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As Dinâmicas Culturais em Adeodato Barreto Patrícia Maia de Azevedo Carvalho Marmelada Setembro de 2015 Dissertação de Mestrado em Ensino de Português como Língua Segunda e Estrangeira Patrícia Marmelada, As Dinâmicas Culturais em Adeodato Barreto, 2015 -

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As Dinâmicas Culturais em Adeodato Barreto

Patrícia Maia de Azevedo Carvalho Marmelada

Setembro de 2015

Dissertação de Mestrado em Ensino de Português como Língua Segunda e

Estrangeira

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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do

grau de Mestre em Ensino do Português como Língua Segunda e Estrangeira, realizada

sob a orientação científica da Professora Doutora Maria do Rosário Pericão da Costa

Pimentel.

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i

AGRADECIMENTOS

Queria deixar expresso o meu agradecimento às pessoas que me apoiaram nos vários

passos da elaboração desta dissertação.

Em primeiro lugar, à minha orientadora, a Professora Doutora Maria do Rosário Pimentel,

pela forma como me aconselhou nas várias fases deste caminho, nas opções a fazer, na

desmontagem das dúvidas e na estruturação global da tese

À Professora Doutora Sandra Lobo, pelo interesse manifestado por esta dissertação,

nomeadamente, na indicação e na disponibilização de artigos e obras científicas alusivas

ao tema.

À distância de um clique, por via eletrónica, foi tocante o interesse manifestado pelo

Professor Doutor Paul Melo e Castro da Universidade de Leeds e pelo Professor Doutor

Everton V. Machado da Universidade de Lisboa, que me deram ideias e sugestões,

contacto com investigadores da temática em causa, disponibilização de artigos e

indicação de bibliografia.

Ao Óscar Figueiredo, pela ajuda nos problemas informáticos.

Aos meus primos Marco Arriaga, Susana Arriaga e Luís Varela, pela sua valiosa ajuda.

Ao João Calado, pelas suas palavras encorajadoras que tanto me inspiraram e motivaram.

Por fim, mas não por último, queria agradecer de uma forma muito especial aos meus pais

pelo apoio incondicional desde sempre.

A todos, um muito obrigada!

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AS DINÂMICAS CULTURAIS EM ADEODATO BARRETO

Patrícia Maia de Azevedo Carvalho Marmelada

RESUMO

Este estudo centra-se em Adeodato Barreto, permitindo uma reflexão, a partir da

abordagem da sua circunstância, sobre os quinhentos anos de permanência de Portugal

em Goa, sobre as características do colonialismo português, da influência da Igreja

Católica e da sua relação com o Hinduísmo, através das quais se procura perceber as

peculiaridades da goanidade enquanto identidade goesa.

As complexidades da sociedade goesa revelam-se na sua literatura, que evolui de

uma fase em que os autores são nativos goeses criados em meio católico e português,

centrada numa temática religiosa católica para, na transição do século XIX para o século

XX, aparecerem autores laicos que se centram nos problemas reais da sociedade goesa.

Nesta altura, surgem personalidades como Mahatma Gandhi, Rabindranath Tagore e

Sarojini Naidu que perfilham as teses do indianismo e da Independência da Índia,

preocupações que se refletem também na sociedade goesa.

É neste contexto que o estudo procura compreender a personalidade complexa de

Adeodato Barreto, na sua matriz cristã e hindu, onde o Ocidente e o Oriente se

interpenetram. Foi um importante cultor da literatura goesa em língua portuguesa, na

poética e na ensaística, grande divulgador da civilização Hindu em Portugal, onde

desenvolveu relações epistolares com Rabindranath Tagore, Romain Rolland e Sylvain

Lévi, ao mesmo tempo que desenvolve, em Coimbra e em Aljustrel, um intenso trabalho

social e humanitário.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura indo-portuguesa, Goa, identidade goesa, Hinduísmo,

Cristianismo, Índia

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CUTURAL DYNAMICS IN ADEODATO BARRETO

Patrícia Maia de Azevedo Carvalho Marmelada

ABSTRACT

This research focuses on Adeodato Barreto, allowing a reflection, through the

approach of his circumstance, about the five hundred years of Portuguese administration

in Goa, the characteristics of Portuguese colonialism, the influence of the Catholic Church

and their relationship with Hinduism, through which it demands to grasp the peculiarities

of goanity as the Goan identity.

The complexities of the Goan society are depicted in their literature, evolving

from a phase in which authors are native Goans raised within Catholic and Portuguese

settings, focused on a Catholic religious theme, to the transition from the 19th to the 20th

century, when the works of secular authors focusing on the real problems of the Goan

society come to light. At this time, personalities such as Mahatma Gandhi, Rabindranath

Tagore and Sarojini Naidu adopt the theses of Indianism and the Independence of India,

concerns also reflected within the Goan society.

