africanismo e epiritismo

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  • 7/31/2019 Africanismo e Epiritismo

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    AFRICANISMO E ESPIRITISMO

    Deolindo Amorim

    PENSE Pensamento Social Esprita

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    2AFRICANISMO E ESPIRITISMO

    AFRICANISMO E ESPIRITISMO

    Deolindo Amorim (1906 1984)

    Tambm distribudo por:

    PENSE

    Pensamento Social Esprita

    www.viasantos.com/pense

    Nova verso digitalizada:

    Equipe Luz Esprita

    2011 Brasil

    www.luzespirita.org.br

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    3Deolindo Amorim

    AFRICANISMO E

    ESPIRITISMO

    Deolindo Amorim

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    4AFRICANISMO E ESPIRITISMO

    NDICE

    Prembulo pag. 5

    Notas Relativas 1 edio pag. 9

    Captulo I pag. 15

    Captulo II pag. 16

    Captulo III pag. 36

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    5Deolindo Amorim

    PREMBULO

    com intensa satisfao que, acedendo ao convite de DeolindoAmorim, vamos tentar dizer alguma coisa, guisa de prefcio, sobre oseu interessante e elucidativo trabalho AFRICANISMO E ESPIRITISMO

    , vindo luz da publicidade na revista "Estudos Psquicos", de Lisboa,e ora compaginado, em opsculo, pela "Grfica Mundo Esprita S.A.",num louvvel esforo de vulgarizao doutrinria e cultural.

    Jornalista ilustrado e estudioso, de atitudes sinceras e honestas atoda a prova, Deolindo Amorim, alm de membro da SociedadeBrasileira de Filosofia, de diretor da Liga Esprita do Brasil etc. umadepto capacitado de sua misso social, um escritor a servio de uma

    ideologia alevantada, que se vem destacando, dentre os propagandistasem voga, pela sua dinmica atividade nos domnios do Espiritismo.Quando falamos em Espiritismo, saibam os leitores que nos referimos codificao cientifica, filosfica e moral, de Allan Kardec1 a nica como privilgio de ostentar semelhante ttulo! que o mestre exps numasrie de obras notveis, editoradas na Frana, no perodo de 1857 a1869, e no a esse conglomerado de pajelana e de rituaisespalhafatosos, onde preponderam o fetichismo dos selvagens e asaberraes do mediunismo abastardado; em suma ao carnaval deUmbanda, difundido e praticado por a em fora, sob o rtulo daquelaluminosa esquematizao espiritualista.

    com intensa satisfao repetimos que traamos algumasfrases iniciais s pginas desta monografia redigida com a miraessencial de orientar as massas populares; pginas merecedoras denossos aplausos, porque, alm de se conterem nelas ensinamentos

    substanciosos, vazados numa forma simples e meridianamente clara,embora circunscritos aos aspectos histrico e psicolgico do problema,

    1LE LIVRE DES ESPRITS, 14 dition, 1866 - Conclusion, paragraphe VII, pages 459/60.

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    6AFRICANISMO E ESPIRITISMO

    no deixam de ser a ressonncia de nossa campanha profiltica pela"Vanguarda" 2, quando, h tempos, apontamos as deturpaes doEspiritismo e o achincalhe de seu nome pelos aclitos da mitologia, daidolatria e dos "orixs" africanos; pginas, enfim, de protesto de uma

    inteligncia esclarecida, inacessvel aos caprichos da falsa tolerncia edas transigncias inconfessveis, contra o imperdovel erro depretenderem identificar o Kardecismo a escola mais perfeita ecompleta surgida no seio do movimento Neoespiritualista! com asreligies primitivas do Continente Negro, trazidas para a Amrica, aotempo da escravatura, e, aqui, desfiguradas por infiltraes de vriasprocedncias.

    Campanha, alis, inspirada nestes sbios conselhos do eminenteCodificador:

    "(...) A doutrina no ambgua em nenhuma de suas partes; clara,

    precisa, categrica nas suas menores particularidades; somente a ignorncia e a

    m f que podem equivocar-se a respeito do que ela aprova ou condena. , pois,

    o dever de todos os espritas sinceros e dedicados repudiar e condenar

    francamente, em seu nome, toda a casta de abusos que poderiam compromet-la,

    a fim de no ser responsabilizada pelos mesmos; porque transigir com os abusos

    seria acumpliciar-se com eles e fornecer armas aos nossos adversrios".3

    Por causa disso, alguns pndegos, simpticos ao "Umbandismo",vieram para a imprensa acusar-nos de intolerantes e derrotistas...

    * * *

    Vem muito a propsito e de indiscutvel merecimento estapublicao, na atualidade; porquanto, se natural e desculpvel noserem entendidas dos profanos as teorias da cincia espiritista, omesmo se no d com os proslitos conscienciosos e os divulgadores,em geral, a quem compete conhec-las ex professo e transmiti-las aovulgo extreme de impurezas, isto , como se encontram expostas comnitidez nos cdigos basilares. Entretanto, que que se nos depara, nahora presente?

    2 Escrevemos sobre o assunto os seguintes artigos: Umbandismo no Espiritismo, O Espiritismo e suascontrafaes, No Umbandismo nem a forma aproveitvel, Confusos e confuses, Reao salutar! eRetificando.3REVUE SPIRITE, de 1865, pg. 191 - "Nouvelle tactique des adversaires du Spiritisme".

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    7Deolindo Amorim

    Indivduos ignorantes e sem credenciais esto a pontificar nosncleos de estudo e de experimentao, fornecendo aos inimigossistemticos da Causa aquelas armas aludidas por Kardec e lanando aoridculo e ao descrdito uma filosofia destinada a exercer preponderante

    influncia no aprimoramento moral e intelectual da humanidade.Por isso mesmo, os centros desceram to baixo no conceito das

    autoridades da capital da Repblica que at o seu registro se processavana Seo de Txicos e Mistificaes da Polcia Central. Espiritistas devalor e os "macumbeiros" eram, destarte, fichados em promiscuidade enivelados, por igual, na ignomnia e no menosprezo!

    Avolumou-se a confuso e seus efeitos bem palpveis se fizeram

    notar tanto nos meios humildes quanto nas altas esferas, a ponto decerta instituio tradicional, que se erigiu em orientadora do movimentoem nossa ptria, ao invs de alertar o pblico contra a investida dosexploradores e de zelar pela intangibilidade do patrimnio doutrinrio,teve a inadvertncia de incluir ao lado de seu quadro de sociedadesadesas um outro complementar, no qual, sob a rubrica de "coligadas",mandou incorporar os "canzois" umbandistas, disfarados em

    agremiaes espritas, com seu acervo de insanidades e crendices, tudoisso diziam os sectrios para se justificar objetivando o escopo deconverter tal gente a ideias mais sensatas e faz-la abandonar ossistemas extravagantes de que se utiliza, hoje em dia, na prtica dacaridade medinica, baseados em velhas e ridculas supersties.

    Com esse processo sui generis de aplainar divergncias ou,diremos melhor, de misturar alhos com bugalhos, os doutores no

    lograram seno infundir maior vitalidade aos "canjers" dos discpulosde Pai Joo o apstolo da Magia Negra! e de oficializar, sobdisfarces ardilosos, os "terreiros", as cabanas e as tendas fetichistas comseus batalhes de espritos atrasadssimos indgenas e africanos -,que tantos e tamanhos estragos tm causado ao progresso de nossosideais, no Rio de Janeiro e noutros pontos do Brasil.

    preciso desconhecer a lamentvel crise psicolgica ou de

    fascinao obsessional em que se debatem os "pais de santo" e seusfanticos para se levar a srio to absurda iniciativa.Triste e dolorosa verdade esta, no h dvida!"Mas... no ser possvel distinguir-se perguntaro os leitores

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    8AFRICANISMO E ESPIRITISMO

    curiosos o Espiritismo dessas seitas afro-catlicas, ressaltando, numafrmula simplista e ao alcance de qualquer criatura alfabetizada, suasdessemelhanas e ocenicas incompatibilidades?" a coisa mais fcildeste mundo! Basta consultarem a kardeciana; e esta lhes fornecer a

    noo exata e lhes dir que s se iludem a respeito e ainda alimentamdvidas as pessoas que se no deram ao trabalho de estud-la ouaquelas que, de propsito feito ou por tendncias mrbidas e ancestrais,se quedam satisfeitas e refocilam nas camadas tenebrosas do baixopsiquismo...

    Afinal, o trabalho, que os leitores vo saborear adiante,recomenda-se por si mesmo, dispensa as turiferaes encomisticas e

    lograr, sem dvida, abrir os olhos aos cegos e iluminar crebrosanoitecidos, sem pretenses e sem dogmatismo.

    Congratulamo-nos com o autor pelo grande servio prestado sletras espiritistas com o seu AFRICANISMO E ESPIRITISMO e fazemosvotos para que este estudo analtico venha a produzir o mximo deresultados benficos como a semente da parbola evanglica cada emterra fecunda.

    Oxal que os transviados por falsos profetas encontrem a pistado verdadeiro conhecimento espiritual; que os bifrontes se mirem nesteespelho e avaliem s graves consequncias de sua atitude repulsiva; eque os corifeus, aparelhados de cultura e de boa vontade, colaboremtambm com Deolindo Amorim, no seu tentame providencial deexpungir o joio e o escalracho, que mos criminosas introduziram naseara; mos habilmente dirigidas pelos adversrios invisveis da

    doutrina impoluta e salvadora! Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1946.Lippmann Tesch de Olivr

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    9Deolindo Amorim

    NOTAS RELATIVAS 1 EDIO

    COMENTRIOS DA IMPRENSA ESPRITA

    "Cremos que a primeira obra de flego acerca de assunto mil vezes

    debatido pela rama. Quando se quiser estudar a influncia que as prticas afro-

    catlicas tm, no Brasil, exercido em certos ramos de pseudo Espiritismo, ser

    indispensvel a consulta deste livro profundamente elucidativo.

    Estudos Psquicos, de Lisboa, junho de 1947

    "Com efeito ali o autor se afirmou o escritor consciencioso e profundo,

    descendo ao mago do tema e esmerilhando-o com argcia, at provar

    saciedade e luz de vigoroso raciocnio, a diferena entre as prticas espritas e as

    cerimnias afro-catlicas dos terreiros de umbanda, ainda que se notem, a, certas

    manifestaes de entidades espirituais.

    Luz da Verdade, de Salvador, Bahia, jan/abril de 1947

    "No possvel a simbiose entre elementos heterogneos que se no

    combinam. O opsculo, pequenino embora, deve ser manuseado pelos estudiosos

    da Doutrina Esprita, para alumiar conscincias indecisas, desanuviando a caligem

    do fanatismo e da superstio.

    O Luzeiro, de Aracaju, Sergipe, maro de 1947

    APRECIAES DE CRTICOS

    Do Cel. Delfino Ferreira:Trata-se de um estudo consciencioso e oportuno, feito para a

    esplndida revista lisbonense Estudos Psquicos, que o publicou em trs de seus

    nmeros: maro, agosto e outubro de 1946, encarecendo-lbe, alis, com justia, a

    importncia do tema e da forma precisa e clara de seu desenvolvimento.

