adolescente em conflito com a lei': jovem ou menor?

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Cadeos de Lerras da UFF - unos da Pós-Graduação 2003, n . 28, p. 5 I -60, 2003 A produção do discurso jornalístico sobre o 'adolescente em conflito com a lei ': jovem ou menor? 51 Maria Claudia Gonçalves Maia RESUMO O presente t rabalho visa analis ar, a parti r do refe rencial teórico da Análise do Discurso de linha francesa, as condições de produção do discurso jo rnalístico acerca dos adolescentes em conflito com a lei, na medida em que este discur so produz efeitos de sentidos que uazem conseqüências na determinação ideológica do processo histórico-social a que os indivíduos estão submetidos. E ste ar tigo tem como objetivo examinar os proces sos de produção de sentidos no discurso jornalístico acerca dos ado lescentes em conflito com a lei como objeto de tema d e reportagens. Este trabalho aproxima- se de minhas pesquisas por ter como referência de análise o adolescente nesse lugar de objeto de quem se fala. A Análise do Discurso de linha francesa será o meu referencial teórico, através do qual poderei trabalhar conceitos como suje ito, discurso, formações discursivas, efeitos de sentido. O corpus da análise foi recortado a par tir de tÍ tulos de reportagens publicadas nos jornais O Globo e Joal do Brasil, durante o primeiro semestre de 2002, no caderno denominado "Rio", em ambos os jornais; nas seçóes dest inadas às notícias da cidade do Rio de Janeiro, onde se incluem as páginas reservadas aos acontecimen- tos policiais. Sempre que possível, optei por cotejar a ocorrência de um mesmo fato, sob o ponto de vista dos dois veículos de informação, acompanhando o des- dobramento, em dias pos teriores, do fato no ticiado. A escolha deste caminho proporc ionou compreender como os sentidos, ao pro- duzirem efe itos, barram a emergência de outros sentidos, que se presentificam, en- tretanto, por vestígios do que é dado como evidente. Como nos provoca Pêcheux (1994: 151), há de se investigar por que "os indivíduos aceitam como evidente o sen- tido daquilo que ouvem e dizem, e lêem e escrevem".

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Page 1: adolescente em conflito com a lei': jovem ou menor?

Cadernos de Lerras da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n.28, p. 5 I -60, 2003

A produção do discurso jornalístico sobre o 'adolescente em conflito com a lei ' :

jovem ou menor?

5 1

Maria Claudia Gonçalves Maia

RESUMO O presente trabalho visa analisar, a partir do referencial teórico da Análise do D iscurso de linha francesa, as condições de produção do discurso jornalístico acerca dos adolescentes em conflito com a lei, na medida em que este discurso produz. efeitos de sentidos que uaz.em conseqüências na determinação ideológica do processo histórico-social a que os indivíduos estão submetidos.

Este art igo tem como obj etivo exam i n a r os p r o cessos de produção

d e sen t i d o s n o d i s curso j o rn a l í s t i c o acerca d o s a d o l e s c e n tes e m conflito com a lei como objeto de tema d e reportagens. Este trabalho aproxima­

se de m inhas pesquisas por ter como referência de análise o adolescente nesse lugar de objeto de quem se fala. A Análise do D iscurso de linha francesa será o meu referencial teórico, através do qual poderei trabalhar conceitos como sujeito, discurso, formações discursivas, efeitos de sentido.

O corpus da análise foi recortado a partir de tÍtulos de reportagens publicadas nos j ornais O Globo e Jornal do Brasil, durante o primeiro semestre de 2002, no caderno denominado "Rio", em ambos os j o rnais; nas seçóes destinadas às notícias da cidade do Rio de Janeiro , onde se incluem as páginas reservadas aos acontecimen­tos policiais. Sempre que possível, optei por cotejar a ocorrência de um mesmo fato, sob o po nto de vista dos dois veículos de informação, acompanhando o des­dobramento, em dias posteriores, do fato noticiado.

A escolha deste caminho proporcionou compreender como os sentidos, ao pro­duzirem efeitos, barram a emergência de outros sentidos, que se p resentificam, en­tretanto, por vestígios do que é dado como evidente. Como nos provoca Pêcheux ( 1 994: 1 5 1 ) , há de se investigar por que "os indivíduos aceitam como evidente o sen­tido daquilo que ouvem e dizem, e lêem e escrevem".

