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ADRIANA MARGARIDA DE SOUZA
REGINA PATRÍCIA PEIXER
SUEDE MARIA DA SILVA
ESTRATÉGIAS RELACIONADAS À LEITURA E À ESCRITA
DESENVOLVIDAS POR NÃO-ALFABETIZADOS NO SEU
COTIDIANO
FLORIANÓPOLIS, SC
2007/1
2
CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE
SANTA CATARINA - UNIDADE DE FLORIANÓPOLIS
ADRIANA MARGARIDA DE SOUZA
REGINA PATRÍCIA PEIXER
SUEDE MARIA DA SILVA
ESTRATÉGIAS RELACIONADAS À LEITURA E À ESCRITA
DESENVOLVIDAS POR NÃO-ALFABETIZADOS NO SEU
COTIDIANO
Monografia apresentada ao Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina – Unidade de Florianópolis como parte dos requisitos para obtenção do título de especialista em Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio na Modalidade EJA. Orientadora: Profª Ms. Sílvia Maria de Oliveira
FLORIANÓPOLIS, SC
2007/1
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ADRIANA MARGARIDA DE SOUZA
REGINA PATRÍCIA PEIXER
SUEDE MARIA DA SILVA
ESTRATÉGIAS RELACIONADAS À LEITURA E À ESCRITA
DESENVOLVIDAS POR NÃO-ALFABETIZADOS NO SEU
COTIDIANO
Monografia apresentada ao Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina – Unidade de Florianópolis como parte dos requisitos para obtenção do título de especialista em Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio na Modalidade EJA. BANCA EXAMINADORA:
Orientadora: ______________________ _____________ (Presidente) Profª Ms. Sílvia Maria de Oliveira
IEP – Instituto de Educação Permanente
Membro: ___________________________________ Profª Ms. Lurdete Candorin Biava
Membro: ___________________________________ Profª Dra. Geysa Alcoforado Abreu
Florianópolis, SC 27 de junho de 2007
4
Este trabalho é dedicado a todas as pessoas que acreditam nos seus ideais e lutam por um mundo melhor, com justiça, fraternidade, sonhos, esperança e sobre tudo, muito amor nos corações...
5
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradecemos a Deus e a espiritualidade amiga por nos
dar saúde, ânimo, força e coragem para mais esta etapa de vida.
Ao Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina - Unidade
de Florianópolis, por nos oportunizar o acesso à continuação de nossos estudos,
com este importante curso de especialização, de extrema relevância para a nossa
caminhada profissional.
À Coordenação do curso, aos Professores e aos nossos colegas de turma,
que de uma forma ou de outra contribuíram para a concretização de nosso
trabalho.
Aos nossos familiares e amigos, que nos incentivaram e estiveram ao
nosso lado em todos os momentos nos apoiando e nos encorajando a seguir esta
árdua, mas compensadora caminhada.
À orientadora Silvia, que nos orientou, sempre apoiando e nos
incentivando.
Aos entrevistados, que muito contribuíram com seus depoimentos para a
construção deste trabalho.
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RESUMO
Esta pesquisa partiu do pressuposto de Tfouni (2006), que numa sociedade grafocêntrica, não há pessoa iletrada, o que existe são níveis diferenciados de letramento. Mesmo o indivíduo não-alfabetizado também é considerado letrado, embora em um nível mais baixo. A partir dessa idéia, buscamos conhecer algumas das estratégias utilizadas por sujeitos não-alfabetizados nas suas interações com a sociedade letrada. É uma pesquisa qualitativa, sendo que foram entrevistadas cinco pessoas não-alfabetizadas de uma classe de alfabetização da Educação de Jovens e Adultos. Previamente foi elaborado um roteiro, as informações foram coletadas ´por intermédio de gravação sonora com posterior transcrição. A partir daí organizou-se um breve relato sobre as principais considerações de cada entrevistado. Dentre as estratégias encontradas, percebemos que é muito marcante a constante utilização da ajuda de pessoas alfabetizadas para desenvolver atividades que necessitam do uso da leitura e da escrita. Detectamos ainda: leitura por meio de associações de cores e formas gráficas, como: placas de trânsito, rótulos e dinheiros; tentativa de formação de pequenas palavras que aparecem no seu dia-a-dia, procurando fazer associações de algumas letras; resolução de problemas matemáticos, fazendo cálculos mentalmente; utilização da memorização de certos elementos para desenvolver uma atividade. Percebemos a falta de autonomia, pela constante necessidade de ajuda de uma pessoa alfabetizada para auxiliá-los nas atividades ligadas à leitura e à escrita. No entanto, os não-alfabetizados também desenvolvem procedimentos próprios, possibilitando, muitas vezes, interagir na sociedade letrada, sem depender de alguém. Estes indivíduos mostram uma grande força, que faz com que não desistam, mesmo aqueles que já têm uma idade mais avançada.
Palavras-Chaves : Não-alfabetizados. Letramento. Estratégias.
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .....................................................................................................8 1.1 O PROBLEMA .................................................................................................. 8 1.2 JUSTIFICATIVA .............................................................................................. 10 1.3 OBJETIVO GERAL ..........................................................................................11 1.4 OBJETIVOS ESPECÍFICOS.............................................................................11 1.5 DEFINIÇÃO DE TERMOS ...............................................................................12 2. REVISÃO DA LITERATURA .............................................................................13 2.1 ANALFABETISMO............................................................................................13 2.2 LETRAMENTO ................................................................................................16 2.3 NÃO-ALFABETIZADOS E A ESCRITA ...........................................................19 3. METODOLOGIA ................................................................................................23 4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS .....................................................25 4.1 APRESENTAÇÃO DOS DADOS.....................................................................25 4.1.1 RELATO DE JOÃO ......................................................................................25 4.1.2 RELATO DE MARIA ....................................................................................26 4.1.3 RELATO DE CARMELITA ...........................................................................27 4.1.4 RELATO DE JUCA ......................................................................................29 4.1.5 RELATO DDE JOANA .................................................................................30 4.2 ANÁLISE DE DADOS .....................................................................................31 5. CONCLUSÃO ....................................................................................................33 REFERÊNCIAS......................................................................................................34
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1. INTRODUÇÃO
1.1 O PROBLEMA
Não é novidade que dentre os problemas educacionais por que passa o
Brasil, um deles é o analfabetismo. Entre os motivos de sua ocorrência podemos
citar não só a falta de acesso à educação formal, como também a evasão escolar,
e a exclusão social.
