afinidade - limite - finitude

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7/25/2019 Afinidade - Limite - Finitude http://slidepdf.com/reader/full/afinidade-limite-finitude 1/7 AFINIDADE – LIMITE - FINITUDE Quem alguma vez ouviu Filomena Molder, ou quem seguiu um dos vários cursos que deu ao longo dos anos, conhece bem a “atmosfera” de pensamento, feita de várias condensações e precipitações, da reunio sempre frágil de elementos d!spares mas tamb"m da infinita velocidade do pensamento, de forças e linhas que se chocam, que se entrecruzam ou entrelaçam at" # sua indistinço, que se materializa, por $ltimo, nesse acontecimento % que, como qualquer acontecimento, talvez s& num outro tempo nos venha perseguir e a interrogar % que parte e se reparte entre a voz p$blica e a publicada, apelando, talvez, para uma voz secreta, s& dela' o pensamento de Filomena Molder( )omeçava*se sempre, como se sabe, de uma interrupção, de um obstáculo , de um limite do nosso pensamento, de qualquer coisa que vinha abalar o nosso discurso, fosse um te+to de ant ou -oethe, como neste livro, uma escultura de .ouise /ourgeois ou uma passagem de 0ante( 1 conceito começava ento a ser constru!do, sempre rente ao limite, ao obstáculo, de forma a dar conta dessa estranheza e desse abalo, matizava*se, ritmava*se, consoante as diferentes linhas que fossem seguidas, os vários e d!spares tempos que coe+istiam( 2ma verdadeira dança do conceito % para que seria preciso inventar todo um novo corpo % começava no limite da voz' era esta que pontuava o ritmo dele, que o interrompia subitamente dando conta de um problema, uma dificuldade, um lugar sem passagem que era preciso interrogar de outra forma % como uma esp"cie de cegueira que, repentinamente, se v3 % e era ento que era preciso recomeçar de novo a partir de outro lugar, arran4ar novos &rgos para pensar, para ver e sentir( 0esta forma, a atmosfera ia*se condensando, formando uma esp"cie de nuvem instável, feita no limite e de todos os limites, e entre conceito e imagem criavam*se diversas linhas de passagem, diferentes fronteiras m&veis e moventes, como um pensamento feito ao longo de todos os abalos e interrupções % chegávamos, por fim e no limite da palavra, a uma terra inc&gnita, um confim de onde isso nos continuaria a interrogar e a perseguir( “5or e+emplo' a casa que sempre habitámos ou a pessoa com quem vivemos( 2m dia, de repente, elas apresentam*se*nos como uma viso' ah6 7 isto6 8amb"m " assim que os matemáticos encontram um a+ioma % subitamente, t3m uma viso acerca daquilo que andaram a estudar ou acerca daquilo com que se preocupavam e encontram o princ!pio adequado' " este6 8rata*se de um sentimento vertiginoso que aponta para o nosso não saber da sua causa , no sentido de no haver razões suficientes, como se a visão não procedesse de um

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7/25/2019 Afinidade - Limite - Finitude

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AFINIDADE – LIMITE - FINITUDE

Quem alguma vez ouviu Filomena Molder, ou quem seguiu um dos vários cursos

que deu ao longo dos anos, conhece bem a “atmosfera” de pensamento, feita devárias condensações e precipitações, da reunio sempre frágil de elementos d!spares

mas tamb"m da infinita velocidade do pensamento, de forças e linhas que se chocam,

que se entrecruzam ou entrelaçam at" # sua indistinço, que se materializa, por 

$ltimo, nesse acontecimento % que, como qualquer acontecimento, talvez s& num

outro tempo nos venha perseguir e a interrogar % que parte e se reparte entre a voz

p$blica e a publicada, apelando, talvez, para uma voz secreta, s& dela' o pensamento

de Filomena Molder( )omeçava*se sempre, como se sabe, de uma interrupção, de um

obstáculo, de um limite do nosso pensamento, de qualquer coisa que vinha abalar o

nosso discurso, fosse um te+to de ant ou -oethe, como neste livro, uma escultura de