    Registro Bibliogrfico, Mundo Esprita, 8/3/1947

    Espiritismo e Africanismo vem pr os pontos nos ii, definindo, de vez, ou

    melhor, distinguindo Espiritismo de tudo o mais quanto, de boa ou m f, por a se

    pratica sob a mesma designao. Com todos estes predicados s se pode

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    10AFRICANISMO E ESPIRITISMOapresentar notvel, e, da, Espiritismo e Africanismo ser o que a crtica, em geral,

    vem reconhecendo: um trabalho de estudo, verdade e justia.

    Revista Esprita do Brasil, abril de 1947

    Do Dr. Carlos Imbassahy:"O autor demonstra que nem sempre o fato de existir fenmeno espritasignifica que haja Espiritismo. E em boa hora no-lo diz e prova. De fato, o

    Espiritismo uma doutrina do bem e para o bem, e nem sempre as prticas de

    feitiaria colimam aquele objetivo. A pequena obra de Deolindo Amorim tem, pois

    o incalculvel mrito de abrir os olhos de uns e fechar a boca de outros. ela

    prefaciada por Lippmann Tesch de Olivr, uma tima pena a servio da doutrina.

    Mundo Esprita, 19 de abril de 1947

    Do Senhor Ramos Pereira:"Estudo consciencioso, revela o critrio seguro de um pensador que luta

    ardorosamente contra aqueles que acintosa ou inconscientemente procuram levar

    a confuso ao caminho claro da Verdade. Mediunismo pratica-se na grande

    maioria das religies e dos cultos selvagens, exatamente porque... a mediunidade

    um fenmeno universal (digamos com o Sr. de La Pelisse...). Mas disso inferir

    uma identidade de essncia um ilogismo.

    Estudos Psquicos, de Lisboa, agosto de 1947

    Do Prof. Leopoldo Machado:"Os trs artigos magistrais, que todos os leitores de Estudos Psquicos

    leram desvanecidos, apareceram, agora, transformados em captulos,

    corporificando um opsculo que a Grfica Mundo Esprita acaba de editar. Edio

    que, para ns, s pode dignificar a editora, pela oportunidade do assunto, pela

    justeza com que o assunto tratado. O opsculo traz, ainda a aumentar-lhe o

    grande mrito, um prembulo de Lippman Tesh de Olivr, que , por sua vez, um

    estudo forte, incisivo, desabusado mesmo.Revista Internacional do Espiritismo, julho de 1947

    OPINIES INDIVIDUAIS:

    "O seu trabalho, que muito interessante, demonstra de maneira clara e

    convincente a nenhuma relao que existe entre o Africanismo e o Espiritismo, ou

    seja entre o ritual de Umbanda e a prtica da Doutrina Esprita.

    Jos Fernandes de Souza

    Mundo Esprita, 8/3/1948

    "No h meio termos. A ignorncia que supe colocar remendo novo

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    11Deolindo Amorim

    em pano velho, conquanto a sabedoria diga que odres velhos no suportam vinho

    novo. S um caminho se tem a seguir; acabar com o passado e seguir o presente

    para chegar ao futuro. Quem quiser, poder continuar com o africanismo, com o

    catolicismo, com o protestantismo, com o mosasmo, com o budismo, com o

    cabalismo; todavia ningum poder confundir qualquer dessas religies com o

    Espiritismo. Deolindo Amorim claro em suas concluses e suas concluses so

    lgicas e positivas.

    J. Lima

    Revista Esprita do Brasil, abril de 1947

    "No negando haver manifestaes de espritos nas prticas africanistas,

    antes explicando a razo lgica das mesmas e sua origem remotssima, atrai a

    simpatia daqueles crentes, deixando aos negadores sistemticos e aos escritores

    desavisados, uma lio de mestre, assim como estabelece uma linha divisria bemdefinida, entre o Espiritismo propriamente dito e as religies fetichistas, trazidas

    pelo elemento africano e aqui mescladas com o catolicismo, com as religies dos

    aborgenes e at mesmo com as prticas espritas, baseadas na comunicabilidade

    dos chamados mortos.

    Hersila Valverde

    Revista Esprita do Brasil, maio de 1947

    AFRICANISMO E ESPIRITISMO, trs artigos, um opsculo manancial deassuntos, celeiro de argumentos benficos para aquele que desejar concluses de

    fatos ainda no perfeitamente explicados. Um livro no a espessura dum

    catlogo de telefones. O que externamente fachada deslumbrante, quando

    muito, poder ser simples frasco de perfume completamente vazio. A minudncia,

    o laconismo oriundo do estudo filosfico, so leituras que no se medem pelo

    tamanho e sim pelo papel que desempenham, no edificante mister de aniquilar

    leituras deturpadoras dos sos princpios.

    Enas Dourado

    Mundo Esprita, 10 de maio de 1947

    "Nesse trabalho, o nosso irmo provou cabalmente, com argumentos

    irrefutveis, que no h absolutamente semelhana nem trao algum de afinidade

    fundamental entre Espiritismo e africanismo, dizendo mais, que o Espiritismo

    corpo de doutrina codificado por Allan Kardec surgiu, oficialmente, no mundo

    em 1857, com o lanamento de O Livro dos Espritos; e que, quando esta e outras

    obras espritas chegaram ao Brasil, j o africanismo aqui se achava generalizado,

    muito especialmente na Bahia.Ademais, at o prprio termo Espiritismo foiuma criao do Codificador, doutrina que tem por princpio as relaes do mundo

    material com os espritos ou seres do mundo invisvel, tal seja a alma dos homens

    que j viveram na Terra.

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    12AFRICANISMO E ESPIRITISMOJ. B. Chagas

    Mundo Esprita, 3/5/1947

    "Li vosso livrinho de uma s vez, e com a mxima ateno, as cinquenta e

    oito pginas, nas quais o confrade defende a nossa doutrina, sem ferir ou

    menosprezar aqueles que por ignorncia ou m f, querem deturp-la.

    Constantino Gomes de Carvalho

    Mundo Esprita, 15/3/1947

    "J agora no mais possvel baralhar o incipiente mediunismo de certas

    encenaes de terreiro com as prticas espritas propriamente ditas. AFRICANISMO

    E ESPIRITISMO, o oportunssimo livro de Deolindo Amorim, a que estou aludindo,

    elucida a tese de tal maneira que, aps a leitura das pginas em que ela est

    explanada, todo o mundo sentir uma intensa admirao pelo autor. Alis, no sdevemos admir-lo e aplaudi-lo, tambm, por essa contribuio magnfica da sua

    cultura, seno por toda a sua atividade, incansvel e eficiente, na imprensa e nos

    centros, onde o seu nome se imps como um esprita dos mais eruditos que possui

    o Brasil presentemente. A sua pena no faz literatices, no se desgasta em

    futilidades. Os temas abordados, objetos de sua acurada anlise, tm sempre um

    sabor de ineditismo e adquirem mais originalidade graas quele jeito particular

    que tem Deolindo Amorim de concatenar as ideias e formular o raciocnio.

    Alfredo Miguel

    Autor do livro As Heronas de Hydesville, diretor de A Luz da Verdade de Salvador-BA

    Mundo Esprita, 3/4/1947

    De Uma Carta de Joo Carlos de Assis:"Espiritismo, diz voc, muito bem, doutrina e no fenmeno, e como

    tal s teve vida com o grande Kardec. Antes dele existiam apenas os fenmenos,

    aos quais muitos se agarram para poderem sofismar que o Espiritismo, doutrina,

    sempre existiu, e assim diminurem o mrito do excelso Mestre que voc, agora,

    com o seu esclarecedor trabalho, veio colocar no verdadeiro pedestal. Estou

    convencido de que o Espiritismo do povo, na nossa terra, ser por muitos e muitos

    anos essa mistura de Espiritismo, catolicismo e africanismo, que observamos

    atualmente. Depois do seu AFRICANISMO E ESPIRITISMO, creio, ningum se

    atrever a vir pela imprensa fazer tal confuso, visto que o Amigo botou os pontos

    nos ii de tal maneira que s ter coragem quem no tenha lido seu elucidativo

    trabalho, ou quem no ligue importncia lgica dos argumentos, e faa questo

    de vir repetindo sempre as mesmas tolices e argumentos sedios, como acontece

    com os partidrios de determinada teoria.Mundo Esprita, 19/4/1947

    JUZO CRTICO ESTRANHO AO ESPIRITISMO

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    13Deolindo Amorim

    "Aqui mesmo, em vrios ensejos, escrevemos que a macumba,

    atualmente constitui mistura de africanismo, catolicismo e Espiritismo. Tratando-

    se (como se trata) de religio mais ou menos analfabtica, as semelhanas e

    analogias so pouco exatas. A verdade, porm, que as cerimnias religiosas,

    importadas com os pretos escravos, sofreram deformaes, que os contgios da

    catequese crist e da propaganda clerical provocaram. Em princpio os pais de

    santo e outras personagens dos terreiros acreditam na presena dos mortos, nas

    influncias sobrenaturais dos santos, em Jesus Cristo e tambm na proteo de

    gnios estranhos f catlica.

    A liturgia das macumbas no passa de uma deturpao da liturgia

    catlica, onde os pretos africanos (vindos para c) misturavam e confundiam tudo,

    empregando vocbulos de prosdia arbitrria e melopeias rudimentares, cujos

    ritmos no se afastam nunca do t-t montono. Euclides da Cunha, ao cabo de

    devassas e observaes, conclui que as crenas dos sertanejos so (como elesprprios) mestias. Apenas o conceito poder ser ampliado e aplicado aos mestres

    e diretores das macumbas.

    Deolindo Amorim escreveu ensaio timo. A nosso ver, porm, ele

    provou demais... Discute longamente as origens do africanismo, colocando-se em

    pontos de vista eruditos, qui clnicos, conforme fez Artur Ramos, para concluir

    assim:As prticas de origem africana, largamente ramificadas, so espiritualistas,

    dignas de respeito como quaisquer outras prticas religiosas, mas no constituem

    variantes das prticas do Espiritismo. Ningum sustentaria o contrrio com justosmotivos. Mas, indiscutvel que, em princpio, as cerimnias africanistas partem

    dos mesmos pontos de apoio, isto , da mesma convico, acerca da possibilidade

    da presena de agentes invisveis (espritos) influindo na vida, na conduta e na

    sade das pessoas visveis.

    Deolindo Amorim foge s vulgaridades e procura mostrar que Allan

    Kardec partiu duma doutrina filosfica. Por isso, sem dvida, AFRICANISMO E

    ESPIRITISMO (Edies Mundo Esprita, Rio) no se detm nos meandros das

    discrdias frvolas e tudo fez para erguer a discusso de maneira formal, com

    clareza, quando, por exemplo, escreve: O culto afro-catlico tem ritual, e ritual

    muito variado; adora smbolos e imagens, venera divindades. O Espiritismo no

    tem ritual nem imagens, assim como no rende culto a divindades, visto que suas

    prticas so simples, absolutamente simples, tendo a preocupao exclusiva de

    melhorar as condies espirituais da criatura humana e solidificar no esprito dos

    seus adeptos a crena em Deus, baseada em princpios morais e filosficos".

