adolescente em conflito - família, ai e medida

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  ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI: PERCEPÇÕES SOBRE FAMÍLIA, ATO INFRACIONAL E MEDIDA SOCIOEDUCATIVA Fernanda Lüdke Nardi Dissertação de Mestrado Porto Alegre/RS, 2010

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Artigo sobre atos infracionais, a família e medidas socioeducativas

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  • ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI: PERCEPES SOBRE FAMLIA, ATO INFRACIONAL E MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

    Fernanda Ldke Nardi

    Dissertao de Mestrado

    Porto Alegre/RS, 2010

  • ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI: PERCEPES SOBRE FAMLIA, ATO INFRACIONAL E MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

    Fernanda Ldke Nardi

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Psicologia

    sob orientao da Prof. Dr.. Dbora Dalbosco DellAglio

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Psicologia

    Programa de Ps-Graduao em Psicologia do Desenvolvimento Abril, 2010

  • Embora ningum possa voltar atrs e fazer um novo comeo, qualquer um pode comear agora e fazer um novo fim

    Chico Xavier

  • AGRADECIMENTOS

    Gostaria de agradecer a minha famlia tio, tia, meus trs primos que so como irmos, avs, avs e cunhado que sempre compartilharam maravilhosos momentos ao meu lado. Agradecimentos especiais queles que ao longo de toda minha trajetria estiveram bem prximos: minha me, Olga, meu pai, Vilson, minha irm, B e meu noivo, Gustavo. A vocs que me ensinaram o que amar e ser amada.

    Agradeo muito prof Dra. Dbora Dalbosco DellAglio pela orientao e por muito que me ensinou nesses dois anos de convvio. prof Dra. Slvia Helena Koller pelo acolhimento e pelas contribuies feitas ao meu trabalho. s professoras Dra. Adriana Wagner e Dra. Janana Pacheco pelas trocas e sugestes importantes para a realizao

    desse estudo.

    A todos os integrantes do Ncleo de Estudos e Pesquisas em Adolescncia (NEPA) pelos momentos compartilhados, tanto momentos de estudo como de descontrao.

    Aos adolescentes que participaram desse estudo. Em vocs e para vocs que pensei ao escrever cada palavra.

    Ao Curso de Ps-Graduao em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) pelas aprendizagens.

    Ao CNPq pelo auxlio financeiro a essa pesquisa.

  • SUMRIO

    LISTA DE TABELAS E FIGURAS ................................................................................. 7 RESUMO ............................................................................................................................ 8 ABSTRACT ........................................................................................................................ 9

    CAPTULO I INTRODUO ..................................................................................... 10 1.1. Teoria Bioecolgica do Desenvolvimento Humano ................................................... 11 1.2. Delinquncia Juvenil ................................................................................................... 14

    1.3. Fatores de Risco .......................................................................................................... 16 1.4. Fatores de Proteo e Resilincia ................................................................................ 20 1.5. A medida socioeducativa e projetos de vida como fatores de proteo ...................... 22

    CAPTULO II MTODO ............................................................................................. 25 2.1. Participantes ................................................................................................................ 25 2.2. Delineamento ............................................................................................................... 25 2.3. Instrumentos ................................................................................................................ 26 2.4. Procedimentos e Consideraes ticas ....................................................................... 27 2.5. Anlise dos Dados ....................................................................................................... 28

    CAPTULO III RESULTADOS E DISCUSSO ...................................................... 30 3.1. Caso 1: Evandro .......................................................................................................... 30

    3.1.1. Contextos de Desenvolvimento .................................................................... 31 3.1.2. Infrao Juvenil ............................................................................................ 32

    3.1.3. Dados do FAST ............................................................................................ 34 3.1.4. Discusso do Caso ........................................................................................ 35

    3.2. Caso 2: Rafael ............................................................................................................. 37

    3.2.1. Contextos de Desenvolvimento .................................................................... 38 3.2.2. Infrao Juvenil ............................................................................................ 39 3.2.3. Dados do FAST ............................................................................................ 41 3.2.4. Discusso do Caso ........................................................................................ 42

    3.3. Caso 3: Carlos ............................................................................................................. 44 3.3.1. Contextos de Desenvolvimento .................................................................... 45 3.3.2. Infrao Juvenil ............................................................................................ 46 3.3.3. Dados do FAST ............................................................................................ 48

  • 3.3.4. Discusso do Caso ........................................................................................ 49 3.4. Discusso Integrada dos Casos .................................................................................... 53

    3.4.1. Contextos de Desenvolvimento .................................................................... 53 3.4.2. Infrao Juvenil ............................................................................................ 58

    CAPTULO IV CONSIDERAES FINAIS ............................................................ 62

    REFERNCIAS ............................................................................................................... 68

    ANEXOS ........................................................................................................................... 77 ANEXO A. Roteiro de entrevista com os adolescentes ..................................................... 77 ANEXO B. Folha de instruo - FAST ............................................................................. 78 ANEXO C. Folha de registro das respostas FAST ......................................................... 79 ANEXO D. Termo de Concordncia da Instituio ........................................................... 80 ANEXO E. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Pais ou responsveis ........... 81 ANEXO F. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Adolescentes ....................... 82 ANEXO G. Delinquncia juvenil: Uma reviso terica .................................................... 83 ANEXO H. Parecer do Comit de tica ............................................................................ 97

  • 7

    LISTA DE TABELAS E FIGURAS

    Tabela 1. Resultados da Aplicao do Family System Test (FAST) Caso 1 .................. 34 Tabela 2. Fatores de Risco e de Proteo Intra e Extrafamiliares Caso 1 ....................... 35 Tabela 3. Resultados da Aplicao do Family System Test (FAST) Caso 2 .................. 41 Tabela 4. Fatores de Risco e de Proteo Intra e Extrafamiliares Caso 2 ....................... 42 Tabela 5. Resultados da Aplicao do Family System Test (FAST) Caso 3 .................. 49 Tabela 6. Fatores de Risco e de Proteo Intra e Extrafamiliares Caso 3 ....................... 50

    Figura 1. Classificao dos tipos de coeso, hierarquia e estrutura familiar ...................... 29 Figura 2. Genograma do caso 1 .......................................................................................... 31 Figura 3. Genograma do caso 2 .......................................................................................... 37 Figura 4. Genograma do caso 3 .......................................................................................... 45

  • 8

    RESUMO

    Este estudo investigou as percepes de adolescentes autores de ato infracional sobre sua prpria famlia, o ato infracional cometido e a medida socioeducativa. Foram realizados estudos de caso com trs adolescentes, do sexo masculino, com idades entre 15 e 18 anos, que cumpriam medidas socioeducativas em meio aberto. Os instrumentos utilizados foram uma entrevista semiestruturada, o genograma e o Family System Test (FAST). Foram feitas anlises individuais de cada caso e uma discusso integrada, enfocando os contextos de desenvolvimento e a infrao juvenil. Foram identificados os fatores de proteo e de risco presentes nos contextos nos quais os jovens estavam inseridos, sendo que as prticas educativas parentais foram percebidas como fator de risco no desenvolvimento destes jovens, enquanto que a medida socioeducativa foi percebida como um importante fator de proteo. Destaca-se a importncia de estudos que investiguem os fatores individuais e ambientais envolvidos na problemtica da infrao juvenil, para que possam ser propostos programas de preveno e interveno adequados.

    Palavras-chave: Adolescente em conflito com a lei; Famlia; Medida socioeducativa; Ato infracional.

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    ABSTRACT

    This study investigated the perceptions of adolescents who were authors of infraction acts on their own families, the committed infraction act and the socio-educational measure. Case studies were conducted with three adolescents, male, aged between 15 and 18 years old who were in freedom, but followed by a supervised socioeducative measure. The instruments utilized were a semi-structured interview, a genogram and the Family System Test (FAST). In addition, individual analyses from each case and an integrated discussion were carried out, focusing on contexts of development and youth infraction. Risk and protection factors were identified in the contexts in which the young individuals lived and the parent educational practices were perceived as a risk factor in the development of these young individuals, while the socio-educational measure was perceived as an important protection factor. Finally, the importance of studies that investigate individual and environmental factors involved in the issue of youth infraction were highlighted which allows that adequate programs of prevention and intervention are proposed.

    Key words: Adolescent in conflict with the law; Family; Socioeducative measure; Infraction act.

  • 10

    CAPTULO I INTRODUO1

    O nmero de infraes cometidas por jovens tem aumentado tanto no Brasil como em outros pases, constituindo-se em um grave problema para a sociedade. Nos Estados Unidos, os ndices de delinquncia juvenil cresceram nos finais dos anos 80 e continuaram a crescer nos anos 90 (Assis & Souza, 1999; Shoemaker, 2000). No Brasil, um levantamento realizado em 2004 pela Subsecretaria de Promoo dos Direitos da Criana e do Adolescente identificou que existiam 39.578 adolescentes no sistema socioeducativo, o qual se refere ao conjunto de todas as medidas privativas de liberdade, as no privativas de liberdade e a internao provisria. Esse quantitativo representava que dois em cada 1000 jovens com idade entre 12 e 18 anos no Brasil eram adolescentes autores de ato infracional (CONANDA, 2006). Porm, esses nmeros referem-se somente queles jovens inseridos no sistema socioeducativo, embora se saiba que muitos adolescentes cometem pequenos delitos que no so registrados.

    Outro levantamento revelou que em 2002 havia no pas 9.555 adolescentes cumprindo a medida socioeducativa de internao e internao provisria. No ano de 2006 esse nmero j havia aumentado para 14.074 (Rizzini, Zamora, & Klein, 2008). Essa realidade demonstra a necessidade de respostas e esforos em direo socializao desses jovens e preveno do ato infracional. Porm, essa no uma tarefa fcil, pois o tema da infrao juvenil tornou-se complexo devido s mltiplas causas envolvidas.

    De acordo com Garbarino (2009), o processo de formao do adolescente depende de diversas variveis biolgicas, psicolgicas e sociais que constituem o contexto de vida desses indivduos. Em vista disso, este estudo utilizou como suporte a Teoria Bioecolgica do Desenvolvimento Humano (TBDH), a qual prev a integrao de aspectos do indivduo e do ambiente para compreender o desenvolvimento em diversas situaes (Bronfenbrenner, 1979/1996). O papel do ambiente enfatizado por alguns autores na aquisio e na manuteno da conduta antissocial dos jovens autores de ato infracional (Pacheco, Alvarenga, Reppold, Piccinini, & Hutz, 2005). Alm disso, a TBDH contraria as simples relaes de causa-efeito entre adversidades e comportamentos antissociais. Tal perspectiva acredita que fatores como gnero, competncia cognitiva, temperamento,

    1 Parte deste captulo foi submetida como artigo terico, intitulado Delinquncia Juvenil: Uma reviso

    terica, para a revista Acta Colombiana de Psicologa e encontra-se apresentado no Anexo G.

