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Page 1: ADEODATO, João Maurício [Filosofia Do Direito. Uma Crítica à Verdade Na Ética e Na Ciência (Através de Um Exame Da Ontologia de Nicolai Hartmann)]
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Joio Maurldo Adeodato

FILOSOFIADO

DIREITOUMA C.inCA Ao 'Elto<\[)f,NA tnCA 1& NA C1t."lCIA

Epyno' Iii .._ A eIoqIlftl~ omfenÇa

M Goli""'.-.p ..,j,viv.... W;1u•• dotIIp'w...... olmo do Pr~f 1 " lokI M"urlnoAdoodalO- ! ......_.emuJ_.. iN~ por que ..- • n ..baçio, • jusr.hc........~ C3d. ""........ p"''d"hYl'" ~ ........"""-uIa.r---, ,,-IJ-..el ./0"._",.. C~ I,ol.....A 1.._ dei-.-lo <h.".~_ldo ...n.-.Jo ht<.oll<:a."" ~I.otP''' .......l ..~ • f'~

"""" do O' to.• fika>lia r ..lilb •• ~1Oca_na ,. Ittu ....-pk>. ..........dod<bo~ ~.n".r.Iao<b l:ndoa,. partn'du"'-M l>worttt>e~ .......b >o"'ridltO ___""O__da _"""~....abt>porOtln<d __ ~ I'.l\6IiodIr GaedoJ 1II r_ ,rio"..,« ,. ,.__ abdo por I .A_lODrIo_ltle ~

... ,..ndi<ao ..... I*"" I" ha Jl'Cl"CQ,~~"""""''''' __opoeo I.

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FILOSOFIADO

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oobjetivo será não ser repetitivo. Colocar livros eautores que ainda não estãodisponibilizados. Deixemos a preguiça de lado. Como diria o filosofo,

"escaneio e publico no 4shared; logo existo".Como dizem, alguns autores pesquisam anos, e merecem uma gratificação

por tal zelo para com o conhecimento. Aqui vai minha gratificação:MUITO OBRIGADO! Vou ler seu exemplar como

forma de gratidão por seu incrível trabalho. "Não tenho ouro nem prata,mas tudo que tenho te dou": Muito obrigado!!!. A gratificação pecuniária deixepra depois, visto que os homens para pensar suaexistência devem estar com as necessidades materiais satisfeitas,vocês não precisam do dinheiro. Isso é um elemento acessórioà existência! Ao comprar um livro, o autor recebe da editora umamicharia que não daria nem para sobreviver. Ou seja, baixem,leiam e não paguem nada! Essa será sua forma de gratificação!

João Maurício AdeodatoProfessor Titular da Faculdade de Direito do Recife

FILOSOFIADO

DIREITOUMA CRÍTICA À VERDADE NA ÉTICA

E NA CIÊNCIA

(Através de um Exame da Ontologia deNicolal Hartmann)

1996

n,. Editora~ Saraiva

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ISBN 85-02-01865-5

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Adeodato, João MaurícioFilosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na

ciência (através de um exame da ontologia de Nicolai Hartmann)I João Maurício Adeodato. - São Paulo: Saraiva, 1996.

Bibliografia.

1. Direito - Filosofia 2. Hartmann, Nicolai I. Título.

95-4837

índice para catálogo sistemático:

1. Filosofia do direito 340.12

0814

CDU-340.12

nl• •d/tora~ SaraivaAvenida Marquês de São Vicente, 1697 - CEP 01139·904 - Tel.: PABX (011) 861·3344 - Barra FundaCaixa Postal 2362 - Telex: 1126789 - Fax (011) 861·3308 - Fax Vendas: (011) 861·3268São Paulo· SP

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PARÁ/AMAPÁAv. Almirante Tamandaré, 933-A- C.P.: 777 Cidade VelhaFone: (091) 222·9034Fax: (091) 224-4817 - BelémPARANÁ/SANTA CATARINARua Alferes Poli. 2723 - Paro~n

Fone: (041) 332-4894/332-5871Fax: (041) 332·7017 -CuritibaPERNAMBUCOIPARAiBAIR. G. DO NORTE!ALAGOASlCEARÁlPIAUÍlMARANHÃORua Gervásio Pires, 826 - Boa VistaFone: (081) 421-4246/421-2474Fax: (081) 421·4510- RecifeRIBEIRÃO PRETO/SÃO PAULORua Lafaiete, 94 - CentroFone: (016) 610·5843/636-9677Fax: (016) 610-8284 - Ribeirão PretoRIO DE JANEIRO/ESpiRITO SANTOAv. Marechal Rondon. 2231 - SampaioFone: (021) 201-7149 - Fax: (021) 201-7248Rio de JaneiroRIO GRANDE DO SULAv. Ceará. 1360 - São GeraldoFone: (051) 343·1467/343·7563/343-7469Fax: (051) 343-2986-PortoAlegreSÃo PAULOAv. Marquês de São Vicente, 1697(antiga Av. dos Emissários) - Barra FundaFone: PABX (011) 861·3344- São Paulo

Ao meu Pai,pela Vida e pela Força.

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AMIZADE E AGRADECIMENTOS

A Miguel Reale, pelo incentivo e pelas muitas discussões eensinamentos. A Leonardo Van Acker, em memória, pelos mesmos moti­vos. A Lígia Adeodato, Cristina Machado, Paulo André Leitão, MildredHill, Maria Antônia Van Acker, Érica Lopes e Artur Stamford, pelo apoiotécnico competente e desinteressado. A Ottmar Ballweg e KatharinaSobota, por sua compreensão e críticas. Ao Conselho Nacional de De­senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), àFundação Alexandervon Humboldt, àJohannes Gutenberg Universitãt-Mainz e àUniversida­de Federal de Pernambuco, que possibilitaram este trabalho. A GláucioVeiga, Tércio Sampaio Ferraz Jr., José de Moura Rocha, Fávila Ribeiroe Sylvio de Macedo, pelas sugestões e perspicácia. A Gustavo Tepedinoe Juarez de Oliveira, pelo apoio editorial.

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"Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava a casa, el'lIl1vidnva a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de'I'ltl'tuf():

La maison est à moi, c 'est à vous d'en sortir.

Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo'IUC. apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro;IIRo se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertir­mos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez, outras durantens suas estações calmosas, concluiremos que esta amável peregrina é oterror dos proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à por­tu do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e adona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal,já a Sandice secontentava com um cantinho no sótão.

- Não, senhora - replicou a Razão-, estou cansada de lhe cedersótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamentedo sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.

- Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista deum mistério...

- Que mistério?

- De dois, emendou a Sandice-: o da vida e o da morte; peço-lhesó uns dez minutos.

A Razão pôs-se a rir.

- Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa...sempre a mesma cOisa...

E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depoisentrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu

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algumas zan~as; mas ~esenganou-sedepressa, deitou a língua de foraem ar de surnada, e fOI andando... " '

"As before, the Pequod steeply leaned overtowards the sperm whale'shead, now, by the counterpoise ofboth heads, she regained her even keel;though sorely strained, you may well believe. So, when on one side youhoist in Locke's head, you go over that way; but now, on the other side,hoist in Kant's and you come back again; but in very poor plight. Thus,some minds for ever keep trimming boat. Oh, ye foolish! throw ali thesethunder-heads overboard, and then you will float light and right."

(Como antes, o Pequod inclinou-se abruptamente na direção da ca­beça do cachalote, e agora, pelo contrapeso das duas cabeças, o naviovoltou à posição de equilíbrio; se bem que a duras penas, podem bemacreditar. Do mesmo modo, quando você içar de um lado a cabeça deLocke, vai pender nesta direção; mas então, içando do outro lado a cabe­ça de Kant, você volta ao prumo; em situação lamentável, contudo. As­sim algumas mentes conseguem manter o compasso do navio. Oh, tolos!Atirem todas essas cabeças tormentosas pela amurada e assim flutuarãoleves e aprumados.)

Hennan Melville, Moby Dick, New York, The Modem Library,

1926, p. 327.

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íNDICE

Prefácio XVII

INTRODUÇÃO

I. O problema da teoria do conhecimento enquanto teoria da ver-dade.......................................................................................... 1

2. Porque Nicolai Hartmann 5

3. A atitude filosófica não-dogmática e a importância da dogmática

jurídica 8

4. Como se organiza este livro 16

PRIMEIRA PARTE

Capítulo Primeiro - O AMBIENTE: KANT E O MOVIMEN-

TO NEOKANTIANO 21

1. O ambiente intelectual.............................................................. 21

2. Gnoseologia de Kant 23

3. O imperativo categórico 31

4. Gnoseologia da Escola de Marburg 37

Capítulo Segundo - AINDA O EMBASAMENTO TEÓRICO 43

1. Platão.......................... 43

2. Aristóteles S2

3. Hegel........................................................................................ 58

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4. Husserl .

5. Outras influências .

Capítulo Terceiro - O MÉTODO: A METAFÍSICA DOS PRO-BLEMAS .

1. Problema e sistema .

2. O lugar da fenomenologia no método filosófico .

3. Aporias que se transformam em euporias .

4. Tentativas de teorização : .

Capítulo Quarto - CONHECIMENTO E IRRACIONALIDADE

I. Crítica à metafisica modema e volta à ontologia .

2. O sere o ente .

3. O irracional e a coisa em si ..

4. Aporias da irracionalidade .

Capítulo Quinto - RACIONALIZAÇÃO DO SER E CATEGO-

RIAS ONTOLÓGICAS .

I. A análise categorial do ser ..

2. Categorias da modalidade ..

3. Categorias fundamentais e categorias especiais .

4. Princípíos categoriais .

SEGUNDA PARTE

Capítulo Sexto - ONTOLOGIA JURÍDICA .

I. Uma controvérsia: monismo versus dualismo .

2. A ética material .

3. Ajustiça como valor moral e como valor jurídico .

4. O problema da separação ontológica entre direito e moraL .

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_IIIN~lilllo-AXIOLOGIAJURÍDICA .

I. OIIlaltlllisllIo em nosso tempo .

., () 1111MI" de ser dos valores .

I. C) .,,, teleológico .

4, I'''~~ibilidade de conhecimento dos valores .

I O't GNOSEOLOGIA JURÍDICA .('.111111 o I avo-

I ,C) problema da cientificidade do direito .

~,I,'ellomenologia: o dado jurídico .

" Al"'rética: alguns dilemas no conhecimento do direito .

~, Soluções propostas .

('upltulo Nono - O DIREITO REAL NA ONTOLOGIA DEIIARTMANN .

I ,Ontologia do ser espiritual: linhas gerais .

2. O direito no espírito pessoal ·

J. O direito no espírito objetivo ..

4. O direito no espírito objetivado ..

5. Crítica à ontologia jurídica de Hartrnann .

Capítulo Décimo - O PROBLEMA DA VERDADE E O PRO-

BLEMA DE UMA FILOSOFIA ONTOLÓGICA DO DIREITO

J PI 'tude ou carência do ser humano .. em

2 L· 'tes de uma ontologia jurídica ... 1ml

3. Uma questão de grau: inevitabilidade da ontologia ..

4. A construção do direito enquanto ontologia .

Bibliografia ·· .. ······ .. ············ .. · .

Índice de autores · ·· ..······ ·· .. ···· ··· ··· ···· ..··

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PREFÁCIO•

ENTRE O CLA551CO E O,..CONTEMPORANEO

Miguel Reale

Sempre atento às novas tendências da Filosofia do Direito contem­porânea, mas sem se deixar seduzir pelos modismos que são uma doençacrônica da imaturidade cultural, João Maurício Leitão Adeodato conti­nua fiel a alguns dos valores essenciais do que acertadamente denomina"platonismo axiológico" de Nicolai Hartmann.

A ligação de Hartmann a Platão põe em realce uma das diretrizesmais positivas da orientação hartmanniana, que consiste em explorar afundo as contribuições filosóficas que se estendem de Kant a Husserl.harmonizando-as com a perene herança da filosofia grega.

A rigor, Husseri, ao captar a essência do pensamento comointencionalidade da consciência no sentido das coisas, promovia o grandeencontro dagnoseolO/tia - que dominara a experiência filosófica desdeDescartes até a Primeira Grande Guerra - com a ontologia. o grandelegado que nos vem de Platão e Aristóteles. Nessa volta ideal do pensarao ser, tanto Hartmann quanto Max Scheler sofreram a poderosa influên­cia de um novo paradigma, o axiológico, que Nietzsche soubera injetarviolentamente na problemãtica do homem, suspenso entre o angustiantedinamismo do pensamento e a atração abissal do ser. Mas, enquantoScheler se inclinava preferencialmente para o mundo dos valores, reno­vando a Ética, Hartmann, superados os horizontes éticos, mergulhava na

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indagação do ser até atingir a culminância do ser espiritual, título de suaobra mais aliciante,

Ora, desde o início de seus estudos, tal como me foi dado observarno curso de pós-graduação por mim ministrado na Faculdade de Direitoda Universidade de São Paulo, Adeodato foi atraído pelo ontologismohartmanniano, concebido não em tom nostálgico ou saudoso, mas inseri­do entre os móveis horizontes do pensamento contemporâneo, como odemonstram os trabalhos dedicados ao tema, notadamente a tese detitularidade elaborada em seu pós-doutorado na Alemanha, da qual opresente livro é uma projeção natural.

Um dos méritos desta obra, que me é grato prefaciar, consiste exa­tamente na viva correlação que seu Autor estabelece entre a gnoseologiae a ontologia, no pensamento atual, dedicando a primeira parte do livro àteoria do conhecimento como pressuposto da nova concepção ontológica,brotada da experiência dos valores nos inumeráveis conflitos de nossotempo,

Muito embora, a seu ver, tanto a gnoseologia como a axiologia sesubordinem à ontologia, o retomo concomitante a Kant e a Platão, comodois pontos inamovíveis, ou duas posições germinais de todo o pensa­mento posterior, assinala bem a modernidade do pensamento de Adeodato,Isto leva-o a fixar cuidadosamente as questões essenciais, que se põemnos horizontes das duas apontadas correntes de idéias, com a preocupa­ção por assim dizer pedagógica de esclarecer conceitos e palavras funda­mentais à luz dos estudos fenomenológicos, ponto de partida do que há deefetivamente substancial e decisivo na Filosofia deste fim de milênio car­regado de perplexidades,

É louvável, sem dúvida, o propósito do jovem mestre do Recife de irintroduzindoparipassu o leitor nas concepções daqueles dois pensado­res que, a meu ver, instauram as diretrizes básicas de uma compreensãodualista do ser e do homem, apesar de tanto Platão como Kant seremgeralmente apresentados como representantes máximos, respectivamen­te, do ontologismo e do gnoseologismo, No fundo, a distinção platônicaentre o mundo empírico e o mundo ideal corresponde, em tecla diversa, àdistinção kantiana entre fenômeno e noumenon, de cuja oposição iriabrotar a idéia de valor como o paradigma por excelência dacontemporaneidade,

xvm

1', claro que, nessa visão do mundo, onde ~ein ~ Sollen s~ exige,~ eII """l1plementam, não obstante haja quem os vlsu,ahze como mco~cl~lá­

nl. opostos, não podia deixar de situar-se a medltaçã~ sobre o DIreIto,UIIIII tanta força que, se bem examinarmos a perspecttva de,Adeodato,1'lIosofia do Direito está significando pura e simplesmente FIlosofia, ou11111 dos momentos essenciais do filosofar, como, aliás, para todo o sem­pre Ilegeljá o demonstrou, ,

Desse modo, chega-se ao capítulo oitavo, a pm:ir do qual a expen­'"ciajurídica é mais diretamente focalizada sob o,prIsma hartmanmano,1111111 crescendo racional rigorosamente desenvolVIdo, tornando-se trans­pllrente a posição do filósofo alemão no tocante ~o~ ~roblemasnu~leares

I C 'e-ncia do Direito relativamente a uma objetlVldade essenCIal quetUI, , •

liGo se reduz ao plano formal da Dogmática Jurídica; a urna aporet~ca

l]ue ilumina os dilemas fundamentais da vida d~ ~,ireit~, on,de as apor,lasdo poder são construtivamente interpretadas; a IdeIa d~!ustt~a en~ndlda

cm substancial correlação com a de "espírito do povo , muIto alem doshorizontes do historicismo empirista de Savigny,

Não é O caso, porém, de,antecipar as teses expostas por Adeodato,pois o que desejo assinalar é apenas o conhecimento e a seguran,ça comque se move entre os problemas mais delicados e profundos da Filosofiado Direito,

É claro que nem sempre concordaria com ele, pois é sabido que, ~mmeus estudos não me rendo aos sortilégios do ontológico, nem subordmoa ele o axiolÓgico, que redundaria em ver a axiologia ainda, como ~maparte da Metafisica, e não como uma das partes fundamentaIS e autono­mas do universo filosófico,

Penso que uma ontología jurídica não pode s,uperar os Iindes ~a

correlação Sein-Sollen, isto é,?s I,~itesdo qu~ denom~o,?nto~oseologIa,

da qual emerge a axiologia jUrIdlca co~o I~d~gaçao, a s~ ,marcadasambas, todavia, pelo mesmo sentido de dlalettcldade hlstórIc~ (nã,o ~ dosopostos de Hegel ou de Marx, mas a de comple~en~idade),dlaletiCld~deessa cujo estudo, penso eu, não interessou a Nlcolal Ha~a~n, const~tu­

indo a grave lacuna de seu pensamento, perdido num ~lol?g~s~o.radIcalincompatível com as carências e antinomias da expenenclajundlCa,

Não desejo, porém, encerrar estas breves notas introdutórias sem

XIX

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apontar dois outros significativos méritos da presente obra. O primeiro éque Adeodato, apesar de seu justo apreço pelas teses de Nicolai Hartmann,as reelabora com originalidade e segundo critérios próprios, fazendo agudacrítica de sua ontologiajurídica, por se fundar tanto no pouco esclarecidoconceito do "ser em si", como também por seu excessivo "otimismoaxiológico". Este, no meu entender, resulta exatamente de sua concepçãodos valores como objetos ideais, no mundo do Sein, quando, afirmo eu,se situam no mundo do Sollen. É possível que sejam reduzidas as diver­gências entre o meu e o modo de pensar de Adeodato quanto à carência deconsciência histórica no sistema hartmanniano.

O segundo ponto que merece elogios é a atenção dispensada peloAutor aos que no Brasil se manifestaram sobre os temas por ele aborda­dos, não repetindo a alienação daqueles que filosofam como se vivessemem Paris ou Frankfurt... É importante, em suma, levar em conta que onosso diálogo filosófico, sem prejuízo de sua universalidade, guarda umsentido de continuidade no conjunto de nossas próprias circunstâncias.

Não menor é a atenção dispensada por Adeodato ao pensamentofilosófico-jurídico ibero-americano, no qual o pensamento de NicolaiHartmann deixou marcas profundas, como é o caso dos recordados Eduar­do Garcia Máynez e Carlos Cossio, aos quais devemos acrescentar osnomes de Recaséns Siches e Legaz y Lacambra, e sobretudo o de JuanL1ambias de Azevedo. Este saudoso amigo, filho de brasileira e tão liga­do à nossa cultura, deixou um pequeno e precioso livro, Eidética yaporética dei derecho, de 1940, no qual soube correlacionar com argú­cia a Eidética platônico-husserliana com a Aporética de Aristóteles, com­pondo assim as duas valências do pensamento hartmanniano, analisadocomo um percurso do mundo das essências (do eidos) ao mundo dosproblemas ou da aporia.

Hartmann, como se vê, não é um filósofo na moda e da moda, masum desses pensadores perenes que, remontando às clássicas fontes gre­gas, soube revitalizar seus ensinamentos á luz das conjunturas e conjetu­ras do presente, abrindo novos caminhos para a Ontologia, a Axiologia,a Ética e o Direito.

São Paulo, março de 1995.

xx

INTRODUÇÃO

Sumário: I. O problema da teoria do conhecimento enquantoteoria da verdade. 2. Porque Nicola! Hartmann. 3. A atitude filo­sófica não·dogmática e a importância da dogmática jurídica. 4.Como se organiza este livro.

1. O problema da teoria do conhecimento enquantoteoria da verdade

Este é um livro sobretudo a respeito de teoria do conhecimento.Mas não só disto. Essa parte da filosofia, tecnicamente denominadagnoseologia (ou gnosiologia) - do grego gnose, conhecimento-, tor­nou-se, por diversos motivos que não cabe agora examinar, a principallinha de pensamento no Ocidente. A gnoseologia cuida, em suma, deinvestigar este tipo de relacionamento bem peculiar que o ser humanoestabelece com o mundo e que chama conhecimento.

Muitas vezes é possível encontrar, empregada nesse mesmo sentido,a palavra epistemologia. A figura de linguagem que descreve este tipo deassociação é a metonímia, que ocorre, como no exemplo aqui, quando aespécie é tão importante dentro do gênero que passa a ser identificadacom ele. Enquanto o processo metafórico, mais complexo e analógico,regra-se pela similaridade, o processo lingüístico metonímico tO~la porbase a contigüidade, conceituai e espacialmente mais próxima. E que oconceito de filosofia científica, ou pelo menos o de filosofia do conheci­mento, se tornou tão importante que quase eclipsou as outras formas dese fazer filosofia.

Epistemologia - do grego episteme - designa, na filosofia dePlatão, a esfera mais alta do conhecimento - como veremos no segundo

I,

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c~pí~lo - e c?nstitui a teoria do conhecimento que hoje chamaríamoscle'!tíjico,.um 1I~ e~pecial de c~nhecimento, que se pretende verdadeiro,r~~onal, slstematlZavel, transmIssível etc. Tomar mais precisa esta defi­D1~ao dependerá da concepção de ciência que se adote. Como aepIstemologia está co~tí?ana gnoseologia, vai-se também tratar aqui dospressup?s~OSgnoseologlcos da ciência, cuja autoridade é talvez a maiorcaractenstIca de nossos tempos modernos.

U~a filosofia do direito, contudo, não se pode limitar à teoria doconhecunento, menos ainda às bases da ciência; precisa tratar também deoutr~s.perspectivas.extr~~ame?te complexas, dentre as quais sobressai­se a elIca. Os conflItos elIcos dIferem das questões científicas mas am­bos tê~ constituído o cerne desse conjunto de escrito's que seconvenc,lO?aram.chamar filosóficos. Os problemas éticos, entre outrascaractenslIcas, dIzem respeito a como as pessoas se devem conduzir di­an!e de alternativas de conduta simultâneas mas mutuamente incompatí­vels"q~ando a.escol~ade um caminho implica recusa dos demais. Desne­cessano enfatIzar a Importância desse tipo de reflexão diante do mundoem que pretende viver o homem do século XXI.

. Para, t:ntar ?:monstrar a aplicabilidade desses pressupostoseplste~llOloglcose etlCO,S, ambição de uma filosofia modema, no approachs.ugendo por Marx1

, a area aqui escolhida é ajurídica. Por isso este é umhvro de filosofia do direito e de teoria do conhecimentojurídico. Pre­tende abordar temas c~mo a aceitação e a imposição do direito peloscentros ~e poder detemunados socialmente, o tratamento nonnativo dadoa ~erto 1I~0 es~ecífico de conflito, sob o ponto de vista filosófico, o Con­teu?o a~lOlóglco - valorativo - do direito e seu eventual grau de~acI~nahdade, o papel da violência em sua efetivação, o problema daJuslIça,

. A ~losofia do direito envolve pelo menos três lados: primeiramente,o ~'entíjico, na falta de melhor nome, isto é, a descrição de fenômenos,obJetos, fatos, relações, como se queira chamar a multiplicidade de per-

I: Cf: acélebre décima primeira glosa a Feuerbach, escrita em 1845 epublicadap~la pnmelra vez em 1924: "Os filósofos têm apenas interpretado o mundo dedIversos modos; cabe m?"ificá./o". CC. K. Marx e F. Engels. The german ideologytMoscow, Progress Pubhshers, 1976, p. 617.

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ccpções, incluindo o processo de estabelecer laços conceituais entre os"hjetos observados dentro de uma teoria em certa medida coerente,sistematizável, transmissível, como dito. Em segundo lugar, a filosofiapor vezes cuida do lado ético, pode-se até dizer existencial, com o objeti­vo pragmático de nortear o ser humano para viver o mais adequadamentepossivel, segundo parâmetros que ele próprio elege, em suas interaçõescom seus semelhantes, auxiliando a decidir conflitos, a agir no mundo. E,Iinalmente, de uma perspectiva que podemos denominar metafísica, noplano das "idéias" de que falava Kant, a filosofia ocupa-se daquelas ques­tões que o filósofo sabe não vai poder responder definitivamente masque, inobstante, inquietam um bom número de seres humanos.

Nesses três planos, a teoria do conhecimento, que se construiu comhase na distinção sujeito-objeto, embora criticada modernamente2, aindaé a base da relação entre °homem e seu meio, tanto para a filosofia e aciência quanto para o senso comum. Essa dicotomia será privilegiadaaqui.

Algumas questões importantes já são tradicionais na filosofia, comoa de se há um conhecimento correto e outro falso do meio circundante ouse toda forma de conhecimento é igualmente ilusória; o que é algo real,em que consiste o mundo ideal; se há formas decentes e outras ímprohasde se agir ou se é tudo a mesma coisa; se há uma finalidade e um destinopara a humanidade ou se voltaremos todos para o pó, independentementede nossa conduta... E assim por diante. A filosofia do direito, por seuturno, tem-se ocupado de problemas como a separação entre direito emoral, Estado e Igreja; se há diferença entre legalidade e legitimidade ouse todo direito eficaz é legítimo; se o homem tem direitos contra o Estadoou se direitos só existem quando o Estado os concede; se é possível umapretensão de universalidade, a pretensão de poder detectar leis e relaçõesuniversalmente válidas para decidir de forma justa detenninados confli­los etc.

Este livro trata dessas indagações.

Além de tentar preencher, com vantagens didáticas, os mesmos ob­jetivos de uma introdução à filosofia e à filosofia do direito, este livro

2. CC.• entre outros, N. Lu~mann,Soziale Systeme. Grundrij3 einer allgemeinen7neorie, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1984, p. 5i.

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pretende alcançar dois objetivos habitualmente ausentes dos manua'apresenta rígida unidade temática e defende uma tese específica. Qu .introduzir o leitor às questões jurídico-filosóficas de forma participativmostrando-Ihe que o pensamento não é sempre, talvez infelizmente, dmonstrativo, racionalmente cogente, asséptico, "científico". A unidadtemática é o dualismo entre as teses "esta é a verdade" e "não creio equalquer verdade", com seus matizes, ou, como chamaremos aqui de mod

,mais técnico, as antologias versus as retóricas. Se na vida real podemoviver dezenas de anos decidindo e agindo em cima de matizes nem sempre claros, inclusive para nós mesmos, a filosofia pretende e até precisaser mais radical e responder, por exemplo, à pergunta se é possível umconhecimento certo e verdadeiro do mundo, ou se estamos condenados anos contentar com meras opiniões. Em outras palavras, a filosofia preci­sa examinar mais a fundo aqueles problemas e conflitos sempre postos,mas nunca definitivamente resolvidos, pela sede de saber, amar e poderdo homem.

A tese específica quer apontar as limitações de uma forma ontológicade filosofia - e, por extensão, de qualquer ciência ou teoria _ que do­mina o pensamento dito ocidental desde os primórdios até hoje. É co­mum associarem a tendência retórica a uma perspectiva aética. Maisainda, os cínicos, céticos, nominalistas e assemelhados são muitas vezestambém vinculados a diversas formas de pessimismo. Nada mais inexa­to. Certamente que pode haver filosofias retóricas pessimistas e atéantiéticas, mas muitas filosofias ontológicas também o são. Se a retóricade um Nietzsche é contrária à ética da bondade e do perdão que advogamos cristãos, certamente as teorias racistas, todas ontologizantes e assimopostas a Nietzsche, vão no mesmo caminho.

Do ponto de vista do método, não se pretende aqui reproduzir aforma de abordagem panorâmica de muitos tratados, manuais e estudosintrodutórios à filosofia e à filosofia do direito. Algumas dessas obrasorganizam-se cronologicamente, começando com os Pré-Socráticos, pas­sando por Roma, pela época helenística e até nossos dias; outras, namesma linha, preferem dividir o texto segundo as diversas escolas,analisando empirismo, racionalismo, intuicionismo, positivismo, rea­lismo, normativismo, marxismo etc.; outras, ainda, são estruturadas

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. I1Il1licamente, ou seja, por assuntos tais como no~a,. valor, decisão,.... . - conhec',mento validade vigência, coercltlvldade etc. Desseltnmaçao, " . ."reciro grupo se aproxima esta Filosofia do DIreito. . . .

Por opção metodológica, tendo a pretensão de transml.tt~ ao lel~~r

\11111. perspectiva mais aprofundada, ao invés de expor uma vlsao genen­liA dos diversos autores, escolhemos apenas.um filóso:o como e.xemplo­

. N' olal' Hartmann Isto não vai impedIr de exammar com mdepen-_UIlI: IC. d" dtlt\lIcia aqueles temas principais de que uma filosofia do ~relt~.se e~e

. Ao mesmo tempo em que se procura colocar o leItor lante ollcupar. . . I' d olve se,ró rio filósofo, em lugar das resenhas maIs slmp Istas, esenv -.

I IP 'dade crl'tl'ca afasta-se dele o malfadado temor reverenCIalIIc e a capacl, . d ar!lelos grandes filósofos. Éprovavelmente mais proveItoso enten er p e~Io que Agostinho tem a dizer, lendo-o diretame~te: ,do que entender todoum manual que já interpreta e reinterpreta suas IdeIaS.

Então este livro não adquire unidade apenas pelo tema de que trata, "d t bém porque os problemasc pela tese específica que delen e, mas am d

filosófico-jurídicos são todos observados em discussão com a obra e u~lIutor. E, talvez curiosamente, para expor uma tese exatamente opos aàquela defendida por ele.

2. Porque Nicolai Hartmann

Certamente é preciso refletir sobre a escolha deste guia, Nem .to~os

dores parece produziram uma filosofia adequada ao obJettvoos pensa , , f< ' Ih'd rdeste trabalho quando trata da obra de Hartm~n. Ele OI esco I o podiversos motivos que se revelarão ao longo do livro.

Nicolai Hartmann (1882-1950) tem andado esquecid~: seu pensa­mento não tem sido mais discutido e pouco se escreve ~oJe sobre ele.Mais do que devido aos méritos ou deméritos do filósofo, ISSO revela umacaracterística de nossa época,

Ele é representante expressivo de um tipo de pensamento que flo,:,s­

ceu principalmente na Alemanha e que, embo~a ~0n:' represenm;;~es '~­

ortantes em outras nações, garantiu a predommancIa alemã na 1 os~ la~cidental por mais de dois séculos. Tal maneira de pensar ganhou .m-

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portância a ponto de ser con:undida com a própria ~losofia3, ainda quepareça, u~ tanto enfraquecIda em nossa época. E o mesmo tipo de ,m.etomm!a ~e que falamos acima: a espécie tomada pelo indivíduo, dadaa lmportancla deste. Ainda que as últimas décadas se tenham mostradomais céticas, e.studar Hartmann é um ponto de Partid~ sólido para com­preen?er este tipo de filo~ofia:a filosofia ontológica. E certo que ele falatambem de uma ontologIa tão equivocada quanto a "moda subjetivista"que combate. Só que sua teoria e essa "velha ontologia" têm muito emcomum, como veremos.

No Brasil a obra de Hartmann não é das mais conhecidas'. Mas suainfluência é particularmente significativa na filosofia do direito de auto­re~ de língua portuguesa, espanhola e italiana, sem esquecer, entre nós,MIguel Reale. A teoria dos valores de Hartmann segue as linhas básicasda ~ticade Max Scheler e teve grande repercussão, sendo até hoje um dosmaIOres exemplos da doutrina axiológica objetivista, segundo a qual oschamados valores não são criação humana mas existem no universo in­depen~entementede serem ou não realizados, compreendidos ou sequerpercebidos por quem quer que seja, como veremos detalhadamente a seutempo.

Hartmannjá foi criticado porseu aparente ecletismo: ética de Schelerfenomenologia de Husserl, lógica neokantiana, idealismo platônico no;valo.n:s, filosofia científica em outros trechos. É aí, justamente, que estáa utilIdade de sua obra, espelho da filosofia da primeira metade doséculo XX. Hartmann é historicamente mais ponto de chegada do que

3..É o que expressa C. Veloso na cançilo "Língua", última do disco Velô, Riode JaneIro, 1984, Polygram, CSDP-PF 159, 824 024 I ("está provado que só épossível .fiI~sofar em alemão"). Cf. a mesma verificação, em tom mais desiludido,e~ L..OIIVelra, .Orgulho cultural e auto-estima: diferenças entre o Brasil e a França.ClênclQ e Tr~plCo, n. 2, v. 19, p. 277-86, Recife, 1991. Mais empoladamente argu­menta M. HeIdegger, também concordando que só se pode filosofar em grego anti­go ~u em alemlo; cC. E. Stein, Heidegger - vida e obra, in Heidegger, São Paulo,AbrIl Cultural, 1979, p. VI (CoI. Os Pensadores).

4. Raros exemplos silo as notas de A. Rosenfeld, Nota sobre Nicolai Hart­mano, Revista Brasileira de Filosofia, v. 8, fase. 4, São Paulo, 1958, e NicolaiHartmann e a fenomenologia.. Revista Brasileira de Filosofia, v. !O, fasc. 3, p. 327­35, São Paulo, 1960, e o ensaio de M. Reale, Política e direito na doutrina de NicoJaiHartmann, in Politica de ontem e de hoje, São Paulo, Saraiva, 1978.

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de partida. Entre outras razões, talvez porque definiu bem .seu p;nsam.en­lo c é sempre claro, não fez escola. Um desses outros motivos e o caraterexlratemporal de sua doutrina, pouco influenciada pelos acontecimentoslIlundanos. Escreveu aÉlica alistado no Fronl alemão durante a PrImeira(;uerra Mundial e atravessou todo o período nazista sem mencionar essefilto em seus escritos'. Hartmann propõe-se questões que preocupam oshomens de diversas épocas, de diferentes ambientes. Talvez daí a críticaII a-historicidade de sua filosofia".

Hartmann não tem o ar radicalmente novo de alguns filósofosexistencialistas ou teóricos da linguagem seus contemporâneos, por exem­plo; seu estilo é detalhado e descritivo, pode-se até di.zer escol~ti~o, e aprincipal preocupação é, a seu modo, a clareza. MaiS cosmogoOlca doque humanista, sua obra contraria a tendê~cia modem,? mlclada comDescartes e é clássica e tradicional no sentIdo em que nao coloca o ho­mem no c~ntro da temática filosófica. Mas ler Hartmann é ter uma histó­ria da filosofia ocidental sem os males habituais dos manuais; daí suavantagem, sob uma perspectiva didática.

A teoria dos valores de Hartmann, sua axiologia objetivista, é cer­tamente uma das partes da sua obra que despertou esp~cial atençãoentre os juristas7; a ontologia e a metafísica do conheclment~~a~­

bém não foram esquecidas', assim como o pensamento problematlco .

5. Note-se o comentário de Hartmann àterceira edição de sua Ethi~, reim~ressa

sem modificações devido às ..... agitações da última década", no prefáCIO escrIto em1949.

6. R. Czeraa, Direito e Estado no idealismo germânico. Posições de Schellinge Hegel, Silo Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de Silo Paulo, tese, 1981,p. 147-8, sobretudo a nota 306.

7. Cf., por exemplo, E. G. Máynez, Ética, México, Porrúa, 1953, e Filosofiadei derecho, México, Porroa, 1974; C. Cossio, La teoria egologica dei derecho y elconceptojuridico de libertad, Buenos Aires, Abeledo-Perrot: 1964; G. Kahnowsky,Le probleme de la l'érilé en mora~e el e~ droil, Lyon, Vltte,. 1979; H. HenkeI,f:infiihrung in die Rechtsphilosophle, Berhn, 1964, todos passlm.

8. M. Reale, Filosofia do direito, Silo Paulo, Saraiva, 1982; B. M. Pineda,Filosofia dei derecho, Medellin, Universidad, 1963; T. Ferraz Jr., Concell~ de SIS­

tema no direito - uma investigação histórica a partir da obra )usfi/osófica def:mil Lask, Silo Paulo, EDUSPlRevista dos Tribunais, 1976.

9. Principalmente através da grande repercussilo da Tópica de T. Viehweg.

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, '

o mesmo não se pode dizer da filosofia do direito contida na obra deHartmann.

Se se consideram jusfilósofos somente aqueles pensadores cujo temaexclusivo ou principal é o direito, como é o caso de Jhering, Tobias ouGény, certamente Hartmann não se insere nesta categoria; seus escritostêm pretensões mais gerais, sem preocupação especial com a realidadejurídica. Isto não significa que não haja cuidado do assunto: uma COm- 'preensão do direito está presente quando Hartmann discorre sobre a éticaou o espirito, mesmo que nem sempre de maneira explícita, aparecendopor vezes interligada a concepções sobre moral, linguagem, religião eoutras manifestações do que o autor denomina espiritualidade.

Finalmente, pode parecer estranha ao leitor a escolha de um filósofoque, apesar de tantos aspectos técnica e didaticamente favoráveis, seguelinha diametralmente oposta àquela defendida neste livro. Exatamenteesse caráter antitético, porém, esclarece ao leitor as diversas dicotomiasque atravessam a teoria do conhecimento, a ciência, a ética do Ocidente.

3. A atitude filosófica não-dogmática e a importânciada dogmática jurídica

Fala-se muito em crise no direito em vigor na periferia do capitalis­mo ocidental, no dito mundo subdesenvolvido, crise nitidamenteexemplificada pela situação brasileira. Entre as dificuldades para descre­ver essa crise, em nossa opinião, está a pretensão de estender a todos osEstados o modelo jurídico de Estado Moderno eurocentrado. Para issoparte-se de uma espécie de epistemologia ontológica, isto é, a crença deque é possível uma teoria universal, de que há uma essência do direito,da política, das relações sociais e esta é o que nos apresenta o paradigmaeuropeu.

Em nosso país, por exemplo, axiomas fundamentais dos sistemasjurídicos nas sociedades desenvolvidas não têm aplicabilidade generali­zada, tais como a hierarquia normativa que culmina no princípio da su-

Cf. Topik und Jurisprudenz - ein Beitrag zur rechtswissenschaftlichenGrundlageriforschung, MUnchen, Reck, 1974.

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lulA 1'Il11slítucional, o primado da lei, a isonomia ou a neutrali.d~de

lIHl_RII ludicial. Em lugar da cultura do distanciamento burocratlco,IIlrIJluucinçllo de papéis, temos a cultura da troca de favores e da bo.aIlIilAnçn, nll invés da ncutralidade eficiente do Estado, o culto da faml­• u wlporativismo. Nada obstante, quase tod~s pa~ece~ a~har que

t'1III.10s clindos para compreender e atuar sobre ~'tuaçoes mterramente'~.. ""' dnnossa podem ser trasladados sem mais nem ~eno~. I.sto na~.. Innis diferentes: economia, urbanismo, engenharia: drrelto. Ha

III... periféricos que simplesmente adaptaram, par~ suas hnguas, co~s­tltlllçnus, códigos e leis do ocidente europeu, como e o caso da TurqUIa.

Se trouxermos esta perspectiva episte~ológicade, acentuar o. p~o­~1'lIIl1no invés do sistema, rejeitando na m.edlda do.posslvel proposlçoes"",rclcndem validade universal, para gUIar especIficamente a observa~

,lu dos conflitos jurídicos no BrasIl, vamos perceber o descom~asso en1ft n",dclos legais e jurisprudenciais dogmático~supos~mente Impostos",ln Estndo e procedimentos de solução de conflitos efetlvamente estabe­!IIlldos.

Uma das fontes dessa crise lO é o fenômeno que atinge as ditas ciên­,I•• humanas no Brasil de hoje. O problema.não se parece.dever apenas• uln desinteresse generalizado pela cultura dIante de questo:s consldera­d•• prioritárias, a uma política desastrada por parte dos órgaos govem~­nlontais, ao baixo nível do ensino ou ao incremento.de.uma a~lenaçao

t1picn dos métodos e procedimentos meramente quantttat,v.os h~Je esten­didos a toda ciência. A crise é certamente mais ampla e delta raizes paraII~m das fronteiras deste nosso pais.

De qualquer forma, um dos.campos ~ue mais. sente os efeitos ~ess~

IíIltu de critérios, seja na universidade, seja na socled~deno largo, e cerlllmcnte o direito, perdido entre os sonhos das dIversas for~as"de

jusnaturalismo, de uma "justiça de acordo e~m a n~tur.e~ das cOIsas , e• mera tecnoburocracia advocaticia, no sentIdo maIs limitado do que secUllvencionou chamar positivismo.

10. Sobre a ciência do direito, a crítica mais famosa. é talvez a de J. H. vonKlrchmann Die Wertlosigkeit der Jurisprudenz ais Wlssenschaft - Vortrag.halten i~ der juristischen Gesellschaft zu ~erlin (1848), Darmst,?d~,

~issenschaftlicheBuchgesellschaft, 1966. Sobre os diversos sentidos do termo cn·" d I'dade cf A C Wolkmer P1uralismojurldico. Fundamentos de umale namo em ...., .

nova cultura no direito, São Paulo, Alfa-Omega, 1994, passlm.

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I.No Brasil, se.o estudo da filosofia e da teoria geral do dire't fi

pouco a pouco extirpado de nossos currículos de radu _ I otambém, mais recentemente " . g açao, notam-s

, eXlgencms sempre renovadas I d

::S:~~:i::~~~:~:a:d~;;;~t~:so~ate~ seu senti?o Primor;~.~~cu.estigma de mero pensartecnoI' . o ~e 0

1e conhecimento e afastar,lhe

formou ecuias origens se POdoglco-a go em que ele também se trans', em rastrear.

Note-se que é quase um lugar- . . .referência à necessidade de I'nt d' c~mlum entre osJunstas brasileiros a

er ISClp mandade" E t r .:;~~e~;e~;o~~:~~: ~:i:::~e sobre.a filosofi~ do ;i:ei:~r~o~~:~~~-te do Estado sobre o indi~íduoc~:das I~JS no BrasIl, d~ opressão crescen,papel já tradicional mas nem ~ açao das Ideologias, sem esquecer oquestionamento da; bases da ~?r I.SSO dmenos adequado, da filosofia no

ClenCla e apraxis 12 Muito d fi ..no discurso das ciências sociais contem " as con usõesdeve-se à pouca familiaridad fil poraneas, sobretudo no Brasil,

_ e com a I osofia do conhecimento.Entao, uma vez que a c 'd d ,.. . omum a e academlca nacional não está

~~a:::eq:::;;~:deOs de m~ificar o atual estado de coisas, um~~~, expenmentados em sua tr·t· d

:f::;a~~a~:sà~:~~::i~i:~tsl~~as .do c~rrí~~lo jUrí~i~OI t~a~~~o~~::~~:"prático" tais com . ,:n~ca~ ~me mtas do advogado ou juristato, a teori~ geral d:::t~~~lo~laJ~ndlca,a hist.ór~a e a filosofia do direi­bém têm-se procurado inc ,a

t. eona ger~1 do direito, entre outras. Tam-

. en Ivar pesqUisas mais aprofund d babcerces teóricos das próprias dis . r d a as so re osexclusivamente no campo do d' CI.~ m~sbl?gmátkas, sobretudo mas não

Irei o pu ICO, abrmdo espaço para uma

II. Cf. os dois volumes publicado IOAB ensinoJuridico _ diagnó r s pe o Conselho Federal da OAB em Brasllia:no jurídico _ parâmetros a:aleD. per~pec'lvas e .propostas, 1992, e DAB ensi.

também, C. Souto, Os saber~SjUrl~~:'Ç: ;e qua".dade e avaliação, 1993. Cf.,ciência, in Ciência e ética no dire', U n l ament~ls: para além de Sua auto-sufi­gre, Fabris, 1992, p. 9.18. 10. ma a terna/Ivo de modernidade, Porto Ale-

12. No caso específico de Hartmann cf Ebotânica, Barcelona, Madrid, 1974 ]. Olp' . . Strasb~r~er et aI.. Tratado de- plantas, animales y hombres ,p.. rente a la materla merte. los seres vivosdei filósofo Nicolai Hartmann". - representan un novum categoriale en el sentido

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melhor adaptação da estrutura nOflUativa do Estado brasileiro aos novosIcmpos. Cresce assim o número de publicações dedicadas a perspectivasexlradogmáticas sobre o direito, sucedem-se debates sobre a necessidade.Ie reforma do ensino jurídico, fazem-se (até!) pesquisas empíricas, pro­curam-se fOflUas alternativas de solução dos conflitos.

Há algumas caracterís~icas básicas que nos peflUitem separar a pers­pectiva dogmática sobre o direito13 de perspectivas não-dogmáticas. Taisperspectivas críticas não são grande novidade, embora cada discussãolraga algo de novo ao velho problema. Essas novas óticas têm estado lá,marginais mas sempre presentes, contestando ou simplesmente questio­uando as óticas "oficiais" dominantes. O postulado principal, comum aIodas as perspectivas não-dogmáticas é o seguinte: existe um direito quenão cabe nem na teoria ensinada até hoje nas faculdades de direito brasi­leiras, ressalvadas as honrosas exceçães, nem na prática jurídica oficial<lo Estado. Não se nega o direito estatal dogmático mas defende-se, oumelhor, verifica-se a existência de outras instâncias de decisão de confli­los que independem em larga margem do Estado. E isso ocorre no Brasil<Ie hoje.

Ou seja: para entender essas perspectivas extradogmáticas, tais comoIIS colocamos aqui, é preciso começar de uma definição negativa, daverificação de que há formas de direito, paralelas ao Estado, que se ofe­recem como alternativa diante do direito dogmático - que é o direitoestatal contemporâneo por excelência, aquele representado pela lei, pelajurisprudência, pelos contratos lícitos etc. -, aproveitando-se de suaimpotência e incompetência no trato dos conflitos.

A dogmática jurídica é a fOflUa preponderante no direito do Estadomoderno. Claro que tal tipo de organização e distribuição do direito nem.empre existiu, é um fenômeno histórico sem precedentes. Muito emboraosse processo de dogmatização do direito não se complete na maioria das

13. Cf. T. Viehweg, Topik und Jurisprudenz, cil., passim. N. Luhmann,Hechtssystem und Rechtsdogmatik, Berlin-Kõln-Mainz, Kohlbammer, 1974. T.Ferraz lr., Introdução ao estudo do direito - técnica, decisão, dominação, SãoPaulo, Atlas, 1988; e J. M. Adeodato, Uma nova ótica da praxis jurídica brasileira,Anais da XIV Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Vitória,<'onselho Federal daOAB, seI. t992, p. 404-19.

II

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.:......._ .. _.__ ..._.

soc~dades contemporâneas, procurar desenvolvê-lo parece ser a tendAcla os Estados em nossos tempos. O direito do ,. . en­efetivar uma sociedade co I gmatIco eXIge, para se

, mpexacomumap t b á'outras características específicas Dois" ara o urocr tlCO estável eos quais só vamos mencionar.' sao 08 seus reqUJsltos prIncipais,

Em primeiro lugar a b' t ."b ' o nga oneuade de argumentar tomandoaste uma norma alegadamente preexistente e elemento component/d

or

SIS ema ou ordenamento' Ad' ". . . oda" 14 ~ d I Jun ICO, a megabllIdade dos pontos de parti-

uma ~o~a~:~~~c: ~u~argu.:enta dogmaticamente precisa referir-se a_ . voga o de favelados que invadiram terras alh .

;:~ pode aleg: que o ~roprietário nâo tem direito àquelas terras pO~I~sUlr gran es latIfundios, pois não há norma ne .

~r~enament~ jurídico brasileiro. Ele precisa apelar a n~;::se:t~do ~oJundlcas pOSitIvas como a função social .Iguraspor eXe I U ou o mau uso da propnedadedo ré ~ ~. m promotor, ainda que convencido da não-periculosidad~ação pUti~~o. eEv~ slmplesmcnte arquivar o inquérito policial do crime de

Ica. assim outros exemplos.

Em segundo lugar, a obrigat . daá á J ••

fato de o E t. d d orU! e e uecidlr. Paralelamente aodogmático ~ a o mo erno pretender o monopólio do direito, o direito

ompromete-se a decidir todo e qual . .apresentado ao Estado" U " _ . . quer conflIto que seja'a na . A mJUlz nao podc eXlmlf-se de prolatar senten-

ç esfera de sua competcncla alegando falt- d Isua convicção. Diz a Bíblia que Salomão fo,' aSa'b

ee ementos para formar

. . 10 ao ameaçar cortarmelO a cnança cuja maternidade duas mulheres reclamavam '6 Ima in:

o

i:i~~~~~c:~~:::~~~~:ro~e~~:a~ ~~~~~~i~~ ~~~~~t~:an:~:i~~;i~7:I erença entre eles e que o direito, ao tempo de Salomã _ .'

submetIdo às regras dogmáticas. o, nao estava

14. É a expressão que prefere T Ferr J ~.dica, São Paulo, Revista dos Tribunais 19:~ r., F

95unçao SOCIal da dogmática jur(-

, , p, e s.,. 1.5. Uma percepção confusa desse problema tem Jevad .'. . ..a Identificação entre direito e E t d ovananledoposltlvlsmoaplicabilidade do conceito de dir:i:O.o, o que reduz, a nosso ver indevidamente, a

16. Cf. Primeiro Livro dos Reis 3-4 do A [. T, , n Igo ~estamento.

12

Grosseiramente, pode-se caracterizar o direito dogmático como umdireito legalmente organizado que toma por base a pretensão, por partedo Estado, de monopólio na produção e legitimação das normas jurídi­cas, dentro de determinada circunscrição terrritoriap7.

Que esse monopólio do direito pelo Estado é assimétrico e mais(dogmaticamente) ficticio do que efetivo não é uma tese nova, tendo sidodcfendida por diversas escolas sociológico-jurídicas, entre as quais po­dem-se mencionar as Escolas do Direito Livre e da Livre Pesquisa Cien­tífica. Nossa tese é que o Brasil é apenas parcialmente um Estado moder­110 e o direito brasileiro é apenas parcialmente um direito dogmático",Dai o surgimento de práticas a que as doutrinas tradicionais não conse­guem se adequar e a necessidade das novas ótícas para compreensão darealidade jurídica brasileira.

17. Para uma colocação mais completa do conceito de dogmáticajurídica, cf.o. Ballweg, Entwurfeiner analytischen Rhetorik, in H. Schanze e J. Kopperschmidt(orgs,), Rhelorik und Philosophie, München, W, Fink, 1989, p. 229 e S.; T. FerrazJr., Função social da dogmáticajuridica, eit.. passim, e introdução ao estudo do(Jireito, cit.. p. 40 e s.; 1. M. Ad'eodato, Dos limites de uma ontologia jurídica, in C.Lafer e T. Ferraz Jr. (orgs.), Direito, politica, filosofia, poesia - estudos em home­nagem ao professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário, São Paulo, Sa­raiva, 1992, p. 495-505, onde são mais extensamente definidos os constrangimen­tos pragmáticos a que se submete o direito dogmático.

18. Esta tese foi colocada em nosso trabalho A legitimação pelo procedimen­to juridicamente organizado - notas à teoria de Niklas Luhmann. Revista da Fa­cilIdade de Direito de Caroaril, v. 16, p, 85-6, Caruaru, FDC, 1985, sugerindo queo direito subdesenvolvido não se adaptaria àquele tipo de teoria. Mais recentemen­te, cf. nossos Brasilien. Vorstudien zu einer emanzipatorischen LegitimationstheorielUr unterentwickelte Lãnder. Rechlslheorie, v. 22, Caderno I, p. 108-28, Berlin,Duncker und Humblot, 1991, ou Uma teoria (emancipalória) da legitimação parapaises subdesenvolvidos, Anuário do Mestrado em Direito, n. 5, p. 207-42, Recife,Editora Universitária (UFPE), 1992, No mesmo sentido, aprofundando a crítica àobra de Luhmann e a idéia de que a ineficácia das nonnas jurídicas estatais nãodeve ser reduzida a mera disfunção, mas desempenha papel importante no di·reito dos países subdesenvolvidos, cf. M. Neves, Verfassung und Posiliviltit desRechts in der peripheren Moderne - eine theoretische Betrachtung und eineInterpretation des Falls Brasilien, Berlin, Duncker und Humblot, 1992, e Aconstitucionalização simbólica, São Paulo, Acadêmica, 1994.

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19. A religião mantérn.essa função ética. Refe~imo-n~s. a sua saída ~e cena,no Ocidente moderno, enquanto poder juridico-poHtlCO deCISIVO, p~d~r, ahâs: ~ue.~ mostra intacto em muitas sociedades contemporâneas, em que dl~elto ~ reh~lão

pcnnanecem relativamente indiferenciados. Exemplo é o fundamentalismo IslâmiCO.

1"1111 lia Ici não pratica adequadamente a tecnologia dogm~tica, redu~?do-:..' IImcro repetidor de fórmulas burocratizadas. O distanclamc:nto cnlI.co c:lI"im mais apto tecnicamente a produzir os re~ultado.s ?eseJados e e a~e

mclhor eticamente, pois responde-se aos anseios SOCiaIS de fonn~ ~als

Il\pillu diante da evolução do direito. Veja-se o famoso caso dos direitoslIlI concubina. Quando foram reconhecidos pela primeira vez pelo E~tado

IlIasilciro, o advogado alegou e o juiz acolheu a tese d,: q~e o concu~mato

.cria uma sociedade de fato, percebendo que, pelo direIto comerCIal, ~sprohabilidades de argumentação seri~m bem mais amplas do que no dl­"'ilo de família, tradicionalmente mais conservador. I~to ~e.deveu a um.a1'/,\'011 crítica da dogmática por parte dos operadores Jundlc~s envolVI­dos. Ajudar a construir tal visão é uma das pretensões deste livro.

Uma dessas disciplinas não-dogmáticas, que fornecem o instrumen­lal para semelhante visão, é a filosofia do direito..Dentro desta: ocupapllpcl primordial a teoria do conheciment~, c~mo dito.? ~onheclmento,

.obrctudo o cicntífico, que se pretende mais digno de credlt~ do qu: n~s­

."S outras formas de contato com o mundo, assu~e enorme l~portãn.:la,

.il!l1ificando ao mesmo tempo saber,. poder, legilImaç~o, eficacIa. A ~I.en­

cia substituiu a religião como esteio da verdade, ate da verdade elIca,critério para distinguir o certo do errado. A ~Iosofi~ p~ssou, se não a serela mesma "cientifica", pelo menos a ser eplstemologlca, preocupando­.e fundamentalmente com as bases do conhecimento, com as .b~ses daciência. Mas a atitude científica, baseada na demonstração emP.lfl:a ~ na"oação racional, tem problemas para lidar com os conteúdos aXlOloglcosqnc a religião, a revelação, a teologia manipulavam tão bem19••

Na filosofia do direito houve, claro, reflexos dessa alI~d~ decicntificização. Veja-se aqui o que se pode chamar de uma prellmmarepistemológica.

No sentido grego de uma visão do mundo, uma teoria pod.e descre­ver ouprescrever perspectivas do ob~ervador diant,: de detennmado ob­jeto. Os dois tipos de abordagem teÓrIca resultam diferentes.

Entender "dogmática" e "critica" como correntes ideológicas, e mainda adversárias, é tolice. No Brasil, Oproblema mistura-se com politca, como se fosse possível a equiparação de "dogmáticos" a "conservdores" e de "não-dogmáticos" a "alternativos". Todos sabemos que,rigor, não temos uma dogmática jurídica como sistema autônomautodeterminado, autopoét'ico, auto o que quer que seja. Em nosso sistma jurídico, específico e altamente complexo, o direito é não apenas ifluenciado pelos demais subsistemas sociais (econômico, afetivo, de borelações etc.) como até depende deles para funcionar.

O jurista deve ser capaz de compreender nitidamente as duas perspectivas. A dogmática preenche uma função vital que é a solução _ o"neutralização" - dos conflitos, a organização e distribuição da violência legítima, da violência justa. É o direito que transforma um meagrupamento humano, com sua inevitável e desorganizada violência, euma sociedade cuja organização monopoliza, disciplina, tomquantitativamente mensurável a violência. Além dessa aplicação diretaempírica, traduzida na ação dos chamados operadoresjurídicos, que spoderia denominar dogmática concreta, há o nível metalingüístico ddogmática científica: esta ciência dogmática do direito visa a fornecesubsídios para a atividade argumentativa e decisória que caracterizadogmática concreta - ela compara, diferencia, define, interpreta, esuma, faz ciência. Mesmo a dogmática científica, enquanto teoria, obje­tiva auxiliar no desempenho dessa função essencial que é o controle dosconflitos. Nesse sentido, também ela está constrangida a argumentar combase em normas positivas e a fornecer critérios decisórios.

Mas a filosofia epistemológica do direito, que se pretende aqui, temoutra perspectiva, não-dogmática, ou seja, sem compromisso imedíatocom o trato dos conflitos jurídicos. Embora não ofereça propriamenterespostas, esse enfoque da filosofia do direito também tem uma tarefaprática, na medida em que fornece os subsídios para se criarem respostasaos estímulos da vida, isto é, decidir alternativas de conflito, tomar posi­ções éticas, técnicas, políticas, tomar posição científica. De todo jeito,apartar "teoria" de "prática" é tolice.

O pensar dogmático competente exige condições de distanciamentopara que se possa sair dele e melhor dominá-lo. O operadorjuridico Guiz,procurador, advogado, promotor, árbitro etc.) rigidamente atrelado à

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· No grupo das t.eo~i~s prescritivas estão aquelas que sugerem detmmadas n~rmas, prmClplOS, procedimentos, em suma, regras que devese~ obed~c~das de m~o a propiciar decisões mais adequadas, mais racinalS, maIsJustas,. maIS corretas, mais naturais, em uma palavra, decisde al~~ma maneIra melhores, isto é, mais desejáveis do ponto de vido teor~co. Essas t,eorias sempre revelam alguma forma do que podem~enoml?~conteudo moral, na falta de melhor expressão, vez que revalO a VIsao do mundo que os teóricos que as prescrevem já têm. Is

p.arece ocorrer mesmo quando as prescrições se apresentam como exclslvamenteformais ou analíticas.

Se o que é prescrito como desejável pode ou não realizar-se é ouquestão e, de qualquer sorte, sua resposta dependerá do contexto ou dprocedunento a ser segu~do. Por outro lado, tais teorias deixam claro quos procedlm~ntossugendos não são efetivamente observáveis, não sã~a~e da reahdade perceptível empiricamente, vez que os prescrevem amv~s de descre.vê-los, o que releva seu caráter, ao menos temporariamente, ideal. Isso e .expressamente admitido, por exemplo, quando o autde.fende a le~~hz~ão dos procedimentos sugeridos por sua teoria, oseja, sua posltlvaçao na ordem jurídica estatal vigente2o•

A perspectiva dessas reflexões, porém, é descritiva. Isso não significa afirmar que uma argumentação será necessariamente inapropriads~ se basear.em uma teona prescritiva. O postulado aqui é que as instân'~Jas persuasl,:,as m~~cionadas acima, plenas de conteúdo axiológico, sãmadequadas as ~etoncas ~ aos procedimentosjurídicos quando o objetivdo observador e descreve-los tais como ocorrem.

4. Como se organiza este livro

A primeira.parte procura introduzir o leitor à filosofia, a segundparte trata especIficamente da filosofia do direito.

h'/ 20j/ Zcaso de R. Alexy, Probleme der Diskurstheorie, Zeitsehrift.tUrP ',:,op ,se e F?rsehung, v. 43, p. 81-93, 1989. (Trad. bras. Problemas da leoriado d.lsc~rso, Anuarlo do Mestrado em Direito, n. 5, p. 87-105 Recife Ed'l U'vemlána (UFPE), J992. ' ,I ora 01-

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() primeiro capitulo cuida do ambiente intelectual na virada do sé­11110, 'Illllndo se formava o pensamento contemporâneo na Alemanha e no1111111<1" dito ocidental. Como precursor aparece Kant, cuja filosofia é re­.llmidll cm seus traços fundamentais. O neokantismo, escola em cuja"11I""fcra estudou Nicolai Hartrnann, vem em seguida. No segundo capi­1111" sa" observadas algumas semelhanças e diferenças entre Hartmann e.I~llns pensadores que o influenciaram - seja na assimilação que faz de.III1S Icorias, como no caso da filosofia do espirita de Hegel, seja na pre­ocnpação em contestá-Ias.

A seguir trata-se da dicotomia problema versus sistema, particular­mente fecunda para a filosofia do direito, e da metodologia da metafísica'/tI,r problemas, dividida entre a descrição dos fenõmenos observados, a,liNcussão dialética das aporias levantadas e a construção da teoria. OclIpltulo quarto trata do problema da irracionalidade e das limitações da""./lo diante do "mundo da vida". A doutrina das categorias, sucessora,Ie lima respeitável tradição que remonta pelo menos a Aristóteles, com­1,Ieta a parte geral.

Apesar de Hartmann não se referir diretamente ao direito quandotruta desses assuntos, já aqui colocam-se os problemas centrais de umalilosofia jurídica ontológica, tais como a situação do direito dentro danlltureza - isto é, dentro das regiões em que Hartmann agrupa os entes.egundo suas caracteristicas ônticas - ou a possibilidade de conheci­mento desta realidade jurídica.

Na segunda parte são importantes as concepções de valor e de ética,ellvolvendo principalmente o problema da justiça; tendo em vista a pers­pectiva gnoseológica deste livro, cuida-se também da maneira pela qual.e processa a percepção desses valores peJo ser humano e como se fir­mum padrões éticos, jurídicos, no grupo social. A objetivização radicaldos valores que Hartrnann descreve, na esteira de Max Scheler, será abor­dllda em seguida. Depois, a mesma metodologia utilizada na metafisicado conhecimento será testada em relação ao fenômeno que Hartmanndcnomina direito. Como parte de um fenômeno mais amplo, o espiritual,o direito será examinado enquanto espirito pessoal, espírito objetivo eespírito objetivado. Ao longo da discussão deste material, serão enfrenta­das questões centrais da filosofia do direito, tais "como a viabilidade de"cparação entre o direito e outras ordens normativas, como a moral, a

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função da norma jurídica, o poder legitimo e ilegítimo, o princípiolegalidade, o papel do Estado, entre outros.

Uma vez que, além da observação dos dados empíricos e da co _templação e reflexão que caracterizam a filosofia, a metodologia aqempregada reduz-se à pesquisa bibliográfica e como a linguagem - pcsuasiva - é sua única forma de expressão, são importantes e mesmnecessários alguns esclarecimentos sobre os critérios formais de apresetação do texto e das fontes deste livro. Ao lado da clareza, porém,cuidado com a forma facilita a faina do leitor interessado em conferir O

refazer os passos do autor e dá maior credibilidade ao discurso, ajudanda situá-lo no conjunto do pensamento jusfilosófico ocidental e assim prpiciando uma melhor comunicação entre quem fala e quem quer ouvir.

a formato em negrito é usado aqui para enfatizar, para chamatenção especial sobre determinadas expressões. a formato em itálicoreservado para palavras estrangeiras, títulos de obras referidas no textoreferências a termos específicos, enfim: para destacar sem enfatizar. Aaspas ficam para citar ipsis lileris palavras de outrem ou para expressõecom sentido ambíguo ou simplesmente heterodoxo, diferente do habitual

Nas notas de rodapé, optou-se por recomeçar a numeração a cadcapítulo, evitando a casa das centenas. Em que pese algum gasto de espa­ço físico, as obras são citadas por completo nos rodapés, a fim de queleitor não precise ir constantemente à listagem bibliográfica final parasaber exatamente o que está sendo referido, como acontece quando seprefere mencionar apenas o autor, o ano de publicação e a página (exem­plo: Silva, 1992, 18), seja no próprio texto, seja no rodapé. Quando umaobra é referida repetidamente em um mesmo capítulo, recorremos à ex­pressão obrajá citada, abreviada cit.); se a referência se deu na nota derodapé imediatamente anterior, utilizamos o termo idem.