    Como se verifica, Deolindo Amorim evita sempre as argumentaes

    sectrias. O Espiritismo no explora a morte, a exemplo do catolicismo. Encara-a

    com serenidade e lucidez. Tem o Espiritismo, porventura, alguma cerimnia paraenterrar os seus defuntos? No.

    Conjeturando desse modo, Deolindo Amorim explica os propsitos das

    doutrinas de Allan Kardec, pois estas no se confundem, de modo algum, com as

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    14AFRICANISMO E ESPIRITISMOdeformaes e falsos pressupostos hoje em dia correntes. Os cultos de origem

    africana so fetichistas, afirma Deolindo Amorim. Por que no idlatras? As

    religies, em regra, exploram a idolatria porque o comum dos homens estima a

    materializao. Da as concluses que mandam nivelar as religies, sempre que

    estas reclamam anlise realista... Todas elas se apoiam nos mistrios, que

    inquietam os homens diante da morte.

    Os fenmenos sobrenaturais constituem o fulcro das doutrinas que

    procuram envolver os homens e conquist-los para os esforos estreis duma

    solidariedade, que manda armar povos a fim de explor-los, comodamente, pelo

    terror.

    Eloy Pontes

    O Globo, Rio de Janeiro, 19/3/1947

    NOTA Eloy Pontes, crtico literrio de "O Globo", no aceita o Espiritismo nem filiado a religio alguma.

    Carta do EscritorAfonso Costa:Rio, 6 de maro de 1947.

    Deolindo Amorim:

    Depois de ler o sugestivo opsculo AFRICANISMO E ESPIRITISMO, de que

    sua magnfica bondade me ofereceu um exemplar, me ficou a convico de que, de

    ora em diante, nenhuma autoridade judiciria e nenhum sbio jurista deixaro de

    citar o seu livro sempre que preciso distinguir as prticas africanas e as sesses

    espiritistas. Eu bem sabia de seus conhecimentos da doutrina codificada por Allan

    Kardec e, mais ainda, sabia do seu fino gosto na arte de escrever, tantas vezes

    demonstrado, mas de certo no esperava que voc tivesse, em caso tal, essa vital

    fora de argumentao apresentada, ou fora de convencimento, se eu, nesta

    parte, no fosse de receptividade imunizada, talvez pela contumcia da

    incredulidade de tudo.

    Com um abrao espiritual do seuAfonso Costa

    Mundo Esprita, 15/3/1947

    NOTA O escritor Afonso Costa, que tambm no aceita o Espiritismo, preferindo ficar margem de qualquer discusso religiosa, membro da Academia de Letras da Bahia,pertence ao Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, e foi, por muito tempo,presidente da Academia Carioca de Letras. Esprito muito tolerante em matria religiosa,tanto respeita a crena esprita como qualquer outra crena, do que deu provas cabais

    quando na presidncia da Academia.

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    15Deolindo Amorim

    NOTA EXPLICATIVA 1 EDIO

    A matria deste pequeno trabalho foi publicada em trs artigos,sob o ttulo AFRICANISMO E ESPIRITISMO, na revista EstudosPsquicos, de Lisboa (nmeros de maro, agosto e outubro de 1946) no

    desempenho do encargo de redator-correspondente da referida revista.Confesso-me agradecido ao confrade Isidoro Duarte Santos, que, alm de infatigvel diretor daquele excelente rgo doutrinrio, umadas mais fortes e brilhantes expresses culturais do movimento espritaportugus, pela honrosa distino que dispensou aos artigos orareunidos neste volume, assim como ao diretor-presidente da GrficaMundo Esprita S.A., Dr. Henrique Andrade, por haver tomado a

    iniciativa desta publicao. Deolindo Amorim

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    16AFRICANISMO E ESPIRITISMO

    CAPTULO I

    Tem-se procurado, alis sem razo plausvel, confundir oEspiritismo com velhas prticas afro-catlicas, enraizadas no Brasildesde o perodo colonial. Argumenta-se, em defesa de tal suposio, que

    nas prticas africanas se verificam manifestaes de espritos, o que, noentender de muitas pessoas, suficiente para dar cunho esprita a essasprticas. O raciocnio mais ou menos este: onde h manifestaes deespritos, h Espiritismo; logo, as prticas fetichistas so tambmprticas espritas, porque nelas se faz evocao de espritos.

    Eis a uma preliminar discutvel. Em primeiro lugar, o quecaracteriza o ato esprita no exclusivamente o fenmeno; em segundo

    lugar, o Espiritismo (corpo de doutrina organizado por Allan Kardec)surgiu no mundo em 1857, e quando suas obras chegaram ao Brasil, jexistia o africanismo generalizado, principalmente na Bahia.

    Historicamente, como se v, no possvel estabelecer qualquertermo de comparao, porquanto o africanismo data de poca muitorecuada, ao passo que a Doutrina Esprita do sculo passado. Se, defato, o fenmeno fosse o nico elemento capaz de identificar a prtica

    esprita, teramos de chegar concluso de que Espiritismo ecatolicismo terminariam sendo, no fundo, a mesma coisa, porque seregistram fenmenos no seio de corporaes catlicas. Neste caso, nohaveria distino entre catolicismo, Espiritismo, africanismo etc., umavez que a mediunidade comum a qualquer indivduo, podendo serespontaneamente observada entre catlicos, espritas, maometanos etc.

    No so poucos os padres, bispos e pastores com mediunidadepositiva. No , portanto, pela natural ocorrncia de fenmenos que sepode firmar critrio para determinar o que seja realmente Espiritismo.

    Um materialista, ainda que dos mais intransigentes, est sujeitoa ser mdium, embora continue, por sistema, a negar a existncia da

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    17Deolindo Amorim

    alma. Ento, devemos concluir: o fenmeno por si s no justifica aopinio, hoje defendida por muita gente, de que haja entre o Espiritismoe o africanismo qualquer trao fundamental de afinidade.

    Conquanto as religies fetichistas, transplantadas para o Brasil

    com o trfico africano, se utilizem de mdiuns (h mdiuns em todaparte e no apenas no meio esprita) e faam evocaes de espritos emseus terreiros e cerimnias, com o desejo de praticar o bem ou "prestarcaridade", segundo expresso popular no Brasil, no se encontram,entre aquelas religies e o Espiritismo, traos comuns.

    De comum, apenas a manifestao, o transe medinico, aevocao, sob forma absolutamente diferente da prtica esprita.

    Ora, no sendo a manifestao de espritos um ato privativo doEspiritismo, porque os espritos se manifestam em qualquer lugar,desde que disponham de mdiuns, est claro que, em boa lgica, nodeve ter a designao especfica de prtica esprita, qualquerexperincia medinica, feita a esmo, empiricamente, sem relao com oEspiritismo, cujos ensinos formam uma doutrina filosfica de"consequncias religiosas", como bem disse o seu codificador Allan

    Kardec.O mediunismo faz parte do Espiritismo; mas preciso frisar que

    mediunismo no Espiritismo. Que h mediunismo nos cultos africanos,no se discute. Mas este motivo ainda no basta. Da poder-seapresentar a tese de que, embora tenham por base a imortalidade daalma e exercitem o mediunismo, as prticas do africanismo, apesar deespiritualistas, no constituem modalidade do Espiritismo.

    * * *

    Toda religio tem suas formas caractersticas, seu aspectoexterior, suas frmulas especiais. E a faculdade medinica, que tanto sepode encontrar no Espiritismo, como no catolicismo ou no africanismo,no sntese de religio alguma: , sim, um elemento que atende s

    solicitaes da religio e da cincia, conforme o caso.O africanismo tem ritual organizado, de acordo com suastradies seculares, fundadas na crena em divindades peculiares a seuculto, enquanto o Espiritismo no adota ritual de espcie alguma, no

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    18AFRICANISMO E ESPIRITISMOtem forma de culto, nem adora divindades. uma doutrina de basecientifica, propensa ao mtodo experimental, de cogitaes filosficasmuito elevadas, porque trata do destino da alma humana, preparando ohomem para a prtica do Bem, nica estrada que conduz a Deus.

    Nas sesses de terreiro, nos exorcismos, como em todos os atosreligiosos, grosseiros ou no, h sempre matria para estudo,principalmente na parte em que a f ou a crendice popular possamfornecer elementos para pesquisas de folclore, etnografia, etc. Mas o quese no deve confundir sesso esprita, isto , sesso organizada sob aorientao da Doutrina Esprita, com toda sesso de puro mediunismo,sem outro objetivo a no ser a curiosidade ou a satisfao de pessoas

    fascinadas pelo sobrenatural. Pretender que toda sesso onde seregistrem fenmenos seja sesso esprita, equivale a supor que oEspiritismo doutrina vastssima, sobre a qual no se disse ainda a"ltima palavra" seja exclusivamente evocao de espritos.

    Partindo deste ponto de vista, que muita gente sustenta que oafricanismo simplesmente por ter uma parte medinica umaforma de Espiritismo, em estado grosseiro. So distintos, essencialmente

    distintos.Antes da codificao da Doutrina Esprita, ou seja, antes de 1857,

    ano em que apareceu em Paris a primeira obra esprita de Allan Kardec O LIVRO DOS ESPRITOS , contendo a parte filosfica doEspiritismo, j se havia radicado no Brasil as crenas de origem africana.O comrcio de escravos, isto , o trfico, de to triste memria nos anaisde nossa civilizao, terminou precisamente na metade do sculo

    passado.4

    Mas a transmisso da influncia africana comeara desde osprimeiros anos da formao do Brasil. Afirma um dos nossos maisfestejados historiadores que "os primeiros pretos chegaram no Brasilentre 1530 e 1540. Foram busc-los frica, onde os aprisionavam oucompravam aos diferentes chefes de tribos, capites de barcos'negreiros', cujo torvo comrcio s terminou em 1850".5

    Embora tenha terminado oficialmente em 1850, o trfico deescravos no terminou praticamente, apesar das complicaes polticasque se sucederam, a partir daquele ano. Alis, muito antes, em 1826,

    4O autor se refere ao Sculo XIX Nota da verso Digital (N. D.)

    5Pedro Calmon em HISTRIA DA BAHIA, 1927, pg. 34).

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    pouco depois da Independncia, o Brasil firmara compromisso com aInglaterra no sentido de se extinguir o trfico de negros. A lei de 7 denovembro de 1831, estando o pas sob a Regncia, visto que Pedro Iabdicara em 7 de abril desse ano, ratificou o compromisso. Diz Veiga

    Cabral: "Coube Inglaterra que havia sido a nao mais exploradorado trfico africano o mais brilhante papel na campanha iniciada paraa extino desse infame comrcio" (COMPNDIO DE HISTRIA DOBRASIL).