Um outro agravante educacional, diz respeito aos baixos níveis de
alfabetismo funcional, ou seja, pessoas que são alfabetizadas, mas que possuem
pouca compreensão no que se refere ao uso da leitura, da escrita e das
habilidades matemáticas.
Quando abordamos temas relacionados ao analfabetismo, estão implícitos,
também, questões relacionadas ao alfabetismo funcional, já que este incorpora
níveis que vão desde o indivíduo não-alfabetizado até aquele que possui nível
pleno de compreensão das habilidades da escrita e da matemática.
Achamos importante ressaltar a questão do alfabetismo funcional, porque,
hoje em dia, não basta somente ser alfabetizado, é necessário também saber
fazer uso de habilidades básicas como a escrita e a matemática, ainda mais que
os níveis de exigência com relação aos seus usos crescem continuamente.
Assim, neste caso, estamos falando da necessidade das pessoas, além de serem
alfabetizadas, serem também letradas.
De acordo com Soares (2001, p.19), alfabetizado é o indivíduo que apenas
aprendeu a ler e a escrever, enquanto que letrado tem um sentido mais amplo,
pois é decorrente da apropriação e do uso social da leitura e da escrita pelo
sujeito.
9
Assim, a alfabetização é vista como pré-requisito para que a pessoa tenha
um bom nível de letramento. Entretanto, surge uma discussão entre estudiosos da
área com relação a letramento, mais especificamente ao termo iletrado.
Tfouni (2002, p.23), em Letramento e Alfabetização , afirma que não
existe pessoa iletrada, pois o termo é impraticável, no que diz respeito às
sociedades tecnologizadas, em que a escrita se faz presente em toda parte.
Assim, o indivíduo não-alfabetizado também seria letrado, embora em um nível
mais baixo.
Soares (2001, p.24) afirma que:
[...] um adulto pode ser analfabeto, porque marginalizado social e economicamente, mas, se vive em um meio em que a leitura e a escrita têm presença forte, se se interessa em ouvir a leitura de jornais feita por um alfabetizado, se recebe cartas que outros lêem para ele, se dita cartas para que um alfabetizado as escreva (e é significativo que, em geral, dita usando vocabulário e estruturas próprios da língua escrita), se pede a alguém que lhe leia avisos ou indicações afixadas em algum lugar, esse analfabeto é de certa forma, letrado , porque faz uso da escrita, envolve-se em práticas sociais de leitura e de escrita. (grifos da autora)
Na citação acima, percebemos que pessoas que não lêem e nem
escrevem utilizam a ajuda de pessoas alfabetizadas para auxiliá-las em
momentos que precisam fazer uso da leitura e da escrita, para que, assim,
possam interagir com a sociedade letrada.
Tradicionalmente, tem sido afirmado que a apropriação da escrita leva ao
raciocínio lógico; portanto, quem não sabe ler nem escrever seria incapaz de
raciocinar logicamente e também de compreender um raciocínio dedutivo do tipo
lógico-verbal, como o silogismo (TFOUNI, 2002, p.25).
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Tfouni (2002, p. 25) conceitua silogismo:
O silogismo é um tipo de raciocínio dedutivo lógico-verbal composto por uma premissa maior, uma premissa menor e uma conclusão. Existe uma relação de necessidade lógica entre o conteúdo da conclusão e o das premissas. Do ponto de vista da compreensão, o silogismo exige que o indivíduo seja capaz de descentrar seu raciocínio, ignorando seu conhecimento empírico e sua experiência pessoal, atendo-se apenas ao conteúdo lingüístico, o qual pode negar aquele outro conhecimento, sem deixar de ter uma estrutura lógico-dedutiva, como em: “Todos os homens que usam saia são altos, Pedro usa saia, Logo Pedro é alto” (grifos da autora).
No entanto, as pessoas não-alfabetizadas, ao longo do tempo e por
necessidade, principalmente quando não podem contar com a ajuda de uma
pessoa alfabetizada, acabam desenvolvendo certas habilidades relacionadas à
leitura, à escrita e aos cálculos matemáticos.
Tfouni (2002, p. 26) relata uma pesquisa em que foram analisados
aspectos do funcionamento discursivo de adultos não-alfabetizados, mediante a
investigação de como usam a linguagem diante de um tipo de discurso
normalmente utilizado por sujeitos altamente letrados como raciocínios lógico-
verbais ou silogismos.
Nessa pesquisa, foram revelados fatos interessantes sobre o raciocínio
lógico desses adultos, mostrando que ao contrário do que se pensa, os não-
alfabetizados têm capacidade para descentrar seu raciocínio e resolver conflitos
no plano da dialogia, ou seja, utilizando a linguagem discursiva.
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1.2 JUSTIFICATIVA
A leitura e a escrita propiciam uma viagem ao mundo do conhecimento,
tornando-se necessário bom nível de compreensão no que se refere ao seu uso,
em decorrência das demandas sociais. O indivíduo que não lê e nem escreve,
encontra-se limitado para interagir na sociedade letrada, sendo muitas vezes
excluído, por não possuir essas habilidades.