Quando a fonte consultada tem uma forma de catalogação univer­sal, como no caso de Platão e Aristóteles -cujas obras são divididas emtrechos numerados - ou Kant - cujas obras são citadas pela numera­ção de páginas das duas edições originais -, esta forma é referida. Men­ciona-se também a edição específica consultada. Nas referências biblio­gráficas primárias, mais importantes, é citado o capítulo, além da pági­na, o que auxilia a confrontação com traduções ou edições diversas da­quelas aqui pesquisadas.

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N" bibliografia geral só foram colocadas as publicações q~e ~pr~-

",,,111m' interesse direto ~ contribui~ãOe~pet~:~:~ag:~~:~::a:::,r:~t:IIl1hlllho tendo-se ehmmado as o ras e o ,

_I - co'nfiguram leitura obrigatória para os filosofos.• '" II, 'd I' dos

d bra de qualquer pensador deve CU! ar, a emO reexame a o r - '

nteúdo mesmo de seu pensamento, da ava Iaçao cn-I',essupostos e d,~co I d' er em que medida são insuficientes ou con­11"" deste conteu ?' va e IZ d t' e ponto isto pode comprometerl'lIllitórios os cammhos adota, os e a e ~~. o capítulo tentar-se-á ver se'" ,'csultados alcançados. Dat que, no:. l:n respond~ àquelas questõesl' cm que medida uma filosofia ont~ oglca, onde ade uada­h,hieas da filosofia menciondadas aCIma: 1~:Oae~cs:a~e:;sso lugar ~ele,menle aos estímulos do mun o, se noS aJu

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PRIMEIRA PARTE

Capítulo Primeiro

O AMBIENTE: KANT EO MOVIMENTONEOKANTIANO

Sumário: I. O ambiente intelectual. 2. Gnoseologia de Kant.

3. O imperativo categórico. 4. Gnoseologia da Escola de Marburg.

1. O ambiente intelectual

Chamado o segundo retomo a Kant - o primeiro seria o idealismoalemão, conhecido como pós-kantiano-o neokantismo aparece em prin­cípios do nosso século e concentra-se sobre duas correntes representadaspelas escolas de Baden (Südwestdeustsche Schule) e Marburg.

Na primeira delas, da qual Heinrich Rickert e Wilhelm Windelbandsão as figuras mais representativas, há uma maior ênfase sobre a Críti­('(J da razão prática, publicada por Kant em 1788, e sobre os conceitosde valor e dever ser, constituindo uma deontologia. Inclusive paraexpectadores do final do século, esta escola é importante, pois tevepapel preponderante no movimento conhecido como filosofia dos valo­res, ou axiologia, para a qual a contribuição de Hartmann foi decisiva,e projetou nomes expressivos no campo da filosofia do direito, tais como);,nil Lask - um dos primeiros a falar do direito como um objeto cul-

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~.J..... ,

tural de conhecimento, doutrina até hoje discutida _ e GustavRadbruch'.

. Hermann Cohen e Paul Natorp lideram a Escola de Marburg na1.nvesllgação das condições do sujeito diante da teoria do conhecimento.E este lado dos neokantianos que nos interessa mais de perto, por formaro primeiro ambiente filosófico de Hartmann. Seu reflexo na filosofia dodireito é também importante: RudolfStammler, Hans Kelsen e O italianoGiorgio deI Vecchio são alguns dos que, à sua maneira, transferem para O

estudo do direito parte da gnoseologia e a busca pela pureza metodológicada Escola de Marburg2.

Precursores importantes do movimento neokantiano foram FriedrichAlbert Lange, interpretando fisiologicamente o conceito kantiano do apriori, e o austríaco Alois Riehl, que acentuou a lógica transcendentaJ3..Lange recusa expressamente qualquer forma de ontologia essencialista:"Um ente pronto e acabado, independente de nós, mas passível de ser pornós conhecido - tal realidade não existe nem pode existir... O mundonão é apenas representação mas sim nossa representação"'.

Nicolai Hartmann nasceu em Riga, na região do Mar Báltico, nodia 20 de fevereiro do ano de 1882, quando a cidade estava sob domíniorusso. Sua educação foi alemã e completou-se na Universidade deMarburg, onde estudou sob orientação dos mencionados Cohen e Natorp,

I. cr E. Lask, Filosofiajurídica, trad. R. Goldschmidt, Buenos Aires, 1946,e T. Ferraz Jr., Conceito de sistema no direito - uma investigação histórica apar/ir da obra jusfilosófica rk Emil Lask, São Paulo, EDUSPlRevista dos Tribu­nais, 1976; er, também, G. Radbrueh, Filosofia do direito, trad. Cabral de Moneada,Coimbra, Arménio Amado Ed., 1979, todos passim.

2. R. Stammler, Theorie der Rech/swissenschaft (I 923), Darmstadt, Seientia!Aalen, t970; G. dei Veeehio, Lezioni difilosofia rkl diri/to. Milano, GiutTre, 1948;R Kelsen, ReineRech/slehre. Wien, Franz Deuticke, 1983 (2. Ausgabe 1960), tam­bém ~odos paSSlm. Para os reflexos do neokantismo na filosofia do direito, cf.Aftahón, Olano e Vilanova, lnlroducción aI derecho, Buenos Aires, Cooperadorade Dereeho y Cieneias Soeiales, 1972, p. 902 e s.

3. Cf. R-L. Ollig (org.), Neukan/ismus, Stuttgart, Reelam, 1982, p. 5-52.

4. F. A. Lange, Der Standpunkt des Ideais, in Geschichte des Materialismusund Kritik seiner Bedeulung in der Gegenwart, Leipzig, Brandstetter, 1921,p.513.

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Il'lIdo assumido a cátedra deste último em 1922. Deu também aulas nasIIl1iversidades de Kõln, Berlin e finalmente em Gõttingen, onde morreu110 ano de 1950.

Desde cedo, os interesses teóricos de Hartmann levaram-no a dis­lallciar-se de seus mestres e do neokantismo. Sua primeira obra impor­lunte, Fundamentos de uma metafisica do conhecimento, já mostra insa­I isfação diante dos cuidados preponderantemente gnoseológicos da esco­lu; influenciado pela filosofia grega clássica, Hartmann procura umaolltologia cuja investigação seria a tarefa principal e superior a qualquerleoria do conhecimento. O próprio título enfatiza o termo/andamentos(I irundzüge) e contraria os ensinamentos de Cohen e Nalorp, ao sugerir'I"e algo antecede a crítica do ato de conhecimento: O objeto da filosofia<leve ser procurado através de uma metafísica, com raízes na teoria do'Or, que recuse o subjetivismo - no sentido de estudo das faculdadescognoscitivas do sujeito como atitude filosófica privilegiada - que pre­vulecia no meio acadêmico de Marburg.

Na tarefa de combate ao neokantismo, Hartmann toma apoio emdiversos pensadores e acusa os neokantianos de infidel idade a Kant. Ve­jamos o que o próprio Kant tem a dizer a respeito.

2. Gnoseologia de Kant

Kant é considerado um filósofo complexo, difícil até. Mesmo quem11110 esteja particularmente de acordo com essa opinião, não pode deixarde reconhecer as profundas diferenças, inconciliáveis, entre correntes queigllalmente se intitulam kantianas. E não pode deixar de reconhecer suaimportância.

Kant afirma, no prefácio à segunda edição (1787) de sua Crítica da/'lIzão puras, que O ponto de partida da nova metafísica precisa ser aconcepção de ciência elaborada por Copérnico, Galileu e Newton, cujo

5. A edição consultada é I. Kant, Werkausgabe - in zwõ/f Bande, W.Wcischedel (org.), Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1977. A primeira edição original temluns páginas indicadas após a letra A e a segunda edição, também endossada porKalll, quando houver, após a letra B.

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método procura adequar à filosofia6 • Embora certamente mais antiga doque as matemáticas ou as ciências fisicas, a mctafisica não tinha aindae~vercdado pelo caminho seguro da ciência - até a edição da Kritik,dIrIa Kant - Justamente por não ter procedido a uma crítica rigorosa deseus princípiosbásicos, delimitando criteriosamente até onde pode ir comsegurança o sUjeito que pretende conhecer algo.

. . O termo metafisica é empregado por Kant em sentido muito amplo,signIficando tanto a Investigação dos fundamentos filosóficos da ciênciaquanto o conjunto de questões que o homem se coloca diante do mundo.A "revolução copemicana" proposta pela Crítica kantiana parte de umamudança na atitude que adota o sujeito cognoscente: o problema não é sepodemos conhecer através da razão ou da experiência _ questão emtorno da qual se debatiam racionalistas e empiristas _ mas sim comopodemo~ conhec~r, isto ê, quais os limites do conhecimento, seja pelolado ~a~lOnal, seja. p~l.o empírico. A pergunta fundamental é: quais ascondlçoes de possibilidade da razão pura e da experiência, como exis­tem elas em nós e diante de nós? Ou em outras palavras: como é possívelao aparato cognoscente do ser humano, que é interior e subjetivo afir­mar, negar ou transmitir algo sobre um mundo que é exterior a nós'mes­mos? En~ontrada a resposta, pelo menos assim o julgava Kant, estariaestabeleCida a ponte entre os dois mundos e a base de todo conhecimento.

Esta compreensão dea tarefa básica da filosofia consistir em uma~rít~cadas possíveis relações entre um sujeito e um objeto, ou seja, cons­tituir uma teoria do conhecimento, é dos caracteres importantes da filoso­fia moderna. Kant, na linha de Descartes, teve papel fundamental na for­mação dessa característica.

Kant foi educado na tradição racionalista de Christian Wolff, admi­rava Rousseau e se preocupava com o ceticismo de Hume. Este, comosabemos, ao levar o empirismo de Locke e outros a suas últimas conse­qüências lógicas ~ argumentativas, retirou-lhe toda plausibilidade enquantoteona do co~h~clment?e concluiu q~e o conhecimento não é apenas vãocomo também Imposslvel. Kant dedICa-se a refutar tal atitude cética. Emum trabalho que escreveu, para um concurso promovido pela Academia

6. É na Kritik der reinen Vernunft, v. 3, que são mencionados Galileu (p BXIII), Copérnico (p. B XVI) e Newton (nota p. B XVI). .

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Real de Ciências de Berlim, aponta expressamente os "três estágios" pe­los quais teve que passar a evolução da metafisica européia: primeiro, odogmatismo de Wolff; depois, o ceticismo de Hume; finalmente, orriticismo kantiano da razão pura7

A Crítica da razão pura, publicada em 1781, começa perguntandocomo é possível que conceitos, palavras, juizos, propos~çõesnos infor­mem sobre o mundo sensivel. Sua grande preocupação e explIcar o fato

- que parece a Kant incontestável- de que o homem poss~ e~tabelecer

lima correspondência entre juízos intelectuais e obJetos senSlvelS, obJeto~lião produzidos pela mente e que estão fora dela. Esse post~lado estaintrinsecamente ligado a uma concepção de verdade em certo sentido herda­da da ontologia clássica, quer dizer, a possibilidade de estabelecer ade­quação ou inadequação da linguag,:,~hum~adiante de um mun~o exte­rior a ela mesma. Vemos que KantJa recusana a premIssa, postenonmen­Ic adotada pelos neokantianos, de que os objetos possam ser um produtoexclusivo do pensamento. E também não aceita o ccticismo pregado p~r

Ilume no sentido de ser o conhecimento impossivel. Era precIso constrmrlima filosofia que pudesse fundamentar todas as ciências, empíricas ounão, pois essa era a tarefa da metafisica modema. Se constru~mospontesa partir de cálculos conduzidos pela razão, deve haver relaçoes adequa­das entre o sujeito e o mundo.

Cabe então, pela estratégia kantiana, fazer duas impo~antesdistin­ções na classificação dos juízos ou proposições, que constIt~em a ~orma

de expressão dos juízos': uma proposição pode ser, quanto a relaçao en­Ire sujeito e predicado, analítica ou sintética; ~uanto à ~elação com aexperíência, a priori ou a posteriori. Ao contrano dos filosofos anten~­

rcs que trataram desse problema, como Leibniz, por exemplo, Kant naoaceita o postulado de que toda proposição sintética é também apo~tenon,embora concorde que as proposições analíticas são sempre a pnorl. Em

7. I. Kant, Schriften zur Melaphysik und Logik li, v. 6, p. A 21 (Wel~he sindclie wirk1ichen Fortschritte, die die Metaphysik sei! Leibnitzens und Wolf/ s Zel1enin Deulschland gemachl hat?).

8. Cf., entre outros trechos, I. Kant, Schriften zur Metaphysik und ~ogi~ I, v.5, p. A 25 e s. (Prolegomena zu einer jeden klinfligen Metap?yslk dle aisWissenschaft wird auflreten k6nnen); e Kritik der reinen Vernunft, Clt., v. 3, p. B Ic s.

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outras palavras, a questão gnoseológica principal é a seguinte: como sãO:possíveis juízos sintéticos a priori? Vejamos O que ele quer dizer comisso.

Juízos analíticos são aqueles em que a conexão do predicado com osujeito é pensada por identidade: o que se diz do sujeito já é parte de suaprópria conceituação. Os juízos analíticos configuram uma tautologia,isto é, o predicado está contido no sujeito, sem acréscimo de qualquerdado externo. A utilidade gnoseológica de taisjuízos consiste em explicitar,em definir os conceitos a que se referem, mas nada nos revelam sobre arealidade exterior a nós mesmos. "O quadrilátero tem quatro lados e qua­tro ângulos" mostra-nos um exemplo de tais juízos, assim como a Con­clusão de que a=c, decorrente das premissas a=b e b=c.

Nos juízos sintéticos, o predicado nos traz uma nova informaçãosobre o sujeito, ou seja, a adequação do juízo não pode ser averiguadasem auxílio de elementos externos a ele, não se confirma simplesmenteatravés do princípio da não-contradição. "Os portugueses chegaram aoBrasil em 1500" é um juízo sintético.

O juízo a priori é definido como aquele que independe de toda per­cepção concreta e de qualquer experiência. O conhecimento apriorísticoé portanto claro e evidente, necessário e dotado de generalidade'. Assimsão classificados osjuízos matemáticos e analíticos em geral.

Um juízo aposteriori, por seu turno, é um juízo empírico; sua con­firmação depende diretamente da experiência; ele só pode ser referidocom o auxílio de nossos órgãos dos sentidos, seja diretamente, seja atra­vés de alguém que no-lo confirma e transmite. Tais juízos expressam osresultados de observações. O juízo sintético sobre a chegada dos portu­gueses ao Brasil, mostrado acima, é também um juízo a posteriori.

Então, todo juízo analítico é apriori. A novidade colocada por Kantconsiste, como dito, em não aceitar o postulado de que todo juízo sintéti­co depende exclusivamente da experiência, ou seja, de que todo juízosintético é necessariamente a posteriori. Há juízos sintéticos, verificaele, para os quais nossa atenção é despertada pela experiência mas que,

9. I. Kant, Kritik der reinen Vernunft, cit., v. 3, p. B 3 e s.

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110 serem conhecidos, revelam uma base o~tra q~~ não está contida n~

lereepção sensível, quer dizer, que é a priOri, queJa está em n~sso apa~a

:0 eognoscitivo. Para designar essa base, que, segundo ele, na10 prodPr~a-.-' porque começa com e a e aI amente transcende a expenencIa - d' f

inlldequação do termo transcendente -, Kant emprega o a Je IVOtranscendental, designando sua kopernikanisc~e We~de. M.~str~r por-

. orque há]'uízos sintéticos antenores a expenencIa, esteque Isto ocorre, pé (1 objetivo principal da Crítica da razão pura. . ,

O conhecimento apriorístico não é temporalmente antenor a .e_xp~­

.- . firma Kant ele apenas fornece as condições de toda expenenCIa"enCla, a I , b' t depossível conforma a estrutura de nossa percepção para que os o ~e os dnossa ex~eriência se manifestem enquanto fenômenos. Som~s capazes ereconhecer os objetos unicamente pelasformaspuras que nos mesmos, apriori, lhes emprestamos lO• •

O esquema seguinte facilitará a compreensão da gnoseologia deKant.

CONDIÇÕES DE CAMPOMATÉRIA CONHECIMENTO

TEORÉTICOPOSSIBILIDADE

FORMAS PURAS DA ESTÉTICACOISA

TRANS-SENSIBILIDADE OBJETOSEMSI

CENDENTAL(ESPAÇO E TEMPO)

FORMAS PURAS DO CONCEITOS ANALíTICAOBJETOS

ENTENDIMENTO EM GERAL TRANS-

(CATEGORIAS) CENDENTAL

lDÉIASDA DIALÉTICACONCEITOS:

TRANSCEN-MUNDO RAZÃO ...DENTALLIBERDADE

(ALSOB)DEUS

10. Idem, p. A 31 (B 46) e s.

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Diferentemente do sentido atual e corrente do termo "estética", aestética transcendental de Kant diz respeito ao estudo da sensibilidade,dos órgãos da percepção sensível. Aqui nosso conhecimento é possibili­tado pelo que Kant chamouformas puras dasem'ibilidade, as intuiçõespuras ou Anschauungen, que denominamos espaço e tempo, fixadas pelaprópria "natureza" da espécie humana como condiç(Jes de possibilidadepara a apreensão dos fenõmenos sensíveis. O espaço e o tempo são asformas apriori com que nós humanos estamos aparelhados e que aplica­mos obrigatoriamente à matéria sensível para apreendê-Ia; eSSa matériajá humanizada da estética, na ampla acepção de Kant, são os fenôme­nos, isto é, o mundo sensível que o homem pode perceber. Podemos criaraparelhos que ampliem o campo dos fenômenos perceptíveis mas, conde­nados que estamos pelo espaço e pelo tempo,jamaís chegaremos às coi­Sas tais como elas são. A percepção é sempre relativa ao observador.

Estudos maís recentes parecem endossar essa concepção, demons­trando o abismo que separa a percepção do mundo por parte de diferentesseres vivos

ll. Mas como o homem é o único ser racional de que temos

notícia, ficamos a imagínar se seria possível uma forma de razão puracuja estrutura categorial se apresentasse de maneira diferente. Um sujei­to que não dispusesse das nossas formas puras de sensibilidade, por exem­plo, talvez não pudesse perceber esta folha de papel sobre esta mesa, oque dependeria das formas apriori em seu aparato cognoscitívo. Talvezpercebesse apenas átomos disformes em colisões e explosões ininterruptas.Talvez só percebesse a luz. Percebemos os diferentes objetos que nosr~d.eiam_talcomo os percebemos unícamente porque o nosso código ge­nehco nao nos dá outra alternativa. Daí a impossibilidade ontológica deaproximação e conhecimento da coisa em si ou Ding an sieh, por defini­ção, independente do sujeito.

Correspondendo à diferença que estabelece entre razão analítica

" 11. Cf. D. Krech e R. Crutchfield, Elementos de psicologia, trad. Dante eMmam MoreIra Leite, São Paulo, Pioneira, 1973, v. I. p. 40 e s. Ou, mais recente­~ente! S: J: Schmidt. Der Radikale Konstruktivismus. Ein neues Paradigma immterd.sz.phnllren Diskurs, in: S. J. Schmidt (org.), Der Diskurs des RadikalenKonstruktivismus, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1990, p. 11.88.

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ou entendimento ou ainda intelecto (Verstand12) e razão sintética oupura (Vernunft), Kant divide sua lógica transcendental em analítica edialética. Do mesmo modo que o espaço e o tempo constituem a formado conhecimento sensivel (que Kant chama de estético, como dissemos),aS categorias fornecem a foma também apriorística do conhecimentoanalítico. A matéria desta razão analítica não são mais os fenômenossensíveis imediatos, a massa amorfa de sensações que constituíam a ma­téria para as formas puras da sensibilidade; ordenados que foram peloespaço e pelo tempo, os fenômenos tornam-se agora objetos e sobre elesa razão analítica constrói o que Kant chamou de ciências da natureza. Oresultado da aplicação das categorias a priori da razão analítica aos oh­jetos oriundos da intuição sensível são os conceitos. Até aí pode ir oentendimento.

Discorrendo sobre aS categorias, diz Kant: " ... elas, por si, nadamais são do que funções lógicas e, como tais, não constituem o mínimoconceito de um objeto em si mesmo... "13. Na condição de meros atribu­tos do entendimento, que possibilitam o conhecimento quando correta­mente unidas à intuição (sensivel ou intelectual), as categorias kantianasnão alcançam os objetos em si mesmos, e permanecem subjetivas, ouseja, nada nos garante que percebemos Omundo tal como ele é, em lugarde simplesmente nOSSa natureza racional - e fisica, corpórea - nosfornecer Ofiltro para o mundo tal como ele nos aparece.

A perspectiva tradicional sobre as categorias, de vertente ari~ot~lica,

difere da perspectiva kantiana em pelo menos dois postulados pnnClpatS,apenas didaticamente separados: a negação da intangibilidade do ser emsi e a objetivização do conceito de categoria. As categorias não são con­sideradas atributos do nosso aparato cognoscente nem regem apenas amanifestação fenomênica - para nós - de um ser em si inatingível; elas

12. A tradução do termo Verstand por entendimento é questionada por H.Arendt, que sugere intelecto. Cf. The life of the mind - thinking/willing, NewYork·London, HarvestlHJB, 1978, v. 1, Introdução, p. 13 e Cap. I, p. 57. Por vezesé o próprio Kant, em alguns textos originais em latim, quem lança mão de ter~os

como intel/igibilium ou intel/igibilis para designar Verstand. Cf. I. Kant, Schrifte~zur Metaphysik und Logik !, cit., v. 5, (De Mundi Sensibi/is atque !ntelilglblbsForma et Principiis), passim.

13. I. Kant, Schriften zur Metaphysik und Logik 1, cil., v. 5, p. A 120-1.

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estão nos próprios objetos e ali estariam independentemente da existênciaou não de uma razão cognoscente. Não há motivo para que pensemos serO fenômeno algo distinto do objeto que o origina e revela, ou seja, que oser das coisas em si mesmas não se manifestejuntamente com os fenôme­nos percebidos pelo homem. Por discordar disso Kant já foi chamado deidealista, expressão ambígua e a nosso ver inadequada à sua teoria doconhecimento.

Já podemos verificar que a metafísica de Kant, no sentido em que édiscutida na Dialética Transcendental'" aparece de antemão bloqueadapela intangibilidade, ou impossibilidade de apreensão racional pelo ho­mem, da verdadeira essência do ser, que ele chamou coisa em si. Asúltimas questões da metafísica só são viáveis, diz Kant, no plano do Comose (aIs ob): se a razão pura (Vernwifi) pudesse conhecer o todo, o que elapesquisaria? Não se chega a um conhecimento efetivo aqui porque não épossível para o homem aplicar regras do entendimento (Verstand) ao serem si mesmo considerado, independentemente das formas a priori quecondicionam qualquer conhecimento humano.

A Dialética Transcendental é o campo da razão sintética e aqui ascondições de possibilidade do conhecimento seriam as idéias, expressãoque tem sentido próprio na terminologia de Kant. Se a cognoscibilidade apartir da razão pura não fosse bloqueada pela coisa em si, sua esfera depesquisa seriam as intuições que temos do mundo, de nossa liberdade oulivre arbítrio e de Deus, formando as idéias de que se ocupam, respecti­vamente, a cosmologia, apsicologia e a teologia, terminologia que Kanttoma do racionalismo de seu mestre Christian Wolff. Kant lança mão devários argumentos para demonstrar a incognoscibilidade _ no planoteorético - dessas intuições, procurando refutar, por exemplo, provasontológicas ou cosmológicas da existência de Deus's.

A ética e a concepção do direito de Kant não estão dissociadas desua metafísica do conhecimento, ainda que a razão pura prática e a razãopura teorética se assentem em princípios diferentes.

14. Cf. I. Kant, Kritik der reinen Vernunji, cit., v. 3, p. A 50 (B 74) e s.15. Idem, p. A 592 (B 620) e s.

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J. O imperativo categórico

Se o ser humano não consegue transformar suas idéias em conheci­mento, por falta de confirmação na experiência transcendental, resta sa­ber como lidar com elas. Algumas questões que a razão pura sintéticaconsegue apenas colocar - mas não resolver - constituem tarefa daética ou, na terminologia kantiana, da metafisica dos costumes, dentro daqual está o direito.

Parece-nos que uma das teses centrais de Kant, aqui, é a daintransponibilidade entre as esferas do ser e do dever ser. Para Kant,"O dever ser expressa um tipo de necessidade e de ligação... que nãoocorre(m) de outra forma em toda a natureza" e este mesmo Sollen "...não tem qualquer significação quando se observa apenas o curso da natu­reza"16.

Apesar de rigorosamente sujeita às leis dar~o prática, a vontadeé livre diante das determinações do mundo físico. E difícil determinar osentido da expressão. Parece-nos que a autonomia e a liberdade da vonta­de levam à tese da intransponibilidade, quer dizer, as relações categoriaisque a razão pura coordena e classifica dentro da multiplicidade de fenô­menos não têm sentido diante do dever ser que rege a conduta humana.As leis dessa razão prática são rigorosamente formais, a variabilidadedos conteúdos é tal que não pode ser predeterminada, nenhum conteúdopode a priori servir de critério para separar lícito de ilícito, moral deimoral. Todo parâmetro material, diria Kant, é insuficiente para a funda­mentação da ética, pois lião se consegue compelir a razão a aceitaraprioristicamente qualquer deles. Quer dizer, prescrições ~ue.to,mam porcritérios fatos como, por exemplo, o nível de renda do mdlvlduo, suaascendência familiar, sua filiação a um partido ou os caracteres de s~a

raça terão necessariamente uma dose de arbitrariedade ~ poder~o S~tIS­

fazer ou não ao imperativo categórico. Qualquer conteudo venficavelpode ou não constituir um critério legítimol7•

16. Idem, p. A 547 (B 575).

17. A teoria da autopoiesis dos sistemas vivos, defendida originalment~ p~r

H. Maturana, mesmo partindo de bases diferentes. chega a resu1ta~os compat,lvelScom a ontologia kantiana, afinnando, por exemplo, que '"Todos os tIpos de socleda-

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Este ponto, sobre por que motivos gnoseológicos o engenho huma­no não consegue do ser, do fato, retirar validade universal para um deverser, a norma, isto é, de uma descrição não se poderem fixar parâmetrospara solucionar conflitos prescritivos que ainda estão para ocorrer, pare­ce-nos uma das grandes contribuições de Kant, ainda que das mais malentendidas. Aqui é decisiva para a teoria geral do direito, ainda que con­troversa, a interpretação e difusão que lhe deu Hans Kelsen 18• Claro queo dever ser e o ser se comunicam na eficácia da norma e na efetividade dodireito, mas isso só ocorre aposteriori; não nos é possível racionalmenteretirar de algo que é agora - nivel de renda do indivíduo, sua ascendên­cia familiar, sua filiação a um partido, os caracteres de sua raça etc. _um dever ser futuro que seja tão incontestável, óbvio, evidente, quanto ofato em que se baseia. Este é o limite intransponivel, o salto gnoseologi­camente impossível. E aí está o problema, éjustamente esta a pretensão ea necessidade prática das normas jurídicas dotadas de generalidade: for­necer critérios para decisões de conflitos que ainda estão para ocorrer.Kant demonstra aos olhos modernos a incapacidade da razão para, por sisó, fundamentar os procedimentos de solução de conflitos jurídicos, so­nho dourado de algumas vertentes tanto do jusnaturalismo quanto dopositivismo racionalista.

O dualismo kantiano entre ser e dever ser parece corresponder aduas faculdades humanas, a do conhecere a do agir. A importância dessedualismo na filosofia do ocidente é grande 19, o que não significa acordo

de são biologicamente legítimos. Mesmo assim, nem todos são igualmente desejá­veis enquanto sistemas nos quais um observador humano possa desejar viver~·. Cf.H. R. Maturana e F. 1. Varela, Autopoiesis and cognition - The rea/ization o/lheliving, Dordrecht-Boston-London, D. Reidel, 1980, p. XXIX.

18. H. Kelsen, Reine Reehtslehre, cit. Cf. nota das p. 102-5 no item sobre aliberdade da vontade. Ainda que Kant não tire da tese todas as conseqüências que oleitor moderno poderia desejar, parece-nos que Kelsen tem razão quando credita aidéia de intransponibilidade entre ser edevet ser aKant; cf. a solução dada por Kantà terceira antinomia na Kritik der reinen Vernunft, cit., v. 4, p. A 542 (B 570) e s.

19. Aontologia de Hannah Arendt endossa esse dualismo. Cf. H. Arendt, Thehuman eonditian, Chicago-London, The University ofChicago, 1958, e The life o[lhe mind, cit.. passim. Cf., também, J. M. Adeodato. Oproblema da legitimidade- no rastro do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro, Forense Universi­táría, 1989, p. 93 e s.

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entre os diversos filósofos. O conceito de Kant é bem peculiar: mesmownsiderando que "... a vontade nada mais é do que razão prática", atir­ma que " ... a vontade é uma capacidade (Verm6gen) de escolher apenasaquilo que a razão, independentemente da inclinação (pessoal), reconhe­ce como praticamente necessário, isto é, como bom". A lei necessária quea razão prática reconhece é mandamento (Gebot) da razão. A fórmulade qualquer mandamento consiste em um imperativo (lmperativ). E 'To­dos os imperativos são expressos através de um dever ser" (Sollen)20.

Enquanto no conhecimento teorético a coisa em si impede a certeza,no campo da razão prática a ação é fruto do postulado racional incontes­tável que é a lei do dever, o imperativo categórico, condição de possibi­lidade da consciência moral. Quando estamos em ação podemos agir comseguro discernimento entre o certo e o errado, diferentemente do que ocorrecom as incertezas da razão teorética sintética. O imperativo categórico,repetimos, é puramente formal. Kant define: "O imperativo categórico éportanto só um único, que é este: age apenas segundo uma máxima talque possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal." Ou,mais adiante: "age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pelatua vontade, lei universal da natureza"".

Válido para todo dever ser, o imperativo categórico é condição depossibilidade também do direito. Ao tratar especificamente da teoriajurí­dica, buscando separá-Ia da metafisica dos costumes em geral, Kant re­toma a distinção do jusnaturalismo racionalista de Christian Thomasiuse enuncia o imperativo categórico do direito: " ... age exteriormente demodo que o livre uso de teu arbitrio possa conciliar-se com a liberdade detodos segundo uma lei universaL". Logo adiante Kant acrescenta outrocaráter distintivo do direito em sentido estrito (ius strictum): acoercitividade22•

20. I. Kant, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, v. 7, p. A e B 37-8.21. Idem, p. A e B 52. Em nota de rodapé Kant diferencia máxima, o princi­

pio subjetivo, da lei prática, o princípio objetivo.

22. O imperativo categórico do direito está na obra Die Metaphysik der Sitten,publicada em 1797, ou seja, dois anos depois da Grundlegung zur Metaphysik derSi/ten, cit., v. 7. Cf. I. Kant, Die Metaphysik der Sitten, cit., v. 8, p. AeB 34 e s. (grifonosso). Os critérios interioridade-exterioridade e coercitividade-incoercitividade paraseparação entre moral e direito têm sido de grande importância na filosofia jurídica.

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Ora: se a razão teorética é bloqueada pela il11ul1!(ibilidade da coisaem si e pela intransponibilidade do ser para o dever scr; sc a razão práticasó trabalha com imperativos fonnais que cuidam unicumente da coerên­cia das normas; e se é indispensável na prática separar por critériosmateriais fatos lícitos de ilícitos diante de normas, como proceder parafixar os critérios? A saída encontrada por Kant, pum nós insatisfatóriaem termos de teoria do conhecimento, é a fé, de certeza formal edogmática23 .

A interiorização subjetiva das condições de possibilidade do conhe­cimento, que apontara ao estudar a razão teorética, leva Kant a posiçãosemelhante em suas especulações sobre a ética e O direito. Moralista rígi­do, Kant parece partir de sua própria certeza moral e tomá-la como umdado ontológico e óbvio na razão de todos os homens (problema comuma muitos de nós), não conferindo muita importância aos condicionamen­tos sociais e aos efeitos das ações, por exemplo, mas antes às supostasintenções do agente. Não considera, por exemplo, que duas ações dife­rentes, praticadas por pessoas diferentes, podem ser igualmente confor­mes ao imperativo categórico e, não obstante, a realização de uma delasimplicar a exclusão da possibilidade de realização da outra por qualquermotivo como, digamos, convergirem ambas sobre um mesmo objeto.Também não atribui qualquer papel à infra-estrutura econômica ou aoutros componentes do meio ambiente na constituição e na avaliaçãoética do indivíduo.

Aplicadas ao direito, as conseqüências do imperativo categóricorevelam-se de difícil aceitação. O direito precisa fixar critérios decisóriosobjetivos que permitam a escolha entre duas condutas mutuamenteexcludentes: um sujeito pode desejar proceder exterionnente de tal modoque a norma que orienta sua ação possa converter-se em nonna jurídicade caráter universal, assim como esta também pode ser a convicção sin­cera de um outro sujeito. O problemajurídíco, o conflito, surge quandose trata de decidir qual das duas condutas deve ser, qual das duas sedeve efetivar sob a tutela e com o apoio do poder instituído. Além disso,

23. Daí a critica procedente que lhe faz M. Reale, Verdade e conjetura, Riode Janeiro, Nova Fronteira, 1983. Cap. l,passim, especificamente a p. 49.

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não é difícil imaginar um corrupto que deseje transfonnar seus atos em

máximas universais2" um conteúdo que certamente contraria a éticakantiana.

Na mesma linha de argumentação, não parece viável um querer"puro" ou "universal"; os parâmetros objetivos para separar o moral doimoral, o jurídico do antijurídico, se é que existem, devem ser procuradosem alguma outra referência. A vontade é faculdade essencialmente subje­tiva, pessoal, arbitrária. Interpretar o querer como uma fonna objetiva depensamento, como o jurista neokantiano Stammler2', por exemplo, é reti­rar-lhe o sentído original.

A crítica à ética fonnalista de Kant vem principalmente através daética material de valores de Max Scheler e Nicolai Hartmann. Da mes­ma maneira que, na teoría do conhecimento, as categorias estão intrinse­camente presentes no objeto e não dependem do sujeito, a filosofia dosvalores dessa ética material não se baseia no conceito fonnal de lei massim no conceito de valor. Os valores seriam entidades objetivas, existen­tes por si mesmas e apenas descobertaspelo homem. Uma ação digna delouvor é assim objetivamente digna de louvor, uma ação Iícíta, objetiva­mente lícita, independentemente da lei positiva, da opinião deste ou da­quele indivíduo ou mesmo da comunidade. O valor constitui um parâmetroobjetivo que dá conteúdo específico e sentido à ação humana26• A chama­da filosofia dos valores teve grande impulso em nosso século. Por outrolado, também para os subjetivistas céticos, a teoria dos imperativoskantianos não era satisfatória. O certo é que uma das controvérsias impor­tantes em que se dividiram os axiologistas-objetivistas e subjetivistas-

24. B. Russell, History of western philosophy - and its connection wilhpoliticaI andsocial circumstancesfrom lhe ear/iest times to lhe present doy, London,Routledge, 1993, Livro 3, Cap. 20, p. 683, fala em um "suicida melancólico".

25. Sobre o "querer vinculatório. autárquico e invioláver' através do qualdefiniu o direito, cf. R. Stammler, Lehrbuch der Rechtsphilosophie (1928) e Theorieder Rechtswissenschafl (1923), cit., 2. ed., Dannstadt, Seientia/Aalen, 1970,passim.

26. M. Scheler, Der Formalismus in der Ethik und die Materiale Wertethik- Neuer Versuch der Grundlegung eines ethischen Personalismus. GesammelteWerke, Maria Scheler (org.), Bem, Francke Verlag, 1954, e N. Hartmann, Ethik,Berlio, Walter de Gruyter, 1949,passim.

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ganha novos argumentos, pode-se dizer lIle os nossos dias, na crítica àética fonnal kantiana".

O interesse pela filosofia de Kant não represenla uma volta saudo.sista ao passado, seja na ética, seja na gnoseologia. Sua atualidade écomprovada pela forte influéncia que exerceu e exerce no pensamentocontemporâneo, sobretudo mas não apenas na tradição alemã. Toda filo­sofia posterior precisa passar por ele, principalmente sc pretende ter al­eancejurídico. Sem Kant, decerto, Hegel não chegaria da mesma manei.ra à concepção dialética que desemboca em Marx, nem HlIsserl, ao méto.do fenomenológico. Heidegger e o existencialismo também têm seu débi.to para com ele, assim como as teorias de Habermas e Dworkin, Toulmino~ Perelman e Tyteca. Sobre os pós e neokantianos, a própria denomina.çao testemunha o papel da filosofia de Kant. E, no Brasil, sua influêncianão vem de hoje, pois a ligação de nossas teoria e práticajllrídicas eom opensamento alemão e especificamente com Kant remonta pelo menos aoséculo passado".

Ainda que defenda uma espécie de ontologia formalista na moralno direito, na ética, na metafísica dos costumes, em suma como tenta~até~oje ~Igu?~ de seus s~gllidores29, a obra de Kant admit; uma interpre­ta?ao mais .cetlca a respeIto das possibilidades da razão,justamente atra­v~s da teo~la de base que constitui sua gnoseologia, sua teoria do conhe.cln:ento. E ?a critica à ontologia dos objetos que nos parecc estar suamator contrIbuição; e,já que ação e pensamento não se separam, o ceti-

27. Cf. Ortega y Gasset, l.Qué Son los valores?, in Las etapas deI cristianis.mo ~, racio~alismoy Oiros ensayos, Santiago, Pax, 1936, e M. Reale, Verdade ecOfyetura, Clt., passim. Cf. também o Cap. 6, adiante.

28. Cf. C. Beviláqua, A doutrina de Kant no Brasil, Revista da AcademiaBrasileira de Letras, n. 93, p. 5-14, Rio de Janeiro, s. d. Na esteira de Clóvis opensamento de Kant através do krausismo, da dogmática de Teixeira de Freitas ~uda Escola do Recife é examinado por M. Reale, A doutrina de Kant no Brasil _notas à margem de um estudo de Clóvis Beviláqua, Revista da Faculdade de Direi­to de São Paulo, n. 42, p. 51·96, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1949.

29. Cf. R. Alexy, Theorie derjuristischen Argumentation _ Die Theorie desrationalen Diskurses aIs Theorie der juristischen Begriindung, Frankfurt a.M.,Suhrkarnp, 1978, e, em nossa língua, Problemas da teoria do discurso, Anuário doMestrado em Direito, n. 5, p. 87·105, Recife, Editora Universitária (UFPE), 1992.

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cismo teorético contamina também a ética. Herdando toda a cargaontológica da filosofia anterior, Kant enfrenta o problema da constitui·ção subjetiva do conhecimento e, com todos seus condicionamentos dehomem do século XVIII e talvez contra sua vontade, dá o golpe de mortena ontologia essencialista que ele próprio parecia querer redimir30•

4. Gnoseologia da Escola de Marburg

Houve controvérsias sobre se Kant concedera ou não um conteúdoôntico ao que denominou coisa em si, o que a Escola de Marburg rejeitaradicalmente. Com efeito, Kant vê a coisa em si como o ser verdadeiroque se esconde por trás das aparências, um ser noumenale incognoscívelpor não se submeter às categorias do entendimento; Cohen e Natorp areduzem a uma necessidade de caráter lógico dentro do processo de coonhecimento, algo como um limite intransponível. Para eles nada é em si,a existência só tem sentido em função de um sujeito cognoscente: o objetosó se objetiva porque algum sujeito o põe como tal. O sujeito não apenascoloca o objeto diante de si mas até o constitui, conferindo·lhe realidade:é de Cohen a afinnação, absurda para o senso comum, de que "somenteo pensamento é capaz de produzir o ser"3!.

Para a Escola de Marburg, o erro primordial de Kant estava emfazer a intuição sensível preceder à lógica, dentro do processo de conhe­cimento, mesmo que em seu todo peculiar sentido transcendental-con·ceito complexo em Kant, como visto acima. Para os neokantianos não écorreto afinnar, como o faz Kant, que todo conhecimento começa com aexperiência, embora não necessariamente proceda dela: a lógica do pen­samento preexiste em todos os sentidos, ela é a própria essência do penosar, e supor qualquer dado anterior ou paralelo é minar sua pureza intrin·seca. RetiraITI-se assim de Kant as concessões feitas ao empirismo, evi·

30. Z. Loparic, Kant e o celicismo, Manuscrito, v. 11, n. 2, p. 67·83, SãoPaulo, 1988.

31. Cf. H. Cohen, Logik der reinen Erkenntnis, Helmut Holzhey (org.), Werke,v. 6, Parte I (System der Philosophie), Hildesheim·New York, Georg Olms Verlag,1977. Também R. Vancourt, Pré/ace à trad. francesa de Les principes d'unemétaphysique de la connaissance, de Nicolai Hartmann, Paris, Aubier, p. 18 e s.

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I, ,

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tando, segundo Cohen, o "preconceito do dado" e radicalizando Kant auma posição gnoseologicamente coerente, na visão neokantiana.

Há trechos de Kant que parecem distanciar-se muito da interpreta­ção de Marburg. Por exemplo: "Toda a nossa intuição não é senão repre­sentação de fenômenos; as coisas que intuimos não são o próprio em si,em vista do qual as intuímos, nem as suas relações são em si mesmasconstituídas do modo como nos aparecem... Qual seja a natureza dosobjetos em si, e separados de toda receptividade da nossa sensibilidade,permanece-nos inteiramente desconhecido. Não conhecemos senão o nossomodo de perceber os objetos"32. Parece óbvia a separação feita por Kantentre ser e conhecer, entre ontologia e gnoseologia, separação que a Es­cola de Marburg recusa. Para ela a própria separação entre gnoseologiae ontologia é um preconceito ontológico. Diga-se em sua defesa, porém,que o objetivo de Natorp e Cohen não é interpretar corretamente Kantmas superá-lo, corrigi-lo.

A gnoseologia de Kant, bem antes de a Escola de Marburg buscarnela sua inspiração,já havia gerado formas extremadas de subjetivismo,como se pode verem Fichte, o iniciador do movimento idealista alemão,em que se inspirou também o romantismo na filosofia.

Os neokantianos de Marburg reduzem O ser à lógica e assim subor­dinam a existência a uma ordem ideal, na qual um objeto de conhecimen­to jamais se dá, mas sempre é proposto pelo pensament033, conformemencionado no início desse capítulo. Até a preocupação central de suaepistemologia, O próprio processo de conhecer não é tomado exatamentecomo um fato mas sim como, por assim dizer, um "fato de método". Oser é o ser lógico, é o ser da "situação dentro de determinado juízo", umavez que não há conteúdos substanciais nas relações entre os conceitospuros com que trabalha o pensamento humano.

Semelhante redução da filosofia ao passível de conhecimento pal­pável - com o abandono da tradicional investigação metafísica - econseqüente desprezo pelos elementos contingentes e irracionais da reali-

32. I. Kant, Krilik der reinen Vernutift, cit., v. 3, p. A 43 (B 60).

33. P. Natorp, Philosophische Gmndlegung der Plldagogik, in AligemeinePildagogik;n Leitsãtzen zu akademischen Vorlesungen, Marburg, Elwert, 1927,1.1, § II, p. 1-27.

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dade - vez que a realidade propriamente dita é fruto do pensamentocognoscente - vem tomar partido em uma discussão importante na filo­sofia do ocidente: ideal ismo versus real ismo.

As diversas formas de idealismo na teoria do conhecimento, a que odireito certamente não ficou imune, podem ser resultado da sedução quea lógica e as matemáticas em geral exercem sobre os filósofos, desdePitágoras e Platão até Russell e Whitehead, a muitos sugerindo a idéia deum esquema ideal e anterior em que os fatos apenas se encaixam ou não,sem prejuizo dessa realidade supra-sensível. A verificação ou a suposi­ção de que a geometria, por exemplo, trata de círculos perfeitamente exa­tos, mesmo que objetos do tipo não possam ser criados pela atividadehumana nem ser percebidos empiricamente, sugere a idéia de que o raciocí­nio exato-ea conseqüente possibilidade de construção de uma ciênciafilosófica e de uma teoria do conhecimento válidas para todos os planosda realidade - SÓ se processa com objetos ideais. "As analogias dizemrespeito a simetrias e regularidades, que o intelecto cedo reduziu, nasculturas antigas, a constatações métricas e geométricas."34

Dai a afirmar que o pensamento é mais digno de crédito do que ossentidos, que a exatidão lógica constitui o critério da ciência ou que osobjetos pensados são "mais reais" que os observados, contrariando todosenso comum, há apenas um passo. A filosofia de Hartmann, como vere­mos, contribui para esclarecer a confusão de idealismo com perfeição,enfatizando a diferença entre as perspectivas ideal e real.

O sonho da Escola da Exegese e o extraordinário desenvolvimentodo legalismo na era modema tiveram uma razão política, é certo, a neces­sidade pragmática de combater os privilégios e decisões arbitrárias doantigo regime. Mas houve também a argumentação filosófica, baseadana perspectiva idealista que vimos de expor. Uma ciência do direito nosmoldes empíricos da era contemporânea teria de situar-se no âmbito dapistis, se se aplicar O esquema platônico,já que o direito, enquanto dado

34. N. Saldanha, Ordem e hermenêutica. Sobre as relações entre asfarmasde organização e o pensamento interpretativo, principalmente no direito, Rio deJaneiro, Renovar, 1992, p. 49 e s., especificamente a p. 53. O. Bal1weg, Rhetorikund Vertrauen, Kritik und Verlrauen - Fes/schrift fir Peler Schneider zum 70.(;eburlslag, Frankfurt a.M., Anton Hain Verlag, 1990, p. 34-43.

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empírico, nã? passa de uma sombra imperfeita. Dai porque o conheci­mento do dIreIto e do Estado, em todas as formas de idealismojusnaturali.stas ou não, se dá na contemplação da idéia absoluta e supre~",l.a d~ JustIça, contemplação puramente intelectual. apartada da expe­nenCJa.

A esta atmosfera não se adaptaram as reflexões de Hartmann desdeo início de sua atividade intelectual madura. Na Metafisica do conheci­mento, dedica várias páginas a combatê-Ia. ReJeita o idealismognoseológico de Cohen e Natorp, que denom ina "subjetivismotr~scendental",afirmando que tal método filosófico é parcial por privi­leglllr de ~.temã~ um dos múltiplos aspectos da realidade, qual seja, arelação sUJelt%bJeto determinada exclusivamente pelo sujeito transfor­mando? próprio método em sistema, como se o mundo exteri;r pudesseser assim modelado. A hipóstase do sujeito levada a efeito peloneokantismo não procede".

Se o problema da possibilidade do conhecimento, diz Hartmann, éum problem~ m~tafisico, a me~fisica é ineludfvel e a Escola de Marburgtem a s~a propna, a~esar do discurso antimetaflsico. Alguns elementosm~t~fislcos da doutrma kantiana, que Cohen e Natorp abandonam arbi­trana e propositadamente, tais como os conceitos de consciênciatranscendental ou coisa em si, têm importância a ponto de gerar inter­pretações como as dos idealistas pós-kantianos ("mais metafisicos doque Kant"), consideradas pela Escola de Marburg românticas e impreci­sas36•

O :igor lógico d.o neokantismo parece mais claro no que se refere aoconheCImento de obJetos produzidos pela cultura humana. Às ciênciasque não trabalham com a noção de cultura e privilegiam métodos experi­mentais de observação, como a fisica e a qulmica, por exemplo, podeparecerartIfiCIOsa a assertivade que o sujeito cognoscente determina a estru­tura ontológica do objeto que aprecia. Tal dificuldade não aparece tão nitida

35. ef. N. Hartmann, Grundzüge einer MelaphY"ik der Erkenntnis BerlinWalter de Gruyter. 1949, p. 156 e s. • ,

36. A questão é controversa. R. Czerna diz que o idealismo alemão é fiel aKant, cf. Direito e Estado no idealismo germdnlco. Posições de Schelling e Hegel,São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de Slo Paulo, tese, 1981, p. II e s.

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cm questões, por exemplo, da filosofia do direito, em que o objeto deconhecimento se acha em estreito vínculo com a concepção que o sujeitocognoscente tem da realidade com que se defronta. Como o direito impli­ca sempre decisão ou opção de valor, a visão e a vivência que dele temosé elemento constitutivo de sua própria estrutura ontológica. Transferidospara o campo do direito, os postulados gnoseológicos da Escola deMarburg dão ênfase a uma apreciação formalista e analítica do direito,privilegiando a noção de normajurídica como pensamento puro ou con­ceito especifico do objeto juridico.

Os neokantianos, dentre outros, também contribuíram para chamara atenção para a perspectiva do direito enquanto linguagem, o que se temmostrado frutifero em nossos dias, combatendo o essencialismo e todaforma de naturalismo". A lógica dos neokantianos é original e vigorosaem sua radicalização da lógica transcendental kantiana, sem ressuscitara lógica ontológica de Aristóteles ou a lógica dos empiristas ingleses. Alógica de Kant ainda guarda relação com a experiência sensível, aindaque não dependa inteiramente dela. O neokantismo quer ser "mais kantianodo que Kant", comojá se disse".

A Escola de Marburg desempenhou papel importante no combateao materialismo, ao relativismo, ao psicologismo que Husserl tambémcombateu, procurando uma base mais sólida em que assentar o conheci­mento. Hartmann concorda com o postulado de que qualquer objetognoseológico tem sua estrutura ideal e pode ser colocado sob esse pris­ma. Mas rejeita os neokantianos quando estes afirmam que o ser dosobjetos se esgota mediante tal enfoque e que aquela estrutura ideal é o fimde todo conhecimento. Essa posição, temos de concordar com Hartmann,mesmo sem lamentar tanto o fato, atesta o desprestígio da tradiçãoontológica na filosofia ocidental moderna39.

37. W. Windelband, Geschichte undNaturwissenschaji. inPrdludien. Auftdtzeund Reden zur Philosophie und ihrer Geschichte, Tübingen, Mohr, 1924, v. 2, p.142 e s.

38. R. Vancourt, Préfaee, eil., p. 18.

39. Cf. as introduções a Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, cit., p.4 e 5., e a Philosophie der Na!ur - Abrifl der speziel/en Kategorienlehre, Berlin,Walter de Gruyter, 1950, p. 2.

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Capítulo Segundo

AINDA O EMBASAMENTO TEÓRICO

Sumário: 1. Platão. 2. Aristóteles. 3. Hegel. 4. Husserl. 5.Outras influências.

1. Platão

Nossa apreciação da obra de Platão concentra-se sobre quatro as­pectos principais: I) Sua ontologia diante da dicotomia realidade eidealidade; 2) Sua gnoseologia e o conceito de anamnesis; 3) O problemade a virtude ser inata ou adquirida; 4) Seu conceito de justiça.

Hartmann enumera contribuições de Platão que considera funda­mentais: situou as bases do estudo da ética em padrões ideais de bem emal', objetivos e daí superiores à opinião subjetiva, combatendo assim O

niilismo e o relativismo na axiologia; no campo gnoseológico, deve-se aPlatão a doutrina da unidade da consciência (psyque) por trás damultiplicidade de percepções, ou seja, a noção de sujeito do ato de conhe­cimento, das mais marcantes na cultura ocidental, e a "nítida distinção"entre verdade e opinião, possibilitando um conceito sólido de ciência

1. Sobre a importância do dualismo entre bem e mal na filosofia de Platão, cf.H. Kelsen. Die Illusion der Gerechtigkeit - Eine Icritische Untersuchung derSozialphilosophie P/alons, Wien, Manzsche Verlag, 1985, p. \-30.

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(episteme), como veremos2

Platão é também o primeiro a insistir sobre o caráter a priori (emsentido mais geral, como visto, o termo significa independência da expe­riência sensível), indispensável a todo conhecimento, principalmente seeste se pretende científico, isto é, com objeto e metodologia delimitados,sistematizável e transmissível, em suma: apodítico.

É notável a influência de Platão na cultura ocidental. Interessantereparar que, embora seu desprezo pela realidade perceptível empiricamentenão encontre aceitação na epistemologia contemporânea, permanece aconvicção, por assim dizei generalizada, de que conhecer é encontrar, nosujeito,formas de pensamento adequadas ao mundo real. Platão tornouessas formas ideais; os neokantianos as colocaram como estritamentesubjetivas; Aristóteles e Hartrnann as têm como objetivas; mas a partici­pação do sujeito no processo cognoscitivo é ponto mais ou menos pacífi­co nos filósofos.

Hartmann lamenta que a cultura ocidental tenha enfatizadoindevidamente o aspecto sistemático que Platão tentou dar a sua teoria,preterindo pontos de apoio isolados, mas firmes, em favor de teses comoa do "mundo das idéias" e a do caráter ilusório dos objetos sensíveis. Nãose pode deíxar de reconhecer a procedência dessa observação e não ape­nas no que diz respeito a Platão. Tentar-se-á uma explicação para o fatono capítulo final deste livro. Por ora basta verificar como a bibliografiasobre os filósofos, especialmente manuais e obras panorâmicas, tende acompreender as diversas teorias através de sistematizações, o mais coe­rentes possível, em prejuízo dos resultados obtidos na formulação de pro­blemas e nas soluções parciais ou insatisfatórias apresentadas. Assim,por exemplo, Tales "é aquele que disse que tudo era água", Hume "tinhao conhecimento como impossível" ou Kelsen "disse que o direito se resu­me à norma". Claro que é muito mais fácil enganar-se quanto à totalida­de, e que a falsidade do sistema como um todo não implica erro em cadaum dos problemas examinados.

Para Platão, as idéias constituem a verdadeira realidade, da qual a"realidade" empírica é somente cópia imperfeita, válida não em si mesma

2. Cf. N. Hartmann, Ethik, Berlin, Walter de Gruyter, 1949, Cap. 2, p. 26 e s.E Platos Logik des Seins. Berlin, Walter de Gruyter, 1965, passim.

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mas sim enquanto participa do ser essencial (ideal), imperceptível pelosórgãos dos sentidos. Platão parece ter uma concepção toda particular dotermo idéia, reduzindo a realidade ao ideal. Por isso há quem chame derealista a doutrina de Platão; reservando o termo idealismo para a filoso­fia gnoseológica que se inicia com Descartes ou até, mais especificamen­te, para o movimento germânico que tem seus expoentes em Fichte,Schelling e Hegel'. Caso se queira usar o termo idealismo para a filoso­fia de Platão, pode-se chamá-Ia idealismo ontológico, em contraposiçãoao idealismo gnoseológico que começa com os modernos.

Pela expressão ontológico sugerida percebe-se que as idéias plató­nicas são consideradas existentes por si mesmas, independentemente dequalquer pensamento, de qualquer sujeito ou forma de conhecimento; aocontrário, é a existência prévia das idéias que condiciona o ser e o conhe­cer no mundo empírico. Não se pode dizer que Hartmann aceite a preemi­nência ideal da ontologia de Platão, mas ele não permanece infenso àdoutrina das idéias e sua teoria moral e jurídica guarda boa dose deplatonismo. Como veremos à frente, O modo de ser dos valores é, paraHartmann, o mesmo das idéias platónicas.

A separação do universo em dois, o real e O ideal, tem seu inícioconsciente, ou pelo menos seu impulso mais vigoroso, em Platão. Se écerto que a doutrina da imitação - mimesis - já havia sido anterior­mente utilizada pelos pitagóricos, Platão deu-lhe um outro sentido, maissemelhante ao que lhe daríamos atualmente, como bons platónicos quesomos. Para os pitagóricos, a percepção sensível revela uma realidadeexterior e não meras ilusões: essa realidade é a mimesis de uma estruturanumérica (com toda a carga mística que emprestavam ao número) interior,cognoscível apenas racionalmente; mas ambas as dimensões são concre­tas e parte de uma realidade única. Em Platão, diferentemente, a mimesisdirige-se a uma realidade transcendente, que não está nos objetos sensí­veis propriamente ditos mas sim em algo externo a eles. Por outro lado, areconhecida influência da escola de Pitágoras sobre Platão pode explicaras semelhançàs. E as coincidências com doutrinas de diversas igrejasocidentais demonstram a contribuição do platonismo à nossa cultura.

3. M. Reale, Filosofia do direito, São Paulo, Saraiva, 1989, Cap. 9, p. 115 e s.

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6. Notem as semelhanças com o esquema da ontologia de Hartmann. que

discutiremos no quinto capítulo.

ILUSÃO

(CONJECTURA)

PISTlS

(CRENÇA, FÉ, CERTEZA EMPÍRI­

CA)

DlÂNOIA

(CONHECIMENTO MATEMÁTI·

CO)

DlALÉTICA

(CONHECIMENTO FILOSÓFICO)

DOXA

(OPINIÃO)

EPISTEME

(CIÊNCIA)

. {EVIDÉNCIAS EMPÍRICAS

OBJETOS SENSIVEISSOMBRAS

{

IDÉIAS

OBJETOS MENTAISOBJETOS MATEMÁTICOS

Pode-se tomar um exemplo concreto para explicar os esquemas:estou deitado em minha cama observando determinado objeto a uma dis­tância qualquer, na penumbra do quintal, pois ainda não amanheceu detodo, e este objeto me parece algo como uma pequena almofada, umapanela ou uma bola de futebol, não consigo di.stinguir. Com o, nascer dosol, aproximo-me mais do objeto e percebo nItidamente, atraves dos cha­mados órgãos dos sentidos - no caso a visão e o tato -, que aquele

GNOSEOLOGIA

(CONHECER)

ONTOLOGIA

(SER)

do conhecimento, pode-se também lançar mão dos esquemas seguin­

tes6;

Aqui mais pitagórico do que platónico, Hartmann entende que aestrutura da esfera ideal penetra na realidade sensível e constitui partedela; no mesmo sentido, considera o ideal como inferior em atributos,vale dizer, menos complexo do que o real. Também, como veremos, aocolocar os valores no mesmo plano ideal das matemáticas e das essências'fenomenológicas, Hartmann traz componentes platónicos importantes parasua filosofia do direito'.

A alegoría da caverna, tal como exposta em A República, além deexemplificar o decantado talento literário de Platão, revela a estreita uniãoentre sua teoria do conhecimento e sua teoria politica. A situação é aseguinte: as pessoas estão acorrentadas de modo que só conseguem ver ofundo da caverna; por trás das pessoas, entre elas e a entrada da caverna,uma fogueira ilumína o ambiente, permitindo que os acorrentados perce­bam as próprias sombras na parede, que é para eles a única realidadecom que têm contato. O processo que origina o conflito entre o filósofo ea polis desdobra-se então em três estágios: a princípio o filósofo liberta­se das próprias correntes e, podendo olhar ao redor, observa o que sepassa no interior da caverna; a seguir, ultrapassa o fogo artificial e vaipara fora da caverna, podendo contemplar o mundo verdadeiro, ilumina­do pelo sol; finalmente, por estar preso ao próprio corpo, o filósofo temde voltar à caverna e ai percebe quão enganador é o mundo das sombras.Além do conflito com seus semelhantes, para quem a simples visão dofogo causaria sofrimento, o filósofo ainda padece mais por precisar adaptarseus olhos à constante alternância entre luz e sombra e conciliar-se com aprópria perplexidadeS.

Para esclarecer as relações entre o universo de Platão e sua teoria

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4. J. N. Mohanty, Nicolai Hartmann ond Aifred North Whltehead - a studyin recent platonism, Calcutta, Progressive Publishers, 1957, passim.

5. Cf. Platão, A República, Livro 7, n. 514 e s. Para as obras de Platão, ci Thedialogues, trad. J. Harward, Chicago, Encyclopaedia Britannica, 1993 (Oreal Booksofthe Westem World, V. 6); H. Arendt, What is authority?, p. 107-8 e 112, Traditionand the modem age, p. 36, e Truth and politics, p. 237, in Between post ondfuture- eight exercises in politicai thought, New York, The Viking Press, 1980; e J. M.Adeodato, O problema da legitimidade ~ no rastro do pensamento de HannahArendt, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989, p. 32·4.

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objeto é o que chamam uma bola de futebol. Estava apenas no plano dasconjecturas e agora, criadas as condições adequadas - claridade do 'ambiente, proximidade do objeto -, a confirmação atinge o nível dapistis.

Mais longe, segundo Platão, a percepção sensível não nos pode le­var, Podemos melhorar nossa percepção até os limites mais distantes atra­vés de instrumentos e, ainda assim, continuamos no âmbito da doxa e osdados obtidos não progridem em termos de qualidade do conhecimento,permanecem meras opiniões sobre como o mundo empírico nos parece enada permitem dizer sobre a realidade mesma dos objetos. Vê-se que, emPlatão, o termo opinião (doxa) tem um sentido todó próprio, mais amplodo que aquele que lhe emprestamos hoje em dia,

Nosso conhecimento progride em certeza e veracidade ao atingir­mos a diânoia, patamar inferior da racionalidade e da ciência, A expres­são episteme, em Platão, tem também um sentido mais amplo do que omoderno e indica simplesmente o conhecimento correto, verdadeiro. Vol­tando ao exemplo, esse progresso ocorre quando verifico que aquela bolade futebol apresenta, ainda que imperfeitamente, certas peculiaridadescomuns a outros objetos redondos, circulares - que por isso mesmorecebem estes nomes - tais como relações definidas entre as grandezasque os geômetras denominam raio e diâmetro. Nesse plano ainda inferiorda episteme já se unifica e generaliza o conhecimento.

A unidade final, objeto da dialétka, é atingida com a idéia indivisívelde esfericidade, ontologicamente, a origem, e gnoseologicamente, o ob­jetivo de todos os níveis anteriores7,

O desprezo de Platão pela realidade sensível tem origem no mesmopreconceito idealista para que chamamos atenção no capítulo anterior.Uma ciência do direito nos moldes empíricos da era contemporânea teriade situar-se no âmbito dapistis, se se aplicar o esquema platônico,já queo direito, enquanto dado empírico, não passa de uma sombra imperfeita,Daí porque o conhecimento do direito e do Estado se dá na contemplaçãoda idéia absoluta e suprema de justiça, contemplação puramente intelec-

7. O Sócrates platónico discute esse tema com Glauco e Adimanto no Livro 6de A República, n. 484 e s,

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11Ial, apartada da experiência. Estavam prontas as bases para osjusnaturalismos,

No plano da ética, ensina Hartmann, é preciso enfrentar um proble­ma prático inevitável, que foi levantado por Platão, qual seja, determinarse a virtude, os chamados valores são inatos ou se, ao contrário, têm deser ensinados, transmitidos e adquiridos através de uma prática virtuosa.

Platão coloca o problema sob forma de antinomia, explicitando duasposições aparentemente antagônicas: ou a virtude é uma qualidade intrín­seca de cada alma humana virtuosa, e conseqüentemente intransmissível,ou ela é adquirida pela experiência, pelo aprendizado, o que dá o papeldecisivo ao meio ambiente e às formas pedagógicas circunstancialmenteapl icadas em cada caso.

A aceitação radical da primeira hipótese acarreta a impossibilidade,ou ao menos a inutilidade, de uma filosofia dos princípios morais ou dosvalores jurídicos, uma vez que todos trazemos parâmetros éticos desde onascimento. A segunda hipótese leva à conclusão de que um direito euma moral objetivos, válidos em qualquer circunstância, não são possí­veis, tornando legítimas quaisquer formas pedagógicas e confirmando adoutrina dos sofistas sobre a relatividade do conhecimento e negação doabsoluto.

Essa antinomia seria talvez resolvida, nos termos da ciência empíricamoderna, pela prevalência.da segunda hipótese. Mas não é essa a pers­pectiva de Platão, empenhado em demonstrar a falsidade dessa antinomia,inconciliável com uma metafisica de idéias eternas e imutáveis. Para tan­to ele parte de uma analogia com as matemáticas, assumindo que, casoessas hipóteses se excluam no campo da ética, devem também excluir-seem outros ramos do conhecimento. Platão chega então à conclusão deque todo conhecimento verdadeiro é unicamente reminiscência ­anamnesis - ou seja, o conhecimento baseia-se em uma simples tomadade consciência de algo de que já tínhamos certeza inconsciepte. Aqui já énítida a doutrina das idéias inatas.