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O j ornal e a naturalização de sentidos

Para fazer emergir sentidos de um discurso que se produz historicamente, par­tindo da concepção de discurso elaborada por Pêcheux - efeito de sentido entre interlocutores, interlocutores estes que são deter- minados por lugares dentro de uma estrutura social -, o jornal, através da produção de textos/discursos, tem uma função importante na reprodução e naturalização de significados, constituídos por formações discursivas inscritas em determinadas posições e objetos ideológicos que, de acordo com Pêcheux ( 1 994: 1 45) , "são sempre fo rnecidos j untamente com o seu modo de usar, seu sentido, sua orientação ou interesses de classe a que servem", isto é, a determinação daquilo que pode e deve ser dito.

Foucault escreve exatamente sobre o papel destinado à imprensa, já no século XIX: estabilizar certezas e sentidos. Sobre a delinqüência e sua ameaça à geração e preservação da riqueza originada da capitalização não só da burguesia, mas também da classe popular, diz ele:

Foi absolutamenre necessário constituir o povo como um sujeito moral, porranro, separando-o da del inqüência , porranro separando n i tidamente o grupo de delinqüenres, mostrando-os como perigosos náo apenas para os ricos, mas também para os pobres, mostrando-os carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos. Donde o nascimenro da literatura policial e da importância, nos jornais, das páginas policiais, das horríveis narrativas de crimes. ( 1982: 133)

Nessa concepção, a suposta neutralidade e objetividade do discurso jornalístico, comprometido com a verdade - como se só houvesse uma - fica abalada. Como explica Macedo (2002: 28) : "o equívoco da transparência da linguagem e o esqueci­mento de que a verdade é sempre produzida vão estar sempre presentes, lado a lado, na constituição do discurso j o rnalístico" .

"Ames d e escrever, o repórter tem d e fazer a seu chefe imediato u m relato fiel do que trouxe da rua"; "exige-se fidelidade a três requisitos: exatidão, clareza e concisão" ; "é preciso cuidado na seleção das palavras para não iludir o leitor"; "há perda de peso [da palavra] , por exemplo , quando o significado é impreciso (a palavra não correspo nde exatamenre à idéia)"; "enfraquece o estilo não dar às coisas o seu nome certo"; "veja sempre se o texto que você escreveu não deixa no ar uma destas perguntas: o quê? quem? de quê? do quê?" ; esses são alguns exemplos de orientações dirigidas a j ornalistas em manuais de imprensa e mostram como

( . . . ) a "obj er ividade" dos fatos , isto é, sua evidência de vis ib i l idade, resulta inevi ravelmente de um gesro interpretativo que se dá a parrir de um imaginário já

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constituído. Sendo assim, ao relatar os acontecimentos os jornais já estão exercendo uma determinação nos sentidos. (Mariani, 1 998 : 63)

Essa determinação de sentidos perpassa a própria estruturação do j ornal. Este se organiza por segmentações ou fragmentações - as diversas seções - que se subdividem e ao mesmo tempo se ligam em um interdiscurso que consti tui a p rópria pauta do j ornal: "a pauta é fundamental para a organização do trabalho de cada dia; nela estão a memória e a imaginação do j ornal" (Garcia, 1 992: 1 4) .

Para este trabalho, limitar-me-ei à seção destinada às reportagens sobre a cidade do Rio de J aneiro, isto é, aos fatos ocorridos no m unicípio e que são considerados relevantes para o público-leitor 1 , que p ossui um perfil imaginariamente construído pela empresa de comunicação2• Nota-se, portanto, que a própria seleção de infor­mação já é previamente determinada por um j ogo de espelho, n uma sucessão de imagens: a imagem de si , do lugar que ocupa na relação com o outro (o leitor) , do lugar deste , e assim sucessivamente. Nesse movimento especular entre o que se escreve de determinado lugar imaginário, para quem se escreve que ocupa também um lugar imaginário, o adolescente em conflito com a lei como objeto de reportagem estará atrelado a uma certa rede de significações em função de sua origem. É o que veremos mais adiante.

É preciso antes discutir a relação entre n otícia, fato e reportagem a partir da pergunta: de que lugar social se faz o j ulgamento de relevância para que um fato seja destacado do dia a dia e torne-se notícia de uma reportagem? Segundo os padrões do J o rnal O Globo para que algo torne-se notícia é p reciso que esta provoque "impacto na comunidade, avaliado segundo o número de pessoas afetadas pelo acon­tecimento" (Garcia, 1992: 22) . Sobre a repo rtagem, ela p ode "ser tanto a cobertura de um fato do dia que tenha um grande impacto como a abordagem exaustiva de um tema sem ligação direta com o dia da edição (Garcia, 1 992: 37) . N as duas perspectivas fala-se de impacto: impacto para quem? Cria-se aí a ilusão de uma relação naturalizada entre causa e efeito .