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    famlia, idade, entorno social e cultura, combinam-se de uma forma complexa, influenciando o comportamento do adolescente (Garbarino, 2009).

    Sendo assim, diante da necessidade e da importncia de estudos para compreender melhor os processos vivenciados pelos adolescentes em conflito com a lei, foram realizados trs estudos de casos com jovens que estavam cumprindo medida socioeducativa em meio aberto. O objetivo foi investigar as percepes desses jovens sobre sua prpria famlia, assim como sobre o ato infracional cometido e sobre a medida socioeducativa que estavam cumprindo. Alm disso, o estudo abarcou os diversos fatores de proteo e de risco aos quais esses adolescentes estavam expostos, suas expectativas para o futuro, bem como a viso sobre o passado.

    1.1. Teoria Bioecolgica do Desenvolvimento Humano A Teoria Bioecolgica do Desenvolvimento Humano (TBDH) fundamental para a

    compreenso do desenvolvimento dos adolescentes em conflito com a lei, pois considera o sujeito dentro de seu contexto. A TBDH inicialmente foi denominada de Ecologia do Desenvolvimento Humano, a qual destaca aspectos da pessoa em desenvolvimento, do ambiente e principalmente da interao entre ambos (Bronfenbrenner, 1979/1996). Com a evoluo da teoria surge o Modelo Bioecolgico do Desenvolvimento Humano, o qual define o desenvolvimento como um fenmeno de continuidade e mudana nas caractersticas biopsicolgicas do ser humano como indivduo e como grupo. O fenmeno estende-se a todo o curso da vida, atravs de sucessivas geraes e do tempo histrico passado e presente. Um elemento que faz parte da definio desse modelo a experincia. Esse termo utilizado para indicar a importncia no s do ambiente, como tambm da maneira como o indivduo vive e percebe esse ambiente (Bronfenbrenner, 2005). O Modelo Bioecolgico possui quatro principais componentes: o processo, a pessoa, o contexto e o tempo. O processo destacado como parte central do modelo. Esse construto abrange formas particulares de interao entre o indivduo e o ambiente chamadas de processo proximal, que envolve o principal mecanismo responsvel pelo desenvolvimento. So destacadas diferentes propriedades relacionadas ao conceito de processo proximal: 1) para ocorrer o desenvolvimento, a pessoa deve engajar-se em uma atividade; 2) para o processo ser efetivo, a atividade deve ocorrer em uma base regular e por um prolongado perodo de tempo; 3) as atividades devem tornar-se cada vez mais complexas e no somente serem repetidas ao longo do tempo; 4) para os processos proximais serem efetivos, deve existir reciprocidade entre as partes envolvidas na relao; 5) os processos proximais no so limitados a interaes entre as pessoas, eles tambm

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    envolvem relaes com objetos e smbolos. Para que ocorram as interaes recprocas, os objetos e os smbolos do ambiente do indivduo devem estimular sua ateno, manipulao, explorao e imaginao (Bronfenbrenner & Morris, 1998). O segundo componente do Modelo Bioecolgico refere-se pessoa, a qual analisada atravs de trs tipos de caractersticas: as caractersticas de disposio, de recurso e de demanda. As primeiras constituem-se na capacidade do indivduo em poder colocar os processos proximais em movimento e sustentar sua operao. As caractersticas de recurso envolvem a habilidade e a experincia exigidas da pessoa para o efetivo funcionamento dos processos proximais. As caractersticas de demanda referem-se s propriedades pessoais capazes de promover ou impedir reaes do ambiente social, dificultando ou favorecendo a operao dos processos proximais (Bronfenbrenner & Morris, 1998). O terceiro componente, o contexto, estudado atravs de quatro nveis ambientais que interagem entre si: o microssistema, o mesossistema, o exossistema e o macrossistema.

    O microssistema compreende as atividades, os papis e as relaes interpessoais vivenciadas pela pessoa em ambientes nos quais ela interage face a face. O mesossistema refere-se ao conjunto de microssistemas frequentados pelo indivduo e as inter-relaes que estabelece neles. O exossistema constitui ambientes que a pessoa no frequenta como participante ativo, mas que a afetam ou so afetados por ela de alguma maneira. O macrossistema envolve as ideologias, as crenas e a cultura presentes no contexto da pessoa que influenciam seu desenvolvimento (Bronfenbrenner, 1979/1996). Enfim, o quarto componente do Modelo Bioecolgico refere-se ao tempo, o qual analisado atravs de trs nveis: o microtempo, o mesotempo e o macrotempo. O primeiro definido como a continuidade e a descontinuidade dentro de episdios de processos proximais, pois no existindo uma continuidade os processos proximais tornam-se inviveis. O mesotempo refere-se periodicidade dos episdios de processo proximal atravs de maiores intervalos de tempo, como, por exemplo, semanas. O macrotempo focaliza as mudanas que ocorrem nas expectativas e nos eventos dentro da sociedade, tanto dentro de diferentes geraes como atravs delas. Alm disso, focaliza tambm a maneira como esses eventos e expectativas afetam e so afetados pelos processos e resultados do desenvolvimento humano. Sendo assim, o estudo desse componente do modelo focaliza a pessoa diante dos diversos acontecimentos de sua vida, desde os mais antigos at os mais recentes (Bronfenbrenner & Morris, 1998). A partir dos quatro componentes, Bronfenbrenner e Evans (2000) apresentam consideraes quanto aos riscos que podem estar presentes nos diferentes contextos de desenvolvimento. Os autores denominaram de caos o aumento significativo dos fatores de

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    risco presentes nas famlias e na sociedade como um todo. O caos possui um potencial para interferir no desenvolvimento e na manuteno dos processos proximais, assim como pode produzir processos que geram disfuno (Bronfenbrenner & Evans, 2000). Bronfenbrenner (2005) assinalou um dos fatores de risco para o cometimento de atos infracionais existente em um dos microssistemas do indivduo, a famlia. De acordo com o autor, o estabelecimento e a manuteno de uma interao progressivamente mais complexa e emocional entre os pais e a criana depende da existncia de um outro adulto, a chamada third party. Esse adulto seria responsvel por assistir, encorajar e expressar admirao e afeio pela pessoa cuidadora e engajar-se junto a ela nas atividades com a criana. As crianas criadas por mes ou pais solteiros, que no possuem um outro adulto agindo como a third party, possuem um maior risco para o desenvolvimento de um ou mais problemas, como hiperatividade, dficit de ateno, baixo rendimento escolar, faltas na escola, entre outros. Em um nvel mais srio, Bronfenbrenner (2005) menciona que algumas crianas podem desenvolver a chamada sndrome adolescente, que envolve comportamentos que tendem a ser associados uns aos outros, como abandonar a escola, fumar cigarros, ingerir bebidas alcolicas, gravidez, experincias sexuais frequentes e, em casos mais extremos, suicdio, envolver-se com drogas, vandalismo, violncia e atos criminais. Uma pesquisa realizada com 61 jovens infratores e 31 irmos ou primos no-infratores, nos estados do Rio de Janeiro e Pernambuco, constatou que a maioria dos jovens vivia com somente uma das figuras parentais. Foi revelado um distanciamento da figura paterna, especialmente decorrente do abandono familiar e de morte, e a ausncia da me nos lares, principalmente devido necessidade de trabalhar fora (Assis & Souza, 1999). Entretanto, no so todas as famlias monoparentais que apresentam relaes disruptivas afetando negativamente o desenvolvimento das crianas. Bronfenbrenner (2005) mencionou alguns fatores que podem agir como proteo nesses casos, como o suporte oferecido por outros adultos me ou ao pai solteiro. De acordo com o autor, o mais importante no somente a ateno dada criana, mas tambm a assistncia fornecida ao cuidador solteiro. Amigos, vizinhos, colegas de trabalho e at mesmo instituies podem oferecer o suporte necessrio para o bom desenvolvimento da criana. Devido a todos os aspectos mencionados, a TBDH atribui importncia crucial para o conceito de validade ecolgica. Uma pesquisa considerada ecologicamente vlida quando feita em um ambiente natural e quando envolve objetos e atividades da vida cotidiana do indivduo (Bronfenbrenner, 1979/1996). Portanto, a anlise do ambiente

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    natural no qual esto inseridos os adolescentes em conflito com a lei torna a pesquisa ecologicamente vlida permitindo uma melhor compreenso da vida desses jovens.

    1.2. Delinquncia Juvenil O termo delinquncia juvenil utilizado por muitos autores para se referir s

    transgresses lei realizadas por adolescentes, os quais so definidos pelo Estatuto da Criana e do Adolescente (1990) como indivduos entre doze e dezoito anos de idade (Feij & Assis, 2004; Shoemaker, 2000; Silva & Hutz, 2002). De acordo com Ceolin (2003), comum referir-se a esses jovens com o uso de formas que, em nossa cultura, so estigmatizantes, como delinquentes ou marginais. Silva (2002) menciona que o termo delinquncia juvenil tem a conotao de um quadro estvel e duradouro, o que contradiz o entendimento atual sobre o fenmeno da transgresso na adolescncia. Outros termos podem ser utilizados fornecendo o significado de algo momentneo e passageiro, como adolescente em conflito com a lei.

    Outro termo bastante encontrado em textos que tratam dessa populao e que pode causar certo estigma o de comportamento antissocial, pois muitas vezes associado ao Transtorno de Personalidade Antissocial. Um estudo realizado com o objetivo de descrever e discutir esse conceito revelou que esse termo estaria relacionado a vrios transtornos mentais e a categorias utilizadas para fazer referncia a problemas de comportamento, que no configuram um transtorno mental, como, por exemplo, o comportamento delinquente apresentado por alguns jovens (Pacheco, Alvarenga, Reppold, Piccinini, & Hutz, 2005).

    A partir de estudos longitudinais, Patterson, Reid e Dishion (1992) propem um modelo de desenvolvimento do comportamento antissocial em quatro etapas. A primeira desenvolve-se durante o perodo da infncia dentro de casa. Os membros da famlia so apontados como os primeiros a treinarem habilidades antissociais em suas crianas. Os autores acreditam que as prticas educativas parentais ineficazes seriam os primeiros determinantes do comportamento antissocial. A segunda etapa ocorre no momento em que a criana inicia relaes sociais fora de casa, como no perodo de entrada para a escola. Comportamentos coercitivos ou antissociais aprendidos dentro de casa colocam a criana em um grave risco ao ampliar suas relaes sociais. Torna-se difcil ensinar a essas crianas habilidades sociais ou acadmicas. O temperamento e o comportamento desafiador muitas vezes acabam afastando-as dos demais colegas de classe.