Pode-se ver essa teoria desenvolvida no diálogo Ménon, quandoSócrates pede a Ménon que chame um jovem escravo para provar queestejá conhece geometria, embora não tenha consciência disso. O papeldo educador e do método pedagógico escolhido é somente o de chamaratenção para algo que o aluno precisa ver por si mesmo porque já era de

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seu conhecimento'. Da mesma maneira, as virtudes morais e os valoresjurídicos fazem parte do ser humano, independentemente de sua vontadeou oe sua consciência cognitiva; trata-se de uma falsa antinomia, pois,embora a virtude seja inata, cabe ao filósofo-educador despertá-la, con­clui Platão.

Hartmann aceita expressamente a tese platónica de que a existênciaapriorística dos valores, anterior e independente de qualquer experiênciaou apreensão, e sua teorização e ensino não se excluem, uma vez que éjustamente por serem inatos que os valores podem ser apreendidos. Rea­parece a doutrina da anamnesis: a pedagogia e o ambiente não são capa­zes de eliminar valores da conscíência do homem, são independentes dele.Apenas o homem sofre influência dos valores por ser ontologicamenteapto, geneticamente condicionado para tanto, condenado a perceber suaexistência.

É ainda com base em Platão, mas também na axiologia de MaxScheler, que Hartmann critica a posição de Kant, entre outros, para quemos valores emanam da vontade e devem ser controlados pela razão: "Comisso, porém, inverte-se a relação entre dever ser e querer. a dever sernão determina o querer, mas sim o querer determina o dever ser. adever ser, que é objetivo, aparece como subordinado e reduz-se a umaexpressão do imperativo, o que equivale a uma objetivização do puroquerer. A vontade subjetiva é que fornece de fato o critério"". ParaHartmann, a vontade não influi sobre o valor; este é que influi sobreela. Ele equipara os valores, como já adiantamos, às essências fenomeno­lógicas e ao que chama entidades matemáticas, todos objetivamenteideais em seu modo de ser.

8. Platão, Fedon, 73 a, b. Cebes resume aí o argumento exposto por Sócratesno Ménon: "Temos disso (da d"outrina da reminiscência) uma prova magnífica: in­terroga-se um homem. Se as perguntas são bem conduzidas, por si mesmo ele dirá,de modo exalo, como as coisas realmente são. No entanto, esse homem seria inca­paz de assim fazer se sobre essas coisas não possuísse um conhecimento e um retojuízo! Passa-se depois às figuras geométricas e a outros meios do mesmo gênero, eassim se obtém, com toda a certeza possível, que as coisas de fato assim se pas~

sam". Trad. J. Paleikat e J. Cruz Costa, São Paulo, Abril Cultural, p. 76 (CoI. OsPensadores).

9. N. Hartmann, Ethik, cit., Cap. 1J. p. 99.

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Até mesmo a teoria do conhecimento especificamen~econsideradaIIpresenta, em Platão, um fundamento ético, o que a afasta diametralmentedas epistemologias modernas. Para ele a sabedori? não pode s,:r P11?curadadesinteressadamente, de forma neutra e desproVIda de emoçoes. E precI­so amor da parte do filosofos, etimologicamente um ama~t~ da sabedo­ria. A episteme jamais será alcançada sem uma aseese erO/lea (de Eros,o deus do amor), uma combinação de razão e em~ção, um querer conhe­cerlO Por meio da sensação amorosa que expenmenta em relação aosobje~os belos que contempla, o homem ~ode :he?ar à contemplação d~sarquétipos, as idéias simples, perfeitas, ImutavelS. a belo e o bem estaocm estreita ligação na filosofia de Platão.

J ' N' olai Hartmann mais de acordo com a perspectiva científicaa IC, . I' .moderna, entende que aS considerações valorativas, os juizos ":,,10 OgICOS,só devem influir na observação se o objeto em questão f~r I.ntnnseca.m.en­te _ ontologicamente - v'alorável, como é o caso do direito, da mUSica,da linguagem, da economia. a conhecimento do universo estritamente

fisico, porém, não comporta valorações. . .Para uma critica da anamnesis, temos de :onvir qu: ta.1 teona e

inaceitável para determinadas espécies de ~?nhe~lme~to, principalmenteaquelas que dependem de observação emptrlca: nmguem pode ser levado,pelo método platónico, a "recordar" que Frei Canec~ escreveu um trata­do de retórica ou que alinda foi fundada em 1537. DI~a-se, em suad~fe­sa que Platão não consideraria essa forma de conheCimento como ngo­ro~amente verdadeira, situando-a, quando muito, n? .âmbito da doxa.Podemos acrescentar que, no que se refere às matemaltc.as dlt~s pu~as,.ométodo platônico da anamnesis parece adequado P?ra mvesltgar mtUl­ções numéricas e espaciais geneticamente transmlltdas, aquelas que seexpressam através dos juizos analíticos.

Uma vez que todo conhecimento realiza um ~deal ~tic~ e que a ex­pressão justiça designa o ideal ético pleno, conduzmd,o a. Ideia do b,:m, odireito é fundamental para o estabelecimento da repubhca de :lat~o. Afunção precípua do direito seria assegurar as regras para efeltvaçao dajustiça na comunidade, na medida do possível.

lO. Tal como é descrito no diálogo Symposium (O Banquete), n. 20~ a 212.Cf., também, J. A. Pessanha, Platão, vida e obra, in Platão, São Paulo, Abril Cultu­

ral, 1979, p. XXII-III (CoI. Os Pensadores).

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A concepção que Platão tem de justiça é curiosa aos olhos moderonos e pode ser expressa sucintamente pela máxima "que cada um cuidedo que lhe compete" ou eufemismos do gênero, já que não há qualquerreferência objetiva para fixação de competências, além da opinião dopróprio Platão". Comparando o Estado ao homem, imagem depois reto­mada por pensadores como Rousseau e Hobbes, Platão observa que am­bos necessitam de estabelecer uma relação de harmonia para unir partese todo e chama a essa relação de justiça. A alma do individuo estará às .boas com a idéia de justiça se o intelecto comandar, a vontade agir e osentimento obedecer; o Estado justo terá sábios no comando, guerreirospara a defesa e artesãos nas demais funções para que forem designados.Quando diz que" ... o que estabelecemos no inicio como dever universale imprescindivel ao lançarmos as bases do Estado é, ao que me parece, ajustiça... "12, Platão faz deste conceito um somatório das demais virtudespoliticas, um suporte indispensável à paz social. O conceito de justiça,contudo, resta vago.

A distinção que Hartmann estabelece entre justiça moral e justiçajuridica tem muito que ver com o platonismo, como veremos no capitulosétimo, adiante.

2. Aristóteles

Quanto a Aristóteles, examinaremos também quatro pontos bási­cos: I) as linhas gerais de sua ontologia enquanto teoria do ser; 2) ocaráter aporético que imprimiu a suas investigações; 3) a divisão do serem estratos e a famosa doutrina das categorias; 4) o conceito de justiça.

O ponto de partida da filosofia de Hartmann, inspirado emAristóteles, é justamente o que denomina a questão do ser ou do enteenquanto ente. Muito embora seu estilo descritivo e c1assificatório pos­sa às vezes sugerir uma preocupação mais gnoseológica do que ontológica,Hartmann sempre enfatiza que trata do ser enquanto tal e não de suas

11. É crítica de B. Russell, History ofWestern philosophy- and its connectionwith politicai and social circumslancesIram lhe earliest times to lhe present day,London, Routledge, 1993, Livro I, Cap. 14, p. 130-1.

12. Platão, A República, cil., Cap. 4,passim, sobretudo o n. 433.

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manifestações, os diversos entes particulares. Em suas ~alavras, a ques­lao do ser considera... "o fato e a possibilidade de as cOisas serem comosao e não a simples evidência de que experimento os entes quando ospercebo ou represento" 13•

Pode-se argumentar que Nicolai Hartmann não consegue chegar aumafilosofia do ser, no sentido aristotélico, m~s.não se podem negar ~sóbvias intenções de se inspirar na obra do Estagmta. A chamada .questaoontológica será ainda discutida aqui e o leitor poderá conclu~r por s,mesmo se procedem as críticas à infidelidade de Hartmann diante dométodo aristotélico e diante da complexa diferenciação entre ser e ente.Pensamos que, mesmo sendo adequado afirmar que toda filosofia partede uma ontologia expressa ou implicita, a colocação do problema do serrefere-se a uma metodologia e a uma perspectiva ontológica es~e.cí~c~s,

o que permite relacionar Hartmann a Aristóteles. Hartmann vaI ~n~lslIr,

inclusive, na questão aristotélica do ser, afirmando que toda alI~ldade

gnoseológica é de importância secundária em relação à on~ologla: ':Aanteposição da ontologia à gnoseologia não é construção teórica ~a~ Sl~

a ordem natural... Não a atitude ontológica mas sim a gnoseologlca eartificial"14.

Outro ponto de contato entre os dois pensadores é a insistência so­bre o caráter aporético que toda filosofia que se pretenda ont~lógi~adeveassumir. É principalmente em Aristóteles que Hartmann ~7 mS~Ir~ parasua metodologia, a metafisica dos problemas, e chama-o o classlco daaporética'" ainda que reconheça aspectos aporéticos em filósofos moder-

, 'd " Ir "15nos como Descartes, Kant ou Hegel, consl era-os apenas aços .Hartmann também menciona Aristóteles e Platão como "representantes

13. Na síntese de A. F. Pereira, Estado e direito na perspectiva.da li~ertação

- uma crítica segundo Martin Heidegger, São Paulo, Revi~t~ dos TnbunaIs, 1,980,p. 59. Conlra a opinião de A. Pereira e defendendo a aulentIcldade da onlologla d~

N. Hartmann enquanto teoria do "ente enquanto ente" está H. Kuhn. ~ICO~JHartInann's ontology. Philosophy Quarterly, v. I, p. 292,1951. Cf., lambem, .Reale, Verdade e conjelura, Rio de Janeiro, Nova Flonleira, 1983, p. 27-30.

14. N. Hartmann. Grundzüge einer Melaphysikder Erkenntnis, Berlin, Walterde Gruyler, 1946, Cap. 23, p. 183. .

15. L. Lugarini, Nicolai Hartmann, in Les grands courrants de la penseemondiale conlemporaine. MiJano, 1964, p. 668.

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quase puros" do restrito círculo de filósofos que "pensam por problemase não por sistemas que violentam o caráter aporético da filosofia"16

No terrenoda teoria jurídica, o método aporético mostrou-se profí­CU017.

Com sua descrição de um universo estratificado em regiões,Hartmann adere à tradição inaugurada por Platão. Apesar das controvér­sias, contudo, a ontologia de Hartmann segue predominantemente o mo­delo aristotélico, parecendo adequado afirmar que "... não há nada maisaristotélico em seu pensamento do que a idéia de uma seqüência de for­mas devidamente encaixadas"". A própria maneira como se organizamas obras de Aristóteles mostra essa estratificação: os estratos do ser, porexemplo, são examimidos no tratado Sobre a alma, o qual inicia a sériede escritos referentes ao mundo orgânico, posteriormente conhecidos comoParva naturalia. Aí Aristóteles faz a distinção entreprincípios modllis eclltegoritlSjundllfnentllis, que Hartmann vai retomar, conforme veremosno quinto capitulo.

A grande diferença entre as ontologias de Hartmann e Aristótcles éque este considera os entes complexos - isto é, aqueles que apresentamcaracteres de estratos distintos, como os seres vivos, por exemplo, quesão orgânicos e inorgânicos - como simu/tllnellmentepllrticipllndo devários estrlltos, contrariando um dos axiomas de Hartmann, segundo oqual todo estrato mais complexo se apóia em estratos menos complexosque necessariamente o compõem. A relação entre os estratos é vertical enão horizontal. Isto significa que os diversos estratos - o orgânico e oinorgânico, para ficarmos no exemplo - não constituem simultanea-

16. N. Hartmann,Abhandlungenzur Philosophie-Geschichte, v. 2 dos KleinereSchriften, Serlin, Walter de Gruyter, 1957, p. II. Cf., também, A. Campo, Lagnoseologia de fiarlmann y "el pensamienlo filosófico y su historia". EI meladocrítico, Montevideo, Claudio Garcia, 1944, p. 88-99. Note-se que Hartmann, emescritos posteriores, já não enfatiza tanto a posição anti-sistemática.

17. São exemplos T. Viehweg, Topik und Jurisprudenz - ein Beitrag zurrechtswissenschajt/ichen Grundlagenforschung. München, Beck, 1974, e J.Llambias de Azevedo, Eidética y aporélica dei derecho ~ prolegomenos a lafilosofia dei derecho, La Pla!a, Espasa-Calpe, 1940.

18. H. Kuhn, Nicola; Hartmann's Ontology, Philosophy Quarterly, cit.,p. 305. usa a expressão "sequence oftelescoping forms",

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mente os entes, mas sim que o estrato "mais alto" - o ~rgânico - é um"algo mais" construído sobre o inorgânico. Eles não estão em um mesmoplano. O direito, por exemplo, produt~ d~ espírito objetivo, nãoyodeserpensado sem um espírito pessoal subJetlvo, qU,e 'p~r sua,v:z nao eXistesem um corpo orgânico, o qual precisa de matena 1l10rgamca, a qual se

rege por relações ideais.Podemos dizer que Aristóteles parte das categorias para o e~t~ con­

creto, enquanto Hartmann faz o caminho inverso. Ha~m~n.n dlfla ~u.enão se pode pensar no homem espiritual sem o estrato blOloglco, orgam­co; mas não porque o ser humano participe ao mesmo tempo do estratoespiritual e do biológico, como diria Aristóteles, mas Sim po:~ue todo serespiritual precisa de apoio biológico. Diante.dos dados em~lflcos de quedispomos - o homem é o único ser conheCido que podenamos c~amarespiritual no sentido dado por Hartmann - d,à .na mesma. Mas ha umadistinção: uma inteligência ligada a u~a m.atert~ ou a uma fo~a qual­quer de energia inorgânica se adaptana mais facllment.e ~o Ul1lversodeAristóteles, cujas categorias não se superpõem. com a_rtgl~ezdefendidapor Hartmann. Para este, por exemplo, não ha relaçoes d~re.tas entre oorgânico e o espiritual, sem a intermediação do estrato orga~l~o.

Fala-se em "dois Aristóteles", indicando orientações dlstl~tas, em­bora não contraditórias, na obra do Estagirita. Se tal observaça~ ~roce-

d N· olai Hartmann certamente não prefere o Aristóteles da retonca, dae, IC . A . t 't I .

ét ' da tópica o Aristóteles mais cheio de dúvidas. Seu rtS o e es epo Ica" ....o da ética, da política, da astronomia, da física. E a etlca e o que mais nos

interessa aqui.Ai a influência de Aristóteles sobre Hartmann é tão grande quanto

difusa, ao longo das três partes da Etltik. Respeitadas as :undam.:nta­ções diferentes, é de Aristóteles que Nicolai Hartmann retira a Idem ~eque os valores - as virtude~, como foi traduzi?o o vocábulo greg~ mal~próximo - podem ser objetlvamente hIerarqUIzados segundo sua mtensidade no espírito humano. Hartmann não està de acordo ~om os m~tt~esaristotélicos mas aceita que há uma discriminação quahtatt~a e hlerar­quica, perceptivel pela observação e reflexão.filosófica. ConJ~gada ~oma forma ideal de existência proposta por Platao, esta perspectiva vaI darconteúdo axiológico objetivo à filosofia do direito de Hartmann, como

veremos.

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Além dessas semelhanças de caráter mais geral, outra relação im­portante com a filosofia de Aristóteles está na concepção dejustiça pro­posta por Hartmann. Vejamos o que pensava Aristóteles de maneira amais sucinta l9 , '

Comecemos com a afirmação de que Aristóteles considera ajustiçaem pelo menos dois sentidos distintos: como valor moral, sob influênciado platonismo, e como virtude política característica, onde está sua con­trib.uição primordial à teoria dajustiça. No primeiro sentido, ajustiça é omeIO-termo entre dois extremos, é a base dos demais valores: entre acovardia e a temeridade, a coragem; entre a humildade e a vaidade, oamor-próprio; entre a timidez e o descaramento, a modéstia. E assim pordiante.

. No se~undo sentido, social, Aristóteles retoma a distinção entre oJusto legal, Imposto pelo Estado, a Polis, e o justo natural. Sua influên­cia sobre Hartmann é nitida também aqui e seria dificil exagerá-Ia emrelação ao pensamento ocidental como um todo. Desde seu inicio, a filo­so~a.e a politica do direito abrigam a idéia de um direito independente emaIS Importante do que aquele efetivamente em vigor, tanto em teoria­nas diversas correntes jusnaturalistas tradicionais ou em suas variantes~~dernas-:- co~.ona prática, a mobilizar reações contra um direito po­~ltlVO msatIsfaton02o• A convicção de que o ser humano tem direitos quemdependem do poder político, ao qual cabe apenas reconhecê-los tem-semostrado importante em nossa cultura. '

O que Hartmann apreende de Aristóteles é que a justiça tambempode ser.~nca.rada.comou~ valor especificamente intersubjetivo,jurídi­~o. A .dela ans~otel~c~deJustiça como "igualdade na devida proporção",mspJrada nos pltagoncos, transparece nítida na ética de Hartmann comose verá adiante. Além disso, Hartrnann reverencia a importância históri­ca e atual da lógica aristotélíca e de sua teoria da ciência exposta nos

. 19. Aristóteles trata do assunto no Livro 5 da Ética a Nicômaco, 1129a e s.Nlcomachean ethics, trad. W. D. Ross, Chicago, Encyclopaedia Britannica 1993(Oreat Books ofthe Westem World, v. 8). E o capitulo 48 da Ethik de Har;manndI., p. 438-48, é dedicado ao conceito de virtude em Aristóteles. '

20. Cf. J. Haesaert, Théorie génerale du droi!, Bruxelles, Émile Bruylant,1948, LIvro 3, p. 512 e s.

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Segundos analit/cos. Quanto à forma de expressão, como a grande maio­ria dos filósofos ocidentais, Hartmann adere ao método classificatório eao tom professoral de Aristóteles, diferentes do misticismo matemático eaté visionário das escolas pitagóricas e platónicas.

Apesar disso, não se deve superestimar a influência de Aristótelessobre Hartmann; como este mesmo diz no prefácio da Elh/k, ela é bemmenor do que a de Kant, Scheler e até Nietzsche (!). Hartmann rejeita obem como princípio diretorda ética e sai da tradição platónico-aristotélicae cristã. Embora assimile algo da doutrina aristotélica da justiça, emambos os sentidos, Hartmann a considera mais em seu plano moral, pla­tónico, do que no sentido mais especificamente juridico que tentaremosdesentranhar mais à frente.

Se a vontade não se destaca na ética de Hartmann, o mesmo não sepode dizer da ética de Aristóteles, considerado precursor do conceito devontade na filosofia ocidental, como criador do termo pro-a/resis". Dife­rentemente de Platão e Kant, por exemplo, Aristóteles começa assumin­do que a razão é por si mesma incapaz de originar o movimento; já que omovimento existe, prossegue ele, é preciso saber o que, na alma humana,origina o movimento. A razão controla os movimentos da alma, taiscomo o desejo e a inclinação, mas é preciso saber a fonte desses movi­mentos. Aí Aristóteles cria o conceito de pro-airesis, a escolha entre duasalternativas dadas22 •

Em termos da filosofia de Hartmann como um todo, a influência deAristóteles é quiçá a mais presente: o método aporético de investigação, apreocupação com a taxonomia, o problema do ser como objeto dametafisica, a análise categorial como meio para atingir a parte cognoscíveldo ser... É sobre este pano de fundo aristotélico que convergem as outrasinfluências: a objetividade ideal platónica dos valores, o crivo critico deKant, o ser espiritual de Hegel, a fenomenologia de Husserl, a ética ma­

terial de Scheler.

2J. Cf. H. Arendt, The life of/he mind- Wil/ing, New York-London, Harvesl/HJB, 1978, p. 53-63. Para Arendt (p. 64), a vontade aparece claramente definidapela primeira vez em Paulo de Tarso, na Epístola aos Romanos, mas Aristóteles éseu precursor.

22. Aristóteles, É/ica a Eudemo, 1223a10, e Ética a Nicômaco, cll., 1139a3 1­3; mas o básico está em Sobre a a/ma (De anima), 433a21-4.

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3. Hegel

Grosso modo, podemos dividir o movimento do idealismo alemãoem três fases básicas - esquecendo os chamados românticos - segundoseus maiores expoentes: Fichte, Schelling e Hegel, este o que nos interes­sa pela influência que exerceu sobre Hartmann. Vejamos então, inicial­mente, o contexto idealista em que nasceu a obra de Hegel e sua dialéticado espírito, para depois tratarmos do problema da autoconsciência e dosdoze pontos sobre o ser espiritual que, segundo Hartmann, forneceram asbases da ontologia do espírito.

Fichte pretende ser o verdadeiro, fiel continuador de Kant e, maisdo que isso, chega a acusar o próprio de infidelidade ao método critico.Fichte propõe-se a resolver dois dualismos, segundo ele deixados obscu­ros por Kant: de um lado, a dicotomia entre mundo cognoscível e coisaem si; do outro, a oposição entre razão pura teorética e razão pura práti­ca. Com esse objetivo, interioriza a coisa em si, entendendo-a como opróprio eu humano diante de si mesmo, o resíduo de subjetividade queresta em cada um de nós, após abstraída toda experiência empírica. Esseseria o princípio transcendental unificador de toda a filosofia. A subjeti­vidade, em Fichte, passa a ser a condição de possibilidade da própriarealidade objetiva. É talvez o mais subjetivista dos filósofos, mas de umsubjetivismo ontológico, absoluto, que em muito difere do subjetivismocético dos sofistas, por exemplo. Examinado mais de perto, o subjetivismode Fichte não implica relativismo e merece esse nome somente em sentidoliteral, etimológico, pois seu eu é universal e absoluto, objetivo.

Pondo de lado as diversas fases por que passou o pensamento deSchelling e tentando resumir a parte que mais nos interessa nessa intro­dução a Hegel, podemos dizer que ele procura superar o idealismo subje­tivo de Fichte, calcado no conceito do eu, emprestando uma maior impor­tância ao objeto. O problema central de Schelling, e aí ele se assemelha aFichte, continua a ser a busca do absoluto através da superação dos pro­blemas levantados por Kant. Schelling, porém, não busca o fundamentoabsoluto no sujeito mas na indistinção entre sujeito e objeto. A relação,ou mesmo identificação, que ocorre entre sujeito e objeto no atognoseológico, não se dá a posteriori, após o ato de conhecimento, mas éa condição de possibilidade de tal ato, anterior às aparências de subjeti-

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vidade e objetividade. O ser absoluto que fund.amenta o co~heci",lento éoriginariamente indistinto e as noções de sUjeito e objeto sao denvadas,posteriores ontologicamente. . . _

Nesse contexto surge Hegel, sugerindo não Ul~a Ide.nlIfi,:açao massim uma síntese entre sujeito e objeto, na qual as antmomlas sao ao mes­mo tempo superadas e conservadas, em uma visão da realIdade ~omodialética do espírito que se processa na direção do absoluto, da smtesetotal. Aí a originalidade de sua metodologia. Se ~ada relação entr: umsu'eito e um objeto se sintetiza em um nível supenor?e co~preensao,ofi~ do processo é o espírito absoluto, a unidade que da sentIdo ao mundoe elimina a dicotomia entre o eu e o não-eu. Hegel, no fundo: to~a porbase a equação de Fichte: sujeito = pensamento p:nsante e objeto - pen~

sarnento pensado. Opensamento é oprocesso unificado~de a~bos. Dat.I bre afirmação de que o real é racional e o raCIOnai e real. O

sua ce e . 'd d ve sermétodo é então a dialética constante entre obJeto e senlI o, que eentendida no contexto unificado de ser e pensar.

Hegel aceita a dicotomia kantiana entre entendime~t~ \Ver.stand).erazão (Vernurift). O primeiro momento do pensamento dlalelIco ~ ana~ll1­co divide a totalidade em partes estáticas, o segundo momento e orgam­co: totalizador. A síntese deles é o pensamento filosófico, o "pensamentodo conceito".

O espirito aparece no processo dialético quando o meramenteanimico o psíquico deixa de ser apenas em si, como no mundo amm~l, epassa a ~er também~ara si, ou seja, consciência. O e~pír.ito, na :ermm.o­logia característica de Hegel, é definido como a e~~en:Ia que e em SI eara si que simultaneamente se realiza como conSClenCla e s~ r~pres:nta

p. ' 23 D'z ele' "A alma ou o espírito-natureza conslItUl o objetoa SI mesma. I • • d ..da antropologia... A consciência é o objeto da fenome?~lo~Ia o ~Splfl­to ... O espírito que determina a si mesmo enquanto sUjeito e o objeto.dapsicologia"". Hartmann aceita de Hegel o papel pnmordlal da consClen-

23. Utilizamos edições distintas: G. F. Hegel, Philosophie de. Geistes, A.

B.euroler (org.), Jena, Gust.v Fischer, 1927; Grundlinie~ der Phl'osOP~te ~;:::h~s_ Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundnsse, Sam..t11C e I . d .Hoffmeister (erg.), Hamburg, Felix Meiner. 1955, v. 12; e Phanomeno agre esGeistes, Werke, Frankfurt •. M., Suhrkamp, 1970, v. 3.

24. G. F. Hegel, Philosophie des Geistes, cit., § 387, p. 120.

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cia na percepção que temos da realidade espiritual, já que é ela quemrevela o espírito enquanto fenômeno, é ela quem nos mostra a existênciado espírito.

Não se deve perder de vista o caráter cíclico e totalizador da dialéticade Hegel. Se se observa apenas a fenomenologia hegeliana do espírito, oespírito subjetivo aparece como meramente para si; o espírito objetivo éapenas em si e somente o espírito absoluto é em si e para si, enquantosíntese dos momentos anteriores. Mas se se examina o conceito de espíri­to subjetivo sob o prisma da dialética, vê-se que ele é em si e para si comrelação à tese e à antítese que se uniram para constituí-lo, mesmo quesimultaneamente seja simplesmente em si como tese para formação deum estágio superior, pois constitui o primeiro estágio do ser espiritual. Oem si anterior seria, por exemplo, o substrato biológico, a parte anímaldo ser humano; o para si, por seu turno, se revelaria na consciência,aquela que se representa a si mesma. A síntese, nesse sentido em si e parasi, seria a pessoa humana. O processo continua.

O ponto culminante do espírito subjetivo é, então, a consciência queo caracteriza. Mas trata-se de uma consciência ainda abstrata, meramen­te para si, ensimesmada25 . O espírito subjetivo em Hegel tem consciênciaapenas parcial de si mesmo, posto que seu ambiente de formação, o espí­rito objetivo, e sua base ontológica, o espírito absoluto, são-lhe inatingí­veis em sua plenitude. Daí Hartmann chamá-lo de espírito gnoseológico,no sentido de que vive na busca do conhecimento de que tem consciênciaincompleta.

Esta consciência gnoseológica, intencional, que se projeta em rela­ção a objetos a ela externos, característica do espírito subjetivo, é ausen­te do espírito objetivo. Este é unicamente em si e não tem consciência desua identidade, surge da exteriorização a que está compelido o espíritosubjetivo. "O espírito objetivo é a idéia absoluta, mas a idéia absolutaque não existe a não ser em si."26

Mesmo sem autoconsciência, o espírito objctivo constituí o amálgamainexorável essencial à consciêncía do espirito subjetivo por ele moldada.

25. Idem, § 385, p. 112.

26. Idem, § 483, p. 575.

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A inadequação das consciências individuais diante do espírito objetivo éinsuperável: o espírito subjetivo tem consciência nítida do objetivo, seuberço e seu ambiente de desenvolvimento, mas incompleta. Ambas asmanifestações do espirito são finitas, limitadas. A filosofia sena o mo­mento máximo do espírito, fruto de uma evolução de formas de expres­são mais primitivas como a arte e a religião.

É quando o espírito subjetivo se projeta externamente, constituindoo espírito objetivo, mostra Hegel, que aparece o direito como rela~ão

intersubjetiva especifica. A principio ele é abstrato, revelando-se bas~ca­

mente no direito privado: a liberdade de vontade, puramente subJetlva,não é mais do que uma liberdade abstrata, interna, virtual; mas já revelao que há de essencial no ser espiritual e, por extensão, no direito: "Asubstância do espírito é a liberdade, quer dizer, a faculdade de não depen­der de outro senão de si mesmo... O espírito é a noção que existe por si, anoção realizada que tem a si mesma por objeto"27

O primordial na realidade juridica não está na regulação externa daconduta, na coercitividade, na limitação recíproca da liberdade ou em umsistema de normas para decidir conflitos. Tudo isso está presente no di­reito de Hegel, mas é secundário: basicamente o direito é a própria liber­dade. A vontade, o ponto de partida, implica liberdade e esta começa como espírito subjetivo, individual, pois " ... a vontade é o espírito e este é oem si livre, o que jamais tem seu destino fora de si". Com a "descobertado reino do espirito", feíta por Hegel, " ... começa um novo tema na filo­sofia"". Pode-se pensar que semelhante apologia da liberdade leve a umateoriajurídicademocrática mas isto não ocorre necessariamente em Hegel,pois a vontade forte e organizada do Estado pode a~i~uilar.as.vontades

individuais e fazer permanecer a "vontade" do espmto obJetlvo ou doespírito absoluto de que o Estado é manifestação. O termo von/ade temum sentido todo metafórico, como se vê.

O primeiro momento dialético do direito, dizíamos, é então abstratoe caracteriza-se pelas relações jurídicas intersubjetivas. Mostra-se atra-

27. Idem, § 382, p. 98. E Grundfinien der Philosophie des Rechls, dt., § 298,p.259.

28. N. Hartmann, Die Philosophie des deulschen fdealismus, v. 2 (Hegel),Berlin, Walter de Gruyter, 1960, p. 295.

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vés de figuras e conceitos como propriedade e contrato. O direito subje­tivo nega-se a si mesmo ao contrapor-se a outras subjetividades, mascaminha em direção à sintese ao reconhecer os mesmos direitos em ou­tros sujeitos. Aí começa a abandonar seu autofechamento, projetando-separa fora e objetivando-se.

O segundo momento é o da moralidade subjetiva (Moralitat), antí­tese do primeiro. Moralidade aqui compreende também o direito, signifi­ca o somatório das subjetividades, uma objetividade ainda formal e abs­trata, baseada em relações intersubjetivas que ainda não constituem sin­tese mas meras antíteses recíprocas. Envolve conceitos ainda separadoscomo os de propósito (Vorsatz) e intenção (Absicht). No otimismohegeliano, mesmo quando o sujeito se utiliza de sua "naturezajurídica",livre, em proveito próprio, sua vontade realiza um grau mais alto, objeti­vo, do direito: "Pelo contrato eu tenho propriedade mediante a vontadecomum, pois é interesse da razão que a vontade subjetiva chegue a seruniversal e que se eleve a tal realização"; ou: "De um ponto de vistaracional, é tão necessário que os homens entrem em relações contratuais- presenteiem, troquem, negociem e assim por diante - quanto quetenham propriedade"".

O terceiro momento de formação do direito é o da moralidade obje­tiva ou "eticidade" (Sittlichkeit), constituindo instituições como a famí­lia, a sociedade civil e, finalmente, o Estado. Na família surge o senti­mento ético e, através do amor, a subjetividade transcende a meraintersubjetividade, pois o sujeito renuncia a si mesmo e forma uma novarealidade, sintética. As relações entre as famílias constituem a sociedadecivil, que Hegel denomina Estado externo, ainda antitético. Já o Estadopropriamente dito é a universalidade abstrata da sociedade civil que seconcretiza e toma consciência de si mesma. Hegel refere-se ao Estadocomo representante de Deus no mundo, uma encarnação mais do quemeramente metafórica da ética e do direito em sentido própri030. Com­preende-se a simpatia que os governantes nutriam pelo filósofo.

29. G. F. Hegel, Grundlinien der PhUosophie des Rechls, cit., § 71, p. 78.

30. Cf. R. Czerna, Direito e Estado no idealismo germânico. Posições deSchelling e Hegel, São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,lese,1981,p.172es.

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Entende-se também por que se chamou Hegel de um filósofo totali­tário. Não nos parece ser este o caso, contudo. Na verdade, Hegel recusaa oposição, até a distinção entre indivíduo e Estado. Ele foi caracteriza­do de romântico e idealista, mas pode-se ver Hegel como um realista,dada a ambigüidade da dicotomia idealismo-realismo, quando ele diz queo tribunal da históría julgará a síntese adequada. Sua escatologia nãodeixa de ser otimista, no sentido de que toda síntese está de qualquermodo mais perto do espírito absoluto, da realidade do ser. O marxismoherda de Hegel esse otimismo, sem dúvida.

Nicolai Hartmann enumera expressamente, em seu tratado sobre oser espiritual, algumas teses que considera essenciaís na filosofia doespíríto de Hegel". Pode-se achar que essas ínterpretações não corres­ponderiam fielmente ao pensamento de Hegel mas não é este o pontoaqui, poís o objetivo é determinar a influência de Hegel sobre Hartmann.Este mesmo reconhece expressamente o caráter incompleto de sua enu­meração.

Hartmann entende que a filosofia de Hegel constitui um marco nahístória das idéias no Ocidente, transformando a metafísica racional istado idealismo em uma metafisica do espírito. Em Hegel, o espírito objeti­vo é uma manifestação espiritual ontologícamente superior ao espírito decada indivíduo, possuindo um modo de ser próprio e distinto, do qual osindivíduos são expressões parciais e imperfeitas. A tese básica é que "oespírito é tudo"; ele é a substâncía metafísica inclusive dos seres não­espirituais, meramente materiaís. Essa substância espíritual não é apenasportadora (Trager) do processar cósmico mas também seu guia (Leiter),pois é a razão - do espírito - que governa o mundo.

Para Hegel, a essência da razão é a liberdade e o objetivo final dahistória é sua realização, sua auto-realização. A história vai-se definin­do, então, como o progresso da liberdade na consciência do espírito hu­mano; não basta usufruir da liberdade, é preciso também saber, ter cons­ciência dela. Não é unicamente o fim da história no absoluto que interes-

31. Para o que se segue, cf. N. Hartmann, Das Problem des Geistigen Seins_ Unlersuchung zur Grundlegung der Geschichlsphilosophie und derGeistswissenschaften, Bcrlin, Walter de Gruyter, 1949, Introdução, p. 6-9.

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sa, mas o próprio processo histórico, no qual cada momento é único eirrepetivel.

Semelhante processo histórico é assim uno no espírito do mundo(Weltgeist), embora isso não o impeça de se desdobrar em formas distin­tas, na multiplicidade dos espíritos dos povos (Volksgeister), cada qualcom seus princípios espirituais. Esses princípios conformam as naçõesmuito antes de que se tome consciência deles, atuando " ... como umadeterminação interior do destino, como uma missão obscuramente senti­da... "; a consciência do espirita subjetivo é incapaz de controlá-los. Odesenvolvimento das relações entre os espíritos subjetivo e objetivo res­ponde pelo que Hegel denomina infância,juventude e velhice do espiritado povo, evolução que vai da fase em que o indivíduo sente-se parte dogrupo social, e nada é sem ele, até a fase de desintegração, quando osindivíduos se isolam do grupo e o tecido social se esfacela, ensejando umnovo espírito do povo.

O papel do espírito subjetivo no processo histórico é todavia bas­tante significativo, ainda que às vezes mal interpretado. O sentido daindividualidade não está em arrastar o grupo nesta ou naquela direçãomas sim em captar o íntimo desenvolvimento do espírito objetivo e revelá­lo aos indivíduos menos sensíveis ou menos sagazes, suprindo assim ainevitável falta de consciência específica do ambiente espirítual. Como arealidade histórica consiste unicamente no "curso constante e intimamen­te necessário do espírito objetivo", qualquer tentativa de alterá-la pelaforça é ilusória e estará fadada ao insucesso. Não há objetivos ou ideolo­gias a serem realizados pois, como disse Hegel, a história do mundo é oseu próprio tribunal ("die Weltgeschichte ist das Weltgericht").

Observe-se que Hartmann não se furta a modificar a terminologiahegeliana. As diferenças entre as duas teorizações do que ambos chamamser espiritual, quer dizer, os pontos em que Hartmann procura se dis­tanciar de Hegel, serão observados com mais detalhe no capítulo nono,adiante. Com essa introdução sumária ao pensamento de Hegel, parece­nos que são fornecidos elementos importantes para compreensão daontologiajurídica tentada pelo próprio Hegel e, principalmente, por NicolaiHartmann.

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4. Husserl

A preocupação inicial de Edmund Husserl é refutar o psicologismo,um dos setores preponderantes do movimento filosófico conhecido comonaturalismo, muito em voga no pensamento europeu do início do século eainda hoje presente. Para o psicologismo, grosso modo, o fundamento dagnoseologia pode ser descoberto pela observação do comportamento dosujeito enquanto conhece, isto é, pela descrição de seus processos psíqui­cos durante o ato de conhecimento. A teoria do conhecimento precisatomar por base fatos empiricamente perceptíveis, da mesma maneira comosão empíricos os elementos envolvidos no processo, tais como sujeito,objeto, causa, efeito, consciência, percepção, memória.

Husserl insurge-se contra isso. Uma filosofia universal e rigorosa,com pretensão de fundamentar todas as ciências particulares, não podepartir de dados exclusivamente empíricos, por mais que se amplie o con­ceito de dado empírico, como tentou o psicologismo. Afenomenologia,como Husserl denominou seu método, pretende achar o sentido dos fa­tos, não podendo, por isso mesmo, resumir-se a eles.

Husserl sabe que os fatos de que parte sua descrição fenomenológicasão empíricos, particulares, casuísticos, vez que a realidade se nos apre­senta individualizada. O que defende é que o resultado dessa descriçãonão tem o mesmo caráter empírico, ou seja, o ato de conhecimento formaum tipo ideal do fenômeno observado e descrito. Esse tipo ideal, aindaque revelado a partir de dados empíricos, mostra uma estrutura apriorísticaque independe do fato de que partiu. Note-se a influência de Kant. Aouniverso formado por tais essências, Husserl chama região eidética (dogrego eidos): "Toda ciência de fatos (ciência experimental) tem funda­mentos teóricos essenciais nas antologias eidétícas"32.

Essa essência eidética é responsável pela nossa capacidade deconceituar objetos individuais que não tenham participado ainda de nos­sa experiência anterior, a solução de Husserl para o antigo problema dosuniversais. A passagem da idéia para o símbolo, para o discurso, tem

32. E. Husserl, Ideen zu einer reinen Phiinomen%gie undphanomenologischen Philosophie, Gesammelte Werke, W. Blemel (org.), Haag,Martinus Nijboff, 1956, v. 3, P". 23-4.

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preocupado os filósofos desde longa data: a idéia tem a vantagem derepresentar mais nitidamente os objetos e a desvantagem daincomunicabilidade; o símbolo, por seu turno, pode ser transmitído atra­vés da linguagem mas perde em conteúdo, expressando-se através deassociações e outros tipos de relações discursivas, como metáforas,metonímias, elipses, anacolutos etc.

A solução de Husserl para o problema é engenhosa: a essênciaeidética faz com que reconheçamos diferentes objetos sob um mesmosímbolo ou conceito, mesmo que aquele novo objeto se apresente clara­mente distinto de todos os objetos, que tenhamos observado anteriormen­te em nossa experiência, aos quais tínhamos atribuído aquele mesmo con­ceito. A essência eidética de um objeto é obtida fazendo-se os dadosempíricos acidentais percebidos naquele objeto variarem até onde neces­sário, libertando-o das contingências que o individualizam. A tarefa dofilósofo é separar o acidental do eidético: Husserl confia que haverá fa­talmente um ponto invariável, responsável pelo fato de aquele ente emquestão ser tal qual é, a essência sem a qual ele nada seria. Note-se asemelhança com as idéias platónicas.

Tomemos um exemplo simples: o conceito de "vegetal". É precisoinvestigar seu sentido intrínseco. Este não se baseia certamente no tama­nho, na cor ou no número de folhas do objeto. Estes são acidentes. O fatode ser vivo e privado de auto-locomoção, por exemplo, pode ajudar; ouentão o fato de possuir clorofila e realizar a fotossíntese. Se se descobreque há vegetais que não possuem clorofila e não realizam a fotossínteseo método fenomenológico tem que procurar outro caminho. A dificulda:de prossegue quando se verifica que cada um dos conceitos utilizados nadefinição de um outro conceito precisa também ser submetido à reduçãofenomenológica. Se tomo o termo "livro", por exemplo, vejo que o fatode poder ser lido e comunicar algo de uma pessoa para outra parece serum dado essencial do objeto; mas isso não seria suficiente, já que revistase receitas também podem ser comunicadas pela leitura. Para os objetivosaqui podemos ficar com essa explicação. O método fenomenológico nãoé simples, porém, e seus próprios seguidores divergem radicalmente. Opróprio Husserl jamais reconheceu em Hartmann, ou em Heidegger, aaplicação correta de seu método.

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Husserl parte do conceito de intencionalidade da consciência"como a atividade básica do ser humano. Isso significa que todo pensa­mento é dirigido a algo, que toda tomada de consciência é intencional­mente projetada em direção a um objeto externo ao próprio sujeito. Esseé o dado ontológico. Sobre ele Husserl teoriza: "Todas as vivências quetêm essas características essenciais em comum são chamadas 'vivênciasintencionais' (atos no sentido mais amplo das Investigações Lógicas); namedida em que elas são consciência de algo, elas são 'intencionalmentedirigidas' a este algo"J4.

Nesse momento hilético anterior, o eu e o não-eu (o mundo) aindanão estão separados, o que implica a unidade da consciência, base detodo conhecimento, quando se distinguem os atos constitutivos da cons­ciência, a experiência intencional que o psicologismo enfatizou, tais comopercepção, memória, sensação, c as essências, a experiência essencial aque tais atos se dirigem". Aos primeiros Husserl chamou noesis e àsúltimas, noemas, seu estudo compreendendo respectivamente anoética ea noemática. A tarefa da filosofia fenomenológica consiste em observare descrever essa correlação unitária'·.

Correlacionados noesis e noemas, o sujeito cognosccnte percebe asontologias regionais, as regiões do ser que se oferecem ao conhccimen-

33. Sobre a tese husserliana da "intencionalidade da consciência", aproveita­da por Hartmann, cf. H. James, Nicolai Hartmann's study ofhuman personality.New Scholosticism, v. 34, p. 227,1960.

34. E. Husserl. ldeen zu einer reinen Phtinomen%gie undphiinomenologischen Philosophie, cit., § 36, p. 80.

35. Cf. L. Vilanova, Teoria das formas sintátieas (Anotações à margem dateoria de Husserl), Estudos Universitários, v. 9, n. 3, p. 5·75, Recife, ImprensaUniversitária, 1969; e C. Cassio, La norma y el imperativo CD Husserl, RevistaBrasileira de Filosofia, v. 10, fase. 1, p. 43-90, Rio de Janeiro, Instituto Brasileirode Filosofia, 1960.

36. E. Husseri, Ideen zu einer reinen Phanomen%gie undphiinomenologischen Philosophie, eit., Cap. 3 (Noesis und Noema) e 4 (ZurProb/ematik der.noetisch-noematischen Strukturen), Parte 3, e § 97, p. 242 e s.Também sobre o carâter ôntico da noemática, cf. E. Husserl, Meditacionescartesianas, Irad. M. Presas, Madrid, Ed. Paulinas, 1979, § 43, p. 152 e s. Critica­mente, cf. M. Sukale, Denken. Sprechen und Wissen. Logische Untersuchungen zuHusserl und Quine, TUbingen, J. C. B. Mobr, 1988.

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to, e os atos da consciência que são respectivamente adequados a esta ouaquela região. A filosofia anterior, argumenta Husserl, falha ao não con­siderar que o método gnoseológico varia segundo a região ôntica. Poroutro lado, dificultando mais a investigação, um mesmo objeto fisico,por exemplo, poderá estar situado em uma ou outra região segundo o atointencional a ele dirigido. A região ôntica, insiste Husserl, não se podedescobrir apenas por um prisma mas sempre na interação noesis/noemas:se se observa uma argola de ouro sob um ponto de vista analítico, porexemplo, intentando descobrir os componentes daquela liga metálica, está­se em determinada região; mas se se examina esse mesmo dado empíricopara compreender o significado de a argola estar no dedo anular da mãodireita de alguém, a interação noesis/noema, e conseqüentemente a re­gião ôntica, aparece diferenteJ7•

Husserl coloca ai a distinção entre indicio (Anzeichen) e expressão(Ausdruck), espécies do gênero signo (Zeichen), segundo a qual o indícioé um signo não-discursivo, desprovido de sentido (é bedeutungslos) e aexpressão é discursiva, apresenta por defin ição um sentido (é bedeutsam).Embora todo signo tenha um objeto intencional, um algo a que se dirige- dai a relação necessariamente correlata entre signo e significado, se­gundo Husserl-, nem todo signo tem um sentido próprio. A distinçãoentre indice e expressão parece ser "mais funcional do que substancial,na medida em que um mesmo fenômeno pode ser apreendido como ex­pressão e como índice"38. A diferença dependerá da intencionalidade daconsciência, da inter-relação de noesis e noemas.

O processo mental para atingir as essências dos fenômenos, aban­donando o mundo empirico ilusório, Husserl chamou de epoché (em gre­go, "eu me abstenho"). Esse processo atravessa vários estágios. Podem­se distinguir uma "colocação entre parênteses" histórica e outra existen­cial, abstraindo tanto os dados do mundo quanto a própria existência do

37. As antologias regionais de Husserl tiveram grande repercussão na filoso­fia juridica lalina. Cf., por exemplo, M. Reaie, Filosofia da direiro, cit., 1972, p.175 e s.; E. G. Mâynez, Filosofia dei derecho. México, Porrúa, 1974, p. 289 e s.; eC. Cassio: La teoria egologica dei derecho y el concepto juridico de Iibertad,Buenos AIres, Abeledo-Perrol, 1964, p. 199 e s.

38. Cf. J. Derrida, La voil: elle phénoméne, Paris, PUF, 1983, p. 17 e s.

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SUJeIto, ao lado das reduções eidética (método para a ontologia) etranscendental (método para a metafisica)39.

O primeiro passo, à semelhança de Descartes, é recusar a atitudeespontânea que adotamos ao acreditar que os objetos exteriores são aqui­lo que nos parecem ser; rejeitar o que Husserl chama a tese do mundo.Essa colocação entre parênteses é, de um lado, cultural, implicando dei­xar de lado teorias, ciências, normas, e, de outro, existencial, pois literal­mente abandonam-se todos os juizos de existência, inclusive a do sujeitoenquanto ente real, em prol da essência ideal- dai a pecha de idealista.Husserl ressalva que esta suspensão da existência não é a dúvidadogmática dos céticos gregos e seus seguidores modernos, para os quaiscoisa alguma é verdadeira, nem tampouco consiste em uma negação domundo natural.

Com a suspensão, o processo de conhecimento ainda não terminou.Os objetos foram despojados da existência mas sua individualidade per­manece. A redução eidética elimina as caracteristicas individuais e che­ga às essências fenomenológicas; sÓ o eu permanece individualizado. Aredução fenomenológica transcendental é importante elemento daepoché, quando a própria consciência de subjetividade, empirica, torna­se consciência pura, cujo único caráter é a intencionalidade: essa cons­ciência pura é o eu transcendental40.

A grande diferença para com o Discurso sobre o método, em queHusserl se inspira, é que Descartes constrói o conhecimento a partir deum eu ainda inserido no mundo natural, de caráter psicológico, contami­nado pelo naturalismo que Husserl combatia4 !. Nada do mundo objetivodeve ser conservado na redução fenomenológica. A recuperação, porassim dizer, do mundo natural não se dá, como em Descartes, dentro dopróprio sujeito cognoscente mas sim em uma esfera externa e objetiva. Oeu que resta da epoché é O principio de um mundo novo e independente,

39. W. Slegmüller, Afilosofia conremporânea, São Paulo, EPUIEDUSP, 1977,v. 1, p. 73-5.

40. E. Husserl, ldeen zu einer reinen Phãnomenologie undphiinomenologischen Philosophie, cil., § 59, p. 141 e s.

41. E. Husserl, Meditaciones cartesianas, cit., § 7, p. 57.

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o mundo das essências. A descrição pura ê a descrição de um universoque tem o eu transcendental como condição de possibilidade. A reduçãonão afasta as afirmações de evidência de que o mundo real existe, apenasnão se deve dar crédito rigoroso a elas. Husserl não toma o demônio deDescartes como propriamente uma hipótese, mas também não o afasta de

todo.

O cuidado de Husserl é no sentido de evitar o "preconceito realista"que o senso comum e os órgãos dos sentidos nos provocam. O primeiroobjeto de atenção da filosofia fenomenológica precisa ser justamente omais evidente dos fenômenos, a autoconsciência. Mesmo que ainda emestado natural, e não transcendental, a consciência é o ponto de partida.Não se pode cuidar do conhecimento, afirmar algo de objetos exteriores,sem antes descrever o ponto de ligação entre os dois pólos gnoseológicos.Para escapar do psicologismo que refutava, Husserl transformou essaconsciência em algo transcendente e deu ensejo à pecha de idealista quelhe foi emprestada, como já dito.

A influência de Husserl sobre Hartmann não se limita ao métodofenomenológico. Ambos viam uma estreita relação entre filosofia e ciên­cia e insistiam na possibilidade de uma filosofia construtiva, inacabada,aberta e coordenada com os progressos científicos. Há muítas diferenças,também, inclusive de atitude: Husserl trata a metafísica de forma quasemística e mostra um platonismo gnoseológico, por mais que insista no"mundo real"; o platonismo de Hartmann, conforme será examinadoadiante (capitulo sétimo), é somente axiológico.

A metafísica do conhecimento de Nicolai Hartmann, como tam­bém se verá à frente (capitulos terceiro e quarto), assume, em certosentido, uma posição intermédia em relação a Kant e Husser!. Com asinformações que já temos, é possível fazer a comparação. Para Kant, ofenômeno, o dado que percebemos e que dá inicio ao processo de co­nhecimento, tem um conteúdo essencial e intangível, a coisa em si.Para Husserl, o conhecimento dos fenômenos é suficiente para a filoso­fia, não são meras ilusões aparentes mas é o ser propriamente dito queos fenômenos revelam: " ...a fenomenologia transcendental sistemática,plenamente desenvolvida, seria eo ipso a verdadeira e autêntica ontologiauniversal; mas não uma ontologia meramente formal e sim, ao mesmo

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tempo, uma ontologia que inclui em si todas as possibilidades regionaisdo ser... "42.

Hartmann tem a fenomenologia como método descritivo dos dados,introdutório à gnoseologia como um todo, e discorda de que uma ontologiauniversal possa reduzir-se à fenomenologia, como veremos no próximocapítulo.

5. Outras influências

A concepção que Hartmann tem da filosofia, como a coleção dosproblemas levantados pelos pensadores precedentes ao longo da história,dificulta a tarefa de situá-lo nas grandes correntes filosóficas européiasda primeira metade do nosso século. Sua atitude sincrética, já aponta­da43 , não se inspira apenas nos autores examinados neste livro.Kierkegaard, Brentano, Meinong44 e Tomás de Aquino45 são alguns da­queles que, mais do que em traços, aparecem na obra de Hartmann e nãoserão comentados aqui.

Como contemporâneos não se pode deixar de destacar Max Schelere Martin Heidegger.

A influência de ScheJer foi considerável, sobretudo na ética, cujaspartes fundamentais coincidem por vezes de tal modo, nos dois filósofos,que fica difícil separá-las46. Mas há uma diferença básica: não há emHartmann qualquer traço da profunda religiosidade que atravessa a éticade Sche1er. Este parece avesso a confrontações: no prefácio à primeira

42. E. Husserl, ldeen zu einer reinen Phiinomen%gie undphanomenologischen Philosophie, cit., § 64, p. 181.

43. M. Landmann, Nicolai Hartmann and phenomenology, Philosophy andPhenamenological Research, v. 3, p. 397, 1942.

44. Idem, p. 423.

45. H. James, Nicolai Hartmann's study of human personality, NewScholasticism, v. 34, p. 206,1960.

46. H. Kuhn, Nicolai Hartmann's ontology, Philasophy Quarterly, v. 1, p.314, dáa preferênciaaM. Scheler. Um pouco diferente é a posição de A. Rosenfeld,Nota sobre Nicolai Hartmann, Revista Brasileira de Filosofia. v. 8, fase. 4, p. 464,sao Paulo, 1958.

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edição de seu livro mais famoso comenta, por exemplo, que a crítica àética kantiana é apenas objetivo secundário do trabalho e que sua inten­ção é enfatizar os aspectos positivos dela; no prefácio à terceira edição,Scheler dedica algumas páginas elogiosas a Hartmann, esclarecendo, aomesmo tempo, diferenças entre ambos47 . Trataremos de algumas delas nosétimo capitulo, adiante.

A intluência de Heidegger foi, por assim dizer, negativa. Ao conhecê­lo, em Kõln, ambos influenciados pela fenomenologia de Husserl,Hartmann cuida de orientar mais claramente sua ontologia em um senti­do anti-heideggerian048•

Heidegger centraliza a investigação filosófica na pergunta pelo sen­tido do ser e por isso mesmo toma como ponto de partida o conceito deDose/n, ser-aí, mostrando um claro exemplo do que se pode denominarde ontologia humanista. A questão do sentido do ser implica situar aexistência do homem como fundamento da ontologia, ou seja, o problemaé como o ser se revela ao homem e como este compreende seu sentido; oser não é indiferente ao que possa representar para o homem, pois é exa­tamente nessa representação que está a chave para sua compreensão.Enquanto Hartmann considera a temporalidade característica específicade alguns estratos da realidade, apenas para dar um exemplo, Heideggerentende que a filosofia só pode compreender o ser penetrando no temp049.

Para Hartmann, a aplicação de um método que observa objetosnorteados pelo sentido que apresentam ao sujeito cognoscente só poderesultar em desvio arbitrário da pesquisa: sentido, e ai Hartmann,Heidegger e os existencialistas estão de acordo, quer significar algo parao "ornem; e o ser-para-o-homemjá implica redução ao plano gnoseológico,

47. M. Seheler, Der Formalismus in der Elhik und die maleriale Werlelhik- Neuer Versuch der Grundlegung eines ethischen Personalismus. Gesamme/leWerke, Maria Seheler (org.), Bem, Franeke Verlag, 1954, p. 6 (sobre Kant) e p. 19­24 (sobre Hartmann).

48. Sobre a crítica de Heidegger a Seheler e Hartmann, ef. E. -Estiú,Introducción a la nueva ontologia de Nico/ai Harlmann, Buenos Aires, Ed.Sudamericana, 1954, p. 41.

49. Dai o título da obra fundamental, M. Heidegger, O ser e o tempo, SãoPaulo, Livr. Duas Cidades, s. d.

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que é visto por Hartmann como secundário e incompleto diante daontologia, posto que o ser é indiferente a qualquer sentido e a tentativasde apreendê-lo.

Na opinião de Hartmann, Heidegger confunde a ontologia, verda­deiro centro da filosofia, com O mundo individual concretamente consi­derado, gerando o contra-sentido de uma "filosofia da existência", quan­do a própria existência é uma questão filosófica prévia. Pode-se construiruma ontologia da condição humana, e Hartmann tenta fazê-lo, mas nãouma ontologia geral a partir do homem. É assim que Hartmann negaimportância filosófica à angústia diante da morte ou a qualquer outrosentimento humano: dar-lhes significado metafisico constitui atitude arti­ficiosa e infantilmente egocêntrica. A postura gnoseológica, como vere­mos, é justamente sair de si, jamais ensimesmar-se. Daí a colocação deHartmann: "Toda atribuição de sentido diz respeito a valor... (Mas) Va­lores podem certamente existir por si e o que é vai ioso pode subsistirrealmente no mundo, sem relação com um sujeito, enquanto sentido sópode existirpara alguém"so.

50. N. Harlmarm, Teleologisches Denken, Berlin, Walter de Gruyter, 1951,Cap. 11, p. 112.

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...,3pítulo Terceiro

O MÉTODO: A METAFíSICA DOS PROBLEMAS

Sumário: 1. Problema e sistema. 2. O lugar da fenomenologiano método filosófico. 3. Aporias que se transformam em euporias.4. Tentativas de teorização.

1. Problema e sistema

A insistência sobre os problemas pode fazer o leitor desatento en­xergar em Nicolai Hartmann ojeriza a toda e qualquer sistematização naatividade filosófica. Não é bem esse o caso. Toda teoria sempre constitui,em algum sentido, um sistema: precisa estar organizada segundo certosprincípios, precisa manter-se eln acordo consigo mesma. Hartmann temconsciência disso. O que não é desejável é pensarpor sistemas, a preo­cupação em aferrar-se a verdades preestabelecidas- ainda que Hartmannceda à tentação de acreditar em verdades pós-estabelecidas-, rejeitandodados observáveis que não se encaixam no sistema adotado efreqüentemente superestimando aspectos que parecem em acordo comele. A unidade deve ser procurada, é certo; uma teoria não se deve limitara proposições descritivas esparsas, mas é preciso evitar a tendência a verconexões inexistentes e fixar antecipadamente critérios como pontos ar­bitrários de partida.

A atitude de pensamento adequada à filosofia é bem outra, seu mé­todo começa pela descriçãofenomenológica dos dados, como veremos a

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seguir: "O método de uma tal descrição dos entes possuímos hoje atravésdo procedimento da fenomenologia"l. A observação mostra umamultiplicidade de dados, e o sujeito cognoscente, ao tentar descobrir,entre os fenômenos múltiplos, relações unificadoras, generalizáveis,ja­mais se defrontará com sistemas e sim com problemas. Estes constituemo domínio da metafisica, anterior à construção ontológica'.

Para Husserl, a existência de tantos sistemas filosóficos antagôni­cos evidenciaria o fracasso da filosofia metafisica até então dominante.Em Hartmann, ao contrário, o sentido de uma história da filosofia estáexatamente na persistência e regularidade com que certos problemas apa­recem. Defendendo uma posição intermédia entre Husserl, que rejeitatoda filosofia anterior e quer estabelecer princípios radicalmente novos, eDilthey, por exemplo, que se resigna a um relativismo entre os diversossistemas, erigindo a história da filosofia como objeto da própria filosofia,Hartmann quer determinar princípios - só que justamente a partir dahistória da filosofia. Esses conteúdos universais são os problemas: "Estatentativa" (a metafisica do conhecimento, a metafísica dos problemas)"esforça-se no sentido de seguir exatamente a atitude natural da consci­ência cognoscente e de compreender o fenômeno do conhecimento (sem­pre entendido como os problemas mais intimos do conhecimento) na maioramplitude e integridade possivel"'.

Obviamente os filósofos guardam suas peculiaridades e os seus res­pectivos sistemas, grandes diferenças. Mas, para Hartmann, as diferen­ças são menos importantes do que as semelhanças, estas, sim, as verda­deiras questões filosóficas; e as semelhanças estão nos problemas. Osproblemas mais constantes são os mais importantes. Na história da fi 10-

I. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, Reclin, Walterde Gruyter, 1946. CC o Cap. 4, p. 37. Hartmann reduz a fenomenologia de Husserlà metodologia inicial da filosofia.

2. Idem, Cap. 57, p. 444; também Zur Grund/egung der Onta/agie, Berlin,Walter de Gruyter, 1946, p. 32 e s. e Der philosophische Gedanke und seineGeschichte, in Abhandlungen zur PhilosophiewGeschichte. v. 2 dos K/einereSchriften, Berlin, Walter de Gruyter, 1957, p. 18, sóbre a dicotomia problema/siste­ma, fundamental na metodologia de Hartmann.

3. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, cit., Cap. 4,p.38.

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sofia, com todos os seus erros, há um manancial de "questões persisten­tes" das quais o filósofo moderno não pode prescindir'. Ele é fiel a estadiretriz, como vimos tendo oportunidade de verificar, e se inspira semconstrangimento nas fontes mais diversas.

No prefácio à primeira edição de sua Metafisica do Conhecimento,Hartmann explica por que'preferiu esta denominação a Crítica do Co­nhecimento, por exemplo, e diz que entende a expressão-título de seulivro como sinônimo de Teoria do Conlrecimento, justamente porquetoda gnoseologia toma apoio e fundamento na metafísica.

Acontece que metafísica é termo dos mais ambiguos, variando defilósofo a filósofo. Em Hartmann, a metafísica é também responsávelpela investigação e teorização dos problemas que a observação dos da­dos levanta e não apenas por sua descrição. Exemplificando - mas oexemplo não é de Hartmann - a metafisica não se deve limitar a descre­ver o fato de que determinado fenômeno que denomino ou percebo comovontade pode anteceder imediatamente outro f~nômen~que percebo ~omoato de apanhar um livro na estante. Ela precisa Ir adiante e sugenr porque isso acontece ou parece acontecer, se há mesmo r~lação de cau~a eefeito entre a vontade e o ato, se sujeito e objeto são efellvamente realida­des distintas, enfim, examinar essas questões que o homem, mesmo nãologrando solucionar satisfatoriamente, não consegue evitar colocar.

Dai a contribuição decisiva de Husserl e do método fenomenológico:os dados que nossa percepção apreende constituem o ponto de partida deuma filosofia correta, a origem dos problemas que o sujeito se propõe etambém a fonte para tentativa de solução dos mesmos. Por conseguinte,a descrição dosfenômenos compõe a primeira parte do método filosófi­co adequado. Embora parte integrante da metafisica do conhecimento,tal descrição deve procurar a maior fidelidade possível, "com um ~áxi­

mo de dados e um mínimo de metafisica", apenas descrevendo os obJetoscomo eles se mostram a nós. Mesmo que certas soluções pareçam desdejá claras, a descrição fenomenológica deve deixar q~alqueraval~a~ãodelado. Hartmann escreve páginas e páginas com pacientes descnçoes dedados, suas relações, gradações, hierarquia, regras que parecem coordená-

4. H. Hart, The cancept af /aw, Oxford, Oxford Univ. Press, 1961, Cap. I.

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los e assim por diante. O erro fundamental de Husserl, que o impediu delevar seu método a uma dimensão mais ampla, critica Hartmann, foi terreduzido a fenomenologia quase que exclusivamente à descrição de fenô­menos lógicos e psicológicos, sem perceber seu alcance muito maior. Seuoutro erro, superestimar O papel da fenomenologia e resumir a ela a filo­sofia.

A segunda parte do método filosófico consiste em pôr em relevo ascontradições, aporias, antinomias, que a descrição dos fenômenos inevi­tavelmente vai revelar, procurando colocá-Ias de maneira a mais nítidapossível. Aporia é um termo originário do grego antigo e pode ser tradu­zido por "ausência de caminho"; da mesma raiz provém a palavra "po­ros" (da pele), por exemploS. Não se confundem os conceitos de aporia eantinomia, esta implica caminhos opostos, conforme denota o prefixoanti. Nessa tarefa, Hartmann lança mão, muitas vezes, de fórmulas dotipo tese-antítese, as quais procura apresentar, ambas, com todaplausibilidade. Se na descrição fenomenológica não cabem questões, dú­vidas sobre fenômenos contraditórios, estas são exatamente o objetivo daaporética, a explicitação dos problemas6• É o campo da metafisica pro­priamente dita, já questionadora e dirigida ao conhecimento, emboraadstrita aos dados, posto que apenas coloca perguntas que se originaramdos dados, não lhe cabendo a pretensão de resolvê-los.

A teoria, o terceiro e último estágio metodológico, precisa ír alémdos fenômenos e de sua mera descrição; ela deve achar algo como quepor trás deles, descobrir conexões não exatamente evidentes. É a ela quecabe dominar as contradições reveladas na aporética. A teoria vai procu­rar estabelecer a unidade coerente e sistemática rejeitada ao início do atognoseológico e, na medida do possível, encontrar respostas satisfatóriaspara as aporias.