    De fato, a questo do trfico africano trouxe muita dificuldadeaos Governos do Brasil e da Inglaterra. A questo chegou a tal ponto, queo Imprio Britnico decretou a chamada Lei Aberdeen, pela qual todos

    os navios brasileiros que fossem encontrados com escravos seriampresos como piratas, segundo a lei inglesa. A lei assim chamada emaluso ao ministro ingls Aberdeen.

    Estando no Poder o Partido Conservador, o Governo Imperialassinou a lei de 4 de setembro de 1850, extinguindo o trfico, isto , otransporte de escravos para o Brasil, e estabelecendo punies rigorosaspara os contrabandistas. A lei de 1850 foi referendada pelo ministro da

    Justia, Eusbio de Queiroz.Apesar de tudo, o trfico negro, burlando as leis, ainda trouxe

    apreenses ao governo brasileiro. O governo ingls entendeu de policiaros mares para que nenhum navio trouxesse escravos para o Brasil. Talsituao chegou a constituir ameaa s relaes do Brasil com aInglaterra. Antes da lei de 1888, j o governo imperial dizia perante oParlamento, por intermdio do conselheiro Dantas, presidente do

    Gabinete Ministerial de 6 de junho de 1884, que a questo daescravatura no Brasil se encontrava neste p: nem retroceder, nemparar, nem precipitar. (Depoimentos de Tavares de Lyra e Max FleiussHISTRIA DA ADMINISTRAO DO BRASIL).

    Finalmente, a Lei do Ventre Livre (1871) e a dos Sexagenrios(1885) preparam caminho para a extino total da escravatura, a 13 demaio de 1888, apagando da sociedade brasileira to vergonhosa

    mancha.Muito deve o Brasil ao brao africano, cujo suor, com sacrifcio ededicao, regou os alicerces da prosperidade econmica do pas. Oafricano trouxe para o Brasil os elementos de sua cultura, j muito velha

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    20AFRICANISMO E ESPIRITISMOquele tempo. Deu-se logo a mesclagem cultural, mais esclarecida,atualmente, pelas investigaes da sociologia. Com o tempo, porm, oculto africano comeou a desfigurar-se, perdendo as suas linhasoriginais, em consequncia da gradativa e inevitvel influncia do

    catolicismo.Fundiram-se, pois, trs tipos diferentes na formao do Brasil:

    europeu, africano e aborgene. Entre os filhos da terra, os aborgenes,no havia uniformidade de usos e costumes, o que no deixa de refletir aforma de culto. Desprezar a influncia de tais elementos no acervocultural do povo brasileiro seria desconhecer uma realidade histrica.Ningum tentaria, ainda hoje, sob pretexto poltico, cientfico ou

    religioso, defender pretenses de pureza racial no Brasil, visto que onosso povo , como vrios outros do Velho e do Novo Mundo, umproduto heterogneo.

    Oliveira Viana, em RAA E ASSIMILAO, rebate crticas que lheforam feitas por ter defendido ponto de vista especial na questo.Citamos Oliveira Viana, tanto por se tratar de um estudioso daantropologia e da sociologia, como pela circunstncia de ser um autor

    muito discutido em matria racial. Neste particular no podemos fugirda observao de Euclides da Cunha: Adstrita s influncias quemutuam, em graus variveis, trs elementos tnicos, a gnesis das raasmestias no Brasil um problema que por muito tempo ainda desafiaro esforo dos melhores espritos. Est apenas delineado.6

    O fenmeno etnolgico da mestiagem no podia deixar de terrepercusso psquica, tanto que a vida religiosa do Brasil, por mais que

    se insista em dizer que o povo brasileiro essencialmente catlico, notende para a unidade, mas para o sincretismo, para a variedade. Asdiferenas psicolgicas e lingusticas observadas entre as principaisnaes ou divises dos aborgenes Tupy, Tapuya e Nu-Aruak devem entrar na bagagem cultural dos primitivos habitantes do pas.

    O elemento indgena era imortalista. Tinha, porm, seus deuses,admitindo uma espcie de politesmo grosseiro, tanto assim queconfiava, entidade sagrada, os diversos assuntos de suas atividades:caa, pesca etc. O general Couto de Magalhes, que , sem a menor

    6OS SERTES.

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    22AFRICANISMO E ESPIRITISMOimportante como o do prprio Deus.8

    O africano, por sua vez, no trouxe unidade cultural. Os doisgrupos que, segundo o professor Artur Ramos, preponderam nainfluncia do elemento negro so os sudaneses e os bantus. E estes

    apresentavam, quando chegaram ao Brasil, diferenas considerveis. Asprocedncias sudaneza e bantu foram apuradas depois de rigorososestudos, tendo tratado do assunto, com especial desvelo, alm dosnaturalistas Spix e Martius, citados pelo douto professor Artur Ramos, ohistoriador baiano Braz do Amaral, em FATOS DA VIDA DO BRASIL. NoBrasil, portanto, para usar uma expresso moderna, o "caldo de cultura" muito variado. Nele entraram contribuies diversas, determinando a

    impossibilidade de se manter, com sua feio original, qualquer dasreligies implantadas no pas.

    Afirma, a propsito, o Professor Artur Ramos, consideradoatualmente uma das maiores autoridades na matria, que no existereligio em estado puro (O NEGRO BRASILEIRO, edio de 1934). Abibliografia deste acatado etnlogo brasileiro vem aumentando muito,nestes ltimos anos.

    O africanismo perdeu h longo tempo, no Brasil, seus traosprimitivos. Formou-se no pas uma cultura de fuso, disto resultando osincretismo religioso: um pouco de catolicismo, um pouco deafricanismo e um pouco de Espiritismo deturpado pelo misticismopopular.

    A propenso religiosa do povo muito concorreu para oamlgama das prticas espritas com o ritualismo afro-catlico. Nos

    candombls da Bahia, como nas macumbas do Rio, por exemplo, no hmais africanismo puro, e, sim, "mistura" de elementos tomados aocatolicismo e ao Espiritismo. Mas indispensvel acentuar que oEspiritismo (nome privativo da escola de Allan Kardec) encontrou noBrasil um ambiente propcio ao sincretismo, porque j existiam no pas,muito antes do sculo passado, os fatores de fuso cultural a que nosreferimos.

    O fato de o culto afro-catlico haver tentado absorver oEspiritismo no significa, todavia, que haja relao entre a prtica

    8O SELVAGEM, Couto de Magalhes.

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    esprita e as cerimnias peculiares s religies fetichistas, muitodiludas, presentemente, nos fundamentos de sua organizao original.

    Em COSTUMES AFRICANOS NO BRASIL, livro muito interessante,sobretudo por seu carter instrutivo, diz Manuel Querino que "o

    africanismo esprita de natureza e, como tal, provoca invocaes". Oprofessor Artur Ramos, que prefaciou e anotou o trabalho de ManuelQuerino, corrige este ponto, esclarecendo: " uma afirmao que nopode ser generalizada. As prticas espritas negro-brasileiras foramresultantes de um sincretismo secundrio.

    O africano, como o ndio, era imortalista, acreditava nasobrevivncia da alma. E ainda hoje estamos vendo, atravs das diversas

    formas de culto afro-catlico, a tradio africana afirmando tal crena.No h, porm, o que o eminente professor Arthur Ramos denominaprticas espritas no sincretismo afro-catlico ou afro-brasileiro,porquanto a prtica esprita no tem caractersticas que possam pelomenos dar ideia de semelhana com os rituais de origem africana.Podemos dizer, entretanto, que a ideia religiosa inata no africano. Masa sua ideia religiosa se exterioriza sob formas de cultos bem variados.

    At agora, o que foi estudado neste terreno se refere ao"animismo fetichista", ao mediunismo propriamente dito. Nasmacumbas, nos terreiros, nas cerimnias de Oxal, Ogum etc., registrou-se simplesmente o animismo, o fenmeno psquico, sem que aspesquisas induzam a concluir que as prticas africanas, de que deriva alinha de "umbanda", sejam Espiritismo grosseiro.

    Espiritismo Espiritismo, como africanismo africanismo.

    So assuntos diferentes.O animismo captulo do Espiritismo; e, pelo fato de se ter

    verificado a existncia do fenmeno de animismo nos terreiros, no seinfere que africanismo seja Espiritismo.

    Futuramente, atravs das pesquisas sociolgicas e folclricas, jmuito adiantadas no Brasil, cair a dvida por si mesma, ficando cadaassunto em seu lugar: o africanismo ser estudado luz de seus

    elementos de cultura, muito mesclados, atualmente, e o Espiritismo serestudado como cincia, em face de seus princpios prprios, na searafilosfica em que se situa a sua doutrina.

    Os estudos de africanologia no Brasil so relativamente novos.

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    24AFRICANISMO E ESPIRITISMOGraas ao grande esforo do professor Artur Ramos, que no tem feitotrabalho exclusivamente de compilao, mas, pelo contrrio, temprocurado tomar contacto com as fontes gerais, j se conhece muitacoisa em matria de cultura africana.

    At ento, pouco havia de profundo neste sentido. O ilustrecientista, a quem o Brasil j deve to assinalados servios, alm de umacriteriosa e nobre campanha contra o absurdo preconceito dainferioridade do elemento negro, estudou o fenmeno psquico, omediunismo, o transe medinico, aspectos comuns ao Espiritismo e aoafricanismo. Mas a Doutrina Esprita vai alm desses pontos deorientao. O Espiritismo comporta estudo parte.

    O campo ainda est pouco explorado. Quem iniciou pesquisascientficas no terreno das religies africanas no Brasil foi NinaRodrigues, cujo nome uma glria de que o Brasil se ufana. Comeou, osaudoso mestre, na Bahia, onde regia a ctedra de medicina legal.Natural do Maranho, mas educado na Bahia, Nina Rodrigues encontrouelementos valiosos para seus notveis trabalhos. Seu infatigvelcontinuador, Artur Ramos, trouxe contribuies novas. E o assunto,

    como se v, no est esgotado. Caminhamos para a elucidao de umponto importante: africanismo no Espiritismo.

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    CAPTULO II

    Nosso objetivo, que est bem claro, apenas fazer distinoentre Espiritismo e africanismo, sem outro intuito que no o deesclarecer e separar, luz dos prprios elementos de estudo, dois

    campos de pesquisa bem definidos.O africanismo, com todas as suas seitas e cultos, deve ser

    estudado parte, assim como o Espiritismo, porque no h entre um eoutro afinidade de cultura nem relao histrica.

    As prticas afro-catlicas, como vimos no captulo anterior,datam de poca muitssimo remota e so de origem heterognea, aopasso que a escola de Allan Kardec de origem europeia e obedece a

    inteligente unidade de princpios. No h, portanto, semelhana com asprticas do culto africano, em cuja mesclagem entraram elementosdiferentes, notando-se especialmente o muulmano. Formou-se, assim,uma expresso religiosa muito complexa.