    A partir de falhas acadmicas e de relacionamentos pobres com familiares e pares, o jovem induzido a procurar por um grupo que se parea mais com ele, os chamados grupos marginais ou antissociais. Assim ocorre a entrada na terceira etapa, na qual o

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    adolescente passa a se envolver com grupos que contribuem para o uso de drogas e o cometimento de atos infracionais. A quarta etapa ocorre quando o indivduo j se tornou adulto. As falhas nas habilidades sociais resultam em uma existncia delinquente, caracterizada por problemas como uso de drogas, institucionalizao decorrente de crimes cometidos ou de distrbios mentais, casamentos fracassados e atividades de subemprego (Patterson et al., 1992).

    Outro modelo encontrado na literatura o de Shoemaker (2000), que busca explicar a origem da delinquncia juvenil, baseando-se em uma pesquisa realizada sobre as principais linhas tericas da delinquncia. Esse modelo rene trs nveis de conceitualizao: o nvel estrutural, o nvel individual e o nvel sociopsicolgico. O nvel estrutural refere-se s condies sociais. Esse nvel abrange a teoria da desorganizao social que pode ser definida como a incapacidade de organizaes, grupos ou indivduos de uma mesma comunidade em resolver coletivamente problemas comuns. Essa teoria considera a influncia de fatores pessoais e situacionais na delinquncia, mas atribui aos fatores sociais a principal causa. De acordo com essa teoria, os fatores sociais exercem certo controle sobre a delinquncia e, quando esses fatores tornam-se instveis, os jovens ficam menos hbeis a resistir a comportamentos delinquentes (Shoemaker, 2000). O nvel individual abrange as teorias que atribuem a causa da delinquncia juvenil a mecanismos internos do indivduo, tanto biolgicos quanto psicolgicos. Teorias relacionadas aos aspectos biolgicos afirmam que esses aspectos podem influenciar na conduta dos jovens infratores. Entretanto, no negam a influncia de fatores ambientais. Os tericos que enfatizam os aspectos psicolgicos afirmam que diferenas individuais quanto personalidade seriam as causas da delinquncia. A personalidade vista por esses tericos como uma combinao de influncias biolgicas e ambientais. Sendo assim, apontada como um dos traos de personalidade do jovem infrator a carncia de sentimentos morais (Shoemaker, 2000). O nvel sociopsicolgico refere-se autoestima, influncia dos grupos e aos sistemas de controle. A teoria que enfatiza a influncia dos grupos diz que o jovem autor de ato infracional geralmente age em conjunto ou, quando age sozinho, seu comportamento fortemente influenciado por um grupo e pelo ambiente em que vive. Quanto aos sistemas de controle feita uma diviso em pessoal e social. O controle pessoal envolve fatores individuais, principalmente os psicolgicos. O controle social envolve instituies como a famlia, a escola e a igreja, que so vistas como responsveis pelo adolescente em conflito com a lei (Shoemaker, 2000). Nesse nvel dado um maior destaque para a famlia, pois ela vista como a instituio capaz de exercer maior controle sobre o jovem. As relaes

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    estabelecidas dentro da famlia tero implicaes nas condutas sociais futuras dos jovens e adultos. Portanto, a vida em famlia pode ser entendida como a primeira forma de sociabilidade e, por isso, um importante fator de proteo ou de risco para a infrao (Ceolin, 2003; Feij & Assis, 2004) dependendo de suas caractersticas, dinmica e funcionamento.

    1.3. Fatores de Risco O jovem infrator considerado um indivduo exposto a diversos fatores de risco, os

    quais so definidos como aspectos que se constituem em dificuldades e problemas para o indivduo e que podem influenciar o aparecimento de outros eventos estressores (De Antoni & Koller, 2000). As situaes de risco vivenciadas por esses jovens remetem a uma crise nos vnculos tanto sociais como familiares (Arpini, 2003), contribuindo para o surgimento de condutas antissociais, descritas como condutas de desrespeito e violao de direitos alheios (DSM-IV TR, 2003).

    De acordo com Pacheco et al. (2005), diante de determinados fatores de risco o comportamento antissocial tende a apresentar-se como um padro estvel entre a infncia e a adolescncia. Esses fatores podem envolver tanto as caractersticas individuais do sujeito como as caractersticas do ambiente em que ele vive. Os fatores de risco individuais so definidos como o sexo da pessoa, as habilidades sociais e intelectuais, assim como as caractersticas psicolgicas e os fatores genticos. Os fatores de risco ambientais envolvem o baixo nvel socioeconmico, as caractersticas da famlia, a ausncia de apoio social e as situaes de vida estressantes (Masten & Garmezy, 1985). Quanto s caractersticas familiares, Pedersen (1994) menciona que o desenvolvimento de problemas psicossociais nas crianas e adolescentes est associado a um relacionamento distante e pobre com os pais. Loeber e Dishion (1983) pontuam que o manejo e as tcnicas utilizadas pelos pais na educao dos filhos agiriam como um dos principais antecedentes da delinquncia. Corroborando essa ideia, Patterson, DeBaryshe e Ramsey (1989) mencionam que um primeiro passo para o desenvolvimento da delinquncia seriam as prticas educativas ineficazes adotadas pelos pais.

    De acordo com Gehring (1993), as famlias com problemas psicossociais frequentemente so menos coesas e apresentam relaes hierrquicas no balanceadas, ou seja, relaes igualitrias ou extremamente rgidas. A coeso e a hierarquia so destacadas por Wood (1985) como as duas dimenses centrais da estrutura de uma famlia. O termo coeso definido como uma proximidade emocional ou apego entre os membros da famlia, enquanto que o termo hierarquia relaciona-se ao poder de deciso, dominncia e

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    autoridade de um membro sobre os outros. O desenvolvimento saudvel de um indivduo associado coeso familiar, mas no se associa da mesma maneira hierarquia (Gehring, 1993). Uma pesquisa realizada com cinco adolescentes infratores, que cumpriam a medida socioeducativa de Internao com Possibilidade de Atividade Externa (ICPAE), teve como um de seus objetivos caracterizar as famlias desses jovens quanto aos aspectos biosociodemogrficos e quanto percepo deles do funcionamento familiar (Branco, Wagner, & Demarchi, 2008). Os resultados revelaram dificuldade por parte dos jovens de se abrir com a famlia, de falar das suas dificuldades e de pedir ajuda a eles. Houve um predomnio de relaes insatisfatrias e de problemas de comunicao devido aos conflitos no resolvidos na famlia desses adolescentes. Alm disso, os dados desse estudo mostraram como a importncia da famlia est centrada na figura da me, que sempre foi a primeira a ser lembrada, e dos irmos, com uma figura paterna distante ou at mesmo ausente.

    Outra pesquisa realizada em trs instituies do Rio de Janeiro, responsveis pela custdia judicial de adolescentes infratores, revelou que poucos viviam em um lar composto de pai e me. A me como chefe de famlia pde ser constatada em 25% dos lares dos entrevistados (Oliveira & Assis, 1999). Um estudo feito com 61 adolescentes que praticaram ato infracional e cumpriam medida socioeducativa de internao e 31 irmos ou primos no infratores, nos estados do Rio de Janeiro e Pernambuco, revelou algumas diferenas na estrutura e funcionamento familiar. Enquanto os primos ou irmos haviam tido uma maior convivncia com seus pais quando crianas, os jovens infratores vivenciaram uma instabilidade nos cuidados iniciais e um relacionamento mais distante com a famlia ampliada (Assis & Souza, 1999).

    Alm dos problemas vivenciados pelo adolescente infrator dentro de sua famlia, outras condies podem contribuir para o desenvolvimento de uma conduta antissocial, como a punio severa, as baixas condies socioeconmicas e o desemprego dos pais. O grupo de amigos tambm apontado por diversos autores como um importante fator de risco para o envolvimento em atividades ilcitas (Assis & Constantino, 2005; Assis, Pesce, & Avanci, 2006; Castro, 2006). Uma pesquisa realizada com quatro adolescentes em conflito com a lei confirmou esses dados mostrando que praticamente todos os jovens falaram da influncia dos pares na iniciativa do ato infracional (Branco & Wagner, 2009). Patterson et al. (1992) mencionam que a base para a identificao do jovem com um grupo antissocial construda pelos problemas vivenciados na infncia juntamente com uma falha dos pais em disciplinar e monitorar os filhos.

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    O consumo de drogas, a evaso e o baixo rendimento escolar, assim como a vivncia de qualquer forma de violncia, seja na famlia, na escola ou na comunidade, tambm so aspectos aos quais o jovem autor de ato infracional geralmente est exposto (Assis & Constantino, 2005; Assis et al., 2006; Castro, 2006; Gallo & Williams, 2005; Silva & Hutz, 2002; Steinberg, Catalano, & Dooley, 1981). Minayo e Deslandes (1998) pontuam o uso de drogas como um problema relacionado ao cometimento de atos infracionais e violncia. Diversos estudos tm demonstrado a relao existente entre o uso de drogas e o envolvimento em atos infracionais (Pacheco, 2004; Ferrigolo et al., 2004). Uma pesquisa realizada em Porto Alegre com 196 adolescentes em conflito com a lei, nos meses de maro de 1999, 2000 e 2001, revelou que 61% dos jovens utilizavam algum tipo de droga e 42% desses usurios de drogas no frequentavam a escola (http://www.mp.rs.gov.br/infancia/doutrina/id215.htm). Outra pesquisa, com 537 adolescentes infratores internados em trs instituies do Rio de Janeiro, demonstrou um percentual mais elevado em relao evaso escolar. Desses jovens, 72,6% no estavam estudando no momento da internao, sendo que 108 eram analfabetos. Esses resultados revelaram a baixa possibilidade desses jovens inserirem-se no mercado de trabalho, levando-os a realizar atividades de subemprego (Oliveira & Assis, 1999).

    Alguns adolescentes autores de ato infracional apresentam um comportamento violento, o qual pode ser explicado pelo padro de relaes estabelecidas dentro de sua famlia. Esse padro construdo no ambiente familiar tende a ser transposto para as relaes sociais fora de casa (De Antoni & Koller, 2002). De acordo com Garbarino (2009), a violncia na adolescncia usualmente comea a partir de uma combinao de dificuldades precoces nos relacionamentos, associadas a uma combinao de dificuldades temperamentais. Alm disso, o autor aponta que os jovens parecem apresentar um comportamento to violento quanto o seu entorno social. Um estudo feito com 50 meninas infratoras, que possuam idades entre 13 e 20 anos, revelou a presena de violncia intra e extrafamiliar no contexto em que as jovens viviam (DellAglio, Santos, & Borges, 2004). Outro estudo realizado com 61 jovens infratores que cumpriam medidas socioeducativas em instituies do Rio de Janeiro e de Recife constatou a fragilidade da maioria das famlias dos jovens. Os adolescentes revelaram a presena de desentendimentos e desafetos em suas famlias. Os resultados tambm demonstraram que a violncia familiar estava presente na maioria das vivncias desses jovens (Feij & Assis, 2004). Loeber e Stouthamer-Loeber (1998) apiam essa ideia quando afirmam que as formas de violncia utilizadas por alguns desses adolescentes pode ter origem nas agresses sofridas durante a infncia.