Acreditamos que o conhecimento de procedimentos utilizados por
indivíduos não-alfabetizados na sua interação com a sociedade letrada, utilizando
ou não a ajuda de pessoas alfabetizadas, pode propiciar um melhor entendimento
com relação as estratégias utilizadas por alunos da formação inicial da Educação
de Jovens e Adultos na resolução de atividades escolares. Tal conhecimento
poderá ser utilizado também como parâmetro teórico, auxiliando no processo de
ensino e aprendizagem de alunos dessa modalidade.
1.3 OBJETIVO Geral
Conhecer algumas estratégias utilizadas por sujeitos não-alfabetizados no
cotidiano de suas interações com a sociedade letrada.
1.4 OBJETIVOS ESPECIFICOS
• Saber tipos diferenciados de estratégias ligadas à escrita e a leitura, em
nível de letramento, adotadas por pessoas não-alfabetizadas.
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• A partir dos resultados alcançados, verificar a possibilidade de empregá-los
também como referencial teórico no processo de ensino e aprendizagem
de alunos de formação inicial da Educação de Jovens e Adultos.
1.4 DEFINIÇÃO DE TERMOS
Para um melhor entendimento deste texto, esclarecemos a seguir alguns termos.
Analfabeto : indivíduo que não consegue realizar tarefas simples que envolvam a
decodificação de palavras e frases (IPM, 2005).
Analfabetismo : estado ou condição do analfabeto (SOARES, 2001, p, 19).
Alfabetismo : palavra que diferentemente do termo letramento, é registrada no
Dicionário Aurélio. Ambas têm o mesmo sentido, ou seja, o estado ou qualidade
de alfabetizado (SOARES, 2001, p, 18).
Letramento : é o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever:
estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como
conseqüência de ter-se apropriado da escrita (SOARES, 2001, p.18).
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2. REVISÃO DA LITERATURA
Neste capitulo apresentaremos a revisão bibliográfica pesquisada e
utilizada como base para este estudo.
2.1 ANALFABETISMO
Conforme o Instituto Paulo Montenegro (IPM, 2005), a definição de
analfabeto vem, ao longo do tempo, sofrendo certas alterações como reflexo das
mudanças sociais. Em 1958, a (UNESCO) Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura definia como alfabetizada uma pessoa capaz
de ler e escrever um enunciado simples, relacionado à sua vida diária. Vinte anos
depois, a mesma organização adotou dois outros conceitos: alfabetismo e
analfabetismo e funcional.
A UNESCO considera alfabetizada funcionalmente a pessoa que, por meio
da utilização da leitura, escrita e habilidades matemáticas, consegue interagir e
lidar com demandas sociais e utilizá-las também para continuar aprendendo e se
desenvolvendo ao longo da vida.
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Soares (2001, p.21) descreve que, durante muito tempo, analfabeto era o
indivíduo que não conseguia escrever o próprio nome; nas últimas décadas, o
conceito de analfabeto ou alfabetizado se definiu conforme a resposta dada à
pergunta “sabe ler e escrever um bilhete simples?”.
Assim, da verificação da habilidade de codificar o próprio nome, passou a
ser analisada também a capacidade de fazer uso da leitura e da escrita nas
práticas sociais, mostrando a busca do estado ou condição de quem sabe ler e
escrever, do que simplesmente a presença da habilidade de codificar em língua
escrita. Com isso já se evidencia a tentativa de verificar o nível de letramento.
Este, por sinal, tem o mesmo significado de alfabetismo. Por outro lado,
analfabetismo se refere ao estado ou condição do indivíduo analfabeto.
A UNESCO define que os níveis de alfabetismo funcional em relação às
habilidades de leitura e escrita podem ser assim classificados:
• Analfabeto : não consegue realizar tarefas simples que
envolvem decodificação de palavras e frases.
• Nível 1 : Alfabetismo de nível rudimentar: corresponde à
capacidade de localizar informações explícitas em textos muito curtos, cuja
configuração auxilia o reconhecimento do conteúdo solicitado. Ex:
identificar o título de uma revista.
• Nível 2 : Alfabetismo nível básico: corresponde à capacidade
de localizar informações em textos curtos ( Ex: numa carta de reclamação
do defeito de uma geladeira, identificar o defeito; localizar informações em
textos de extensão média).
• Nível 3 : Alfabetismo nível pleno: corresponde à capacidade
de ler textos longos, orientando-se por subtítulos, localizando mais de uma
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informação, de acordo com condições estabelecidas, relacionando partes
de um texto, comparando dois textos, realizando inferências e sínteses.
De acordo com Soares (2001, p.22), nos países desenvolvidos é verificado
o nível de letramento e não apenas o índice de alfabetização, já que a
escolarização básica é obrigatória e universal. Os anos de escolarização,
tomados como critério para a análise do nível de letramento, crescem ao longo do
tempo, conforme as demandas sociais de leitura e escrita.
No Brasil, o Instituto Paulo Montenegro (IPM, 2005) apresenta os
resultados do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), na sua 5ª edição. É um
indicador que revela os níveis de alfabetismo funcional da população brasileira,
entre 15 e 64 anos de idade, sobre as habilidades e práticas de leitura, escrita e
cálculos matemáticos.
Os dados do INAF são coletados anualmente em uma população composta
por 2.000 pessoas, representativas da população brasileira, com a faixa etária
mencionada, residentes nas zonas rurais e urbanas de todas as regiões
brasileiras. Por meio de visitas domiciliares são aplicados questionários e testes
práticos. Toda a manipulação de dados é feita por especialistas do Instituto
Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE).
O objetivo é utilizar os resultados do INAF para o debate público,
estimulando as iniciativas da sociedade civil, de tal forma que essas informações
sejam subsídios para a formulação de políticas públicas nas áreas de educação e
cultura.
