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Africanidades e Ensino: o que prevalece no livro didático de Geografia? Rafaela Pacheco Dalbem 1 Palavras-Chave: geografia escolar, geografia africana, livro didático, legislação, ensino de geografia Resumo: Nesse artigo apresentaremos uma parte das análises e resultados da pesquisa desenvolvida ao longo do trabalho de mestrado intitulado “A representação do negro e da Geografia Africana nos livros didáticos brasileiros: a lei 10.639/03 e o ensino no segundo ciclo da educação fundamental, defendido na Universidade Federal do Paraná em maio do ano 2018. Para tal, o dividiremos em três momentos: O primeiro apresenta o levantamento quantitativo de disciplinas em Instituições de Ensino Superior brasileiras que levam em consideração as relações étnico-raciais. Esse levantamento foi feito somente nas instituições públicas com curso de licenciatura em Geografia. No segundo momento apresentaremos uma análise do edital do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD). Essa análise foi feita tendo como foco as exigências naquilo que toca as questões étnico-raciais. Por fim, o terceiro momento apresentará uma síntese global dos dados das coleções de Geografia aprovadas no último edital do PNLD e as nossas análises sobre elas. O QUE SABEM AQUELES QUE ENSINAM GEOGRAFIA DA ÁFRICA? Muitas das problemáticas que apareceram ao longo do trabalho realizado são reflexo de uma sociedade preconceituosa da qual ainda fazemos parte. Diretamente associado a isso, temos o fato de que pouco discute, no âmbito acadêmico e formal, sobre o continente africano. A educadora Dr.ª Nilma Lino Gomes aponta que a implementação da lei 10.639/03 também encontra os cursos de formação de professores em ensino superior com pouco ou nenhum acúmulo sobre a temática racial e, muitas vezes, é permeada pela resistência a sua própria inserção nos currículos dos cursos de Pedagogia e Licenciatura (GOMES, 2010, p.103-104, grifo nosso). Com a intenção de afirmar com mais propriedade aquilo que passamos como discente ou que percebemos enquanto professora, decidimos pesquisar e sistematizar dados quantitativos para a graduação em Geografia. Esses dados consistem na existência ou não de disciplinas sobre a Geografia da África e, assim, poderíamos 1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná [email protected]

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Africanidades e Ensino: o que prevalece no livro didático de Geografia?

Rafaela Pacheco Dalbem1 Palavras-Chave: geografia escolar, geografia africana, livro didático, legislação, ensino de geografia

Resumo: Nesse artigo apresentaremos uma parte das análises e resultados da pesquisa

desenvolvida ao longo do trabalho de mestrado intitulado “A representação do negro e da Geografia Africana nos livros didáticos brasileiros: a lei 10.639/03 e o ensino no segundo ciclo da educação fundamental”, defendido na Universidade Federal do Paraná em maio do ano 2018. Para tal, o dividiremos em três momentos: O primeiro apresenta o levantamento quantitativo de disciplinas em Instituições de Ensino Superior brasileiras que levam em consideração as relações étnico-raciais. Esse levantamento foi feito somente nas instituições públicas com curso de licenciatura em Geografia. No segundo momento apresentaremos uma análise do edital do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD). Essa análise foi feita tendo como foco as exigências naquilo que toca as questões étnico-raciais. Por fim, o terceiro momento apresentará uma síntese global dos dados das coleções de Geografia aprovadas no último edital do PNLD e as nossas análises sobre elas.

O QUE SABEM AQUELES QUE ENSINAM GEOGRAFIA DA ÁFRICA?

Muitas das problemáticas que apareceram ao longo do trabalho realizado são

reflexo de uma sociedade preconceituosa da qual ainda fazemos parte. Diretamente

associado a isso, temos o fato de que pouco discute, no âmbito acadêmico e formal,

sobre o continente africano. A educadora Dr.ª Nilma Lino Gomes aponta que

a implementação da lei 10.639/03 também encontra os cursos de

formação de professores em ensino superior com pouco ou nenhum acúmulo sobre a temática racial e, muitas vezes, é permeada pela resistência a sua própria inserção nos currículos dos cursos de Pedagogia e Licenciatura (GOMES, 2010, p.103-104, grifo nosso).

Com a intenção de afirmar com mais propriedade aquilo que passamos como discente ou que percebemos enquanto professora, decidimos pesquisar e sistematizar dados quantitativos para a graduação em Geografia. Esses dados consistem na existência ou não de disciplinas sobre a Geografia da África e, assim, poderíamos

1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná – [email protected]

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Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Consórcio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)

dialogar com os dados encontrados para a pós-graduação, no trabalho da autoria de Diogo Marçal Cirqueira e Gabriel Siqueira Correa (2012)2.