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    A violncia familiar apontada por alguns autores como potencializadora do desenvolvimento de problemas de comportamento. Diversos estudos tm demonstrado os prejuzos que a violncia praticada nos lares pode acarretar na infncia e na adolescncia, fases cruciais para o desenvolvimento humano (Pesce, 2009; Assis & Avanci, 2004). Garbarino (2009) destaca dois padres de interao, observados na dade pais e filhos, que podem levar ao desenvolvimento da violncia. O primeiro estaria relacionado ao aumento de conflito na relao dos pais com a criana, a qual se caracterizaria por prticas coercitivas e interaes aversivas. O segundo padro consistiria em um processo gradual de distanciamento emocional entre os pais e a criana.

    Uma reviso da literatura sobre violncia familiar e comportamento agressivo e transgressor mostrou que a violncia conjugal predomina nos estudos como tipo de maus tratos familiar com potencial para causar problemas de agressividade e transgresso em crianas (Pesce, 2009). Corroborando esses resultados, um estudo realizado com 311 adolescentes, divididos em dois grupos de jovens infratores e no infratores, revelou uma diferena significativa entre os grupos quanto ocorrncia de conflitos na famlia. O grupo de adolescentes infratores apresentou uma maior frequncia de conflitos familiares (45,3%). Esses conflitos foram, em geral, entre o casal ou entre os pais e os filhos (Pacheco, 2004). Segundo Gomes et al. (2002), a violncia se constitui em um grave problema de sade pblica. A maioria dos jovens autores de ato infracional mantm contato com a violncia dentro de suas prprias casas e nas comunidades em que vivem. A exposio violncia na comunidade definida por Osofsky (1995) como uma exposio frequente s drogas, ao uso de armas e violncia casual e pode ocasionar o desenvolvimento de problemas emocionais e de comportamentos agressivos (Osofsky, 1995; Overstreet, 2000). A violncia pode se dar de diferentes formas, algumas mais perceptveis do que outras. A violncia fsica envolve prticas como espancamento, tapas e mordidas, as quais podem provocar leses no corpo. A violncia emocional ou psicolgica consiste em um prejuzo da competncia emocional do indivduo causada pela humilhao, rejeio, desrespeito, agresso verbal ou discriminao (De Antoni & Koller, 2002; Souza & Jorge, 2004). Essa forma de violncia descrita como um importante intensificador da violncia social (Assis & Avanci, 2004). Um estudo feito com 76 famlias, 36 com adolescentes considerados agressivos e 40 com jovens considerados no agressivos, revelou uma relao entre agressividade e punio fsica severa, demonstrando que os adolescentes considerados agressivos foram mais punidos que aqueles no agressivos (Meneghel, Giugliani, & Falceto, 1998).

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    Outra forma de violncia comum de ser encontrada no caso dos autores de ato infracional a negligncia, caracterizada pela falta de cuidados, os quais envolvem o fornecimento de nutrientes e estmulos emocionais necessrios ao bom desenvolvimento do indivduo. Uma das formas mais graves de negligncia o abandono das crianas e dos adolescentes pelos pais (De Antoni & Koller, 2002). Na pesquisa realizada com 50 adolescentes infratoras, que possuam entre 13 e 20 anos de idade, foi constatada uma sequncia de abandonos e afastamentos, assim como a ausncia do pai (DellAglio et al., 2004). Adolescentes que sofreram algum tipo de violncia no ambiente familiar tendem a perceber suas famlias como menos coesas, mais rgidas e menos afetuosas. Os pais e as mes desses adolescentes tendem a ser vistos por eles como menos atenciosos (Pelcovitz et al., 2000). Uma pesquisa realizada com 41 famlias de adolescentes em conflito com a lei revelou altos ndices de negligncia e abuso fsico, demonstrando o ambiente hostil no qual esses jovens vivem (Carvalho & Gomide, 2005). A vivncia desses adolescentes sob condies de violncia ocasiona graves prejuzos ao desenvolvimento a curto ou a longo prazo. Devido a isso, apresentam uma maior vulnerabilidade aos maus-tratos, com repercusses na sua sade, seja fsica ou mental (Assis et al., 2006).

    1.4. Fatores de Proteo e Resilincia No so todos adolescentes expostos a fatores de risco que apresentam vulnerabilidade e problemas no desenvolvimento. Estudos realizados com indivduos vulnerveis tm abordado o conceito de resilincia, a qual foi definida inicialmente como a capacidade do indivduo de resistir s experincias de risco (Rutter, 1999). Posteriormente, o termo resilincia passou a ser utilizado para descrever um potencial utilizado pelo indivduo no enfrentamento das situaes adversas, envolvendo a adaptao positiva diante de adversidades. O conceito de resilincia relaciona-se com a promoo da sade da criana e do adolescente, pois valoriza os pontos fortes ao invs de dar ateno aos comportamentos mal adaptados (Assis et al., 2006; Luthar, Cicchetti, & Becker, 2000). Visando a modificar o quadro de vulnerabilidade ao qual se encontram associados os jovens infratores, Assis et al. (2006) sugerem que seja dada nfase aos aspectos saudveis e positivos do desenvolvimento. Assim, torna-se possvel a construo de novos projetos de vida, novos caminhos e perspectivas. A Psicologia Positiva surgiu justamente para abarcar essas questes, modificando o foco da psicologia de aspectos doentios ou malficos para aspectos benficos e positivos. A Psicologia Positiva focaliza aspectos como o bem-estar do indivduo, a satisfao e a felicidade. Alm disso, enfatiza tambm caractersticas da

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    pessoa como perseverana, criatividade, capacidade para amar, coragem, entre outras (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000). A resilincia deve envolver o contexto no qual o sujeito se desenvolve. Uma pessoa pode mostrar-se resiliente diante de determinado evento, mas no diante de outro. Sendo assim, deve-se considerar a existncia de uma capacidade do indivduo de lidar com situaes adversas em determinados contextos e de acordo com as circunstncias presentes (Junqueira & Deslandes, 2003). No estudo realizado por Pesce, Assis, Santos e Oliveira (2004) a capacidade de resilincia teve associao com fatores de proteo presentes no contexto das pessoas, tais como superviso familiar, bom relacionamento com outras pessoas, como amigos e professores, elevada autoestima e apoio social. Sendo assim, a resilincia pode ser vista como uma predisposio individual para enfrentar as consequncias dos fatores de risco e conseguir desenvolver-se adequadamente, desde que esteja associada presena de fatores de proteo que auxiliam nesse processo de enfrentamento, amenizando ou neutralizando os efeitos dos riscos (De Antoni, Hoppe, Medeiros, & Koller, 1999). De acordo com Rutter (1985), os fatores de proteo referem-se a influncias que alteram ou melhoram a resposta do indivduo a alguma situao que lhe causou sofrimento.

    Trs grupos de fatores de proteo foram identificados por Masten e Garmezy (1985) como essenciais ao desenvolvimento do indivduo: os atributos pessoais, como a autoestima, a autonomia, o temperamento, a inteligncia e a orientao social positiva; a

    coeso familiar, caracterizada pela ausncia de conflitos e pela presena de pelo menos um adulto com interesse pela criana, assim como a presena de comunicao e afeto; e a disponibilidade de sistemas externos de apoio, caracterizada pela presena de recursos na comunidade que auxiliam o indivduo a lidar com as adversidades. Steinberg (2000) pontuou que adolescentes que vivem em famlias afetivas demonstram um melhor desempenho escolar, apresentam menos depresso e ansiedade, alm de apresentarem altos nveis de autoconfiana e autoestima. Alm disso, esses jovens possuem uma probabilidade menor de engajar-se em comportamentos delinquentes.

    Alguns fatores de proteo que podem auxiliar os adolescentes a no entrarem no universo delinquente ou ajud-los a sair dessa trajetria seriam uma rede de apoio social e afetiva, assim como relaes prximas com a famlia. As caractersticas individuais tambm podem auxiliar, na medida em que pessoas mais calmas, tranquilas e conformistas em relao realidade social tm uma probabilidade menor de cometer algum delito. Outro fator seria o grupo de pares, caracterizado como aqueles amigos e namorados(as) que so fontes de sentimentos bons e com os quais so realizadas atividades lcitas e prazerosas.

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    Alm disso, o trabalho e o estudo tambm so apontados como importantes fatores de proteo para a delinquncia juvenil (Assis & Souza, 1999; Silva, 2002). O estudo de Paludo e Koller (2005), com uma adolescente que viveu em situao de rua, apontou a escola como um fator de proteo significativo para a construo da resilincia.

    Segundo Paludo e Koller (2005), o processo de resilincia parece ser muito difcil de ser alcanado pelas crianas e adolescentes que utilizam a rua como espao de desenvolvimento e socializao. Pode-se utilizar essa afirmao para os adolescentes em conflito com a lei, os quais tambm utilizam a rua como um espao de socializao como, por exemplo, no momento em que fazem uso de drogas ou quando cometem algum ato infracional. Portanto, a capacidade de resilincia depende das caractersticas da pessoa e do contexto no qual ela se desenvolve, podendo variar ao longo da vida. Devido a isso, a maneira de encarar as situaes adversas tambm varia de pessoa para pessoa (De Antoni et al., 1999; Assis et al., 2006; Rutter, 1987). Sendo assim, nos deparamos com a importncia de estudar os diversos contextos frequentados pelo adolescente em conflito com a lei. O ambiente no qual esse jovem cumpre sua medida socioeducativa, por exemplo, pode ser visto como um fator de proteo, contribuindo para processos de resilincia.

    1.5. A medida socioeducativa e projetos de vida como fatores de proteo A apreenso do adolescente, a sua entrada e a da famlia no sistema jurdico, assim como o fim da medida socioeducativa so momentos cruciais, geralmente de crise e desorganizao familiar. Assim, o cumprimento de uma medida constitui-se em um momento significativo na vida do adolescente em conflito com a lei e de sua famlia (Zamora, 2008), podendo se constituir num fator de proteo.