Nesse p onto entra em j ogo o aspecto da i nterpretação n o discurso j o rnalístico que, ao selecionar um fato/acontecimento como importante está, simultaneamente, traçando direções significantes que, como explica Mariani ( 1 998 : 60) , organizam "filiações de sentidos possíveis para o acontecimento não apenas em termos de uma memória, mas também no que diz respeito aos desdobramentos futuros. "

E m relação à notícia policial, propriamente dita, e seu lugar no j ornal - uma sub-seção dentro da seção relativa às notícias sobre o Estado -, em que n oticiam-se

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apenas crimes, numa ênfase do par semântico polícia/bandido, Foucault dá uma pista:

( ... ) sem delinqüência não há polícia. O que torna a presença policial, o controle policial tolerável pela população se não o medo do delinqüente? (. .. ) Esta instituição tão recente e tão pesada que é a polícia não se justifica senão por isto ( . . . ) Como isso seria aceitável se não houvesse os delinqüentes? Ou se não houvesse, todos os dias, nos jornais, arrigos onde se conta o quão numerosos e perigosos são os delinqüentes? ( 1982: 1 37)

Mas delinqüentes são adolescentes em conflito com a lei? O Estatuto da Criança e do Adolescen te diz que adolescentes são indivíduos em formação com direitos e deveres e quando infringem a lei são inimputáveis, mas passíveis de aplicação de medidas socioeducativas. Entretanto, tendo a lei como ponto de vista, quais são os adolescentes que se encaixam nessa definição a partir do discurso jornalístico? A análise do corpus ajudará no desenvolvimento da questão.

Análise do corpus

A análise busca compreender os lugares de produção de sentidos, em que se colocam em j ogo apagamentos, operações de inclusão e exclusão, as formações discursivas e as condições de produção do discurso relacionado com a significantização dada pela língua na história. Nos anexos apresentados no final do trabalho, encontram-se o recorte 1, em que selecio nei os títulos de reportagens que dizem respeito a infrações cometidas por adolescentes da Zona Sul e o recorte 2, em que estão reunidos os títulos que dizem respeito aos adolescentes oriundos da Zona Norte e de favelas, como explicitados nos corpos dos textos que não estão aqui reproduzidos.

A escolha de trabalhar com títulos, e não com o corpo do texto propriamente dito, se deu por estes, apesar de apresentarem-se como um segmento pequeno em termos de materialidade, também constituírem estratégias enunciativas para a pro­dução de sentidos. Não se pode esquecer que, dentro do discurso j ornalístico, o título possui uma função importante: é o chamariz da reportagem e por isso deve seguir várias regras, como por exemplo, o uso do presente do indicativo; deve tra­duzir a suposta perplexidade oriunda de um acontecimento qualquer; os s inais de pontuação devem ser usados no menor número possível; a ordenação sintática deve ser a mais simples; não pode ser ambíguo e nem ter o sentido incompleto ; é o que informam os manuais de O Globo e do Estado de São Paulo.

Como se pode perceber, há todo um processo de construção do título a fim de se garantir a oco rrência de uma leitura 'correta', isto é, coerente com o objetivo

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do profissional de imprensa. Os j ornalistas parecem desconhecer um princípio bási­co do funcionamento da linguagem: "todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro" (Pêcheux, 1 997: 53) . É o que veremos.

Neste trabalho, o interessante a destacar no universo discursivo dos títulos reproduzidos é o uso da palavra "j ovem" que ocorre em seis das sete seqüências em oposição a "menor", palavra eleita para definir adolescentes que não são çla classe média e nem da Zona Sul do Rio de Janeiro. Procurando o sentido estabilizado pelo senso comum, "jovem" é aquele que se encontra na j uventude, no período de vida compreendido entre a infância e a idade adulta ou, por extensão, aquele que, apesar da maturidade , conserva a vivacidade , a energia, a flexibilidade e uma certa inocência que os caracteriza. Por outro lado, a palavra "menor", substantivada, diz respeito àquele que ainda não atingiu a maioridade, ou o que é inferior a outro em número, grandeza, extensão, intensidade, duração, importância, na avaliação de méritos e qualidades. N o confronto de sign i fi cações produz-se um j ogo de antinomia, na medida em que "jovem" silencia sentidos produzidos quando se es­colhe denominar outros "jovens" também de "menores". Por que o menor da classe m édia é j ovem ( q u e c o n s e rva ce rta i n o c ê n c i a ) em o p o s i çã o ao m e n o r institucionalizado? Por que denominar "j ovens da classe média"? Possivelmente essa marca traz uma identificação imediata com a imagem do leitor desse jornal, também pertencente a esse grupo social.