    Depois de 1850, quando se extinguiu o trfico africano, aescravido ainda continuou, no Brasil, at 1883. Naturalmente, com aextino da escravatura, o elemento africano comeou a aderir, com

    relativa facilidade, aos hbitos da terra, s nossas inclinaes culturaispor fora da convivncia com a civilizao branca. Incorporando-se sociedade como elemento livre, o africano, apesar desta circunstncia,no abriu mo de suas heranas religiosas, ligadas, atravs de sculos esculos, ao acervo de sua psique.

    Embora diludas, mescladas com o catolicismo, no perderam, asprticas religiosas de origem africana, as suas linhas gerais, conquanto

    se encontrem, desde muito tempo, sensivelmente prejudicadas naoriginalidade, em virtude das influncias que nelas se fizeram sentir.Estas consideraes, de ordem geral e guisa de introduo, pretendemsimplesmente recapitular os argumentos apresentados anteriormente.

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    26AFRICANISMO E ESPIRITISMOFaamos confronto. O culto afro-catlico tem ritual, e ritual

    muito variado: adora smbolos e imagens, venera divindades. OEspiritismo no tem ritual nem imagens, assim como no rende culto adivindades, visto que as suas prticas so simples, absolutamente

    simples, tendo a preocupao exclusiva de melhorar as condiesespirituais da criatura humana e solidificar no esprito de seus adeptos acrena em Deus, baseada em princpios morais e filosficos.

    No se discute que o objetivo do culto afro-catlico, com todos osseus elementos religiosos e culturais, seja ou no o bem; mas o que seacentua que o Espiritismo no se identifica nem se confunde com oafricanismo. A prtica deste ltimo obedece a prescries ritualsticas,

    enquanto a prtica esprita dispensa e rejeita qualquer frmulasacramental, qualquer objeto de culto etc.

    O pensamento da Doutrina Esprita, a respeito de smbolos,frmulas, etc., est bem definido pelo prprio codificador doEspiritismo: Muitas pessoas certamente prefeririam outra receita maisfcil para repelirem os maus espritos: por exemplo, algumas palavrasque se proferissem, ou alguns sinais que se fizessem, o que seria mais

    simples do que corrigir-se algum de seus defeitos. Sentimos muito;porm, nenhum meio eficaz conhecemos de vencer-se um inimigo,seno o fazer-se mais forte que ele. Temos, pois, que nos persuadir deque no h, para alcanarmos aquele resultado, nem palavrassacramentais, nem frmulas, nem talisms, nem sinais materiaisquaisquer (destacamos, na transcrio, as ltimas palavras).

    L-se, mais, este ensino: Em resumo: a prece fervorosa e os

    esforos srios que a criatura faa por melhorar-se, constituem osnicos meios dela afastar os maus espritos...".9Reforcemos a citao, acrescentando novamente a opinio de

    Allan Kardec: A magia com seus sinais, frmulas e prticas cabalsticas,era increpada de fornecer segredos para operar prodgios, constrangerespritos a ficarem s ordens dos homens e satisfazerem-lhes os desejos.Hoje sabemos que os espritos so as almas dos mortos, e no osevocamos seno para receber conselhos dos bons, moralizar os maus econtinuar relaes com seres que nos so caros".10

    9OBRAS PSTUMAS, Allan Kardec, 1 Parte, item 58.

    10O CU E O INFERNO, Allan Kardec, 1 Parte, Cap. X, n9 9, 15 edio brasileira - 1946.

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    Afirma, ainda, Allan Kardec, no mesmo captulo, n 11 que "Osprincpios do Espiritismo no tm relao alguma com os da magia.

    O Espiritismo, como se sabe, desaprova inteiramente o uso deexorcismos, talisms ou palavras sacramentais, enquanto os terreiros

    fetichistas fazem dessas prticas o fundamento de suas cerimnias. V-se, portanto, que a diferena no se verifica unicamente quanto aoaspecto histrico, j referido, mas, tambm, quanto forma, pois no hconcordncia alguma entre as prticas de mediunismo exercitadas nosterreiros e a verdadeira prtica esprita.

    Agora mesmo acaba de ser publicado, no Rio de Janeiro, um livrointitulado TRABALHOS DE UMBANDA OU MAGIA PRTICA, de autoria do

    Sr. Loureno Braga, adepto do culto umbandista e autor de outrostrabalhos da mesma natureza. Nesse livro, por exemplo, h elementossuficientes para demonstrao da tese: umbandismo no Espiritismo.

    Vejamos: no captulo em que trata da organizao dos terreiros,diz o livro do Sr. Loureno Braga que "O terreiro deve ficar separado daassistncia por uma cerca divisria, tendo entrada ou abertura de 1,5 mpara entrada e sada de scios".

    Verifiquemos, neste pequeno trecho, como flagrante, como palmar, como racional a ausncia de qualquer semelhana entreEspiritismo e umbandismo: O altar deve ter a imagem do padroeiro emtamanho maior que as outras imagens, para se destacar melhor, ouento, unicamente o padroeiro. Os mdiuns e cambonos devemtrabalhar de branco e calados de sapatos de tnis, ou descalos. Ao ladoesquerdo do peito da camisa ou guarda-p, dever ser bordado em azul,

    verde ou roxo, oponto simblico do padroeiro e, ao lado direito, o nomede batismo do mdium ou cambono.

    As sesses espritas, orientadas segundo as regras estabelecidaspela codificao kardeciana, no tm altar, no se realizam sob qualquerfeio espetacular.

    Confronte-se, ento, a simplicidade de uma sesso esprita com oritual de uma sesso de umbanda, segundo os prprios adeptos deste

    culto. Aqui est um exemplo. No capitulo em que trata de abertura eencerramento de sesses, ensina o livro citado: Em um canto daentrada principal da casa dever ser feita a tranqueira (ponto desegurana dos trabalhos) da seguinte forma: riscar com pemba branca

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    28AFRICANISMO E ESPIRITISMOum ponto de Ogum, cruzado com Ex e Ganga e, por trs desse ponto,riscar um signo de Salomo e sobre ele colocar um copo de gua salgadacom sal grosso. Em seguida, cantar os pontos de Ogum, Ex e Oxal,salvando com marafo (parati) pedindo-lhes que protejam os trabalhos

    contra qualquer carga fludica que venha a ser projetada por algum, oucontra a falange de espritos perturbadores; porm tal trabalho nodeve ser feito por uma s pessoa, mas por duas, pelo menos" (sic) .

    Diante dessa complicada mistura de elementos afro-catlicos,sem nenhuma relao com o Espiritismo, no h razo para se confundira prtica esprita com qualquer das prticas de umbanda, que um dosramos do africanismo, e por sinal o mais popular no Rio. A fuso no

    exclusivamente religiosa, mas tambm lingustica.A nomenclatura do culto umbandista apresenta variedade de

    procedncias, o que prova, ainda mais, a acentuada mesclagem dasprticas afro-catlicas. O elemento africano, que j veio para o Brasilmuito dividido em seus grupos tnicos, transplantou para este pastanto a influncia cultural como o contingente de sua contribuiolingustica. O cruzamento, portanto, foi completo: religio, cultura e

    lngua.No portugus falado no Brasil, principalmente em matria

    culinria, j se acham includos inmeros termos de origem africana.Temos tutu, quitute (este, de origem "iorub", da Guin, possivelmente),quibebe, mungunz ou muncunz, como se chama na Bahia etc. etc.Muitos hibridismos se formaram com elementos africanos. A lnguaportuguesa recebeu, justamente por influncia do cruzamento com o

    africano, uma srie numerosa de termos e razes, tendo-se deturpadomuitos deles pelo uso popular. Da se encontrar na terminologiaumbandista verdadeiro "arranjo" de nomes tomados a diferentesorigens.

    Os ramos ioruba e sudans forneceram lngua portuguesamuitos nomes de "gnios", "divindades", objetos de culto, etc.,criteriosamente anotados pelo professor Jacques Raimundo, como, porexemplo, Babala, Ex, Xang, Ogungun, Oj, Olorum, Iemanj.11

    At nas relaes lingusticas se reconhece a filiao do

    11O ELEMENTO AFRO-NEGRO NA LNGUA PORTUGUESA, Jacques Raimundo.

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    umbandismo, como de todas as formas de fetichismo existentes noBrasil, fonte do africanismo, grandemente ramificado e, desde longosanos, entrosado com o catolicismo.

    verdade que no foi apenas do trfico africano que nos veio

    infiltrao lingustica. Grande, como notrio, a influncia do Tupi nalngua portuguesa, cujo vocabulrio j pode alinhar numerosos termosoriundos do idioma nativo. Esse fenmeno lingustico nada tem deestranhvel, porquanto o cruzamento sempre teve consequncias naformao e no enriquecimento das lnguas.

    O elemento rabe, cuja irradiao no mundo antigo se estendeuconsideravelmente, levou grande contingente de termos e razes tanto

    ao espanhol como ao portugus. O exemplo do francs, lngua designificao internacional, bem caracterstico: os elementos cltico,latino e germnico tiveram preponderncia em sua formao.

    As migraes tambm foram e continuam sendo veculos deinfiltraes lingusticas. O africano, atravs de seus ramos j bemdiferenciados linguisticamente, transmitiu lngua portuguesaaprecivel contribuio. A terminologia religiosa do africanismo

    misturou-se com termos prprios do culto catlico.O africanismo procura aproximar-se mais do catolicismo do que

    do Espiritismo. Mais uma razo, e muito forte, para no se confundirumbandismo e Espiritismo, nem qualquer outra prtica de origemfetichista. Temos, por exemplo, nas prticas da Linha de Umbanda,muitos termos peculiares ao catolicismo: padroeiro, batismo, altaretc. Verifica-se, portanto, a comear pela preferncia de termos

    inerentes aos atos da liturgia catlica, que o culto fetichista se inclinafrancamente para o catolicismo e no para o Espiritismo. Talequivalncia foi notada h muito tempo pelo insigne antropologistaNina Rodrigues quando observou uma das mais conhecidas tradiescatlicas da Bahia: a lavagem da Igreja do Bonfim.

    Escreve Nina Rodrigues: A lavagem da Igreja do Bonfim , comodemonstrei, uma prtica religiosa yorubana ou nag, mas o verdadeiro

    culto vivo, pois para os africanos negros, crioulos e mestios daquelaseita, o Senhor do Bonfim o prprio Obatal.Os cultos africanos confundem-se, cada vez mais, com as

    cerimnias do catolicismo. Nos terreiros h muita coisa da Igreja

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    30AFRICANISMO E ESPIRITISMOCatlica. O africanismo fundiu-se, amalgamou-se com o catolicismo,naturalmente pela semelhana, pela aproximao dos respectivos cultos.O fato de haver pessoas propensas a transformarem tais prticas,procurando adapt-las ao Espiritismo, no justifica, todavia, qualquer

    confuso a respeito. Existe, simplesmente, a manifestao de esprito noafricanismo, como no Espiritismo, no catolicismo etc., mas o Espiritismono tem pontos de concordncia com nenhuma das ramificaes doafricanismo.