Assim, com os resultados do INAF, é pretendido que a sociedade e os
governos avaliem a situação da população quanto à capacidade de acessar e
16
processar informações escritas como ferramenta perante as demandas do dia-a-
dia.
A tabela 1 apresenta os principais resultados do INAF com relação às
habilidades de leitura e escrita nos anos de 2001, 2003 e 2005.
Tabela 1 - Habilidades de leitura e escrita
Evolução dos níveis de alfabetismo – Leitura e escrita 2001 a 2005
2001 2003 2005 Dif. 2001 – 2005 Analfabeto 9% 8% 7% -2pp Alfabetizado Nível Rudimentar
31% 30% 30% -1pp
Alfabetizado Nível Básico
34% 37% 38% +4pp
Alfabetizado Nível Pleno
26% 25% 26% -
Fonte: Instituto Paulo Montenegro - INAF, (2005).
2.2 LETRAMENTO
Letramento é uma palavra nova no vocabulário da Educação e das
Ciências Lingüísticas, que surgiu na segunda metade dos anos 80 no discurso de
especialistas dessas áreas.
Conforme Silva, (2005), uma das primeiras ocorrências desse termo no
Brasil está no livro: No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística, de
Mary Kato (Editora Ática,1986). Nesta obra, a autora afirma que a língua falada
culta é conseqüência do letramento. Dois anos mais tarde, Leda Verdiani Tfouni
lança o livro Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso (Editora Pontes,
1988), distinguindo alfabetização de letramento. A partir daí o termo letramento
vem fazendo, cada vez mais, parte do discurso de especialistas, de maneira que,
em 1995, surge o livro com esse termo no título: Os significados do letramento:
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uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita, de Ângela Kleiman
(Editora Mercado das Letras).
Utilizando o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Soares (2001,
p.16) apresenta conceitos de palavras do mesmo campo semântico do termo
letramento. Assim, analfabetismo é o estado ou condição de analfabeto, e
analfabeto é o indivíduo que não sabe ler ou escrever, vivendo no estado ou
condição de quem não sabe ler e escrever. Alfabetização é a ação de
alfabetizar , ou seja, ensinar a ler (e também ensinar a escrever, que
curiosamente é omitida pelo dicionário). Alfabetizado é aquele que sabe ler (e
escrever). Letrado é aquele versado em letras, erudito, e iletrado é aquele que
não tem conhecimentos literários e, também, o analfabeto ou o quase analfabeto.
Segundo a autora, o termo letramento não aparece no Novo Dicionário
Aurélio, encontrando-se, porém, há mais de um século no Dicionário
Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete (na sua 3ª edição
brasileira). Neste, o verbete letramento caracteriza a palavra como “ant.”, isto é,
“antiga”, atribuindo-lhe o significado de “escrita”; o verbete remete ainda para o
verbo “letrar”, com o significado de “investigar, soletrando”. Tem ainda a acepção
pronominal de “adquirir letras ou conhecimentos literários”.
Os significados do termo letramento que hoje são estudados, certamente
são bem diferentes dos apresentados no Dicionário de Caldas Aulete. Assim, o
termo letramento com o sentido atual é a versão para o português da palavra de
língua inglesa literacy (SOARES, 2001 p, 17).
Etimologicamente, a palavra literacy vem do latim littera (letra), com o
sufixo cy, que tem sentido de qualidade, condição, estado. No Webster’s
Dictionary, citado por Soares (2001, p.17), literacy tem a acepção de “the
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condition of being literate”, ou seja, a condição de ser educado, que é conseguida,
especialmente por meio da leitura e da escrita. Esse conceito remete à idéia de
que a leitura e a escrita trazem conseqüências sociais, culturais, políticas,
econômicas, cognitivas, lingüísticas, tanto para o indivíduo quanto para a
sociedade.
Conforme Soares (2001, p.18), a palavra letramento, traduzindo ao pé da
letra, do inglês literacy: letra, do latim littera e o sufixo mento , que denota o
resultado de uma ação, significa o resultado da ação de ensinar ou aprender a ler
e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo
como conseqüência de ter-se apropriado da escrita.
Ainda, conforme a mesma autora, o Novo Dicionário Aurélio não contempla
o termo letramento e sim a palavra alfabetismo, que tem como significado, entre
outros, o de “estado ou qualidade de alfabetizado”.
Embora dicionarizada, alfabetismo não é palavra corrente e, talvez por
isso, na busca de uma palavra com o sentido daquilo que em inglês já se
designava por literacy, tenha-se optado por verter a palavra inglesa para o
português, criando o neologismo letramento. Na verdade, alfabetismo e
letramento têm o mesmo sentido.
Estudos sobre o indivíduo alfabetizado, procurando saber seu estado ou
sua condição são recentes. Em nosso país, o termo analfabetismo foi empregado
muito antes do seu contrário, alfabetismo.
Na língua inglesa também ocorreu o mesmo fenômeno. O termo illiteracy
foi empregado muito antes que o seu contrário literacy. O Oxford English
Dictionary tem registrado o termo illiteracy desde 1660, ao passo que literacy só
surgiu no fim do século XIX.
19
No Brasil, só no final do século XX, o termo letramento tornou-se mais
evidente, devido à necessidade de enfrentar essa nova realidade social em que é
preciso saber fazer uso da leitura e da escrita em decorrência das demandas
sociais.
As pesquisas feitas nos países desenvolvidos se referem ao letramento
quando denunciam os altos índices de illiteracy (Estados Unidos, Grã-Bretanha,
Austrália) ou de illettrisme (França) na população; na verdade não estão
denunciando o analfabetismo, como costuma se crer aqui, no Brasil, mas referem-
se às pessoas que não sabem fazer bom uso da leitura e da escrita.