5. G. Gurvitch, Las tendencias actuales de iaji/osofia a/emana, trad. Almelay Vives, Buenos Aires, Amerícalee, 1939, p. 212. Cf., também, T. Viehweg, Topikund Jurisprudenz - e.in Beitrag zur rechtswissenschaftlichenGrundlagenforschung, MUnchen, Beck, 1974, Cap. 3, p. 31 e s. Através de Viehweg,ex·aluno de Hartmann, a metafisica dos problemas influi vigorosamente sobre ateoria do direito, inclusive no Brasil, como já lembramos.

6. N. Hartmann. Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis. cit., Cap. 4,p.38.

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Insista-se que a metafisica dos problemas não se posiciona incond i­cionalmente contra a sistematização, desde que esta apareça em seu devi­do tempo. Ao contrário, construir algum sistema é um objetivo desejável.O ser humano tem uma intuição muito forte da unidade do mundo e épossível e até provável que a investigação filosófica venha a comprovartal intuição, no todo ou em partes. Mas também pode revelar-se um pre­conceito inato do homem, como já diziam Heráclito e os atomistas. Se acompleta neutralidade não é plenamente alcançável na filosofia e na ciên­cia, considerar todos os fenômenos e argumentos possiveis parece seruma via adequada para aproximar-se dela.

Colocados esses pressupostos, vamos tentar agora ver um poucomais detalhadamente a aplicação e alguns dos resultados a que chegaHartmann através de seu método. Isso nos será útil, vez que pretende­mos, mais adiante, aplicar a mesma metodologia a alguns problemas dateoria do direito e testar sua fecundidade. Por ora, veremos a descrição defenômenos observados por Hartmann no processo de conhecimento, al­gumas das aporias mais importantes que levanta e, finalmente, a teorizaçãocom que tentou conciliá-las.

2. O lugar da fenomenologia no método filosófico

No centro da controvérsia entre Nicolai Hartmann e Edmund Husserlestá o caráter propedêutico, meramente preparatório, que o primeiro atri­bui à fenomenologia, a qual, ao contrário do que defendeu Husserl, nãodeve ser encarada como filosofia pronta e acabada. É justamente por nãoterem procedido a uma descrição fenomenológica correta que Husserl eseus seguidores identificaram filosofia (ou mesmo ontologia) efenomenologia, falhando desde o início na descrição do próprio atognoseológico. Ao cuidar do dado fenoménico, sem procurar ultrapassá­lo, a fenomenologia husserliana não distingue o objeto intencional, vin­culado à relação com o sujeito, do objeto independente de qualquer tenta­tíva de conhecimento, este, sim, O fundamento ontológico de todagnoseologia.

Em que pesem diferenças importantes, inúmeros são os pontos emque Hartmann está de acordo com Husserl e, mesmo quando o critica,chega a exagerar em suas objeções, talvez com O objetivo de não ser

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confundido com mais um adepto ortodoxo do método fenomenológico'.Na própria compreensão do conceito de fenômeno notam-se as semelhan­ças: os fenômenos, objeto da filosofia, não devem ser entendidos comounicamente empíricos, intuíveis pelos órgãos dos sentidos, pois os dadosda experiência sensível constituem apenas uma espécie de fenômenos. Afenomenologia de Hartmann, na mesma linha do que vimos ao tratar deHusserl, ocupa-se da essência, dos fenômenos eidéticos, como os cha­mou Husserl.

No caso dos objetos ideais, a descrição dos fenômenos é mais sim­ples, uma vez que tais objetos se confundem com sua essência eidética,reduzem-se a ela, conforme estudaremos no próximo capitulo. Já o serreal oferece maiores dificuldades, posto que os entes reais são dotados deindividualidade e conseqüentemente contingência. Tudo o que é indi­vidual e contingente - e assim real- é também dotado de um eidos,uma essência que determina sua maneira de ser, suas categorias modais.Essa essência é ideal, como toda ela; mas os entes reais apresentam ou­tros caracteres além da essência.

Note-se que Hartmann segue uma ontologiaessencialista, na medi­da em que toma como assente que há uma essência objetiva por trásdesses conceitos gerais utilizados na comunicação humana. Que há pala­vras generalizantes, as quais abstraem os conteúdos particulares e con­tingentes dos objetos individualmente percebidos, disto não resta dúvida.Que uma essência se esconde por trás dessas palavras, ai já se trata deoutra questão.

A essência eidética propiciada pela análise fenomenológica permiteao homem manejar o número infinito de objetos e relações com que sedepara e ordená-los, conhecê-los. Segundo Hartmann, tais essências semostram ao intelecto humano de maneira ainda mais forte do que osfenômenos individuais concretos, embora sua intuição se processe dife­rentemente e exija maior preparo do sujeito cognoscente.

7. Sobre Hartmann exagerar seu desacordo com Husserl e sobre as relaçõesentre as duas teorias, cf. M. Landmann, Nicolai Hartmann and phenomenology.Phi/osophy and Phenomenologica/ Research, v. 3, p. 417-8,1942; Husserl tam­bém afirma, por exemplo, que os entes são ontologicamente inteligíveis (p. 420),assunto que discutiremos no próximo capítulo.

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A intuição eidética não é sensivel mas sim intelectual, concordaHartmann com Husserl: é imediata e basta-se a si mesma, não necessitade relação direta com o ente individual. Isso não significa que inexistamrelações entre os dois tipos de intuição: as intuições sensíveis e particula­res, que o homem desde criança experimenta, lhe fornecem O material eo meio para intuição das essências. Não se pense, porém, que a intuiçãoeidética deriva da intuição sensível, mesmo sendo óbvia sua intima co­nexão.

O conceito de transcendentalidade kantiano mostra aqui claramentesua influência sobre Hartmann e Husserl: a experiência sensível é anteriorà experiência transcendental (aqui, eidética) somente no sentido da rela­tividade temporal a que estamos submetidos, uma anterioridade apenaspsicológica.

Podemos resumir, como se segue, os principais resultados a quechega a descrição fenomenológica do conhecimento em Nicolai Hartmann8•

O fenômeno básico é o da apreensão (Erfassen). Este é o primeirodado: a percepção de que o conhecimento consiste em uma relação entredois elementos diferentes que não podem ser reduzidos um ao outro, quaissejam, o sujeito e o objeto. Acontece que o sujeito não pode tornar oobjeto imanente, isto é, interiorizá-lo tal como ele é; o sujeito só podecompreender o objeto saindo de si (transcendendo-se, na linguagem deHartmann), já que o objeto é exterior e indiferente ao sujeito. Paralela­mente, o sujeito tem que voltar a si mesmo, conscientizar-se, a fim deinteriorizar e refletir sobre o objeto que percebeu ao transcender-se. Reali­zadas corretamente essas duas fases iniciais, componentes da apreensão,o sujeito confirma que não pode exercer a menor influência sobre oscaracteres ônticos do objeto conhecido. Se O fizer, incorrerá em erro, o"preconceito idealista" ou subjetivista dos neokantianos e tantos outros.

O segundo fenômeno refere-se à imagem do objeto no sujeito. Aquilo(aliquid) a que o sujeito se dirige no ato de conhecimento não é exata­mente o objeto em sua plenitude ôntica, adverte kantianamente Hartmann,nem tampouco consiste em mera projeção da consciência subjetiva. Ele é

8. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, cit., Cap. S, p.44 e s.

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um "terceiro algo", ainda que em estreita relação com sujeito e objeto. Oconhecimento começa como fenômeno na consciência, só que precisaromper esta imanência para não cair no solipsismo. Quando pensamosem um objeto, formamos efetivamente uma imagem dele na consciência,mas não pensamos nessa imagem como algo distinto e sim no próprioobjeto: é a ele que nos dirigimos'- Ocorre uma espécie de síntese quandoo sujeito constitui uma imagem do objeto em sua consciência, após aapreensão; a imagem representada resiste à fantasia do sujeito, mostran­do que permanece determinada pelo objeto a que se refere, e daí sua"objetividade". Nesse ponto do ato gnoseológico entende-se porque a te­oria de Hartmann foi chamada de realismo objetivo. "O conhecimento é adeterminação do sujeito pelo objeto"lO.

Vamos chamar atenção ainda para um terceiro dado entre os descri­tos por Hartmann, qual seja, a inadequação entre o objiciendum e oobjectum. O objiciendum é o objeto para que se dirige a atenção dosujeito, é o objeto intencional (das intendierte Objekt), que não coincidejamais com o objeto em sentido total e estrito, como visto; o objectumdesigna aquela parte do objeto que foi efetivamente conhecida, objetada,enquanto o objiciendum, aquilo que o sujeito tenta representar, dirige-sea um ente existente por si mesmo, lembre-se. Os dois tipos de objetos nãose identificam. A objetação ll , o ato pelo qual o sujeito põe intencional­mente algo como objeto diante de si, separa o objiciendum, procuradopelo sujeito, entre o efetivamenteobjetado (o objectum) e o transobjetivo.Note-se que o objeto é percebido em sua totalidade, não importando emque medida ele será ou não cognoscível,já que todo corte gnoseológico,embora indispensável em termos metodológicos, será ontologicamenteartificial, arbitrário.

Entre aquela parte do objeto que se deixou conhecer e o algo além,o transobjetivo, há uma tensão constante, da qual o sujeito tem consciên­cia. Quer dizer, o sujeito percebe a inadequação ontológica entre o

9. W. StegmülIcr, Realismo crítico: Nicolai Hartmann, in Afilosofia contemwporânea, trad. E. Martins, São Paulo, EPU/EDUSP, 1977, v. 1, p. 201 e s.

10. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, cit., Cap. 5, p. 47.

11. A tradução pelo neologismo objetação, conceito gnoseológico emHartmann, visa à distinção de objetivação, conceito ontológico referente a uma dasformas de manifestação do se'espiritual. Cf. o capitulo nono, à frente.

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objiciendum e o objectum. A consciência dessa inadequação é um saberdo não saber, na expressão que Hartmann retira de Sócrates. Isto tam­bém traz conseqüências positivas para o conhecimento: "porque o sabersubsiste na apreensão (...) e a apreensão na objetação (... ), ele (o saber donão saber) tem de ser descrito como uma'apreensão do não-apreendidoenquanto tal' (...), como uma 'objetação do não-objetado enquanto tal' ".Além disso, "A consciência do problema é a consciência positiva dasfronteiras da objetação e, ao mesmo tempo, a consciência negativa doconteúdo do transobjetivo"12. Não só a descrição do conhecimento revelaa dimensão irracional em que a razão humana não pode penetrar, como osujeito cognoscente sabe disso.

Parece-nos que é no terreno da aporética que o método de Hartmannse mostra mais fecundo e aqui ele reconhece expressamente seu débitopara com Aristóteles. Mesmo percebendo que os problemas levantadospela análise dos fenômenos não são plenamente solucionáveis, a ativida­de racional procura fixar os paradoxos que lhe resistem aos esforços,sem, por um lado, cair no ceticismo, e, por outro, no preconceito infunda­do da megalomania da razão, ou seja, o de que só existem legitimamenteos problemas que ela pode resolver!3. Como a descrição anteriormentelevada a efeito assegura à consciência a inadequação entre o conhecido eo desconhecido, um problema consta basicamente de dois pólos: os dadosmais ou menos seguros obtidos e as interrogações provocadas pela insu­ficiência desses mesmos dados; formular o mais claramente possível taisdúvidas é a tarefa da aporética.

3. Aporias que se transformam em euporias

A investigação aporética competente, acredita Hartmann, ensejaráa euporia, o que significa que nos próprios problemas estará a "indica­ção de caminho". O trabalho aporético consiste em pôr em relevo oincompreendido, separando-o do efetivamente conhecido pela descriçãofenomenológica, e em levar suas contradições aos extremos mais claros

12. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis. cit., Cap.5, p. 54-5.

13. N. Hartmann, Der Aufbau der realen Welt- GrundijJ der allgemeinenKategorienlehre, Berlin, Walter de Gruyter, 1940, Cap. 17, p. 168.

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confundido com mais um adepto ortodoxo do método fenomenológico"'Na própria compreensão do conceito de fenômeno notam-se as semelhan­ças: os fenômenos, objeto da filosofia, não devem ser entendidos comounicamente empíricos, intuiveis pelos órgãos dos sentidos, pois os dadosda experiência sensível constituem apenas uma espécie de fenômenos. Afenomenologia de Hartmann, na mesma linha do que vimos ao tratar deHusserl, ocupa-se da essência, dosfenômenoseidéticos, como os cha­mou Husserl.

No caso dos objetos ideais, a descrição dos fenômenos é mais sim­ples, uma vez que tais objetos se confundem com sua essência eidética,reduzem-se a ela, conforme estudaremos no próximo capitulo. Já o serreal oferece maiores dificuldades, posto que os entes reais são dotados deindividualidade e conseqüentemente contingência. Tudo o que é indi­vidual e contingente - e assim real- é também dotado de um eidos,uma essência que determina sua maneira de ser, suas categorias modais.Essa essêncía é ideal, como toda ela; mas os entes reais apresentam ou­tros caracteres além da essência.

Note-se que Hartmann segue uma ontologia essencialista, na medi­da em que toma como assente que há uma essência objetiva por trásdesses conceitos gerais utilizados na comunicação humana. Que há pala­vras generalizantes, as quais abstraem os conteúdos particulares e con­tingentes dos objetos individualmente percebidos, disto não resta dúvida.Que uma essência se esconde por trás dessas palavras, aí já se trata deoutra questão.

A essência eidética propiciada pela análise fenomenológica permiteao homem manejar o número infinito de objetos e relações com que sedepara e ordená-los, conhecê-los. Segundo Hartmann, tais essências semostram ao intelecto humano de maneira ainda mais forte do que osfenômenos individuais concretos, embora sua intuição se processe dife­rentemente e exija maior preparo do sujeito cognoscente.

7. Sobre Hartmann exagerar seu desacordo com Husserl e sobre as relaçõesentre as duas teorias, cf. M. Landmann, Nicolai Hartmann and phenomenology,Philosophy and Phenomen%giea/ Researeh, v. 3, p. 417-8,1942; Husserl tam­bém afirma, por exemplo, que os enles são ontologicamente inteligíveis (p. 420),assunto que discutiremos no próximo capítulo.

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A intuição eidética não é sensível mas sim intelectual, concordaHartmann com Husserl: é imediata e basta-se a si mesma, não necessitade relação direta com o ente individual. Isso não significa que inexistamrelações entre os dois tipos de intuição: as intuições sensíveis e particula­res, que o homem desde criança experimenta, lhe fornecem o material eo meio para intuição das essências. Não se pense, porém, que a intuiçãoeidétíca deriva da intuição sensivel, mesmo sendo óbvia sua íntima co­nexão.

O conceito de transcendentalidade kantiano mostra aqui claramentesua influência sobre Hartmann e Husserl: a experiência sensível é anteriorà experiência transcendental (aqui, eidética) somente no sentido da rela­tividade temporal a que estamos submetidos, uma anterioridade apenaspsicológica.

Podemos resumir, como se segue, os principais resultados a quechega a descrição fenomenológica do conhecimento em Nicolai Hartmanns.

O fenômeno básico é o da apreensão (Erfassen). Este é o primeirodado: a percepção de que o conhecimento consiste em uma relação entredois elementos diferentes que não podem ser reduzidos um ao outro, quaissejam, o sujeito e o objeto. Acontece que o sujeito não pode tornar oobjeto imanente, isto é, interiorizá-lo tal como ele é; o sujeito só podecompreender o objeto saindo de si (transcendendo-se, na linguagem deHartmann), já que o objeto é exterior e indiferente ao sujeito. Paralela­mente, o sujeito tem que voltar a si mesmo, conscientizar-se, a fim deinteriorizar e refletir sobre o objeto que percebeu ao transcender-se. Reali­zadas corretamente essas duas fases iniciais, componentes da apreensão,o sujeito confirma que não pode exercer a menor influência sobre oscaracteres ônticos do objeto conhecido. Se o fizer, incorrerá em erro, o"preconceito idealista" ou subjetivista dos neokantianos e tantos outros,

O segundo fenômeno refere-se à imagem do objeto no sujeito. Aquilo(aliquid) a que o sujeito se dirige no ato de conhecimento não é exata­mente o objeto em sua plenitude ôntica, adverte kantianamente Hartmann,nem tampouco consiste em mera projeção da consciência subjetiva. Ele é

8. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, cit., Cap. 5, p.44 e s.

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um "terceiro algo", ainda que em estreita relação com sujeito e objeto. Oconhecimento começa como fenômeno na consciência, só que precisaromper esta imanência para não cair no solipsismo. Quando pensamosem um objeto, formamos efetivamente uma imagem dele na consciência,mas não pensamos nessa imagem como algo distinto e sim no próprioobjeto: é aele que nos dirigimos'. Ocorre uma espécie de síntese quandoo sujeito constitui uma imagem do objeto em sua consciência, após aapreensão; a imagem representada resiste à fantasia do sujeito, mostran­do que permanece determinada pelo objeto a que se refere, e dai sua"objetividade". Nesse ponto do ato gnoseológico entende-se porque a te­oria de Hartmann foi chamada de realismo objetivo. "O conhecimento é adeterminação do sujeito pelo objeto"lO.

Vamos chamar atenção ainda para um terceiro dado entre os descri­tos por Hartmann, qual seja, a inadequação entre o objiciendum e oobjectum. O objiciendum é o objeto para que se dirige a atenção dosujeito, é o objeto intencional (das intendierte Objekt), que não coincidejamais com o objeto em sentido total e estrito, como visto; o objectumdesigna aquela parte do objeto que foi efetivamente conhecida, objetada,enquanto o objiciendum, aquilo que o sujeito tenta representar, dirige-sea um ente existente por si mesmo, lembre-se. Os dois tipos de objetos nãose identificam. A objetação", o ato pelo qual o sujeito põe intencional­mente algo como objeto diante de si, separa o objiciendum, procuradopelo sujeito, entre o efetivamente objetado (o objectum) e o transobjetivo.Note-se que o objeto é percebido em sua totalidade, não importando emque medida ele será ou não cognoscível,já que todo corte gnoseológico,embora indispensável em termos metodológicos, será ontologicamenteartificial, arbitrário.

Entre aquela parte do objeto que se deixou conhecer e o algo além,o transobjetivo, há uma tensão constante, da qual o sujeito tem consciên­cia. Quer dizer, o sujeito percebe a inadequação ontológica entre o

9. W. Stegmüller, Realismo crItico: Nicolai Hartmann, in Afilosofla contem­porânea, trad. E. Martins, São PauJo, EPUJEDUSP, 1977, v. I, p. 201 e s.

lO. N. Harbnann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, cit., Cap. 5, p. 47.

11. A tradução pelo neologismo ob}etação, conceito gnoseológico emHartmann, visa à distinção de objetivação, conceito ontológico referente a uma dasfonnas de manifestação do ser 'espiritual. Cf. o capítulo nono, à frente.

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objiciendum e o objectum. A consciência dessa inadequação é um saberdo não saber, na expressão que Hartmann retira de Sócrates. Isto tam­bém traz conseqüências positivas para o conhecimento: "porque o sabersubsiste na apreensão (... ) e a apreensão na objetação (...), ele (o saber donão saber) tem de ser descrito como uma 'apreensão do não-apreendidoenquanto tal' (...), como uma 'objetação do não-objetado enquanto tal' ".Além disso, "A consciência do problema é a consciência positiva dasfronteiras da objetação e, ao mesmo tempo, a consciência negativa doconteúdo do transobjetivo"12. Não só a descrição do conhecimento revelaa dimensão irracional em que a razão humana não pode penetrar, como osujeito cognoscente sabe disso.

Parece-nos que é no terreno da aporética que o método de Hartmannse mostra mais fecundo e aqui ele reconhece expressamente seu débitopara com Aristóteles. Mesmo percebendo que os problemas levantadospela análise dos fenômenos não são plenamente solucionáveis, a ativida­de racional procura fixar os paradoxos que lhe resistem aos esforços,sem, por um lado, cair no ceticismo, e, por outro, no preconceito infunda­do da megalomania da razão, ou seja, o de que só existem legitimamenteos problemas que ela pode resolver l3 . Como a descrição anteriormentelevada a efeito assegura à consciência a inadequação entre o conhecido eo desconhecido, um problema consta basicamente de dois pólos: os dadosmais ou menos seguros obtidos e as interrogações provocadas pela insu­ficiência desses mesmos dados; formular o mais claramente possível taisdúvidas é a tarefa da aporética.

3. Aporias que se transformam em euporias

A investigação aporética competente, acredita Hartmann, ensejaráa euporia, o que significa que nos próprios problemas estará a "indica­ção de caminho". O trabalho aporético consiste em pôr em relevo oincompreendido, separando-o do efetivamente conhecido pela descriçãofenomenológica, e em levar suas contradições aos extremos mais claros

12. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkennlnis, cit., Cap.5, p. 54-5.

13. N. Hartmann, Der Aufbau der realen Welt - GrundifJ der a/lgemeinenKategorienlehre, BerHn, Walter de Gruyter, 1940, Cap. 17, p. 168.

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possíveis: quanto mais paradoxal e antitética a formulação da aporia,mais claros se tornarão os aspectos a que o conhecimento racional nãoconsegue chegar e, por conseqüência, delimitar-se-á o limite docognoscível.

Enquanto se processam as fases da descrição e da aporética, insisteHartmann, devemos evitar qualquer tentativa de teorização, isto é, deadequação das aporias e antinomias, pois isso pode afastar-nos do fe­nômeno descrito e conduzir a falsas antíteses, não levantadas pelos fatosmas sim por uma sistematização antecipada.

O fim da aporética é, então, tentar aprofundar e delimitar o maisnitídamente possível onde está o caráter inínteligível do problema. Diantedos paradoxos que se percebem na experiência, quando não se conse­guem conciliar racionalmente os dados que a descrição revelou, é precisodistinguir a partir de que pontos o ato de conhecimento não conseguepenetrar. Vejamos algumás das aporias destacadas por Hartmann naMetafisica do conhecimento para melhor apreender a aplicação de seumétodo!4.

I)Aporia geral do conhecimento. Se sujeito e objeto representamconceitos mais amplos do que os de sujeito cognoscente e objeto conhecí­do, ou seja, se têm ambos um ser em si independente da relaçãocognoscítiva e são irredutíveis um ao outro, o conhecimento é necessaria­mente transcendente. A questão resume-me assim: como é possível que osujeito cognoscente faça com que algo se lhe torne imanente, sem queesse algo (objeto) resulte de uma determinação das formas de conheci­mento de que o próprio sujeito é dotado, isto é, sem ver o objeto comoproduto do sujeito, como queriam os ncokantianos. Em outras palavras,como o sujeito pode conhecer - uma atividade imanente - um objetoque lhe permanece transcendente!5. Como vimos, Hartmann vai afirmarque o ohjiciendum independe do sujeito.

2) Aporia dapercepção do dado. Das duas, uma: ou a transcendênciaentre sujeito e objeto é ilusória ou o dado fenomenológico que o sujeitopercebe não corresponde ao objeto que se pensa conhecer. Aí a tese e a

14. N. Hartmann, Grundzüge einer MeJaphysik der Erkennlnis, cit.. Cap. 6.p.61 es.

15.ldem, p. 64-5. E Zur Grundiegung der Ont%gie, cíl., p. 151 e s.

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antítese reveladas pela aporétíca a partir do fato descrito, o fato de quc oobjeto não se dá em sua plenitude ao sujeito. A transcendência e o dadonão podem ser ambos ílusórios, conclui-se, posto que o sujeito, de algu­ma maneira, percebe algo. A prímeira teoria é defendida pelo neokantismo,como vímos. A segunda, pelo próprio Kant e por adeptos de diversasformas de ceticismo.

3) Aporia do conhecimento a priori. Essa aporia surge a partir daintuição fenomenológica sugerida por Husserl e adotada e criticada porHartmann: como pode a consciência cognoscente conhecer algo do mun­do sensível, perceptivel externamente pelos órgãos dos sentidos, lançan­do mão unicamente de categorias internas ínteiramente apartadas dessemundo sensível, baseando-se em um eu ou consciência transcendentalque fundamentaria essências eidéticas? São possiveis juízos índependen­tes da experiência? A questão não oferece tantos problemas ao conheci­mento dos entes ideais, mas certamente constitui uma aporia para o mun­do real. Como colocou Kant: são possíveis juízos sintéticos a priori? Aío sujeito não parece ter em que se apoiar para pretender que as relações"transcendentais" que estabelece sejam as mesmas relações ônticas darealidade.

4) Aporia do critério da verdade. Como não poderia deixar de ser,o problema do critério para separar verdadeiro e falso interessa muito aHartmann, que dele se ocupa em vários trechos de seus escritos. Suaconcepção de verdade poderíamos chamar de binária; este período daMetafisica do conhecimento é esclarecedor: "O conhecimento ou é ver­dadeiro ou não o é. Uma terceira opção está excluída. Claro que ele tam­bém pode ser parcialmente verdadeiro. Mas sua parte que é verdadeiraserá pura e simplesmente verdadeira, a parte não-verdadeira, pura e sim­plesmente não-verdadeira"!6.

A partir daí é preciso estabelecer se o critério da verdade está naprópria consciência, na linguagem, é imanente, como querem osneokantianos, ou está fora delas. Note-se que a formulação da aporiaparte de uma acepção mais ampla do termo "verdade", mas Hartmannlogo rejeita a tese de que o critério da verdade possa estar exclusivamente

16. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, cit., Cap. 6,p.66.

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no sujeito. Se se encontra na consciência subjetiva, o critério não é ade­quado para objetos exteriores, transcendentes. Na melhor das hipóteses,critérios subjetivos só poderão ser utilizados enquanto referências a re­presentações também subjetivas, imanentes. Na antítese, se o critério daverdade é exterior e independente da consciência, ele próprio seria tãotranscendente e problemático quanto os próprios objetos a que se aplica­ria, necessitando, ele também, de um metacritério que aferisse suaplausibilidade e assim por diante. Uma terceira hipótese seria a de quenão é possivel o critério da verdade, seja ele imanente ou transcendente.Hartmann menciona a hipótese mas sequer a considera seriamente.

5) Aporia da consciência do problema. Essa aporia decorre nãopropriamente da inadequação entre objeto em si e representação do obje­to, mas sim da consciência de tal inadequação. Sem que tenhamos simul­taneamente conhecimento e ignorância de algo, não podemos a rigor terum problema. Se o objeto é tido por inteiramente conhecido, o que paraHartmann não procede, a ilusão da certeza evita a consciência do proble­ma. Se o objeto é intangível, não será sequer pensado e não gerará oproblema. Pode-se expor assim a aporia: ou o fato de o sujeito ter cons­ciência daquilo que não conhece implica uma objetação do transobjetivo,o que parece contraditório, ou o fato de se definir algo como transobjetivodecorre justamente da impossibilidade de objetação17.

6) Aporia do progresso do conhecimento. Aqui coloca-se a ques­tão de como é possível extrair um conhecimento verdadeiro do saber donão-saber, da consciência do problema que dá início à aporética. É umaaporia que não guarda tese e antítese, não é uma antinomia. O problemaé crucial pois, caso seja viável o progresso do conhecimento a partir dosaber do não-saber, então, paulatinamente e com o devido método, tenta­se chegar à identificação entre objiciendum e objectum e eliminar otransobjetivo, ou seja, conhecer tudo cada vez mais. Essa posição otimis­ta tem limite, pois o conhecimento só progride no âmbito doontologicamente objetável e o transobjetivo transinteligível é uma barrei­ra intransponível.

7) Aporia do ser ou aporia da relação entre gnoseologia eontologia. A tese afirma que o conhecimento consiste na auto-superação

17. N. Hartmann, Zur Grund/egungder Ont%gie, cit., Cap. 26, p. 156-73.

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do sujeito cognoscente em direção a outro ser transcendente, O que colocao objeto como elemento principal e conformador do ato gnoseológico; é aposição objetivista. Segundo a antítese, o objeto gnoseológico só é aces­sível ao homem mediante o ato de conhecimento, que é determinado pelosujeito, daí nada podermos afirmar do objeto em si. Por um lado, aontologia é o fundamento da gnoseologia; de outro, só através dagnoseologia poderemos afirmar qualquer coisa do ser". Se todo ente éalgo em si, este conteúdo essencial - ou ao menos parte dele - deveestar disponível quando o ente é transformado em objeto, em algo paramim, aparências e fenômenos. A hipótese de que todo fenômeno é enga­nador não se sustenta nos dados observados, muito embora todo fenôme­no apareça limitadamente. Mesmo assim, como podem dois entes comu­nicarem-se a ponto de ensejarem o conhecimento e, mais ainda, transmi­ti-lo I9? Com base nessa aporia chegou-se a questionar a afirmação habi­tuai de que a gnoseologia exerceria papel secundário na filosofia deHartmann20•

4. Tentativas de teorização

Tada aporía tem sua história, explica Hartmann, e essa história acom­panha e faz parte da própria teoria do conhecimento. A terceira etapa doato gnoseológico, a teoria, é entendida no sentido grego de visão, conjun­to de tentativas de soluções. Os problemas discutidos aqui são todos deespécie metafisica. Pertencem a este grupo de problemas que constituemo objetivo da razão humana, que não os pode rechaçar nem solucionardefinitivamente2l • A crer no que afirma, Hartmann não pretende que a

18. Cf. a solução proposta por M. Reale, Filosofio do direito, São Paulo,Saraiva, 1982, p. 12S~9 epassim, através do termo ontognoseologia.

19. Idem, Cap. 22, p. 140-1, e N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysikder Erkennlnis. cit., Cap. 6, p. 74 e S., ambos sobre a aporia do ser.

20. H. Kuhn, Nicolai Hartmann's ontology, Philosophy Quarter/y, v. 1, p.298, 1951.

21. N. Hartmann, Neue Wege der Ontologie, in Nicolai Hartrnann (org.),Systematische Philosophie, Stuttgart-Berlin, W. Kohlhammer Verlag, 1942, Cap.I, p. 199-311.

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teoria resolva efetivamente as questões levantadas pela aporética. De fato,porém, muitas de suas teorias têm essa pretensão.

É forçoso admitir que toda teoria implica sistematização. A insis­tência de Hartmann, como afirmado aqui, é que, antes da teoria, devem­se impor os problemas. O resultado de uma teoria não deve constituirsistema fechado: havendo desequilibrio na inevitável tensão entre proble­ma e teoria, a falha estará provavelmente nesta última. Essa aparentedesvantagem não justifica que a teoria afaste os problemas mais dificeis;é obrigação do filósofo tratá-los na medida do possivel. Um problemadevidamente esclarecido é base segura para teorização do percebido edelimitação do irracional. Tendo a teoria incursionado competentementena esfera do transobjetivo, acredita Hartmann, ampliam-se as fronteirasdo inteligível e, conseqüentemente, da ontologia.

Também é preciso reconhecer que bá problemas insolúveis. À se­melhança do cientista, o filósofo tem que tomar um ponto de partidapressuposto hipoteticamente para depois ser testado. Mas o problemadeve sempre ser preferido em detrimento das soluções hipotéticas. Casouma hipótese tome menos inteligível o problema sob análise, ela deve serdescartada em prol de outra mais esclarecedora. A atitude mais impor­tante é a submissão ao fenômeno, à descrição fenomenológica.

Aí uma grande contribuição de Hartmann à metodologia filosófica.Explicitou O que em Husserl estava implicito, isto é, que a descrição dosdados é a base do conhecimento mas não é tudo; uma série de enunciadospuramente descritivos não tem sentido sem uma teoria, um discurso coe­rente que os una em uma totalidade, sob pena de " ... ter que escolheroutro gênero literário - tipo o diário de um escritor da época helenística,que se limita a documentar as promessas não cumpridas de sua culturadecadente", como ironiza Habermas". Importante é ter presente que ateoria, por estar mais afastada dos fenômenos e envolver mais acriatividade, as formas de abordagem, a ideologia do sujeito cognoscente,pisa sempre no terreno movediço da dúvida. Mesmo a descrição dos fe­nômenos não se confunde com os próprios fenômenos, uma vez que é

22. J. Habermas, Faktizilat und Geltung~ Beilrãge zur Diskurstheorie desRechls und des demokralischen Rechlsslaals, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1992, p.13 e s.

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discursiva, simbolicamente transmitida através da linguagem. A terceiraetapa do método, a construção da teoria, precisa ser realmente a última,aquela a que só se deve proceder quando houver pelo menos algum acor­do sobre a descrição dos fenômenos.

Então, aplicada tal metodologia, podem-se acolher os problemaslevantados por uma teoria sem aceitar essa teoria, ou seja, sem aceitar assoluções propostas para as aporias. Este o sentido da metafísica dosproblemas.

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~ítulo Quarto

CONHECIMENTO EIRRACIONALIDADE

Sumário: 1. Crítica à metafisica modema e volta à ontologia.2. O ser e o ente. 3. O irracional e a coisa em si. 4. Aporias dairracionalidade.

1. Crítica à metafísica moderna e volta à ontologia

Nicolai Hartmann percebe nitidamente que sua filosofia caminhaem direção oposta ao pensamento dominante na Europa da primeira me­tade do século XX: "De Aristóteles a Christian Wolffa ontologia quis sera 'ciência do ser enquanto tal'. Desde o início, oceticismo levantou con­tra isso a pergunta: como podemos conhecer algo do 'ser enquanto ta!'?Mesmo assim, a crítica colocou a mesma pergunta ainda mais radical­mente. Para ela, o ser enquanto tal é de todo modo chocante, pois ela éidealista. Ela não apenas não pode tolerar o conhecimento de algo em si,como também não tolera o próprio ser em si. Com efeito, o idealismoproveniente da crítica a partir de Kant trouxe consigo esta conseqüênciaem toda a sua rudeza. E o neokantismo a acolheu com toda ênfase"'.

1. N. Hartmann, Wie ist kritische Ontologie Uberhaupt rnõglich?, in VonNeukantismus zur Ontologie, v. 3dos Kleinere Schriften, Berlin, Walter de Gruyter,1958, p. 268.

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Nesse e em muitos outros trechos de seus escritos, Hartmann acusaos filósofos seus contemporâneos de se afastarem das maiores conquistasdo pensamento clássico, principalmente da ontologia como base da teoriado conhecimento e do filosofar em geral. Pode-se acrescentar que estadireção antiontológica combatida por Hartmann continua em nossos dias,pelo menos na forma como as diversas tendências se apresentam, comovêem a si mesmas. Ao contrário do que se possa inadvertidamente pensardesta filosofia atual, diz Hartmann, devemos voltar à problemáticaontológica dos clássicos se quisermos adequar a filosofia às novas con­quistas científicas. Ao invés de se prenderem aos lados mais frágeis da"revolução copernicana" de Kant - tipo o subjetivismo categorial, aética formal ou o pessimismo gnoseológico da coisa em si - os estudio­sos da teoria do conhecimento e de Kant precisam voltar às coisas mes­mas, como advertiu Husserl.

O começo do livro Sobre os fUndamentos da ontologia diz logo:"Por que devemos realmente retornar à ontologia? Não era outroraontológico o fundamento de toda filosofia? E não se derrubou sob ela estefundamento, arrastando na queda a ela mesma e a tudo que estava de pécom ela?"2.

Não parece adequado, como dissemos, tachar Kant de "idealista",sobretudo no sentido pejorativo que a palavra por vezes pressupõe. Mes­mo assim é fácil perceber por que a crítica kantiana deu origem a teoriasdo conhecimento claramente idealistas, como as de Fichte, Cohen ouNatorp. Antes mesmo de Kant, Descartes já inaugurara a teoria do co­nhecimento da filosofia modema, duvidando dos objetos e de suas possí­veis relações com nosso aparato cognoscitivo e achando no sujeito umabase mais segura para o conhecimento. Este seria o método adequadopara combater as ilusões da atitude natural e o chamado preconceito dodado, rejeitar a tese do mundo de que falou Husserl. Hartmann alia-se aoutros seus contemporâneos, como Scheler e Husserl, atribuindo maiorimportância ao objeto; mas, escaldado pela crítica cartesiana, insiste emnão "privilegiar indevidamente" o objeto: há um único plano ontológicoonde se encontram sujeito e objeto. Daí a ontologia do sujeito, ao lado da

2. N. Hartmann, Zur Grund/egung der Onta/ag/e, Berlin, Walter de Gruyter,1965, p. 1.

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ontologia do objeto, pois O sujeito também é parte do mundo, tambémpode ser objeto de descrição fenomenológica. Mas um elemento não sepode reduzir ao outro; a dicotomia sujeit%bjeto é mantida como essen­cial à gnoseologia.

Resumindo as tendências dominantes, e que considera equivocadas,Hartmann acusa o realismo -os empiristas ingleses seriam um exemplo- de querer reduzir o sujeito ao objeto; o idealismo dos neokantianosquer reduzir o objeto às perspectivas do sujeito, e o monismo, seja elemístico ou panteísta-são exemplos Leibniz e Spinoza-, reúne sujeitoe objeto em uma estrutura superior que não escapa aos pecados do idea­lismo'. O problema com essas denominações muito generalizadas de "es­colas" filosóficas é que fica difícil precisar o que cada um entende sobaqueles termos, que grupo de doutrinas querem referir. Hartmann parecesimplificar demais as teorias que deseja combater, sistematiza algunsaspectos quejulga semelhantes e cai por vezes no mesmo erro que critica.

Em maio de 1921, no prefácio à primeira edição da Metaphysik derErkenntnis, Hartmann diz: "Metafisica do Conhecimento pretende seruma nova denominação para a Teoria do Conhecimento - melhor doque Critica do Conhecimento: não uma nova metafisica, cuja base fosseo conhecimento, mas apenas uma teoria do conhecimento, cuja base émetafísica"4. Aíjá está clara a divergência em relação ao ambiente domi­nado pela teoria neokantiana, marcada por preocupações notadamentemetodológicas e pela supremacia da epistemologia como disciplina cen­tral na filosofia. Pode-se dizer, em termos gerais, como já mencionamos,que esse quadro permanece até nossos dias.

Hartmann procura combater as tendências dominantes a partir dedois postulados básicos: em primeiro lugar, o homem não pode ser vistounicamente enquanto sujeito cognoscente, centro de todo conhecimento,ele é também um objeto de conhecimento que deve ser investigado comoparte integrante de uma ontologia universal, sem privilégios preconcebi­dos em um sistema; em segundo lugar, o ser é indiferente a sua colocação- ou não - como objeto de conhecimento e o fato de o examinarmos-

3. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenn/nis, Berlin, Walterde Gruyter, 1946. Cf. Seções II, III e IV da 2' Parte, p. 133 e s.

4. Idem. no "Prefácio", p. III.

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ou não - sob uma epistemologia não o fará apresentar-se diferentemen­te. Daí a classificação de realista' para a filosofia de Hartmann: em certosentido, ela privilegia o objeto.

O tipo de metafisica que nosso autor reúne sob a denominação de"velha ontologia" ou ontologia "tradicional" é submetido a crítica sobdiversos aspectos·, dos quais salientam-se três mais significativos.

O primeiro deles é a construção de sistemas filosóficos em detri­mento da observação das inúmeras facetas com que os objetos no mundonos aparecem, a oposição entre sistema e problema; como o sistemaadotado possui sempre a primazia diante do estudo dos fenômenos, omundo real precisa ser adaptado aos principios gerais do sistema, con­formejá apontado no terceiro capítulo. Esses princípios funcionam comopremissas, das quais os caracteres da realidade devem, conscientementeou não, ser deduzidos. Como a ontologia é indiferente a sistematizações,construções sistematizadas apriorísticamente estão fadadas ao insucesso.Hartmann afirma que a tendência sistematizadora é O maior erro da his­tória da filosofia; e vai adiante quando diz que o conhecimento e as teoriassistemáticas caminham em direções opostas7• A unidade ontológica domundo é um segredo que se descobre através da investigação fenomeno­lógica. "E isto não pode ocorrer se se impõe a ela (á ontologia) um pretensoesquema de unidade - a unidade artificialmente imaginada jamais esta­rá de acordo com ela -, mas somente se se 'procura' nela mesma aunidade naturalmente existente"".

Em segundo lugar, a velha ontologia apresenta um dilema falsa­mente insolúvel, colocando duas posições opostas pelo vértice e ambas

5. Cf. W. StegmUller, Realismo crítico: Nicolai Hartmann, inAjilosojia con­temporânea, trad. E. Martins, São Paulo, EPUIEDUSP, 1977, v. 1, p. 198-229.

6. Daí a expressão realismo crllico, usada por StegmUller.

7. N. Hartmann, Der philosophische Gedanke und seine Geschichte, inAbhandlungen zur Philosophie-Geschichte, v. 2 dos K/einere Schriften. Beetin,Walter de Gruyter, 1957, p. 37.

8. N. Hartmann, Zur Grundlegung, eit., p. 30. Note-se a idéia de descobertade objetos preexistentes, descoberta que se deve processar de forma natural, isto é,correta.

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equivocadas: ou a coisa em si é tida como limite inalcançável, obrigandoa uma resignação diante da incognoscibilidade intransponível e caindo naanálise estéril do processo de conhecimento, ou pretende oferecer solu­ções prontas para problemas que não podem ser alcançados pela razão.Em resumo, ignoram o pano de fundo irracional que escapa á investiga­ção ontológica. Essa base de irracionalidade, por outro lado, não develevar ao ceticismo, já que é também evidente alguma racionalidade nomundo: há sempre algo de cognoscivel no ser. Caso nada valesse a penaser investigado, como querem os céticos mais extremados, não podería­mos sequer levantar problemas, pois nem suspeitaríamos de sua exístên­cia", não teríamos aquilo que Hartmann chamou de aporia da consciên­cia do problema.

Finalmente, como uma decorrência das sistematizações artificiais,a metafisica tradicional não atenta para as esferas ontológicas em que seagrupam os entes e aplica a uns categorias específicas de outros, comoao transferir, por exemplo, princípios mecanicistas para o ser orgânico,categorias orgânicas para a esfera espiritual histórica, ou ao explicar asrelações do mundo fisico em função de uma teologia ou teleologia qual­quer. O desenvolvimento das chamadas ciências fisicas e naturais nomundo moderno teve seu eco, no que diz respeito à filosofia do direito,nessa transferência indevida deparadigmas que Hartrnann aponta comoum dos vícios da velha ontologia.

Este não é de modo algum um problemado passado. O jusnaturalismo"científico" continua com vigor. O velho sonho do naturalismo, devida­mente modificado e adaptado aos tempos modernos, subjaz à engenhariagenética mais radical ou à sociobiologia: com técnicas e instrumentosadequados, argumentam, pode-se conhecer, prever e até construir a per­sonalidade e a conduta humanas, em variável medida, por meio de leismecânicas, fisicas, químicas!o. O eventual erro estaria na incompetênciado ato gnoseológico, da forma de aproximação do objeto. Temos vísto

9. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysikder Erlcenntnis, cit., p. 258 e s.

10. Cf.. por exemplo, a sociobiologia de E. Wilson, Da natureza humana,trad. G. Florsheim e E. Ambrosio, São Paulo, EDUSP, 1981, passim.

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tentativas diversas no sentido de ver no direito o mesmo princípio interativodo cosmos ou de entender o Estado como um organismo vivo, sem que aexpressão seja meramente poética e metafóricall . Mesmo o uso metafóri­co já indica a confusão milenar que, a crer em Hartmann, nos foi trazidae sedimentada por ontologias indevidamente totalizadoras. A filosofiajurídica é pródiga no emprego de tais termos, pois fala de leis "orgâni­cas", "órgãos" estatais, direitos "naturais~' ou na "finalidade" da ordemcósmica.

Se a nova ontologia tem como um de seus objetivos uma teoriaadequada do conhecimento, o caminho escolhido por Hartmann,cartesianamente, é a observação do próprio ato de conhecimento, aindaque tendo presente a prevalência da ontologia sobre a gnoseologia. Oprimeiro dado que se obtém,já vimos, é que conhecer é invariavelmenteconhecer algo, trata-se de atividade de autoprojetar-se para fora de simesmo. Isso significa que o sujeito só pode ser compreendido em razãode um objeto12• A recíproca é também verdadeira, vez que a atividadegnoseológica é uma característica imanente ao sujeito e na medida emque, sem um sujeito cognoscente, o objeto - apesar de existir por si ­jamais será convertido em objeto de conhecimento.

A inter-relação entre ambos os termos tem de ser ontologicamenteadequada para propiciar a gnoseologia, vale dizer, o sujeito, ao conhecer,tenta converter em estruturas lógicas, racionais, com as quais ele traba­lha, as estruturas ônticas intrínsecas do objeto; essa conversão só é pos­sível porque no ser do objeto existem possibilidades para tanto, emboraele não se esgote, como Hartmann a todo o tempo insiste, em semelhantespossibilidades. O conhecimento depende, na perspectiva da nova ontologia,de um sujeito que se projeta em algo e de algo intrinsecamente dotado deadaptação às estruturas lógicas que coordenam tal projeção".

11, Um exemplo está em Pontes de Miranda, Sistema de ciência positiva dodireito, Rio de Janeiro, BOlsai, 1972, Cap. 1. Cf., também, a doutrina racista de H.Nicolai. apud J. Haesaert, Théorie génera/e du droit. Bruxelle, Émile Bruylant.1948, Livro 2.

12. Cf. M. Reale, Experiência e cultura - para afundação de uma teoriageral da experiência, São Paulo, GrijalbolEDUSP, 1977, p. 44 e s. e passim.

13. N. Hartmann. Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, cit., p. 44 e s.

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2. O ser e o ente

O que é o ser? Quais seus predicados? A nova ontologia não sepropõe a definir o ser enquanto talou sequer reconhece que isso sejapossível: "O próprio ser não se pode definir nem interpretar. Mas podem­se diferençar as maneiras do ser e analisar seus modos. Pode-se assimrevelá-los de dentro para fora. Isto se dá na análise modal do ser real eideal"l" Então o ser pode ser investigado, ainda que não possa ser defini­do. Dessa investigação, Hartmann retira caracteres básicos que podemosresumir assim: I) O ser é em si mesmo, independe de ser ignorado, pensa­do, amado, conhecido, em suma, é indiferente a ser erigido em objeto porum sujeito cognoscente. 2) O ser manifesta-se na multiplicidade mas éuno no sentido de que tudo é, todos os entes particulares se unem no fatode que participam do ser. 3) Essa multiplicidade não é desordenada masencontra-se estruturada segundo principios que Hartmann denominoucategoriais. Ele é assim levado da ontologia à análise categorial: inves­tigar o ser é descobrir as categorias que regem as diversas regiões ônticas.Nota-se aí também o desacordo com o existencialismo e o neokantismo:basear a filosofia em um "sentido para o homem" ou reduzi-Ia às catego­rias epistemológicas do sujeito é uma inconseqüência.

Hartmann distingue, aproveitando a distinção escolástica, os con­ceitos expressos pelo particípio presente Seiendes, que podemos traduzirpor ente, e o infinitivo Sein, o ser. O ente é entendido como aquilo que éou algo que participa do ser, algo sendo; Sein, por seu turno, é expressãoque denota o ser como tal, os entes em sua totalidade. Nas palavras deHartmann, "Ser e ente se diferenciam da mesma maneira que verdade everdadeiro, efetividade e efetivo, realidade e real. (...) O ser do ente éúnico, não importa quão multifacetado este possa parecer. Todas as ou­tras diferenciações do ser são, destarte, simplesmente particularizaçõesde maneiras de ser"lS.

À medida que consolida seu pensamento, Hartmann vai separandomais nitidamente os conceitos de metafisica e ontologia: diante do pano

14. N. Hartmann, Alte-und neue Ontologie, in Von Neukanlismus zurOnto/agie, cit., v. 3 dos Kleinere Schrijien, p. 335.

15. N. Hartmann, Zur Grund/egung, cit., p. 36.

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de fundo de irracionalidade que subjaz a tudo aquilo que é, a metafísicatem por tarefa penetrar no incognoscível e tentar afastar para cada vezmais longe as fronteiras dessa incognoscibilidade; a metafísica funcionacomo uma linha de frente ou vanguarda da ontologia, procurando ampliaro terreno seguro de que a ontologia precisa. A ontologia ocupa-se maisespecificamente da parte cognoscível do ser; por isso mesmo, ela é maisrigorosa do que a metafísica.

É importante observar que o sentido de ontologia exposto no pará­grafo anterior corresponde ao sentido mais restrito em que Hartmannemprega o termo. Em uma acepção mais ampla, tanto a metafisica quan­to a ontologia em sentido estrito são ontológicas,já que o seré o objeto deseu discurso. Nessa acepção mais ampla, o conceito de ontologia se con­funde com o próprio ser, pois ser é também logos, é também gnoseologia;a ontologia é anterior a qualquer pensamento gnoseológico, ela observa oser a partir do indeterminado. A isso Hartmann denomina aporiaontológica fundamental: a ontologia é a fonte de todo conhecimentomas só através deste é possível chegar a ela. A filosofia primeira que aontologia de Hartmann pretende construir resulta em uma filosofia últi­ma: pela observação de problemas aparentemente isolados chega-se, sefor O caso, à unidade sistêmica; uma vez que a multiplicidade é o dado daexperiência, só percebemos objetos individualizados; então é deles quetemos de partir l6.

"Ser em si é independência; ser objeto, dependência... O ser objetonão é, em absoluto, ser em si. Descansa sem dúvida sobre ele mas nãocoincide com ele."17 Sim, diz Hartmann, todo objeto de conhecimentotem por trás de si seu aspecto ontológico. Será impossível para o sujeitocognoscente conhecê-lo tão profundamente a ponto de fazê-lo coincidircom seu ser independente, mas este é o propósito do ato gnoseológico.

Hartmann não nega suas origens kantianas. Kant estava certo natese de que as condições de possibilidade do entendimento não são exclu­sivamente objetivas e devem adequar de alguma maneira sujeito e objeto,mas jamais, como em Kant, adequar o objeto ao sujeito. As categoriasnão são subjetivas: possibilitam o conhecimento, é certo, mas exclusiva e

16. Idem, p. 28 e 31.

17. Idem, p. 151.

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1fli

justamente porque regem ao mesmo tempo sujeito e objeto. Acontece 11110

essas categorias jamais são plenamente adequadas, mesmo levando emconta a transcendência do conhecimento. O conhecimento não é um merofenômeno da consciência, como o são, por exemplo, as representações, opensar, a fantasia. O conhecimento é um ato transcendente, uma relaçãoentre a consciência e o objeto. Um ato transcendente "não se processaunicamente na consciência - como pensar, imaginar, fantasiar -, po­rém ultrapassa a consciência, vai além dela e a une àquilo que permaneceem si e independente dela"". Mais ainda, as categorias não são plena­mente adequadas devido à presença do irracional.

3. O irracional e a coisa em si

Irracionalidade é, em Hartmann, um conceito gnoseológico que nãose confunde com o conceito de ser em si tal como exposto por Kant.Hartmann retoma a crítica tantas vezes feita ao kantismo e indaga comose pode afirmar algo de um mundo noumenal, intangível em todos ossentidos. Defende então a tese de que o ser em si nos é também acessivel,ainda que apenas em parte, juntamente com os fenômenos, enquanto oirracional refere-se exclusivamente à incognoscibilidade. Separando de­vidamente ontologia de gnoseologia evita-se a confusão: a coisa em si éuma modalidade do ente, enquanto que o irracional é uma modalidade doconhecimento. É o conceito de irracionalidade que legitima a metafisicade Hartmann como metafísica dos problemas e o leva a atribuir umsentido positivo à coisa em si kantiana, contrariando a interpretação daescola neokantiana, que tem a coisa em si como uma necessidade lógica,limite intransponivel do conhecimento, sem conteúdo ôntico, conformejáexaminado.

Em outras palavras, para Hartmann o irracional não se confundecom a coisa em si, pois esta é racional ainda que parcialmenteincognoscível: por um lado, mesmo aquilo que é conhecido sob deter­minadas perspectivas tem seu aspecto irracional; de outro, a coisa emsi não implica necessariamente irracionalidade, mas mera irraciona­lidade para nós.

18. Idem, p. 146.

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4. Aporias da irracionalidade

No que diz respeito à estruturação gnoseológica, racionalidade versusirracionalidade do ser, a terminologia de Hartmann pode ser assimesquematizada:

A doutrina da irracionalidade é o principal argumento de Hartmanncontra a tese neokantiana de que o pensamento produz seus objetos. Oirracional seria a prova da resistência que o objeto oferece ao sujeito.

No plano ético, o problema é também relevante. Diferentemente deKant, para quem a dúvida resignada da razão pura teorética cede lugar àscertezas da razão pura prática, quando o agir, a conduta, está em jogo,Hartmann considera que o irracional gnoseológico se apresenta em todasas esferas ontológicas, a ideal, a inorgânica, a orgânica e a espiritual, daqual faz parte a ética. A ontologia pode ajudar na descoberta de cam i­nhos para os problemas éticos, mas nunca fornecer critérios decisivos,tenham estes conteúdo material, sejam eles puramente formais. A situa­ção das ciências matemáticas e naturais é mais cómoda, posto que, emregra, não se vêem constrangidas a decisões de caráter ético, a escolherentre alternativas igualmente possíveis. Já que não há imperativos cate­góricos na ética materialde Scheler e Hartmann, como veremos, e diantede um bloqueio inevitável da irracionalidade, as questões básicas da éticaprecisam ser tratadas na base do acordo e do "bom senso", cujo grau deracionalidade, ainda que nunca absoluto, permite pistas razoavelmenteseguras.

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f(---- ESTÁ CONTIDO

TRANSOBJETIVO TRANSINTELIGiVEL

TRANSOBJETNO {OBJETADO {OBJETÁVELINTELIGÍVEL (CONHECIDO) (COGNOSCÍVEL)

)CONTÉM

EMINENTEMENTE

IRRACIONAL

100

As aporias que envolvem a idéia de coisa em si, diz Hartmann, sóprejudicam a investigação quando a perspectiva gnoseológica não estáontologicamente orientada; se se considera que o mundo das aparências,fenomênico, também revela o ser dos entes, o conceito de Kant se tornasupérfluo, já que o fenómeno não consiste em mera representação doobjeto na consciência mas sim, embora parcialmente, do próprio objetoem si. Daí a afirmação de que o objeto transcendental não se confundecom o objeto empírico, é "mais" do que isso, pois a ele subjaz a infinitude,a transcendência, a "totalidade das condições" de um objeto que é inten­cionalmente destacado de nossa experiência. A aproximação do objetotranscendental precisa levar em consideração, por exemplo, a relaçãoentre as categorias daquele determinado objeto empírico e outras catego­rias contextuais que não incidem sobre ele. "O 'objeto transcendental' émais do que o objeto empírico. Ele não é absorvido pela experiência, sejaela efetiva ou possível. A ele pertence a 'totalidade das condições' que,no objeto natural, permanece transcendente enquanto infinitude"19.

O sentido negativo da coisa em si como limite do conhecimento,sobre que se concentraram os neokantianos de Marburgo, é transferido,com importantes modificações, para o irracional. Este não diz respeitoao próprio ser, como dito, mas sim a sua mera apreensão pelo homem; éum conceito diretamente relacionado com nossa experiência cognoscente.O irracíonal não é impensável ou alógico, porque é ontológico, mas ape­nas transinteligível e incognoscível. Em Hartmann, o objeto da filosofia,o ser, é ontologicamente racional, mesmo que tal racionalidade seja paranós inatingível. Pode-se objetar que assim caímos no erro de Kant, afir­mando algo de algo intangível. Mas, como veremos, o irracional deHartmann é como que intuído, vai-se desvanecendo a partir daracionalidade, não é abrupto como a coisa em si kantiana. Diferentedesta é a posição de outro pós-kantiano, Emil Lask, para quem airracionalidade é parte do ser dos objetos, integra sua própria natu­reza20 .

19. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, cit., p. 234-5.20. Cf. T. Ferraz Jr., Conceito de sistema no direito - uma investigação

histórica a partir da obra jusfilosófica de Emil Lask, São Paulo, EDUSPIRevistados Tribunais, 1976, p. 84 e s.

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Em uma extremidade tem-se o conhecido, aquilo que já foi efetiva­mente tornado objeto - objetado - pela consciência cognoscente. Aesta região do já conhecido Hartmann denomina pátio dos objetos (Hofder Objekte). Mesmo aqui, nada obstante, esses objetos conhecidos guar­dam ainda conteúdos irracionais que não se esgotam em seu mero serobjeto - daí o "estar contido" no eminentemente irracional; ao mesmotempo em que se mostram como fenômenos, revelam parte de seu ser emsi. Em diálogo crítico com Kant, diz Hartmann: "Se só o transobjetivofosse em si, mas não o objetado, haveria de se concluir que, com o pro­gresso do conhecimento, o ser em si iria se tornando passo a passo supri­mido ou aniquilado". "Ao sujeito não lhe faz frente agora somente a parteobjetada do objeto total, mas também a não-objetada, o transobjetivo.Este não é objectum mas é certamente objiciendum"21.

A esfera efetivamente conhecida insere-se em uma outra mais am­pla que, apesar de ainda não apreendida, apresenta caracteres ônticosque a fazem suscetível de vir a ser erigida em objeto: é o cognoscível ouobjetável, o horizonte da busca e do progresso do conhecimento. Ocognoscível faz parte do transobjetivo inteligível, a região do sertransobjetivo que pode ser pensada e dentro de cujos limites trabalham arazão e a metafísica. O transobjetivo transinteligível é o setor onde arazão humana não consegue penetrar e corresponde ao irracional propria­mente dito, íncognoscível ou alógico. Todo o esquema gnoseológico estáenvolvido pelo que Hartmann chamou de eminentemente irracional (daseminent Irrationale).

Veja-se que o irracional aqui não é um conceito absoluto, mas admi­te gradações e zonas cinzentas entre seus estágios, diante da capacidadecognoscitiva do ser humano. As fronteiras entre essas regiõesgnoseológicas discriminadas no esquema são tênues e mutáveis, emboratambém guardem seu ponto irredutível. Há a região irracional casual,que não se deixa apreender pela lógica, o irracional enquanto ausênciade fundamentação; há o irracional lógico porém transinteligível,incognoscível, que não se deixa conceituar devido aos nossos limites; ehá O eminentemente irracional, ao mesmo tempo alógico e incognos­cível.

21. N. Hartmann, Zur Grundlegung, cit., p. 154 e s.

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l~_

Muito da confusão que se estabeleceu na metafisica tradicional,explica Hartmann, deve-se a este aspecto aporético da irracionalidade:parte do transobjetivo transinteligível, embora não se deixe rigorosamen­te conhecer, pode ser intuído. Na palavra ratio estão presentes os doissentidos, o irracional perceptível mas alógico e o irracional lógico masincognoscível. Este irracional intuível mas não racionalizável, alógico,pode ser pensado e até problematizado, mas permanece transinteligívelpor não se deixar apreender pelas categorias que regem a atividadegnoseológica. Ele está presente em todas as esferas do ser, em todos osentes, tanto em sua generalidade quanto individualidade. Éele que legiti­ma a metafísica, abrindo o caminho para a ontologia, e permite ao filóso­fo discorrer sobre a irracionalidade mesmo diante de sua irredutívelincognoscibilidade a partir de certo ponto. Os valores são um exemplo deobjetos que podem ser corretamente intuídos mas não racionalizados,devido a seu caráter alógico. Como exemplos da irracionalidade lógicamas transinteligível podemos citar os chamados números irracionais nateoria matemática dos conjuntos. Assim, essas gradações do irracionalnão excluem a possibilidade de algum conhecimento.

Absolutamente incognoscivel é o eminentemente irracional, cujaestrutura ôntica não guarda qualquer correspondência com a estrutura denosso aparato cognoscitivo. Ele está totalmente afastado de nossa per­cepção e só admite predicados negativos: inintuível, incognoscível, alógico,intangível. Não pode sequer ser pensado, no sentido estrito do verbo, masunicamente pressuposto. Aí a crítica explícita a Husserl: "Isto é o que asentença de Husserl enuncia: tudo aquilo que é, é também cognoscivel. Oente é em si sem defesa contra O conhecimento. É de sua essência ofere­cer-se onde e quando quer que o conhecimento a ele se dirija. A questão éapenas: é também da essência do conhecimento poder dirigir-se a tudoaquilo que se lhe oferece? É o conhecimento, por seu lado, capaz defazer, de tudo aquilo que é, seu objeto?"". Percebe-se aqui que Hartmann,em sua polêmica com o psicologismo e com a fenomenologia de Husserl,volta contra si mesmo suas críticas à coisa em si de Kant23 . Por constituir

22. Idem, p. 158.23. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenn/nis, cit., p.

161-2.

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a mais ampla das esferas gnoseológicas, na qual estão contidas todas asdemais, o eminentemente irracional é também responsável pelo fundoincognoscível que permanece mesmo no pátio dos objetos, ou seja, diantede entes que julgamos conhecer perfeitamente.

Um outro fenômeno importante que a doutrina da irracionalidadeem Hartmann explica é que todo o individual é, em certo sentido, irracío­nal. À individualidade, uma das características ontológicas do mundoreal, não se adapta nosso aparato cognoscitivo, incapaz de funcionar semgeneralizações. O individual é irracíonal por ser irredutivelmente contin­gente. Há uma novidade radical em tudo o que é real e, por isso, qualquerregra geral estabelecida pela razão seleciona aspectos ônticos em detri­mento de outros. Vê-se que, na linha de uma longa tradição, Hartmannune razão à generalização. A irracionalidade individual é qualitativa­mente infinita, pois o individual nunca se repete, ao lado do aspectoquantitativamente irracional de qualquer ente.

Hartmann procura se livrar da aporia da coisa em si ao insistir naunidade ontologicamente racional formada pelo ser; a racionalidade quepor acaso percebemos é parte irrecusável do ser e nada nos mostra odemônio enganador de Descartes. Só que nossa racionalidade é limitada.Mas isto é uma questão de grau: o seré racional, apesar do eminentemen­te irracional, e teorias como a de Lask ou a do próprio Kant são, a esserespeito, artificiosas. Não há o ser ontologicamente irracional: "Aindaque não haja nada irracional em si, muito bem pode haver, apesar detudo, algo irracional para nós"24. Não é sensato considerar algo como emsi aleatório apenas em função de sua impenetrabilidade para o homem,única evidência fenomênica de que se dispõe. Apelando para a soluçãomais simples, Hartmann acha mais acertado crer na hipótese contrária,vez que a razão parece adequada, e parcialmente, a apenas algumas dasfacetas do ser.

24./dem, p. 159.

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Capítulo Quinto

RACIONALIZAÇÃO DO SER ECATEGORIASONTOLÓGICAS

Sumário: I. A análise categorial do ser. 2. Categorias damodalidade. 3. Categorias fundamentais e categorias especiais.4. Princípios categoriais.

1. A análise categorial do ser

Quatro dentre as obras de Hartmann são por ele mesmo chamadasos "volumes ontológicos"', pois pretendem aplicar praticamente agnoseologia antes desenvolvida, resumindo a metodologia de nosso au­tor: a descrição dos fenômenos, as aporias que tal descrição suscita e aseventuais soluções encontradas. Tais obras são: Sobre os fundamentosda ontologia, Possibilidade e efetividade, A construção do mundo real eFilosofia da natureza - Esboço da teoria especial das categorias.

Esses escritos não serão examinados em detalhe aqui, já que nãodizem respeito direto a nosso tema. Ainda assim, um breve resumo dessaontologia ajudará a compreender determinada visão do direito enquantoparte do mundo.

I. N. Harlmann, Philosophie der Natur - Abri) der spu/./l.nKategorien/ehre, Berlin, Walter de Gruyter. 1950, Prefácio, p. V.

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A análise das categorias que regem o ser, os entes, os objetos, se­gundo a metodologia aplicada por Hartmann, parte dos principios maisgerais em direção aos mais especificos, dedutivamente. Pode-se começar,então, pelas dicotomias fundamentais ser-assim (Sosein ou es.•ência natradição escolástica) versus ser-aí (Dasein ou existência), e real versusideal2•

Hartmann comcça por apontar um erro que considera fundamentalna tradição filosófica ocidental, erro de Platão incorporado pela doutrinada Igreja Católica, que é a identificação entre essência e idealidade, porum lado, e existência e realidade, por outro. Na descrição de Hartmann,todo e qualquer ente é dotado de essência e existência, não importando seo ente é real ou ideal; uma dicotomia não serve de critério a outra. Reali­dade e idealidade são modos, essência e existência são momentos do ser.Como todo ente pertence a uma ou a outra esfera modal, a relação entreelas é disjuntiva; os momentos, por seu lado, guardam relação conjuntivaentre si, posto que todo ente apresenta simultaneamente essência e exis­tência, independentemente da esfera a que pertence. Quer dizer, o ser­assim do objeto ideal é ideal, seu ser-aí, também ideal; o ser-assim doobjeto real é ideal, seu ser-ai, reaP.