O primeiro passo foi a pesquisa no website do Ministério da Educação (MEC3). Nessa plataforma, é possível fazer uma busca de todos os cursos de geografia que existem no Brasil, com a possibilidade de inserir alguns filtros. Para essa pesquisa preenchemos o mecanismo de busca da seguinte forma: consulta avançada → curso: geografia → gratuidade do curso: sim → grau: licenciatura → situação: em atividade → e, então, digitamos o código que a plataforma gerou no momento da consulta; todos os outros campos não foram preenchidos.

Esses filtros geraram uma tabela que foi baixada da plataforma em formato de planilha do Excel. A partir daí, buscamos o endereço de todas as universidades/faculdades que ali se encontravam. O intuito era procurar na ementa dos cursos a existência ou não de disciplinas que embasassem a formação de professores de geografia pensando na Geografia da África e/ou nas relações étnicas-raciais (e, quando possível, procuramos nos Projetos Político-Pedagógicos das instituições também). Foram consultados todos os endereços e as informações foram sistematizadas para gerar a tabela abaixo (TABELA 1).

TABELA 1 – Levantamento do número de disciplinas que tenham “Geografia da África” ou similares nos cursos de licenciatura do brasil

Região (IBGE)

Número de cursos

Com disciplinas obrigatórias (Geografia da África ou similares)

Com disciplinas optativas (Geografia da África ou similares)

Sem informação sobre as disciplinas do curso

Sem disciplinas (Geografia da África ou similares)

Centro-oeste 8 3 0 2 3

Nordeste 30 7 6 9 8

Norte 11 2 0 1 8

Sudeste 23 7 1 1 14

Sul 16 7 2 0 7

EaD 13 4 4 0 5

Total 101 30 13 13 45

Fonte: Dados obtidos no website http://emec.mec.gov.br/. Org.: a autora

O número total de cursos de licenciatura gratuitos em Geografia no Brasil é hoje de 101, onde:

2 No texto citado, os autores fizeram um apanhado dos trabalhos de pós-graduação em programas de Geografia que trabalhavam com a questão étnico-racial. Naquele momento de acordo com os autores, nenhum trabalho sobre questões étnico-raciais e educação tinha sido desenvolvido nos programas de pós-graduação em Geografia no país, o que consiste em uma grave lacuna. 3 http://emec.mec.gov.br/

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30 (29,7%) possuem disciplinas obrigatórias que tratam da temática africana;

13 (12,9%) possuem disciplinas optativas que nem sempre são do curso de geografia;

13 (12,9%) não possuem essas informações disponíveis; e,

45 (44,5%) ainda não possuem disciplinas que tratam da temática.

Esse levantamento nos ajudou a entender a dinâmica inicial da nossa pesquisa, pois, ao decidirmos pela problemática aqui desenvolvida, iniciamos a procura de trabalhos dentro dos programas de pós-graduação em geografia. Para nossa surpresa, muitos dos trabalhos que envolviam a lei e a disciplina de geografia não estavam ligados aos cursos de pós-graduação dessa ciência, mas, sim, aos cursos de pós-graduação em Educação.

Uma análise rápida sobre os dados encontrados no nosso levantamento traz indicações que conversam tanto com os dados do artigo a que estamos nos referindo (CIRQUEIRA; CORREA, 2012) como com as observações colocadas no início do capítulo (GOMES, 2010). Se temos um reconhecimento legislativo da necessidade de discussão em âmbito acadêmico e escolar, seja da importante contribuição para a sociedade brasileira (técnica e cultural) dos africanos que foram trazidos em situação de escravidão, seja das barreiras e correntes que seus descendentes enfrentam frente uma sociedade que ainda possui um pensamento escravocrata, qual é a justificativa das Instituições de Ensino Superior para que esses assuntos ainda não estejam de maneira obrigatória em seus currículos? Não poderemos responder isso de maneira factual uma vez que não conversamos com os responsáveis pela organização dos currículos, mas, talvez, falamos aqui de um preconceito acadêmico e epistemológico que mantém uma linha de pensamento que é a mesma da história da fundação das universidades brasileiras.

Se na pesquisa dos autores Cirqueira e Correa (2012) sobre pós-graduação a produção acadêmica de uma formação strictu sensu sobre a temática era irrisória, vemos na graduação em Geografia o início de suas causas.

