior, mas funciona deixando agir a natureza mesma

    das criaturas que, desta forma, continuam responsveis pelos

    seus pecados", ele afirma.

    Mas ao analisar o problema do estado de exceo, o filsofo

    italiano no procura apenas dar conta de uma situao jurdico-poltica que parece se impor como regra cada vez mais universal

    para as sociedades contemporneas. O que ele tem em mente ,

    na verdade, a crtica a uma tendncia hegemnica na

    modernidade em vincular razo e norma, racionalidade e

    normatizao da vida. Com isto, abre-se um amplo quadro dequestes vinculadas reorientao das expectativas da razo

    moderna e de seus modos de racionalizao. neste quadro que

    Giorgio Agamben se move. para falar sobre estas e outras questes que Agamben vem,

    pela primeira vez, ao Brasil, para palestras entre os dias 22 e 29

    de setembro. A seguir, trechos da entrevista que ele concedeu

    Folha na semana passada.

    Folha - O senhor possui atualmente um vasto campo de

    trabalho no interior do qual se cruzam esttica, teoria da

    literatura, filosofia poltica, psicanlise, histria e filosofia

    do direito. O senhor tambm o responsvel pela edio

    italiana da obra de Walter Benjamin. H questes comuns

    que orientam sua incurso nestes mltiplos campos de

    interesse?

    Giorgio Agamben - A lgica que guia minha pesquisa no a

    lgica da substncia e do territrio separado com fronteiras bem

    definidas. Ela est mais prxima do que, na cincia fsica,chamamos de um "campo", onde todo ponto pode a um certo

    momento carregar-se de uma tenso eltrica e de uma

    intensidade determinada. Filosofia, poltica, filologia, literatura,

    teologia, direito no representam disciplinas e territrios

    separados, mas so apenas nomes que damos a esta intensidade.

    A configurao do que voc chama de meus "mltiplos campos

    de interesse" depende pois da contingncia capaz de determinar

    uma tenso na situao histrica concreta em que me encontro.

    De resto, trata-se do que, h um tempo atrs, era o mnimo

    esperado de uma pessoa culta -este a quem Nietzsche chamava

    "um bom europeu".

    No devemos esquecer, por exemplo, que impossvel haver

    filosofia sem filologia, da mesma forma como impossvel teoria

    sem histria. Para mim, assim como para Foucault, a

    investigao histrica do passado apenas a sombra da

    interrogao histrica sobre o presente. E atualmente, mais do

    que nunca, a arqueologia a nica via de acesso ao presente.

    Folha - Qual a trajetria de pesquisa que o levou a

    identificar, no estado de exceo, o fenmeno jurdico

    maior na compreenso da normatizao da vida

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    contempornea?Agamben - Primeiramente, gostaria de lembrar que, atualmente,

    o direito , de fato, um dos meus principais canteiros de trabalho.

    O outro a teologia. Qual a razo desta escolha? Eu poderia

    responder -e isto no seria necessariamente uma brincadeira-

    que o direito e a teologia so os dois nicos domnios nos quais

    Foucault no trabalhou realmente, o que me dava uma certa

    liberdade.

    Mas a verdade que no possvel atualmente pensar a poltica

    e sua histria sem se engajar em pesquisas arqueolgicas que

    articulam o direito e a teologia. No digo isto por acreditar em

    alguma espcie de primado destas disciplinas. O fato que nointerior dos mecanismos e relaes de poder, conceitos jurdicos

    e teolgicos continuam a agir de maneira mais ou menos

    consciente, e so seus funcionamentos e efeitos que me

    interessam.

    Creio que Foucault tinha razo ao dizer que queria deixar de

    lado os ditos "universais" (o Estado, a Lei, a Soberania, o

    Poder), a fim de analisar o processo concreto e os dispositivos

    que realizam as relaes de poder. Desta forma, ao trabalhar

    sobre o estado de exceo, no se tratava para mim de

    responder a questes como: "O que o direito?", "o que o

    Estado?", mas de procurar compreender o modo por meio doqual a mquina poltico-jurdica funciona.