Quando se fala em letramento, pressupõe-se a necessidade da
alfabetização. E isso é lógico, já que a partir da mesma e da busca pela leitura e
escrita é que podem acontecer progressos nos níveis de letramento. No entanto,
a pessoa não-alfabetizada também apresenta nível de letramento, embora em um
grau mais baixo, já que convive na sociedade letrada.
2.3 NÃO-ALFABETIZADOS E A ESCRITA
Para Tfouni (2002, p. 24), na perspectiva etnocêntrica, é somente com a
aquisição da escrita que as pessoas conseguem desenvolver o pensamento
lógico-dedutivo, a capacidade para fazer inferências, para solução de problemas
etc. Nesta perspectiva, o pensamento dos alfabetizados é racional, enquanto os
indivíduos não-alfabetizados são incapazes de raciocinar logicamente, têm
pensamento emocional, pré-operatório.
Conforme Oliveira (citado por KLEIMAN, 2003, p.148), estão claramente
apresentadas na literatura as contraposições existentes entre diferenças culturais
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e modos de pensamento. Assim, a capacidade de elaboração cognitiva
descontextualizada é, talvez, a característica que define o modo de
funcionamento intelectual letrado, sendo este um atributo aparentemente
inexistente entre os membros dos grupos pouco letrados.
Ainda, para essa autora, podemos evidenciar a teoria precedente mediante
de uma investigação já clássica, feita nos anos 30, por Luria.
Nessa pesquisa foi constatado que os sujeitos mais escolarizados e
envolvidos nos trabalhos modernos das fazendas coletivas, tendiam a operar,
conforme classificação de Luria,de modo categorial, isto é, com categorias
abstratas, independentes da experiência vivida e do contexto concreto. Assim,
esses sujeitos agrupavam cores, formas geométricas e outros objetos de acordo
com categorias superordenadas (ex: triângulos ou ferramentas), realizavam
operações de dedução e inferência a partir de informações verbais, mesmo
quando as conclusões não tinham nada a ver com a experiência pessoal e
solucionavam problemas matemáticos a partir de situações hipotéticas.
Em contrapartida, os sujeitos menos escolarizados e envolvidos em
atividades da agricultura tradicional, individualizada, operavam, conforme
classificação de Luria, de modo gráfico-funcional, isto é, fortemente influenciados
por configurações perceptuais e baseados nas experiências pessoais e nas
relações concretas voltadas a práticas de uso. Os agrupamentos dos elementos
remetiam a relações funcionais entre eles (ex: martelo, serra, machadinha eram
agrupados por serem necessários e utilizados juntos); as formas geométricas e as
cores eram agrupadas conforme sua relação com situações concretas (ex: forma
que parece com relógio ou cor de algodão estragado) e a solução de problemas
hipotéticos estava sempre ligada a condições verdadeiras de experiência vivida.
21
Eis um questionamento. Será que se podem encontrar em grupos não-
alfabetizados características (raciocínio lógico, descentração, capacidade de
resolução de problemas) que usualmente são atribuídas a grupos alfabetizados e
escolarizados? Segundo Tfouni (2006), a resposta é afirmativa. Veremos mais
adiante sua justificativa.
Scribner, Cole e Goody, citados por Tfouni (2006, p.25), fazem uma relação
entre o domínio da escrita e o raciocínio lógico, afirmando que a lógica, no sentido
de um instrumento de procedimento analítico, parece ter sido uma função da
escrita, já que foi a representação escrita da fala que possibilitou aos homens
claramente a segmentação das palavras, a manipulação da ordem das palavras,
bem como o desenvolvimento de formas silogísticas de raciocínio; estes últimos
vistos como, especificamente, produtos escritos e não orais.
A partir dessa análise, parece inquestionável que a aquisição da escrita
tem como conseqüência, cognitivamente, o desenvolvimento do pensamento
lógico, bem como a capacidade para compreender e produzir silogismos.
Segundo Tfouni (2006 p.25), ao contrário do que se pensa, os não-
alfabetizados têm capacidade para descentrar conflitos que se estabelecem no
plano da dialogia, na enunciação. Parece que existem planos de referência
delimitados por esses sujeitos, que fazem com que se busquem em um outro
lugar as evidências necessárias para resolver um determinado problema.
Outro fato constatado, e que contradiz as crenças etnocêntricas, é que os
adultos não-alfabetizados submetidos à pesquisa citada mostraram que são
capazes de compreender e explicar silogismos.
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Assim, esses fatos são contra-argumentos à afirmativa de que adultos não-
alfabetizados não raciocinam logicamente, não descentram, não solucionam
problemas.
Além de ser considerado se o indivíduo é alfabetizado, também deve ser
levado em conta se é letrada a sociedade onde esse sujeito vive, ou seja, nas
condições materiais em que esses discursos são produzidos, incluindo, aí, o
conflito e a contradição. A explicação está também na sofisticação das
comunicações, dos modos de produção, das demandas cognitivas, pelas quais a
sociedade como um todo passa quando se torna letrada, influenciando todos os
sujeitos que dela fazem parte, alfabetizados ou não.
Para Oliveira (citada por Kleiman, 2003, p.147), o termo pouco letrado não
diz respeito a nenhuma classificação técnica do grau de alfabetização, mas sim à
condição criada pela falta de oportunidade de interação intensa e sistemática com
determinados aspectos culturais fundamentais nesse tipo de sociedade.
Estudos com relação às estratégias utilizadas por indivíduos não-
alfabetizados na sua interação com a sociedade letrada estão aumentando. A
seguir será descrita uma pesquisa pertinente, a título de ilustração.