A confusão de Platão tem origem na má interpretação de um dadoontológico por ele percebido, qual seja, o de que a essência de todo equalquer ente é ideal, seja essa essência referente a um ente ideal, seja aum ente real. Os caracteres que fazem com que determinado objeto sejaassim e não de outra maneira são obtidos pela redução fenomenológicatranscendental, de que já tratamos ao falarmos de Husserl; essa essênciapertence sempre à esfera ideal. Platão viu isso mas foi levado a confundiros conceitos de essência e existência, colocando a essência ideal comoúnica/orma verdadeira de algo ser.

A essência fenomenológica da figura geométrica triângulo, por exem­plo, são seus três lados e três ângulos, sendo indiferente se ele permaneceem sua esfera ideal original ou se está materializado no quadro ou no

2. N. Hartmann, Zur Grundlegung der Ontologie, Berlin, Walter de Gruyter,1965, p. 81 e s.

3. J. Wahl, La théorie des catégoriesfondamentales dans Nico/ai Ifarlmann-Ies cours de Sorbonne, Paris, Toumier et Constants, 1954, p. 83 e s.

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papel. Sua materialização (pode-se dizer realização), ou não, será impor­tante para determinar a que esfera o ente em questão pertence: o triângulooriginal é ideal, o triângulo no papel é real, suas características ônticassão diferentes, apesar da mesma essência.

Por conseguinte, se toda essência é ideal- aí estava correta a per­cepção de Platão -, não é no Sosein que estará a distinção entre asesferas modais real e ideal, ela terá que ser procurada no Dasein, naforma de existir dos entes. Quer dizer, não é somente a realidade queexiste, também a esfera ideal tem sua maneira particular de existência,uma existência ideal regida por categorias modais distintas daquelas darealidade, como veremos.

Para além da disjunção entre as esferas modais, a conjunção entreos momentos do ser também levanta problemas. A tese de Hartmann é aseguinte: porque os entes representam apenas parcelas do ser em suatotalidade, a essência de um ente depende da existência de outro e vice­versa. A introdução de um concerto, por exemplo, é um conceito cujaessência é determinada pela existência do concerto em que está ínserida,o que a faz ser uma "introdução": ela só é o que é, uma introdução a umconcerto, porque existe o ente mais amplo que a contém, o concerto.Inversamente, a essêncía do concerto, ficando em nosso exemplo, estádeterminada pelaexístência da introdução que,juntamente com os temas,o desenvolvimento, a reexposição (supondo que se trate de concerto emforma-sonata) etc., fazem-no ser tal qual é.

A mesma inter-relação ocorre no ser ideal: a essência de um triân­gulo retângulo depende da existência (mesmo ideal é existência) de umângulo de noventa graus e de dois outros ângulos de menor amplitude,enquanto a essência desses ângulos componentes do triângulo retângulodepende da existência deste mesmo triângulo de que são parte. Sem aessência dos raios, não existe circunferência; sem a existência da circun­ferência não há que se falar em raio. Hartmann descreve os dois gruposde oposições: "Uma delas ocorre entre essência e existência ou, em umaconcepção mais geral, entre ser-assim e ser-ai. A outra é a dos modos eesferas do ser: entre efetividade e possibilidade, real e ideal. Aqui nãosubsiste a mesma indiferença"'.

4. N. Hartmann, Zur Grundlegung, cit., p. 82.

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Isto posto, vejamos os caracteres que distinguem realidade deidealidade, caracteres existenciais, e não essenciais, poisjá sabemos quetoda essência, mesmo de entes reais, é ideal.

Os critérios são dois: em primeiro lugar, a individualidade. Nadado que existe no ser ideal, afirma Hartmann, possui o atributo da indi­vidualidade: só o real é material e irredutivelmente individualizado, daínão existirem dois entes reais iguais; todo ente possui atributos específi­cos. Do ponto de vista gnoseológico, observa Hartmann, o ser humanotende a ver mais individualidade á medida em que passa a analisar entesreais mais complexos e mais próximos da noção que tem de si mesmo.Esta pessoa, por exemplo, parece mais única do que aquela pedra. Isso éuma ilusão gnoseológica. Ambas são onticamente individualizadas,inobstante o fato de sua individualidade afetar o aparato cognoscitivohumano com diferente intensidade. A irracionalidade do individual égnoseológica, como visto no capítulo quarto, e está em função de suainfinitude qualitativa: se duplicarmos nossa capacidade perceptiva atra­vés de instrumentos e observarmos duas estátuas, que agora parecemiguais, aparecerão novas diferenças e assim por diante até o infinito, nãoimporta quanto aumente a percepção. Por mais que se alarguem as fron­teiras do objetado, o sertransobjetivo é irredutivelmente irracional. Umadas formas mais importantes de manifestação da irracionalidade está nainfinitude qualitativa do individual e, por conseqüência, do ser reaJS.

A segunda distinção entre o ser ideal e o ser real está em que só estese insere no fluxo da temporalidade. O espaço, por exemplo, categoriadimensional de grande importância, não pode ser utilizado como critériodistintivo porque rege tanto o ser ideal quanto as camadas inferiores darealidade6. Três fatores compõem a temporalidade: processualidade, iden­tidade e limitação.

A processualidade significa que, por estar sujeito ao tempo, tudo oque é real flui, ou seja, é mutável. Todo ente real está sujeito a um proces-

5. Isto no sentido técnico em que Hartmann emprega o termo realidade. Nalinguagem comum, tanto no adjetivo real quanto no advérbio de modo realmente,a idéia de realidade é simplesmente associada à existência, como bons platônicosque somos.

6. N. Hartmann, Phi/osophie der Na/ur, cit., Caps. 8 e 9, p. 1t3 e s. e 123 e s.sobre o espaço; sobre a temporalidade, cf., sobretudo, o Cap. 14, p. 189 e s. O Cap.17, p. 234 e s. critica a teoria da relatividade.

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so de modificação em interação com outros entes reais inseridos natemporalidade. A identidade expressa a permanência dentro do proces­so. Como o real é mutável, a permanência da identidade nada mais mos­tra do que a modificação em ritmo mais lento, o algo mais definido emtorno do qual alguns acontecimentos reais se processam. Tudo o que éreal muda, mas não na mesma intensidade; e só por isso percebemos amudança. O que os quimicos chamam substância, por exemplo, expressaa identidade e consiste justamente no substrato residual que se identificaao longo do processo. A limitação significa que todo ente real é finito notempo, ou seja, que a mutabilidade tem um termo e todo processo realocorre entre dois extremos, o surgimento e o desaparecimento.

Separadas as esferas modais real e ideal do ser, é precíso agorainvestigar suas subdivisões, pois ambas se apresentam multifacetadas.Hartmann conclui que a esfera real compõe-se de quatro camadas ouestratos: o inorgânico, o orgânico, o animico e o espiritual. Os doisprimeiros formam o mundo realfisico, os dois últimos, o mundo realpsíquico. A esfera ideal não se encontra dividida em estratos superpostosmas sim em entidades independentes e de mesmo nivel ontológico: sãoelas as essênciasfenomenológicas, de que já se falou aqui, as entidadesmatemáticas como os números, corpos geométricos, suas propriedadesdiversas, e os valores.

Note-se no esquema a seguir que cada estrato superior é superiorexatamente no sentido de que se edifica sobre os estratos inferiores, osquais são básicos e funcionam como alicerces de apoio. Assim, todo enteespiritual é também anímico, orgânico e inorgânico, todo anímico é tam­bém orgânico e inorgânico e assim por diante7• A esfera ideal, por seuturno, penetra na esfera real e a determina, cooperando para sua compo­sição ôntica, para a construção do mundo real'. A influência é unilate-

7. Sobre o Stufenbau, a estrutura de camadas ou estratos do ser real, cf. N.Hartmann, Neue Wege der Ontologie, in Nicolai Hartmann (org.), Sys/emalischePhi/osophie, Stuttgart-Berlin, W. Kohlhammer Verlag, 1942, p. 199-311, especial­mente o Cap. 5, p. 231-40 e o Cap. 8, p. 255-63.

8. Tal estrutura, correspondente ao que Hartmann denomina princlpioscategoriais, é melhor expressa pelo termo AUfbau do que na tradução fdbrica (deJosé Gaos); preferimos atradução construçilo. Se ela ainda carrega a desvantagemde dar uma idéia de artificialidade, o termo fábrica traz o mesmo problema.

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ral: os estratos inferiores, como veremos, não são determinados pelascategorias dos superiores'.

11.1. Wahl, La théorie des catégoriesfondamentales dans Nicolai Hartmann,cit., p. 3-5.

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não fazem parte do mundo real, individualizado e inserido no tempo. Maselas também não são essências fenomenológicas nem fazem parte do serideal: não se pode assumir a dicotomia inicial entre as esferas real e ideale depois admitir que categorias ideais, como é o caso das essênciasfenomenológicas, regessem a ambas. As categorias, conclui Hartmann,estão presentes tanto na realidade quanto na idealidade, ainda que incidindodiferentemente.

As categorias não são subjetivas, como em Kant, elas são anterioresà separação gnoseológica entre sujeito e objeto e os determina simultanea­mente. Pelo mesmo motivo, as categorias não são conceitos, instrumen­tos gnoseológicos construidos já a partir das categorias ontológicas. Ascategorias são responsáveis pela racionalidade intrinseca do ser, pontoem que Hartmann se distingue de Lask, como visto. Em suma, se o ser édeterminado por categorias, estas não são em sentido estrito, isto é, nãotêm um ser em si, próprio, pois tudo o que é, é cm si, c tudo o que é em sisó o é devido à incidência das categorias.

Assim, podemos dizer que as categorias seriam princípios deracionalidade que regem todos os entes. É este exatamente o primeiropar de categorias fundamentais ou elementares na ontologia de Hartmann,como veremos adiante: o princípio, ou categoria-base propriamente dita,e o concreto, o ser determinado pelas categorias". Para ilustrar o queentende por categorias, Hartmann recorre a exemplos que, em seu enten­der, reafirmam a clareza do termo: "(Ao pesquisar) Sobre as determina­ções fundamentais do ente, e nomeadamente no que concerne a seu con­teúdo, deve-se tratar das categorias. Esta é uma tarefa óbvia, na qual nãohá muito a esclarecer. Pois se se continua a questionar o que são catego­rias, a resposta mostra-se por si mesma tão logo se apontam exemplos:unidade e multiplicidade, quantidade e qualidade, medida e dimensão,espaço e tempo, movimento e inércia, causalidade e adequação a leis eassim por diante. Conhecemos tais determinações do ser mesmo sem qual­quer investigação, elas se nos revelam intimamente, deparam-se-nos a

{

ESTRATO ESPIRITUAL

ESTRATO PSíQUICO

{

ESTRATO ORGÂNICO

ESTRATO INORGÂNICO

MUNDO ANÍMICO

MUNDO FÍSICO

VALORES

ENTIDADES MATEMÂTICAS E LÓGICAS

ESSÊNCIAS FENOMENOLÓGICAS

ESFERA

REAL

ESFERA

IDEAL

Esse esquema mostra o resultado da análise categorial levada aefeito por Nicolai Hartmann. A expressão refere-se ao estudo e conheci­mento das categorias, termo emprestado da metafisica de Aristóteles eempregado por muitos pensadores, Hartmann inclusive. A definição dotermo é controversa: "O que exatamente se quer dizer com a palavracategoria, seja em Aristóteles, Kant ou Hegel, devo confessar que jamaisfui capaz de compreender"lo.

Apesar dessas dificuldades, Hartmann parece ter bem claro o senti­do do termo que designaria aqueles princípios básicos que determinam eordenam o ser. Por sua universalidade e atemporalidade, as categorias

9. Para o ser ideal, cf. N. Hartmann, Moglichkeit und Wirklichkeit, Berlin,Walter de Gruyter, 1966, Cap. 38, p. 275 e s. Sobre a Kompossibilitiit, na mesmaobra, Cap. 42, p. 303 e s.

10. B. Russell, History Df Western philosophy - and its conneclion wi/hpoliticai andsocial circumstancesfrom lhe earliest times /0 lhe presem day, London,RoutIedge, 1993, Livro I, Cap. 22, p. 210.

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cada passo na vida. Dentro de certos limites, as categorias são o evidenteem todas as coisas; o •• "12.

lIartmann acrescenta que, na origem, o termo categoria significapredicado (Aussage, Pradikat), sentido enfatizado por Aristóteles. Masadverte, como sempre, que essa função gnoseológica é secundária. As­sim como o juízo (Urteit), as categorias são as formas mais gerais paraexprimir predicados de algo e, simultaneamente, expressam as determi­nações/undamentais do algo sobre que incidem. Hartmann compara oconceito de categoria ao conceito de juízo: "O que vale para o juízo, valetambém para os predicados ontológicos fundamentais (categorias): aomesmo tempo em que constituem as formas de assertíva mais gerais - epossibilitam as assertivas especiais - expressam nada menos do que asdcterminações fundamentais dos objetos a que se referem"".

O termo categoria, em que pese a obviedade com que Hartmann otrata, é de difícil definição. Não é simples perceber o que significam es­sas "determinações fundamentais", ao mesmo tempo em que se nega pe­remptoriamente a identificação entre categorias e conceitos, palavras re­ferentes a objetos ou entes. Hartmann parece entender as categorias comorelações objetivas, ou ônticas, que não corresponderiam a nenhum objetoexatamente e sim a relações entre eles; mas esse conceito relacional nãoaparece nitidamente. E conceitos seriam referências lingüísticas tanto aessas relações objetivas quanto aos objetos isolados ou aos objetos entreos quais as categorias se dão. De todo jeito, seria indispensável umaconceituação de categoria, e isso Hartmann, seguindo a tradição, nãoesclarece.

2. Categorias da modalidade

As categorias modais são aquelas cuja incidência separa o ser emreal e ideal; são também chamadas de modos neutros, pois estão presen­tes nos dois modos, realidade e idealidade, os quais se separam de formaabsoluta (o que é real não é ideal e vice-versa). Hartmann procura evitar

12. N. Hartmann, Der Aujbau der rea/e" We/t - Grundij3 der allgemeinenKalegorienlehre, Berlin, Walter de Gruyter, 1940, Introdução, p. 2-3.

13. Idem, p. 5.

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as implicações metafisicas da filosofia tradicional, descrevendo o quedenomina relações intermodais. As categorias modais são a possibilida­de, a efetividade e a necessidade, além de seus opostos impossibilidade,inefetividade e casualidade; elas às vezes se excluem, às vezes se impli­cam mutuamente e podem ser também indiferentes umas às outras. Eganham um sentido peculiar, um pouco diferente do senso comum, comoserá visto adiante.

De acordo com a tradição clássica, de origem aristotélica, em queHartmann vai buscar as aporias sobre as categorias modais, o possível sedistingue do e/etivo em função da existência ou não-existência do objeto.A existência de uma coisa em Aristóteles significa que a potência seconverteu em ato, que algo antes meramente possível passa a concreto,efetivo. A visão de Aristóteles é semelhante à do senso comum e ao usocorrente dos termos possível e efetivo: aquilo que é possível compreendeao mesmo tempo o efetivamente existente e o não-existente que pode vira acontecer. Tomemos uin exemplo simples, a chuva: dizemos "é possívelchover à noite", mesmo sabendo que só uma das alternativas se efetivará,ou chove ou não chove.

Hartmann retoma a tese da Escola Megárica grega e discorda dasolução clássica para as relações intermodais. Argumenta, no que dizrespeito à esfera real, que o possível e o efetivo sempre coincidem, o queimplica serem eles também necessários; isso significa que os objetosreais são sempre simultaneamente possíveis, efetivos e necessários, nãohá saída para esse rigido determinismo que governa a esfera modal darealidade14 . O senso comum, em cujo erro cai também Aristóteles, consi­dera que é igualmente possível algo realizar-se ou não, unicamente devi­do ao desconhecimento das condições efetivamente exístentes: para per­manecer no exemplo dado, diz-se que é possível chover ou não chover emdeterminado momento apenas porque não são inteiramente conhecidas as

14. Respectivamente MoglichIreil, Wirklichkeil e Notwendigkeil. A traduçãode J. Gaos nos parece feliz: ainda que a expressão Wirklichlreit seja empregadacomo sinónimo de Reafirm, em seu uso comum, não se deve confundir aqui a esferareal do ser - Realittil- com aefetividade - Wirk/ichkeit-. uma de suas catego­rias modais. Nãe muito clara é • sugestão de L. Legaz y Lacambra, Filosofia deiderecho, Barcelona, Bosch, 1972, p. 38.

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relações atmosféricas. Algo real só é possível quando estão presentes,efetivos, todos os seus pré-requisitos; então, se tais requisitos estão defato presentes, aquele algo não é apenas possível e efetivo, é tambémnecessário. Conhecendo-se a totalidade das condições ambientais, chove­rá efetivamente, de modo necessário, sempre que for possível chover. Senão está efetivamente chovendo, isto ocorre necessariamente, não seriapossível chover naquele momento I'.

Não se pense que esse determinismo, descrito por Hartmann díantedas categorias da modalidade, implica um determinismo generalizado sobo império da causalidade. Isso seria distorcer o pensamento de Hartmanne transplantar para outras dimensões as relações detectadas apenas entreos objetos reais. Como esse problema será examinado adiante, guarde-sepor ora que o ser espiritual, apesar de real, escapa ao império da causa­lidade porque os valores ideais penetram através do espírito na realidadee fazem surgir o imponderável na ação humana. O ser ideal como umtodo perpassa e suas categorias ajudam a reger as camadas do ser real.Mas, entre os entes conhecidos por nós, só o homem está aparelhado paracaptar os valores, só o ser humano é espiritual e livre neste sentido obje­tivo. Quando o homem age na realidade, contudo, sua ação é estritamenteregida pelas categorias modais da realidade e suas inter-relações causais:o ser real é determinado de maneira irreversivel.

As três categorias da modal idade estão presentes em ambos os mo­dos, real e ideal, e são justamente as diferentes formas de incidência queseparam as duas esferas modais, daí sua denominação. Isso significa queas categorias modais guardam entre si uma hierarquia, de acordo comsua força de determinação, que varia segundo se trate do ser real ou ideal.Hartmann afirma então apredominância (gnoseológica) da efetividadeno ser real: a possibilidade e a necessidade só se manifestam nos fenôme­nos em função da efetividade, ocultando-se por trás dela.

Então, no que diz respeito ao ser real, podemos resumir as relaçõesinternwdais básicas em duas. Em prím'"eiro lugar, as categorias da mo­dalidade estão indissociavelmente ligadas, nenhuma delas é indiferente

15. Para o confronto entre Aristóteles e os megáricos. cf. N. Hartmann,Moglichkeil und Wirklichkeil, cit., Introdução, p. 3 e S., p. 11 e s. e Cap. 22, p. 168e s.

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perante a outra: a efetividade se manifesta necessariamente acompanha­da da possibilidade e da necessidade. Em segundo lugar, as categoriasmodais positivas são incompatíveis com as negativas. Exemplificando, apresença da efetividade implica a presença simultânea da possibílídade eda necessidade, enquanto exclui a inefetividade, a impossibilidade e acasualidade. A presença de uma categoria negativa também acarreta apresença das demais, ou seja, exclui necessariamente todos os modospositivos. Se não chove agora (inefetividade) é porque agora não é possi­veI chover (impossibilidade). A casualidade não segue essa regra porque,como vimos, nunca rege a realidade; ela só aparecerá no ser ideal.

Na esfera ideal, os dados resultantes da investigação fenomenológicasão outros. Com sua teoria sobre a incidência das categorias modais naesfera ideal, Hartmann procura enfrentar o problema dos universais, dageneralidade dos conceitos diante da individualidade do real.

Se um dos principais caracteres do ser ideal é a generalidade, aolado da atemporalidade, sua categoria modal mais forte não é mais aefetividade individualizadora mas sim a possibilidade, o que traz Hartmannpara uma visão semelhante à de Aristóteles.

Sabemos que o ideal não é individualizado. Ao contrário da indivi­dualidade do real, porém, a generalidade admite gradações, quer dizer:faz sentido comparar o mais e o menos geral, fenômeno que se expressa,por exemplo, na relação contém/está contido. Isso significa que as cate­gorias modais, no ser ideal, permitem duas ou mais possibilidades simul­tâneas, desde que com graus diferentes de generalidade. Na essênciafenomenológica ideal de animal, para tomarmos um exemplo, estão con­tidas as essências de gato e de rato. Se o grau de generalidade é diferente,como neste caso de ser vivo (animal, vegetal) e espécie animal (gato,rato), são ao mesmo tempo possíveis várias alternativas de efetivação.Por outro lado, para descrever a essência ideal em um mesmo nível degeneralidade (da espécie animal, por exemplo), só se pode tornaridealmente efetiva ou a essência de gato ou a de rato, isto é, uma exclui

a outra.Como se vê, no ser real as categorias modais separam-se mais niti­

damente à observação do que no ser ideal. Curioso notar como Hartmannpassa totalmente ao largo do caráter lingüístico desse problema, mas issonão interessa mais de perto por ora.

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2. EFETlVIDADE ou INEFETIVIDADE

INEFETIVIDADE

INCOMPOSSIIlILIDADE

CASUALIDADE

I. EFETIVIDADE

2. POSSIBILIDADE

3. NECESSIDADE

NO SER REAL:

NO SER IDEAL:

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3. Categorias fundamentais e categorias especiais

3. NECESSIDADE

CATEGORIAS DA MODALIDADE

{

INCOMPOSSIBILIDADE

I. POSSIBILIDADE ou

COMPOSSIBILIDADE E CASUALIDADE

Observe-se o esquema:

As categorias fundamentais ou elementares estão igualmente pre­sentes no ser real e no ser ideal. Sem pretensão de esgotá-Ias, Hartmannenumera doze pares dessas categorias, enfatizando uma tensão de oposi­ção entre cada um deles. Como não existem categorias isola~as, s? alimitação de nosso aparato cognoscitivo justifica tal enumeraçao, artIfi­ciosa de uma perspectiva ontológica. Mesmo deficiente, é através da ~b­

servação do ato gnoseológico que percebemos a unidade das categoriasfundamentais, pois a tensão entre os pares de categorias impelem-naspara além da mútua oposição, estendendo-se aos demais pares. Assim,por exemplo, a dicotomia harmonia versus conflito interpenetra-se coma dicotomia unidade versus multiplicidade; o mesmo ocorre com as ca­tegorias aparentemente mais distantes.

A feição complexa que a possibilidade apresenta na esfera idealrevela-se através de três, por assim dizer, subcategorias. Acompossibilidade significa que o grau de generalidade não é o mesmopara todos os entes ideais e há fenômenos menos gerais igualmente possi­veis em relação aos mais amplos, constituindo uma disjunção em que seefetiva uma ou outra possibilidade. Gato e animal são assim compossíveis.A incompossibilidade ocorre quando os fenômenos apresentam o mes­mo grau de generalidade e, á semelhança da esfera real, o possível coin­cide com o efetivo. Gato e rato são então incompossíveis em uma relaçãode contém/está contido. A subcategoria da casualidade (Zufiilligkeit) sóaparece ao lado da compossibilidade, vale dizer: sempre que a possibili­dade é disjuntiva (diferentes graus de generalidade), a efetividade idealestá em função da casualidade, esta decide o que se tornará efetivo entreduas ou mais compossibilidades.

Antes de mostrar esses equívocos que rodeiam o conceito de casua­lidade, Hartmannjá deixara claro que as categorias modais incidem so­bre ambas as esferas e, conseqüentemente, não podem funcionar comocritério distintivo entre realidade e idealidade. Literalmente: "Pois,já queos modos não são diretamente definíveis em qualquer esfera, toda con­cepção mais exata de sua natureza tem de partir de suas relaçõesintermodais. Aí a legalidade especial dessas relações, em cada esfera,pode revelar-se a partir da oposição comparativa entre modos neutros".Os modos neutros são exatamente aqueles não-definiveis por esfera lO.

O sentido em que Hartmann emprega a palavra casualidade tem quever com o que lhe dá o senso comum, mas não se confunde com ele.Casual em sentido vulgar significa o fortuito, "imprevisível". Casual emHartmann é "igualmente possível" ou, como ele prefere, "compossível".A casualidade, em Hartmann, insista-se, não existe na realidade; a cate­goria não incide sobre a realidade e o conceito não pode ser corretamenteaplicado a acontecimentos reais (já que estes, se existem, existem neces­sariamente). A casualidade só incide na esfera ideal, sempre juntamentecom a compossibilidade: se dois objetos ideais são simultaneamente pos­síveis, qualquer deles se pode casualmente tornar efetivo. A "dureza"(die Hiirte) da esfera real, porém, impede a compossibilidade.

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16. Idem, Cap. 2, p. 28. Sobre a necessidade, cf. Cap. 2, p. 36 e s.; sobre apossibilidade, cC Cap. 3, p. 41 e s.; sobre a e/etividade, cC Cap. 4, p. 49 e s.

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17. N. Hartmann, Neue Wege der Ontologie, in Nicolai Hartmann (org.),Syslemalische Philosophie, cit., Cap. 5, p. 243.

18. N. Hartmann, Der Aujbau der realen Welt, cit., Cap. 49, p. 464 e s.19. J. WahI, La théorie descatégoriesfondamentales dans Nico/ai Harlmann,

cit., passim. 20. N. Hartmann, Philosophie der Nalur, cit., p. 249-50.

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Cada par desses foi descoberto por algum filósofo ou escola; note­se que todas essas categorias fundamentais já se encontram emAristóteles, Kant e Hegel. Hartmann faz aqui mais um apanhado criticogeral das categorias "descobertas" na história da filosofia, sem dar pro­priamente contribuição original.

No último volume de sua ontologia, Filosofia da nalureza, Hartmannacrescenta uma teoria especial das categorias à sua teoria das categoriasfundamentais, as quais regem o que denomina mundo da natureza. Oconceito de natureza não se limita à experiência sensivel ou ao estratobiológico do ser real, como o uso comum do termo pode sugerir.

As categorias dimensionais, o espaço e o tempo, estão presentesnos dois modos e regem desde as camadas mais simples do ser (como nocaso do ser ideal, regido pelo espaço) até as mais complexas (como no serreal espiritual, regido pelo tempo). O espaço e o tempo são objetivos, aocontrário do que afirma Kant, e constituem duas categorias independen­tes: o espaço-tempo da teoria da relatividade é expressamente recusadopor Hartmann2o•

As categorias cosmológicas determinam o ser físico e atuam tantosobre o ser real inorgânico quanto sobre o orgânico. A mais importantedelas é a substância, mas Hartmann estuda também a legalidade danatureza, a causalidade e a ação recíproca. O conceito de substâncianão é o da escolástica, referente a uma forma ontologicamente superior,eterna ou imutável, mas indica apenas aquele resíduo que permanece re­lativamente constante, isto é, que varia em menor velocidade, dentro damutabilidade incessante de tudo aquilo que é temporal. É a substância,como visto, que sustenta a identidade dos objetos e permite detectar aprocessual idade na temporalidade. As outras categorias cosmológicasrespondem pela dinâmica do mundo físico e constituem relações a partirda substância.

As categorias organológicas separam a camada inorgânica daorgânica, pois o orgânico não se confunde com o mecânico, ainda quesujeito a suas leis, nem tampouco pode ser reduzido ao psíquico, que éapenas uma de suas formas de manifestação. A mais importante das

ESTRUTURA - MODO

FORMA - MATÉRIA

OPOSIÇÃO - DIMENSÃO

HARMONIA - CONFLITO

INTERIORIDADE- EXTERIORIDADE

SUBSTRATO - RELAÇÃO

PRINCÍPIO - CONCRETO

RELAÇÃO- SUBSTRATO

UNIDADE- MULTIPLICIDADE

DETERMINAÇÃO - DEPENDÊNCIA

ELEMENTO - CONJUNTO

QUALIDADE - QUANTIDADE

Se as categorias fundamentais ligam os modos básicos do ser, evi­dentemente também não se reduzem a este ou àquele estrato: "Não sepode reduzir o alcance da vigência das categorias àquele estrato do enteem cujo âmbito foram descobertas e em cuja composição elas mais con­cretamente se manifestam. Há também umaautêntica transcendência ônticadas categorias de um para outro estrato"!7.

Isso porque as categorias são ontológicas e O ser é onticamente uno.As categorias fornecem as condiçães do conhecimento e O ser, como jádito, é indiferente ao conhecimento; é só diante do sujeito cognoscenteque as categorias se apresentam fragmentadas e em tensão, pois airracionalidade é exclusivamente gnoseológica. Najá longa história doconceito de categoria na filosofia ocidental, na opinião de Hartmann,Hegel foi o primeiro a percebê-las em sua função dinâmica e não comouma combinatória estática de princípios: é este um dos sentidos maisimportantes da dialética hegeliana!'.

No estudo das categorias fundamentais, Hartmann parte da históriado pensamento filosófico e procura nas obras dos filósofos as categoriasdescobertas. Não se trata de mero somatório, contudo, pois às vezes fal­sas categorias são tomadas por autênticas, como é o caso da dicotomiajinitude versus injinitude, contida na categoria quantidade, além deoutros erros históricos. Hartmann enumera doze pares de categorias!9.

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4. Princípios categoriais

21. As categorias cosmológicas compõem a segunda parte da Philosophieder Natur, eit., a partir da p. 25 t; as categorias organológicas estão na terceira eúltima parte da mesma obra, a partir da p. 512.

ealegorias organológicas é a espontaneidade, ausente do ser inorgâ­nico21 .

São estas as categorias especiais:

Os princípios categoriais expressam a codificação das relaçõesônticas e representam, na filosofia de Nicolai Hartmann, a parte maisampla de sua ontologia. Formam o ponto culminante de uma metodologiaque se inicia pela observação dos fenômenos e constituem a estruturaescalonada em que Hartmann vê ordenado o ser. Os axiomas (Grundstitze)apresentados são em número de quatro e cada um deles, curiosamente,contém exatamente quatro leis (Gesetze). Parte do conteúdo desses axio­mas e leis já foram discutidos aqui e o objetivo agora é reuni-los resumi­damente em um quadro final.

I) Axioma da Vigência - Expressa o princípio do aliquid, isto é,as categorias estão necessariamente em função de algo concreto, do mes­mo modo que este concreto se caracteriza pelas categorias que o determi­nam. Pela vigência das categorias revela-se a racionalidade intrinseca doser, seja esta perceptível para o homem ou não.

a) Lei do Princípio - Afirma que as categorias só existem enquan­to princípios e que o seu ser se esgota na determinação dos concretos: ascategorias não têm existência independente, não são essências nem outrotipo de entidade ideal qualquer. Daí a correlação e a identificação reci­procas entre o principio e o concreto.

b) Lei da Vigência do Estrato - Especifica o axioma da vigência:se a categoria tal incide e se constitui em principio deste concreto, há umadeterminação necessária entre ambos: não há caso em que aquela catego­ria deixe de determinar o concreto que lhe corresponde e em que este nãoseja determinado por ela, não há exceções.

c) Lei da Correspondência do Estrato - Estabelece que uma ca­tegoria será válida somente para um estrato sempre e apenas quando oconcreto que lhe corresponde situa-se unicamente naquele estrato. E vice­versa. Mas se o concreto não se reduz a uma única camada do ser, acategoria também o extrapola.

ti) Lei da Determinação do Estrato - Além de necessária, a rela­ção entre a categoria e o concreto é completa, suficiente para caracterizara camada ontológica a que pertence cada ente.

2) Axioma da Coerência - As categorias não incidem isolada­mente sobre os concretos, em uma correspondência biunívoca artificial,como o axioma da vigência pode fazer crer, mas sim agrupadas, constituin­do as diferentes regiões do ser. Em última instância, as categorias estãotodas reunidas em uma totalidade, como afirmara Hegel, mas há as maise menos próximas, segundo suas caracteristicas específicas.

a) Lei da Associação - É uma particularização importante doaxioma da coerência: todos os princípios convergem sobre todos os con­cretos, simultaneamente e vice-versa, por mais distantes que pareçam,em virtude da unidade do ser e da transcendência que caracteriza a tensãoentre cada um dos pares de categorias, assim como entre as categoriaspositivas e seus opostos negativos. É o que Hartmann denomina unidadeda determinação.

b) Lei da Unidade do Estrato - As categorias agrupam-se emcamadas, da mesma maneira que os concretos, e as categorias que per­tencem a uma mesma camada guardam entre si maior afinidade do que ascategorias cujos correspondentes concretos compõem estratos mais afas­tados.

c) Lei da Totalidade do Estrato - Estabelece que a unidadecategorial, primeiro em camadas, depois em estratos e assim por diante,não se forma pela adição de elementos independentes. Sua estrutura uni­tária é prévia, ôntica, em relação a sua decomposição em partes, que éontológica.

DIMENSIONAIS (SER IDEAL)

ORGANOLÓGICAS (SER REAL ORGÂNICO)

COSMOLÓGICAS (SER REAL INORGÂNICO)CATEGORIAS ESPECIAIS

120 121

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d) Lei da Implicação - Determina que cada categoriagnoseologicamente isolada impl ica ontologicamente a presença de todasas demais, mesmo entre estratos diferentes.

3) Axioma da Estratificação - As categorias de um estrato menoscomplexo irradiam-se em direção às camadas superiores e também asdeterminam, o que justamente garante a maior complexidade das cama­das ~'mais altas", como diz Hartmann22 .

a) Lei do Retorno - Ao reaparecer em uma camada mais comple­xa, as categorias características de uma camada menos complexa per­dem parte de sua força vinculante; elas continuam determinantes mas jáse vêem ofuscadas pelo aparecimento de novas categorias, peculiaresàquele nível superior. Como em todas as leis que especificam o axiomada estratificação, as determinações estão em uma só direção, de baixopara CIma.

b) Lei lia Modificação - Nesta irradiação de uma região menospara uma mais complexa, as categorias originárias das camadas inferio­res não apenas perdem quantitativamente sua força vinculante mas tam­bém modificam sua atuação: na esfera mais complexa, sua incidência équalitativamente diferente e não apenas mais fraca do que na camadaoriginária.

c) Lei do "Novum"- Segundo essa lei, as camadas superiores nãose resumem a um somatório ou a uma superposição das determinaçõescategoriais das camadas inferiores. Toda região superior apresentacaracteres ônticos novos, o que Hartmann denomina seu I'novum" cate­gorial específico.

d) Lei da Distância entre osEstratos- Em virtude do novum quesepara as camadas superiores das inferiores, a passagem de um estratopara outro não é tênue e gradual, mas processa-se em saltos.

4) Axioma da Dependência - As camadas superiores dependemontologicamente das inferiores na medida em que sofrem influência des­tas últimas, mesmo que suavizadas pela lei do retorno. Tais determina-

22. Sobre a influência decisiva de Meinong nesta parte, cf. M. Landmann,Nicolai Hartmann and phenomenology, Philosophy and Phenomena/ogica/Research, v. 3, p. 423, 1942.

122

ções não são absolutas, por força da lei do novum e das novas categoriasespecíficas que só aparecem nas camadas superiores, mas respondempela dependência.

a) Lei da Força - Ainda que toda categoria, como expresso peloaxioma da vigência, determine o concreto que lhe corresponde, as cate­gorias das camadas inferiores são mais rígidas do que as das camadasmais complexas e têm mais força determinante - claro que em relaçãoaos seus respectivos concretos. A influência das categorias peculiaresaos níveis mais complexos do ser, exalamente por concorrerem com cate­gorias oriundas dos níveis mais simples (axioma da estratificação), tematuação relativamente mais difusa.

b) Lei da Indiferença - As categorias das camadas superiores nãoexercem qualquer determinação sobre as camadas inferiores, as quaislhes são indiferentes. Essa lei representa a contrapartida do axioma daestratificação.

c) Leida Matéria ConstiJutiva- Vimos que os estratos mais com­plexos não se submetem rigidamente às determinações dos estratos me­nos complexos (lei do novum). Estes, conforme expressa a lei da matéria,condicionam ainda assim os estratos superiores, na medida em que lhesfornecem a infra-estrutura, por assim dizer, excluindo certas possibilida­des e admitindo outras.

d) Lei da Liberdade - Quanto mais complexo o estrato, mais au­tônomas serão suas categorias, isto é, menor sua força determinante naregência dos concretos respectivos. Essa lei refere-se apenas ao ser real.Não se verifica no ser ideal porque este não está dividido em estratosmais ou menos complexos, mas sim é composto de entidades independen­tes e não-hierarquizadas. É por isso que, apesar da menor complexidadedo ser ideal, as categorias que o regem são mais autônomas do que as doestrato inorgânico imediatamente superior e, logicamente, de todas ascategorias do ser real" .

Sobretudo na teoria das categorias, que ocupa papel central em seupensamento, Hartmann padece de dois dos males característicos da "ve-

23. N. Hartmann resume os quatro axiomas em: Der Aujbau der rea/en We/t.cit., terceira e última parte, a partir da p. 412.

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lha ontologia" que critica. O primeiro deles,já apontado, está no próprioconceito de categoria, indefinido e mesmo confuso, apesar de sua impor­tância: as categorias não são ideais, não são reais... Mas se só temosessas duas modalidades do ser, onde situá-Ias? Hartmann limita-se a di­zer o que elas não são, criticando Kant, por exemplo, para quem as cate­gorias seriam propriedades do entendimento ou razão analítica humana;mas quando vai conceituá-Ias, pouco esclarece. O segundo problema éque nosso autor "coisifica" as palavras, fala delas como de objetos evi­dentes, mesmo quando trata de termos os mais abstratos, tipo "valor" ou"categoria". Como em Husserl e outros ontólogos alemães, as expressõeslingüísticas, os conceitos gerais são vistos como "essênciasfenomenológicas", quase que por si mesmas subsistentes.

124

SEGUNDA PARTE

Capítulo Sexto

ONTOLOGIA JURíDICA

Sumário: I, Uma controvérsia: monismo versus dualismo.2. A ética material. 3. A justiça como valor moral e como valorjurídico. 4. O problema da separação ontológica entre direito emoral.

1. Uma controvérsia: monismo versus dualismo

O caminho entre a percepção do mundo circundante, a aquisição e atransmissão de informações não é tão simples e direto como parece, con­forme vimos observando. Dai a lição platónica do conhecimento comoascese erótica, mencionada no capitulo segundo. Uma teoria do conheci­mento, sempre referida a alguma ontologia, também exige intentio rectae determinação para ser compreendida, sensibilidade para perceber o queo autor quer dizer por trás da imprecisão de metáforas inevitáveis e paci­ência diante de definições e conceitos condenados inexoravelmente a apre­ensões apenas parciais dos objetos.

Por conseguinte, deve-se ter em mente que muitos dos conceitosempregados por Hartmann só podem ser devidamente entendidos dentrode seus contextos retórico- incluindo o estilo narrativo e até poético dafilosofia tradicional- e histórico. As críticas a que aqui é submetida acontribuição de nosso autor procuram situá-lo em um contextojusfilosófico, dirigido à teoria geral do direito, o qual parece por vezes

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L

estranho a seus propósitos. E muitas delas também decorrem da não­aceitação dos pressupostos que ele toma como assentes. Com essas res­salvas passamos a estudar a teoriajurídica presente na ontologia de NicolaiHartmann.

Uma ontologia ou axiologia do direito pode ser chamada de monistaquando recusa distinguir uma esfera específica para a ética, o direito, amoral, em suma, para as relações humanas. O ser, ou a natureza, é únicoe indivisível, regído pelas mesmas leis, sendo apenas ilusória a separaçãoem estratos inorgânico, orgânico, espiritual e outros. A lei da causalida­de, por exemplo, de cuja eficácia poucos duvidam, seria o princípioontológico primordial, pelo menos no que diz respeito à corrente monistamaterialista. Mas a história da filosofia ocidental também abriga ummonismo que podemos chamar espiritualista, o qual toma por base umaunidade imaterial superior, tipo as mónadas sem janelas em Leibniz ou oespírito em Farias Brito.

Essa discussão foi importante no século XIX, inclusive no Brasil;aqui, sobretudo, através da Escola do Recife e de Tobias Barreto. Para aquestão da autonomia ontológica e gnoseológica da ética e do direito,interessa-nos mais a posição dualista.

Para o dualismo, ao lado do mundo da natureza animal, vegetal emineral, regido, entre outros, pelo principio da causalidade, existe umaesfera ética submetida a determinações diferentes. Daí a distinção entreleis naturais e leis normativas, entre o mundo da natureza e o mundo dacultura, entre determinismo e liberdade!.

O dualismo pode situar-se em diversas direções, das quais destaca­remos duas, grosso modo: o subjetivismo axiológico, segundo o qual "ascoisas não são por si valiosas e todo valor se origina de uma valoraçãoprévia, a qual consiste em uma concessão de dignidade e hierarquia que osujeito faz às coisas segundo o prazer ou desprazer que lhe causam"'; e oobjetivismo axiológico, para cujos defensores uma instância externa e

1. M. Reale, Liberdade e valor, in Pluralismo e liberdade, São Paulo, Sarai­va, 1963, passim.

2. Ortega y Gasset, i..Qué son los valores?, in Las etapas dei cristianismo airacionalismo y oiros ensayos, Santiago. Pax, 1936, p. 45 e s.

126

f,superior às inclinações de cada indivíduo fornece os parâmetros paraseparar valor de desvalor, lícito de ilícito.

O dualismo envereda, então, independentemente de seu subjetivismoou objetivismo, pela axiologia ou teoria dos valores, o caminho decontraposição ao monismo. Da escola neokantiana de Baden vem o im­pulso em direção à teoria dos valores, que desempenhou papel importan­te na Europa e no Brasil. Nicolai Hartmann procura deixar de lado aquestão do dualismo: os valores são simplesmente parte de mais uma dasregiões do ser, regido por suas próprias categorias. Na polêmicasubjetivism%bjetivismo, porém, toma posição e adere, à sua maneIra, aestaúltima corrente. Ainda que formado em Marburg, a escola neokantianamais preocupada com a teoria do conhecimento, Hartmann concentra-setambém sobre a axiologia e constrói uma ética a partir da crítica a Kant,no rastro de Max Scheler e do neokantismo de Baden.

O objetivo do dualismo, ao detectar um mundo especificamente hu­mano ao lado do mundo da natureza, parece ser evitar, de um lado, odeterminismo quejulgam observar na natureza e, de outro, um subjetivismoarbitrário em que cada sujeito fixa seus próprios valores e limites. Kantprocura encontrar um fundamento para a existência de normas que, semcair na causalidade irresistível, conferissem objetividade à conduta hu­mana. Esta instância seria o imperativo categórico, proveniente da von­tade, é certo - pois do ser não se retira o dever ser -, mas não de umavontade individualizada, concreta, subjetiva: a vontade ética é "pura­mente racional".

O problema é relevante para a teoria do direito, sempre ocupadacom a legitimidade dos comandos normativos e com o "hábito geral deobediência", a propensão a uma relativa uniformidade da condutaintersubjetiva. Kant parte de uma antropologia própria, de uma visãootimista da natureza humana. Senão vejamos: "O uso prático que os ho­mens comumente fazem da razão confirma a exatidão desta dedução (oprimado da liberdade e da razão prática). Não existe ninguém, nem se­quer o pior celerado, contanto que esteja habituado a servir-se da razão,que, ao lhe serem apresentados exemplos de leald~de nas intenções,,deperseverança na observância de boas máximas, de sImpatIa e benevolen-

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5. N. Hartmann, Ethik, Berlin, Walter de Gruyter, 1949, Cap. II, p. 98 e s.

o ponto de partida para elaboração da ética material, tanto emScheler quanto em Hartmann, é a crítica à noção de dever puro na éticakantiana. Podemos dizer que tal crítica concentra-se em três pontos prin­cipais, quais sejam: subjetivismo, formalismo e intelectualismo.

A origem do dever em Kant permanece subjetivista, apesar de seusesforços, afirma Hartmann, porque os valores provêm do fenômeno davontade, colocando no centro da ética a intenção do agente, a direçãointerna da vontade: a ética é vista em função de fins, de desígnios subje­tivos. Como os fins isolados de cada individuo assumem conteúdos osmais diferentes, Kant constrói um sistema cuja unidade é fornecida pelofim último, esvaziado de qualquer conteúdo: o imperativo categórico'.Dai a metáfora do homem como umfim em si, eficaz para alguns audi­tórios, oca de significado epistemológico para outros.

A preocupação de Kant é estabelecer uma ética autônoma, cujo fun­damento de validade não viria de fora mas sim de postulados estabeleci­dos pela própria razão prática. Por isso o sujeito e sua consciência sem­pre preponderam sobre o conteúdo e os efeitos da ação, sobre o objeto,que assume papel secundário. A vontade legisladora de Kant permanecesubjetiva, ou, nas palavras de Hartmann: "A vontade determina ou cria

2. A ética material

cia universais - ainda que ligados a grandes sacrificios de vantagem ede bem-estar -, não deseje também ele sentir-se possuído de tais senti­mentos. Ele não pode, sem dúvida, e unicamente movido por suas incli­nações e impulsos, realizar este ideal em sua pessoa; mas nem por issodeixa de sentir o profundo desejo de se libertar das inclinações que lhesão gravosas"'. Kant não desenvolve qualquer argumento empírico emapoio dessas afirmações.

A aporia entre o monismo e o dualismo pode ser equacionada daseguinte maneira: mesmo que a posição monista corresponda à realidade,o estágio atual de desenvolvimento das ciências fisicas e naturais nãoconsegue demonstrar a aplicabilidade de seus princípios e leis básicos àesfera axiológica ou das relações humanas e sociais. Apesar dos esfor­ços, a sociobiologia e correntes assemelhadas permanecem no terrenodas especulações" pouco tendo a oferecer ao estudo de problemas jurídi­cos, por exemplo. Nota-se, ao contrário, que as modernas ciências danatureza diminuem a pretensão de universalidade de seus postulados.Hartrnann, neste sentido, é moderno: não se trata de monismo ou dualismo,mas sim de pluralismo epistemológico, assentado em princípios geraiscomuns a todo o ser.

Esse debate entre monistas - materialistas ou espiritualistas - edualistas - aí incluídos os pluralistas - está presente no centro daaxiologia do final do século XIX e começo do século XX, período em quese inserem Hartmann e Scheler, mas aparece também em controvérsiasde outros períodos, como a virada dos séculos XVIII-XIX, envolvendonomes como Friedrich Albert Lange, Ludwig Noiré, Ernst Haeckel e,entre nós, Tobias Barreto e Silvio Romero.

Podemos resumir essas posições axiológicas com ajuda do esquemaa seguir.

3. Cf. I. Kant, Werkausgabe - in zw6!fBiinde, W. Weischedel (org.), Frank­furt a.M., Suhrkamp, 1977, 12 v. Cf. Grundlegung zur Metaphysik der Sillen, v. 8,p. A e B 34 e S., nota 4.

4. Cf., entre outros, E. Wilson, Da natureza humana, trad. G. Florsheim e E.Ambrosio, São Paulo, EDUSP, 1981 ,passim,já mencionado.

AXIOLOGIA

{

MATERlALISfA

MONISTA

ESPIRITUALISTA

SUBJETIVlSTA

(valores arbitrários)

DUALISTA

OBJETIVISTA

{

HISTÓRICA

(valores criados)

ONTOLÓGICA

(valores descobertos)

128 129

u

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os valores, não os valores, a vontade. Por conseguinte, a vontade não seencontra ligada a algo em si mesmo valioso, mas sim o ser valioso nadamais é do que a expressão de um querer puro"6.

Além da tese do subjetivismo transcendental, a ética kantiana é tam­bémformalista, posto que um imperativo ético autêntico, autônomo, emsuma, categórico, não pode cuidar da "matéria", do conteúdo da vontade.Ele é puramente formal porque uma determinação material da vontade,dirigida ao conteúdo prático das ações, e teria que ter seu fundamentofora da vontade, de maneira heterorreferente, o que a razão prática nãopode aceitar. Volta a tese da intransponibilidade entre ser e dever ser.Pode-se não concordar que h~a apenas essas duas alternativas, comoveremos no próximo capítulo.

O grande mérito do formalismo ético kantiano, na crítica que lhefazem Scheler e Hartmann, é o combate ao empirismo na ética e a rejei­ção do casuísmo que daí decorre, ou seja, o combate ao subjetivismocético. E o imperativo categórico não é tão vazio de conteúdo como oimaginou Kant. Ainda que idealista, um imperativo sem qualquer con­teúdo é uma contradição em seus próprios termos7; qual o conteúdo desteimperativo pretensamente formal, veremos ao tratar da axiologia, no pró­ximo capítulo.

A terceira crítica à ontologia ética (e jurídica) de Kant, última des­tacada aqui, refere-se a seu intelectualismo, que guarda estreita conexãomas não coincide Com o formalismo. Noções como as de "pensamento"oposto a percepção, "entendimento" e "razão" opostos a sensibilidade,entre outras, afastam a ética kantiana dapraxis vital que forma o contex­to semântico e existencial desse tipo de problemas. O constante dualismo,de tintas maniqueístas, que subjaz à teoria kantiana, coloca contradiçõese oposições insolúveis onde elas simplesmente não existem. Na crítíca deHartrnann, Kant transforma o fenômeno do apriorismo gnoseológico empreconceitos intelectualistas.

A ética material recusa o caráter legislador das entidades axiológicas,dos valores. A consciência que o sujeito tem dessas entidades é não ape-

6. Idem, p. 100.

7. Idem, Cap. 12, p. 107-8.

130

nas material- no sentido de que sua intuição vem sempre acompanhadada intuição de seu conteúdo - mas é também objetiva - pois sua deter­minação independe deste ou daquele individuo concreto. E é porque osvalores são materiais e objetivos que a ética estuda sobretudo sua reali­zação: os valores são em princípio realizáveis, mesmo que não o venhama ser de fato naquele momento. Daí decorrem duas conseqUências: todaação humana realiza sempre, quanto ao seu conteúdo, um valor, "positi­vo" ou "negativo"; e toda ética precisa fixar normas de conteúdo defini­do, distinguindo objetivamente as condutas desejáveis e as desviantes8•

Este é o princípio adotado na crítica a Kant; se Hartmann permanece fiela ele é outro problema.

Por outro lado, no conceito de liberdade, em Hartmann, permanecea liberdade cristã, da vontade; aquela liberdade que todo ser humanoteria para escolher seu caminho, de optar por esta ou aquela ação. Tal étambém a liberdade de que fala Kant. Este é um conceito muito diferenteda liberdade grega, ou da marxista, entendidas como liberdade política,fática, no sentido de participar das decisões e usufruir da coisa pública,uma liberdade mais complexa e carente de inúmeros pressupostos paraefetivar-se9•

3. A justiça como valor moral e como valor juridico

o capítulo 44 da Ethik é dedicado ao problema dajustiça, situando­a no primeiro grupo dos valores morais; não se deve estranhar a expres­são, pois há os valores que não são a rigor morais, como os bens(Güterwerten), de que falaremos ao final deste capítulo. Situando ajusti­ça entre os valores morais, Hartmann parece aderir à corrente que nãovê distinção de conteúdo entre a moral e o direito; sua perspectiva éclara, muito embora, a olhos de juristas, não deva parecer propriamenteoriginal.

Dentre as quatro virtudes básicas do sistema platônico, ensinaHartmann, a justiça é considerada como uma espécie de centro de gra-

8. Idem, Cap. 13, p. 118-9.

9. H. Arendtt What is freedom1, in Betweenpast andfuture - eight exercisesin politicol thought, New York, Penguin, 1980, p. 143-71.

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II

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vidade, ela funciona como um coroamento das outras três, quais sejamautodominio, coragem e sabedoria. Ajustiça é a virtude moral que rege oser espiritual no combate ao egoismo biológico, orgânico, do individuo.Seu caráter mais evidente é a igualdade, a igualdade de direitos e deveresque possibilitam a vida em comum. Claro que este princípio formal pode­ria abrigar conteúdos diversos. Para muitos pensadores e políticos, porexemplo, igualdade significa uma mesma norma para indivíduos na mes­ma situação, admitindo normas diferentes para contextos diferentes; comoum caso real é sempre individual e irrepetível, este princípio de igualdade(tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais) é retoricamentemanipulável. O cristianismo vai mais longe ao afirmar a igualdade origi­nal absolutalO • Sob essas influências Hartmann elabora sua doutrinaaxiológica.

O problema aqui é estabelecer relação entre justiça e direito, tam­bém tentando observar em que sentido a justiça é um valor moral, doindivíduo, e em que sentido se apresenta como valor social, especifica­mente jurídico. Diz Hartrnann: "Ajustiça não é o direito objetivo nemtampouco o direito ideal. Na melhor das hipóteses, este último é o objetodas intenções do homemjusto. Mas O uso comum da linguagem favoreceo equívoco. Em um sentido amplo, 'justa' pode ser uma lei, uma dísposi­ção, determinada ordem, na medida em que correspondem à idéia do di­reito. Mas, neste sentido, a palavra 'justa' não significa um valor moralda pessoa. A pessoa aqui não é de modo algum o portador do valor; ovalor, muito embora aação humana possa inicialmente tê-lo realizado, éunicamente valor de um objeto, valor de uma situação, valor para al­guém. Neste sentido, todo direito, existente ou ideal, é valioso. Em outrosentido, porém, 'justo' é o indivíduo que faz o certo ou tem a intenção defazê-lo e que vê e trata os semelhantes - seja em disposição ou emconduta efetiva - à luz da igualdade requerida. Aqui a 'justiça' é umvalor de ação da pessoa, é um valor moral"".

10. Cf. P. Westen, Speaking ofequality. An analysis oflhe rhetoricalforce of"equality" in moral and legal discourse, Princeton, Princeton University Press,1990: e E. Haba, Control sobre las Iibertades, por medio de "Ia" Iibertad comoideologia, Revista de Filosofia de la Universidad de CosIa Rica, v. 20, fase. 51, p.55·69,1982.

II. N. Hartmann, Ethik, eit., Cap. 44, p. 420.

132

É por essa via que Hartmann entende o conceito de justiça dos sofis­tas, tal como exposto por Platão, pela boca de Trasimacol2, como umconceito pré-moral, isto é, biológico ou no máximo anímico, cuja falhaóbvia está em não considerar a dimensão espiritual das relações huma­nas, precisamente a dimensão axiológica da justiça. Uma teoria dajusti­ça baseada na força, na posse dos meios de violência, vê o direito comoum meio, uma estratégia cujo valor é medido em função da obtenção deresultados no controle social. Então, argumentam os sofistas, a pior ini­qüidade é sofrer uma injustiça. Platão coloca o argumento oposto: "quemsofre uma injustiça é ainda 729 vezes mais feliz do que quem acomete"l3e coloca ajustiça como a reunião de todas as virtudes.

Ainda que inspirado em Platão, Hartrnann inverte a perspectiva: ajustiça seria não o valor mais alto, mas sim o valor básico a garantir osdemais valores, não um maximum, mas sim um minimum. Evidência dis­so são as prescrições jurídicas fundamentais da sociedade, quase todasnegativas, consistindo em proibições l4 •

Mas o sentido platónico não é abandonado, vez que Hartrnann bi­furca o conceito de justiça, como dito, em justiça moral (individual) ejustiçajurídica (social). Moralmente, ajustiça consiste em uma disposi­ção interna do homem para realizar valores autênticos, ou seja, é vistacomo uma síntese da correta percepção do mundo axiológico. Nesse sen­tido, o conceito de justiça refere-se a uma situação ideal em que os valo­res são percebidos independentemente do problema de sua realizabilidade,de condicionamentos sociais ou quaisquer outros. Aqui ajustiça não re­presenta um valor específico mas sim todo um conjunto de valores: "Ela(a justiça) é a precondição de qualquer realização de valor. Ela é igual­mente a pioneira entre as virtudes. A legalidade é o mínimo de moralidadeque precede qualquer moral desenvolvida"l5.

12. Este argumento está logo no primeiro livro deA República, n. 336 e s. Cf.Platão, The dialogues, trad. J. Harward, Chicago, Eneyclopaedia Britannica, 1993,p. 300 e s. (Greal Books ofthe Westem World, v. 6).

13. N. Hartmann, Ethik, eit., Cap. 44, p. 421.

14. Idem, p. 421.

15. Idem, p. 422.

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Enquanto a justiça moral une abstratamente os indivíduos em suasrelações, a justíça social confere a determinada situação real o caráter debem jurídico. O direito positivo realiza a justiça na medida em quecorresponde à intuição dos valores levada a efeito pela comunidade comoum todo, configurando o que Hartmann denominou direito (espirito) ob­jetivo. Tal correspondência é feita através da institucionalização de bensjurídicos, isto é, de situações (hipóteses) e de alternativas de comporta­mento consideradas justas (prestações). A expressão bem jurldico emHartmann tem sentido diferente daquele elaborado pela dogmáticacivilista,significando qualquer conduta juridicamente protegida. Nesse sentidojurídico, a justiça não é mais valor moral mas sim valor situacional.

Ajustiçajurídica rege conseqüentemente um número menor de rela­ções do que ajustiça moral; ela defende valores morais legitimos, emboraem grau mais modesto, e esta base é indispensável para o desenvolvimen­to dos valores morais mais altos da hierarquia em que a ética de Hartmannos organiza. Para defender este mfnimo ético necessário, a justiça socialé apreendida pelo direito positivo e então limitada segundo fronteirasmais rígidas, é codificada. Surgem assim instituições garantidoras destamoral mínima (justiça jurídica), tais como a legalidade, a sanção organi­zada, a ameaça de coação, o constrangimento pela violência legal.

Pode parecer contraditório que se lance mão de semelhantes instru­mentos para garantir os valores, cujo modo de ser é "determinado pelaliberdade", pelo arbítrio de escolher o justo agir caso a caso. Mas os bensmorais mais elementares são tão importantes para a efetivação dos valo­res como um todo que não podem ser abandonados a instância frágilcomo o dever moral; precisam de estruturas definidas de apoio: "Legali­dade não é moralidade; a coercitividade pode apenas conduzir àquela,jamais a esta. Mas os bens mais básicos, exatamente por constituíremo fundamento de toda realização axiológica superior, são de impor­tância tão elementar que precisam de semelhante instância protetora.Para eles a boa-vontade, que facilmente desaparece, não oferece garan­tia suficiente"16.

16. Idem, p. 423.

134

4. O problema da separação ontológica entre direito emoral

Daí por que direito e moral, embora seus conteúdos se encontrem napropensão humana para realizar valores, distinguem-se formalmente pelagarantia externa do mínimo ético. É a mesma tese de Kant'?: não há umcritério material, de conteúdo, que separe a moral do direito, a distinçãoé apenas formal (qualquer conteúdo é jurídico, desde que coercível)".Moral e direito coincidem, continua Hartmann, quando o direito positivoé autonomamente cumprido, posto que a justiça, enquanto disposiçãointerna para cumprir o direito e os valores que este protege, é algo em simesmo, abstratamente valioso, coincide com ajustiça como valor moral,independentemente de nossa concordância pessoal e do conteúdo do di­reito positivo. Isso porque o direito sempre aponta para um valor autên­tico, embora seu caráter coercivel sÓ possa levar à legalidade, jamais àmoralidade. Daí o caráter de valor-meio da justiça jurídica e daí porquecritérios exclusivamente jurídicos não podem estabelecer a distinção en­tre legalidade e moralidade19•

A distinção entre valor moral e valorjurídico, em Hartmann, é com­plicada pela ambigüidade terminológica: "legalidade", por exemplo, oraé sinónimo de direito legal, ora de direito positivo em geral, ora de normaética. Moral e direito são, em Hartmann, intencionalmente mesclados:enquanto codificação legal, o direito separa-se nitidamente da moral epode até temporariamente contradizê-la; por outro lado, enquanto con­teúdo moral mínimo a ser protegido pela comunidade, o direito é parteessencial e infra-estrutura da moral.

Assim, todo direito positivo tende na direção de um direito ideal,não positivado, produto da consciência valorativa do homem, sobre aqual se irradiam os valores, que ali estão independentemente de qualquer

17. Cf. I. Kant, Die Metaphysik der Sillen, cit., p. A e B 34 e s.

18. Contra o uso de critérios exclusivamente formais para distinguir o fenô­meno jurídico dos demais fenômenos normativos, veja-se a crítica veemente de C.Souto, Por uma teoria científico-social modema do direito, Anuário do Mestradoem Direito, n. 5, Recife, Editora Universitária (UFPE), 1992, p. 137·70.

19. N. Hartmann, Ethik, cit., Cap. 44, p. 424.

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percepção. As concepções que subordinam a moral ao direito, ou vice­versa, esquecem"... que a moralidade é algo fundamentalmente diferentedo direito, mais rica em conteúdo, e que não pode nem deve, jamais,absorver-se em um código de definições, ainda que de definições ideais.Na verdade, a ética tem que conter o fundamento último do direito, temque indicar o lugar do valor do direito dentro de sua escala de valores"2o

Um devido exame das relações entre moral e direito na era modemaé prejudicada pelo que Hartmann denomina eudemonismo social do Es­tado. Diferentemente do eudemonismo tradicional, cujo conteúdo é deter­minado pela felicidade pessoal do indivíduo, o eudemonismo buscadopelo Estado moderno é quantitativo, baseado na fórmula de maior felici­dade para o maior número possível. Semelhante ao que ocorre noutilitarismo, argumenta Hartmann, o todo se perde de vista junto com areferência objetiva de conceitos dependentes, como os de felicidade e uti­lidade. Esse ponto objetivo de referência é o valor, são as "entidadesaxiológicas"". Daí o caráter conservador da crítica de Hartmann. Todamodalidade de ética eudemonista, ao eleger referências ambíguas,impalpáveis, ainda que aparentemente quantificáveis, cai no niilismoaxiológico. E este parece ser um problema sério em nosso tempo". Se osparâmetros escolhidos por Scheler e por Hartmann são ou não mais tan­gíveis e concretos, este é um outro problema a ser visto adiante.

O caminho do pluralismo ético, escolhido por Hartmann no trata­mento da questão das relações entre moral e direito, tem a vantagem dedissolver várias antinomias, como visto, mas traz também desvantagensdos dois lados: reduz o direito, por vezes, não só a seu aspecto positivomas até a um simples legalismo; de outra parte, ao tratar o direito como"minimo ético", não oferece qualquer critério distintivo, caindo nos pro­blemas dos jusnaturalismos. Em suma, à exceção de alguns apartesesclarecedores, a contribuição de Hartmann não é aqui inovadora.

O modo de atuação dos valores sobre a conduta humana, noobjetivismo axiológico, é incompatível tanto com a predestinação quanto

20. Idem, Cap. 7, p. 65.

21. Idem, Cap. 9, p. 86-7.

22. Cf. J. Edwards, The authority of/anguage. Heidegger, Willgenstein andthe threat ofphi/asophica/ nihi/ism, Tampa, University ofSouth Florida Press, 1990.

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com qualquer forma de providência, em que pese o determinismo querege a esfera real do ser, na qual os valores se vão inserir, realizar-se.Esta incompatibilidade toma base no fenômeno da liberdade e constituiaporia primordial na doutrina de Hartmann: de um lado, a existência emsi dos valores; de outro, o caráterteleológico da ação humana". O mun­do real é determinado, sua possibilidade é sua efetividade; os valoresinspiram as ações humanas que ocorrem neste mundo real determinado;nada obstante, o homem é livre. Considerar essa aporia será tema dopróximo capítulo.