    Costa e Assis (2006) sugerem uma proposta de promoo durante o cumprimento da medida, em oposio punio, oferecendo aos adolescentes autores de ato infracional a oportunidade de vivenciar experincias positivas. As autoras citam alguns fatores de proteo importantes a serem estimulados durante o processo de cumprimento da medida socioeducativa, dentre os quais esto o fortalecimento de vnculos e o projeto de vida dos jovens. A formao de vnculos afetivos ir influenciar na adaptao ou no desajustamento do indivduo (Ceolin, 2003). Portanto, o fortalecimento desses vnculos torna-se crucial durante o perodo em que o jovem cumpre sua medida socioeducativa. A instituio que aplica a medida constitui, muitas vezes, a fonte de apoio social mais prxima e organizada na vida do adolescente infrator, podendo favorecer uma vinculao mais positiva entre o

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    jovem e sua famlia. Os vnculos afetivos formam a base do apoio social, a qual atribui uma sensao de segurana ao adolescente, fortalecendo-o para o enfrentamento das situaes adversas (Costa & Assis, 2006). Siqueira, Betts e DellAglio (2006) ressaltam que os adultos so vistos pelos jovens como as principais fontes de apoio, sendo que em instituies os monitores funcionam como esse apoio devido proximidade e permanncia junto aos indivduos atendidos. Sendo assim, uma maneira das instituies promoverem o fortalecimento dos vnculos atravs da vinculao dos jovens com os adultos que participam do processo socioeducativo (Costa & Assis, 2006). Outro fator de proteo apontado por Costa e Assis (2006) refere-se construo de um projeto de vida, pois vislumbrar o futuro e planej-lo estimula o interesse na conquista da felicidade. A ausncia de um projeto de vida est relacionada vulnerabilidade dos adolescentes em conflito com a lei. Esses jovens esto expostos a riscos frequentes durante a vida, o que resulta em uma perspectiva de um futuro frgil ou at mesmo inexistente (Costa & Assis, 2006). Um projeto de vida pode ser definido como o desejo que se coloca em movimento construindo a histria do indivduo (Ayres, 2004). As intervenes feitas com adolescentes em conflito com a lei mostram que a ressignificao do ato infracional envolve a possibilidade de construo de um projeto de vida (Jacobina & Costa, 2007). O trabalho mostra-se importante na construo desse projeto na medida em que tem como pressuposto o desenvolvimento de competncias envolvendo diversos contextos e nveis de relao, como o social e o familiar (Bardagi, Arteche, & Neiva-Silva, 2005). O trabalho mostra-se importante tambm como uma conteno da violncia e da delinquncia juvenil (Ferreira, 2008), pois no momento em que o jovem autor de ato infracional est trabalhando, est preenchendo o seu tempo com atividades lcitas (Jacobina & Costa, 2007). Alm disso, a relao que o indivduo estabelece com o trabalho, seja na procura ou na perda do emprego, constitui um dos principais obstculos para o desenvolvimento de projetos de vida (Sarriera, 1993). De acordo com Bardagi et al. (2005), no perodo da adolescncia que vo sendo elaboradas as expectativas futuras conforme as experincias de cada indivduo. Um estudo realizado com 14 adolescentes em situao de rua do sexo masculino, com idades entre 12 e 16 anos, revelou que a categoria Trabalho foi a mais citada quanto ao que os adolescentes desejavam para seu futuro (Neiva-Silva, 2003). Ferreira (2008) apresentou as respostas de 341 adolescentes em conflito com a lei para a seguinte questo: o que voc pretende fazer aps o cumprimento da medida socioeducativa? O resultado revelou o grande interesse dos jovens pelo trabalho lcito, seguido do interesse em estudar, mudar de vida e ajudar a famlia. Outra pesquisa realizada com trs adolescentes em conflito com a

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    lei que cumpriam a medida socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) investigou como a experincia do trabalho do adolescente influenciava suas relaes familiares. Nesse estudo, os trs adolescentes relataram mudanas significativas nas relaes estabelecidas com a famlia depois que comearam a trabalhar, principalmente no que se referia confiana da famlia em relao a eles (Jacobina & Costa, 2007).

    Arpini (2003) pontuou diversas justificativas para o envolvimento dos adolescentes em situao de risco com o trabalho. Primeiramente o trabalho relacionado ao dinheiro e s vantagens e benefcios trazidos por este. O trabalho possibilita ao indivduo as primeiras experincias como consumidor e certa autonomia em relao aos seus gastos. Alm disso, o trabalho visto por esses jovens como a nica alternativa para escaparem da vida miservel de forma digna. Arpini (2003) menciona que quando os adolescentes no tm um projeto para o futuro eles no temem os riscos do presente, mas, pelo contrrio, satisfazem-se com a aventura, com a transgresso e com o desafio. De acordo com Costa e Assis (2006), o perodo de aplicao da medida socioeducativa deve constituir um momento para a estruturao ou a construo de um projeto de vida. Sem um futuro, que gere a possibilidade de integrao social, os adolescentes deparam-se com novos desafios que se tornam cada vez mais difceis de serem contornados, gerando sentimentos de tristeza, angstia e frustrao. Promover a elaborao desses projetos protege o adolescente na medida em que disponibiliza maior conhecimento da realidade, dos prprios limites e das possibilidades, unidos ao desejo pessoal do adolescente. No processo de construo de um projeto de vida, os autores de ato infracional necessitam do apoio de figuras representativas que os encorajem a vislumbrar trajetrias mais felizes (Costa & Assis, 2006; Rizzini, Zamora, & Klein, 2008).

    A partir das consideraes tericas sobre a temtica da delinquncia juvenil percebe-se a influncia de diversos aspectos, tais como os diferentes microssistemas que os jovens frequentam (contextos). Portanto, esse estudo tentou abarcar alguns desses microssistemas, como a famlia, os amigos e o contexto da medida socioeducativa, os quais podem ter contribudo para o cometimento de ato infracional ou auxiliado os jovens aps o cometimento deste. Alm disso, foram investigadas as caractersticas dos adolescentes (pessoa) e os processos estabelecidos ao longo do tempo nos diferentes contextos frequentados.

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    CAPTULO II MTODO

    2.1. Participantes

    Participaram desse estudo trs adolescentes em conflito com a lei, do sexo masculino, com idades entre 15 e 18 anos, dos quais dois estavam cumprindo a medida socioeducativa de Prestao de Servios Comunidade (PSC) e o outro a medida de Liberdade Assistida (LA). A medida de PSC se refere a tarefas gratuitas realizadas pelo jovem por um perodo de, no mximo, seis meses. Essas tarefas devem ser atribudas ao adolescente conforme suas aptides e devem ser de interesse geral, podendo ser realizadas em escolas, hospitais e outros estabelecimentos. Essa medida socioeducativa deve ser cumprida durante uma jornada mxima de oito horas semanais, podendo ser aos sbados, domingos e feriados. A medida de LA constitui-se no acompanhamento do adolescente por uma pessoa capacitada com o objetivo de promover socialmente o jovem e sua famlia, supervisionar a frequncia e o aproveitamento escolar do adolescente e promover sua profissionalizao e insero no mercado de trabalho. Essa medida deve possuir um prazo mnimo de seis meses (ECA, 1990). Foi estabelecido, como um critrio de seleo da amostra, que os jovens estivessem cumprindo a medida h mais de cinco semanas. Esse critrio foi adotado tendo em vista que seriam feitas perguntas, durante a coleta de dados, relacionadas medida socioeducativa e para que se pudesse ter um melhor conhecimento e adaptao do jovem ao contexto da medida. Os trs adolescentes cumpriam medida em duas instituies do Programa Municipal de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto da cidade de Porto Alegre. Os participantes foram indicados pelas psiclogas das instituies e aceitaram participar da pesquisa.

    2.2. Delineamento Foi realizado um estudo exploratrio utilizando o delineamento de estudo de casos mltiplos. Um estudo de caso definido como uma investigao emprica que investiga um fenmeno contemporneo dentro de seu contexto da vida real (Yin, 2005, p. 32). O mtodo de estudo de caso utilizado quando se pretende estudar as condies contextuais, considerando essas condies pertinentes ao fenmeno de estudo. O uso de casos mltiplos sugerido quando se pretende compreender um fenmeno sem interesse por um caso especfico, tornando, assim, as evidncias mais convincentes e o estudo mais robusto. O delineamento de estudo de casos mltiplos (Yin, 2005) preocupa-se com a compreenso do

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    caso em si e no com a generalizao para alm dele. O estudo de caso mltiplo investiga os casos, semelhantes ou contrastantes, para compreender um fenmeno, uma populao ou uma condio geral, considerando uma multiplicidade de variveis envolvidas. Dessa forma, entende-se que o estudo de trs casos possibilita uma compreenso das percepes de adolescentes autores de ato infracional. Para isso, foram utilizados diferentes instrumentos, buscando uma complementao dos dados. A teoria da abordagem bioecolgica, por tentar compreender fenmenos humanos em seus vrios aspectos, justifica o uso de multi-instrumentos e fomenta a criao daqueles mais sensveis s dimenses abarcadas por seus construtos principais.

    2.3. Instrumentos

    Para a coleta de dados foram utilizados os seguintes instrumentos: 2.3.1 Entrevista Semiestruturada (Laville & Dionne, 1999): a entrevista semi-

    estruturada pressupe que as questes sejam preparadas antecipadamente com perguntas abertas e temas particulares, sendo possvel retirar ou acrescentar perguntas durante a entrevista com o participante. A entrevista foi utilizada para investigar os dados sociodemogrficos e as percepes dos adolescentes sobre sua prpria famlia, sobre o ato infracional cometido e sobre a medida socioeducativa que estavam cumprindo. A entrevista investigou os aspectos citados numa perspectiva temporal, ou seja, as percepes dos adolescentes sobre os diferentes aspectos de suas vidas no passado, no presente e no futuro. Assim, tambm foram investigadas as perspectivas de futuro e projetos de vida. O roteiro da entrevista apresentado no Anexo A.

    2.3.2 Genograma: O genograma ou genetograma uma representao grfica

    multigeracional da famlia e tem sido utilizado em diferentes contextos (Boing, Crepaldi, & More, 2008; McGoldrick & Gerson, 2001; Wendt & Crepaldi, 2008). Ele permite, de uma forma rpida e clara, visualizar quais so os membros que constituem a famlia, tenham eles vnculos consanguneos ou no, podendo identificar a idade e a ocupao de cada pessoa, alm de retratar o lugar ocupado por cada um dentro da estrutura familiar (Castoldi, Lopes, & Prati, 2006). Dessa forma, o genograma se mostra um instrumento de pesquisa que se destaca por sua praticidade e organizao na apresentao dos dados, tendo sido utilizado em diversos estudos (Boing, Crepaldi, & More, 2008; Castoldi, Lopes, & Prati, 2006; Pavarini et al., 2008; Zuse, Rossato, & Backes, 2002).