Yoshida (2000) também estudou indivíduos não-alfabetizados, procurando
conhecer a experiência de vida dos sujeitos que não lêem e nem escrevem, mas
vivem e trabalham em um contexto pautado nas práticas sociais de escrita. Os
dados foram obtidos por meio de entrevistas centradas na experiência de vida de
jovens e adultos não-alfabetizados. A autora percebeu que usam como
estratégias para substituir a leitura e a escrita: a atividade mediada por outra
pessoa que lê e escreve, a atividade mediada pela memória e a atividade
mediada pela tecnologia (rádio, televisão e gravador).
23
3. METODOLOGIA Apresentaremos neste capítulo a metodologia utilizada para a realização
deste estudo.
O estudo que ora se apresenta trata-se de uma pesquisa qualitativa, sendo
que os sujeitos foram selecionados conforme a sua disponibilidade e interesse.
Os critérios da escolha nada têm de probabilidades e não constituem, de modo
algum, uma amostra representativa no sentido estatístico (MICHELAT citado por
MEKSENAS, 2002).
Participaram desta pesquisa cinco pessoas não-alfabetizadas que
freqüentaram a escola por um período muito curto, há bastante tempo. Estão
matriculados em uma classe de Educação de Jovens e Adultos no município de
Palhoça. Cabe salientar ainda que foi dado aos entrevistados a opção de
24
participar ou não das entrevistas, e muitos dos selecionados não aceitaram.
Trata-se de alunos recém matriculados, que estavam reiniciando o processo de
alfabetização, em que, num dado momento de suas vidas tiveram que interrompe-
lo. Parece-nos que é preciso entender melhor o que realmente eles sentem em
relação à falta da apropriação da leitura e da escrita, o que acabou interferindo
muitas vezes em suas vidas sociais. Observou-se que muitos dos que poderiam
fazer parte desta pesquisa não se sentiam à vontade para expor sua vida pessoal,
nesse sentido então, resolvemos preservá-los. Assim pode-se visualizar que foi
possível entrevistar cinco dos recém matriculados.
As entrevistas foram realizadas em março de 2007, sendo que neste
momento os entrevistados haviam freqüentado as aulas há aproximadamente um
mês. Previamente montamos um roteiro e coletamos as informações por meio
de gravação sonora com posterior transcrição. A partir daí realizamos um breve
relato das entrevistas, nas quais destacamos o que nos pareceu mais relevante.
Com o objetivo de preservar a identidade dos entrevistados, utilizamos nomes
fictícios nas descrições dos relatos.
25
4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
No capítulo que segue, apresentaremos todos os dados e as respectivas
análises encontrados durante a realização deste estudo.
4.1 APRESENTAÇÃO DOS DADOS 4.1.1 Relato de João Esta é a história de um jovem que teve sua vida escolar interrompida pelas
dificuldades na aprendizagem. Natural de Ituporanga, interior de Santa Catarina,
hoje com vinte e cinco anos, João relata que quando criança teve pouco contato
com a escola. Fez a primeira série com muita dificuldade e desistiu na segunda
por considerar que não estava aprendendo. Aos treze anos começou a trabalhar
de office-boy para uma família conhecida que tinha um pequeno negócio e que
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gostava muito dele. João fazia serviços de entrega que, segundo ele, não
precisava de leitura, pois tudo já era organizado previamente. Diante da
oportunidade que estava tendo, resolveu voltar para a escola, mas acabou
desistindo novamente, devido às dificuldades encontradas no aprendizado.
Mesmo com vontade de aprender, João relata que existia algo a mais que o
limitava. Sentia-se constrangido também pela idade, pois já tinha passado dos
quatorze anos e ainda não sabia ler nem escrever. Seus colegas de classe faziam
piadinhas, e isso acabou fortalecendo seu sentimento de incapacidade. Para ele,
saber ler é algo muito importante, embora não tenha adquirido essa habilidade.
Entretanto, ele desenvolveu algumas estratégias no seu dia-a-dia. Entre elas, a
memorização de certos elementos que o ajudam a desenvolver uma atividade.
Por exemplo, quando precisa escrever seu nome, ele o faz porque já decorou o
código dessa escrita, mesmo sem conseguir fazer a leitura dela. Na matemática,
faz os cálculos mentalmente, tendo dificuldade quando precisa fazer no papel.
Conhece bem as cédulas de dinheiro e diz que procura identificá-las também,
através da associação de cores e desenhos (formas gráficas) das notas.
João casou-se aos quinze anos, logo depois teve uma filha. Como seu
casamento não deu certo, resolveu trocar de cidade. Passaram-se quatro anos na
cidade nova, e João continua desempregado. Ele entende que construiu muitos
medos por não saber ler nem escrever e que, na maioria das vezes, o impedem-
no de tentar conquistar o que hoje tanto deseja, tirar sua carteira de habilitação e
melhorar suas possibilidades de trabalho. No entanto, João sabe que para isso
acontecer é necessário aprender a ler e a escrever. Acreditando nisso, ele
resolveu fazer uma nova tentativa de estudo. Hoje ele já está freqüentando o
programa de alfabetização de jovens e adultos, no seu bairro, onde começa a
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adquirir conhecimento para uma nova leitura de mundo. Está mais confiante em
um futuro melhor.
4.1.2 Relato de Maria
Maria tem trinta e quatro anos, de origem humilde, natural de Xaxim,
cidade localizada no oeste do estado de Santa Catarina. Relata que teve uma
infância difícil, seus pais trabalhavam na agricultura e, já na infância, ela teve que
abandonar a escola para ajudar em casa. Casou-se aos dezesseis anos e teve
cinco filhos. Resolveu sair de sua cidade natal para buscar novas oportunidades.
Geralmente, trabalhava próximo à sua casa, devido à dificuldade de se deslocar
sozinha para lugares mais distantes. Conta que já trabalhou com seu ex-marido
num pequeno estabelecimento comercial, um bar, no mesmo terreno de sua
residência, ajudando-o no atendimento aos clientes, no entanto, o pagamento das
mercadorias era recebido por ele.