.ouise /ourgeois ou uma passagem de 0ante( 1 conceito começava ento a ser 

constru!do, sempre rente ao limite, ao obstáculo, de forma a dar conta dessa

estranheza e desse abalo, matizava*se, ritmava*se, consoante as diferentes linhas que

fossem seguidas, os vários e d!spares tempos que coe+istiam( 2ma verdadeira dança

do conceito % para que seria preciso inventar todo um novo corpo % começava no

limite da voz' era esta que pontuava o ritmo dele, que o interrompia subitamente

dando conta de um problema, uma dificuldade, um lugar sem passagem que era

preciso interrogar de outra forma % como uma esp"cie de cegueira que,

repentinamente, se v3 % e era ento que era preciso recomeçar de novo a partir de

outro lugar, arran4ar novos &rgos para pensar, para ver e sentir( 0esta forma, a

atmosfera ia*se condensando, formando uma esp"cie de nuvem instável, feita no

limite e de todos os limites, e entre conceito e imagem criavam*se diversas linhas de

passagem, diferentes fronteiras m&veis e moventes, como um pensamento feito ao

longo de todos os abalos e interrupções % chegávamos, por fim e no limite da palavra,

a uma terra inc&gnita, um confim de onde isso  nos continuaria a interrogar e a

perseguir(

“5or e+emplo' a casa que sempre habitámos ou a pessoa com quem vivemos( 2m

dia, de repente, elas apresentam*se*nos como uma viso' ah6 7 isto6 8amb"m "

assim que os matemáticos encontram um a+ioma % subitamente, t3m uma viso

acerca daquilo que andaram a estudar ou acerca daquilo com que se

preocupavam e encontram o princ!pio adequado' " este6 8rata*se de um

sentimento vertiginoso que aponta para o nosso não saber da sua causa, no

sentido de no haver razões suficientes, como se a visão não procedesse de um

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método, pois no nos encaminhamos para ela nem por induço nem por deduço(

Quer dizer, a viso " sempre descontínua por relaço ao que 4á sab!amos, ela

rompe, coagula, dispõe e projecta de modo in"dito o que 4á sab!amos”9

:nsist3ncia na viso( Filomena Molder inscreve*se de direito nessa tradiço de

cegos que nunca amaram outra coisa que no fosse a viso, para quem a viso nunca

foi dada, para quem ela sempre constituiu um problema, um abalo que nos coloca à

beira do abismo, mas, igualmente, para quem a viso foi sempre tamb"m uma

promessa % so, neste livro, as nuvens enquanto lugar privilegiado para interrogar a

forma, a morfologia que desde sempre orientou o pensamento de Filomena Molder, ou

mesmo a afinidade que no vai, aqui, sem um sentido visual e topográfico, que apela

para aquilo que está à beira, na proximidade, para o que " próximo sem igual  mas,

tamb"m, para o que se encontra # beira do abismo, da cegueira( ; viso ", para

retomarmos a partir de outro lugar a citaço de <oberto /azlen no in!cio do cap!tulo

que dá o t!tulo ao livro =“; forma como problema' as >uvens e o ?aso @agrado”A, o

p&lo oposto da cegueira sem ser, no entanto, a sua superaço' sendo o p&lo oposto

sem nunca, de facto, superar a cegueira % o que implica que, de uma forma ou de

outra, ela está sempre a! como limite do vis!vel % a viso no reifica, " feita de

interrupções, de diferentes ritmos, e, permanecendo o p&lo oposto, ela no soçobra no

espaço ca&tico das forças, a! onde nada, de facto, se v3, nada " dado # viso, a! onde

há apenas “a destrutividade absolutamente incompreens!vel da natureza vinculada aoabismo do nascimento puro”B(

?iso mas tamb"m voz % e recordar sempre o aviso que nos chega de um outro

livro de Filomena Molder' “quem se preocupa com a linguagem, muito

espontaneamente, vai ter com as imagens que vo da boca ao ouvido”C( ?oz tamb"m

ela no limite, # beira, fazendo*se e refazendo*se 4unto # viso, como no caso do belo

em que, de facto, a linguagem avança tremente, na d$vida, pensando*se 4unto #s

coisas'

“>ingu"m poderá substituir*nos nessa e+peri3ncia individual, singular, do

sentimento est"tico( >ingu"m poderá saber o que sente ;casto, e, no entanto,

1 Maria Filomena Molder, As Nuvens e o Vaso Sagrado (Kant e Goethe.

Leituras), Lisboa, Relógio d’Água, 2014, p. 155. Sublinhados nossos.

2 bidem, p. !".

" Maria Filomena Molder, O Químico e o Alquimista. en!amin leitor deaudelaire, Lisboa, Relógio d’Água, 2011, p. 24.