Temos cerca de 44,5% de cursos de licenciatura em Geografia no Brasil que não abordam, de maneira formal, a Geografia da África ou relações étnico-raciais. Se relacionarmos os dados do total de cursos por regiões com a quantidade que possuem disciplinas dentro dessas temáticas de maneira obrigatória, os dados ficam ainda mais alarmantes. Nenhuma das regiões atinge ou ultrapassa sozinha o índice de 44,5% de presença de disciplinas preocupadas em discutir o continente africano, sendo que a região norte se caracteriza como a que menos disponibiliza a formação (somente 18% das instituições disponibilizam a formação na área) e a região sul a que mais disponibiliza (com um índice de 43,8%). Esses dados conversam com os dados para a pós-graduação encontrada pelos autores para a região norte, mas destoam dos dados encontrados para a região Sul.

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Retomamos aqui o fato de não termos encontrado trabalhos de pós-graduação atrelados aos programas de Geografia para nosso referencial bibliográfico provenientes da região Sul, pelo menos não que tivessem em seu escopo principal a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) após as modificações de 2003 e 2008. O que isso quer dizer? Se durante a pesquisa sobre a pós-graduação os autores procuraram os reflexos de discussão sobre o continente africano materializado em dissertações e teses, aqui pensamos na formação de base do acadêmico de geografia. Se há a disponibilidade de disciplinas nos cursos de Geografia na região Sul, qual o elo perdido no reflexo dessas produções da pós-graduação? Cabe aqui, para um trabalho futuro, verificar se há o reflexo nas monografias ou projetos de estágio das graduações da região, para que possamos interpretar melhor os dados.

Diante do quadro, colocamos aqui que cabe às Instituições de Ensino Superior, de maneira urgente, estabelecer e oferecer com frequência disciplinas que discutam a diversidade, pois é na formação docente que as lacunas da sala de aula podem ser minimizadas.

O sociólogo Dr. Luiz Fernandes de Oliveira (2010) coloca aquilo que podemos perceber através do levantamento dos dados:

sobre a formação docente, o que vem se desenvolvendo ainda é muito incipiente, se limitando, muitas vezes, a relatos de experiências com a formação continuada ou constatações sobre a demanda por formação exigida pelos professores (Oliveira, 2005 e 2007; Souza e Crosso, 2007 e Oliveira e Lins, 2008) (OLIVEIRA, 2010, p. 118).

O autor versa sobre a formação em História, mas nos dá pistas do que poderíamos mudar/pensar na formação docente de maneira geral, desde a graduação e não apenas nas formações continuadas. Se, de acordo com a Dr.ª Nilma Lino Gomes (2008, p. 519), “descolonizar o currículo é um desafio para o terceiro milênio”, devemos pensar também que, se os livros didáticos se mantiverem com a mesma forma de discurso, a universidade (na figura dos seus docentes) deve formar para que os docentes consigam ler os materiais na perspectiva da crítica e da problematização e não aceitar o discurso do livro como uno e verdadeiro.

LEGISLAÇÃO, PNLD, RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA: O QUE COBRAM

– EM TEORIA – DAQUELES QUE ESCREVEM?

De acordo com o site do Fundo Nacional de Educação, o PNLD é o mais antigo programa de distribuição gratuita de livros didáticos para rede púbica de educação no Brasil. Esse fato não só nos dá uma dimensão da importância de lermos atentamente seu edital, como deveria incitar analisarmos os produtos aprovados pelas comissões de

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análise. Isso porque os livros didáticos distribuídos pelo programa representam a fonte literária mais consultada por alunos de escolas públicas do país, ou seja, os produtos ali aprovados vão ajudar a formar os estudantes.

Não há dúvidas que o PNLD é um instrumento importante de democratização ao acesso de livros didáticos desde a sua criação. Esse fato é importante não só pelo que dissemos no parágrafo anterior, mas para reforçarmos a necessidade de atender aos critérios do edital do PNLD que indica uma educação cidadã (e antirracista).

A Drª Nilma Lino Gomes (2010, p. 108) apontou que alguns dos desafios para uma educação antirracista é a superação da lógica conteudista do processo de formação dos professores e professoras, bem como a inclusão das orientações da LDB nos editais do PNLD. O educador Dr Miguel González Arroyo (2010, p. 114) defendeu que é preciso avançar mais na criação de normas compulsórias sobre a eliminação de todo preconceito racial no material escolar e nas condutas dos alunos e profissionais da escola.