Maria considera que a falta da leitura e escrita lhe priva de muitas coisas
da vida, como sair de ônibus sozinha, pagar as contas, telefonar para alguém, ler
ou escrever uma carta, dentre outras coisas. Maria diz que sempre precisa do
outro para se organizar diante das necessidades, quando precisa fazer uso da
leitura e da escrita. Ela considera que já teve algumas perdas por não saber ler
nem escrever, inclusive a de uma pequena propriedade, pois foi enganada na
assinatura de um documento. Em meio a essas dificuldades, Maria teve que
recomeçar. Deixou seu ex-marido e mudou-se com os filhos para o bairro onde
mora atualmente. Casou-se novamente e, incentivada pelos filhos e esposo, que
está estudando, voltou a estudar novamente. Seu grande sonho é aprender a ler
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e a escrever para ler a bíblia e ver o mundo com outros olhos, os olhos do saber.
Maria acredita que o sonho comanda a vida.
4.1.3 Relato de Carmelita
Este é o relato de Carmelita, uma senhora de quarenta e cinco anos,
natural de Palhoça. Ainda quando criança, por volta dos sete anos, estudou
numa escola próxima à sua casa, durante a primeira série. Como seus pais
achavam que ela tinha dificuldades na aprendizagem, resolveram tirá-la da
escola. Consideravam também que, pelo fato de ser menina, não tinha
importância se não freqüentasse as aulas. Casou-se aos dezoito anos e teve três
filhos. Aprendeu a escrever seu nome com seu marido, que escreveu num papel,
e ela foi praticando até memorizar a forma escrita do mesmo. Hoje, quando
precisa ir ao supermercado, vai em companhia de suas filhas e, no que se refere
à parte financeira, elas administram. Carmelita relata que, anteriormente, quem
fazia isso era seu marido, mas agora ele não a auxilia mais, pois, segundo ela,
tornou-se alcoólatra.
Ela relata que devido à falta da leitura e escrita passa por situações
difíceis como, por exemplo, não sair sozinha de casa por medo de pegar o ônibus
errado. Então, quando precisa ir a um lugar mais distante, vai com uma de suas
filhas. Em casa, faz crochê com muita habilidade, entretanto, relata que não
consegue confeccionar uma peça de ponto diferente pela observação do desenho
(gráfico), só pela análise da mesma. Diz que consegue obter uma renda, embora
muito pequena, com a venda do crochê. Como é ela que recebe o pagamento,
tem cuidado para não se perder no troco, identificando também o dinheiro pela
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cor. Faz as contas mentalmente, tendo muita dificuldade quando tem que transpor
para o papel. No entanto, não consegue descrever como certas habilidades foram
adquiridas. Ela relata que freqüentemente tenta fazer a leitura de uma pequena
palavra, quando passa por um letreiro, por exemplo. Carmelita voltou a estudar
devido às dificuldades que encontra em seu cotidiano. Durante muito tempo, ficou
dependente dos outros e agora acredita que pode melhorar sua vida. Relata que
a falta da leitura e da escrita a impede de ser uma pessoa independente, e isso
faz crescer sua vontade de aprender. Considera que essas habilidades nos
tornam seres mais capazes. É como aprender a falar, diz. Carmelita relembra que
chegar até aqui foi muito difícil, mesmo tendo o apoio de suas filhas, pois seu
esposo mostrava-se contrário a ela estudar. Hoje, Carmelita reconhece que as
incapacidades que foram internalizadas vão aos pouquinhos desaparecendo.
Acha que poderá chegar a ocupar o seu espaço sem depender do outro.
4.1.4 Relato de Juca
Esta é a história de Juca, sessenta e quatro anos, casado há vinte e sete,
sem filhos, natural de Pato Branco, Paraná. Trabalhava como agricultor, e as
condições eram muito precárias. A escola mais próxima ficava a 8 km de onde
morava. Para estudar, saía de casa às quatro horas da manhã e fazia uma longa
caminhada até chegarão local. Quando criança, freqüentou a escola por
aproximadamente dois meses, aprendendo somente as vogais. Desistiu de
estudar para ajudar seus pais que, recebiam por dia de trabalho e era muito
pouco. Como as perspectivas não eram boas, sua família resolveu migrar para a
cidade. Lá chegando, Juca foi à procura de emprego. Apesar de não saber ler
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nem escrever, considera que não foi difícil conseguir um serviço. Ficou
trabalhando durante três anos em uma fábrica de moveis, depois foi para uma
fábrica de tijolos, onde ficou por dois anos.
Hoje, aposentado por invalidez, seu maior sonho é estudar. Relata que
teve uma vida muito difícil, aprendeu a se virar a partir de sua própria coragem e
dignidade. Necessita da ajuda de outras pessoas quando precisa fazer uso da
leitura e da escrita. Comunica-se com seus parentes por meio de cartas, que suas
irmãs escrevem para ele; quando vai ao banco solicita auxílio a alguém próximo,
mesmo sabendo que muitas vezes está diante do perigo. Diz que quando chegam
cartas da família, é o mesmo que pegar uma folha em branco; quando necessita
sair de ônibus, é como precisar de uma bengala, pois sempre tem que contar com
a ajuda do outro. Considera que, diante de todas as situações da vida, estas são
as mais difíceis. Em situações matemáticas, consegue operar mentalmente, mas
ao passar para o papel, acha difícil. Considera que o fato de ter aprendido a
tabuada com seu primo, ainda quando criança, trouxe-lhe facilidades nos cálculos
matemáticos, fazendo as operações mentalmente quando se trata de
multiplicação, soma e subtração sem recursos. Hoje, diante de tudo que viveu e
ainda vive, considera a leitura e a escrita o maior tesouro da vida, que dinheiro
nenhum pode comprar. Juca está aposentado e tem dificuldades financeiras, mas
se fosse optar, escolheria aprender a ler e a escrever do que ficar rico, pois trata-
se de seu maior sonho. Segundo Juca “o cego aprende sem ver e eu vejo, no
entanto, não consegui aprender”. Às vezes Juca chega a sonhar que está lendo, e
se existe algo melhor neste mundo, diz que desconhece. Hoje Juca voltou a
estudar e percebe que está melhorando, passando a acreditar que pode viver
melhor.