Uma ética material de valores precisa cuidar não apenas do bom(valores morais) mas também dos bens, sejam estes corpóreos, coisas,sejam eles imateriais, espirituais. Os antigos, diz Hartmann, estavam certosao fazer a doutrina sobre os bens constar da ética: "O ethos do homemestá ligado a um conjunto de valores que não são valores morais. A con­duta moral é, sem dúvida, sempre uma conduta diante de pessoas, mas é,ao mesmo tempo, sempre uma conduta ligada a objetos valiosos edesvaliosos de toda espécie"24. Os valores morais, por seu turno, dizemrespeíto exclusivamente a pessoas e seus atos. Inobstante, o conteúdoque os determina é o mesmo e os objetos do mundo ganham nova dimen­são, a ética, ao serem vistos como bens. Valores morais como a honesti­dade e a solidariedade dependem da existência de bens sobre que incidam.Da mesma maneira, ajustiça é um valor moral que só tem sentido atravésda interação entre as pessoas diante de um bem considerado justo: é adependência dos valores morais em relação aos bens ou valoresobjetivados.

Tal relação defundamentação (Fundierungsverhiiltnis) hierárqui­ca pode ser expressa por duas leis básicas. Em primeiro lugar, os valoressuperiores ("mais altos") dependem dos inferiores ("mais baixos"), sen­do estes independentes daqueles; por exemplo, pode haver ordem (valorinferior) sem justiça, mas ajustiça precisa de ordem para se realizar. Emsegundo lugar, a relação de fundamentação não diz respeito ao conteúdodos valores mais altos"; em nosso exemplo, a simples realização da or-

23. N. Hartmann, Ethik, cit., Cap. 20, p. 198-9.

24. Idem, Cap. 26, p. 251.

25. Idem, p. 252.

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I

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dem nada informa sobre a justiça que nela tomará base. Max Scheler,diferentemente, defende a tese de que os valores mais altos fundamentamos mais baixos, caindo no que Hartmann chamou de "preconceitoteleológico" (teleologisches Vorurteif)26

Resumindo, a ética de Nicolai Hartmann pode ser dividida em trêspartes principais. Na primeira delas, o autor aponta o que considera oserros do assim chamado "naturalismo ético" e se dedica a refutar, comovimos, a doutrina kantiana de que a lei moral, por ser discernida a priori,emana da razão e resulta da auto-imposição da vontade racional. Contraisso Hartmann invoca Platão e defende a existência objetiva e ideal dosvalores, os quais são descobertos aprioristicamente pelo sujeito mas nãoprovêm de sua razão.

Na segunda parte, os valores são apresentados como um sistemacomplexo, cujo conhecimento está apenas começando na história da hu­manidade. Hartmann fala como um explorador e descobridor e sua inten­ção não é meramente metafórica. Conclui-se que a realização dos valoresnão-morais e dos valores mais elementares é condição necessária para arealização dos valores mais altos. São discutidas a estrutura escalonadae hierárquica dos valores e suas características. Entre os valores moraismais simples está a justiçajurídica, protegida pela coercitividade e pelalegalidade.

Finalmente, a terceira parte da Ethik dedica-se à tese de que amoralidade proveniente da realização dos valores é possivel apenas emum mundo determinado pela lei de causa e efeito. Mas assim como a vidaorgânica, mesmo dependendo de determinações (leis) mecânicas, não podeser explicada por elas, a vida moral não pode ser compreendida por meiode processos fisiológicos. Aqui tem papel fundamental o conceito de Ii­herdade, que representa o novum categorial da esfera axiológica. Con­clui-se que a ética humana não é determinada pelas leis naturais do mun­do orgânico ou do inorgânico, ela é autodeterminada.

No centro das discussães da ética e da filosofia do direito contem­porâneas, em uma mudança de ênfase que as separa dos debates à épocada Escola do Recife ou à época de Hartrnann, está a questão da possibi­lidade de fundamentar racionalmente critérios materiais para separar o

26.1dem, p. 255.

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ético do antiético, o lícito do ilícito. Nota-se insatisfação diante dos crité­rios exclusivamente formais oferecidos pelo positivismo. As duas cor­rentes, tão antigas quanto a própria filosofia do direito, dividem-se emtomo da separabilidade ou inseparabilidade entre o direito e a moral,levantando problemas como a injustiça legal, a legitimidade do direitocomo valor adicional, para além do conceito de direito efetivamente im­posto e cumprido, o conceito de Estado democrático, o desenvolvimentoracional do direito no curso da história27 etc.

A questão da possibilidade de uma ética material, válida a partir deseu conteúdo, continua, portanto, atual. É a necessidade de distinção en­tre efetividade (ou faticidade) e validade". A ética material de Scheler eHartrnann, competente na crítica ao formalismo kantiano, não pareceoferecer solução satisfatória a tais questões, como veremos. Continua­mos diante da velha questão sobre se é possível deduzir diretamente nor­mas de fatos.

27. R. Alexy, Begrif!und Gellung des Rechls, Freiburg-München, Alber, 1992,p. 15 e s. e passim.

28. J. Habermas. Faktizitat und Geltung - Beitrtige zur Diskurslheorie desRechls und des demokralischen Rechlsslaals, Frankfurt a.M., Suhrkamp, t992, p.15es.ou541 es.

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~ítulo Sétimo

AXIOLOGIA JURíDICA

Sumário: 1. O platonismo em nosso tempo. 2. O modo de serdos valores. 3. O ato teleológico. 4. Possibilidade de conheci· i '

mento dos valores.

1. O platonismo em nosso tempo

No capítulo anterior, vimos a controvérsia entre monismo e dualismono terreno da teoria dos valores. Além de axiológica, essa controvérsia étambém obviamente ontológica, uma vez que a axiologia constitui umaparte da teoria do ser. É fácil entender porque o grande impulso dado àteoria dos valores tenha vindo dos dualistas, daqueles que defendem aexistência de um mundo axiológico à parte, distinto do mundo físico enão-humano, e, dentre eles, destaquem-se os dualistas objetivistas, aque·les que advogam ser o valor descoberto e não criado, subjetiva ou obje­tivamente. Nicolai Hartmann pode ser classificado como um dualista, oumesmo pluralista, objetivista. E dos mais radicais, pois todo o ser, sejaou não axiológico, independe da percepção humana.

Mas mesmo entre os dualistas objetivistas é possível uma posiçãomenos radical do que a de Hartmann. Entre nós, Miguel Reale, por exem·pio, defende a tese das invariantes axiológicas: os valores são criadospelas experiência e cultura humanas, afirma, negando a existência de um"reino axiológico em si"; mas, uma vez criados, os valores permanecem

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no horizonte da humanidade e, embora possam vir a ser esquecidos, inse­rem-se ~ara sempre no contexto cultural da comunidade, posto que fo­ram reahzados, de forma semelhante aos fatos historicamente ocorridos'.

O idealismo objetivo da ontologia platônica não é aceito por NicolaiHartmann, conforme examinamos anteriormente. Para ele, é certo que háuma esfera de essências fenomenológicas, lógicas e matemáticas, seme­lhantes às idéias platônicas, mas essas essências constituem apenas umdos múltiplos as~ectosdo ser. Nada obstante, no que concerne à axiologia,Hartmann acredIta que os valores são ideais no sentido atribuído porPlatão, fazem parte dessa região, intangível para os sentidos humanos,que somente pode ser intuída intelectualmente -no caso das matemáti­cas, por exemplo - ou emocionalmente _ no caso dos valores.

Embora essências fenomenológicas e valores façam ambos partedeste mundo ideal descoberto por Platão, sua relação com o mundo real émuito di~erente: as essências, como Husserl as descreve, estão presentesnecessaTlamente, formam o núcleo de racionalidade que existe em todosignificado universal, independentemente das peculiaridadesindividualizadoras de cada ente real; diante dos valores, a realidade podeou não reagir, posto que eles não a determinam compulsoriamente mas. ,s~m constituem uma instância de avaliação que guia a conduta, esta,SIm, um fenômeno real.

Isso quer dizer que o mundo real não influisobre os valores a não. ,ser no sentido de que eles tendem a realizar-se, a inserir-se no mundoreal; mas os valores conformam a realidade, mesmo que não necessaria­mente. Semelhante independência dos valores ideais em relação ao mUn­do real leva Hartmann a um objetivismo axiológico mais extremado doque o de Max Scheler, demonstrando a influência de Platão'.

Os valores não são, assim, produto das preferências e experiências

I. Cf. M. Reale, Invariantes axiológicas, Estudos Avançados, n. 5, fase. 13,p. 131-44,RiodeJaneiro, 1991.

. 2. Cf. 1. Mohanty, Nico/ai Hartmann andA/fred North Whilehead _ a studyln recent platonism, Calcutta, Progressive Publishers, 1957, passim; H. Wein.Dokumentationen und Notationen zum sp3ten Hartrnann aus der Sicht von heute, inA. Buch (org.), Nico/ai Hartmann - /882-J982, Bonn, Herbert Grundmann, 1982,passim; N. Hartmann, Ethik, Berlin, Walter de Gruyter, 1949, Cap. 18, p. 170 e s.

142

humanas dentro do processo histórico. Nesse ponto, Hartmann discor~a

de quase todos seus contemporâneos e também de Hegel: o homem.avahaporque há valores e não o contrário. Os valores são cap!ados e reahzadosna história mas não são criados por ela. Mesmo que nao possa conhecerplenamente os valores, o homem se encontra obri~atoriament.e!nfluencia­do por eles, constituindo o que Hartmann denomma ser espmtual. Todaexperiência axiológica, por conseguinte, e ai se incl~i certame.nte a.expe:riênciajuridica, inspira-se em um mundo absoluto e Ideal queJama~~ seraplenamente realizável ou racionalizável. Daí que toda expenenClaaxiológica é uma experiência histórica inspirada em parâmetros original­mente meta-históricos. A história humana consiste justamente na desco­berta desse mundo ideal transcendente. É observando as diferentes ex­pressões da cultura no decorrer do tempo que percebemos o predominiode uns valores sobre os outros, ou seja, os valores são susceptíveis deordenação e hierarquia, diferentemente dos demais objetos ideais.

Aceitando Scheler, ao analisar a relação entre valor efim, Hartmannafirma que a ética material resultaria contaminada por elementos exter­nos se um ato fosse valioso somente enquanto meio para um fim realqualquer. Conclui que todos os valores são passíveis de re~lizaç~om~s

não dependem dela, eles existem e valem por si mesmos. DIto no~argaofilosófico todo dever ser tem por fundamento um valor mas a recIprocanão é verdadeira, posto que o ser espiritual é regido pelo dever ser queemana dos valores e não pelos valores propriamente ditos3.

Essa relação entre valor (Wert) e valer ou dever ser (Sollen) é apedra de toque para o platonismo axiológico de Hartmann. Se o valor e odever ser que dele emana correspondessem integralmente um ao o.u~ro, apercepção dos valores seria sempre a mesma, cai?do em.um determInIsmoque redundaria na rejeição das diferenças e da hle.'arqUla que ex~~~entejustificam a axiologia e a ética. Como desejava eVItar tanto o subJet~vlsmo

como o determinismo, Hartmann resolve engenhosamente a apoTla. afir­mando que o dever ser, o impulso à realização, não é .da e~sêncta dovalor, mas uma de suas propriedades. Assim torna a aXIOlogIa de certomodo independente do mundo humano.

3. N. Hartmann, Ethik, cit., Cap. 19, p. 176 e s. e B. M. Pifteda, Filosofia deidereeho, Medellín, Universidad, 1961, p. 354.