It is within this context that this research seeks to understand the complexity of

Adeodato Barreto’s personality, in his Christian and Hindu matrix, where the West and

the East interpenetrate. He was a major promoter, not only of Goan literature in

Portuguese language, both in the fields of poetry and essay, but also of the Hindu

Civilization in Portugal, where he established epistolary relationships with Rabindranath

Tagore, Romain Rolland and Sylvain Lévi. Simultaneously Barreto managed to

accomplish an intense social and humanitarian work in Coimbra and Aljustrel.

KEYWORDS: Indo-Portuguese literature, Goa, Goan identity, Hinduism, Christianity,

India

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iv

Índice

RESUMO ......................................................................................................................... ii

ABSTRACT ................................................................................................................... iii

Índice .............................................................................................................................. iv

Introdução ....................................................................................................................... 7

CAPÍTULO I ................................................................................................................ 10

I.1. ASPETOS BIOGRÁFICOS E INTERVENÇÃO SOCIOCULTURAL E

HUMANITÁRIA ........................................................................................................ 10

CAPÍTULO II ............................................................................................................... 14

II.1. ADEODATO BARRETO E AS INFLUÊNCIAS HISTÓRICAS E

RELIGIOSAS. A GOANIDADE. .............................................................................. 14

II.2. A GOANIDADE ................................................................................................. 26

CAPÍTULO III ............................................................................................................. 33

III.1. ADEODATO BARRETO E A GERAÇÃO INDIANISTA E NACIONALISTA

GOESA ....................................................................................................................... 33

III.2. INDIANISMO ................................................................................................... 35

III.3. LÍDERES E ACONTECIMENTOS POLÍTICOS ............................................ 38

CAPÍTULO IV .............................................................................................................. 43

IV.I. ADEODATO BARRETO E A LITERATURA INDO-PORTUGUESA. O

CONCANIM E A QUESTÃO LINGUÍSTICA ......................................................... 43

IV.2. DEFINIÇÃO E SISTEMATIZAÇÃO DA LITERATURA INDO-

PORTUGUESA .......................................................................................................... 44

IV.3. FUNDAMENTOS IDEOLÓGICOS E CARACTERIZAÇÃO DA

LITERATURA INDO-PORTUGUESA ..................................................................... 46

IV.4. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E LITERÁRIO DA LITERATURA

INDO-PORTUGUESA ............................................................................................... 48

IV.5. A LITERATURA INDO-PORTUGUESA – UMA MORTE ANUNCIADA. A

REVISITAÇÃO DOS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS E DOS ESTUDOS DA

SUBALTERNIDADE. ............................................................................................... 51

IV.6. O CONCANIM E A QUESTÃO LINGUÍSTICA ............................................ 55

CAPÍTULO V. ADEODATO BARRETO E A DINÂMICA CULTURAL

OCIDENTE/ORIENTE NA SUA OBRA LITERÁRIA ........................................... 58

V.I. O LIVRO DA VIDA (CÂNTICOS INDIANOS) - POESIA .............................. 58

V.II. A CIVILIZAÇÃO HINDU - ENSAIOS ............................................................ 67

Conclusão ...................................................................................................................... 91

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v

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 96

ANEXOS ..................................................................................................................... 100

ANEXO I – “Árvores do Alentejo” de Florbela Espanca......................................... 100

ANEXO II – Carta de Rabindranath Tagore, sem data, para Adeodato Barreto ...... 101

ANEXO III – Carta de Sylvain Lévi de 6 Maio 1928 para Adeodato Barreto ......... 102

ANEXO IV – Fotografia de Adeodato Barreto ........................................................ 103

ANEXO V – Homenagem póstuma publicada no jornal “Filhos de Aljustrel” ....... 104

ANEXO VI – Notícia da morte de A. Barreto no Jornal República ......................... 105

ANEXO VII – Notícia da morte de Adeodato em Esperanto ................................... 106

ANEXO VIII – “O génesis da mulher” .................................................................... 107

ANEXO IX – Poema “A Casta” de Sarvajna ........................................................... 108

ANEXO X – Poema “Apoteose” .............................................................................. 111

ANEXO XI – Poema “Chandrîm” de Vimala Devi ................................................. 121

ANEXO XII – Poema de A. Barreto “As Azinheiras” ............................................. 123

ANEXO XIII – Poema de A. Barreto “Fala Ishvara” ............................................... 124

ANEXO XIV – Poema de A. Barreto “Jesus de Nazareth” ...................................... 127

ANEXO XV – Poema de A. Barreto “Natal Cristão” .............................................. 131

ANEXO XVI – Poema de A. Barreto “Redenção” .................................................. 134

ANEXO XVII – Poema de A. Barreto “Sivaji” ........................................................ 141

ANEXO XVIII – Shiva Nataraja .............................................................................. 143

ANEXO XIX – Poema “Ventania”........................................................................... 144

ANEXO XX – Poema “Amanhecer” ........................................................................ 145

ANEXO XXI – Poema “Tragédia dos que partem” ................................................. 146

ANEXO XXII – Poema “O princípio” ..................................................................... 147