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4.1.5 Relato de Joana
Joana tem cinqüenta e cinco anos e é natural de Garopaba. Encontrou
muitas dificuldades durante sua trajetória de vida, devido à interrupção dos
estudos ainda na infância. Durante seu primeiro ano letivo, teve meningite. A
distância percorrida a pé e os motivos de saúde fizeram com que freqüentasse a
escola por apenas dois meses e meio, desistindo em seguida. Foi pelas suas
necessidades que buscou estratégias para poder vencer as difíceis situações da
vida. Nas contas matemáticas, apresenta muitas dificuldades e, quando necessita
ler e escrever, recorre às suas filhas. Entende que a vida é uma grande escola e
quando necessitamos entender algo, buscamos a resposta nela mesma, o que
acaba levando ao nosso próprio aprendizado. Joana casou-se aos quinze anos e
teve três filhos. Ficou viúva aos dezenove e, após esse fato, mudou-se para o
bairro Morretes, no município de Palhoça. Começou a perceber que tinha uma
responsabilidade muito grande. Sua mãe, também sozinha, precisava criar seus
três irmãos e, por este motivo, não podia ajudá-la. Então pensou que se tivesse
estudado poderia arrumar um emprego melhor. Trabalhava de faxineira, lavava e
passava. Seus filhos começaram a trabalhar com ela para ajudar na renda
familiar. Trabalhavam em um período e estudavam em outro. Ela os incentivava
para que não parassem de estudar. Somente depois de seus filhos estarem
casados é que resolveu se casar novamente. Joana agora tem uma vida
financeira tranqüila, mas percebe que precisa aprender a ler e a escrever para
sua satisfação pessoal. Seu filho está em Portugal, e ela gostaria de escrever
para ele sozinha, mas sempre precisa da ajuda de suas filhas. Seu esposo não
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pode ajudá-la com relação à escrita, pois só consegue escrever seu nome, já que
também não é alfabetizado.
4.2 ANÁLISE DE DADOS
Quatro dos cinco entrevistados são naturais de Santa Catarina, e um, do
Paraná, moram atualmente em Palhoça. Três vieram da zona rural para tentar
melhores condições de trabalho, os outros dois são da região local, sendo um de
Palhoça e o outro de Garopaba. São adultos que foram evadidos do ensino
escolar ainda quando crianças porque são de classe economicamente baixa,
tendo que na infância na renda familiar.
Percebemos nos relatos que o fato de não saber ler nem escrever é um
grande limitador a contratação para o trabalho, visto que esses indivíduos
trabalham mais freqüentemente como autônomos.
Ao longo da vida, foram desencadeando sentimentos de incapacidade pela
não aprendizagem da leitura, mas mesmo diante das dificuldades não desistiram
de tentar mais uma vez e se matricularam na Educação de Jovens a Adultos, pois
não perderam a vontade de aprender.
As estratégias encontradas foram poucas, mas todas são percebíveis por
eles. Assim, detectamos:
a) constante utilização da ajuda de pessoas alfabetizadas para
desenvolver atividades relacionadas à leitura e à escrita;
b) leitura pelas associações de cores e formas gráficas, como: placas
de trânsito, rótulos, dinheiro, etc;
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c) tentativa de formação de pequenas palavras que aparecem no seu
dia-a-dia, pela associação de letras;
d) resolução de problemas matemáticos, fazendo cálculos
mentalmente;
e) memorização de certos elementos para desenvolver uma atividade.
Ex: memorização da escrita do nome.
Os sujeitos que fizeram parte da pesquisa, na época da entrevista,
estavam matriculados há bem pouco tempo, menos de um mês, na Educação de
Jovens e Adultos. Nosso foco de trabalho está voltado para o indivíduo não-
alfabetizado, antes de começar a estudar. O que procuramos investigar nessa
pesquisa não é decorrente do processo de alfabetização que veio sendo
desenvolvido em um mês de aula, mesmo porque eles ainda não estavam
alfabetizados. O que levamos em conta foram as estratégias desenvolvidas ao
longo da vida.
5. CONCLUSÃO
Indivíduos não-alfabetizados, na maioria das vezes, operam mentalmente,
com base na experiência vivida e do contexto concreto, entretanto, também
passam a descentrar, ou seja, operam de forma abstrata, de maneira que nem
sempre tenham que passar previamente por um problema para resolvê-lo.
A falta de autonomia é muito presente, devido à constante necessidade de
ajuda de uma pessoa alfabetizada para auxiliá-los nas atividades ligadas à leitura
e à escrita. No entanto, os não-alfabetizados também vão desenvolvendo
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procedimentos próprios, possibilitando, muitas vezes, interagir na sociedade
letrada, sem depender de alguém. Isso nos leva a uma indagação. Será que
alguns dos procedimentos relacionados à leitura e à escrita desenvolvidos por
não-alfabetizados são também utilizados por indivíduos alfabetizados?
Esses indivíduos mostram uma grande força, que faz com que não
desistam, mesmo aqueles que já têm uma idade mais avançada.
Finalmente, verificamos que as estratégias relatadas foram poucas. Isso
nos faz crer que mais pesquisas relacionadas a este tema devam ser
desenvolvidas.
REFERÊNCIAS
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