    Ou seja, no parto de questes como: "O que e o que no

    legal?", ou mesmo "o que e o que no justo?", mas "como se

    realiza a relao entre violncia e direito?", "como possvel

    desativar tal relao?". Descobrir que o estado de exceo era,

    por assim dizer, o motor imvel da mquina jurdica ocidental foi

    para mim muito instrutivo.

    Folha - O senhor diz, em "Estado de Exceo", que

    devemos pensar a poltica para alm do jurdico. Mas, se em

    nossas sociedades democrticas, como o senhor afirma, oestado de exceo a regra, isto significaria que no h

    mais espao poltico no interior do sistema parlamentar de

    representao? E, se devemos pensar a poltica para almdo jurdico, devemos ento abandonar a aspirao moderna

    de constituio de um Estado Justo?Agamben - Veja, sua pergunta sobre qual seria a constituio de

    um Estado Justo me parece abstrata e, como tal, realmente nome interessa. No se trata mais, como era ainda legtimo na

    poca de Rousseau, de escrever a Constituio da Polnia ou daCrsega. Deixo esta questo para os juristas criminais que

    acreditam poder escrever a Constituio democrtica do Iraque.Ou aos tecnocratas ingnuos que acreditaram poder escrever aConstituio europia sem se perguntar se havia, em algum lugar,

    um poder constituinte que os autorizava. Pois a prpria relaoentre poltica e direito que deve ser questionada. Problema este

    que a tradio marxista sempre negligenciou por acreditar que odireito, em ltima instncia, era um instrumento neutro do qual

    poderamos nos servir sem problemas.De fato, nossa concepo de democracia ainda est muito

    dominada pelo paradigma do Estado de Direito, ou seja, pelaidia de que podemos estabelecer um quadro constitucional e

    normativo a partir do qual uma sociedade justa advm possvel.

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    normativo a partir do qual uma sociedade justa advm possvel.Mas minhas pesquisas me mostraram que o problemafundamental no diz respeito Constituio ou lei; diz respeito

    ao governo.Rousseau ainda acreditava ser capaz de liquidar o problema do

    governo ao v-lo como poder executivo, como potncia que"executa" o que a vontade geral estabeleceu. Trata-se de uma

    ingenuidade imperdovel. O verdadeiro ponto misterioso dapoltica ocidental no o Estado, no a Constituio, no a

    soberania, mas o governo. No o soberano, mas o ministro. Noo legislador, mas o funcionrio.

    A pesquisa na qual estou atualmente engajado diz respeitoexatamente tentativa de compreender o modo por meio do

    qual a mquina governamental ocidental funciona. Trata-se deolhar a poltica e o direito a partir de uma nova perspectiva naqual as hierarquias se invertem e o poder considerado executivo

    -a "polcia", no sentido lato- advm o problema central. Mas,mesmo aqui, no fao mais do que alargar o trabalho de Michel

    Foucault.

    Folha - O sr. diz ainda que a declarao clara do estado de

    exceo est sendo substituda paulatinamente pelageneralizao do paradigma de segurana como tcnica

    normal de governo. Os EUA seriam, no seu ponto de vista,um caso exemplar?

    Agamben - Em um de seus cursos no Collqe de France,Michel Foucault mostrou como funciona a segurana enquanto

    paradigma de governo. Para Quesnay, Turgot e os ministrosfisiocratas, que nesta matria foram os primeiros, no se tratava,

    por exemplo, de prevenir as grandes penrias, mas de deix-lasocorrer para, em seguida, dirigi-las e orientar os modos de

    atravess-las. A segurana como paradigma de governo nonasce para instaurar a ordem, mas para governar a desordem.

    neste sentido que a segurana, juntamente com o estado deexceo, o paradigma fundamental da poltica mundial. Como

    disse um funcionrio da poltica italiana durante as investigaesjudicirias que se seguiram s mortes na manifestaoantiglobalizao em Gnova: "O Estado no quer que

    imponhamos a ordem, mas que administremos a desordem".Parece-me evidente que este o princpio que guia,

    particularmente, a poltica exterior norte-americana, mas noapenas ela. Trata-se de criar zonas de desordem permanente

    ("zones of turmoil", como dizem os estrategistas) que permitemintervenes constantes orientadas na direo que se julgar til.