O aspecto defendido pela Drª Nilma Lino Gomes, naquilo que diz respeito à Geografia, pode ter um panorama definido pela tabela apresentada anteriormente (Tabela 1), sobre o quantitativo de instituições onde a formação mínima para se dar aula de geografia da África é obrigatória. O segundo aspecto, indicado por Arroyo, sobre a inclusão de instruções antirracistas presentes no PNLD, já é observada desde o edital de 2006 e no último edital, de 2017, apresenta-se da seguinte forma:

(...) a obra didática, como mediador pedagógico, proporciona, ao lado de outros materiais pedagógicos e educativos, ambiente propício à busca pela formação cidadã, favorecendo a que os estudantes possam estabelecer julgamentos, tomar decisões e atuar criticamente frente às questões que a sociedade, a ciência, a tecnologia, a cultura e a economia. (BRASIL, 2017, p. 39)

Dentro das propostas pedagógicas para obras a serem aprovadas, o edital ainda destaca que há a necessidade de promover diferentes realidades e atores sociais. No tocante a essa pesquisa, o edital coloca nos seus itens 6, 7 e 8, respectivamente, “que há a necessidade de promover positivamente a imagem de afrodescendentes e dos povos do campo, considerando sua participação e protagonismo em diferentes trabalhos, profissões e espaços de poder; promover positivamente a cultura e história afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros, dando visibilidade aos seus valores, tradições, organizações, conhecimentos, formas de participação social e saberes sociocientíficos, considerando seus direitos e sua participação em diferentes processos históricos que marcaram a construção do Brasil, valorizando as diferenças culturais em nossa sociedade multicultural; e, por fim, abordar a temática das relações étnico-raciais, do preconceito, da discriminação racial e da violência correlata, visando à construção de uma sociedade antirracista, solidária, justa e igualitária”. (BRASIL, 2017, p. 39-40)

No que diz respeito aos critérios eliminatórios, o edital do PNLD, na página 41, destacamos algumas normativas comuns para todas as áreas, como por exemplo: o

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respeito à faixa etária das(os) estudantes, observar se está de acordo com os princípios éticos necessários ao convívio em sociedade, coerência com o plano de obra e atualização de dados.

Sobre o item 2.1.1 do edital, que aborda o respeito à legislação, às diretrizes e às normas oficiais relativas ao ensino fundamental, fica explícito a necessidade de atender às demandas da LDB (bem como às leis nº 11.645/20084, nº 11.274/20065 e nº 11.525/20076). Nas especificidades da Ciência Geográfica, o documento coloca a geografia sendo concebida como

Uma ciência que estuda processos, dinâmicas e fenômenos da sociedade e da natureza, voltada à compreensão das relações sociedade/espaço/tempo que se concretizam diacrônica e sincronicamente, produzindo, reproduzindo e transformando o espaço geográfico nas escalas local, regional, nacional e mundial. Essas relações abordadas no processo de construção social, cuja gênese se constitui no espaço e no tempo, não podem ser entendidas como uma enumeração ou descrição de fatos e fenômenos desarticulados, que se esgotam em si mesmos (BRASIL, 2015, p.55)

As características que eliminariam uma obra da Geografia, de maneira específica, seriam as obras não respeitarem dezoito critérios estabelecidos para o livro didático, associados a sete critérios estabelecidos para o manual do professor. Todos esses critérios podem ser observados nas páginas 55 a 57 do documento oficial7, mas destacamos que os itens 3, 5, 6, 8, 13 e 14 são os que conversam de maneira mais direta com o nosso trabalho. Esses itens foram importantes para a análise das coleções.

O terceiro tópico versa sobre os processos históricos, sociais, políticos e culturais para o entendimento do grau de desenvolvimento dos espaços. Nesse quesito, a Geografia vai auxiliar – junto com a História – a entender, por exemplo, a expansão europeia para outros espaços e como isso reflete, ainda hoje, no grau de desenvolvimento dependendo da forma como essa ocupação foi imposta. O quinto item, por sua vez, faz-se importante pois conversa com as ideias do pedagogo galego Jurjo Torres Santomé (2013, p. 241, destaque nosso), quando o autor coloca que as vozes menos presentes dentro da cultura escolar são as vozes do mundo feminino, da infância/juventude/terceira idade, com algum tipo de doença ou deficiência, gays,

4 “Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” (BRASIL, 2008). 5 “Altera a redação dos Arts. 29, 30, 32 e 87 da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, dispondo sobre a duração de 9 (nove) anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade” (BRASIL, 2006). 6 “Acrescenta § 5.º ao art. 32 da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para incluir conteúdo que trate dos direitos das crianças e dos adolescentes no currículo do ensino fundamental” (BRASIL, 2007) 7 Para a análise de todos, acessar: <http://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro/consultas/editais-programas-livro/item/6228-edital-pnld-2017>. Acesso em: 20 julho 2017.