    2.3.3 Family System Test (FAST) (Gehring, 1993): o FAST permite a realizao de anlises tanto quantitativas como qualitativas das relaes familiares. Esse teste constitui-

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    se em uma tcnica tridimensional que avalia a percepo do indivduo sobre a coeso e a hierarquia em sua famlia. Para isso, os participantes representaram sua famlia em trs

    diferentes situaes: na situao familiar tpica, na situao ideal e na situao conflituosa. Esse instrumento possui um tabuleiro monocromtico dividido em 81 quadrados, peas feitas de madeira representando figuras masculinas e femininas e blocos com trs diferentes alturas (Gehring, 1993). A introduo desse instrumento no estudo de famlias possibilitou a avaliao direta das dades e dos subsistemas permitindo identificar no somente um escore geral para toda a famlia, mas tambm diversos escores especficos para cada subsistema (Teodoro, 2006).

    Alguns estudos realizados no Brasil j utilizaram esse instrumento e demonstraram a sua utilidade na avaliao das relaes familiares (De Antoni, 2005; Falco, 2006; Fleck & Wagner, 2003; Oswald, 2002; Pelisoli, Teodoro, & DellAglio, 2007). Teodoro (2006) cita algumas limitaes do FAST com relao s possibilidades de representao familiar, entretanto fornece alternativas que podem ser feitas utilizando o prprio instrumento para diminuir tais limitaes. Esse instrumento foi utilizado no presente estudo para analisar a percepo que os adolescentes infratores tm de suas famlias quanto coeso e a hierarquia familiar.

    2.4. Procedimentos e Consideraes ticas Esse estudo foi aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa do Instituto de Psicologia da UFRGS (Protocolo n 096/2008) e atende aos procedimentos ticos preconizados pela Resoluo 196 do Conselho Nacional de Sade (1996). Foi solicitada a concordncia das instituies para a realizao do estudo, atravs do Termo de Concordncia da Instituio (ver Anexo B). Os participantes da pesquisa foram selecionados a partir da indicao do profissional responsvel da instituio e foram convidados a participarem dessa pesquisa, sendo que nessa ocasio foram explicados os objetivos e o carter sigiloso e voluntrio dos estudos, salientando que a qualquer momento a participao poderia ser interrompida. Mediante a concordncia verbal quanto participao no estudo, foi solicitado que os jovens levassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para os pais ou responsveis assinarem (ver Anexo C), autorizando a participao de seu filho. Em seguida, tambm foi solicitado que os adolescentes assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (ver anexo D). As possveis dvidas referentes participao no estudo foram esclarecidas pela pesquisadora.

    Foi realizada, ento, a entrevista semiestruturada (Laville & Dionne, 1999), com durao aproximada de uma hora, com cada adolescente individualmente. Juntamente com

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    a entrevista foram aplicados o Family System Test (Gehring, 1993) e o genograma (McGoldrick & Gerson, 2001). As respostas dos participantes foram gravadas e transcritas para anlise.

    2.5. Anlise dos Dados Os dados obtidos atravs do Family System Test foram integrados com os dados obtidos pela entrevista e pelo genograma para que fosse possvel uma melhor compreenso das percepes dos adolescentes. De acordo com Denzin e Lincoln (2006, p. 19), o uso de mltiplos mtodos, ou da triangulao, reflete uma tentativa de assegurar uma compreenso em profundidade do fenmeno em estudo. As respostas da entrevista foram analisadas qualitativamente efetuando recortes dos contedos das respostas em elementos que constituram as unidades de anlise, ou seja, palavras, expresses ou frases que se referiam a temas especficos e que foram apreciados com o objetivo de esclarecer as semelhanas e as diferenas entre os casos (Laville & Dionne, 1999; Yin, 2005). A partir do genograma pde-se observar a estrutura familiar, bem como organizar os dados quanto s relaes existentes dentro da famlia dos adolescentes. De acordo com Nichols e Schwartz (1998), a principal funo do genograma justamente organizar os dados referentes famlia, assim como acompanhar os processos de relacionamento. Os resultados do FAST foram analisados segundo as instrues contidas no manual de autoria de Gehring (1993), o qual prope que a coeso e a hierarquia familiar sejam classificadas como baixa, mdia e alta. A coeso avaliada atravs da distncia entre as peas no tabuleiro e a hierarquia atravs da diferena de altura das peas. A combinao da coeso com a hierarquia resulta em uma avaliao da estrutura familiar, a qual pode ser classificada em equilibrada, instvel e desequilibrada. Haver inverso hierrquica quando o participante representar a gerao dos filhos com maior poder do que a gerao dos pais. A Figura 1 apresenta a classificao dos tipos de coeso, hierarquia e estrutura familiar de acordo com Gehring (1993).

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    Figura 1. Classificao dos tipos de coeso, hierarquia e estrutura familiar Fonte: Adaptada de Gehring (1993).

    As anlises da entrevista, do genograma e do FAST foram discutidas de forma integrada com o objetivo de garantir uma maior validade ecolgica dos dados e uma maior compreenso de cada caso estudado. Inicialmente, os casos foram analisados separadamente enfocando os aspectos particulares. A discusso integrada abarca caractersticas semelhantes observadas nos trs casos. Alm disso, os dados obtidos foram discutidos a partir do Modelo Bioecolgico (Bronfenbrenner & Morris, 1998) com a finalidade de analisar a influncia das caractersticas da pessoa e dos diferentes contextos no processo de desenvolvimento dos adolescentes, assim como a percepo deles sobre seu passado, presente e futuro, numa perspectiva temporal.

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    CAPTULO III RESULTADOS E DISCUSSO

    A partir da anlise dos dados coletados com a entrevista, o genograma e a aplicao do FAST, foram levantadas duas unidades de anlise: contextos de desenvolvimento e infrao juvenil. A unidade contextos de desenvolvimento incluiu aspectos relacionados percepo dos adolescentes sobre suas famlias e sobre outros contextos nos quais estavam inseridos, tais como a escola e o grupo de amigos, sendo apresentada atravs de duas subcategorias: contexto intrafamiliar e contextos extrafamiliares. A unidade de anlise infrao juvenil abarcou dados como o sentimento dos jovens relacionado ao cometimento do ato infracional, a percepo deles quanto medida que estavam cumprindo e seus desejos para o futuro, sendo apresentada atravs de trs subcategorias: ato infracional, medida socioeducativa e projetos de vida. Alm disso, sero apresentados os dados do FAST e uma discusso do caso. Na discusso individual de cada caso sero apresentados aspectos particulares do caso e as caractersticas comuns entre eles sero apresentadas na discusso integrada. Os nomes dos adolescentes, apresentados nessa dissertao, so fictcios com o objetivo de preservar a identidade dos jovens.

    A discusso individual de cada caso abordou os quatro aspectos do Modelo Bioecolgico de Bronfenbrenner. Sendo assim, foram identificadas as caractersticas individuais dos adolescentes e a presena de fatores de proteo e de risco no nvel da pessoa, assim como nos diferentes microssistemas de insero dos jovens. Tambm foram observados os processos estabelecidos entre os adolescentes e seu ambiente ao longo do tempo, considerando aspectos relatados sobre o passado e o presente.

    3.1. Caso 1: Evandro Evandro um adolescente de quinze anos que mora em uma penso com seu pai.

    Quando tinha onze anos seus pais se separaram, ficando o jovem com sua me e sua irm mais nova na casa onde moravam. Aps algum tempo, os trs foram morar com a av de Evandro e seus dois meio irmos, frutos do primeiro casamento de sua me. Em outubro de 2008, uma briga entre o jovem e sua me o fez sair da casa da av e ir morar com seu pai. A constituio familiar do adolescente apresentada na Figura 2.

    Em janeiro de 2009, o adolescente e um amigo seu, maior de dezoito anos, foram pegos pela polcia com dezessete gramas de maconha. Devido a esse fato, Evandro teve que cumprir, durante seis meses, a medida socioeducativa de Prestao de Servios Comunidade (PSC).

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    Figura 2. Genograma do caso 1

    3.1.1. Contextos de Desenvolvimento

    Contexto Intrafamiliar Evandro falou de sua infncia como uma poca muito boa, na qual estava mais

    prximo de sua me e a casa estava sempre cheia, pois seus amigos sempre o visitavam. No entanto, em outubro de 2008, uma discusso entre Evandro e sua me fizeram com que o adolescente se irritasse e chutasse o aparelho de som da me, quebrando-o. Aps esse episdio, a av de Evandro falou que ele no poderia mais morar naquela casa. Assim, Evandro passou a morar com seu pai em uma penso. Quando o jovem contou esse episdio reconheceu sua culpa e que no deveria ter tido tal atitude.

    Evandro afirmou, na entrevista, que sua me a pessoa da famlia com quem pode contar nos momentos que precisa. Quanto a essa relao o adolescente falou: eu sinto confiana nela ento, bom, tudo o que acontece eu conto pra ela, pode at demorar um tempo sabe, mas ela sempre ta sabendo antes de todo mundo. Outro aspecto importante citado por Evandro a relao com seu meio irmo, de 32 anos, sobre o qual disse esse a meu irmo mesmo ... me dou super bem com ele. Entretanto, Evandro no considerava as atitudes do meio irmo como um modelo a ser seguido. O meio irmo j havia usado drogas, abandonado a escola e, no momento da entrevista, no tinha emprego. O adolescente afirmou que ficava chateado com a av pelo fato de ela compar-lo ao seu meio irmo, achando que ele seguiria o mesmo caminho. Apesar de Evandro no considerar as atitudes do meio irmo corretas, o adolescente relatou situaes pelas quais passou e que foram parecidas com as do seu meio irmo.

    32

    52 52

    12hs

    15

    Legenda

    Sexo feminino

    Sexo masculino

    Adolescente em conflito com a lei

    Moram juntos

    Separao

    Relacionamento prximo

    Relacionamento conflituoso

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    Aps ter ido morar com seu pai, Evandro disse que sua vida mudou bastante, pois gostava de morar com sua me e o local onde morava era prximo da casa de seus amigos. Seu relacionamento com a me tambm mudou, pois j no se viam tanto quanto antes. O sentimento de Evandro em relao a essa mudana pde ser observado quando ele falou a gente se v (Evandro e sua me), passa um tempo juntos, mas no a mesma coisa que tu mora.

    Quanto ao relacionamento com o pai, o jovem mostrou ter uma relao de pouca autoridade e respeito. Quando perguntado sobre o convvio dos dois em casa, Evandro respondeu a gente mora junto, acontece briga quase que diariamente ... a gente discute, a gente mal se fala. Alm da dificuldade de relacionamento entre Evandro e seu pai, o adolescente mostrou ter dificuldades para relacionar-se tambm com sua av e sua meia irm, da qual falou a gente nunca se gostou.

    Contextos Extrafamiliares Um contexto importante para Evandro, identificado atravs da entrevista, foi o

    grupo de amigos de seu bairro. Ao responder a pergunta sobre o relacionamento com seus amigos disse que so amigos mesmo, sabe, aquele que tipo que uma famlia ... que tu pode conta, que tu nunca fica na ruim. Entretanto, o incio do uso de drogas se deu tambm com esse mesmo grupo de amigos.