    Ou seja, os Estados Unidos so hoje uma gigantesca mquina deproduo e gesto da desordem.

    curioso como tudo isto se encontra em um dos paradigmasteolgicos que tenho trabalhado: este que diz respeito doutrinada Providncia. Os conceitos de ordem e segurana foram

    elaborados como paradigmas de governo, pela primeira vez, nointerior desta doutrina. No devemos esquecer que a

    Providncia ocupou a mente de filsofos e telogos por quase15 sculos, dos Esticos at So Toms, de Plutarco a Leibniz,

    de Bocio aos fisiocratas. A teoria da Providncia no outracoisa que a teoria do governo divino do mundo, ou seja, do

    melhor governo possvel.Por isto, a Providncia no opera de modo violento ou

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    Por isto, a Providncia no opera de modo violento ou

    miraculoso, mas, tal como nos governos democrticos, elaprecisa do livre-arbtrio dos indivduos. O que define a aoprovidencial que, na verdade, ela no se impe do exterior,

    mas funciona deixando agir a natureza mesma das criaturas que,desta forma, continuam responsveis pelos seus pecados. A

    Providncia , neste sentido, um paradigma da democraciamoderna e no surpreendente que ela tenha influenciado

    profundamente um pensador como Rousseau. O Estadomoderno, no que ele tem de melhor quanto de pior, provm

    deste Estado-Providncia.

    Folha - O senhor fala, ao final de "Estado de Exceo", a

    respeito da necessidade de abrirmos espao a uma"violncia pura" capaz de expor e de cortar o vnculo entre

    violncia e direito. Esta idia de "violncia pura" algocomo uma idia reguladora ou o senhor tem em mente

    situaes revolucionrias concretas que teriam o valor deparadigma?Agamben - importante precisar o que devemos entender por

    "pura" quando se fala de violncia. No se trata, em absoluto, deum carter ou de uma propriedade substancial prprio a certos

    tipos de atos violentos, isto em detrimento de outros. Como

    Benjamin disse muito claramente, a pureza de um ser ou de umacoisa nunca reside neste prprio ser, nunca est na origem, masdepende da relao entre este ser e algo de externo. No nosso

    caso, trata-se do direito.Benjamin definia como "pura" esta violncia que quebra a relao

    entre violncia e direito. No se trata aqui de uma "violnciacriadora" (como o caso, por exemplo, do poder constituinte

    que cria um novo direito), mas de uma violncia que interrompe edepe o direito. Por outro lado, no se trata de uma idia

    reguladora.O que est realmente em questo , na verdade, a possibilidade

    de uma ao humana que se situe fora de toda relao com odireito, ao que no ponha, que no execute ou que notransgrida simplesmente o direito. Trata-se do que os

    franciscanos tinham em mente quando, em sua luta contra ahierarquia eclesistica, reivindicavam a possibilidade de um uso

    de coisas que nunca advm direito, que nunca advmpropriedade.

    E talvez "poltica" seja o nome desta dimenso que se abre apartir de tal perspectiva, o nome de livre uso do mundo. Mas tal

    uso no algo como uma condio natural originria que se tratade restaurar. Ela est mais perto de algo de novo, algo que

    resultado de um corpo-a-corpo com os dispositivos do poderque procuram subjetivar, no direito, as aes humanas.Por isto, tenho trabalhado recentemente sobre o conceito de

    "profanao" que, no direito romano, indicava o ato por meio doqual o que havia sido separado na esfera da religio e do

    sagrado voltava a ser restitudo ao livre uso do homem.

    Vladimir Safatle professor de filosofia na Faculdade de Filosofia, Letrase Cincias Humanas da USP e organizador de "Um Limite Tenso - Lacanentre a Filosofia e a Psicanlise" (ed. Unesp).

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