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lésbicas, transexuais, intersexuais, as classes trabalhadoras e a pobreza, o mundo suburbano, rural e marítimo, as nações sem estado, as etnias minoritárias ou sem poder, os orientais e do terceiro mundo e de outras religiões ou ateias, configuram as vozes ausente da cultura escolar. O tópico 6, complementa o anterior na medida em que esses modos de vida estarão sempre atrelados às categorias de análise geográficas desde a sua concepção (lugar, espaço, paisagem, território, região, redes...). O oitavo, é talvez o mais importante na medida em que fala da veracidade das informações e em muitos momentos os materiais didáticos de maneira geral, seja pela escolha editorial de manter um discurso historicamente aprovados nesses editais ou por falta de conhecimento, acaba ocultando algumas coisas. Fala-se de maneira superficial sobre as técnicas criadas no continente africano e que forjaram tecnologias que usamos até hoje. Falta contexto e, com isso, informações corretas. Já o décimo terceiro tópico vai versar sobre o cuidado em reforçar estereótipos e reducionismos no tratamento das questões de um determinado lugar e, como veremos adiante, a coleção mais distribuída hoje acaba reforçando estereótipos na medida em que não contrabalanceia o discurso reducionista de que a África é um continente cheio de doenças, guerras sem sentido e pobreza. Por fim, o décimo quarto parágrafo, uma vez cumprido nas obras, vai diminuir a escala e falar dessa diversidade de importância da pluralidade social e cultural, bem como o respeito à diversidade, mas no âmbito do território brasileiro e levando em conta todo o processo histórico de formação do povo brasileiro.

No tocante ao manual do professor, seriam excluídas as coleções que não apresentassem (destacamos aqui os tópicos que conversam de maneira mais próxima com essa pesquisa):

3. orientação pedagógica que permita ao docente a abordagem e a articulação dos conteúdos do livro entre si e com outras áreas do conhecimento, especialmente nas áreas afins da ciência geográfica como Ciências e História; 4. bibliografia diversificada e sugestões de leitura que contribuam para a formação continuada do professor, nos campos da natureza e da sociedade focalizados pela geografia no currículo escolar; [...] 6. subsídios que contribuam com reflexões sobre o processo de avaliação da aprendizagem de Geografia de acordo com as orientações descritas nas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos (BRASIL, 2015, p. 57).

Os itens três e quatro visam não só ao manual auxiliar na formação continuada

do professor, demonstram a possibilidade de trabalho com outras áreas do conhecimento. No tocante ao continente africano – e todos os continentes colonizados na lógica da colonização da exploração – acreditamos que a parceria com a disciplina de História é imprescindível. Por fim, o tópico seis vai evidenciar sobre a importância de o material didático estar em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais

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(DCNs). Podemos perceber, portanto, que a norma compulsória existe, mas, ainda, as imagens e conteúdos que ainda estão presentes em muitas das obras naquilo que se remete ao continente africano reforçam os estereótipos que queremos ver abolidos.

ANÁLISE GLOBAL COMPARATIVA DAS COLEÇÕES APROVADAS NO PNLD/2018 (ANOS FINAIS

DO ENSINO FUNDAMENTAL)

No último edital do PNLD para os anos finais do Ensino Fundamental, foram

aprovadas onze coleções de livros didáticos, totalizando 44 volumes. Nesse trabalho, nós avaliamos todas, tendo em mente os critérios colocados pelo edital do PNLD e outros, como a indicação prévia na fala do Dr. Rafael Sânzio Araújo dos Anjos8 sobre a quantidade de páginas dedicadas ao continente em comparação aos outros. As coleções, bem como seus autores, editoras, edição e ano de publicação podem ser observadas na tabela a seguir (Tabela 2). As coleções foram dispostas na tabela em ordem decrescente de acordo com os números de distribuição total, soma do livro do aluno e manual do professor, dos exemplares vendidos9.

TABELA 2 – Coleções aprovadas no último PNLD

Nome da coleção Autores Editora Edição/Ano/Código do livro

Exemplares distribuídos

Expedições Geográficas

Melhem Adas e Sérgio Adas

Moderna 2ª edição/2015 0058P17052

3.381.582 (≈31,3%)

Vontade de Saber Geografia

Neiva Torrezani FTD 2ª edição/2015 0044P17052

1.719.260 (≈16 %)

Geografia Espaço e Vivência

Andressa Alves, Levon Boligian, Rogério Martinez, Wanessa Garcia

Saraiva Educação

5ª edição/2015 0043P17052

1.106.252 (≈10,2%)

Geografia Homem & Espaço

Anselmo Lazaro Branco e Elian Alabi Lucci

Saraiva Educação

6º ano – 26ª edição/ 7º ano – 24ª/8º e 9º anos – 27ª/2015 0075P17052

1.081.468 (≈10%)