    Evandro iniciou o uso de cigarro aos treze anos de idade e, no final de 2008, comeou a usar tambm a maconha. Sobre a reao de seus pais, o adolescente mencionou que sua me no disse nada e nem poderia dizer porque ela tambm fumava e, quanto ao seu pai, o adolescente disse que ele se fez de louco, no falou nada. Acrescentou ainda que sua me suspeitou sobre o uso de maconha, mas no conversou e nem tomou nenhuma atitude quanto a sua suspeita. Esse fato ficou evidente ao longo da entrevista e em uma das falas do jovem: Na real ela suspeitava porque tinha amigos meus que ela sabia que fumava (maconha), sabe. E da ela suspeitava, suspeitava, s que eu enrolava ela.

    3.1.2. Infrao Juvenil

    Ato Infracional Em janeiro de 2009, Evandro e seu amigo foram pegos pela polcia com dezessete

    gramas de maconha. O jovem contou que estavam de moto indo para um parque da cidade jogar futebol. Os policiais os viram e pensaram que Evandro estivesse armado, pois estava escondendo uma das mos, na qual estava a maconha. Aps constatarem que os jovens

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    estavam com droga ilcita, os policiais os levaram para a Delegacia da Criana e do Adolescente (DECA). Em seguida o amigo de Evandro foi transferido para o presdio central, pois era maior de dezoito anos. No dia seguinte, esse amigo foi solto e aguarda o julgamento em liberdade.

    Quanto aos sentimentos experimentados pelo adolescente durante esse episdio, Evandro relatou que, ao ver sua me chorando no DECA, foi pior que uma facada ... no tem dor maior. Da eu peguei e s baixei a cabea e virei de lado. Sobre sua percepo a respeito do ato infracional cometido e as consequncias desse ato, Evandro falou: foi bom pra mim mesmo, sabe, porque foi um baque to grande que eu parei, parei com tudo.

    Medida Socioeducativa A partir de uma determinao judicial Evandro iniciou o cumprimento da medida

    socioeducativa de PSC em uma instituio de Porto Alegre. Nesse momento, o jovem relatou ter parado de usar maconha e de sair noite por escolha prpria. O adolescente colocou que essa experincia o ajudou a entrar na linha e, quando perguntado sobre sua percepo a respeito do papel da medida em sua vida, disse: abre novas portas n?! Eu no tinha responsabilidade com nada ... da agora eu to tendo comunitria, to tendo o colgio, to tendo o curso.

    Aps iniciar o cumprimento da medida, Evandro comeou um curso supletivo para se formar no ensino fundamental da escola e inseriu-se em um curso de informtica indicado pela instituio onde cumpria a medida. Alm disso, o fato de Evandro ter a obrigao de acordar cedo e frequentar as aulas, o curso de informtica e o local de cumprimento da medida fez com que ele adquirisse uma nova rotina. Antes do ato infracional, o adolescente faltava bastante s aulas. O jovem saa de casa com mochila, mas raramente ia para a escola, ficando o dia todo com seus amigos conversando ou jogando futebol.

    Dentre as atividades desenvolvidas na instituio, Evandro citou a entrega de documentos, compras feitas em supermercado e limpeza em geral, como passar o pano no cho. Quanto ao clima existente entre o adolescente e outras pessoas do local de cumprimento da medida, o jovem afirmou que se dava bem com todo mundo.

    Projetos de Vida Quanto s expectativas para o futuro e projetos de vida, Evandro mencionou na

    entrevista que pretende conseguir um emprego para ganhar seu prprio dinheiro. O adolescente disse que essa seria a nica forma de sentir-se independente dos pais: pra

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    mim realmente ter a minha independncia s quando eu tiver meu emprego. O jovem falou muitas vezes durante a entrevista em seu desejo de tornar-se independente. Quando perguntado a Evandro como ele se via daqui a cinco anos, respondeu eu quero j ta formado, trabalhando, sozinho, independente, e... tudo que eu quero.

    3.1.3. Dados do FAST Evandro colocou no tabuleiro do Family System Test (FAST), representando sua

    famlia, seus pais, a irm mais nova e seu meio irmo, deixando de fora a av e a meia irm, com as quais morou por, mais ou menos, quatro anos. Segundo o jovem seu relacionamento com a av no era bom e, no momento da entrevista, no falava mais com a meia irm. Evandro fala dessa distncia da meia irm como algo que no lhe aborrece, afirmando eu no fao questo de procurar, nem ela, ento continua assim sabe.

    Os resultados da aplicao do FAST, conforme mostra a Tabela 1, revelaram a existncia de uma coeso mdia e uma hierarquia baixa na situao familiar tpica, resultando em uma estrutura familiar instvel. Quanto hierarquia, o adolescente mencionou que sua me exerce mais influncia sobre ele do que seu pai, o qual foi representado pelo jovem como possuindo o mesmo grau de poder que ele.

    Tabela 1 Resultados da Aplicao do Family System Test (FAST) Caso 1

    Situao Estrutura

    Situao Tpica Coeso Mdia

    Instvel Hierarquia Baixa

    Situao Ideal Coeso Alta

    Desequilibrada Hierarquia Baixa

    Situao Conflituosa

    Coeso Mdia Instvel

    Hierarquia Alta

    Na situao familiar ideal, a me e o adolescente foram representados como tendo o mesmo nvel de poder e o pai apareceu com menos poder do que eles. Evandro disse ter aumentado seu poder por querer ser mais independente. Sendo assim, na percepo de famlia ideal, ocorreu uma inverso hierrquica entre o adolescente e o pai, ou seja, o jovem representou-se como tendo mais poder do que seu pai. Quanto coeso, pde-se perceber um desejo por parte de Evandro por um aumento da proximidade entre os membros de sua famlia.

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    Na situao familiar conflituosa, houve um aumento da hierarquia entre os membros da famlia. A me e o pai de Evandro passaram a ter o mesmo grau de poder e o subsistema fraternal ficou sem nenhum poder. Quanto coeso, Evandro percebeu uma maior proximidade entre ele, o meio irmo e a me, ficando um pouco distantes do pai. Segundo o jovem, a irm mais nova sempre fica no meio do conflito, optando pelo lado que lhe trar mais vantagens. A falta de autoridade por parte do pai de Evandro ficou evidente nos resultados do FAST atravs da baixa hierarquia e da inverso hierrquica que ocorreu na situao familiar ideal. Sobre seu pai, Evandro disse: o meu pai no tem poder porque eu no deixo, eu no quero ento ele no tem poder.

    3.1.4. Discusso do Caso Atravs dos dados coletados na entrevista, no genograma e na aplicao do FAST,

    foi possvel a identificao de diversos fatores de proteo e de risco (Tabela 2) presentes tanto no passado como no presente no caso de Evandro.

    Tabela 2 Fatores de Risco e de Proteo Intra e Extrafamiliares Caso 1

    Nvel da Pessoa Intrafamiliares Extrafamiliares

    Fatores de Proteo

    - Sentimentos morais

    - Relacionamento de confiana com a me - Relacionamento afetivo com o meio irmo

    - Medida socioeducativa - Grupo de amigos - Curso supletivo - Curso de informtica

    Fatores de Risco

    - Relacionamento conflituoso com a av, o pai e a meia irm - Brigas familiares - Modelo negativo do meio irmo - Mudana de residncia - Prticas educativas parentais ineficazes

    - Grupo de amigos - Exposio s drogas

    No nvel da pessoa, observaram-se em Evandro caractersticas relacionadas a sua personalidade que podem ter um papel protetor no seu desenvolvimento. De acordo com Shoemaker (2000), a personalidade do jovem um dos fatores que pode contribuir para a delinquncia juvenil. A personalidade vista como uma combinao de influncias

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    biolgicas e ambientais e a carncia de sentimentos morais apontada como um dos traos de personalidade do jovem infrator. Entretanto, no caso de Evandro, percebeu-se a existncia de tais sentimentos relacionados noo de culpa do adolescente sobre alguns acontecimentos em sua vida. Entre as situaes relatadas, pode-se citar o sentimento de culpa de Evandro aps o incidente em que quebrou o aparelho de som de sua me e na situao em que se sentiu constrangido pela decepo e sofrimento causados me na ocasio em que esteve no DECA. Em ambas as situaes o comportamento apresentado por Evandro no estava de acordo com o que era esperado por sua famlia. No estudo de Paludo (2008), o sentimento de culpa emergiu como resultado das discrepncias entre o comportamento manifesto pelos jovens participantes e o esperado pelos seus familiares. Alm disso, a autora aponta que o fato de causar sofrimento a outras pessoas tambm contribuiu para a emergncia da culpa nos adolescentes entrevistados. Alguns autores (Baumeister, Stillwell, & Heatherton, 1994) afirmam, ainda, que numa relao entre duas ou mais pessoas, o sentimento de culpa expressado por aquele que cometeu alguma falha pode fazer com que a outra pessoa envolvida sinta-se melhor. Nesse sentido, a culpa pode provocar o estreitamento de laos afetivos, beneficiando a relao.

    O fato de Evandro demonstrar sua emoo frente a algumas situaes que vivenciou demonstra como as experincias positivas que o adolescente viveu em um tempo passado podem estar atuando em seu presente no momento em que consegue refletir sobre seus atos. Um dos fatores, encontrado no microssistema familiar, que pode ter auxiliado no desenvolvimento moral de Evandro seu relacionamento positivo com a me. O adolescente confia em sua me e, sempre que precisa de ajuda, ela uma das primeiras pessoas em quem pensa para pedir auxlio.

    Quanto s prticas educativas parentais, o adolescente manifestou que precisava de algum para lhe impor limites no momento em que falou sobre o fato de ter sido pego pela polcia, dizendo foi bom pra dar uma aquietada sabe. Eu tava demais j. Sendo assim, possvel ponderar, atravs dessa fala, que faltou algum na famlia de Evandro para estabelecer os limites que, segundo o jovem, foram impostos pela polcia. Tambm foi observado, atravs do FAST, a baixa hierarquia em relao aos pais, principalmente em relao ao pai, evidenciando que os pais no possuem poder sobre o filho. Alm disso, a reao dos pais de Evandro ao terem conhecimento do uso de cigarro e maconha por parte do adolescente pode ser entendida como outro fator de risco observado no contexto familiar. Os pais no tomaram nenhuma atitude em relao a esse fato, exercendo baixa autoridade e impondo poucos limites. Atravs dos dados do FAST e da entrevista, pde-se observar, ento, o uso de prticas educativas ineficazes por parte dos pais de Evandro.