    Os nomes privativos do culto fetichista, hoje bastantemodificado, mostram por si mesmos, que no h traos de unio entreas prticas espritas e as cerimnias daquele culto.

    Na Linha de Umbanda, que , como j dissemos, a maisvulgarizada, principalmente no Rio de Janeiro, embora sem ascaractersticas originais, porque j se modificou, em grande parte, prinfluncia do catolicismo, o templo terreiro; o mdium cavalo; omarafo (bebida que se chama cachaa, na Bahia) faz parte dascerimnias, e assim por diante. H diferenas regionais, tanto no culto,como na prpria nomenclatura.

    Diz-se candombl na Bahia, ao passo que no Rio de Janeiro, ascerimnias fetichistas, com tambores, pontos cantados, linhas cruzadasno cho, etc., so chamadas de macumbas.

    No se contesta que haja sentimento de caridade em taiscerimnias, mas o que se deve considerar que no existe ligaoalguma entre africanismo e Espiritismo. Ainda h pouco, tivemos umexemplo tpico. Tendo ocorrido, na Capital baiana, a desencarnao de

    um velho pai de santo, alis muito popular, realizou-se a singularcerimnia da troca de cabeas por ocasio do enterro. De onde vemto curiosa cerimnia, seno do africanismo? Tem o Espiritismo,porventura, alguma cerimnia para enterrar os seus defuntos? No.Logo, no h paralelo entre os atos espritas, todos eles naturais, simplese espontneos, com os atos religiosos do africanismo.

    O jornal A Tarde, de Salvador, Bahia, noticiando o enterro do paide santo, Manuel Bernardino da Paixo, em sua edio de 18 de abril de1947, descreveu a cerimnia do seguinte modo:

    O esquife, armado na sala da frente, repousava sobre um estrado. O

    corpo estava todo recoberto de flores, emergindo apenas o rosto regular, escuro,

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    amarelecido pela morte. Crios imensos ladeavam o caixo perto do qual havia

    gua benta, com a qual os visitantes salpicavam o cadver. Para o interior, vrias

    dezenas de pessoas se comprimiam. Todos os espelhos da casa estavam cobertos

    com pano branco. Quando um 'pai de santo' se transfere para o outro mundo,

    deixa o seu substituto legal, o discpulo mais capaz e mais querido. Logo morte, o

    sucessor, antes do sepultamento do 'mestre', submete-se cerimnia conhecida

    por 'troca de cabeas'. Em consequncia desse ato, o novo 'babala' fica revestido

    das prerrogativas do primeiro. Justamente para ser processada essa cerimnia,

    atrasou-se o enterro de Bernardino. O seu substituto, 'Paizinho', mais conhecido

    por 'Bandanguami', reside no Rio. Agora, por fora do culto, tem que se transferir

    para a Bahia, onde assumir as funes de Bernardino. Avisado pelo telgrafo,

    Paizinho prometeu vir a tempo de se submeter cerimnia da 'troca de cabeas'.

    Por isso uma delegao de 'filhos', montou guarda em Ipitanga, esperando a

    chegada do seu 'novo pai', para conduzi-lo diretamente para o cemitrio dasQuintas, onde ainda puderam efetuar a solenidade. Tambm se aguardava a

    chegada de Cilial, da Vila Amrica, no caminho do Rio Vermelho de Baixo. Cilial

    estava na zona do sudoeste, quando recebeu a notcia e prontificou-se a chegar

    antes do enterramento de Bernardino. Por isso que o enterramento do chefe do

    Oxal foi retardado at cerca das 11 horas.

    O caixo diz ainda o jornal seria depositado nas palmas das

    mos e o trajeto seria feito em forma de zig-zag, ao som de hinosprprios.

    Tudo demonstra, como a est descrito o enterro, que oAfricanismo tem culto prprio. Nos terreiros, o que se verifica, no dehoje, mas desde muito tempo, combinao de prticas fetichistas ecatlicas. A crendice popular, entretanto, pretende introduzir oafricanismo no Espiritismo, tanto assim que j se observa em

    determinados centros alguma inclinao bem visvel para o ritual deumbanda. Trata-se de herana cultural favorecida pelo sincretismoreligioso. A prpria divulgao do Espiritismo por processosinteligentes contribui para destruir, por evoluo, os remanescentes dainfluncia afro-catlica.

    O Espiritismo encontrou, no Brasil, a preponderncia doafricanismo e do catolicismo, com um fator absolutamente favorvel: o

    baixo nvel intelectual das massas, educadas na superstio e sob oinfluxo da religio catlica, que lhe imprimiu o apego aos dolos, aossmbolos etc. Difcil tem sido ao Espiritismo reagir contra a propensode grande parte de seus simpatizantes para o culto fetichista. Da muita

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    32AFRICANISMO E ESPIRITISMOgente, que desconhece o assunto, que no sabe o que Espiritismo, dizerque Espiritismo e africanismo so sinnimos... Eis um erro que precisaser desfeito. Umbandismo, ou qualquer outra forma de africanismo, noconstitui modalidade do Espiritismo.

    No foi exclusivamente no Brasil que se deu essa mistura, frutodo encontro de religies. Ela teve expanso, e muito grande, em vriosoutros pases, suscitando estudos considerveis, como, entre outros, osque foram realizados pelo notvel folclorista americano Fernando Ortiz,de Cuba.

    A fuso de elementos absolutamente sem ligao histrica ousocial, s vezes unidos por fatores polticos ou simplesmente

    econmicos, produz mesclagem muito forte, tornando-se difcil depoisde certo tempo, qualquer pesquisa para determinar qual a maiordosagem cultural na formao de alguns povos. Um exemplo tpico odas Filipinas, cuja formao muito complexa. Mouros, malaios eespanhis ali se agruparam, formando o labirinto que os padresMurilo Valarde e Juan Ferrando estudaram pacientemente. Entre osnegritos das Filipinas, os estudiosos notaram o uso de tatuagem, tal

    como entre os ndios paraguaios, na poca da catequese. A infiltraocultural, j misturada, igualmente se faz sentir em Cuba e no Haiti.

    No Brasil, porm, a ligao do catolicismo com as prticasfetichistas no teve por caracterstica principal e exclusiva a tatuagem,com que se distinguiam diferentes divises tnicas da Amrica Central.Praticou-se mais o exorcismo, no Brasil, para expulsar demnios oumaus espritos. A prtica j era conhecida dos jesutas, que a utilizaram

    tambm nas Misses do Prata.Os ndios guaicurs, do Paraguai, catequizados pelosmissionrios jesutas, usavam tatuagem, segundo depoimento do padreCarlos Techuer S. J.: Pintavam o corpo e usavam tatuagem, tanto oshomens como as mulheres, porm as esposas dos tuxavas a restringiamaos braos, deixando a do rosto s subalternas escravas.12 Ora, no cultoumbandista ainda se encontra o exorcismo, que , sem dvida alguma,herana das primitivas prticas da catequese, assim como se observamem certos pais de santo evidentes sinais de tatuagem nos braos. Est

    12VIDA E OBRA DO PADRE ROQUE GONZALEZ, publicao feita pelo Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do

    Sul, 1926.

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    patente, portanto, que as religies de origem africana aderiram, tanto noBrasil como em vrios outros pases da Amrica, s prticas docatolicismo e do culto aborgene, muito antes de se conhecer a palavraEspiritismo.

    A expanso da Doutrina Esprita, a partir do sculo passado, isto, de 1857, encontrou o cruzamento, o consrcio cultural j formado.Apesar da existncia, cada vez mais generalizada, do sincretismo(africanismo, catolicismo e mediunismo) no se pode negar ocontingente cultural do elemento africano, cuja psicologia ainda est asolicitar estudos especiais e bem demorados. A cultura de origemafricana um vasto campo de estudo, como pondera o professor Artur

    Ramos: No investigar as influncias que o negro africano exerceu noNovo Mundo, temos de considerar os tipos negros, no com as suascaractersticas biolgicas (isso pouco importa ao nosso ponto de vista),mas como representantes de culturas que foram transportadas de suasreas naturais para outros povos e outras culturas, onde se puseram emcontato.13

    * * *

    Vamos admitir que se encare o assunto sob o ponto de vistacientfico, com excluso da parte religiosa. Ainda assim, est patente quenenhuma semelhana existe entre africanismo e Espiritismo, embora seregistrem, tanto nas sesses espritas, como nos terreiros afro-catlicos,indiscutveis fenmenos anmicos e extraterrenos, comuns a quaisquer

    trabalhos de natureza psquico-experimental.Quando se realizou, por iniciativa do socilogo Gilberto Freire,

    em 1934, o 1 Congresso Afro-Brasileiro, outra preocupao nopresidiu quele importante empreendimento seno a de examinarcriteriosamente a influncia africana sob todos os aspectos, no Brasil.Mas no se provocou estudo especial para separar o que exclusivamente fetichismo, com os elementos afro-catlicos que lhe so

    peculiares, e o que, de fato, Espiritismo. Para muitos estudiosos,folcloristas, socilogos, etnlogos, todo esse conjunto de prticas

    13AS CULTURAS NEGRAS NO NOVO MUNDO, Artur Ramos.

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    34AFRICANISMO E ESPIRITISMOprimitivas, enxertadas de elementos diversos, pertence ao Espiritismo,simplesmente por haver, em tais prticas, fatos que se enquadram noestudo do mediunismo e do animismo. D-se, portanto, ao Espiritismo,alis impropriamente, uma designao geral, quando s se pode

    considerar Espiritismo aquilo que corresponde aos princpios de suadoutrina.

    Entre os prprios umbandistas h quem reconhea a origemremotssima da religio de umbanda, cuja orientao fundamental,como ficou dito linhas atrs, est muito desfigurada. Mas, como fatohistrico, o culto da umbanda deriva do tronco fetichista da frica, deonde se espalhou. L-se, a propsito, no corpo de uma das teses

    apresentadas ao 1 Congresso Brasileiro de Espiritismo de Umbanda,reunido no Rio de Janeiro, em 1941, o seguinte: No obstante asdivergncias por vezes profundas na concepo que da umbanda tm osseus afeioados e adeptos, todos so acordes quanto s suas origensafricanas.14

    A palavra Espiritismo est empregada sem cabimento lgico,no ttulo do trabalho. Umbanda ramo do africanismo, como est

    demonstrado pelo consenso das opinies mais autorizadas. Com adiluio do africanismo puro, suas prticas comearam a apresentar,como ainda apresentam, feio mista de catolicismo primitivo,verificando-se manifestaes antiquadas, em determinados casos, o queevidencia a fuso de que a maioria dos autores se tem ocupado.

    A transformao do elemento negro reconhecida, tambm, porum dos maiores estudiosos dos assuntos brasileiros Pandi Calgeras

    estadista e homem de grande cultura, que embora no trate doassunto como especialista, fez observao muito acertada: Adescendncia abundantssima, a princpio, do elemento africano,comeou a diminuir pela decadncia de sua pureza racial: surgiu umacamada, em aumento crescente e ininterrupto, de mestios, meio-sangues, quarteires e ainda menos coloridos. At hoje no parou adiluio pigmentar.15

    O meio brasileiro, por fora das condies em que se fundiramos elementos primaciais de sua formao, evidentemente no permitiu

    14Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Espiritismo de Umbanda, Rio, 1942.