8 “nos livros didáticos de Geografia Geral e nos Atlas Geográficos, o continente africano está colocado sistematicamente nas partes finais da publicação e geralmente com um espaço bem menor que os outros blocos continentais” (ANJOS, 2005, p. 175). 9 Para mais informações, acessar http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-dados-estatisticos (acesso em 30/07/2017)

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Para Viver Juntos – Geografia

Fábio B. Moreirão e Fernando dos S. Sampaio

SM 4ª edição/2015 0082P17052

938.487 (≈8,7%)

Projeto Mosaico – Geografia

Beluce & Valquíria Editora Scipione

1ª edição/2015 0038P17052

712.293 (≈6,6%)

Por dentro da Geografia

Wagner Costa Ribeiro Saraiva Educação

3ª edição/2015 0031P17052

566.610 (≈5,2%)

Geografia nos dias de hoje

Claudio Giardino, Ligia Ortega, Rosaly B. Chianca e Virna Carvalho

Leya 2ª edição/2015 0049P17052

474.813 (≈4,4%)

Projeto Apoema – Geografia

Claudia Magalhães, Lilian Sourient, Marcos Gonçalves e Roseni Rudek

Editora do Brasil

2ª edição/2015 0063P17052

378.416 (≈3,5%)

Integralis – Geografia Helio Garcia & Paulo Roberto Moraes

IBEP 1ª edição / 2015 0002P17052

307.332 (≈2,8%)

Geografia Cidadã Laercio Furquim Jr. AJS 1ª edição / 2015 0037P17052

117.133 (≈1,3%)

Fonte: Diário da Oficial da União de 24/06/2016 (2016, p. 92-93). Acesso em: 31 março 2017

Para analisar as obras, elaboramos um modelo de tabela que foi preenchido para todas as coleções. O modelo utilizado para a essa análise tinha como foco principal os volumes e capítulos que tratam especificamente sobre a geografia do continente africano, sendo que observações sobre outros capítulos e volumes das coleções seriam feitas como informações complementares. No entanto, o que percebemos após as primeiras coleções analisadas é que os capítulos sobre a Geografia do Brasil se mostraram importantes nas considerações sobre as coleções. Isso se deu pela particularidade da formação do povo brasileiro e as etnias que o compõem. Nesse contexto, acabamos por manter a configuração inicial da tabela, mas, também, dedicamos mais atenção aos capítulos referentes ao Brasil e, consequentemente, ao continente americano, maior receptor dos africanos que foram escravizados. Esses capítulos estavam sempre nos volumes dedicados ao 7º ano, cujo foco territorial é o Brasil, e nos livros dedicados ao Continente Americano, que poderiam variar entre 8º ou 9º ano, de acordo com a divisão territorial adotada na coleção.

O modelo da tabela utilizado, bem como o que se pretendia observar em cada um dos campos (e os motivos) segue abaixo, na tabela 3. As fichas avaliativas preenchidas de todas as coleções encontram-se na dissertação e, por não termos espaço, não as reproduziremos aqui. O que decidimos por fazer é uma análise geral, destacando as considerações sobre a coleção mais distribuída no país (Expedições Geográficas, da autoria de Melhem Adas e Sérgio Adas)

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Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Consórcio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)

TABELA 3 – Modelo de tabela utilizado na análise das coleções aprovadas no PNLD

Nome da coleção

Autores

Ano a que se destina:

Distribuição dos conteúdos e páginas

Aqui a intenção é verificar o tamanho do volume no qual se encontram os capítulos sobre Geografia da África, mostrando a organização da divisão de capítulos e a quantidade de páginas do livro do aluno e do manual do professor.

Distribuição das unidades no livro: Essa unidade descritiva visa confirmar ou não as afirmações dos Professor Dr. Rafael Sânzio dos Anjos (2005, p. 175), que explicitava suas preocupações com a colocação do assunto “Geografia da África” por último nos materiais didáticos, bem como afirmava que o assunto sempre apresentou um número menor de páginas.

Geografia da África

Visa descrever o que é apresentado em cada um dos capítulos destinados à Geografia da África. Aqui, procuramos observar se os capítulos mantêm um discurso de ênfase nos problemas e, em caso positivo, se ao menos esses problemas estão contextualizados. Verificamos também se o continente e seus habitantes (e descendentes) aparecem em outros capítulos do volume.

Imagens

Reforçam as diversidades ou os estereótipos do continente?

Essa parte analisa se o que predomina nas imagens do continente e das pessoas desse continente. Uma vez que imagem é uma forma de texto, procuramos observar se os livros trazem imagens outras que aquelas representando problemas.