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    Um relacionamento considerado importante para o jovem com seu meio irmo. Ainda que Evandro diga no poder t-lo como um modelo, percebeu-se, atravs do relato, que o adolescente apresentou muitas atitudes semelhantes s do meio irmo, como usar drogas e abandonar a escola. Nesse sentido, apesar do relacionamento entre os dois ser positivo, a imagem que o meio irmo passa ao jovem pode ser considerada um fator de risco para Evandro, pois pode estar se constituindo num modelo identificatrio para o mesmo. Na adolescncia h uma eleio de novos modelos identificatrios que servem para o adolescente guiar suas expectativas para a vida adulta (Steinberg, 1989), esse fato pode ser percebido como um fator positivo para o desenvolvimento. O adolescente recorre a membros de seu ambiente que fazem parte de seu microssistema e mesossistema para formar uma autoimagem do que gostaria de ser, a partir de processos identificatrios (Dalbem, 2005). No entanto, quando esses modelos so negativos, podem se constituir em fator de risco para o desenvolvimento, como no caso de Evandro.

    3.2. Caso 2: Rafael Rafael um adolescente de dezoito anos que mora com sua irm mais velha. At os

    oito anos de idade, Rafael morava em uma casa com seus pais, alguns de seus primos e seus irmos. Aos oito anos foi morar em um abrigo onde estava seu irmo. O motivo de ter ido para o abrigo, segundo o adolescente, foi pelo fato de ficar sempre na rua e usar drogas. Sua me dependente de lcool e o pai faleceu quando Rafael tinha dez anos. A constituio familiar do adolescente apresentada na Figura 3.

    Aos quinze anos Rafael fugiu do abrigo e voltou a morar na casa de sua me. Quando o adolescente tinha dezessete anos, uma discusso com a me o fez sair de casa e ir morar com sua irm. No final de 2008, quando o jovem j morava com sua irm, foi pego pela polcia portando o revlver de um amigo. Devido a esse fato, Rafael teve que cumprir, durante seis meses, a medida socioeducativa de Liberdade Assistida (LA).

    Figura 3. Genograma do caso 2

    Legenda

    Sexo feminino

    Sexo masculino

    Morte

    Adolescente em conflito com a lei

    Moram juntos

    Relacionamento prximo

    Relacionamento conflituoso

    9 5 3

    48

    20 23 16 18

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    3.2.1. Contextos de Desenvolvimento

    Contexto Intrafamiliar Uma pessoa considerada importante para Rafael em sua famlia sua irm. Quando

    questionado ao adolescente como era morar com ela, ele respondeu: Melhor do que morar com a minha me. Ela ta me incentivando mais a fazer as coisas que minha me. Minha me no me incentivava muito, minha irm fala para no ficar muito tarde na rua, s vezes ela me xinga, ela no deixa eu entrar tarde dentro de casa. Ela me incentiva no estudo (...). Rafael contou que sua irm lhe conseguiu um trabalho e, no momento da entrevista, estava organizando a volta do jovem para a escola, pois ele havia parado de estudar na sexta srie. Quando perguntado a Rafael com quem da famlia ele poderia contar em um momento que precisasse, o jovem respondeu que essa pessoa seria sua irm. O adolescente relatou que sempre quando precisa que algum assine papis para ele, que se responsabilize por ele, quem o faz a irm.

    Quanto ao relacionamento de Rafael com sua me, o jovem relatou que os dois brigavam bastante quando moravam juntos devido ao fato da me ser dependente de bebidas alcolicas. Em uma das brigas, que levou o jovem a sair de casa, ele contou: ela tava bebendo e eu no queria que ela bebesse. Da quando ela bebe, ela briga sempre e eu no gosto quando ela bebe. Da ela no queria parar de beber, da ela comeou a discutir comigo porque eu no queria deixar ela beber. Ela foi me pedir dinheiro, da eu fui perguntar pra que, ela falava que era pra beber, que ia comprar uma cervejinha. Da eu no dava, da ela me pedia, da as vezes ela me xingava. Da eu resolvi sair de casa.

    O relacionamento da me de Rafael com seu pai tambm era conflituoso. O adolescente contou que sua me bebia e brigava com seu pai e, por isso, sempre havia brigas dentro de casa. A relao de Rafael com o pai foi considerada pelo adolescente como muito boa. Sobre seu pai o jovem contou: Eu era bem prximo dele. Ele era que nem a minha irm, era ele que me incentivava a fazer as coisas. A s vezes quando eu no fazia ele me xingava.

    As brigas dentro de casa ocasionaram a sada do jovem para a rua. Sobre esse fato o jovem disse: Eu no gostava de ficar muito dentro de casa. Saa mais pra rua. Ficava o dia todo bem dizer na rua. Voltava pra casa s de noite ... tinha dia que eu nem voltava pra casa (...) Porque eu gostava de ficar na rua, gostava de ficar bagunando, incomodando n. Saa, s vezes usava droga.

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    Contextos Extrafamiliares Um contexto extrafamiliar importante na vida de Rafael foi o abrigo, no qual morou durante sete anos. Quando perguntado ao jovem como foi morar l, ele respondeu: foi melhor que morar... quando eu morava na minha casa, porque l (no abrigo) eu no ficava na rua at mais tarde. L eu no conseguia, no corria dos meus pais, no usava drogas. Alm disso, Rafael relatou que no abrigo estudava, realizava alguns cursos e trabalhava em diferentes funes, como marceneiro, cuidando de animais e na limpeza do local. Segundo o adolescente, ele s podia ver sua famlia quando o abrigo liberasse e eram poucas vezes, mais ou menos uma vez por ms.

    Quando tinha quinze anos de idade Rafael fugiu do abrigo e voltou a morar com sua me. Sobre esse episdio disse hoje me arrependo de ter fugido do abrigo. O adolescente contou que se arrependia porque havia perdido o que tinha, como estudo, cursos e trabalho. Ao sair do abrigo, o jovem voltou a usar drogas e a ficar na rua com os amigos.

    Quanto ao uso de drogas, antes de ir para o abrigo, aos oito anos de idade, o jovem usava cola. Durante o tempo que esteve no abrigo, o adolescente no usou drogas e, aps a fuga, iniciou o uso de maconha, aos quinze anos de idade. Quando o adolescente tinha dezessete anos decidiu parar de usar drogas. Quando questionado sobre o motivo de ter parado, o jovem respondeu: Porque eu tava me prejudicando. Minha sade, tava brigando demais com a minha irm por causa disso a.

    Quanto ao grupo de amigos de Rafael, segundo o jovem, era um grupo com o qual realizava atividades lcitas e prazerosas, como por exemplo, ir ao shopping, jogar futebol e jogar vdeo game. Entretanto, o menino que lhe pediu para guardar sua arma fazia parte de um de seus grupos de amigos, com os quais s vezes jogava futebol.

    Quando questionado ao jovem sobre sua viso do passado, o adolescente disse melhorou muito, do que era no passado. Agora parece que eu sou mais prximo da minha famlia, da minha irm, da minha me. Quando eu tava no abrigo eu no ficava muito prximo deles. Em relao ao que Rafael considerava importante no presente, o jovem afirmou ter um trabalho e ter sua famlia.

    3.2.2. Infrao Juvenil

    Ato Infracional No final de 2008, Rafael foi pego pela polcia portando a arma de um amigo. O

    adolescente disse que conheceu esse amigo no campo de futebol onde sempre joga com seu

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    grupo de amigos da comunidade. Segundo o jovem, esse menino de quem era a arma no um amigo prximo, eles apenas se encontram em algumas ocasies. Um dia no campo de futebol, esse amigo pediu a Rafael que guardasse a arma para ele, pois no tinha onde guardar. Pouco tempo depois de o adolescente pegar a arma do amigo, policiais o abordaram e o levaram ao DECA. Rafael contou que no local onde mora tem trfico de drogas e, por isso, os meninos da comunidade esto sempre sendo abordados pela polcia.

    O adolescente contou que j havia pegado a arma desse amigo em outro momento. No natal e no ano novo de 2007, Rafael disparou essa arma para cima, festejando a data. Ao mesmo tempo em que o adolescente relatou ter medo de armas, disse ter curiosidade em guardar uma e, por isso, decidiu guardar a do amigo quando foi solicitado. Entretanto, afirmou no ter noo do que poderia acontecer se somente guardasse uma arma e, se soubesse que a polcia poderia peg-lo, jamais teria aceitado a proposta do amigo. Quando perguntado a Rafael sua reao ao ser pego pela polcia o jovem respondeu: fiquei com medo ... de ficar preso, de no ver minha famlia por um tempo. S que da tive que ir na audincia e na audincia deu tudo certo, da s peguei LA (Liberdade Assistida).

    Medida Socioeducativa Quanto medida socioeducativa de LA, o adolescente mencionou: Deu pra

    pensar melhor nos erros que eu fiz, porque no tive noo do que ia acontecer. Eu pensava que era tudo fcil, assim. No ia dar nada (...) Se eu soubesse eu no... no ia bota a mo. (...) O que me ajudou mais aqui que eu tenho incentivo nas coisas. A correr mais pelos meus objetivos. Ir atrs das coisas que eu quero. Quero estudo, quero trabalho, ter futuro. No ando muito na rua, que eu tenho medo de ser abordado, agora no... no fao as bagunas que eu fazia antes. O cumprimento da medida socioeducativa, segundo o adolescente, o ajudou a refletir sobre seus erros e sobre seus desejos para o futuro.

    Projetos de Vida Quanto ao projeto de vida de Rafael, seu maior objetivo ter uma famlia. O

    adolescente mencionou um grande desejo em ter uma famlia s sua e filhos para criar. Alm disso, o jovem tambm almeja ter um trabalho e estudo. Sobre seu futuro, Rafael disse: Vai melhorar bastante. Muita coisa vai mudar. Eu acho que eu vou ter um bom futuro.

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    3.2.3. Dados do FAST Rafael colocou no tabuleiro do Family System Test (FAST), representando sua

    famlia, a me, duas irms, uma de dezesseis anos e outra de 23, o irmo, duas primas e um primo. Essa representao familiar refere-se famlia com a qual o jovem conviveu quando tinha oito anos de idade, acrescentando seu pai, que faleceu quando Rafael tinha dez anos de idade. No momento da coleta de dados, Rafael tinha mais trs irms pequenas que no representou no tabuleiro. Sobre elas apenas disse que se dava bem.

    Os resultados da aplicao do FAST, conforme mostra a Tabela 3, revelaram a existncia de uma coeso baixa e uma hierarquia mdia na situao familiar tpica, resultando em uma estrutura familiar instvel. O adolescente colocou-se mais prximo de sua irm mais velha e de sua me, ficando mais distante de seu primo, da prima mais velha e de sua outra irm. O irmo e a prima mais nova ficaram menos distantes do jovem. Quanto hier