    15FORMAO HISTRICA DO BRASIL, Pandi Calgeras, 4 edio, 1945.

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    que se conservasse a integridade cultural do africano. A desfigurao doculto religioso um exemplo. O ambiente tornou-se, desde os temposprimitivos, campo aberto ao mediunismo popular, a que muita gentechama, sem propriedade, Espiritismo.

    Das massas que frequentam sesses medinicas e terreiros deumbanda, grande parte, incluindo-se muitos mdiuns, trouxe nosubconsciente a influncia do catolicismo. Da a inclinao, como quepor hereditariedade psquica, para as cerimnias fetichistas, porque oritual, a apresentao das cerimnias e a magia dos smbolos nodeixam de constituir ponto de atrao para as pessoas que ainda no seemanciparam de sua ancestralidade cultural e da influncia do meio

    ambiente.O fenmeno, entretanto, de natureza tanto cultural como

    religiosa. Com a preocupao do estudo, da investigao para buscar aVerdade, que se deve orientar a pesquisa no terreno histrico,antropolgico, e psicolgico, para fixar a distino entre africanismo eEspiritismo.

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    36AFRICANISMO E ESPIRITISMO

    CAPTULO III

    Os cultos de origem africana, como se sabe, so fetichistas.Tendo, porm, a palavra ftiche, do francs, tomado sentido popular noBrasil, principalmente na Bahia, onde o uso geral consagrou a forma

    portuguesa feitio, torna-se indispensvel mostrar uma alteraointeressante, para clareza do assunto.

    Entende-se por fetichismo, segundo a etimologia, o culto dosftiches, isto , a crena no poder de objetos naturais ou artificiais. Mas apalavra feitio empregada, entre ns, na acepo vulgar de fazer mal aalgum por meio de objetos de uso, peas de vesturio, pratos decomida etc. A fora do uso chegou a criar o verbo enfeitiar, significando

    justamente transmitir influncias malficas, impregnar algum defeitio.Sinnimo de feitio no vocabulrio popular da Bahia,

    urucubaca, que significa estar com azar, estar sob a ao de influnciasruins. No linguajar carioca j no se emprega urucubaca, porque quandose diz tirar o peso, ir macumba para descarregar o peso, o que estimplcito nesta expresso de gria o mesmo que tirar a urucubaca,

    conforme os costumes baianos. So ditos, como se v, equivalentes.A literatura moderna arrolou, contra a vontade dos puristas dalngua, muitos termos de gria, incluindo-os na linguagem corrente.Convm notar que, apesar da elasticidade que se deu ao termo feitio, overbo enfeitiar no usado na forma reflexiva, dando ideia, portanto,de ao que o indivduo recebe, de fora que vem de fora: ningum seenfeitia, mas algum enfeitiado. Nota-se, pois, que ftiche adquiriufeio mais popular no Brasil, adaptando-se, de tal forma ao meio, queseu correspondente em portugus (feitio) j se desligou, em grandeparte, da acepo cultural e religiosa em que devera ser empregado.

    Pouca gente diz feitio em aluso cultura negra ou s formas de

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    culto oriundas da frica, mas geralmente no sentido de malefcio, demacumba, feitiaria etc.

    Voltou-se, portanto, designao primitiva de feiticeiro com queeram tratados, em sentido pejorativo, os curadores e mdiuns, sem

    escapar o prprio Cristo quando fazia suas curas pela simples imposiodas mos. Mas ainda preciso distinguir outro ponto: feiticeiro,ordinariamente, tal como se diz na Bahia, que foi um dos centros deconcentrao da cultura africana, no , a rigor, o que cura, o que faz obem, e sim, o indivduo que trabalha para o mal, desfazendo amizades,destruindo lares, desorganizando a situao econmica de algum ouarranjando doenas que, s vezes produzem a morte, segundo a crena

    comum. Diante deste fenmeno lingustico, que determina a alteraodo verdadeiro significado de certas palavras, temos que considerar,contra as prprias razes de ordem etimolgica, alguma diferena entrefeitio, no sentido popular em que usado no Brasil, e a palavra que lhedeu origem: ftiche.

    * * *

    A literatura folclrica, que j abundante, mostra que certostermos perdem, sob a ao do tempo, o seu sentido primitivo,adaptando-se a ideias e coisas que o povo lhes atribui. Em assuntos decultura negra, por exemplo, poderamos recorrer ao autor citadoanteriormente professor Artur Ramos porque foi ele um dosprimeiros a fazer estudos especializados do elemento africano sob o

    ponto de vista exclusivamente folclrico.16A linguagem do povo consegue forar o sentido de muitas

    palavras. O que sucede com feitio tambm se verifica em relao aoemprego de muitas outras palavras que entraram para o acervo donosso folclore, ligando-se a lendas e supersties seculares,cuidadosamente anotadas por abalisado folclorista brasileiro.17

    Passemos agora, depois destas sumrias explicaes sobre

    feitio e seus derivados, ao carter fetichista das religies africanasintroduzidas no Brasil, para que possamos verificar a ausncia de

    16O FOLCLORE NEGRO NO BRASIL.

    17ANTOLOGIA DO FOLCLORE BRASILEIRO, Cmara Cascudo.

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    38AFRICANISMO E ESPIRITISMOqualquer relao entre essas religies e o Espiritismo.

    Enganou-se o padre Etienne Brasil quando disse que o modernoculto do Espiritismo no passa de uma forma do mais genuno egrotesco fetichismo. Neste ponto, at o prprio Artur Ramos, que fez

    estudos modernos e discordou do padre Etienne Brasil em diversasobservaes sobre as religies negras, caiu no mesmo equvoco,naturalmente por no ter elementos para distinguir a prtica esprita,segundo o mtodo e a orientao de Allan Kardec, das prticas afro-catlicas, cada vez mais espalhadas no Brasil. Afirma, por exemplo, odouto professor Artur Ramos: Todas as formas elevadas ou degradadasdo Espiritismo decorrem da magia evocatria.18

    J foi dito, no primeiro captulo, que, embora se faam evocaes,tanto nas prticas de Espiritismo, como nos terreiros do cultoumbandista, etc., nada tem que ver a Doutrina Esprita com aquele culto.O Espiritismo tem princpios, tem a sua organizao doutrinria nacodificao de Allan Kardec.

    As manifestaes fetichistas no se circunscrevem ao terrenopuramente religioso, porque, em determinados casos, produzem

    excitao especial. Os estudos de Freud e Binet, que se detiveram muitotempo no aspecto sexual de algumas formas grosseiras de fetichismo,fizeram investigaes interessantes, permitindo-nos, hoje, luz denovos processos de exame, considerar que o fetichismo est sujeito,como todos os cultos primitivos, a transformao e evoluo, seja poradaptao cultural, seja pela influncia de outras correntes.

    No Brasil, o fetichismo no se diluiu, mas se modificou em

    diversos aspectos. Muitos estudiosos, entretanto, no veem um fatoimportantssimo: as religies africanas inclinaram-se para o catolicismoe no para o Espiritismo. A organizao yoruba tem muitos pontos desemelhana com o catolicismo.

    E j est, por assim dizer, provado que a religio yorubanaexerceu, notadamente na Bahia, preponderncia sobre as outrasreligies africanas. A influncia da cultura negra se fez sentir de modomais pronunciado na regio nordestina, justamente porque ocontingente yorubano trouxe recursos culturais evidentemente mais

    18O NEGRO BRASILEIRO, 1 edio, pg. 129.

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    adiantados. que, na opinio do professor Artur Ramos, a culturayorubana por ser mais adiantada em paralelo com as outras, acabouabsorvendo estas ltimas e impondo-lhes os seus traos dominantes.19

    No sul do pas, entretanto, a influncia africana entrou por

    intermdio dos povos do Prata; e nos pases platinos no se deuinfiltrao yorubana, visto que ali preponderou a cultura dos congos,muito menos desenvolvida do que a dos yorubs.

    Na Amrica do Sul, como na Central, as religies africanasperderam, aos poucos, suas linhas primitivas, porque se misturaramcom o catolicismo e com o elemento indgena de alguns pases.

    Onde, porm, o elemento africano se conservou, por muito

    tempo, em estado original, foi nas Guianas. Da o mesmo autor afirmarque as culturas negras da selva, nas Guianas, permanecerem imunes docontato branco. Mas a cultura mais ativa entre os negros das Guianasno a yorub, porm, a Fanti-Ashanti, procedente da Costa do Ouro,embora nela se verifiquem certos vestgios do ramo yorub e dainfluncia bantu. Explica-se, at certo ponto, o estado de isolamento emque se mantiveram os africanos radicados nas Guianas, em virtude da

    situao especial daquela regio, bem como da maior parte do Orenoco,onde seus primitivos habitantes eram astrlatas, constituindo um grupocultural parte, ao que se supe.

    A este respeito, informa um dos maiores etnlogos brasileiros e,ao mesmo tempo, um dos mais lcidos representantes do elementonegro neste pas: Os povos primitivos da Guiana, os do vale do Orenoco,principalmente, em contato mais direto com os da Amrica Central e

    com os do planalto andino, de Cundinamarca, isto , os Chibchasastrlatas de Sogamoso, mui provavelmente refletiam, no que respeita crena, o culto do Sol de par com esse outro; to instintivo ao homem, depropiciar ao Gnio do Mal.20

    Os trabalhos de Roquete Pinto e Edison Carneiro,principalmente, trouxeram valioso contingente de informaes aoestudo das culturas primitivas do Brasil, sem que, todavia, se deva

    esquecer o nome de Manuel Querino, porque foi este ltimo, homem decor, muito inteligente, quem provocou, pelas importantes pesquisas que

    19AS CULTURAS NEGRAS NO NOVO MUNDO.

    20NATURALISTAS E VIAJANTES DOS SCULOS XVIII E XIX, Teodoro Sampaio.

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    40AFRICANISMO E ESPIRITISMOrealizou na Bahia, as grandes contribuies que dali se irradiaram,atravs do inolvidvel Nina Rodrigues, por todo o pas, alargando osestudos do africanismo, at ento pouco desenvolvido.

    Os estudos do prof. Baslio de Magalhes so, tambm, de grande

    utilidade.