Outros volumes da coleção – descrição geral

Descrevemos aqui se a África ou a população afro-brasileira aparece em outros livros e, se sim, em que contexto. Como comentamos anteriormente, essa parte tomou uma dimensão que não esperávamos no início do trabalho. Isso porque os capítulos sobre Geografia do Brasil e alguns autores, também, nos capítulos sobre Geografia da América, deram um grande destaque à formação demográfica desses territórios e, uma vez que esses territórios se configuram como os maiores receptores de africanos que foram escravizados, descrevemos aqui onde e como encontramos essas menções nos outros volumes das coleções.

Avaliação geral

Tendo por base a LDB no seu artigo 26-A, como essa obra se enquadra?

Aqui queremos apontar aspectos positivos e negativos da coleção (e aqui subentende-se que está atendendo aos artigos de análise do PNLD, caso contrário, não estariam entre as onze coleções). Esses aspectos positivos e negativos serão evidenciados sob a luz da base epistemológica apresentada no trabalho, que preza pelas análises contextualizadas e localizadas espacialmente. Através da leitura desses aspectos, a leitora e/ou o leitor dará o seu veredito se essa é uma coleção que deveria ou não ter sido aprovada.

Fonte: a autora.

Como pode-se perceber nas explicações de cada campo, mais do que uma questão quantitativa, buscamos um levantamento qualitativo dessas informações, a fim

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de verificar a permanência ou não dos estereótipos que, de acordo com a pesquisa bibliográfica, tradicionalmente são reforçados nesses materiais.

A questão quantitativa da tabela foi indicada no sentido de resgatar a fala do Professor Dr. Rafael Sânzio dos Anjos, logo após a aprovação da lei. Nesse momento, como já evidenciamos anteriormente, o autor coloca que “nos livros didáticos de Geografia Geral e nos Atlas Geográficos, o continente africano está colocado sistematicamente nas partes finais da publicação e geralmente com um espaço bem menor que os outros blocos continentais” (ANJOS, 2005, p. 175). No entanto, pensar somente nesses dados de maneira numérica e estática, seria perder a potencial diversidade de dados e informações no levantamento, por isso temos levantamento de dados quantitativos e qualitativos.

Ao fazermos o quantitativo e observação dessas características indicadas pelo professor, verificamos que a África continua, sistematicamente, nas partes finais das publicações, perdendo (ou ganhando) o lugar apenas quando a Oceania e/ou Regiões Polares estão no mesmo volume.

Em algumas coleções, a quantidade de páginas dedicada ao continente é muito menor do que aquela dedicada a outros espaços. Não colocamos essa informação com a finalidade de afirmar que a quantidade de páginas é indicativa da qualidade da abordagem sobre o continente, trata-se apenas da verificação de continuidade daquilo que foi colocado pelo professor Rafael Sânzio em 2005, ainda presente após treze anos dessas observações terem sido feitas.

Após o levantamento desses dados, fizemos as análises dos livros e, então, buscamos responder àquilo que colocamos como nosso objetivo geral da pesquisa de mestrado: a qualidade na abordagem da África nas coleções aprovadas pelo PNLD para os anos finais. Assim, temos um panorama da qualidade do material e da forma como as alunas e alunos estão tendo contato com a questão em sua vida escolar.

Na coleção mais distribuída no país, de autoria de Melhem e Sérgio Adas, verificamos que a distribuição de páginas não está discrepante com relação às outras unidades (sendo o número de páginas destinadas ao continente, na verdade, o segundo maior do volume em que se encontra), no entanto, o último capítulo sobre o continente africano o fragiliza, sem mostrar contrapontos em países como a Nigéria, por exemplo, que está crescendo economicamente de maneira considerável nos últimos anos.

Sendo essa a coleção mais distribuída no Brasil, olhamos com preocupação para o fato de que os alunos estarão recebendo um discurso tradicional de lugar que precisa ser salvo, sendo que, no encerramento dos capítulos, os autores poderiam ter destinado um fim outro do que a apresentação do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. Poderiam, por exemplo, apresentar a grande onda de literatura africana que tem chegado até o Brasil nos últimos anos. Essa escolha de Adas e Adas – porque nesse momento estamos falando, sim, de escolhas epistemológicas – vai de encontro com o 13º critério para a aprovação da obra dentro do documento do PNLD. Esse critério diz que a obra didática