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Os valores são então imutáveis O '.

~~~::n:~~~~~~~~eu:p:~;:ãodos ~al~~:.s~s:o;~~~~ee: :::::i~:~i~condenada a escolh~r em ger toda a co_mpl~xidade dos valores, estáles, limitada tanto e~ exteesm~ a percepçao ve-se reduzida a alguns de-. nsao quanto em intensid dO'Irfedutivelmente transob;etivo dos vaI f: a e. conteudod ' ores az com que a ". djae:::~~:~~ea~:e:::~:~: un~ em detrime~to de outros eCi~~~~:~~~~~in~bidos ganham em intensidad~a;resd~a medida em que.aquelesjá perce­

valor é captado, tanto mais el~ te~~e ~z::iiqpUsaarntoosmdaiS I?tensamente um. . emaIS.

Na etlca de Scheler e Hartmann ao co ..os valores não são formas sem conte6d . IntrarlO ~o que possa parecer,teriais que determ' . o. e es constItuem mstâncias ma-

mam um conteudo específico nos ob' ..relações em que aparecem4' C . ~etos, SUjeItos e

~:~~~:~;~~~;:~~~ad~::~l~~:~:~~~u;e~;~~;~~sã:e.:a~~~~~l~~~:~e~Platão, o sentimento do valor (rt::.ifü'":tlO ~a vlsa~ mtenor de que falou

;:~::~:~~~:::::S::~~~cãa~:~t:;~~:;t~~~~~~::~;~~~r~::~:J::'se mostra qUa~dOc~mp~~~:~entoaXlOloglco. O sentimento do valor não

. . mos, mas sim por SI mesmo dpropnas leis, atuando à revelia da vontade' I . C . dsegun Osuasinclinações pessoais do sujeito que v I ' e e e ao 10 ependente dasmenta o são em rela ãoaosu'ei a oraqua~to os obJetos do conheci­radical de Nicolai Jartman~5. to cognoscente. E Oobjetivismo ontológico

O platonismo axiológico de Hartman d _três pontos básicos' I) Os I _ n p? e ser, entao, resumido em

. va ores sao em SI me . dqualquerjuízo estimativo da part d " smas, 10 ependem derealiza; esta existência objetivaé:; Sli.e~;o~u;. event~aImenteos intui e2) Assim, os valores não se confunde~ ~~ ea de ser (Ideale Seinsweise).

~h~~;:~~e; ;~o~~~~~;~í:;~~~~:~~:lm:t~ r:~~~::~~::e~:,I:se:~a:~

4. N. Hartmann, Elhik cit. Cap 15 144derecho, México POITÚa 1974 'p 424' , p. e s. e E. G. Mâynez, Filosofio dei, . ,. e s.

5. N. Hartmann Elhik dI C 19passim. " ., ap. , p. 178 e 183 e Cap. 21, p. 200-8 e

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2. O modo de ser dos valores

Como visto no quinto capitulo, um estrato é chamado de "mais alto"em função de sua maior complexidade ôntica. O modo de ser ideal é maisbaixo do que o real, que se manifesta através da temporalidade e da indi­vidualidade, expressões do novum categorial que separa o ideal do realinorgânico. As regiões menos complexas ajudam na configuração dassuperiores, na medida em que suas categorias específicas projetam-se"para cima". O caracteristico a respeito dos valores é que fazem parte daesfera menos complexa, ideal, mas somente são percebidos no estratomais complexo do ser real, ou seja, no ser espiritual. Hartmann rejeita odualismo axiológico que simplesmente opõe espírito e matéria: não ape­nas espírito e matéria mas também, dentro da própria "matéria", o orgâ­nico e o inorgânico, o animico e o espiritual. Fora do conceito clássico dematéria, só o ser ideal.

A percepção que o ser espiritual tem dos valores é objetiva, mesmoque os valores se mostrem indiferentes a tal percepção. Hartmann acredi­ta, com ainda mais otimismo do que Kant, que a hierarquia ontológicados valores possa vir a ser homogeneamente intuida pelos diferentes su­jeitos, embora essa tarefa exija alto grau de desenvolvimento ético egnoseológico.

Essa alegada possibilidade de percepção uniforme dos valores, quetraz conseqüências importantes para a filosofia do direito e pode ter leva­do Hartmann a uma espécie de jusnaturalismo, como veremos, esbarrana dificuldade de que o ato valorativo se apresenta de tal modomultifacetado que praticamente impossibilíta o acordo quanto aosparâmetros·. De um lado, os bens sobre que se projetam os valores pare­cem depender da opinião subjetiva das pessoas que os tacham de valio­sos; a esse argumento Hartmann objeta que O valor dos bens não dizrespeito a este ou àquele individuo ou mesmo ao grupo social, mas sim àconstituição ôntica do ser humano, constrangido a valorar, e do objetoem que projeta sua valoração. As valorações opostas, que os fenômenos

6. H. Henkel vê ai uma contradição insolúvel. Cf. EinfiJhrung in dleRechlsphilosophie, apud E. G. Mâynez, Filosofia dei derecho, cit., p. 432·4.

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SER IDEAL

o valor em si (Wert an sich) . '. .representa O valor em sua Plenitu~eo ~0~C~1l0 ongmá.rio e pressuposto,real. Mas todo o ser ideal, compreende~~ a 0

1em sua ~ndc:pendên.ciado

o va ores, essenClas e entIdades

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{

REALIZAÇÃO DO VALORPERSPECTIVA GNOSEOLÓGICA ATO ESTIMATIVO

SENTIMENTO DO VALOR

PERSPECTNA ONTOLÓGICA

VALOR REALIZADO

DEVER FAZER

DEVER SER ATUAL

DEVER SER IDEAL

VALOR EM SI

SER REAL

SER IDEAL

SER REAL

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matemáticas, perpassa a realidade, "tende para cima", como gosta dedizer HarlInann. Como o dever ser ideal é o modo de ser específico dosvalores, isso significa que eles, apesar de não guardarem relação neces­sária com a realidade, projetam-se em direção a ela, deixam-se captarpor qualquer ente apto para tanto. Valor e dever ser ideal não se confun­dem, pois o valor é o fundamento para o dever ser ideal e este emanadaquele, " ... o dever ser (Hartmann refere-se aqui ao dever ser ideal)significa o direcionamento para algo, enquanto o valor é o algo para oqual o dever ser se dirige"7. Nesse ponto, nota-se mais uma inversão daética kantiana, segundo a qual é o valor que se funda no dever, comovisto no capitulo sexto.

Quando o valor é captado pelo homem e assim iniciado seu proces­so de inserção na realidade, suas emanações constituem o dever ser atual(Aktuales Seinsollen, o Sollen propriamente dito), definido como a ten­são entre o dever ser ideal e a realidade valorada; o dever ser atual é ovaler,já sujeito aos constrangimentos da realidade diante do passível derealização ou não. Sobre a relação entre dever ser ideal e dever ser atual,e por que os conceitos não se confundem, Hartmann diz: "No dever seratual, o dever ser ideal é apenas um momento; o outro momento, igual­mente essencial no dever ser atual, é a oposição das esferas (ideal e real).O dever ser atual situa-se entre o dever ser ideal e o efetivo dever fazer"'.Em outras palavras, quando o dever ser puro, em seu modo ideal de ser,apesar de sua tendência a realizar-se, é intuído mas não foi ainda realiza­do, surge a atualidade do dever. O dever ser atual decorre da impossibi­lidade de realização plena dos valores; seu pressuposto é a não-realiza­ção daquilo que deve ser.

O deverfazer (Tunsollen) expressa a parte do dever ser atualizadoque é passível de realização naquelas circunstâncias reais. Depende deuma avaliação direta do agente e também do contexto em que ela ocorre,mas não é subjetíva, como veremos nos itens 3 e 4 deste capítulo. O valorrealizado, ou "objetivado", na tenninologiade Hartmann,já pertence àesfera real mas só pode ser compreendido mediante nova íntuição

7. N. Hartmann, Ethik, cil., Cap. 18, p. 172.

8. Idem, p. 173.

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axiológica. Ao tratannos do problema da objetivação do ser espiritual,no capítulo nono, examinaremos esse tema mais de perto.

Uma ontologia que tem os valores como entidades ideais, ao ladodas essências fenomenológicas e das entidades lógicas e matemáticas,insurge-se contra dois preconceitos pelos quais enveredou a filosofia oci­dental, afirma nosso autor: um, Opreconceito empirista, que confundeser e ser real e leva a um materialismo ingênuo; outro, o subjetivismo,confunde idealidade com subjetividade e é responsável por muitas for­mas de ceticismo e relativismo. Em um argumento heideggeriano,Hartmann mostra como a expressão idéia, ínaugurada por Platão, foigradualmente deturpada a ponto de converter-se em sinónimo de repre­sentação subjetiva.

Mesmo enfatizando a possibilidade de intuição objetiva, e dai pos­sivelmente homogênea, do ser ideal e dos valores, Hartmann é forçado aadmítir o caráter parcial dessa objetividade, em virtude da discrepânciaque necessariamente se dá entre as esferas ideal e real. A consciência dosvalores será sempre inadequada por não haver identidade total entre osjuizos axiológicos e as categorias que regem o ser real. Ainda assim,como dito aqui, um sujeito Corretamente posicionado pode intuir inclusí­ve a hierarquia segundo a qual os valores se ordenam. Daí depreende-seque dois homens sensatos não entrarâo em conflito se suas percepçõesaXiológicas divergem. Pela intuíção emocional da hierarquia, diante docaso, será possível para eles encontrar o valor que mais fortemente seimpõe segundo os critérios de conteúdo espec{fico,força e altura. Asnotáveis conseqüências de semelhante tese, sobretudo para a filosofia dodireito, não são dificeis de deduzir. Trataremos delas ao final do capítulo.

Embora compatíveis com a razão, os valores entram em contatocom Osujeito independentemente dela, através da intuição emocional.Antes de qualquer reflexão,já temos o que Hartmann denomina consciên­cia do valor, a qual nos é revelada juntamente com os fenómenos: "Estanão é uma consciência de princípios, não é uma visão pura dos valores,mas sim um sentimento de valor, um conhecimento claro ou obscuro dosvalores e desvalores da conduta efetiva"9.

9. Idem, Cap. 6, p. 58.

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. .., I res(Wertftih1en)étambémaprioriEsta consciêncIapnmarladods va o .-ncia Mas há diferença entre

. ão depende a expene . .no sentido em que n. d . I . e o apriorismo teorético da.. .tlCO a axlO oglaeste apnonsmo pra d componentes do conhecimento, en-. t' apenas um osgnoseologia: es ee. sentido ético do agir humano, dad~ es­quanto os valores constituem ~. o na-o devem ser confundidos

. . 'd d plríto Por ISSO mesm . .senclal a vI.a o es . _ arte do concreto sobre o qual mCldem ascom categonas: os valores sao p . modo ideal de ser'0.

. rincípios - que detennmam ocategorias - p uarda alguma espécie de rela-

Todo ser ideal, segundo Hartrndann'ogrdo Isso porque as entidadesI de acordo ou esac . I

ção COm o ser rea: . oló icas e os valores estruturam o rea ,matemáticas, as essencl~sfen~men" g cima" como visto. Essa relaçãocom suas categorias proJetan o-se par; . :alização através da esferaé porém mais forte nos valores, que ten em a respiritual l !.

3. O ato teleológico

. - iritual real e os valores ideais é estu-A aproxlmaçao entre o ser ~sp . 't ai que percebemos. d h m úmco ente espm U

dada a partir o orne , . 'Iogaaoconhecimento,atra-. EI dá de maneira anafenomemcamente. a se, f do literal que lhe dá Hartmann, atovés de um ato transcendente, n~ sen I ob';eto que lhe é exterior

.. . d í pro'eta-se para um , .Pelo qual o sUJeito sal e s , '. t arte de sua subjetivlda-. .. uele obJeto e o orna pe finalmente, mterlorlza aq . I' . o não se confunde com o atod~. Mas esse ato trans~e~dente ~~IO~â~~os Esta intuição reativa pelatranscendente gnoseolo~'coque Ja~res e os i~sere na realidade é o quequal o homem se aproxlI~a dos ~aleológico!2. Para efeitos da descriçãoNlcolai Hartmann denomm~~to e de ser dividido em três momentosfenomenológica, esse ato, umco, podistintos.

. d .t de categoria no14 126 Cf nossa discussão o concel o10. Idem, Cap. ,p. . .capitulo quinto.

II. Idem, Cap. 17,p. 161. ke B r Walter de Gruyter, 1951,12. N. Hartmann, TeleolOgiS~~S D~;9 ;;. :ra~n;lisadaa relação entre ne~o

Cap. 7, p. 68 e s. No Cap. 20 da EI I , p. 'rda '200 Hartmann critica a teleologIade finalidade e dever ser e, no C.ap. 21, a parti p. ,como forma global de ontologIa.

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I) Inicialmente, porque Sua est tu ' .esfera ideal axiológica o ho . n: ra ontlca lhe permite acesso ãnele e decide como ori~ntarã~:::n;ul o ~alor (ou desvalor), inspira-se~r ela. Esta é a fase mais propriam~n~~ ~~;c~ndo um fim a. s:r atingidoclonada apenas pela relação' t . . e do ato teleologlco, condi-

In UllIva entre o sujeito I CIestando imerso no ambiente . I e o va oro aro que,econômicos afetivos de ;OCJa , c.o~ todos os seus condicionamentosde pressões ~ influên~ias' ~i:r,~ ~ujetto.nunca estará inteiramente livredida contextualmente.' er a e aqUI deve ser evidentemente enten-

2) Em segundo lugar o a tfim escolhido e para tant~ g~n e escolhe os meios que efetivarão o

b ' , precIsa atentar para as co d' - b"so as quais sua ação terá lu A' d . n IÇoes o ~etlvasescolha desses meios essa et gar. ã I~ a que persista certa liberdade naser que dele emana m~s tam~pa; ~ .epende a~e~as do valor e do deverte. Não é possível matar a sed~ ~ el~ categonalS da realidade ambien­se o sedento estiver em locati et~ g~e~ se não houver água potável oupondera como adequar os valor~: Inglve , ~or exemplo. Aqui o sujeitolos concretamente. que conSidera relevantes para realizá-

3) Ao termo do processo tem lu ar l' _ .dos valores ou seja sua efetiv _ g a rea lZaÇao propnamente dita

, , açao no mundo real Ne fi 'á' .no mundo real e dominada pela I .dr' ssa ase,j Insendanão a fmalidade desejada e o a el t a ~ausa Idade, os meíos provocam ouminações do mundo físico' "og:~~ slmt~smente lança mão das deter­Ihar por si' ele a põe como' . em elxa a força da natureza traba­mundo rea'l, a ação humana ::;'~:lo~a s~~s objetivos"lJ. Ao penetrar noconstituir em mais um evento d I a a Iberdade axiológica e passa a se

e e.Hartmann dedica boa parte de sua E h'

que a realização dos valores éticos so t Ik.a def~nder essa teoria decausalmente determinado n- h d mente e rosslvel em um mundo

I'b ' ao aven o contradição . hentre I erdade e causalidade .. '. ' mas SIm armonia,. . ad ' ja que so assim um ent Imsplr o em entes ideais pode prod . fi' e rea , mesmo quereal. Não se deve aí confundir causa~~~r~ ett~s em u~.ambiente tambémconsegue agir sobre a reaI'd d I a e e. etermInlsmo: se o homem. I a e, a causahdade qInexoravelmente preestabelecida od' ~e a governa não édireção, cada uma delas seguind e p e s~r l~fluencJada em mais de uma

o seu propno fluxo causal.

13. N. Hartmann, Elhik, cit., Cap. 21, p. 209.

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Pode-se argumentar que essa teoria é incompativel com a implica­ção proposta por Hartmann entre efetividade e possibilidade dentro daesfera real, aqui examinada no quinto capítulo. Parece-nos, contudo, queo evento real efetivamente ocorrido (e segundo Hartmann o único possí­vel sob as condições presentes) é determinado apenas ali no caso concre­to, O que não implica predeterminação, pelo menos no sentido comum dotermo. Hã a interferência dos outros sujeitos e eventos: estes são, emcerto sentido, predeterminados, mas a interferência dos valores não écausalmente determinada e assim o imponderável penetra na realidade.Tais atos teleológicos, ã exceção do ato gnoseológico, que constituemnossas decisões de conduta, então, são preponderantemente emocionais:"O conhecimento é o único dos atos transcendentes que não é emocional.Todos os outros sofrem o impacto de atividade, energia, luta, sacrifício,risco, sofrimento, perplexidade. Aí reside seu caráter emocional. Todotrato com pessoas, toda disposição de coisas, toda experiência, aspira­ção, desejo, ação, negócio, volição, intenção, tudo isso tem seu lugaraqui"14.

É nesse contexto que queremos destacar quatro problemas princi­pais na axiologia.

O primeiro deles, de cunho ôntico-axiológico, trata da existência ouinexistência em si dos valores, sua dimensão histórica e sua aparentevariabilidade. O segundo, de caráter mais propríamente ontológico, dízrespeito às inter-relações e leis que regem sua existência ideal, algumasdas quais examinamos. A terceira questão concerne ao papel desempe­nhado pelos valores na construção de uma ética humana, vale dizer, comoa axiologia pode auxiliar na ordenação da conduta, fornecendo ahierarquia dos valores a serem realizados. O quarto problema refe­re-se à gnoseologia da axiologia, reflete a tentativa de conhecimentodos valores.

O conhecimento, como vimos, é um ato transcendente, no sentidoem que Hartmann entende o termo. Comparando-o ao ato emocional,temos que o ato gnoseológico é mais neutro e objetivo mas, ao mesmotempo, é menos vital para a ação do homem. Claro que tal separação

14. N. Hartmann, Zur Grundlegung der Ontalagie, Berlin, Walter de Gruyler,1965, Cap. 27, p. 163.

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obedece a uma tipologia idealizada osto • .puramente gnoseológicos ou ' p que nao expenmentamos atostre o ato de conhecimento intpu~e~te emocio?ais. As semelhanças en­nhecimento emocional vão a~:;I~n~mente de~m~er:~sadoe o ato de co­ato é diferente. Na relação de conhe~i;;:cende~cla: Mas a es~tura donão se modifica' e o sujeit •. to o obJeto pennanece mtocado,atingido, ele só ~e modific:n:aoq e, ao menos em seus hábitos de vida,cia"15 É" ue concerne ao conteúdo da consciê

t. . Imposslvel uma completa neutralidade diante do mund ' n­

o, mas nem toda ação envol . . o, e cer­medida. ve uma partIcIpação subjetiva em mesma

Daí~rqueHartmann fala em três fonnas fundame . .a teleologIa do processo a tele I . d ti ntals de teleologIa:O estabelecimento de fi~alidad~sogla as o?"as.~ a teleologia do todO '6.

e a teleologia tem de fazer e expectatIvas e merente ao ser humanouma ética. Mas não se de:ea::

ed: qual1u~rgnoseologia que fundamente

ou do universo. Não se deve cao~~ c~~c Ulr que há uma teleologia do sersentido do ser _ que resulta da pe':::e Ir,.co:;o o faz o existencialismo, o

de ~mma~~o~~;i~~o~~:t::~aedito, id:~:oe::~~~:~nd;e~;:'~~ :~~~~~ao UnIverso como um tod h' .

nem todo ente é susceptível de' fl _ . . o, aja vIsta queln uenclas valoratIvas.

4. Possibilidade de conhecimento dos valores

Prosseguindo na orientação metod I' .ria geral do conhecímento r Ooglca adotada, partindo da teo-

, p ocuraremos agora 't .específico dos valores dentrodi' SI uar o conhecImentopróximo capítulo como se coi a gnoseo ogla, para então examinar, no

, oca uma gnoseologiajurídica.Recorde-se que Hartm .d

ontologia. Assim, o ponto d:nn

C;:.~SI .era a gnose~logia s~bordinada à

ma!s ampla, isto é, ser real e s:r~d~a~. ~:n~~:":J~ dl;ot~mla ontol~g!camaIs ampla aquela que divide o h' lCO omla gnoseologlca

. con eClmento em apriori e a t"como VIStO no primeiro capítul pos erlOn,

o, somos tentados a estabelecer uma Cor-

15. Idem, p. 164.

16. N. Hartmann, T'eleologisches Denken, cit., Introdução 717.ldem,Cap.ll,p.II2. ,p..

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respondência rígida entre mundo ideaVconhecimento apriori, de um lado,e mundo real/conhecimento aposteriori, de outro. Ainda que todo conhe­cimento de objetos ideais seja a priori, pois tais objetos não fazem parteda experiência sensível, o conhecimento dos objetos reais não é exclusi­vamente a posteriori: isso porque as categorias que regem o ser real,como qualquer categoria, são sempre conhecidas apriori, não podem serpercebidas empiricamente, de acordo com Kant. Para o ser ideal vale aexclusividade: seu conhecimento é apriori tanto em relação ao seu prin­cípio quanto ao seu concreto". Isso se deve a uma maior proximidade(Nahstellung) do ser ideal em relação à consciência humana.

O conhecimento ideal não se confunde com a mera representação(Vorstellung), ainda que tenham em comum a característica da irrealidadee, conseqüentemente, o caráter a priori, sem cantata com a experiência.O objeto puramente irreal, que não tem existência ideal independente,não pode ser conhecido objetivamente, ele é uma criação do sujeito. Essaconfusão é feita pelos subjetivistas axiológicos, ensina Hartmann, e nãocorresponde aos fenômenos axiológicos que percebemos. "Só se podefalar de conhecimento apriorístico diante de tais 'objetos' que têm um serem si. O irreal meramente portado pelo ato (aktgetragenes Irreales), cujocaráter de objeto é colocado unicamente através da intenção, não é 'co­nhecido' . Ele é produzido pelo ato". E logo depois acrescenta: "Conheci­mento é mais do que representação. A representação apriorística do 'ob­jeto' irreal pennanece à margem de verdade e inverdade. Ela não temabsolutamente pretensão a uma 'validade objetiva' "".

A critica a Kant continua presente quando Hartmann afinna que oconhecimento apriorístico não se reduz aos juízos sintéticos apriori queconstituem um dos pontos de partida da Crítica da Razão Pura. Kant éque se resumiu a um dos aspectos do conhecimento a priori'o.

Uma terceira distinção sugerida por Hartmann para descrever oconhecimento dos valores é que ele pode ser intuitivo e racional, sem seexcluírem as duas formas. O conhecimento racional é entendido,

18. N. Hartmann, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, Berlin, Walter

de Gruyter, 1946, Cap. 61, p. 468 e s.

19. Idem, Cap. 63, p. 490.

20. Idem, Cap. 45, p. 340.

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aristotelicamente, como discurso reflexivo .segundo determinadas regras . . que encadeIa conceitos e juízos

. , as quaIs se submetem tant .como os Ideais diante do sUjeito co nos '. _ o os entes reaIsficada em sensível propo' d

gcente. A mtUlçao pode ser classi-

, rClOna a pelos órg- d .empirica, real; intelectual, que se diri . ao~ o.s sentIdos e assimtipo hlbrido capaz de unir as esfe get obJetos Ideais; e emocional, umdessas classificações Hartm ras rea e Ideal através do valor. Ao lado

. ' ann acrescenta a . t .... . ..capta Isoladamente um valor e a . m Ulçao estlgmallca, que

d . , conspecllva que a d I -tre OIS ou mais valores T d . ' preen e re açoes en-

o • o o sentImento d I bespecies21 , presentes sempre que alg' I e va or a range ambas as

Uem va ora algoO conhecimento dos valores é a ri .. ..

através de uma emoção dl'ante d f:P Orl e Ideal, amda que se revele. eum ato real EI . . .

clOnaI e apenas secundariamente ra . . e e pr!manamente emo-portante de como conciliar o e ~lOnal. Surgo: entao o problema im­único ato. Também aqui a descr~~~I;nal e o ra~'~nal presentes em umo caminho. ç enomenologlCa do ato valorativo é

Os atos emocionais-transcend t _ .em receptivos, prospectivos e es oe~es sa~classIficados por Hartmannjeito experimenta passivament p n ~eos . Nos atos receptivos, o su­Ção qualquer que o provoca' é

euom

csentidmento de valor frente a uma situa-

O ' aso a tnsteza da I . d' .Sprospectivos dizem respeito a I -' a egna, a JustIça.

sujeito tem expectativaquevenh uma va oraç.ao sobre algo de que oa ânsia. Os atos esnontâneos t ~ a acontecer, taIS como a curiosidade ou

. r, aIs como a repulsa d .atlvamente emocionais quanto à rt" _ .e.o eseJo, são mais

. . pa IClpaçao do sUJeIto.Em um pnmelro momento o agente sofre .

de algo que se lhe apresenta' um' 'tu _ o Impacto emocional diante. a SI açao determi d

ção de um inocente ou a alegria diante da des na a, ~omo a condena­de se tornar consciente"d graça alheIa, antes mesmo

, e sentI a como desvaI' ("..Hartmann, independentemente dos d' ..lOsa IUJusta"), crêda situação em que ela possa ocorrer I;ersos con~I~lOnamentoshistóricosexemplo, é percebido antes que . valor estetlCo de um minueto, por

se compreenda seu compasso ternário ou

21./dem, Cap. 55, p. 498 e s.

22. N. Hartmann, Zur Grundlegun der O '.(emolionol-rezeplive Akle), Ca 29 1g nlologle, Clt., Cap. 27, p. 16331, p. 182 (emolional-spontantAkl:/' 73 (emollOnal-prospektive Akle) e Cap.

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outras características de sua estrutura. Este momento inicial vem do sen­timento de valor: é desligado de toda reflexão, é puramente emocional, éuma relação entre um sujeito e um objeto ideal.

Depois de assaltado pela intuição emotiva, o sujeito já põe em açãosuas faculdades cognoscitivas e reflete; através do raciocínio, percebe,ou pelo menos tem condições de perceber, a situação real, os objetos quecatalisaram a presença dos valores. É o que acontece quando o sujeitoassocia aquele sentimento àquela injustiça ou àquele minueto. Essa fasetem conteúdo emocional mas também intelectual.

O terceiro é o momento perseguido pelo filósofo, o momento em quese procura descobrir a fonte do sentimento do valor. A fonte não pode sera sensação inicial, pois esta é o próprio Wertfühlen, o efeito, nem o objetovalioso, cuja natureza não-axiológica é facilmente perceptível (a partefisica do ato injusto, a estrutura matemática da música etc.). Chega-seentão ao valor em si, com todas as características e relações já expostasaqui. Esse terceiro momento é puramente intelectual e gnoseológico. Aquio valor já é tornado objeto de conhecimento.

Ainda que esse terceiro momento seja filosoficamente mais impor­tante, não se deve pensar que Hartmann seja partidário do conhecimentomoral intelectual, que sempre critica. O primeiro momento, puramenteemocional, é o que efetivamente importa, como móvel do agir e comoresultado direto da apreenSão ontológica dos valores a que os homensestão irremediavelmente submetidos.

Não se pense que, muito embora a intuição axiológica se dê a cadasujeito indívidual. ela não seja dotada de objetividade, como visto. Provadisso, díz Hartmann, são as evidências de valores que existem mas per­manecem na esfera ideal, carecendo de realização; a históría da humaní­dade mostra que muitos valores são descobertos e vêm para ficar, en­quanto outros manifestam-se e logo desaparecem. Os lideres, profetas einspirados encarregam-se de intuir novos valores antes mesmo de a co­munidade estar preparada para realizá-los. Os valores irrealizados nãodeixam de valer por isso. A coletividade e o indivíduo, ambos condicio­nados historicamente, vão acumulando experiência para uma percepçAomais nítida da esfera axiológica ideal. Esta caminhada para perceber orealizar valores não é, contudo, retilinea ou escatológica, ela comporta

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avanços e recuos. Nem todos os valoresjá historicamente realizados per­manecem e podem ser esquecidos pelas gerações subseqUentes.

O problema da realização dos valores é agravado pela possibilidadede conflito quando eles são inseridos na conduta real. Esse conflito, sob a"tirania dos valores", pode originar fanatismos e propiciar a realizaçãode desvalores quando valores são procurados"; a legalidade ontológicaque rege a hierarquia entre os valores fundantes e fundados, porém, indi­ca a solução à pessoa sensata e confirma o otimismo ético de nosso autor.Ele não considera a possibilidade de a captação e a realização dos valo­res pela humanidade se processarem, por exemplo, como no mito gregode Sisifo. Esse rei de Corinto, por ofensa a Zeus, foi condenado ao Hadese lá a empurrar uma grande pedra até o alto de uma montanha, de onde apedra despencava, forçando-o a recomeçar tudo novamente. Hartmann,ao contrário, acha que o esforço humano, mais cedo ou mais tarde, levafatalmente ao progresso, tanto axiológico quanto do conhecimento.

Esse otimismo de Hartmann é companheiro da maioria dos filóso­fos e hoje tem muita força na teoria do direito, reaparecendo em R. M.Hare, E. Toulmin ou R. Alexy: em condições ideais, o homem éontologicamente capaz de discernir, as diferenças circunstanciais nãoimpedirão um entendimento racional e10u emocionaj24. A visão platónicada inseparabilidade entre competência técnica e bem ético é mantida.Todo mal é fruto do erro. Em condições ideais, a competência do contato- emocional e gnoseológico - consegue unir o saber e o bom no concei­to de bem. No capítulo final, tentaremos entender por que preponderaesse otimismo.

Da perspectiva da teoria do conhecimento, as entidades matemáti­cas e lógicas, este mundo maravilhoso de certezas dedutivas, parecempertencer mais a nosso código genético do que ao mundo, tornando-seobjetivas apenas do ponto de vista de nosso aparato cognoscitivo. Essa acontribuição definitiva de Kant. Pode-se acrescentar que o real é muitas

23. N. Hartmann, Ethik, cit., Cap. 61, p. 574.

24. R. Alexy. Theorie der juristischen Argumenlation - Die Theorie desrationalen Diskurses ais Theorie der juristischen Begründung, Frankfurt a.M.,Suhrkamp, 1983. Em português, ci Problemas da teoria do discurso, Anuário doMestrado em Direito, n. 5, Recife, Editnra Universitária (UFPE), 1992, p. 87-105.

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o o' e a matemática: no paradoxo da propor-vezes incompatlvel com.a loglca t m um muro em trinta e duas

I dOIS homens cons roe .ção, por exemp o, se m dezesseis horas e trinta e dOIS

h fazem o mesmo e 'horas, quatro omens b rdo de duzentos e cinqUenta e

d h s chega-se ao a suhomens, em uas ora, r I tarefa em quinze minutos. Essa ve-seis homens podere~ ~ea Izartque a .tos empiristas radicais a negar orificaç~o, correta, dm~os, e~u7r~~ justamente pela infalibilidade,modo Ideal de conhec~mento. d ' d de conhecer. Ambos erram.

o a úlllca forma a equa a o • •

acham que essa e .o' as entidades lógicas e matematlcas eXls­Para Hartmann, como Ja VIStO, . _ perpassam o mundo real, con­tem objetivamente e suas determlllaçoes

fonuando-o.

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~ítulo Oitavo

GNOSEOLOGIA JURíDICA

Sumário: 1. O problema da cientificidade do direito. 2.Fenomenologia: o dado jurídico. 3. Aporética: alguns dilemas noconhecimento do direito. 4. Soluções propostas.

1. O problema da cientificidade do direito

Seguindo a tradição filosófica dos três grandes subtemas da filoso­fia (ontologia, axiologia e gnoseologia), fala-se, na filosofia do direitotradicional, de uma ontologia jurídica, de uma axiologia jurídica e deuma gnoseologia jurídica. Dentro desses subtemas, outras classificaçõestêm sido feitas, tais como uma ontologia dos objetos e uma ontologia dasrelações, uma axiologia jurídica pura e uma axiologia aplicada e assim

por diante.Mantendo a tradição, apesar da perspectiva critica, tratar-se-á ago­

ra da chamada gnoseologiajurídica. O sentido da expressão é controver­so e a distinção entre gnoseologia e epistemologia é quase sempredesconsiderada em autores de língua inglesa, por exemplo. Conformeconvencionado na introdução, vem-se aqui tomando gnoseologia comogênero do qual epistemologia seria uma espécie. Essa convenção não éarbitrária e, além do emprego corrente de ambas as palavras, encontraapoio na etimologia: o termo gnose indica conhecimento em seu sentidomais amplo, um determinado tipo de relação entre sujeito e objeto, tal

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como se pode perceber em expressões como agnóstico, diagnosticar ouprognósticos, entre outras. Já episteme, conforme sugerido atrás, refere­Se a um setor particular da gnoseologia, um tipo de conhecimento commaiores pretensões a exatidão, certeza, rigorismo metódico.

Vejamos um exemplo simples. O agricultor primitivo, que percebediferenças na colheita de uva ou de trigo, segundo a época da semeadura,adquire o conhecimento de que é preciso atentar para o mês do plantio,segundo as características específicas do clima e daquilo a ser plantado,Seus filhos e netos aprendem dele os procedimentos desejados e os enri­quecem Com suas próprias observações e experiências. A transferênciade conhecimento (informações) é mais direta e imediata. Diferentementeprocede o pesquisador que procura isolar as variáveis envolvidas no plantioagrícola, tais como a qualidade do solo, a rapidez do crescimento, fertili­zantes especificos, disposição das sementes etc., e as submete a maisvariações e combinações que lhe permitem maior eficiência. Não se que­rem aqui tomar os efeitos das ações inspiradas neste ou naquele tipo deinformação para classificar o conhecimento em vulgar e cientifico, pode­se inclusive objetarque a diferença é de grau ou meramente quantitativaem relação à menor eficiência do conhecimento vulgar. O que distinguede fato o conhecimento filosófico-científico é a postura (approach,Einstellung), a forma de aproximação perante o objeto e de transmissãodos conhecimentos adquiridos. Claro que as semelhanças entre as diver­sas formas de conhecimento, como espécies de um mesmo gênero, sãomuitas e importantes'.

No centro de toda discussão que Platão iniciou sobre a dignidade ea precisão dos diversos setores da gnoseologia está o problema de definiro termo ciência, tanto sob o aspecto conotativo (sentido) _ quais oselementos que estarão presentes para que uma postura gnoseológica possaser dita epistemológica-, quanto sob o aspecto denotativo (alcance)-

1. Sobre gnoseologia e epistemologia jurídicas a literatura entre nós é vasta.Apenas a título de exemplo: M. Reale, O direito como experiência, São Paulo,Saraiva, 1968; L. Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo,São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977; T. Ferraz Jr., A ciência do direito. SãoPaulo, Atlas, 1983; 1. S. Borges, Obrigação tributária _ uma introduçãometodológica, São Paulo. Saraiva, 1984; L. F. Coelho, Teoria crítica do direito,Porto Alegre, HDV, 1986.

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uais as posturas que, apesar de diferentes, podem ser consid~radascien­~ficas. A questão não é reJevante apenas em term?s a~a~e~11Icos mas

b ' do ponto de vista prático, envolvendo conceltosjundlcos funda-tam em . I" 'd d ( emmentais como poder (quem sabe mais, pode mais) e egltlml a e qu

sabe,justifica seus comandos). ".. .A dicotomia inicial é simples: o direito é uma ClenCla ~u ~ dIreito

-' ", Para os que defendem a cientificidade do dIreito seguenao e uma Clenela. .em frente a discussão e surge uma segunda polêmica Importante: comocolocar o direito em um quadro geral das ciências e estabelecer seuscaracteres especificos (objeto, método etc,). . .

A impossibilidade de conhecimento cientifico do dlrelt~pode tomarexemplo na famosa conferênciaproferida pelo procurador j~hus Hermann

Kirchmann2• A repercussão desse ensaio, até noss~s dIas, talvez Ve-von ". . . e Klrchmann era umnha do fato de se tratar de uma cntlca mtema,ja,qu ... 'sta rático diretamente envolvido com as lides dogmatlcas. A?tesjun p. M" I ld Montaigne(1533-1592)jáduvidaradacapaclda-dele, porem, IC le e . .. tde da filosofia e da ciência para responder questõesJundlcas co~cemen esà distinção entre o lícito e o ilícito, como o faz no texto tambem famoso

. . t S3 O marxismo ortodoxo, por seu lado, também pareceentre os juns a ' 'd. tOficl'dade do direito ao entendê-lo como mstrumento erecusar a clen I I ,_ 1

oder para estabelecimento e manutenção da dommaçao d~ u',"a c asse~ocial por outra. Há também os diversos argumentos ~o,nderav,e~s coloca­dos pelos filósofos sofistas, niilistas, nominalistas, cmICOS, cetlc?sle o~.-

' 'b'J'dade de todo conhecimento "essencla Ista .tros, os quaIs negam a POSSI I I

2 J H von Kirchmann, Die Wert/osigkeit der Jurispru~enz ais Wissenschf- Vort~a~ ~eha/ten in der Juristischen Gesellschaft zur Ber/m (1848), Darmsta t,Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1966. .

. E ' Texte établi et annolé par Albert Thlbaudet, II,3. Mo E. Montalgne, SSQlS. .• hie? Que. 1950 653- "Que Dnus dira donc en cette necesslté la phtlosop ..

XII, Paris, 'P·.' ? C'est à dire cetle mer tlotante des opmlonsnaus suyvons les ,IOIX d~ nostre .pays. eindront la justice d'autant de coulers et lad'un peuple ou d un Prm~e, qUi m:. P ra eD eux de changemens de passion? Jereformeroot en ~uta~t de vlsag~s q:t~~ au uelle bonté est-ce que je vayais hycr enDe p~is pasd aV~lr leI JsUgeetmq::~:~~:t d'u~~riviere faiet crime? Quelle verit6 que ceicredlt, et eroam pu, .. d Iê.?"montaignes boment, qui est mensonge au monde qUi se tlent au c .

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A p~lel'mica pennanece acesa4 . Voltaremos a essa discussão no últimocapltu o.

Para uma tamb' "dd d' , em rapl a menção aos que defendem a cientificidadeo I~elto - ou pelo menos a viabilidade de uma gnoseologia jurídica

ontologlCa- podemos lembrar o quadro das ontolog,'as re' . dvol .d C' glOnals esen-

v, 0spor ~los COSSIO, entre outros, a partir da fenomenolo ia deH~sser~ ' classIficando os objetos do conhecimento em ideais na~raiscu turals.- onde se situaria o díreito - e metafisicos estes úl:imos se~status epIstemológico dentro da gnoseologia. '

.d Com ess: qua.dro como pano de fundo, encontramos o direito defi­~I o como obJeto Ideal, sob influência das matemáticas tomando por

ase, P?r exemplo: a nonna jurídica como conceito lógic~ abstraído desua aphcação prátIca6; como objeto natural abordado segu dmos p d' d b" ' n o os mes-

~a .'gmas a IOI0gIa, da química ou da fisica, como re am oe~?IUCIOlllsmo, o psicologismo e toda espécie de naturalismo'Pou~omoo ~eto ,cultural de algum modo específico, a tendência hoje d~minantecomo e o caso ~a teoria egológica do próprio Cossio e das diversas for~mas de culturahsmo.

2. Fenomenologia: o dado jurídico

H Explicitamente não há referência a tais controvérsias na obra ded artmann: A construção escalonada de sua ontologia não pennite enten­, er u~ ~bJetocomplexo como o direito - que é simultaneamente I'dealmorgamco o " . .. ,

, rgalllco, an'mlco, espiritual- como exclusivamente idealnatural, cultural ou metafisico. É certo como veremos no pro' . .'t I d' . ' xlmo capl­u o: que o Ir:lt? se manifesta no estrato espiritual da esfera real esta é

sua area ontologlca específica, mas não se resume a ela, '

.. 4. Cf. O. Ballweg, Rhetorik und Res humanae in RGedachlnlsschrift.fiir Peler NaU, Zilrich, Schulthess, '1984"pH~~~~~.et aI. (orgs.),

5. C. COSSIO La teoria egol" tkl tJ,libertad, Buenos Aires. Abeledo.Pe~~tC~ 964 er

5e4cho y el conceplo jurídico de

• ,p. e s.

Ed. Lo6;a~:~~~~~r, Coneeplosy formasfundamenlales dei derecho, Buenos Aires,

162

A análise fenomenológica, primeira etapa da metodologia, vai situarontologicamente o direito. Confonne exposto anterionnente, nas linhasbásicas da ontologia e da axiologia juridicas de Hartmann, nosso pontode partida é a consciência do problema. Tendo presente uma noção doobjeto direito, a tarefa da filosofia é exatamente torná-Ia mais precisa, eaí a história da filosofia é sempre metodologícamente um bom começo. Acritica de Hartmann não é especificamente dirígida à doutrina jurídica,mas mesmo assim podemos relevar três direções principais nesta crítica:o direito entendido como alguma fonna de dado da consciência, o direitovisto como objeto ideal e transcendente e o direito identíficado com algu­ma de suas fonnas reais de manifestação, como as fontes e instituiçõesjurídicas.

Não se pode conciliar a teoria de Hartmann com o postulado de queo direito constituiria um dado da conscíência humana como, por exem­plo, a transcendência na direção dos objetos exteriores. Se assim fosse, odireito poderia ser observado a partir da análise das faculdades conscien­tes de cada individuo isoladamente e ai se descobriria um "setor" ou"região" responsável pela "consciência jurídica". A fenomenologia doespírito, descrita no próximo capitulo, mostra que unicamente o espiritopessoal, em sua subjetividade, é capaz de uma consciência de si mesmo.A fenomenologia jurídica, por seu turno, mostra que o direito não estáisolado em cada espírito individual e que sua necessária transcendênciaem relação aos individuos incapacita a consciência (subjetiva) para se­quer percebê-lo plenamente. Muito menos poderá ela determiná-lo; indi­víduo algum será capaz de tomar consciência da realidade jurídica emque vive inserido. A aporia aparece quando se verifica que o direito étambém consciência, na medida em que todo espírito pessoal tem umapercepção nítida, ainda que limitada e tendenciosa, dessa mesma reali­dade.

Mais distante da gnoseologia de Hartmann há a posição que tem odireito como consciência não individual, mas coletiva; aqui é visível opreconceito psicologista. A expressão consciência coletiva constitui con­tradição em seus próprios termos, vez que só existe consciência indivi­dual, dependente de um ser orgánica e animicamente único. A consciên­cia configura a nota distintiva do indivíduo humano diante das demaismanifestações espirituais. Em suma: o direito, enquanto fenômeno

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inte~subjetivo, ~ão ~ode se: definido a partir da consciência individual; apartIr da conSClenCla coletlva, que sequer existe como fenômeno m 'tmenos. ' UI o

.A solu~o de Hel'lel: colocando um espirito absoluto, autoconscientee~ s~ e p~a ~I, na e.ss.e..ncla dos fatos tradicionalmente considerados espi­~ltuaIs (dIreito, relIgIao, moral) e na essência do próprio ser, também émadequa~a, com bas~ nos mesmos argumentos. O conceito de espíritoabsoluto e fruto do ~Ist.ema e das necessidades lógicas de Hegel, nãoencontra correspondenc.a nos fenômenos.

Devem t~bém ser recusadas as teorias que identificam o direitoco~ u~a esfera Ideal, como se o direito se resumisse à esfera axiológica.AJus.t1ça é certamente um valor, e o direito, comojá visto, está orientadoem dlreção a valores7

• Mas o direito não é um valor é um fenômeno realresulta de uma inse~ãode valores no mundo real,já é intermediado pel~dever ser atual. ASSim, não pode ser definido a partir de entidades lógi­cas, com~ a norma jurídica abstrata, ou de um direito natural exclusiva­mente racIonal.

. O direit~ é ?bjetivo porque se dá na intersubjetividade, nasce dasdIversas extenonzações dos espíritos individuais que se apartam deles eformam um campo autônomos. Parece legítimo falar de direito sempreque duas pesso~s se .relacionam, mesmo antes de essas relações virem apassar pela racIOnalIzação objetivada na norma jurídica e no Estado.

3. Aporética: alguns dilemas no conhecimento do direito

_ A aporia i~icial na gnoseologia jurídica é simples: ou existe umf~no~eno espe:,fico, nas sociedades humanas, que se pode denominardlT~lto,ou esta e apenas uma palavra imprecisa de que se lança mão paradeSIgnar fenômenos distintos segundo o caso Se ex,'ste um fien •• íJj • . . amenoJUTl co, e preciSO descrever suas características diferenciadoras; se não,

. 7. Cf. H. Gadamer, Wertethik und "Praktische Philosophie", in A. Buch (org )Nlco/m Harlmann- 1882-1982, p. 113-22. .,

8. Ainda que não se dirija particulannente ao direito cC A Gugg bD AI, h . , " en erger,er. . ensc engelst und das Sein - Eine Begegnung mil Nico/ai Harlmann

KraIlhng Vor MUnchen, Erich Wewel, 1942, p. 12-5. '

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é preciso estudar os contextos lingUísticos em que a palavra direito fazsentido. Coerentemente, a orientação ontológica de Hartmann dirige-se àprimeira opção.

Já sabemos, pelo menos, que o direito é realidade axiológica e, as­sim, emocional. O conteúdo essencialmente moral que empresta ao direi­to afasta Hartmann do positivismo, se entendermos o amplo e equívococonceito positivista do direito como uma normatização coercível da con­duta, independentemente de seu conteúdo. Para Hartmann,já vimos, morale direito não apresentam diferenças essenciais de conteúdo. Um conceitomeramente formal, com base em critérios como a coercitividade, por exem­plo, não contempla o aspeêto axiológico do direito e não permite distin­guir uma organização criminosa de um Estado de direito.

Em terceiro lugar, não se deve tampouco identificar o direito com oEstado, a lei, o parlamento ou qualquer outra das instituições sociaisobjetivadas. Estas são reduções simplificadoras de uma realidade com­plexa; elas constituemfenômenosjurídicosjundamentados, objetivaçõesdo fenômenojundante que é o espírito objetivo.

Aqui resta a questão sobre se as formas juridicas objetivadas po­dem servir de critério para separar o juridico do não-jurídico ou o juridi­camente licito do juridicamente ilícito, se podem ser vistas como causasdessas diferenciações. Um outro lado da mesma aporia, mas de cunhoespecificamente gnoseológico, é determinar se as normas jurídicas ou oEstado são indispensáveis ao conhecimento do direito, mesmo que nãofaçam parte essencial de sua ontologia. A influência de Hegel faz-se níti­da quando Hartmann afirma que o Estado é mais do que a instituiçãoobjetivada: "A estrutura do Estado deixa-se tão pouco absorver pelascondições do direito quanto sua moral por códigosjuridicos. Ele é maisdo que um instituto jurídico, ele é um ente real com corpo e alma. Ele temsua vida própria, acima da vida do indivíduo, suas próprias leis de desen­volvimento, suas próprias tendências e perspectivas"·.

As implicações entre direito e poder levantam outra aporia funda­mental. Pode-se definir inicialmentepoder, neste sentido social que inte­ressa ao direito, como a capacidade para fazer valer decisões sobre alter-

9. N. Hartmann, Ethik, Berlin, Walter de Gruyter, 1949, Cap. 7, p. 69.

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nativas de conduta simultaneamente possíveis e mutuamente excludentes(conflitos). A dificuldade de estabelecer um sentidojurídico-político parao poder, em Hartmann, é que este o considera um valor em si mesmo, nãoum meio para realização de um fim qualquer como, por exemplo, influirsobre condutas alheias. O conceito moderno, instrumental, de poder éestranho à Ethik de Hartmann: "É lugar-comum que uma posição degrande poder confunde o discernimento, falseia ojuízo de valor. O poderse apossa do homem como uma vertigem, arrasta-o para seus próprioslimites, mostra abertamente a tendência de destruí-lo moralmente; ..... IO.

A aporia aparece em como conciliar um valor tão perigoso para o indiví­duo, e tão necessário para a comunidade, com o fato de o poderjurídico­político ter que ser exercido por indivíduos, vez que só o espírito pessoalé capaz de decidir sobre conflitos.

O problema agrava-se quando a noção "pura" de poder é circuns­crita através do adjetivo legitimo. A legitimidade é necessária à qualifi­cação de determinada situação de fato como juridicamente lícita? Comoconciliar o direito positivo'com as exigências dajustiça enquanto valormoral? Trazer a aporia para o âmbito da legitimidade, o que Hartmannnão faz expressamente, tem a vantagem de questionar noções outras quesémpre acompanham os conceitos de poder e de direito, tais como força,violência, coercitividade; mas traz também o inconveniente de juntar, aoproblema que se quer resolver, um termo ambíguo e de conteúdo talvezainda mais problemático.

Mais uma aporia gnoseológica deve ser lembrada aqui, embora játenha sido tratada no capítulo anterior, sobre as relações entre valoresjurídicos que são ideais e o direito empírico real, pois, mesmo se é certoque o direito guarda íntima relação com os valores ideais, ele é de fato umfenômeno empírico e, como tal, inserido na realidade.

Finalmente, se o direito é real e ao mesmo tempo guiado porvaloresideais, tendo em vista a construção do mundo real proposta por NicolaiHartmann, ele se constitui dentro do estrato espiritual do ser real, vez quesó aí são percebidas as determinações axiológicas, às quais os estratosinorgânico, orgânico e animico permanecem alheios. A aporia está emsaber em qual das formas de manifestação do espírito (pessoal, objetivo e

10. Idem, Cap. 37, p. 365.

166

d"t e' que aparece em apenas uma delas, ou,b' f d) se coloca o IreI o, se~~~ ~:adi~tribua por todo o ser espiritual, que rela~ões gua~da entre umae outra manifestação. Esse' será o assunto do prÓXImo capItulo.

4. Soluções propostas

Quando trata de temas específicos da teoria juridica, J:Iartman~ pord' da doutrina dominante; é assim com os conceItos de s~jelto

vezes Iverge .uristas entendem a personalidade

~:~~~~~:~:~:;:a~e~~q~~~~o~~~omo pré-requisito ~a sUbje~::~:_ aquela entendida enquanto potência para, esta entendIda en~u "t

d I - . 'dica Hartmann ve o sUJei ode figurar como t~ular e ~e aça~~:::idade éJustamente Oresultado da

::~ri;:~~~P:::;'s:J::~~:;::~artirdas determinações emanadas dos

1 IIw=· . Hrtm-~~

Apesar de raras exceções como esta, a vlsã~ que .a d" I'd d tr' dogmática maIs tra IClOna, as

direito é geralmente aquela a ou l~a te 'ormente' "Agora existeI r ta comOVlmos an n . ,

::~:~t~::~:~:d:.~:~r:~~~~~i~:~~;J~:~~~~~os~~:~~ ~::~:~:~cido e exato de conceItos, a c . ntesobre uma exigência ética fundamental, sobre. um va,l~r ~~~u~::~rei_

bido Todo direito é expressão de uma aspiração etlc~ ..perce . ln' o de regras que fixam as relações baslcas para so­to ga:a~te.u~ m 1m.d de a ciência do direito só pode orientar a ética ebrevlvencla a comum a , uito modesto A ciência do direito,

o conhecimento ~~St;~:~~:~~t~~pesquisa dos'valores e de sua hie­emH~an~n a pontos de partida como indiscutíveis e, com base ne­rarqula, mas m • rio encadeamento normativo, dizendo que conse­les, estabelece seu prop h'das tais e quais condições de

.. - . devem ocorrer uma vez preenc I

i;~~~::es pontos d~ p~idla ~ã~ si~~;:::e;:~~::~:p::~o:~:eàd~~~~~~fia ética em geral, e a axlO oglajun 1

los e investigá-losI3•

II. Idem, Cap. 19, p. 185-6.

12. Idem, Cap. 7, p. 65.

13. Idem, Cap. 7, p. 66.

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o direito apóia não apenas os valores superiores de que se ocupa aética, mas também os seus próprios valores específicos mais simples,tipo a ordem e a segurança, Estes viabilizam a realização dos demais:"Todos os valores espirituais mais altos, todos os valores verdadeira­mente culturais, só podem florescer onde a integridade corporal, a vida, apropriedade, a liberdade pessoal de ação e assim por diante são assegura­das, Só aí existe propriamente margem para uma aspiração mais alta"",

O problema da demarcação gnoseológica do objeto direito, dentroda ética, a tentativa de separar um fenômeno jur/dico na sociabilidadehumana, é uma preocupação muito antiga da filosofia do direito, masganha contornos especiais em nossa civilização", Ética seria o conceitogenérico dentro do qual se distinguiriam a religião, a moral, o direito,entre outras ordens normativas,

O tema é controverso pela complexidade daquilo que se denominafenômeno jurídico. A expressão designa, entre outras, duas dimensõesdistintas, e a tentativa de separar direito e moral, por exemplo, será maisbem-sucedida, ou não, segundo se enfatize um ou outro lado, Pode-seoonsiderar o direito em seu aspecto empírico, objetivo, positivado, ex­pressão direta do poder político dominante que mantém a sociabilidadehumanadentro de limites definidos, perspectiva que denominaremos des­critiva, Mas sob a denominação direito também se abriga uma dimensãolibertadora, que se pretende revolucionária e se contrapõe à idéia de queo direito é um fenômeno que pode ser descrito em função do que ai está,daquilo que se mostra objetivamente à observação empírica; a esta pers­pectiva otimizadora chamamosprescritiva,

Para a teoria do conhecimento há vantagens e desvantagens em ambasas posições, Se se opta por compreender o direito na medida de suaefetivação no contexto soci~l em determinados tempo e espaço, porexem­pIo, corre-se o risco de uma excessiva simplificação do objeto e deixam­se suspensas questões básicas como a resistência ao direito estabelecido,

14. Idem, Cap, 44, p, 422.

15. O debate tem implicações políticas eganha força, na Europa, por volta doséculo XVII, quando o Estado nacional emergente se emancipado poder da Igreja,Cf. S. Pufendorf, Die Verfassung des deutschen Reiches, H. Denzer (org.), Stullgart,Reclam, 1976,

168

, " _ ' da realidade jurídica, envolvendo o debat~ so­em que reside a dmamlca _ ' I ente 'Ignoradas um sem-nume­

, t' Serao slmp esmbre legitimidade e JUs I~a: e si nificadas quando do uso da ex-ro de implicações trad~clOnalment g etl·mológica. Com esta redução

h' t' ICO e sua ongem .pressão, seu uso IS or oseológica principal é a maiordo âmbito semântico, porém, a vantagem gn

precisão terminológica. o direito em todas as dimen-As dificuldades para se ~ompreelnder por seu turno, são também

d Por tras da pa avra, , "sões que se escon em . ..' d - t'lca O fenômenoJundlco

, b d amblgmda e seman ' ,considerávels,SO retu oa , _ . odesociabilidade,reumn-

. ue como um smomm .passa a ser VISto ~uase q d ' teração social que se toma Impos-do tantos e tão dIversOS aspectos a~~fico, O elemento complicador nestasível estudá-lo enquanto obJeto e~pe teúdo em cuja direção se deveperspectiva prescritiva é ~ete~mmar o con

d' 't e aI estamodificar o Irei o qu . I' , 'd'lca de Hartmann, como

- 'fd da gnoseo oglaJUflUma compreensa~mi, adicada elas diferentes acepções em que o

J'á pudemos perceber, e preJu, p pias segundo o contexto," do maIs ou menos am

termO direito e emprega , , fi d d' el'to Temos direito enquantot os filoso os o Ir . ,

imprecisão comum en re oAmeno social positivo, ou seja,I 'deal' enquanto jen . ,

J'ustiça como va ar I , 'd de real e empmcamente, ' b' t' de uma comum a ,

parte do espmto o Je IVO, ' anto legalidade, regras ml-, I' m sentido maIs restrito, enqu , '

observave , e, e _' ssíveis de aplicação coerclttva,nimas de convlvencla pa. ntudo o direito pode ser conceitua-

Ontologicamente conslderad~, COI 'ÇãO ampla que englobaria ofi - real esplntua , acep .

do como um enomeno 'sl'dade de examinar maIs, .d ima Data necessegundo e Oterceiro sentt os ac, d nomina espiritual, real masrd d que Hartmann e ,de perto a parte da rea I a e .d ' É o que faremoS no próximo capl-dirigida sobretudo por valores leaiS,

tulo, , . nhecimento pleno do reino dos valores,Mesmo sem admitIr u~ co, d t' I resente tanto na esfera ideal

, . IIdade Irre Uive p d 'como vimos, pela 1rraClona d't um aperfeiçoamento ético, e aiquanto na real, Hartmann acr,e I, a,em longo da história humana, Este

J'urídico, no conhecimento axlOloglCO aOd

fierido a um prazo históricot ' onstante quan ore, 't

auto-aperfeiçoamen Oe c . ' t d Ele admite que o dIreI o'h' t' 'acomoum o o, .relativamente longo oU a IS on fi tado de sua tendência na dlre-positivo pode estar momentaneamente a as

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\

I, ,

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170

ção dos valores M I. . . as ogo a força da esfera . I" .espiritual conduz ao desen I' axlO oglCa sobre a esfera realbe

vo vlmento dos v I ..rta de novos valores Co • a ores autentIcos e à desco

" mo se ve é gr d -nesta "natureza" do bo ' an e a confiança de Hartmannmem.

__( ....apílulo Nono

O DIREITO REAL NA ONTOLOGIA DEHARTMANN

Sumário: I. Ontologia do ser espiritual: linhas gerais. 2. Odireito no espirito pessoal. 3. O direito no espirito objetivo. 4. Odireito no espirito objetivado. 5. Critica à ontologia jurldica deHartmann.

1. Ontologia do ser espiritual: linhas gerais

otermo direito é comumente aceito como designando uma realida­de complexa. Situada a ontologia jurídica geral no campo da ética, namedida de nossos propósitos, cabe agora examinar o direito dentro daontologia específica daquilo que Hartmann denomina o espírito: issoporque o direito é sobretudo uma realidade espiritual, compõe aquelaesfera mais complexa do ser real, na qual o ser humano mostra maisclaramente seus caracteres distintivos, axiológicos, deontológicos (dodever ser). Se se tem presente a construção (Au.fbau) escalonada(Stufenbau) do mundo real, nada obstante, verifica-se que tal especificidadeespiritual não está isolada, mas prende-se a infra-estruturas de naturezadiferente e obedece, segundo as leis e axiomas mencionados atrás, àsdeterminações delas provenientes. Então, o estudo do ser espiritual partedessas bases imediatas - o ser orgânico - e mediatas - o inorgânico:"O espirito é e permanece cingido ao corpo, ele somente aparece no ser

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orgânico, repousa sobre a vida deste viveorgânica faz parte do mundo mate;ial de ~u.as fo:ças; e porque a vidaassim também o espírito é' d' t e esta tnsenda em sua energia,

". mIre amente portado por ele"l., O esplfIto e um novum categorial u .

ammico e resulta do salto que .q e surge a partIr do estrato realI - caractenza cada estr tI're açao aos inferiores Isso'á ~. . a o rea maIs alto em. . . J 101 VIstO. Na ontol . d H

esplfItual subdivide-se em es írit ~gla e artmann, o serobjetivado, que não constitue~ es;r~ess~~l,.esplflto objetivo e espíritofestações diferentes de um único estr os lsh~to~ ~as .são apenas mani­do novum Dito de modo' I ato, sem mCldencla entre eles da lei

. slmp es o espl 't Iente espiritual individualizad ' d n o pessoa corresponde a cada. b" o,aca aserhumano a d

nto o ~etIvo é o conjunto de inter-rela _ . '. ca a pessoa; o espi-da coletividade; e o espírito ob';et' d ço~s exten?nzadas pelos membros. d' , " IVa o sao as pro.eçõ d .m IVlduos e a coletividad . t I' " es e sentIdo que os

e cns a Izam sobre os objetos.Hartmann ressalta que a relação de d d - .

orgânico anímico não é 'd- f epen enCla do espiritual ante odiante do inorgânico 'E

enIca,bPor exemplo, à dependência do orgânico

. m am os os casos tãcategoriais claro como o nat d ' es o presentes as leis. " o e o estrato .mferior; a autonomia do espírito orém' ~upen?r se apoiar sobre oentre os demais estratos do ser r~~' ' e mu,!o m~lOr do que a existentesa pela lei do novum é bem maisa ,,:~a ~manclpaçao ontológica, expres­formada de element~s inor _ . m I ~. Enquanto a matéria orgânica é

" . ganlcos, assim como a m ' .organlCO forma o ser anl'ml' h esma matena do ser

co, nen uma das s b tân .esses estratos reais inferiores pode ex Iicar u ~. clas que compõemtrês estratos reais inferiores é d ~ o esplfIto. A relação entre osção entre eles e o espl'rl'to e' d e supra ormação (Oberjormung); a rela-

.. e superestrutu ão(Uberbauung). raç ou superconstrução

Se o ser espiritual se resumisse ' .espiritual mais imediata arg ta ~o esplflto pessoal, que é a forma

, umen artmann, seria difícil perceber o

I. Cf. N. Hartmann, Neue We e der . '"Systematische Philosophie, Stuttgart!ke r Ontologle, 10 N,colai Hartmann (org.),311, Cap. 4, p. 225. rIO, W.KohlhammerVerlag, 1942,p. 199.

2. N. Hartmann. Das Problem des Geisli _Grundlegung der Geschichtsphi/ h' gen Sems - Untersuchung ZUr

Walter de Gruyter, 1949, Cap. 4, p~~! /e und der Geistswissenschajien, Herlín,

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novum que separa o espiritual do anímico. Aqui o erro fundamental dafilosofia psicologista: tentar explicar os fenômenos espirituais a partir dasubjetividade e da autoconsciência. É a forma espiritual exteriorizadasocialmente, o espírito objetivo, que caracteriza mais nitidamente o serespiritual. Como o espirito objetivo não é dotado de autoconsciência,própria e exclusiva do espirito pessoal, e como este depende do meioespiritual objetivo que o conforma, a psicologia não pode fornecer os"fundamentos das ciências do espírito" que Hartmann procura'. A rela­ção entre o espírito pessoal e o espírito objetivado, por outro lado, tam­bém seria difícil de se perceber sem a intermediação, por assim dizer, doespirito objetivo. É na metafísica do espirito de Nicolai Hartmann, inspi­rada em Hegel, que procuraremos agora situar criticamente a filosofia dodireito.

Hartmann admite que a consciência é indispensável à formação doser espiritual, mas não necessariamente a autoconsciência, para a qual sóo espirito pessoal está psiquicamente aparelhado. Há algo de consciênciado espírito objetivo em cada espírito pessoal individual, pois ambos sãoespíritos vivos interdependentes, mas essa consciência é limitada em di­versos sentidos, é impossível ao sujeito apreender todo o ambiente espiri­tual em que se acha envolvido. As formas pessoal e objetiva dividem acaracterística de serem ambas vivas; o espírito objetivo e o objetivadotêm em comum a supra-individualidade. Só o espírito pessoal tem senti­mento, vontade, autoconsciência, mas apenas o espirito objetivo tem umahistória no sentído exato do termo, apenas ele é suprapessoal e aindaassim vivo e totalmente inserido na realidade e na temporalidade que acaracteriza. O espírito objetivado, por seu turno, é o único que consegue,em certa medida, refrear o fluxo inexorável do tempo e assim escapar darealidade e adquírir um caráter supra-histórico, como veremos4.

As três manifestações do espírito são coordenadas entre si sem quequalquer uma delas tenha preponderância sobre as demais, quando vistasem seu conjunto, cada qual com seus aspectos peculiares. A separação éartificial, só as três juntas dão visão total do fenômeno. Não há individua­lidade espiritual sem espírito objetivo, não há objetividade espiritual

3. Idem, Cap. 4, p. 69-72, entre outras referências.4. Idem, Cap. 4, p. 73.

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sem espíritos pessoais individuais, não há objetivação sem espírito vivoque se projete em objetos..

Na Ethike na Metaphysikder Erkenntnis, Hartmannjá tomara comopressupostos o sujeito e o objeto, irredutíveis um ao outro, mutuamentetranscendentes, como ele prefere dizer. Ao tratar do ser espiritual, a pers­pectiva é semelhante, auxiliada por argumentos baseados em pesquisasno campo da psicologia animal e da antropologia': a consciência espiri­tual difere daquela meramente anímica porque, enquanto esta é ensimes­mada, interiorizada, aquela se caracteriza pela excentricidade no sentidoliteral da palavra, isto é, saída de si mesma.

A excentricidade da consciência espiritual dá origem a dois fenôme­nos distintos, importantes na ontologia de Hartmann, quais sejam aobjetação (Objektion)6 e a objetivação (Objektivation). Objetação é aação através da qual a consciência coloca intencionalmente diante de sialguns dentre os infinitos objetos do meio circundante e procura conhecê­los, transcendendo-se, saindo de si mesma. É um processo gnoseológico.Já a objetivação projeta conteúdos espirituais, valores, em objetos domundo tisico e adiciona a eles um sentido axiológico objetivamente co­municável. É um processo ontológico de criação. "O tornar-se a coisaóbjeto é função de um posicionamento especial da consciência em rela­ção a ela, um tipo próprio de abandono á coisa. Esta função é o conheci­mento. Sua forma é a objet.ação."7

5. Idem, Cap. 9, p. 110. Hartmann cita as pesquisas de Helmut PleBner, ex­postas no livro Die Stufen des Organischen und der Mensch, Berlin, 1928. W.StegmüIler, Realismo crítico: Nicolai Hartmann, in Afi/osofia contemporânea, SãoPaulo, EPUIEDUSP, 1977, v. I, p. 225, elogia os estudos de Hartmann na áreabiológica, que considera superiores aos argumentos referentes ao ser inorgânico,tisico. estes "incompatíveis com o estado atuaI da investigação científica". sobretu­do no que diz respeito às críticas feitas por Hartmann à teoria da relatividade deEinstein, inteiramente infundadas na opinião de StegmUller.

6. N. Hartmann, Das Problem des Geistigen Seins, cit., Cap. 10, p. 115 e s.Preferimos aqui o neologismo objetaçlJo. ação de tornar algo objeto, distinta daobjeção, ação de objetar, de contradizer algo, e distinta de objetivação, ação deobjetivar um sentido em algo. Cf. M. Reale, Política e direito na doutrina de NicolaiHartmann, in Política de ontem e de hoje, São Paulo, Saraiva, 1978, p. 126. Nasnovas edições, Reate, a nosso ver mais precisamente, substitui "objeção" por"objetação" ao traduzir Objektion.

7. N. Hartmann, Das hoblem des Geistigen Seins, cit., Cap. 10, p. 116.

174

O espírito objetivado, criado pela objetivação, só pode ser ~ercebi-"t essoal que consiga compreender seu sentido; esta

do por um espIrl ~ p • é passiva mas interfere na própria constituiçãocompreensão, porem, nao . ente a objetivar-do es írito objetivado. O espirito pessoal tende necessanam _e ~as o produto desta objetivação escapa-lhe ao controle e faz ~~~;trimônio espiritual comum. Éassim que se fala na "arte de um povo ,

por exemplo. . •. . . t' formas de manlfestaçao, apresenta

O ser espIrItual, em suas res . . d' 'duall'dade ed real tais como m IVI

características comuns a to o ser . .' cíficas Destas tratare-I·dade assim como caractensttcas espe .tempora t ,

mos agora.

2. O direito no espirito pessoal

À rimeira vista, parece que a individualidade .é. cro:a~teríst~c~ doPI' ocede' tudo o que é real e mdlvldual, umco,

spírito pessoa o que nao pr , .' t-'e '. . . a aporia: o espírito obJettvo, en ao, e. epetível AqUI surge uma pnmelr I d tIIT' . d"d I conceitos mutuamente exc u en es.tempo comum e m tVI ua, . ..ao mesmo di ão resolve-se na medida em que o oposto do Indtvt­A aparente contra ç .m o geral a generalidade que caracteriza o ser

~::~l~~:s~~~:~~:~os~comum ~as individualizado, ele não é g~r~1., rmanece uma contradlçao.

Sobre este mesmo problema, porem, pe d" . t' ia, Hartmann acusara e

Ao cuidar dos conceitos de essencta e extS ~nc . ' .preconceito platônico a identificação entre Idea~ldade e

tes~~n:I:~~er~~

lado, realidade e existência, de outro, afi~anc'lao Je~:::noIÓgica esta'd I . t m e possuem uma essen l' ,

quanto ~di et ;;~~aeafirma que só o individual enquanto t~l exi~te8. O

s:~:~a:~~ce semântico: em sua obra ante~ior, Hart~ann tdentlfica as

a=l~~ff::E::'~~~:ê~:§quanto Sosein e Dasein; existente, porem, s o en e r ,

6 83-4' "Nur das IndividueUe aIs solches ober ist eln8. Idem, Cap. ,p. .

Existierendes".

17.5

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riza pela individualidade. A distin ão en .não fica clara ç tre os dOIs pares de conceitos

Além da autoconsciência, de ue" ~ Ievidentes do espírito pessoal' , q Ja a amos, um dos aspectos mais

e a mtransmissibifidad, (Un "bIsto significa que, embora o espírito ob'etiv e u ~rtragbarkeit).espíritos pessoais da comunid d t ~ _ o conforme conjuntamente osção, Hartrnann procura comba~e:' ~s e~ ,nao são passí~eis de uniformiza_biológicas de ver entre o ,. a en encla, predommante nas ciéncias

, anImlCO e o . 't I d'r.grau". O espírito pessoal faz sua pró ,~~PI~I ~a I e~enças apenas denam são mais te'nues "te' pna Istona e as leIS que o determi-

, m menos forç " 'bTde liberdade do estrato espiritual al.'bPodssld I ltando o que chamamos

. 'd' ,uma I er a equenãoéaoUJun lca mas caracteriza toda conduta10 , 'penas moralentre matéria e espírito. e se traduz no cIaSSlco dualismo

O espírito pessoal como t di'Mas, diferentemente d~s demai~ e

O:e~ rea , msere-se na temporalidade,

às leis do espaço É devido a t s ralos?o ser real, ele não está sujeito, " es a pecu landade ob d ~,nos eSplTltuais que Hart ' serva a nos ,enome-

clássica, não identifica o ::~:~::::iando e.recombinando a tradiçãoa espacialidade, a extensão inata de De:c:~2a nem com seu correlato,

, Se, de uma perspectiva gnoseológica ".sujeito frente a um objeto, de uma ' ~ consc.l~ncJa coloca-se comosa ser também pessoa o qu' I' pe~spectlvaesplTltual, o sujeito preci-

, e Imp Ica mtersubjetividad ( lhexpressão interpessoalidade) e reali a _ e me or estaria afica relacionar-se com outras Z Fao, de val~res. Ser pessoa signi­convivência social está a necpes~~a~, mtu~r e ~e~hzar valores ideais, Na

eSSI a e maIs baslca do espirito, que não

9. Tendência significativa sobretudo em .Sprache und Gehirn _ Roma; Jakohson nossos dIas. Cf. H. Schnelle (org.),1981, ou S. J. Schmidt (org.), Der Diskurs zu Eh~en, Frankfurt a.M" Suhrkamp,furt a.M., Suhrkamp, 1990. des radlkalen Konstruktivismus, Frank-

10. N. Hartmann, Das Prohlem des Geisti en S' .Hartma~n tem uma concepção de liberdade se fh em~, .cll., Cap. 8, p. 10Ie s.C, COSSIO, La teoria egologica d I d h me ante à hberdade metatlsica" deBuenos Aires~ Abeledo-Perrot" t9:4 er~5 o y el co~cep'ojuridico de libertad,clàssica adotada por exemplo b' Pd Oe s,' e diferente da concepção gregaprahlema da le~timidade ' na o ra e Hannah Arendl. CE J. M. Adeodato OJ . - no rastro do pensamento do fl h 'anelrO, Forense Universitária, 1989, p. 30.1. e anna Arendt. Rio de

176

pode viver isolado, apenas enquanto espírito pessoal, precisa exteriorizar­se e realimentar-se a partir do espírito objetivo. Por outro lado, a esferaespiritual une idealidade e realidade, tanto através do conhecimento quantoda realização de valores. Poderíamos inclusive considerar um ente realdotado ou não de espírito, segundo sua aptidão para perceber aidealidade, seja esta axiológica (valores) ou gnoseológica (essênciasfenomenológicas e matemáticas).

Como já tratamos dos valores e de sua realização, vamo-nos con­centrar sobre a intersubjetividade, que ao mesmo tempo constitui (o es­pírito objetivo) e é constituída (pelo espírito pessoal), Aquilo que deno­minamos o eu, o que os gramáticos chamam aprimeirapessoa, não é demodo algum um sujeito apenas, não pode ser compreendido simplesmen­te em oposição a um objeto, como o faz a teoria do conhecimento. Signi­fica, principalmente, a pessoa que de si mesmafala, a pessoa diante daqual se situa outra pessoa, o tu, e não um mero objeto 11. O espírito pes­soal não deixa de ser o fundamento do direito, ainda que tanto um quantoo outro só tenham sentído na intersubjetívidade que constitui o espíritoobjetivo. Éa pessoa quem decide e age. Esta preeminência dada ao espí­rito pessoal dífere da filosofia de Hegel, para quem o direito pessoal(subjetivo) forma a dimensão mais abstrata do fenômeno jurídico.

Este direito que resulta das convicções do espírito pessoal, de suaspreferêncías axiológícas, é o que aparece mais nitidamente à observação;apesar da intensidade, contudo, esta intuição do fenômeno jurídico é par­cíal e inadequada, comojádissemos. Por isso o espírito pessoal não cons­titui a forma mais importante de manifestação do direito, ainda que seja amais originária: sua importância é ensejar a formação do direito objeti­vo 12 , Unicamente o espírito pessoal subsiste por si mesmo, sem base emoutra realidade espiritual; ele é autoportado (selbstgetragener Geisl).Todo direito vigente em uma sociedade tem sua origem ontológica no queHartmann denomina consciência jurídica individual, na união entre o agirreal e os valores ideais de que apenas a pessoa é capaz, mesmo que só nodireito objetivo essa consciência individual encontre seu sentído. As ins-

1t. N, Hartmann, Das Problem des Geistigen Seins, cit., Cap. tI, p, 127.

12. O conceito de direito objetivo em Hartmann ou Hegel, como veremos,nada tem que ver com o conceito de direito objetivo da dogmática jurídica.

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tituições jurídicas existem em fim - dindividualidade. A família e o Estad~a~ I o h?mem, são pr~jeçõesde suaos partidos políticos e os contratos ' deg;.hdade e o constItucionalismo,independente. ,na a ISSO tem existência espiritual

Embora do ponto de vista de sua co '. .soai seja a forma originar'I'a d . , nstJtUlção fislca, o espírito pes-

, . o ser espmtual e dep dtos mfeflores, ele é moldado I ' . " en a apenas dos estra-I 13 H pe o esplflto obJetJvo não od d d'o , artrnann acrescenta' "U . . ,p en o Ispensá-

. m espmto pessoal b' .pobre, desprovido de conteúdo '. E se~ o o ~etJvo seriapessoal seria inconsciente ceg~ ~azl~,... um ~spinto objetivo sem odo"1.. ' . m os são eVIdentemente sem senti-

3. O direito no espírito objetivo

Sem um meio para viver e expandir _ , .pode ser. Esta necessidade do outro a' -se, e~ta?, ~ espmto pessoal nãotexto significativo que o sUlie't _' rnte1rsubJetJvldade, forma um con-

, , I o nao esco hemas .estabelecIdo por outros indl'vl'd E encontra prevIamented uos. Sse context 'I b '

o de uma determinação ôntica tod ' .0 e, e e tam em, resulta-d I · a que o espmto vivo h .o, qua seja a senarahilid J , • se ac a submet!-

'. ,r aue entre a propfla pes '1extefloflza. E assim que o es "t b' . soa e aqUi o que elaespírito objetivado se separa ~::~~ ~etlvo se aparta do pessoal e que o

P o pessoal quanto do objetivorocurando um termo adequado . .

t~ o espírito objetivo e o pessoal, Ha~a;co~cel~uar~ssa~ relações en­fia da filosofia; o ser espiritual havia sido ~ nao ve mUita ajuda na histó­Hegel e nem mesmo ele teve a d' _ escoberto recentemente porsemelhança de Colombo lS Hart Imensa~e~ta de seu descobrimento, à

. 'fi . mann cfla aI o termo sU'P ".que Slgnl Ica que o espirito ob' f' erexlStencla, opessoa. ~e IVO eXIste enquanto ser-portado pela

Diferentemente do es Irito e ' .transmisslve/. Mas ele não é tferdad p ssoal, ~ espmto objetivo é

o, como o sao os caracteres orgâni-

I3. N. Hartmann, Das Problem des G '. . .14. Idem, Cap. 34, p. 319-20. e/Sugeu Sems, C1t., Cap. 28. p. 272-3.

15. Idem Cap 30 286' . , p. e S., especialmente a p 288 e o C 18. , ap. ,p.197.

178

cos; propaga-se através de fenômenos sociais, tipo a tradição, os quaissurgem da exteriorização do esplrito pessoal. O espirito objetivo não sereduz a isto, porém, e segue sua própria dinâmica, ultrapassando o indi­víduo, cujas relações com ele nem sempre são harmoniosas. Outra carac­terística do espírito objetivo é sua historiCidade, ele é criador e transmis­sor da históría. Mesmo sendo também histórico Oespirito pessoal, a rela­tivamente curta duração de sua existência diminui-lhe a importância des­te caráter.

Divergindo de Hegel, Hartmann não aceita a identificação entre oespírito objetívo e este ou aquele grupo social, politicamente dominanteou não. Podem-se encontrar conteúdos objetivos semelhantes (como oculto ao patriotismo) em grupos sociais distintos e até inimigos, da mes­ma maneira que conteúdos opostos em uma única comunidade. Mas, dentreos diversos grupos sociais, sempre haverá os mais e os menos adequadosà totalidade do espírito objetivo, podendo um grupo, por exemplo, con­duzir a comunidade. Note-se que, entre o grupo portador e o espíritoobjetivo, não existe a mesma correspondência direta observada entre osujeito individual portador e o espírito pessoal.

Apesar de sua fraqueza ôntica, o esplrito pessoal pode desempenharpapel revolucionário e influir sobre o espírito objetivo. Como a comuni­dade muda constantemente, portando o esplrito vivo, é ao longo dessasmodificações que a pessoa exerce seu papel constitutivo do espírito obje­tivo, por exemplo, através da intuição de um valor ainda não realizado eda disposição para condutas inusitadas em relação ao contexto vigente.Ao surgirem conflitos entre a pessoa e o espírito objetivo, este tende aresguardar-se de qualquer desvio que ameace sua homogeneidade; mas oespírito pessoal pode triunfar, caso haja predisposição favorável àquelasua iniciativa no espírito objetivo.

O problema é que esta predisposição não pode ser previamente co­nhecida. A teia de ações que constituem o espírito objetivo é de tal formaintrincada que o indivíduo jamais pode prever as conseqüências que advirãode sua liberdade para iniciar uma ação. A inevitável inserção de outrosespíritos pessoais no processo de exteriorização tira da pessoa todo con­trole sobre o espirito objetivo, não importa o poder que ela aparente de­ter. Como veremos adiante, o poder jurídico-político é fenômeno exclusi­vo do espírito objetivo.

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Muito embora não possa ser compreendido somente a partir do Con­junto de indivíduos que o representa, o conceito de espirito objetivo podeser subdividido e aparece em Hartmann com maíor ou menor amplitudesegundo o grupo portador. Quatro são os sentidos principais:

I) "O espírito comum enquanto tal não é a comunidade, ele não tema forma de um coletivo, não deve ser entendido nem como uma soma nemcomo a totalidade dos indivíduos"16. A expressão espirito comum é porvezes usada como sinónima de espírito objetivo, mas por vezes há distin­ção. Podemos dizer que o espírito objetivo é a entidade metafísica, oconceito geral que designa uma das manifestações do ser espiritual, en­quanto o espírito comum é o espírito objetivo concretamente considera­do, relativo a determinada comunidade, comum a seus membros.

2) O espirito do tempo reflete a cultura domínante em um momentohistórico, do ponto de vista das civilizações posteriores, como quando sefala no espírito da Renascença ou do Helenismo!7.

3) O espirito do povo, de caráter nacional, é talvez a parte do espí­rito objetivo que mais nitidamente se mostra à observação, quando se vaiviver em um país estrangeiro, por exemplo. Ele abarca desde asexteriorizações mais simples do dia-a-dia até a organização jurídica doEstado, passando por preconceitos, regras de etiqueta etc., formados apartir de uma língua, uma cultura, uma etnia racial, um passado co­muns 18 .

4) O espirito de grupo é a mais restrita subdivisão feita por Hartmannno conceito de espírito objetivo. Limitando-se a um subconjunto específi­co de pessoas dentro da comunidade, o espirito de grupo tem conteúdomais homogêneo e particularizado. Fala-se também em "espírito de clas-

16./dem,Cap.17,p.191.

17. Idem, p. 188-9.

18. Hartmann tem o cuidado de não submeter o espiritual ao orgânico, comoo fazem algumas teorias racistas ou simplesmente biologistas do direito. Das Prob/emdes Geistigen Seins, cit., (1' edição de 1933) nada tem que ver com o "espirito dopovo" pregado pelo nazismo em ascensão, ao contrário; ao esclarecer a demora na2a edição (de 1949) diz o autor: "Um livro sobre o espírito e sua vida histórica,sobre seu poder e sua realidade, era indesejável para aqueles que, à época, decidiamsobre o que os leitores alemães deveriam ou não ler".

180

. _. M rx Devido ao número mais reduzido dese", talvez pela mfluencla de a '. es é nO grupo que o espírito

. elhança de seus mteress , .indivíduos, e a sem . _ formação e modificação do esp'-pessoal mais tem condlçoeS de atuar na

rito objetivo. es írito objetivo não se excluemNote-se que esses componentes do p de acordo com o espírito

plementam-se' a normamutuamente, antes com .'d' 'm o conteúdo do espírito do povode determinado grupo pode comcl Ir co . _

.d d - e pode também contradize-lo.ou da comum a e ., . mo a de Nicolai Hartmann,

As chamadas ontolo~jasdespfilTlltuafilSa'dceoHegel como já se observou'd r alemaoe a 10SO I ,

partem do I ea Ismo .' t mbém grande repercussão, sobre-aqui. Na filosofia do direIto, tlve:am a 't de Volksgeistno comba-

, d S· que utlhzou o concel otudo atraves e aVlgny, . . al ão afirmando em famoso e

. d odificação do dIreito em , '.,te às tentativas e c . " d A F J Thibaut que o direIto pn-polémico panfleto contra as IdeIas de ';0 ~ não pode ser imposto pela

. d lve pelos costumes o po .. Emelro se esenvo . 19 M 'nclusive que sUbsUtUIU oS s-vontade arbitrária do legIslador. a;; ~stado p;ussiano, pelas classestados-nações de He~el,.sob hdebra~~ad o é influenciado por esta tradi­sociais, com prevalencla da tra a a ora,

ção metafisica. . . ampo doO blemadaautenticidade do espírito obJetlvo, que no cA .

. pro . _ da le itimidade, ocupa Hartmann. aponadireito corresponde a questão b' ; mpre deve prevalecer sobre ou­reduz-se a saber se o espírit~ o ~e IVO ~e d grupo de classe) ou se pode

." - espirituaIs (pessoaIs, e ,tras manll estaçoes d' o espírito obõetivo não tem

A . dificulda e e que ,enganar-se. maIOr ._ . reduz-se aos espíritos pessoais e, quan-autoconsciência, sua conscle~cl~ teu'do espiritual. Daí que con-

, destas maIS tenue o conto maior o numero, dem vir a se impor a toda adutas específicas de pequ~~os g:.u~os P;esde que este se encontre deso­comunidade e deSVIar o e~pl:lto o g:sI~, apel dos meios de comunicaçãorientado, predisposto a mlsuficaç ... Plmente em termos da propagan­de massa na era contemporânea,pnnclpa . ai-socialista na Alemanha,da politica inaugurada pelo mOVImento naCIOnassombrou o mundo e preocupou Hartmann.

19. F. K. von Savigny, ~om Beruf unserer Zeit fir Gesetzgebung und

Rechtswissenschaji. Berlin, 181 .181

!

I

,\

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Para fazer uma reflexão crítica, é preciso ter presente que a dificul_dade aqui é o critério para separar a direção autêntica da inautêntica, emcaso de conflíto. E este éjustamente o problema crucial de toda filosofia,sobretudo se cuida do direito.

Daí a insuficiência da democracia em sentido juridico-formal e deinstrumentos também formais, como o princípio da maioria. Dificulda_des como a inautenticidade do espírito objetivo e a necessidade de umademocracia representativa impõem a realização de eleições periódicas,pois "Tão logo aspirantes ao poder, isolados ou em grupo, estão de pOssedele, o povo não tem qualquer garantia de que o Estado realize o que é dointeresse de todos"'O.

Hartmann parece resignar-se quanto à impossibilidade de fixar umcritério para a autenticidade do espírito objetivo e acusa a teoria hegelianade excessivamente otimista21

• A aporia permanece irresolvida, mas algodo otimismo de Hegel passa à filosofia do espírito de Hartmann. Esteafirma, com efeito, que o espírito objetivo tende à autenticidade, assimcomo os valores tendem a realizar-se, tornando transitórios os conteúdosinautêntícos. Além de crer no progresso do conhecimento, como já vi­mos, Hartmann Iambém crê em um progresso ético e cultural da humani­dade". A discussão dos fundamentos, porém, sobre por que ocorre talprogresso, permanece obscura. Se a história constitui o único parâmetroefetivo para distinguir ontologicamente o autêntico do inautêntico, o legí­timo do ilegítimo, o lícito do ilícito, não é possível determinar modelos apriori ou mesmo contemporaneamente.

Crucial na teoria do espírito objetivo e para a filosofia do direito é oproblema do poderjurídiCO-Político, mecanismo que o espírito objetivocria para se defender da iniciativa individualista do espírito pessoal, ori­ginando tensões internas: "Um direito sem poder não é direito vigente. Eé precisamente por força d'este poder que o direito Se Opõe ao poder doindivíduo e à sua iniciativa privada, assim como, em virtude deste mesmopoder, o protege, dentro das fronteiras de Sua liberdade jurídica, contra ainiciativa alheia. Pergunte-se porém, por Sua vez, o que é na verdade este

20. N. Hartmann, Das Problem des Geistigen Seins, cit., Cap. 38, p. 344.21. Idem, Cap. 38, p. 352.

22. Idem, Caps. 2J, 27, 4 J, 42 e 43 sobre a ciência.

182

, uem é em última instância seu portador, aípoder, de onde ele provem, q . d 'direito vigente', em que ele senão se pode responder, por meIo o

. "23

baseana . . . d' ladiam como também oNão só espirito O~J~tlvdo e pelssoaDI::se~gmecanismos de controle,

.' b· t' do partICIpa essa uta. . . _espIrlto o ~.e Iva , . ão da força que detém a úll1ma mstãn­um dos maIs eficazes e a ~rganlzaç t s írito objetivado é o Estado,cia na administração do direIto: e~q~ad~ o es~b sua tutela' enquanto espí-

'd ' . o e as normasJUfI ICas '.. dem sentI o genenc , ., d Estado e direito nao e-rito objetivo, confunde-s~com o P:::~;:~~~~;ica e direit0

2••

vem ser identificados, ~ss::::::0direito é injusto; um direito que nã,;,"Um poder que nao p _ e' em todo caso direito vigente. Eb der é impotente e nao , '. ,

tem por ase o po ., d deva basear no dIreIto e este,um notório círculo VICIOSO que

bo p~ erprsoedutos do espírito objetivo, dad r "25 Am os sao

por sua vez, no po e . . . É I e se devem submeter todo ointersubjetividade da vI~a social. ~ et~t ql'u

çõesJ'uridicas: "E apenas na

" "d m leIS e outras mslU,. ,dIrello pOSitIva o e _ defendida por ele, enquanto espIrlto VIVO,medida em que ~s~relaçao.é . "ustas'. Sem o espírito vivo em quesão a lei e as declsoes dos tnbunalts. J que ser necessariamente julgadas. b airam no ar e emse radIcam, am as p ssão de um poder que não repou-injustas. Sem e1e,.elas são apenas eX~~:r usurpado. Isto significa que assa no direito ou SImplesmente um p '0 da 'violência' e quem a elasdecisões e a lei são, sem ele, mera expressa ,

. I ad "26se sujeita vê-se VIO ent o . . . a esar da fonte

Se direito e poder são eVdentuatlmedntpeosdeePrarOagv~:~rn~ desvie-se do' 'I ogrupo etenor o, , ,

comum, e posslVe que d d' 'to de revolução para cuja avalta-.., paradoxo o lTel ,direito. AI surge o , , 'co critério defmitivo. Hartmannção o curso da história a longo prazo e o U~I ão bem-sucedida constituir ovê a contradição e.ntre o fato d~ a revol~Çfracassada ser definida comonovo direito positIvo e o f~t~ . e:q~e itimidade do direito não deveriacrime dos mais graves. O cnteno a eg

23. Idem, Cap. 28, p. 274. b E lado Sobre a política, cf. Caps. 24, p.24. Idem, Cap, 20, p. 212-3, so reos.

248 e S., e 36, p. 330 e s.

25. Idem, Cap. 28, p. 275.

26. Idem, Cap. 28, p. 276.

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ficar na dependência do sucesso ou insuceassim nenhum critério anterior a ' " s:o de ~ma revolução. Mesmo

, przOYl, e Jomecldo27. Hartmann concede que é muito va o ' .

tlcas da ordemJ'urídica dl'ze I' ~ ~ara as necessidades pragmá-rque a egltlmldad d d' .

sua capacidade de exprl" , e o Irelto é aferida por· mlr o sentImento j 'd' .

obJetivo; mas é suficientemente sincero un ICO~m vigor no espiritonão pode ser usada como crl'te'r' .. para a?mltlr que a codificação, 10 umco para dehmlt - d d' ,

tlvo (legitimo). O direito nã d açao o Irelto obje-_ o po e estar plenament '

çao ou nos procedimentos decisórios d ' . e present.e na leglsla­borados e conduzidos por (' ~s tnbunals, necessanamente ela-. pessoas espITItos pes ')Imperfeitamente o direito objetivo. soaIS que percebem muito

. O direito objetivo nunca é plenamente .vldualizadas e também -. percebIdo pelas pessoas índi-

· . nao se Circunscreve às b' f -POSItivado, ao direito objetivad O bl ' o ~e Ivaçoes do direitomutável do direito vivo ob' t' o. pro emae que este caráter difuso ete da complexidade da ;octdIVdO, prdecEisa ser controlado, sobretUdo dian-, 'd e a e e o stado modem '"