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 ;casto pode no estar seguro de sentir verdadeiramente o que ele pr&prio sente(

 ;pesar do reconhecimento de que sente prazer, imaginamos ;casto a tentar 

apanhar esse sentimento, comprometido num esforço para lhe dar uma forma e

comunicar, sitiado por movimentos que no se reconciliam espontaneamente”

Mas voz, tamb"m, repartida, descontínua,  partida e  partilhada  % outros tantos

limites % entre, em primeiro lugar, o portugu3s =em que pensa e escreveA e, em

segundo lugar, o alemo para que, neste caso em particular, apela'

“Mesmo cometendo erro, com todos os perigos associados, desproporço e

incomensurabilidade, o que me importa " ver como fica, pensando eu sempre em

portugu3s, aquilo que outro disse em l!ngua alem =ou outra, conformeA”D

)ena da traduço % que Filomena Molder nunca dei+ou de pensar % que se

move aqui por dois ei+os diferentes' em primeiro lugar, ela desloca a traduço para opr&prio lugar do pensamento =pensar " traduzir, seguindo EamannA e, no movimento

do primeiro deslocamento, ela coloca o pensamento enquanto fen&meno que diz

respeito # l!ngua, no enquanto enraizamento do pensamento na l!ngua mas enquanto

traduço, limiar e afinidade entre duas l!nguas( Gsta traduço enquanto lugar do

pensamento permanecerá sempre uma troca no econ&mica, nunca dada de antemo

ou mesmo previs!vel, sempre em perigo, sempre no limite das l!nguas e na l!ngua

enquanto limite, naqueles dois sentidos diferentes para que faz apelo Filomena

Molder, seguindo neste lugar ant' Schranke, limitaço, limitado =ela sabe que apenas

pode pensar e escrever em portugu3s, que o seu pensamento nunca poderá conhecer 

outro meio, outro lugar que no o portugu3sA mas tamb"m ren!e, limiar, fronteira,

passagem, entre duas l!nguas(

>o entanto, essa descontinuidade da voz deve tamb"m ser pensada segundo

dois motivos que chegam de -oethe' em primeiro lugar, uma “antecipaço do mundo”

que no faz apelo a “nenhuma condiço pr"*natal, antes a uma disposição para ver , a

uma disposiço para agir, "ue é inseparável do momento em "ue se v# , do momentoem que se age, seguindo os vest!gios dei+ados por algu"m” H( Gsta ideia de uma

disposiço para ver que " inseparável do momento em que se v3 no deve, no

entanto, fazer colapsar o primeiro momento no segundo( 0e facto, “o momento em que

se v3” atesta dessa disposiço para ver, sem ser, apesar disso, pass!vel de ser 

4 Maria Filomena Molder, As Nuvens e o Vaso Sagrado, Lisboa, Relógio

d’Água, 2014, p. 4.

5 bidem, p. 4". Sublinhados nossos.

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Gle " pensado, em primeiro lugar, como essa suspensão que 4á encontrámos na

corrida de -oethe( Gsta “corrida suspensa de um lamento” nunca chega ao $im apesar 

de permanecer sempre interrompida % o limite está sempre a ser refeito, a corrida

encontra*se sempre suspensa do seu fim e no seu fim, à beira da paragem e da

interrupço( Mas o limite " tamb"m, neste e+emplo, a dist%ncia a que as vozes se

situam, se ouvem' so vozes à dist%ncia, no limite, no limiar do seu desaparecimento(

Gsta distOncia, por sua vez, declina&se num motivo topográfico' uma voz distante no "

apenas um voz que se encontra “lá ao fundo”, a distOncia torna*se aqui

indecompon!vel, " a distOncia do con$im, do limiar , mas tamb"m, parado+almente, da

“vicinidade”, daquilo que con$ina, daquilo que está  próximo, que partilha e cruza

$ronteiras, do que se con$ronta numa proximidade sem semelhança(

@o todos estes limites do limite, todas estas formas de o limite se declinar, selançar a si mesmo para o limite, que se encontram em causa na distinço que

Filomena Molder estabelece, seguindo ant, entre filosofia e arte, enquanto gaias

ci3ncias, e a ci3ncia( ; ci3ncia " sempre algo de con$inado, de limitado, um “infinito

negativo”, na medida em que conhece apenas um campo ob4ectual ao qual, de direito,

no pode escapar nem transcender( ;liás, a ci3ncia desconhece, de facto, o limite, e

isto em dois sentidos' em primeiro lugar, ela no sabe nada do seu carácter limitado,

do seu fechamento, " surda a qualquer apelo vindo dos con$ins em segundo lugar, ela