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deve apresentar uma “linguagem adequada, visando à aprendizagem dos conhecimentos geográficos, ao desenvolvimento do vocabulário e dos conhecimentos linguísticos, evitando reducionismos e estereótipos no tratamento das questões sociais e naturais” (BRASIL, 2015, p. 57). Nesse sentido, os autores apresentam um fotógrafo brasileiro que esteve no continente, segundo eles, “captando a condição humana” (ADAS; ADAS, 2015, p. 244), e que, na série África, apresenta “além das belíssimas paisagens naturais e práticas culturais, Sebastião Salgado registrou guerras, fome e epidemias lamentavelmente presentes nesse continente” (ADAS; ADAS, 2015, p. 244). Após essa fala, os autores apresentam duas imagens: uma sobre refugiados ruandeses na atual República Democrática do Congo e outra sobre uma imagem de alunas somalis de um território controlado por radicais islâmicos que não são autorizadas a estudar junto com os meninos. A belíssima paisagem, no entanto, não é apresentada, nem mesmo uma prática cultural que poderia balancear as imagens e textos apresentados pelos autores da obra, o que vai reforçar estereótipos do que são considerados atrasos.

O que consideramos aqui é que, ao olhar esse “universo” de 44 obras analisadas, as abordagens sobre os afro-brasileiros melhoraram, ao passo que as abordagens sobre os africanos e o Continente Africano continuam problemáticas. É provável (e aqui estamos fazendo apenas uma consideração) que a aprovação da lei, vinculada a alguns cursos de formação continuada e até mesmo à veiculação, na mídia jornalística, sobre a demarcação de terras quilombolas tenha dado vazão (e material) para que isso fosse refletido no livro didático. Coisa que verificamos ter menor intensidade nos capítulos destinados exclusivamente ao Continente Africano.

Dentre nossas observações, percebemos que as coleções mais vendidas obedecem a uma configuração de demonstração de conteúdos e dados parecida entre si. As obras dos autores, que representam mais de 50% dos volumes distribuídos no país e que possuem obras aprovadas há alguns editais (também para Ensino Médio), encontraram, talvez (?), um procedimento de escrita que favoreça suas aprovações. Todavia, todos e todas os responsáveis pela produção do livro didático deveriam ter em mente, sempre, o papel social desses materiais e o que podem reafirmar ou não frente aos dados que fomos apresentando ao longo dessa pesquisa. Embora tenhamos identificado coleções muito interessantes e que até mesmo poderíamos usar em sala de aula, nenhuma se escusa da melhoria de abordagem sobre o continente africano.

No entanto, a preocupação dos autores, que em algumas obras fica mais evidente do que outras, não pode, sozinha, sanar esses problemas, tendo as instituições de Ensino Superior um papel determinante no cuidado e na formação dos brasileiros e brasileiras que estarão em sala de aula. Se estamos em instituições que, em teoria, têm o dever de pensar na sociedade, não é possível pensar essa sociedade sem a contribuição dos mais diversos povos, assim, uns não podem continuar a ser subjugados como outrora (e como hoje, ainda).

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Para encerrar, utilizaremos das palavras de Carlos Moore Wedderburn, cubano e doutor em Ciências Humanas e Etnologia,

O avanço constante do conhecimento científico sobre a África, em especial nos campos da paleontologia e da antropobiologia, não cessam de confirmar esse continente no palco privilegiado de lugar de origem da consciência humana e das experimentações que conduziram à vida em sociedade. Contudo, a lentidão da assimilação/integração desses dados revolucionários, pelo meio acadêmico, continua sendo um problema, razão pela qual a reatualização dos conhecimentos e a reciclagem deverão constituir peças importantes no processo didático. À primeira vista, uma das formas eficientes de alcançar esses objetivos seria a organização de oficinas de formação para agentes multiplicadores selecionados, preferencialmente, entre os docentes das disciplinas humanas, e não somente na disciplina histórica. A sensibilidade do docente determinará em muitos casos a predisposição à aceitação, ou à rejeição, das teses raciológicas e manipulações legitimadoras que inevitavelmente vestirão a roupagem "acadêmica". Por isso, o docente incumbido do ensino da matéria africana deverá cultivar sua sensibilidade em relação aos povos e culturas oriundos deste continente. Num país como o Brasil, onde as tradições e culturas africanas nutrem de maneira tão vigorosa a personalidade do povo brasileiro, a empatia para com a África apareceria como algo natural. Mas ela não é, apensar de todos os brasileiros serem herdeiros das tradições e cosmovisões desse continente." (WEDDENBURN, 2007, p. 32-33).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Consórcio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)

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WEDDERBURN, Carlos Moore. Novas Bases para o Ensino da História da África no Brasil (Considerações Preliminares). 40 páginas. Disponível em https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/849149/mod_resource/content/1/WEDDERBURN,%20Carlos.%20Artigo%20científico.pdf acesso em 05 maio 2018