Existem marcas no recorte 1 que estabelecem um jogo de paráfrase: classe média, zona sul, Leblon, Copacabana, Flamengo; e um outro grupo: j ovem, adolescente, pitboy�. Essas seqüências trazem níveis referenciais convocados no texto concernentes ao estranhamento sobre a atitude desses jovens. Não se espera de um garoto da classe média do Leblon que infrinja leis, na medida em que, no imaginário social do discurso jornalístico, esse adolescente possui família, estuda, vai a boates, freqüenta festas. ao empregar determinados termos da linguagem, determinadas palavras, o jogo enunciativo acaba por desnudar valores da sociedade de classes que constitui uma cena discursividade. São sentidos determinados pelas posições ideológicas enredadas no próprio processo histórico que fazem, portanto, as palavras significarem.

Em duas das sete reportagens, ao final de cada uma há o convite para que o leitor participe, interaja com o fragmento discursivo através da versão on line do jornal. São perguntas colocadas ao leitor para que dê sua opi nião: o que faz um jovem da classe média se envolver em assaltos e se ele deve receber tratamento especial.

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Para que essas perguntas possam ter sido formuladas e tornadas legítimas, foi pre­ciso que uma memória sobre as classes sociais desfavorecidas tenha sido posta em anda­mento, isto é, algo construído pelo menos desde o século XIX, como nos explica Foucault:

Ele rouba porque é pobre, mas você sabe muito bem que nem rodos os pobres roubam. Assim, para que ele roube é preciso que haja nele algo que não ande muito bem. Esse algo é seu caráter, seu psiquismo, sua educação, seu inconsciente, seu desejo. Assim o delinqüenre é submetido a uma tecnologia penal, a da prisão, e a uma tecnologia médica, que, se não é a do asilo, é ao menos a da assistência pelas pessoas responsáveis. ( 1982: 1 35)

Dessa fo rma o questio namento p ro p osto pelo discurso do j o rnal invoca esse pressuposto, indo além ao inquirir sobre tratamento diferenciado, subenten­dendo-se que trata-se de sujeitos diferenciados também. Diferenciados pela classe social que naturaliza a infração no jovem pobre e espanta-se com a suposta falta de motivos para o cometimento de infrações por parte de jovens da zona sul , supridos em suas condições mínimas de existência. Os j ovens do primeiro recorte não são institucionalizados e, diante dessa ameaça, há grande repercussão. Por que se questi­ona a possível detenção deles, na medida em que cometeram atos infracionais?

No recorte do dia 1 3/06/02 ( O Globo ) há o uso do tempo futuro que, na indicação de uma ação ainda não ocorrida, minimiza a responsabilidade pelo próprio ato , seja do j ovem (será ou não será preso?) , seja do jornalista, que não deve assumir, nesse caso, nenhuma certeza, ao contrário , por exemplo, do recorre do dia 04/08/02

Uornal do Brasil) , em que o j ornalista afirma, utilizando o tempo presente, que " menores fogem e voltam ao crime" , sem que haja nenhuma indicação consistente sobre esse fato, já que muitas vezes o j ovem foge por motivos de sobrevivência, como indica a própria manchete do dia 20/06/02 Uornal do Brasil) .

Ainda sobre o primeiro recorte, é interessante perceber, através do título do dia 1 9 /06/02 ( O Globo) que é dada a palavra aos jovens ("alegam ter sido atacados"); eles podem falar, defender-se e com isso alterar a própria posição do Ministério Público. Essa possibilidade de fala está vedada no outro recorte, em que no máximo se encontra o verbo "querer" como indicativo de alguma subjetivação ( 1 5/06/02 -Jornal do Brasil) ; eles querem, não pedem, por exemplo. A voz está ausente.