" ilimitada de direito, no conhece fim algum, no há proposiço ou teoria que possaalguma vez pretender ser o fim da ci3ncia( 7 outra coisa, no entanto, aquilo que

acontece com a arte e a filosofia, que se apresentam mais enquanto gaias ci3ncias e

que so formas de conhecimento que chegam dos fins, dos confins( Glas no

renunciam ao limite % sendo, por causa disso, que nenhuma delas permite a salvaço

 % sem que isso signifique, no entanto, que se4am limitadas ou confinadas( 5elo

contrário, elas transformam o limite em e+perimentaço, tomam*no como tema,

interrogam*lhe todas as dimensões, transformam*no em limiar (

>o entanto, o limite no " apenas lido a partir de todos os limiares, as fronteiras,

os confins para que 4á fizemos refer3ncia( Eá ainda um outro sentido que permaneceu,

no entanto, suspenso  em tudo quanto se disse at" agora' o limite enquanto fim,

interrupço catastr&fica( 0esta forma, e enquanto relaço ao fim, o limite 4á no "

apenas lido a partir da distinço entre ren!e e Schranke mas adquire uma outra

dimenso, a finitude(

“ir al"m dos limites consiste em pPr*se # prova em relaço # sua identidade, etc(,

em relaço ao fechamento das suas fronteiras( 2ltrapassando*as, passando por cima do limite ou convertendo o limite em limiar, surpreende&se vinculado ao limite,

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inseparável dele, a nossa relaço com ele, e, nesse momento, o limite transforma*

se num problema, em fonte da sua pr&pria interrogaço, numa viso do horizonte

long!nquo e inacess!vel, do espaço vazio(” 

Eá aqui uma mudança de tonalidade que " necessário sublinhar na forma como

Filomena Molder pensa o limite( 0e facto, a distinço ente ren!e e Schranke "

colocada em suspenso, esta nova dimenso no se subsume nem a um nem a outro,

 4á no se trata apenas ou de uma limitaço e um confinamento ou de um limiar, mas

esta forma de pensar o limite passa a ser o lugar onde “a finitude há*de conhecer a

sua fertilidade e, ainda mais, revelará a sua grandeza”R, onde, de facto, no basta

colocar em evid3ncia o limiar, no basta percorrer todos os sentidos do limite, mas "

necessário afirmá*lo' este coincide, no limite, com a sua pr&pria afirmaço, o limite

toca o limite quando, surpreendendo*se vinculado ao limite, se afirma enquanto limite

e limiar, quando ganha uma relaço consigo mesmo, quando se e+pressa enquanto

$orma(

1 e+emplo que Filomena Molder nos dá da imbricaço de todas as tr3s

dimensões ", curiosamente, a nuvem( 0e facto, encontramos nesses seres frágeis

uma limitação, uma de&limitação' t3m uma forma flutuante, r!tmica, em constante

mutaço, mas mesmo assim so $ormas limitadas, com contornos( Mas so tamb"m,

ao mesmo tempo, uma de*limitaço frágil, ondulante, fazem e refazem

constantemente os seus limites, transformam e metamorfoseiam estes limites em

limiares, em pontos de contacto, em fronteiras que se cruzam, em pro+imidades, so

eles mesmos seres dos confins(

“-oethe, que toda a vida tinha compreendido a relaço terr!vel e gloriosa entre o

informe e a forma % pressentindo o apelo do informe que persiste no coraço

humano e nas acções humanas %, tinha conhecido, ao mesmo tempo, a e+ig3ncia

de dominar, at" um certo ponto, esse informe, por meio da produço de formas, e

ficou e+tasiado com o esforço feliz de algu"m “ter dado nome” aos seres mais

fugidios e ef"meros de todos, os seres que esto destinados a despenhar*se, a

elevar*se nos c"us e a desaparecer do horizonte, as nuvens”9S

>o há apenas esse 4ogo entre limite =e limitaçoA e limiar que marca o ritmo da

metamorfose( Eá tamb"m essa relaço ao informe onde em cada limite, em cada

! bidem, p. 120. Sublinhados nossos.

* bidem, p. 122.

10 bidem, p. 1#4.

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limiar, a interrupço catastr&fica, o fim abrupto, permanece em suspenso' cada limite

toca o limite, toca o informe, e afirma, desta forma, o limite(