    * * *

    J vimos, portanto, a ramificao cultural do africanismo e suaaderncia ao catolicismo. Nenhuma razo de ordem histrica oupsicolgica leva a admitir que haja relao entre Espiritismo e

    africanismo. O fetichismo constitui forma religiosa, tem suas divindades.As religies de origem africana, como j se disse inicialmente, sofetichistas. O Espiritismo no tem relao cultural com o fetichismo. Daise conclui que no h termo de comparao entre Espiritismo eafricanismo, embora se encontre o mediunismo e no se negue osentimento de caridade tanto naquele como neste. Mas a mediunidade,assim como a prtica do bem, que a exteriorizao dos bons

    sentimentos da criatura humana, podem ser observados em qualquerorganizao religiosa. O prprio padre Etienne Brasil, que confundiu oEspiritismo com fetichismo, afirma que: O fetichismo uma verdadeirareligio com seus dogmas, preceitos e ritos peculiares.21 Ora, se ofetichismo uma verdadeira religio, possuindo corpo doutrinal, estprovado que, no sendo o Espiritismo fetichista, no tem relao comnenhuma das ramificaes desse culto. Entretanto, so muito

    acentuados os traos de afinidade entre o catolicismo e o africanismo,tanto que h divindades, cerimonial, sacerdotes, etc., neste e naquele.Basta que consideremos este fato: No fetichismo gge-nag(investigao, ainda, do professor Artur Ramos) os orixs foramassimilados, um a um, dos santos catlicos. Orixal ou Oxal identificou-se com o Senhor do Bonfim, na Bahia. Esta equivalncia no parece sermotivada pelo fato de ser a Igreja do Senhor do Bonfim edificada no altode uma colina, na Bahia, da mesma forma que, na frica, Orixal adorado no topo do monte Ok... A verdadeira razo parece-me consistir

    21REVISTA DO INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO BRASILEIRO, vol. 74,1911.

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    em que Orixal, o maior dos santos, para o yorubano, se identifica com oSenhor do Bonfim, o santo de maior devoo, o mais milagreiro daBahia.

    Sendo religio de povos adiantados, o catolicismo teria de

    exercer influncia sobre os africanos. O jejum de mal, por exemplo, uma confirmao do que acabamos de dizer, porque essa prtica provaque existe correspondncia entre o culto africano e o catlico. LeiamosManuel Querino, que estudou, com sinceridade e escrpulo, a formaoreligiosa de sua prpria ascendncia: Na semana em que a religiocatlica celebra a festa do Esprito Santo, comeava o jejum anual doMal, pela forma seguinte: levantavam-se de madrugada, cozinhavam o

    inhame e pisavam para comer com ef, bolo de arroz machucado comfub, com leite e mel de abelha. Durante esse intervalo de tempo o Malnem gua bebia, assim como no absorvia a saliva. No ltimo dia dejejum realizavam grande festa em casa do maioral da seita, havendomissa. Nenhuma bebida alcolica era usada nessa festa. No ato desacrificar o carneiro, introduziam a ponta da faca na areia e sangravam oanimal proferindo a palavra Bi-si-mi-lai.

    Conclui Manuel Querino: Corresponde esta cerimnia aosacrifcio de Isaac.

    At mesmo nas festas populares, vemos a fuso, o sincretismo,tal como nos descreve, ainda, o livro de Manuel Querino, com refernciaao rancho da burrinha: Os ranchos da burrinha e do boi so filhosentremez do momo portugus com enxertos tirados dos autos pastoris evisvel influenciao totmica por parte dos ndios e negros.22 Os cultos

    africanos entraram no Brasil com profundos resqucios de crenasremotssimas, principalmente do islamismo, o que torna difcil, hoje,fixar com nitidez a parte preponderante desta ou daquela corrente deinfluncia.

    V-se, finalmente, que as prticas fetichistas, com seus smbolos,suas divindades, seu ritual, etc., se aproximam cada vez mais docatolicismo. Quanto ao Espiritismo, porm, no se pode afirmar que haja

    afinidade deste com o africanismo, por duas razes fundamentais:a) O que caracteriza o Espiritismo a ausncia de ritual;22

    A BAHIA DE OUTRORA.

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    42AFRICANISMO E ESPIRITISMOb) Tendo por base de sua doutrina as leis naturais, o Espiritismo

    exclui racionalmente a ideia do sobrenatural, do milagre, dopoder dos fetiches.

    O fetichismo , como se sabe, o tronco de religies primitivas,muito desfiguradas, como j foi dito em pginas anteriores, e seuspontos bsicos assentam precisamente no sobrenatural, na crena emdivindades, tal qual se verifica no catolicismo, cujo fundamentoteolgico se estriba em crena idntica, no milagre, etc., variando apenasa terminologia particular de cada religio. O africanismo, com todo oconjunto de suas formas religiosas, remoto, vem de uma fonte de

    cultura muitssimo velha, ao passo que o Espiritismo, isto , Espiritismocomo corpo de doutrina, posterior quela cultura.

    A evoluo social no concorreu, como poderia parecer, demaneira sensvel, para a transformao dos cultos africanos no Brasil. Aesto os exemplos dos candombls ou xangs da Bahia, os catimbs dePernambuco, as macumbas do Rio de Janeiro.

    muito conhecida, na Bahia e fora da Bahia, a tradio dos

    candombls do Cabula, na capital do Estado. Afirma-se que certospolticos de evidncia frequentavam, altas horas da noite, as casas dedeterminados pais de terreiro, no Cabula, quando chegava a poca deeleies. O professor Artur Ramos, que esteve muito tempo na Bahia,onde formou o lastro de sua cultura cientfica, cita essa informaopopular.23

    De fato, alguns pais de santo eram como que orculos, ao que se

    atribui a considerao de que gozavam junto a polticos de prestgio.Convm notar, especialmente por se tratar de um escritorcatlico, insuspeito, portanto, que Luiz Viana Filho reconhece que oculto catlico tem preponderncia no sincretismo afro-brasileiro. Oautor, que deputado federal pela Bahia24 vai muito adiante, chegando adizer o seguinte: O bntu, de religio pobre de deuses, e cujosincretismo religioso com o catolicismo j se processava desde a fricacom certa intensidade, no tardou em assimilar, integrando-os no seu

    23 Veja-se O NEGRO BRASILEIRO, Artur Ramos.24

    Lus Viana Filho (1908-1990) foi deputado federal em sucessivos mandatos de 1945 a 1966 e senador a partir de1979. Era jornalista e historiador Nota do PENSE.

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    culto, deuses sudaneses e santos catlicos.25Nossa tese, neste trabalho, justamente esta: o africanismo

    aproxima-se mais do catolicismo do que do Espiritismo.O sincretismo afro-catlico nas macumbas e candombls uma

    prova do que afirmamos. Luiz Viana Filho sustenta que o africanismocomeou a se fundir com o catolicismo muito antes do cruzamentorealizado em terra brasileira. Podemos acrescentar que certas devoescatlicas existentes no Brasil denunciam a presena do elementoafricano, o que confirma a informao de Luiz Viana Filho, isto , a deque, desde a frica, j o africano havia recebido influncia docatolicismo.26

    O prof. Augusto Lins e Silva, catedrtico da Faculdade deMedicina do Recife, antigo discpulo de Nina Rodrigues, escreveu, emlivro tambm recente, o seguinte: Sabendo-se que o mito sempre foimanifestao do povo primitivo, exploravam os brancos essa face dosentimento do negro, confiando-lhe o culto religioso sob a irrisriamajestade dos reis do Congo.27

    No Brasil, atenta Nina Rodrigues, Nossa Senhora do Rosrio

    sempre foi uma confraria de negros. E era a padroeira da Monarquia doCongo, nao que dentre as demais, como por exemplo, Angola, Regalo,Moambique, gozava de certa ascendncia O culto de S. Jorge,principalmente no Rio de Janeiro, um misto de catolicismo eafricanismo, assim como o de Cosme e Damio.

    O Espiritismo, que no tem orculos, que no usa adivinhao,que no tem cerimonial nem imagens, no apresenta semelhana

    alguma com os velhos cultos do Brasil. O Espiritismo tem a prece, mastoda natural; evoca esprito, mas sem ritual, porque no tem cultomaterial, finalmente.

    No tendo culto material, evidentemente, o Espiritismo nopoderia ter pontos de atrao para os cultos de origem africana. Logo,no h equivalncia entre a prtica do Espiritismo e as prticasreligiosas do africanismo (conjunto de seitas e formas de culto de

    procedncia africana) visto que o Espiritismo repele naturalmente25 Diz, ainda, o mesmo autor: A macumba do Rio, o xang da Bahia e o catimb de Pernambuco so remanescentesdas antigas mesquitas africanas.26

    O NEGRO NA BAHIA, Luiz Viana Filho, prefcio de Gilberto Freyre, 1946, pg. 134.

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    44AFRICANISMO E ESPIRITISMOritual, smbolos etc.

    Justamente para definir o Espiritismo com preciso, para evitar,sem dvida, que o Espiritismo se confundisse com as seitas e escolasespiritualistas (entre estas a do fetichismo, porque se apoia, tambm, na

    imortalidade da alma) teve Allan Kardec a necessidade, bemcompreensvel, de criar a denominao prpria desse corpo de doutrina.Da o neologismo por ele formado, no sculo passado, para designar aDoutrina Esprita: Espiritismo.

    Eis a explicao do codificador desta doutrina, em trabalhopublicado no ano de 1866 em REVUE SPIRITE, rgo por ele fundadologo depois de haver lanado, em O LIVRO DOS ESPRITOS (1857) as

    bases do Espiritismo: Criamos a palavra Espiritismo, para atender snecessidades da Causa; temos, pois, o direito de lhe determinar asaplicaes e de definir as qualidades e as crenas do verdadeiroesprita.28

    Sustentando o princpio de que o Espiritismo, no admitindo osobrenatural, no pode, por consequncia, harmonizar sua doutrina comqualquer religio que apele para solues teolgicas (catolicismo,

    fetichismo etc.), Allan Kardec j dizia, desde 1864, ao publicar OEVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO: O Espiritismo a cincia novaque vem revelar aos homens, por meio de provas irrecusveis, aexistncia e a natureza do mundo espiritual e as suas relaes com omundo corpreo; ele no-lo mostra no mais como coisa sobrenatural,porm, ao contrrio, como uma das foras vivas e sem cessar atuantesda natureza, como a fonte de uma imensidade de fenmenos at hoje

    incompreendidos e, por isso, relegados para o domnio do fantstico edo maravilhoso.29Nada existindo de sobrenatural na concepo do Espiritismo

    relativamente ao mundo espiritual, a prtica esprita de modo algumpoderia nivelar-se com as prticas do culto fetichista, base das religiesde origem africana. Com o respeito que me merecem todas as crenas,sem deixar de reconhecer que o elemento africano muito contribuiupara a formao do povo brasileiro, dando-lhe acentuada

    27ATUALIDADE DE NINA RODRIGUES, Augusto Lins e Silva, 1945.28

    OBRAS PSTUMAS, Allan Kardec, 2 Parte, item X Constituio do Espiritismo.29O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, Allan Kardec, cap. I, n 5, 28 edio, pg. 46.

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    45Deolindo Amorim

    sentimentalidade, no vejo, todavia, semelhana entre Espiritismo eafricanismo.

    As prticas de origem africana, largamente ramificadas, soespiritualistas, dignas de respeito como quaisquer outras prticas

    religiosas, mas no constituem variante das prticas do Espiritismo.Encerrando este trabalho, chego concluso de que

    africanismo no Espiritismo.

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    www.luzespirita.org.br