Em relação, então, ao segundo recorre, não se pode falar de jogo parafrástico pelo simples faro de que há apenas a repetição de uma materialidade lingüística, "menor", que acaba por dizer muito mais do que podemos supor em suas distorções ideológicas. Nos oiros segmentos é selecionada a palavra "menor"; esta, entretanto, quando aparece no primeiro recorte (24/05/02), é porque o jovem saiu da esfera da liberdade e da suspeita, identificando-se já com o agressor a ponto de fazer par com o significante "polícia" . .

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No caso dos j ovens do recone 2, as palavras "jovem infraror" e "menino" surgem no subtítulo, apaziguadas, isto é, como um contraponto que acaba por reforçar a primeira idéia. Como a notícia seria l ida se n o rítulo - como função de introduzir uma matéria - estivesse "menino" no lugar de "menor infrator"? Enquanto os j ovens da classe média são notÍcia por flagrantes de i n fraçóes ou por estarem na iminência da apreensão, os menores do recone 2 estão sendo objeto de notícia por suas atuaçóes durante o processo de cumprimento de alguma medida socioeducativa, isto é, são insti tucionalizados e já foram definidos como infratores; são , portanto, delinqüentes. Essa ressalva permite então concluir que o que torna um j ovem infrator é a sua punição, sua sentença e não exatamente o ato infracional, deslocando a questão da produção da verdade para a instituição judiciária e seu dizer. D essa forma não é o ato que está em j ogo, mas o que se diz do ato e quem fala sobre ele.

Bastante curioso é ler, no manual de O Globo, apêndice intitulado Palavras Perigosas - "aquelas que se prestam a erros e tropeços" (Garcia, 1 992:1 29) -, a orientação dada ao vocábulo "menor" : "palavra a ser substituída, sempre que possível, por outra mais específica: "criança", "menino", "adolescente" . Deve ter uso restrito às situações nas quais estiver em questão a idade legal da pessoa" (íbid.: 1 60) . Nesse caso a sugestão de troca valeu aos jovens da Zona Sul, ao contrário dos jovens institucionalizados.

Na notícia do dia ! 3/06/02, do recorte 1 , o j ovem é ameaçado de ser preso não por sua infração, mas porque não se apresentou ao j uiz, a autoridade que determina a verdade. Na notícia seguinte, é anunciada a decisão do Ministério Público (órgão que determina se algo é crime ou não) de l iberar os tais j ovens acusados de espanca­mento. Reco rrendo ao corpo da n otícia, a motivação para tal indicação se deve ao faro de os j ovens possuírem, entre outras coisas, endereço fixo. Se rodo dizer está em relação direta com o não-dizer, fica inferido que os j ovens institucionalizados do recorte 2, que não são da zona sul, de Copacabana, Leblon ou Flamengo, não possuem endereço fixo, pois são oriundos de outra classe social, em que o sentido da infração está naturalizado. Não aparece nenhum desdobramento das matérias na versão on line do recone 2, na medida mesma em que para esses j ovens a infração é compreendida socialmente, como um lugar determinado.

É in teressante perceber que, curiosamente, os oiro enunciados do recone 2

tratam do fracasso da proposta socioeducativa de ressocialização. São notícias dos absurdos institucionais: violência, tortura, evasão etc. Não ocorre, entretanto, nenhum mal estar ou interrogação sobre ser esse o tratamento que deve ser ofereci­do a esses jovens, como apareceu no recorte 1 . É a marca de uma formação discursiva

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- presença do ideológico - que, de seu lugar histórico-social, silencia sentidos, ou melhor, efeitos de sentido acerca do lugar destinado a determinados sujeitos. É, como nos diz Konder (2002: 1 56), a marca da "luta de classes na linguagem", "fala-se para não dizer (e não permitir que se digam) coisas que podem causar rupturas significativas na relação dos sentidos" (Orlandi, 1 992: 7 1 ) e estes não existem por si só, mas a partir de sua inscrição n o mundo determinado historicamente.

N O TAS 'No Manual de Redação e estilo do jornal O Globo, por exemplo, o público é formado por leitores médios, que fazem uma leitura do jornal rápida e superficial: "jornais são lidos depressa e superficialmenre" (Garcia, 1 992:27); "mesmo quando a linguagem alheia merece respeito, ela não serve para o jornal se esriver acima da compreensão do leitor médio" (Garcia, 1 992:25) .

2 É imeressame perceber a designação dada aos jornais: "veículo de comunicação". A própria expressão de nomeação já suscira imerprerações no campo da Análise do Discurso, que rrabalha com a quesrão da linguagem em relação à comunicação. Se não há senrido prévio, esrabilizado, ao comrário a língua, para significar, precisa ser aferada pela hisrória, provocando deslizes e falha, em que nível se dá a comunicação? Como pode ser ela veiculada, se não pelo mal emendido e pela ambigüidade consrirurivos da língua?