rapl a e eficiente. Se o espirito ob' f _ os, a eXigIr dlreçãosi mesmo, mas apenas consciênc~:1:0 ~ao tem c~nsciê?ciaadequada decarregam, a direção dos ne ócios ~b~~IaI a.traves dos mdivíduos que opessoas, está fadada à limit~ção, pu ICOS, Inexoravelmente a cargo de

A resignação em face da im o 'b Tda autenticidade ou inautenticid l ;Sl I I ade d~ critérios para delim itarporém, não significa que tod a e o governo diante do direito objetivo. . os os governos se e . I 'Imphca reconhecer que o direito é um ~ _ qUlva em. Ao contrário,resultando do entendimento d b' enomeno lnjien, nunca acabado, , acom Inaçãod . t '

E c laro que as características de" 'd d e I? e~sses, dos conflitos.b · . . um a e mIopIa art' I .su ~etlvlsmo de interesses" d ' . ' , P ICU ansmo e

, os espIrlto. "essoais od d .no do dIreito vivo e ense;ar o d '1';' P em esvlar o gover-. , po er I eJltlmo .sanamente. Se "o h - .'" mas ISto não se dá neces-

. ornem nao chega a consci-' I' ,teorIas, utopias ou ideolo ias"28 o ' ' enCIa po Itlca através deperceber de fonua autênti;a b' eSI~lr.lto pessoal tem a faculdade de

· , em ora 1m Itada o ambl'e t ..que se Insere. Penuanece c t d ' n e espIrItual em

, on u o, o problema do critério.

27. A alínea e do mesmo capítulo a .xo no Direito de Revolução. ' partir da p. 278, tem por título O Parado-

28, Idem, Cap. 36, p. 332 e s.

184

O espírito objetivo é tido como o criador e portador do direito e detodas as fonuas coletivas ou sociais de espírito. Da mesma maneira que oespírito pessoal é forçado a exteriorizar-se, o espírito objetivo também oé. Mas enquanto a excentricidade do espirito pessoal constitui o espíritoobjetivo, ambos viventes, a excentricidade do espírito objetivo constitui oespirito objetivado sobre a,matéria. E, igualmente, a criatura luta contrao criador, opondo-lhe resistência e impedindo sua livre realização.

4. O direito no espírito objetivado

O espírito objetivado consiste em bens espirituais. Aqui, na filoso­fia do espírito, Hartmann emprega a palavra bem em um sentido pecu­liar, um tanto diferente do sentido exposto na Ethik, de que já tratamos.Os bens espirituais não são puros valores mas sim valores intuídos eincorporados a um estrato inferior, materializados em obras de arte, có­digos de leis, ferramentas, livros de gramática, mesas e lâmpadas, Essesbens se desprendem do espírito vivo que os criou e adquirem um sentido(valoração) próprío através do contato com outros espíritos viventes.

Este espírito vivo (pessoal e objetivo) é portador da história e cria­dor da civilizaçã02'. O espirito objetivado, que não é vivente, precisa doespírito vivo, ainda que não necessariamente aquele que o objetivou, parafazer efetivamente parte do ser espiritual; um livro não é um livro sem apresença de um espírito pessoal que lhe perceba o sentido, assim como alei é mera matéria morta sem o espírito objetivo. Para atribuir sentido aessas objetivações é necessária a cooperação entre espírito pessoal e es­pírito objetivo, não cabendo considerações sobre qual a forma mais im­portante que assume o espirito vivente3o• Mas a objetivação aparta-sedele até certo ponto.

Para esclarecer melhor a argumentação de Hartmann, podemos con­siderar a diferença entre objetivação dependente (ou "não-independen­te", unselbstiindige) e objetivação independente (ou, mais literalmente,"tomada independente", verselbstiindigte)31.

29. Idem, Cap. 18, p. 198.

30. Idem, Cap, 44, p, 406-8.

31. Idem, p. 410.

185

J'

I

II

Page 107: ADEODATO, João Maurício [Filosofia Do Direito. Uma Crítica à Verdade Na Ética e Na Ciência (Através de Um Exame Da Ontologia de Nicolai Hartmann)]

Em um sentido lato, qualquer ação tod d'são de conduta do indivíduojáé um b" . o lscurso, qualquer expres-de pôr algo de si para fora por m ~ o fê~ettvação, um ato de exteriorização,

, aIs e emero que seja' ela d' d"parte. exclusivamente do espírito ue lhe d . ' . e~xa e lazeradqUIre um sentido "para o outr " ~. eu ~ngem e slgmficado e jácomunicaçãojá tem a forma de :~~a:~:na m~ersubjetividade:"todaela não seja consolidada"l2 Co I'dar~ 5ã?, amda que, enquanto tal,

. nso I -se slgmfic .necer sentido a uma matéria o " . a projetar-se em e for-

. ngmarlamente menos c 1 'sentIdo mais estrito da ob;etivaçã A fl 'd omp exa: aI está o

. "o. UI ez o caráter m .passageIro dessa objetivação é o . . . : . aIs ou menosrilo objetivado dependente d~ ind~r~:~~ocn~er:?para dis.ti~guiro espi­que se objetiva", na expressão de J'amn~~:e o peso espmtual daquilo

O segundo critério para a mesma se . .dade no tempo do material em .~aração dIZ respeao à durabili-

_ . que o esptrlto se obieti . .permanenCIa dessa matéria menos I "va. quanto maIOr a

. d comp exa no tempo . d' .e.m ependente o espírito objetivado em reI _ ' ~als IstancIadoVIVO (pessoal e objetivo). A palavra falad açao a seu cna~or, o espíritopIos que Hartmann d ta . a e a palavra escnta são exem-

es ca para explIcar a difelIXação do espirito objetivado pelo es "t ~ença entre ajluldez e aobjetivação mais passageira do que t' Ptlrl o VIVO; o som é fonna de

a m a no papel.Podemos detalhar o conceito de es í' b"

tos componentes: o suhstrato materialPr:It.O

o ~etlVado e~ três elemen­cado espiritual que está co t'd ' aIs ou menos flUIdo, o signifi-

n I o nesse substrato e ' . .compreende e interpreta o . 'fi d o esplrlto VIVO que

I' . sIgm ca o. Isso nos leva ' . .onto oglCa específica do espírito ob'etivad . a ~arac~enstIcaEmbora o substrato mate' I ~ , . ?, qual seja, a Irrealidadell .

. na e o esplrlto vIvente .reais, o significado espiritual próprio d . . ~u~ o percebe sejam

S '. o esplrlto objetIvado é irrealer meal e ser ideal não se confundem d .

sã? seus principais argumentos ara dem ' a verte H":tmann, e trêsobjetivado não é ideal. Inicialme~te o .~ns~~ que o sentIdo do espírito

, sell ea e absolutamente atemporal;

.32. Idem, p. 412 e s. Note-se a semelhan a .COSSIO, La learia egologica dei der h I ç com a clasSIficação feita por C54 e s. e passim ao diVidir os b' I ec o,ye concepto juridico de liberlad cit p'd .' o ~e os cu turais em mund' • .,.

esprovldos de substrato maten' I fi . anaIS e egológicos estesa ISICO. •

33. N. Hartmann Das P bl d' ro em es Geisligen Seins, cít" Cap. 50, p. 458-9.

186

o significado espiritual objetivado, embora possa perdurar no tempo, apósextinto o espírito que o criou, está no curso da história: ele nasce e morre.Em segundo lugar, o ser ideal independe por completo do ser real e nãotem qualquer ligação necessária com ele; já o sentido do espírito objetivadosó existe em função do espírito vivo, real, e do substrato material, tam­bém real. Finalmente, o ser ideal é em si e o significado objetivado ésempre para alguém.

Isso não quer dizer que o significado objetivado seja arbitrariamen­te conferido ou até exclusivamente estabelecido a partir do espirito vivoque posterionnente o compreende. Se este sentido estivesse à vontade doespírito vivo, não caberia situar o espírito objetivado como uma terceiramanifestação espiritual34• Para Hartmann, ele traz um sentido próprio,conferido pelo espírito vivo que o criou, sentido que não pode ser ignora­do pelo espírito vivo que posteriormente o percebe. Ambos os espíritosviventes, o criador e o receptor do significado espiritual, participam deseu conteúdo e este não se confunde com qualquer deles. Em outras pala­vras, a questão de se o significado objetivado é simples expressão mate­rial de um espírito que já se modificou no tempo e não mais existe, ou seé constituido pelo próprio espírito vivo que o compreende, constitui umaantinomia apenas aparente. O espírito objetivado é as duas coisas.

Vimos que o espírito pessoal e o objetivo entram em conflito, porassim dizer, naturalmente. Estas manifestações do espírito vivo, porqueem constante transformação, mais ainda entram em choque com o espíri­to objetivado, um obstáculo colocado anteriormente por um ente que nãomais existe. Falando especificamente do direito, afirma Hartmann: "Odireito positivo, por exemplo, faz parte do espírito vivente, não enquantoé normatização estabelecida, mas sim na medida em que constitui a for­ma interna do sentimento coletivo e real do direito. Este sentimento jurí­dico, contudo, se objetiva na lei escrita... Nesta forma de objetivação eletem força própria e detenninada, a qual não se identifica com o sentimen-

34. Neste prumo critica M. Reate, Política e direito na doutrina de NicolaiHartmann, in Política de onlem e de hoje, cit., p. 144, a separação feita por Hartmannentre espírito objetivo e espirito objetivado; Reale não aceita este último como umaterceira manifestação do ser espiritual. Cf.) também, Experiência e cultura - paraafundnção de uma leoria geral dn experiência, São Paulo, Grijalbo/EDUSP, 1977,p. 231 e s.

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to vivo do direito"3' O dl"re"t" .". I o e apnslOnado p ".tem contra si a força que e d I or sua propna obJetivação. . mana e e mesmo a fi 'Instltuições como o Estado aJ'u' d" ' "orça que empresta a

.' nspru enCla e a leI..Hartmann destaca três conseqüências e .

tos VIVOS e espírito obietivad 36. '. g rals desta luta entre espíri-, . "o ,em pnmelro lugar a b' t' - . ,ona o esplnto vivente na-o ap , o ~e Ivaçao apnsl-

enas em sua cont .bém em relação ao futuro t . emporaneldade mas tam-que, a rigor, ainda não nas~:u~scoonqtue se prob~e~ sobre um espirito vivo

, , ra essa o ~etlvação' , .VIVO tem suas defesas e na m d'd ,porem, o esptrltopor estar vivo tende a s'al'r v

eI da em.que caminha adiante na história,

.. ' ence ar Isto é a .esptrlto vivente é responsável pel .',.' Impor-se; finalmente, otual, ele vai de encontro à ob'et' o ~rInClplO revolucionário do ser espiri­que tolhe sua livre iniciativ;. Ivaçao que herdou de espíritos pretéritos e

S. Crítica à ontologia jurídica de Hartmann

Para apreciar criticamente até u 'juridica de Nicolai Hartma q e ponto .se pode aceItar a filosofiad nn, vamos tomar dOIs as to' b'"

os valores e a doutrina do se .. I pec s. a o ~etlvldader esptrltua ,Se o homem pode desenvolver ad d '.

nal e daí perceber Corretamente _ equa amente sua mtulção emocio-menos sua hierarquia ontoló .' se nao os valores em sua plenitude, peloI glCa, o que Hartm fietras, a questão da realizaça-o d I ann a Irma com todas as

os va ores passama das condições infra-estrutu' d . . a centrar-se no proble-, rals e e ucaClOnals O blJusto passa a ser a escolha comp t t di" pro ema do direitoaxiológico, comoJ'á destacamos aet :n ~ I e e,glsladores. Este otimismo

, . ras e ouvavel m -respondencla nos dados históríc N 'd as nao encontra cor-ção dos valores em que pesem dOs". a a parece demonstrar que a intui-

, esvlOS tem ,.caminho em direção a um t' porarlOs, volta a encontrar seu

Con muo aperfeiç d .decorrer da história. oamento a humamdade no

No mesmo sentido, se os valores ã ,.objetivamente porum direito d s o Suscetlvels de serem captados'. ,que esenvolvesuaspote 'I'dad ' ,

atraves das mtuiçôes emoc' . d ' . nCla I es onltcas10nalS os esplrltos pessoais em que toma apoio,

35. N. Hartmann D P bl36, Idem, Cap. 5~, P~53~~8em des Geistigen Seins, cit., Cap. 58, p. 521 e s.

188

pode-se deduzir da doutrina de Hartmann uma espécie de jusnaturalismo,Este direito ontológica e axiologicamente "correto" não está apenas naidealidade imutável do reino dos valores mas também pode e tende arealizar-se. Tal realização é imperfeita, é certo, mas ao menos consegue,a longo prazo, organizar e hierarquizar adequadamente valores superio­res e inferiores. Isso não quer somente dizer que o direito tem um conteú­do moral, como o pretendem algunsjusnaturalistas contemporâneos, masque este conteúdo pode ser onticamente determinado.

Hartmann assim admite a objetivação do direito em instituições,leis, contratos etc., pois toda manifestação espiritual tende a objetivar-se;a objetivação do direito em documentos garante uma previsão de uni­formidade às condutas e auxilia enormemente no trato de conflitos. Poroutro lado, o direito objctivado materializado, isoladamente considerado,não existe na realidade, é irreal; uma lei só adquire realidade ao ser com­preendida, ao se efetivar, ao ser aplicada como parâmetro de condutasocial. Se a lei defende conteúdos jurídicos legítimos, na maioria doscasos - Hartmann continua otimista-, ela também jamais consegue seadequar inteiramente à realidade do direito, precisando de constante vigi­lância em seu trato com a realidade.

Como se vê, a tese de Hartmann dificilmente pode ser combinadacom uma concepção legalista do direito. O direito vivo objetiva-se neces­sariamente, mas nada indica que essa objetivação tenha que assumir for­ma legal. Podemos fazer uma comparação com outra manifestação espi­ritual, a música: as formas pelas quais se objetivou ao longo da históriasão tão diferentes que o espirito vivo de uma época muitas vezes nãocompreende a objetivação de outra. Ainda não sabemos, e provavelmentejamais venhamos a sabê-lo, como soavam os modos eólio ou mixolídiona Grécia Antiga, e os neumas, a notação musical da Baíxa Idade Média,pouco têm que ver com a forma com que Villa-Lobos objetivou sua mú­sica no papel. Do mesmo modo devem ser circunstanciais as formas deobjetivação do espírito pessoal e do espírito objetivo. Assim como a lei, oEstado é outra forma de objetivação jurídica que tem sido identificadacom o direito ou pelo menos considerada parte de sua essência.

Partindo do principio de que se possam, a longo prazo, eliminar asmistificações, os engodos a que o espírito vivo é suscetível, conforme jáobservado, pode-se dizer que o Estado e a leí, os institutos e instituições

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I

I'

III

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jurídicas são sempre direito mesmo '"a eles. Hartmann argumena: que.o ~Ireltojamais se possa reduzirdurarã se não corresponder que luma objetIvação do espírito jamais per-b· . a pe o menos uma parcela d ' . .

o ~ettvo. Verifica-se o carãter a 'r d o espmto VIVOviventes e o espírito objetivado ~~re ICO essa. relaç.ão entre os espíritostivo, maior força constrangedo~ ;;ri

uantomal.s a.utentico o direito obje­

turos conteúdos espirituais da I'd dO ~ua.s ?bjetlvações, diante dos fu­maior a intensidade da vid'a re.a.' a Iej ur~dlca que está por vir: "Quanto

espmtua maIOr tamb ' ..que ela mesma se impõe C ' em o apnslOnamentocarga sobre a vida espiri~~oge:o do be",l ~spiritual cresce também aobjetivação, uma ambigüidad . I em espmtual mantém sempre, naespírito vivo"37. Note-se . fle ~e ~ qual pod~ tornar-se um malpara o

a 10 uencla da doutrma d H Imento, pujança e decade-ncI'a d ' . e ege sobre nasci-o espmto.

Mesmo admitindo um sentido tafi"faz do conceito de espírito o ~e onco na descrição que Hartrnanncrítica que lhe faz Miguel Realq~8e nao pa~ece ser o caso, é procedente at d e ,namedldaemqueHartrn d'"emente e seu inspirador Heg I _ ann, heren-

• d' e , nao consegue evitar cert iiiçao o espínto obietivo vendo . d"d . apersom 'ca-d · " -010 IVI ualIzado d .

o, maIs real do que as pessoas' " '.em etermmado senti-enquanto relação, como habitu iA mtersubjetlvldade não é observadaprópria individualidade ôntica, a ~ente a per~ebemos, mas adquire suadência, assim como as ramifica e.vI ente por SI mesma. Esta suposta evi­pírito do povo, espírito do tem~o:s ~u.~Hartmann e outros apontam (es­questionável Esta crl'tl'ca ,. ,spm comum), parece-nos altamente

. e Importante e d"metafisica do espírito desenvolv'd r:ae

mge ao centro de toda aA 'd" d . I a na 10 de Hegel e do romantismo

I ela e que eXIste uma entidade I '. .concretamente considerados t fl co ettva, superIOr aos indivíduosfilosofia e na teoria do conhe'. eve re exos fundamentais não apenas na

Cimento mas sobretud " , .assunto foge aos objetivos deste livro. No . o na eSle~ polItica. Oque a construção de uma opinião d que mteressa aqUI, parece-nos

e e um espaço públicos não pode ser

37. Idem, Cap. 58, p. 525-6. CfVergangenheit _ Zum Begriffdes ob·e~.também,. O. F..B~llnow, LebendigeA. Buch (org.), Nicolai Harlmann _ j882~;:~ Gelstes bel Nlcolai Hartmann, in

38 M ' p. 70-84.. . Reale, Política e direito na doutrina '. .

de omem e de hoje, cit., p. 145. de Nlcol8.I Hartmann, lO Politica

190

vista como a busca ou encontro de uma "verdade" ou "autenticidade".Hartmann admite a possibilidade de falseamento nas formas de expres­são desse espírito, mas tal inautenticidade é apenas temporária, havendocomo que uma tendência inexorável ao relo caminho. Fica dificil perce­ber apoio fãtico para esta tese tão vaga quanro otimista, cujo único juiz éa história, critério também ambiguo e insuficiente diante das necessida­des.

Mais importante, por trás desta idéia de personificação daintersubjetividade, parece-nos a união indissolúvel que Hartmann querdemonstrar exístir entre direito e poder. Sobretudo quando afirma que opoder social é suscetível de deturpações ao ser objetivado,já que a vita­lidade do espírito não é preservada na objetivação. O único dado disponí­vel, na observação do direito objetivado, é o substrato material que per­manece: a lei escrita, as instituições etc., vez que o espírito vivente jãdeixou de existir. Aparecem então duas alternativas.

De um lado, não cabe estabelecer distinção entre espírito objetivo eespíriro objetivado, entre direito objetivo e direiro objetivado; hã apenasuma realidade jurídica histórica e supra-individual, a qual se opõe à cons­ciência do espírito pessoal. Uma segunda interpretação, aínda que leveao mesmo resultado de negar a dicotomia, seria entender que o direitoobjetivado não pode ser propriamente chamado de direito, mas constituiuma mera provocação a manifestar-se, com a qual o direito objetivo e oindivíduo se defrontam, ainda que se possam conceituaImente separarespíriro vivente e espiriro objetivado. No caso da normajurídicaque proíbeo homicidio, por exemplo, poder-se-ia argumentar que sua persistênciano tempo e no espaço não se adapta à tese de exclusão do direito objetivadoenquanto categoria autónoma. O que ocorre aqui, porém, de acordo comHartmann, é que o direiro vivo vem sempre renovando e confirmando osentido dessa objetivação e não é ela que permanece, mas sim seu sentidoobjetivo.

Assim, não são a instituição, o Estado, a norma jurídica que confe­rem juridicidade a determinada situação de fato e separam as condutasjuridicamente relevantes das irrelevantes. Ocorre o inverso: toda normaou instituição só é juridica em sentido próprio quando coincidem suaobjetivação e o sentimenro juridico que lhe dá sustentação.

191 I

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Semelhante teoria apresenta as mesmas dificuldades que a de Hegelou as diversas formas de jusnaturalismo: quem vai expressar a norma,quem decidirá o conflito, já que o espírito vivente, o espírito objetivo,Deus, a razão, o sentimento jurídico etc. não se comunicam inequivoca­mente? Curioso é observar que essas expressões funcionam nas relaçõeshumanas, e sobretudo na legitimação do direito positivo, justamente pelaambigüidade que carregam. Isso será visto no próximo capitulo.

Quanto à axiologia, mesmo supondo que se aceite a tese pouco plau­sivel de um reino de valores em si, intemporal, imutável, hierarquizado, odireito não parece organizado desta maneira no mundo real. Concedendoque o mundo dos valores é assim aprumado, se o defeito está na apreen­são que os homens dele fazem, de que adianta a tese dos valores existen­tes em si? Como intuir e realizar esta ordem, só Hartmann pode fazê-lo?Diante dos fatos, o direito parece mais umajunção confusa de "intuiçõesaxiológicas", para falar a linguagem de Hartmann, envolvendo paixões,poder, interesses privados etc. ; em suma, parece o resultado de uma lutaentre grupos que defendem "hierarquias de valores" não só distintas, comoem franca contradição, de tal modo que, em casos-limite, não podemsubsistir juntas.

Vê-se na filosofia do direito de Hartmann uma grande construçãoteórica. Ele é talvez o mais metódico dos filósofos, tendo planejado suaobra com muitos anos de antecedência: na Metaphysik der Erkenntnis(1921), por exemplo, promete aprofundar determinados temas no futuroe efetivamente os retoma vinte anos depois. Outro exemplo está em seusaxiomas e leis, simetricamente enumerados, como visto no quinto capítu­lo. O filósofo do pensamento problemático mostra-se extremamente sis­temático, Pretende demonstrar verdades. Sua aversão a quaisquer for­mas de irracionalismo, subjetivismo, relativismo, leva-o a tomar oobjetivismo ontológico como assente e a fazer afirmações categóricassobre questões extremamente discutiveis. Esse é o assunto central de nos­so último capitulo.

192

Capítulo Décimo

O PROBLEMA DA. VERDADE EO PROBLEMA DEUMA fiLOSOfiA ONTOLÓGICA DO DIREITO

, - i do ser humano, 2. LimitesSumáriO: I" Plen~tude ou~ar:n~:stão de grau: inevitabilidade

de uma ontologIaJundlca, 3'ã ~o ~ireito enquanto ontologia.da ontologIa, 4, A construç o

1. Plenitude ou carência do ser humano

. ' tu' ão semelhante mas foi Max weberl

Outros pensadores tiveram 10 IÇ d I gl'a de construir tipos ideais, . I amente a meto o o _

quem SistematIzou c ar _ .' todologiaJ'á latente, mas nao. - d fenomenos SOCIaIS, me . d

Para a descnçao os E t' s não existem na reahda eI . d Kant sscs IpOexplicita na gnoseo ogla efi " nto do pensar humano, como nos. ., . o unClOnamemaS parecem lOevltavelS a . pre atuaI discussão sobre os

texto a antIga e semmostra, em outro con,. d capítulo, A questão do co-

, . . exammada no segun o .conceItOS uOlversals,. ., da verdade tem uma expressão vIgorosa enhecimento e da posslblI Idade bl dos uni'versais mas estende-

d' - esse pro ema 'o peso de enorme tra lçao ~. 1 fi menologia de Husserl, alémse pelas essências da EscolastJca e pe a enoda matemática moderna2

,

II h ift - Grundriss der verstehenden1. M, Weber, Wirlschajl und(GeSe

1Sscba

ck) 1985 p 3-20 (§ 1', l),passim.

, .' J C B Mohr Pau le e, " ,Sozi%gle, TUbmgen. . . . h"1 h _ and its connection wllh

2. B. Russell, Hislory of Weslern P I osop Y

193

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, ~stá aí a perspicácia de Weber: transformar em método esta carac­tenstIca ~ relação ,e~tre o homem e o meio ambiente, a qual, de umponto de VIsta ontologlco, revela por assim dizer uma deficiência. Certa­mente de fundo biológico, genético, a atitude humana de conhecer o mun­do~~ ato gnose~lógic.o-: tende a generalizações diante de realidadescasulstlCas. E.ste e o pnmelro dado, o primeiro fato. O segundo é queessas ~enerahzações são lingüísticas, quer dizer, acontecem dentro de~a~mguag~m: O~ conceito~ gerais, mesmo que não tenham correspon­dencm ,:al: soo I~dlspensáve~s à aquisição e transmissão de conhecimen­tos.l\fals amda, s~o também Imprescindíveis na relação entre o homem eo ~elo ~m que VIve. Se esses universais correspondem efetivamente aobjetos I?eal e verdadeiramente existentes, como quer Platão, ou se sãoapenas sImbolos contextuais, esta é uma das mais antigas questões dafilosofia.

Pode ser, co.mo sonham alguns biólogos-sociólogos, os quais jámencIOnamos mUItas vezes no decorrer deste livro e podemos classificardentro da ch.amada sociobiologia, que as ações humanas sejam determi­nadas g~netIcamente em seus mínimos detalhes e que o conhecimentodelas seja questão de competência do ato gnoseológico e seus coroláriosmetodo~ógicos.Ou até, como quer a ortodoxia muçulmana, que todos osaconteclment~s, huma.no~ ou não, estejam determinados previamente,~e~mo sen?o mescrutavels os desígnios de Deus. O fato é que, nas con­dlçoes atuals de desenvolvimento da filosofia e das ciências não nos épossív~l t:atar ~onflitosjurídicos apoiados nesta base genétic~ou em umdete~mm~smo tIpo mc:ktub. A espécie de linguagem com que os tratamospr~clsa amda ser a h!1guagem comum, com todas suas limitações, ouseja: argumentação. E por isso que o estado atual da sociobiologia tempouco a oferecer à filosofia do direito.

. Nes~ linguagem c~",lum, conceituaré aprisionar uma realidade que,a ngor, nao p~de ser a~n~lonada.As ações e reações cerebrais que senti­mos e denommamos. ideias sofrem uma profunda transformação, se éque se deve falar aSSIm, ao serem articuladas e se tornarem formas de

politicaiandsocialcircumstancesfram lhe earliesllimes lo lhepresent day LondonRoutledge, t993, Livr~ I, Cap. 15, p. 136 e S., e G. Frege, Die Grundiagen de;Anthmetlk - Eme IOglsch matematische Untersuchung über den Begriffder ZahlStuttgart, Reclam, 1987. '

194

expressão exteriorizada ou, simplificando, símbolos. Uma vez tra~s!or­

madas as idéias em linguagem, inicia-se um encadeamento que os loglcostêm exaustivamente examinado, isto é, a união de símbolos através deconceitos, juizos, argumentos, em suma, o processo de constituição etransmissão do conhecimento pela espécie humana.

Na passagem da "atividade cerebral" ("idé.ia") para a "~rticulação"

("discurso'') parece estar o ponto cruci~1 da teona do con_he~l~ento,~sta

parte da filosofia que se tornou a mais Importante d.os tres .ultImos secu­los no Ocidente. E essa passagem que leva Gorglas a dizer que nadaexiste na realidade; que, se algo existisse, não poderiamos percebê-lo; eque, mesmo se o pudéssemos perceber, esse algo seria incomunicáveP.Daí a impossibilidade do conhecimento irrefutável. E é pensando nosmesmos problemas persistentes que Platão mostra .com.." a filosofi~, oconhecimento exige uma ascese erótica, uma combmaçao entre razao eemoção, entre ~ompreendere querer compreender, comojá observado nosegundo capítulo.

A questão central de toda gnoseologia, então, é investigar este pro­cesso de exteriorização, este relacionamento entre percepções de dadosque nos parecem ocorrer em nosso próprio corpo (mente, cérebro) e per­cepções de dados que nos parecem ocorrer fora dele (mundo). Diantedessa questão podemos dividir os diversos argumentos que te~tam

solucioná-la em dois grandes grupos, ressalvadas a dose de arbltraneda­de e as limitações propriamente epistemológicas de todo modelo didático:por um lado, os que partem do postulado ?e que a.li~guage~ humanaconstitui um meio para expressar uma reahdade objetIva, cOisas (res) etermos equivalentes; por outro, os argume?tos q~e se baseia.m no quepodemos denominar princípio da autonomia do diSCurso: a hnguagemnão tem outro fundamento além de si mesma, não há elementos externosà linguagem (fatos, objetos, coisas, relações) que p?ssa.m le~iti~á-la.

Daí chamarmos as teorias que argumentam na pnmelfa dlfeçao deontológicas, na segunda, de retóricas'.

3. Gorgias de Lantinoi, Fragmento retirado de ~ichael Loebbert (org.),Arbeitstexte fir den Unterricht - Rhetorik, Stuttgart, Phlhpp Reclam, 1991, p. 11.

4. J. M. Adeodato, Dos limites de uma onlologiajuridica, in C. Lafer e T.Ferraz Jr. (orgs.), Direito, política, filosofia, poesia - estudos em home?agem aoprofessor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário, São Paulo, Saraiva, 1992 t

p.495-505.

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Especificando essa dicotomia, a filosofia, a política e a teoria geraldo direito têm como problema persistente a oposição entre privilegiarregras gerais para decidir conflitos que ainda estão para ocorrer e privi­legiar a decisão casuística, em concreto. Tal oposição assume diversasformas na literaturajurídica, umas mais, outras menos radicais: enfatizamas regras gerais as diferentes correntesjusnaturalistas, racionalistas, muitasdas escolas positivistas e sociologistas; proclamam maior independênciada decisão diante do caso concreto a argumentação de sofistas, céticos,cínicos, nominalistas. Os primeiros acreditam, de uma maneira ou deoutra, em uma verdade a qúe uma investigação competente pode chegar.Os últimos relativizam o conhecimento, em maior ou menor grau.

Uma das formas mais importantes de pensar e interferir sobre odireito em nosso mundo moderno é aquele ramo estatal do positivismoque se convencionou chamar, um tanto ambiguamente, dogmáticajurí­dicas. Certamente que não se pode falar do pensamento dogmático, comsuas diferentes tendências, divididas, também elas, em maiores ou meno­res simpatias pelas normas de caráter geral, adequadas, corretas, em umapalavra, verdadeiras. Dentre todas essas tendências, uma das mais atu­antes, dentro e fora das faculdades de direito, é a dogmática privatista,apoiada principalmente na vasta e imponente literatura civilística queacompanhou todo o desenvolvimento do positivismo. Seu refinamentoconceituai, de autoridade que remonta ao antigo direito romano, garante­lhe um lugar de destaque na direção ontológica do positivismo•.

O problema é observar se a linguagem humana descreve as coisascomo são ou se sua relação com estas reduz-se a uma convenção que oshomens estabelecem arbitrariamente. Tal arbitrariedade não implica quecada ser humano determine subjetivamente a relação entre a língua e omundo exterior, pois o uso corrente das palavras diante das coisas apre­senta uma objetividade convencional, embora não essencial. Esta im­portante questão de essendalismo versus nominalismo ou, na terminolo-

5. Para um conceito de dogmática jurídica, cf. a introdução deste livro e abibliografia ali relacionada.

6. Cf. 1. M. Adeodato, O sério e o jocoso em Jhering: uma visão retórica daciência jurídica, in J. M. Adeodato (org.), A obra de Jhering e seus reflexos naexperiência jurídica brasileira, Recife, Ed. Universitária, 1996 (no prelo).

196

. ra nós é colocada por ele. de Hartmann do ser em s/ versus o ser pa .' "."gla toda atualid~de ao distinguir Ocriticismo kantiano do cet~cldsmo ..Acom '. d I m ceticamente posta; am a assImfilosofia crítica não fOI de mo o a g~ ra longe a pergunta pelo entefoi ela que fez recuar cada vez m~'.s pa Imente inútil. A per­enquanto tal e que finalm

benteIa res~oeb'~~UOCqo:oét~: si é substituída pela

t como podemos sa er a go .gun a d fialardisso deforma clara e coerente, ou seja,pergunta como po emos

. iji "7s, m ,car . ., .g to de partida pedindo aUXIlIo a antropolo-

Vamos tomar como pon modo se ' retende resumir a tradição do

gia, a dicottOomocial'dne~~a~i:~~:~~ questão, ~olocandoduas alternativas depensamendefinição do ser humanoS. l'

d tender o homem como um ser carente ( Ite-De um lado, po e-se en I o (ou "rico"). Em outras

" b ") d utro como um serp enralmente po re , e o , ão estar biologicamente fixado a um ambi-palavras, o fato de o homem .n ~el'to de deficiência vital em rela-

. d pode ser VISto como e., .ente determma o ã dequado a este ou àquele meio

to de autopreservaç o, a . .ção a um apara d'd o sendo o homem um ser CrIatiVO,ambiente, ou pode ser entend~ ~ co:o e que constrói as condições paraque não é naturalmente con ICIO~a 9

ada tação a seu próprio mundo CIrcundante. . ., .p homem ossui o cnteno e e capaz de chegar

à ver;;d:,a;:~~~~~~~::~~íngua a:enas como instrumento e a retórica

der Ont%gie Berlin, Waltet de Gruyter,7. N. Hartmann, ZurGrund/~gung deT Ferra'zJr. ao explicar a mudança

1965 p 1. Compare·se com o segumte texto. . 'I' o'" a caracteri-' . . . r o para o convenCIOna 15m . .,.de atitude gnoseol~glca do essenCla ~:~nsão de se buscar a natureza ou essência dezação de um conceito se desloca da P, f ão sobre os critérios vigentes no usoalguma coisa (que é a mesa?) para a mves Igaç • a'?)" Cf introdução ao

I (mo se emprega mes .' 'comum para usar um~ p~ avdra ~~ d 'nação São Paulo, Atias, 1988, p, 37.

d d d' -t tecmca eClsao, oml ,estu o o irei o - I • _. an die Aktualitãt der Rhetorik,

8. H. Blumenberg, Antr~pOIOglscheAA~:~~~~~ eine Rede, Stuttgart, Philippin Wirklichkeiten in denen Wlr leben - uJsa z

I 1986 p. 104-36.Rec aro, , A Gehlen no livro Der Mensch,

9. A tese foi originalmente ~xPdosta POt' d'e sua teoria da instituição que

40 fi cendo os lun amen os .lançado em 19 ,orne (a ud H Blumenberg, Anttopologische... , 10teve repercussão na Europa p ,Wirklichkeiten, cit., p. 115).

197

Ii"

'I'II'I' I

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como simples ornamento, lltravés dos quais aquele que fala pode influirno meio de forma mais ou menos eficaz; como ser deficiente ou carente,o homem é incapaz de perceber quaisquer verdades a respeito do mundo,independentemente de um contexto Iingüistico, única realidade artificialcom que é capaz de Iidarlo.

Assim é colocado o problema: a linguagem e tudo o que chamamosde "inteligência" pode ser visto como um plus, como habitualmente ofazemos, mas também como um min/JS. E o que denominamos livre arbí­trio ou liberdade resultam de um plus ou de um minus em relação à natu­reza? A liberdade pode ser vista como algo sublime que assemelha ohomem a Deus e o torna superior aos demais seres. Mas todas essascaracterísticas humanas também podem ser pensadas, cética ou biologi­camente, como um "defeito" no código genético, gerando inadaptação aomundo e conflitos inexistentes entre abelhas e formigas. Eticamente fa­lando, será que não são essa liberdade e essa razão discursiva causa denossos sofrimentos?

Hartmann, como vimos, apesar de procurar recusar a dicotomiaceticismo versus essencialismo como única alternativa, percebe nitida­mente o que poderíamos chamar, de seu ponto de vista, o potencialdestrutivo da crítica kantia~a e das filosofias modernas da linguagem, noseu entender, e com razão, antiontológicas.

Pode-se ainda expor esta oposição tradicional através dos termosholística e heurística.

O substantivo holismo tem uso mais corrente, sobretudo mas nãoapenas no vocabulário místico contemporâneo. Origina-se do adjetivogrego holikós, que significa "universal". A expressão parece ter sido cu­nhada por J. C. Smuts, em 1926, com o objetivo de diferençar sua teoriafilosófica naturalista, tanto do monismo mecanicista quanto do dualismovitalista. Pode ser definida como a tendência, supostamente característi­ca dc todo o universo, no sentido de sintetizar unidades em totalidadesorganizadas; essas totalidades constituem novas unidades para novas sín-

10. Cf. I. A. Richards, Die Melapher (p. 31-52) e M. Black, Die Metapher(p. 59-79), in A. Haverkamp (erg.), Theor/e der Metapher, Darmsladt,Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983.

198

b' . 'dade específicall . A corrente holísticatese:,;:~~~::j~~:Z:~~l~:'::nômenos.A teoria do :onheci~ent~e a

~~ê~cia devem fazer c~rresponder~r;~~~:~~~~~~:~:~~::~:C:d~~~~~~preexistentes, buscan o sem~~e u anto ente leno, é tido

viamente, o ap~:to~~g~~:~t;~s~~t~~~:~i:~:parte a tr:liç.ão. platô-

~~:~a~~s~tt::~cac:m suas diversas formas de ontologia essenctahsta..

Mais modesta é a tendência heurislica, palavr~.~o~ ~,~~~;:~::~;

grega que a interhje~çãO hed~:e~~~~~ov:;~:~u::~:an~~:'l~~ontand~Menos comum oJe em , h ' t' ode

' I XVII Em seu sentido moderno, a eUrls tca ppelo menos ao secu o . . ope-ser definida como aquela série de conceitos e procedimentos q~e cOpesar

. lação do homem com seu melO, aram de alguma maneIra pa~a ~ ~e do conhecimentos adequadosdo caráter conjetural e prOVI~Orl?, fomecen t são de verdade definiti­ainda que sem fundamentaçao rigorosa ~u pr~ en te'a Iin-

12 A ui o homem é visto como ser bIOlogIcamente caren , cUJva . q ., " Iidade" (a qual nada tem que ver com res) com queguagem é a untca rea

pode lidar. . b aNotem-se os dois lados já presentes em Kant: mUlto. em ora s~

holísticos a heuristica é enfatIzada na dls­C:ril~ca apres~~~:~~::o:::~:nsivos e c~nceitos heurísticos (oslensi~e e

~;~;~I~;:;;: Begriffe): ,as. idéias (pSiColÓ~icasr:.~~:::;~~~O~jt:t~l~;~~cas) são conce;tos~:~~~~:s:~~~~r%~~~~sregulativos que possibj]~-correspo~ddad'e al~stemática diante do caráter multifacetado do conhecl­tamaumaesmento empírico"l3. ,

"A deficiência do homem em relação a disposições especIficas para

II V J Riller e K. GrUnder (orgs.), H/storisehes Warterbueh der :hil~o~h/e:. .. h b & Co v 3 P 1167-8' e S. Brewer, FIgurmg t e aw.

Basel-Stullgart, Sc ~a e. ., .. 'I . I 'nterp'retation The Yale Law Sehoolholism and tropologlcal mference 10 ega 1 ,

I 97 823 e s Yale University Press, 1987.lourna, v. ,p. ., b h d Ph'/osophie

J R' r e K. GrUnder (ergs.), H/stor/sehes Warter ue er I. '

. 12.. tlle bém H.-P. Ballmer, Philosophie der mensehllehen Dmge-Clt., p. 1115.-2~. ~ r rk BernlMUnchen, Francke Verlag, 1981, p. 10-6.Die europalsc e ora lS I • . ed 1( ) Werkausgabe

13. I. Kant, Kritik der reinen Vernunft, W. Welsch eAo:~i '(B 700)._ /n zwalfBlinde, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1977, v. 3, p.

199

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uma conduta reativa diante da realidade, ou seja, sua pobreza de instin­tos, é o ponto de partida para a questão antropológica central - comoeste ser, apesar de sua indisposição biológica, pode existir. A respostapode ser exposta na fórmula: na medida em que ele não se relacionadiretamente com esta realidade. A relação humana com a realidade éindireta, complexa, retardada (verzogert), seletiva e sobretudo metafóri­ca"!4. Se o homem constrói o seu mundo separado da natureza, os obje­tos que Orodeiam são exclusivamente seus e se constituem em intermediá­rios entre ele e aquele mundo natural, fazendo com que a relaçãognoseológica e mesmo vital entre o homem e o universo seja tambémindireta, intermediada pela linguagem. O meio ambiente não é mais tidocomo dado mas sim comoproduzido pelo sistema lingUístico de maneiraexclusivamente auto-referente. Mesmo no campo das chamadas ciênciasnaturais, a "nova tisica quântica" chega a colocar explicitamente a "ques­tão da consciência humana e seu possível papel na formação da realidadefisica"ls.

Trazendo essa abordagem para o nosso tema, podemos fazer equi­valer a versão antropológica do homem como um ser pleno, capaz deapreensão e transmissão de postulados verdadeiros sobre o universo emque está inserido, à possibilidade de uma ontologia jurídica; do outrolado, a visão do homem como ser carente elimina essa pretensão. Mesmoque a tese aqui denominada retórica tenha por escopo toda a teoria doconhecimento e se estenda assim à ciência, não é nossa intenção levar tãolonge a discussão. Vamo-nos contentar em testar sua aplicabil idade, ob­servando que as duas alternativas não são tão opostas e mutuamentecontraditórias como as faz parecer Blumenberg. A questão não é tanto arecusa ou a defesa de uma ontologia esseneialista, mas sobretudo a fixa­ção dos limites na descrição e na teorização do mundo circundante.

A história das idéias sobre a relação do homem com seu meio, achamada teoria do conhecimento, constitui-se referencial seguro paracompreensão de muitos dos dilemas e antinomias na filosofia européia doocidente. E, como sugere a hipótese acima, essa gnoseologia parte da

14. H. Slumenberg, Antropologische Annliherung an die Aktualitlit derRhetorik, in Wirklichkeiten in denen wir leben, cit., p. 115.

15. D.Zohar, o ser quântico, São Paulo, Ed. Sesl Seller, 1990, p. 41 epassim.

200

alternativa antropológica entre um s:rhum:~~~I~~~~~~~:~~t~~~:~~ente, ou um ser humano carente, ens!mesm

petente. d' 1 queGehlen arte de uma suposição adequada. A mlta-se, c ar~, .

- ~ f ificada' não há pensamento exclusivamente essencl3hstasua sep~ç~oe Ip . ' não há teoria exclusivamente retórica, semou ontologlco, assIm como. . enos "o homem fala" tem de ser

u~a ba~~:~~~ó~~~~d::~:l:~~:i~~~~curso).Mas a tipificação ideal d~untvers , . d r Max Weber, ajuda a esclarecer e eGehl:n, no met~~~:~a~;~~in~:s.Como critério, possibilita ver as i~­para IS~O q.ue se d tentativa de graduar o conhecimento atravescongruencl3s que surgem a , ' d'de uma adequação a objetos externos ao proprlo tscurso. .

I 'tude o título do escrito de Kant, publtcado porPara a crença na p em, _ To d Metafisica

Hartknoch (Riga, 1783), é expressivo: prolega;.~;;:aaA~ ~rma Kant:sa vir a se apresentar como le .

Futura que pos d' r que o leitor desses Prolegômenos,"Do mesmo modo, atrevo-me: p~o!~eenas duvidará da ciência que pos-

ca~az~e pensa~~r~:;::::fi~aráe~ conseqUência totalmente conven­SUIU ate agora, __ . -o poderia absolutamente ter

'd d e algo assim como uma ClenCla na .Cl o e qu ,_.' formuladas e nas quais se baseia suaexistido sem que as eXlg:ncl~saqUI . : ora nunca aconteceu,

sibilidade sejam saltsfeltas, Já que ISSO ate ag _. .pos , fi' "16 A confiança na razao ImpreSSIOna,

- h' . d qualquer meta Istca .nao a am a . d d filósofo que talvez involuntariamente, tantoprincipalmente partm o o I , fi dcontribuiu para o desprestígio da ontologia na filoso la mo erna.

Influenciado por um lado mais "descrente" da ~bra d~ Kant e tam-

bé~'?bsel~~~:~a~~~tr~~:~~:~~t:~~~~~:~:;i:~:~~::~;:~:::d~a a u a. h ma vez um astro em que ant­por incontáveis s~stemas soIares'nh°u~eu to Foio minuto mais soberbomais inteligentes mventararn o co ec1Jl~en.., minuto

. mentiroso da 'história universal: fOi porem apenas um .'e maIs 1 da natureza o astro congelou-se e os anl­Depois de unS poucos fô egos r" E ontinua' "É notável que o inte-rnais inteligentes tiveram de morre ,c '

mena zu einer jeden künftigen Metaphysik. die a.~s16. I. Kant, Pro/ego.. W· h deI (org.), Werkausgabe-inzwo!f

Wissenschaft wirdauftreten Jronnen, W. elSC e

Blinde, v. 5, cil., p, A6-A7.201

I

II

I

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~ecto chegu~ a isto, logo ele, que foi concedido aos mais infelizes delica-o~ e pereclvelS dos seres apenas como meio auxiliar '

eXIstir um minuto "]7 . para que possam

Do P?~to de vista gnoseológico, como colocam os ade tos dodeconstruttvlsmo, na esteira de Nietzsche 18 os filósofios ont I'? .põe . . . ' o oglcos lm-

m seus slstema~ supnmmdo ou simplesmente ignorando os efeitos

~:~;~:~a~~r~sda hnguagem. A ~econstrução de um texto filosófico querdent I_~l ela - segundo Dernda a principal ilusão da metafisica oci-

h a e que a razão pode, de alguma maneira, dispensar a linguagem:~ e~ a uma v_erdade ou método puro e autojustificável, ou estabelecer

parametro nao-auto-referente, externo ao próprio discursol9.

Essa oposição entre as duas correntes corretamente rad' dBlumenberg n t d' ' Ica a porprópria filoso°rt~n ~ e partIda antropológico, é tão antiga quanto a

,. Ia, e a se apresenta como uma discussão teórica:~~eol0f.~ca,ma.s sua projeção prática (moral, jurídica, política) é err:tendê~:::;. o, maIs relevante. Dai a permanência histórica de amb~s as

2. Limites de uma ontologia jurídica

O pr.oble~a de uma ontologiajurídica desdobra-se em uma série deques.tões mterhgadas, que podem ser didaticamente distínguidas' I) lnvesttgar se se pode falar' de um fenômeno social específico' a qu~

17. F. Nietzsche, Über Wahrheit und LO e . fi .Nachgelassene Schriflen 1870-1873, G. Col~_~m ~u e:mo~ahschen Sinne, inStudlenausgabe _ infti'!fzehn Bande (e 15 ) '. onlman (org.), Knllschev.l,p.873-90. m v. , Berhn, WaiterdeGruyter, 1988,

18. Cf. P. de Man, Nietzsche's theo ofrh' .Bruges, Spring 1974, p. 33 e s. ry etorIe, Sympo."um, v. 28, n. I,

19. Cf. C. Norris, Deconstruction' lhe d .Methuen 1982 P 18 9 bé '. ory an pract.ce, London-New York1983 25 ,. ~ ,etam mJ.Dernda,Lavoixet/ephénomene Paris PUF'

Paris: ~alil:e:' ~:9~s~:s:i~o ~~~~~~::::a universida~e, D~ drait à la~hilos~phie:discurso autores co~o A A~' N M e~ um~ raCIOnalIdade como critério domuitos outros Cf N MacC' ·lO

k, Z· ae omuck ou R. Dreier, entre muitos e

. " orrnlc e Bankowsk' ( ) E {"revolution. Essays in legal andsocial~h·l h I °brgs

., n 19h1ment, rights andPress, 1989. • osop !y, A erdeen, Aberdeen University

202

corresponderia a denominação "direito"; 2) Examinar se, sob essa deno­minação, existe um fenômeno permanente que, apesar de suas variaçõesno tempo e no espaço, guarda características comuns e generalizadas, asquais podem ser ditas sempre presentes; 3) Em terceiro lugar, partindo doprincípio de que se responda afirmativamente à primeira questão, obser­var se esses caracteres ônticos podem ser apreendidos pelo sujeitocognoscente dentro de uma ontologia, fornecendo assim as bases sobreque se poderia procurar construir um conhecimento científico verdadei­ro; 4) Verificar se esses caracteres ônticos são meramente formais ou seprecisam apresentar um conteúdo ético mais ou menos definido para quese possa definir o fenômeno observado comojurídico; 5) Em uma aporiajá logicamente posterior, tentar detenn inar quais os critérios para separarO jurídico de fenômenos sociais outros que aparentemente se lhe asseme­lham; 6) Uma vez situado o direito, apontar os critérios de separação

entre lícito e ilícito.

A atitude gnoseológica das ontologiasjurídicas responde afirmati­

vamente a essas questões.

A postura gnoseológica da retórica, ainda que procure enunciadosde caráter geral sobre o direito, recusa qualquer assertiva sobre o conteú­do desse objeto; o direito seria uma atitude lingüistica e não um objetodotado desta ou daquela característica. A retóricajuridica separa entãoseu objeto, a prudentia oufronesis, o tipo de relação intersubjetiva quecaracteriza O direito, da scientia ou episteme (atitude cientifica), assim

como da sapientia ou sofia (atitude filosófico-ontológica).

Distinguindo-se, inicialmente, da ciência, a retórica juridica obser­va que afronesis situa-se no âmbito da doxa, isto é, diz respeito a umpensamento opinativo, enquanto a episteme tem por base a garantia deresultados ou ao menos sua previsibilidade; a primeira justifica e argu­menta, a segunda verifica e demonstra; o direito como fronesis é cons­trangido a fundamentar seus postulados, a ciência é obrigada a provar osseus; a atitude prescritiva diante do objeto jurídico é dogmática e se ba­seia na verossimilhança, a atitude cientifica é hipotética e se dirige pelaprobabilidade; o direito não busca o conhecimento, como o faz a ciência,

203

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mas sim o reconhecimento c a credibilidade. E assim por diante20.Deixando dc lado outras possíveis formas tradicionalmente accitas derelacionamento entrc sujeito e objeto, tais como a techne ou a poiesis,pode-se agora tentar confrontar retórica e ontologia essencialista,prudenfia e scienlia.

Os reflexos dessa oposição não se resumem à teoria do conhecimen­to mas aparecem também na axiologia e, é claro, no direito. Enquanto serpleno, o homem pode intuir paràmetros de conduta evidentes que sepa­ram o desejável do indesejável, o lícito do ilícíto; na linha da tradiçãoplatónica, como já visto no segundo capítulo, a questão da descobertadesses parâmetros passa a depender de mera competência no atognoseológico. Por'outro lado, como ser abandonado pelas evidências econdenado a furmular perguntas a que não pode rcsponder, só resta aohomem convencionar seus parâmetros de conduta e ainda se resignar àinstabilidade de tais cunvenções.

Segundo esta última posição, a rctórica, não é o casu falar que alinguagem é a caracteristica específica do homem, mas sim que ela pre­enche umafunção vital, a mais importante: defendê-lo contra uma natu­reza que lhe é estranha, à qual não se adapta e na qual sc vê forçado aviver.

A verdade é o objeto da filosofia essencialista; o consenso é o objetoda filosofia retórica Só que esse consenso signitlcativo é também retórico,não é necessariamente fruto de um acordo real sobre talou tal critério desolução de contlitos, podendo assumir os mais diversos aspectos, inclusi­ve o de ser apenas presumid021 . Tudu o que cstá além ou aquém da evi­dência, ou seja, todo o âmbito das relações humanas pertence à retórica e

20. Cf. O. Ballweg, Rhetorik und Vertrauen, in E. Denninger, M. Hinz, P.Mayer-Tasch, G. Roellecke (orgs.), Kritik und Vertrauen - Festschr~ftjUr PeterSchneider zum 70. Geburtstag, Frankfurt a.M., Anton Hain Verlag, 1990, p. 34.44.Trad. bras.: Retórica analítica e direito, Revista Brasileira de Filosqfia, n. 163,fase, 39, São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia, 1991, p. 175-84.

21. Cf. N. Luhmann, Legitimation durch Verfahren. Frankfurt a.M.,Suhrkamp, 1983, p. 119. Ou Kontlikt und Reeht, in Ausdifferenzierung des Rechts- Beitrage tur Rechtssoziotogie und Rechtstheorie, Frankfurt a.M., Suhrkamp,1981, p. 92-112. Mais radical é a crítica de D. Herzog, Happy s/aves. A critique ofconsent theory, Chicago-London, The University ofChicago Press, 1989.

204

esta constitui assim a moralprovisória que nos orienta na vida, a única

moral possível para um ser carente22 .

Um evento histórico pode ajudar na comparação entre as perspecti­

vas plena e carente propostas: o j~lg.amento de ?alileu ~el.a I~~uisição.Ainterpretação essencialista ontologlca afirmarIa que o JUIZO a Terra é ocentro do sistema" foi substituído pelo juízo "o Sol é o cenlro do sistema"porque osfutos são assim e esta verdade foi de~c~berta. O~ fatos sã~ aítidos como instância externa e superIor aos JUIZOS do discurso. E a

heteroreferência.Uma das interpretações retóricas possíveis, por outro lado, diria

que um juízo substituiu o outro porque mudou o sentido da expre~são

centro do sistema dentro do discurso. Enquanto que, para a Igreja, ocentro era definido a partir do homem, que vive na Terra, para a ciên~ia,

emergente como força política, o centro do sistema passou a ser defi~,dosob outra perspectiva. Modificou-se simplesmente o contexto discurSIvo.Isso porque todo discurso é auto-referente e tudo o que podemos con~e­cer são paluvras, cujo sentido depende de um contexto, este tambem

convencional.Note-se a semelhança com o "lado cético" de Kant, já examinado

supra. Só que Kant ainda está preso a uma ontologia: o homem. estácondenado a perceber o mundo do jeito que percebe, não pode modlfic~r

essas vias de percepção. Daí a ambigüidade da gnoseologia kantiana d,­ante da dicotomia entre antropologias filosóficas plenas e carentes adotadasaqui; daí Kant ter dado origem a teorias tão ~iversas. Para ~~ antropo~~­gias retóricas, diferentemente, o homem :sta condenado a perc~ber omundo através da linguagem, só que esta linguagem pode ser modificadaa seu bel-prazer e ao sabor das circunstâncias.

Isso não significa acabar com a objetividade, entendida, em se,ntidoamplo, como possibilidade de acordo entre pessoas que .se comumcam;apenas, os objetos passam a ser definidos e~ função do dls~ur:o.Galileunão poderia modificar isoladament~o sentido ~a expressao centro dosistema" era necessário que um conjunto orgamzado de homens - qu.ecriam co~senso, mesmo que um consenso meramente retórico - modl-

22. H. Blumenberg, Antropologisehe Annaherung an die Aktualitat derRhetorik, in Wirklichkeiten in denen wir /eben, cit., p. 111-3.

205

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ficasse o contexto lingüístico.

Tentando ir além do "meramente retórico", a fisica quântica tam­bém ressalta, nada obstante, o papel da ação do sujeito cognoscente naformação da realidadeflsica, colocando a observação consciente comocausa dos acontecimentos objetivos23 .

Na mesma linha, e curiosamente sempre recusando o rótulo derelativistas, céticos ou irracionalistas, alguns cientistas das maís diversasáreas vêm procurando demonstrar "a peculiaridade biológica dos fenô­menos cognição e realidade", concluindo, com Vico e Kant, "quejamaislidamos com a realidade em si, mas sempre com as realidades de nossasexperiências''24.

Na corrente oposta, mais otimista e diminuindo o papel do "sujeito"coguoscente diante do "objeto" de conhecimento, está o jusnaturalismocaracterístico da sociobiologia, afirmando que "o comportamento huma­no é, para ser mais preciso, organizado por alguns genes compartilhadospor espécies intimamente relacionadas e por outros exclusivos da espéciehumana", e daí que "a mente será explicada de modo maís preciso comoum epifenômeno da maquinaria de neurónios do cérebro"25. Como se vê,a questão continua atual.

3. Uma questão de grau: inevitabilidade da ontologia

Não são poucos os autores que recusam a ontologia por terem delauma concepção demasiado estreita. Na própria expressão "essencialismo",corolário imposto a toda e qualquer ontologia por seus adversários, pare­ce já haver um sentido pejorativo, associado a um pensamento escolásticoinadequado aos nossos tempos. Isso não é de admirar. Desde a Antígüi­dade se conhece e emprega o artificio retórico através do qual se radicalizao ponto de vista contrário para melhor combatê-lo. Mas a perspectiva de

23. Cf. a descrição do experimento de Irwin Schrõdinger com o gato em D.Zohar, O ser quântico, cit., p. 41-53 e seu conceito de contextualismo na flsica.

24. Cf. S. J. Schrnidt (org.), Der Diskurs des Rodikalen Konslrukrivismus.Frankfurt a.M., Subrkamp, 1990, p. 7 epassim.

25. E. Wilson, Da natureza humana, Silo Paulo, EDUSP, 1981, p. 32-3 e 193.

206

lima filosofia ontológica pode apresentar contornos mais amplos.

A ontologia não deve ser necessariamente identificada com uma/lbjetologia estática, uma teoria de objetos prontos e acabados,ensimesmados e indiferentes. Depois de Kant isso não é mais possível. Apostura retórica está correta ao afirmar que a relação entre o homem e oambiente é intermediada. Acontece que a interação entre outras espéciesde seres vivos e o mundo parece também ser irremediavelmenteintermediada, independentemente da língua e do fato de estarem ou nllobiologicamente vinculados a um ambiente determinad026 . Todo ente vivoque conhecemos possui' um aparato sensitivo - para não dizergnoseológico - através do qual se relaciona com o mundo que o cerca.Esse aparato faz um "corte", limita aquela parte do mundo que aqueleente consegue perceber. É assim com as freqüências sonoras, a visão, osodores, cuja percepção varia enormemente de um ser vivo para outro. Oque "existe" para um é completamente ignorado por outros. Mas isso nãosignifica que qualquer palavra possa ser utilizada em qualquer contexto eque o conhecimento seja inteiramente relativo.

Em outros termos, mesmo a perspectiva da retóricajurídica, inclu­sive em sua versão mais analítica - a qual se abstém de quaisquer afir­mações que tenham por cópula o verbo sere se define como radicalmentenão ontológica-, pressupõe uma ontologia no sentido mais adequadodo termo. A negação da ontologia pela retórica, quando se lamenta inclu­sive a falta de vocabulário adequado para descrever "relações nãoônticas''27 é ela também vítima da aceitação irrefietida do conceito deontologia desenvolvido pela escolástica ou, se quisermos ir mais longe,vítima da tradição platônica e da autoridade de certas passagens contidasna obra de Aristóteles, interpretadas de modo essencialista28

.

Ter uma postura ontológica não implica descrever objetos de con-

26. Cf. D. Krech e R. Crutchfield, Elementos de psicologia, trad. D. e M.Moreira Leite, Silo Paulo, Pioneira, 1973, V. 1, p. 40 e s.

27. Citado por O. Ballweg, Entwurfeiner analytischen Rhetorik, in H. Schanzee J. Kopperschmidt (orgs.), Rhelorik und Philosophie, Manchen, Wilhelm FinkVerlag, 1989, p. 239 e s.

28. G. Mainberger, Rhe/orieG I. Reden mil Vernunft. Aristoteles. Cicera.Auguslinus, Stullgart-Bad Cannstall, FrommannIHolzboog, 1987, p. 166 e s.

207

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teúdo definido para todo o sempre, muito embora esta posição essencialistaseja também ontológica29. Uma ontologia qualquer é logicamente inevi­tável, ela fornece o pressuposto ôntico e lógico de qualquer gnoseologia,pois só a partir de uma ontologia é possível unir uma palavra a outra eafirmar alguma coisa de alguma coisa; só ela constitui o contexto. "Aontologia não é possível, trata-se apenas de um preconceito ingênuo doaparato cognoscitivo do homem"; "O direito se resume a relações de for­ça e dominação, as quais não admitem predicados de certo ou errado,justo ou injusto"; "Nunca se pode dizer com segurança alguma coisasobre alguma coisa"; "O direito não tem conteúdo axiológico definido,ele consiste apenas em um jogo de palavras cujo sentido varia segundo ocontexto em que são empregadas e segundo sua eficácia na obtenção deum comportamento desejado". Tais orações, sempre proferidas sob a in­tenção expressa de negação da ontologia, são, todas elas, tambémontológicas.

A base desta argumentação não é nova, ainda que pareça esquecida:é a já proverbial crítica feita a cínicos, céticos, niilistas, os quais, aodizer, por exemplo, "a verdade é impossível", pretendem expressar umaassertiva "verdadeira". Semelhante é o problema da crença na existênciade Deus: o crente e o ateu partem do mesmo ponto de vista, diz o agnóstico,e são ambos ontologicamente dogmáticos. Está bem, no que concerne áexistência de Deus, o agnóstico não é dogmático. Mas sua posição éontológica - como não poderia deixar de ser - pois abstrair-se de con­siderar a questão equivale a dizer que "o homem não pode afirmar nadasobre a existência ou não de um ser superior que o criou" ou, pelo menos,que "eu não tenho, no momento, condições de fazê-lo". Assertivasontológicas, assertivas que descrevem algo que é.

Esse sentido mais amplo de ontologia não procura diminuir a im­portância da relativização do conceito de verdade que caracteriza a pos­tura retórica e domina parte significativa da teoria do conhecimento emnosso sécul030.

O termo ontologia, partindo de sua origem grega, guarda também o

29. Pela inevitabilidade de um conteúdo definido para o direito pronuncia-seC. Souto, Ciência e ética no direito. Uma alternativa de modernidade, Porto Ale­gre, Fabris, 1992, passim.

30. Cf. a coletânea editada por G. Skirbekk (org.), Wahrheitslheorien. Eine

208

sentido de uma "objetologia", mas não única e exclusivamente; ele abri­ga (anto o significado de uma descrição estática da "essência" de objetosindiferentes ao sujeito cognoscente como também o sentido de uma pro·cura pelo logos eventualmente presente na maneira como se nos apresen­tam e se relacionam esses objetos. Pedindo auxílio à etimologia, vejamoscomo aplicar o método quejáchamamos de "fenomenologia conceitual"31.

Parece que os gregos não dispunham de uma palavra específica paradesignar o ob-jeto, neste sentido de algo posto adiante, ainda que pos­suíssem o termo sub-jeto (hypokeimenon: hypo, sob; keymenon,jazer).Para tanto, para designar os objetos circundantes, lançavam mão de duaspossibilidades: I) O substantivo neutro tó pragma (que gerou "pragmá­tica", por exemplo), que pode ser entendido como algo feito ou comocoisa, guardando um sentido mais estrito e talvez mais de acordo como aconcepção estática da ontologia que os "antiessencialistas" criticam. 2)Ao lado, porém, o grego antigo também utilizava a palavra on, particípiopresente do verbo einai, ser, para designar o que os tradutores denomi·nam ora ente (algo sendo ou aquilo que e'), ora objeto, segundo o con­

text032 .Dessa segunda acepção, mais ampla, parece ter-se originado a nos­

sa palavra ontologia. Com efeito, a partícula to, que nada tem que vercom o artigo neutro tó, mel,1cionado acima, indicajustamente o genitivoque une as palavras on e logos, as quais, por sua vez, formam o termoontologia. Se to é o genitivo do participio presente on, o qual, por suavez, comotodo particípio presente (e a denominação dada pelos gramáticosbem o mostra), indica participação atual no infinitivo do verbo, a tradu-

Auswahl aus den Diskussionen über Wahrheil im 20. Jahrhunderl, Frankfurt a.M.,Suhrkamp, 1989, sobretudo os artigos de G. Skirbekk, Einleitung, p. 8-34; B. Russell,Wahrheit und Falschheit, p. 63-72, R. Camap, Wahrheit und Bewlihrung, p. 89-95;e A. Tarski, Die semantische Konzeption der Wahrheit und die Grundlagen der

Semantik, p. 140-88.31. J. M. Adeodalo, O problema da legitimidade - no raslro do pensamenlo

de Hannah Arendl, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989, p. 93 e s.

32. Cf. W. Gemoll, Griechisch-Deulsches Schul - und Handworlerbuch,MUnchen-Wien, Freytag Verlag, 1965, p. 626, que distingue na palavrapragma umsentido "abstrato" de tratar,proceder. maneira de agir, ao lado dos sentidos "con­cretos" de coisa e de aloJalo (aconlecido).

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ção l~teral d~ ontologi~ seria exatamente o logos do on, o logos daquiloque e, daqUl.lo que esta sendo, daquilo que participa do ser. Pensamos,~or consegumte, que a redução de ontologia a objetologia configura umamterpretação, se não falsa, pelo menos restritiva do termo. Relações eestados n.ão-definitivos para todo o sempre são também ônticos e podemser descritos por uma ontologia.

Que o sentido restrito prevaleceu na filosofia do direito ocidentalparece fora de dúvida. O advérbio grego antas é também construído aP:mi.r de on (~nt~) e já parece denotar algo escondido por trás das apa­renclas. O primeIro texto em que encontramos a palavra é de Antiphon(480?-411? a.C.). O termo é provavelmente um neologismo introduzidono tempo dos sofistas: "Ainda que as aparências deponham contra mimeu efetivamente (antas) não matei o homem"". Com Platão as aparênci~são definitivamente separadas do verdadeiro ser e começa a se formar atradição ocidental, que ainda perdura nos filósofos mais reconhecidospelo menos até a ontologische Dilferenz de Heidegger. Como já disse~mos, porém, o sentido mais amplo, pré-platônico, mantém-se em correnteparalela na história das idéias, aparecendo no pensamento de sofistas,céticos, cínicos, retóricos, nominalistas.

Advogar a inevitabilidade de uma ontologia jurídica e ao mesmotempo recusar o essencialismo não significa aqui aderir a um conteudisnwpolítico-ideológico e passar a ver o problema do conhecimento jurídicosob uma perspectiva prioritariamente pragmática, a partir do argumentode que é desejável defender um conteúdo valorativo essencial e definidopara o direito a fim de evitar que outros lhe coloquem qualquer conteúdo.A ontologia é indiferente a tal sorte de considerações, ela é o pressupostodescriti~odos fe~ômenosque subjazem a toda teorização e a toda argu­mentaçao a respeito do conteúdo que Odireito (efetivo) deve ou não deveter. A importância existencial do conteúdo axiológico do direito funda­mental para o jurista e para o cidadão, não encontra, contudo, gu:u.ida nadescrição ontológica. As duas dimensões não devem ser confundidas: deum lado a descritiva - cujo vetor aponta para o passado, para o efetivoaposteriori-, de outro, a dimensão construtiva (prescritiva) do direito,

. 33.1. Ritter e K. GrUnder (org'.), Historisches Wõrterbuch der Phi/osophie,e.t., v. 6, p. 1204-6.

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realidade infieri sobre a qual posições apriorísticas e ideológicas irãoinfluenciar, na medida em que o conteúdo do direito, também inevitável,é feito pelo homem e pela comunidade a partir dele constituída.

Assim, uma ontologia jurídica é imprescindível, mas os dilemasaxiológicos do direito não podem, no que respeita a seu conteúdo emconstante realização, ser descritos como se os ditos valores fossem asentidades ídeais indiferentes de Hartmann, tão palpáveís à descriçãoontológica quanto anatomias ou análises. Éobjeto da descrição ontológicao fato de que o direito precisa efetivar-se nesta ou naquela direção, étambém parte de tal descrição observar que esta escolha é feita segundoum jogo de interesses. O que não se pode defender é que o conteúdo detais opções obedece a "emanações superíores" e que há uma intuiçãO"correta" e outra "incorreta:' dos "valores" jurídicos. Uma ontologia podetentar mostrar que o homem é um ser movido por impulsos que não seadaptam exatamente ao que os zoólogos denominam instínto e que atéparecem prevalecer sobre OS impulsos instintivos, a depender da situa­ção; pode teorízar sobre a procedência desses móveis da conduta huma­na, pode dizer que o direito é um fenômeno onde eles estão irremediavel­mente presentes. Isso porque os chamados valores jurídicos, embora cri­ados e não descobertos pelo homem, são objetivos em certa medida,dentro de seu contexto significativo. Mas daí a dizer qual sua hierar­quia, qual sua identidade, qual o "certo" e qual o "errado", querendoatribuir a esta ideologia o caráter de descrição ontológica, vai uma grande

distância.É possível estudar, sob o prisma descritivo da ontologia, que, nas

comunidades humanas de que se tem relativo conhecimento histórico,tem lugar um fenômeno normativo cujas regras, quando transgredidas,acarretam a possibilidade de coação que se pode estender até a violênciafísica irresistível; que a coercitivídade distingue o díreito de outras ins­tãncias normativas mas, ao mesmo tempo, não permite distinguir as "nor­masjurídicas" de uma federação de índústrías daquelas de uma organiza­ção críminosa como a máfia; que a aceitação, por uma maioria em prin­cípio mais forte, das normas impostas por uma minoria mais organizada,pode legitimar-se tanto a pllrtir de seu conteúdo - através da persuasãoe da adesão consciente - quanto através da ameaça, do carisma, da

tradição. E assim por diante.

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Na outra direção, postulados que pretendem afirmar que todo podersó é realmentejurídico quando há um bem-estar social generalizado; quesó é justo o direito quando as mulheres são submissas, pois esta é a von­tade de Deus ou é uma lei da natureza; que o indivíduo é ontologicamentedetentor de direitos inalienáveis a que comunidade e Estado se têm decurvar; que a democracia ou a ditadura militar são as únicas formaslegítimas de governo; que a racionalidade é evidente na comunicaçãohumana e pode ser auxiliada por um metacódigo normativ03" entre ou­tras, são assertivas prescritivas que representam tomada de posição ideoló­gica.

A história da filosofia ocidental é pródiga em tentativas no sentidode encontrar uma ponte que una a posturadescritiva da realidade normativaà necessidade existencial que temos de decidir entre este e aquele cami­nho. O pensamento ocidental moderno tem procurado uma maneira defundamentar as decisõesjurídico-políticas de forma tão convincente quantoas proposições empírico-científicas. Racionalidade, verdade,justiça têmembasado essas tentativas, a nosso ver sem sucesso. Ainda que preen­cham uma função vital na eficácia das normas jurídicas, dando-lhes res­paldo ideológico, a tomada·de posição entre opções igualmente possíveise faticamente incompatíveis parece estar sempre presente e afasta, poroposição pelo vértice, a perspectiva da descrição ontológica.

Claro que argumentações, opiniões e o próprio direito têm seu ladoracional, indissociável das formas de comunicação e expressão do serhumano. Mas nada indica que esse lado prevaleça ou que seja o maisdeterminante. O problema é que a razão tem a pretensão de ser compul­sória; a seu emprego nas questões jurídicas subjaz a convicção de que

34. Dentre as várias tentativas de fundamentação racional do direito é expres­siva a de R. Alexy, Theorie der juristischen Argumentation ~ Die Theorie desrationalen Diskurses ais Theorie der juristischen Begründung, Frankfurt a.M.,Suhrkamp, 1973. Também o mais r""ente BegriffundGeltung des Rechls, Freiburg­MUnchen, Alber, 1992. Alexy suaviza, relativiza o conceito mas crê na racionalidadedo procedimento. Mais cautelosamente trabalha J. Habermas, Wahrheitslheorien,in H. Fahrenbach (org.), Wirk/ichkeit und Reflexion, Pfuilingen, 1973, p. 242e s. Cf., também, o primeiro capítulo da terceira parte de J. Habermas.Legitimationsprobleme in Spiitkapitalismus, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1973 (trad.bras. Vamireh Chacon, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980).

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entre dois postulados mutuamente contraditórios só um pode serrigoro­Nnlllente racional. Se a fonte da pretensa racionalidade legitimadora é oconsenso a economia, a norma fundamental hipotética ou outra instân­cia qualq~er, o problema é o mesmo: a ontologia jurídica nã? ~~nseguepenetrar na dimensão "axiológica" do direito, não fornece cnteno~defi­nitivos para a preferência ou maior adequação de uma alternativa deconduta em relação a outra. Nesse ponto, o ceticismo retórico tem toda

urazão".Essa argumentação não é de Kant, mas ele chegou à mesma con~lu­

são ao dizer que do ser não se passa para o dever ser, conforme VIstoanteriormente, ou seja, da verificabilidade de um fato não é possível ex­

trair normas éticas tão verificáveis quanto ele.Porque o direito se acha inserido nas duas dimensões, é comum

confundi-las. Já tornou-se folclore entre os juristas, por exempl.o, o es­panto da platéia em Gõttingen quando Hans Kelsen, ao p.ronuncl~rcon­ferência após a guerra de 1939-1945, afirmou que o regIme nazIsta ~ra

tão 'urídico quanto qualquer outro. Á expectativa axiológica construtivaJ . d . .

dos ouvintes opôs-se uma assertiva escntlva.

4. A construção do direito enquanto ontologia

Acontece que, inclusive em um sentido ontológico, é o direitoconstruído por opções não-neutras que preenchem o a~abo~ço.levant~­do peja descrição. Para~oxalmente, ainda que fUjam a ~lllle~Sa?ontológico-descritiva, sem essas opções não se co?,pleta a re~ltdadeJun­dica. A ética e o direito que nela se insere consIstem precisamente naescolha entre duas ou mais alternativas igualmente possíveis e Illutua­mente excludentes, na fixação de critérios para dirimir conflitos que emgeral já ocorreram e provavelmente voltarão a ocorrer.

A perspectiva antropológica que vê o homem como um ser bi~l?gi­camente carente leva obviamente a uma visão dos problemas pratlcosdiversa daquela advogada pelos diversos tipos de es~encial.isn.'0' Osretóricos têm sido em geral associados a uma idéia negatIva de mdlfere~­ça quanto às questões práticas que afligem ~ h~ma.nidade. Nada maIsinexato. É certo que o ceticismo quanto a uma mstãnCla ex:erna ~u,:, ?ossalegitimar o conhecimento leva também à dúvida quanto a posslblltdade

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de encontrar parâmetros de referência semelhantes para as questões mo­rais,jurídicas, políticas". Defender esta forma de auto-referência do dis­curso prático, nada obstante, não implica subir à torre de marfim. Muitopelo contrário. E certamente não é dos retóricos que provêm a intolerân­cia e quejandos.

Do outro lado, a visão do homem como um ser pleno parece exercermaior atração tanto sobre as teorias filosóficas, no plano teórico, quantosobre as ideologias, no campo prático. O orador cheio de certezas temtido maior audiência do que o orador cheio de dúvidas. O apego à respos­ta, como instrumento discl!rsivo que põe termo às inquietações geradaspela pergunta, parece ser fator importante para a solução de conflitos oua unidade política, o que tem feito da holística a tendência principal e daheurística, a tendência marginal na história da filosofia ocidental. Mas ateoria do direito vem perdendo essas certezas36.

.~ ~azão última para se pretender dar um status, digamos assim,ontologlco a esta ou àquela alternativa de conduta tem, a nosso ver, umabase pragmática. Refere-se à necessidade vítal humana de agir e decidir.Tal necessidade, por ser ôntica, pode tornar-se objeto de descriçãoontológica; a maneira como ela é preenchida e, mais ainda, as instânciasde referência para sua realização, não. O pano de fundo pragmático éfácil de ser entendido por uma verificação muito simples: os argumentosem prol de conteúdos axiológicos definidos revelam-se mais eficazes eprovocam maior adesão, parecem exercer fascinação notável sobre osdestinatários do discurso. Se tais argumentos são expostos sob uma pers­pectiva ôntica, ontologicamente descritos como se sua criação ou suaescolha resultassem de uma descoberta, melhor ainda.

Tomando uma ilustração simples, imagine-se a discussão entre doisoradores sobre um tema de escolha de alternativas conflituosas de condu­ta: por exemplo, sobre o exercício do poder dentro dos hospitais públi­cos. Um deles argumenta, com toda aparente convicção, que a instituciona-

35. J.-F. Lyotard, La condition postmoderne - rapport sar le savoir, p. 17 es. epaSSlm, de~e?de a tese de que, sob inspiração de Platão, as questões de legitimaçãodo poder e leglllmação do saber convergem e estão indissoluvelmente ligadas.

36. Cf. G. Haverkate, GewifJheitsverlaste im jaristischen Denken. Zarpolitischen Fanktion der jaristischen Methode, Berlin, Duncker & Humblot, 1977.

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Ijl,açllo da democracia na administração desses hospitaís tem de ser pre­cedida do voto individual igualitário de todos os seus segmentos, pois que() hospital público atende a todos e, por isso, todos aqueles a ele vincula­dos devem decidir sobre os seus rumos. O outro pondera que a expressão"institucionalização da democracia" não tem um sentido preciso e admiteas mais variadas interpretações; argumenta que nem ele nem seu oponen­te têm uma idéia exata sobre o que significa "democracia" e, mesmo se ativessem, nada lhes garante que esta seria a melhor forma de administrarum hospital do Estado; finalmente, afirma que tem sua própria posiçãomas que não vê argumentos definitivos que a façam parecer melhor oumais eficaz do que qualquer outra. Pode-se supor qual deles provavel­mente trará o auditório a sua opinião.

É certo que o direito se vai constituindo à medida em que as opçõesconflitivas vão sendo decididas. Por isso mesmo, não é possível fixarcritérios gerais que tornem determinadas alternativas preferiveis a outrasporque o direito. é assim ou assado. Daí não se poder afirmar que odireito legítimo pressupõe esta ou aquela forma de governo, este ou aque­le regime econômico, embora se possam descrever os efeitos de determi­nada estratégia política ou econômica para obtenção de legitimação. Issoporque os argumentos jurídicos não se apresentam unicamente comosilogismos mas incluem argumentos estratégicos, eristicos37•

Democracia, competência, despotismo esclarecido, eficiência,busca da felicidade são topoi argumentativos e a persuasão que deleseventualmente pode decorrer constitui, sem sombra de dúvida, uma dasformas do discurso normativo e também um caminho para a teoria dodireito. Mas a realidade jurídica admite também outras formas de comu­nicação: a autoridade, o engodo, a força e mesmo a ausência de discurso- a violência - têm seu papel na decisão dos conflitos3'.

A ação e o posicionamento do homem diante da vidafazem a reali­dade do direito; mas a teoriajurídica em seus diversos matizes, se preten-

37. A eristica constitui uma das formas do discurso, ligada por Platão eAristóteles à argumentação sofistica, talvez por isso sempre aparecendo em sentido"moralmente condenável". Cf., por exemplo. Platão, Eutidemo, 271c. eSofista, 225c,e Aristóteles, Dos argumentos soflSticos, 171b, e Tópica, 159a e 161a.

38. J. M. Adeodato, O problema da legitimidade, cit., p. 201 e s.

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de a objetividade epistemológica, não consegue alcançar uma hierarquiade critérios que determ inem as alternativas, ela não pode sugerir diretri­zes de conduta para futuros conflitos e, muito menos, para todo o sem­pre. Nesse sentido, a ontologia do direito tem de se reduzir a uma descri­ção circunstanciada e a posteriori de opções de conduta. Legitimidade,relações Estado/indivíduo, limites da legislação e inúmeros dos proble­mas mais graves com que sc defronta o jurista, tanto enquanto homemcomo enquanto estudioso do direito, ensejam questões que uma ontologiadescritiva não pode atingir. Aqui a aporia fundamental do direito: a des­crição ontológica não cabe mas o arcabouço que dela resulta precisa ser,e será, preenchido por opções efetivas que, por sua vez, constituirão oque chamamos a real idade jurídica.

Apesar de sua contribuição para uma dcvida ampliação do conccitode ontologia, Nicolai Hartmann confunde a dimensão descritiva - quese refere ao passado - da dimensão construtiva do que denomina "serespiritual" - realidade infieri sobre a qual posições pessoais e ideológi­cas irão influir, na medida em que o direito é feito pelo homem e pelacomunidade a partir dele constituída.

Por outro lado, fazem-se críticas à humildade gnoseológica dos es­tudos descritivos ou a seu caráter insatisfatoriamente cíclico, "maís oumenos pressupondo aquilo que apresentam como resultado"39, pois a pre­tensão de generalidade é crucial para a teoria social, a qual "reclamapara si ... universalidade na apreensão de seu objeto, no sentido de quetrata de todo Osocial"40.

Claro que ficam de fora da descrição ontológica qucstões funda­mentais e irrecusáveis. São questões, insistimos, que não admitempredicados descritivos. O campo do contingente e do variável é, aqui,muito mais vasto e, em certo sentido, mais importante existencialmente.Ele não pode ser deixado de lado. Nada obstante, aqui a teoria jurídicaprecisa se conformar com uma descrição circunstanciada e a posterioride alternativas de conduta quejá foram tomadas. A teoria do direito nãopode sugerir, com base neste ou naquele fundamento ontológico, diretri-

39. N. Luhmann, Machl, Stuttgart, Enke, 1988, p. L

40. N. Luhmann, SoziaJe Sysleme. Grundrift einer allgemeinen Theorie,Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1984, p. 9.

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I.CS de conduta mais verdadeiras ou corretas. "De resto, muitas asserçõesque andam por ai como 'verdades' assentes, no campo da sociologia ouda economia, e até mesmo nO das ciências tidas como 'exatas', não pas­sam de conjeturas inevitáveis, que seria melhor recebê-Ias como tais,mesmo porque são elas que, feitas as contas, compõem o honzonteenglobante da maioria de nossas convicções e atitudes"41.

Note-se que, embora insista a todo momento na unidade do ser,Hartmann só discorre sobre a multiplicidade, sobre as formas sob asquais o ser se apresenta. Nem poderia ser de outra forma, se se entende"o ser" como uma palavra, daí porque não são tão claras as passagenssobre "o ser enquanto tal". Apesar de o dado fenomenológico mostrar amultiplicidade dos entes, Hartmann não fica imune à tradição que tantocritica e também parece ver uma unidade sistemática por trás dos proble­mas, comojá apontamos. Mais ainda, tal unidade não é apenas sistê~icacomo também "coisificada", seguindo a tradição da atitude naturallrre­fletida do homem diante do mundo, sem preocupação com a linguagem.

O "ser enquanto tal" parece mais uma questão gramatical. Comotemia Nietzsche: nunca nos livraremos de Deus porque ainda acredita­mos na gramática42 . Por fornecer as regras do discurso, a gramática as­sume para o conhecimento o papel outrora desempenhado ~or De~s, re­vela as regras da única realidade que podemos perceber, dIZ ?filoso~o.Quer dizer, as perguntas de Hartrnann sobre o ser e seus predIcados saometafóricas não-descritivas de um ponto de vista analítico. De toda ma­neira, os pr~blemassuscitados pelo verbo ser têm pre",:upado ~lólog.os,gramáticos e filósofos. Em português, o problema é amda ennquecldopor termos os verbos ser e estar com sentidos nitidamente separados,

unificados em outras línguas modernas.A oposição entre as duas correntes sobre a referência objetiva (ple­

nitude) ou auto-referência discursiva (carência) do se~h~man~, que podeser um ponto de partida antropológico da filosofia, e tao anlIga quanto

41. Cf. M. Reale, Verdade e conjelura, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983,

p.26.42. F. Nietzsche ("ich fIIrchte, wir werden Gott nicht los, weil wirnoch a.n die

Grammatik glauben...") apud O. Ballweg, Entwurf einer analytische~ Rhetonk, ln

H. Schanze e J. Kopperschmídt (orgs.), Rhelorik und Phi/osophle, Clt., p. 238.

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a própria filosofia; ela se apresenta como uma discussão teórica,gnoseológica, conforme tentamos mostrar neste trabalho, mas sua proje­ção prática (moral,jurídica, política) é, em certo sentido, mais relevante.Daí a permanência histórica de ambas as tendências.

A discussão chamada metafisica da época, como se vê dos argu­mentos expostos, é sobretudo figurativa, se se deconstrói o discurso.Hartmann é muitas vezes até poético; hã frases de efeito nas quais ficadifícil perceber correspondência descritiva ou teorética com algum obje­to, embora se afirme expressamente tal intenção. Como na leitura dequalquer filósofo, como na recepção de qualquer mensagem discursiva,contudo, a compreensão só é possível através da ascese de que falouPlatão, a atitude de querer entender os argumentos, sem estar a todahora procurando contradições e contra-argumentos, ou seja: se o recep­tor não quer compreendê-Ia, a mensagem dificilmente será assimilada e aimprecisão já congênita do discurso impedirá a apreensão do sentido.Mas nem por isso precisamos aceitar o que o filósofo chamou "Ies grandsrécis du monde"43, as narrativas, as histórias, as essências tantas vezesenganadoras com que tranqüilizamos nosso espírito.

43. J.-F. Lyotard, La condition postmoderne, cit., p. 7 e s. epossim.

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O artigo Systematische Darstellung tem tradução para o ital ian.o d~

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O artigo Der philosophische Gedanke und seine Geschichte tem tr~­

dução para o espanhol de Anibal dei Campo: Elpensamzentofiloso­fico y su historia. Montevideo, Claudio Garcia, 1944.

Kleinere Schriften, v. 3: Von Neukantismus zur Ontologie (1958) (póstu­mo). Berlin, Walter de Gruyter, 1958,395 p.

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Page 134: ADEODATO, João Maurício [Filosofia Do Direito. Uma Crítica à Verdade Na Ética e Na Ciência (Através de Um Exame Da Ontologia de Nicolai Hartmann)]

A

AARNIO, Aulis - lO

ADEODATO, João Maurício - In-trodução; I; 2; 9; 10

AFTALJÓN, Eurico-Introdução; I

AGOSTINHO - Introdução

ALEXY, Robert - Introdução; I; 6;7; 10

AQUINO, Tomás de - Introdução; 2

ARENDT, Hannah - I; 2; 6; 9; 10

ARISTÓTELES - Introdução; I; 2;3; 4; 5

AZEVEDO, Juan L1ambias de - 2

8

BALLMER, Hans-Peter- 10

BALLWEG, Ottmar-Introdução; 8; 10

BANKOWSKI, Zenon - 10

BARRETO, Tobias -Introdução; 6

BEVILÁQUA, Clóvis - I

BLACK, Max - 10

BLUMENBERG, Hans - Introdu-ção; 10

BOLLNOW, Otto F. - 9

BORGES, José Souto Maior - 8

BRENTANO, Franz-2

BREWER, Scott - 10

cCAMPO, Anibal dei - 2

CARNAP, Rudolf-IO

COELHO, Luiz Fernando - 8

COHEN, Hermann - I; 4

COPÉRNICO, Nicolau - 1

COSSIO, Carlos - Introdução; 2; 8; 9

CRUTCHFIELD, Richard - I

CZERNA, Renato - Introdução; I; 2

oDE MAN, Paul -Introdução; 10

DEL VECCHlO, Giorgio - I

DERRlDA,Jacques-lntrodução;2; 10

DESCARTES, René - 2; 9

DlLTHEY, Wilhelm-3

DREJER, Ralf - 10

DWüRKIN, Ronald - I

241

Page 135: ADEODATO, João Maurício [Filosofia Do Direito. Uma Crítica à Verdade Na Ética e Na Ciência (Através de Um Exame Da Ontologia de Nicolai Hartmann)]

E

ENGELS, Friedrich - Introdução

ESTIÚ, Emílio - 2

F

FERRAZ JúNIOR, Tércio - Intro­dução; I; 4; 8; !O

FICHTE, Johann Gottlieb - I; 2; 3; 4

FREGE, Gottlob - 10

G

GADAMER, Hans - 8

GALILEI, Galileu - I; 10

GARCÍA MÁYNEZ, Eduardo - In-trodução; 2; 7

GEHLEN, Arnold - 10

GEMOLL, Wilhelm - 10

GÉNY, François - Introdução

GORGIAS DE LANTlNOI - 10

GRÜNDER, Karlfried - 10

GUGGENBERGER, AIois - 8

GURVITCH, Georges - 3

H

HABA, Enrique - 6

HABERMAS, Jürgen -Introdução;1;3;6; !O

HAECKEL, Ernst - 6

HAESAERT, Jean - 2; 4

242

HARE, R. M. - 7

HARTMANN, Nicolai -Introdução;I; 2; 3; 4; 5; 6; 7; 8; 9; !O

HAVERKATE, Gorg-lO

HEGEL, Georg Friedrich - Introdu­ção; I; 2; 5; 7; 8; 9

HEIDEGGER, Martin - Introdução;I; 2; 10

HENKEL, Heinrich - Introdução; 7

HERÁCLITO DE ÉFESO - 3

HERZOG, Don - !O

HOBBES, Thomas - 2

HUME, David - I; 2

HUSSERL, Edmund - Introdução;I; 2; 3; 4; 5; 8; !O

J

JAMES, Helen - 2

JHERING, Rudolfvon - Introdução

K

KALlNOWSKI, Georges - Introdu­ção

KANT, Immanuei - Introdução; I;2; 4; 5; 6; 10

KELSEN, Hans - I; 2; 10

KIERKEGAARD, Soeren - 2

KIRCHMANN, Julius Hermann von- Introdução; 8

KRECH, David - I

KUHN, Helmut - 2; 3

L

LAFER, Celso - Introdução; 10

LANDMANN, M. - 2; 3; 5

LANGE, Friedrich Albert - 1; 6

LASK, Emíl- I; 4; 5

LEGAZ Y LACAMBRA, Luiz - 5

LEIBNIZ, Gottfried - I; 4; 6

LOCKE, John - I

LOPARIC, Zeljko - I

LUGARINI, Leo-2

LUHMANN, Niklas-Introdução; 10

LYOTARD, Jean-François - Intro-

dução; 10

M

MacCORMICK, Neil - 10

MAINBERGER, Gonsalv - lO

MARX, Karl - Introdução; 1; 9

MATURANA, Humberto-I

MEINONG, Alexius - 2

MOHANTY, J. N. - 2; 7

MONTAIGNE, Michel de - 8

N

NATORP, Paul - I; 4

NEVES, Marcelo - Introdução

NEWTON, Isaac - I

NIETZSCHE, Friedrich - 2; 10

NOIRÉ, Ludwig - 6

NORRIS, Christopher - 10

o

OLANO, Miguel G. - I

OLIVEIRA, Luciano - Introdução

OLLIG, Hans-Ludwig - I

ORTEGA Y GASSET, José - I; 6

p

PEREIRA, Aloysio - 2

PERELMAN, Chaim - I

PESSANHA, José Américo - 2

PINEDA, Benigno Mantilla - Intro-

dução; 7

PITÁGORAS - I; 2

PLATÃO - I; 2; 5; 6; 7; lO

PONTES DE MIRANDA, FranciscoCavaleanti - 4

PUFENDORF, Samuel- 8

R

RADBRUCH, Gustav - 1

REALE, Miguel - Introdução; I; 2;3; 4; 6; 7; 8; 9; lO

RICHARDS, Ivor- 10

RICKERT, Heinrich - I

RIEHL, Alois - 1

RITTER, Joachim - 10

ROMERO, Silvio - 6

ROSENFELD, Anatol-lntrodução; 2

243

iS

Page 136: ADEODATO, João Maurício [Filosofia Do Direito. Uma Crítica à Verdade Na Ética e Na Ciência (Através de Um Exame Da Ontologia de Nicolai Hartmann)]