3 Nomeação que se refere a vens brigões de academias pagas, porramo sujeiros represemames, em sua maioria, da classe média.

REFER�NCIAS B I B L I O G RÁFICAS

FOUCAULT, M . Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1 982. ___ . A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2000. GARCIA, L. Manual de redação e estilo. Rio de Janeiro: Globo, 1 992. !NO U RSKY, F. A análise do discurso e sua inserção no campo das ciências da linguagem. In: Cadernos do I.L.- Revisra da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porro Alegre, n.2, dez. 1 998. KONDER, L. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia. das Lerras, 2002. Lucas, C. R. A noção de silêncio e os sem-rero no discurso jornalísrico. In: RUA, Nudecri, n. 4, mar. 1 998. MARIANI, B. O PCB e a imprensa. Rio de Janeiro: Revan, 1 998. MARTINS, E. Manual de redação e estilo. São Paulo: O Esrado de São Paulo, 1 990 . MENDONÇA, K. A punição pela audiência: um estudo do "Linha Direta·. Rio de Janeiro: Quarrer, 2002. ORLANOI, E. As formas do silêncio: no movimemo dos senridos. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1 992. ___ . Discurso e texto. Campinas, SP : Pomes, 200 1 . Pi:CHEUX, M. O discurso: esrrurura o u acomecimemo. Campinas, SP: Pomes, 1 997. ___ . O mecanismo do (des)conhecimemo ideológico. In: ZIZEK, S. (Org.) . Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Comraponto, 1 994 . ___ . Semântica e discurso. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1 997.

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RECORTE 1

O Globo, 25/04/02:

ANEXOS

Ladrões de classe média PM prende dois jovens, moradores de Copacabana, que tentavam arrombar caixa eleuônico

No Globo on line: O que faz cada vez mais jovens de classe média se envolverem em roubos e assalros?

O Glob o, 28/04/02: Jovens de classe média espancam aposentado Agressão ocorreu durante tentativa de assalto ontem de manhã no Parque do Flamengo

O Globo, 24/05/02: Polícia prende 4 menores por espancamento Os acusados são de classe média alta. Dois dos cinco rapazes agredidos ficaram com lesões irreversíveis No Globo on line: Menores de classe média envolvidos em crimes devem receber tratamento especial?

O Globo, 3 1 /0 5/02: Polícia procura j ovens acusados de agressão J ustiça manda deter adolescentes de classe média que foram reconhecidos por vítimas de briga no Leblon

Jornal do Brasil, 1 3/06/02: Espancamento J ovens do Leblon se apresentam . G rupo estava foragido há um mês

O Globo, 1 3/06/02: Pirboys se apresentam à J ustiça e são detidos Quarto acusado de agressão em boate não comparece à Vara da Infância e da Juventude e poderá ser preso

O Globo, 19/06/02: Jovens de classe média acusados de agressão alegam ter sido atacados

Ministério Público se diz favorável à libertação provisória dos menores

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RECORTE 2

O Globo, 02/06/02: Menores infratores fogem de internato na Ilha Polícia não conseguiu evirar que 60 adolescentes escalassem muros e

escapassem do !PS

jornal do Brasil, 1 5/06/02: Briga de Quadrilhas PM a postos para conter menores infratores Internos querem áreas separadas para cada facção inimiga

jornal do Brasil, 20/06/02: Menores vivem entre ratos Deputados constatam condições subumanas no !PS

O Glo bo, 26/06/02: Menor é violentado por 22 internos por causa de dívida de seis cigarros

Agressores gravaram iniciais de uma facção criminosa no corpo da vítima

O Globo, 04/07/02: Menor infrator de 14 anos foge após botar fogo em diretor de internato

Menino usa álcool para atacar funcionário de abrigo em Bangu.

O Globo, 02/08102 : Menores brigam, quebram centro e fogem G rupos de facções rivais, recolhidos nas ruas, destroem mesas e cadeiras. G uarda tenta apartar e é ferido

jornal do Brasil, 04/08/02: Menores fogem e voltam ao crime Jovens i n frato res usam progressão de medida socioeducativa como oportunidade para escapar

jorn al do Brasil, 08/08102: Menores torturados na Ilha Agentes usavam "cotonetes" para não deixar marcas

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