ANEXO XXIII – Poema “O fim” ............................................................................. 148

ANEXO XXIV – Poema “O avião” ......................................................................... 149

ANEXO XXV – Poema “Cântico a Súria” ............................................................... 150

ANEXO XXVI – Poema “Canção de Bhaul” ........................................................... 151

ANEXO XXVII – Poema “O ocaso do século” ....................................................... 152

ANEXO XXIII – Poema “Bekaryanc” ..................................................................... 153

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Introdução

A presente dissertação de Mestrado, As Dinâmicas Culturais em Adeodato

Barreto, resulta do nosso interesse pela temática literária e pela temática multicultural,

neste caso concreto, em Goa, palco de relações entre o Cristianismo e o Hinduísmo e

entre Portugal e a Índia.

O padre católico José Tolentino Mendonça refere que «Nós portugueses temos

uma relação histórica de encontro e desencontro com a Índia e o hinduísmo, e isso prova

bem como só temos a ganhar em conhecer melhor, sem preconceitos, a verdade uns dos

outros.»1

Pôs-se-nos, assim, a questão da escolha de um escritor indo-português que nos

permitisse abordar e estudar esta problemática. Se Manoharrai Sardessai identifica

centenas de escritores indo-portugueses em milhares de obras escritas em catorze

línguas2, Vimala Devi e Manuel de Seabra possibilitaram-nos a escolha de Adeodato

Barreto, após consulta do seu incontornável livro A Literatura Indo-Portuguesa.3

Desta forma, Adeodato Barreto pareceu-nos conjugar os supracitados campos de

interesse, ao ser-nos apresentado como a voz de dois mundos, como o “produto” de dois

mundos complexos com características aparentemente inconciliáveis: um, o Ocidente,

Portugal e o Cristianismo, o outro, o Oriente, a Índia e o Hinduísmo, que se encontram e

interagem em Goa durante quase cinco séculos.

Propusemo-nos, assim, conhecer o autor nos seus múltiplos aspetos: o Homem, a

Obra e a Época. Quem foi Adeodato Barreto, como foi a sua vida e a época histórica em

que viveu, quais as personalidades que o influenciaram e com quem contactou, de modo

a perceber, em última análise, a contextualização da sua obra, suas motivações e

objetivos.

Neste sentido, estruturámos a dissertação centrando-a na personalidade de

Adeodato Barreto, começando por referir os aspetos biográficos, nomeadamente, a sua

estada em Portugal enquanto estudante em Coimbra e o exercício da sua prática

1 MENDONÇA, José Tolentino – Prefácio ao volume Hinduísmo. In SMITH, Huston - A essência das

religiões. Lisboa: Lua de Papel, 2005, p. 9. 2 SARDESSAI, Manohar - The three dimensions. Indian Literature. New Delhi. Vol. 35, (1992), p. 130-

137. 3 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de – A literatura indo-portuguesa. Lisboa: Junta de Investigações

do Ultramar, 1971.

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profissional no campo do Notariado, dando particular relevo à sua intensa intervenção

cultural, social, humanitária e politica.

Para compreender a totalidade da personalidade de Adeodato Barreto, tivemos de

abordar a sua circunstância, caracterizando-a do ponto de vista geográfico, histórico-

cultural e ideológico-político. Referimo-nos ao conceito eu sou eu e a minha

circunstância de Ortega y Gasset, dos seus estudos sobre Ontologia do Homem, para

quem o eu está estruturalmente aberto à sua circunstância enquanto realidade que o

circunda, realidade que é distinta do eu, mas que, ao mesmo tempo, é inseparável dele.

Assim, procurámos caracterizar Goa enquanto praça do Império Colonial Português, os

seus aspetos históricos e culturais, suas relações com a metrópole e a influência da Igreja

Católica, onde avulta a questão linguística, particularmente, a do concanim e o

aparecimento, apogeu e declínio da literatura indo-portuguesa.

A época histórica em que o autor vive é caracterizada por um intenso dinamismo

social, ideológico e político. Adeodato Barreto é um dos protagonistas da geração de 1920

que agitou uma Goa, até aí, tranquila, portuguesa e cristã, à sombra de uma aparente

harmonia entre Igrejas e Pagodes. O ideário democrático da República, implantada em

Portugal, em 1910, vem a permitir uma abertura política no território que vai ser muito

influenciada pelas ideias independentistas da Índia Britânica.

A intersecção destes dois níveis de análise, a personalidade e a circunstância de

Adeodato Barreto, permitiu-nos compreender melhor o autor no modo como assume as

teses do indianismo e do nacionalismo goês e como se relaciona com personalidades

como Rabindranath Tagore, Romain Rolland e Sylvain Lévi.

Por fim, debruçámo-nos sobre a sua obra literária, nomeadamente, a poética,

consubstanciada no Livro da Vida - Cânticos Indianos, onde o Ocidente e o Oriente se

cruzam, e a sua obra ensaística, Civilização Hindu4 onde, de um modo apaixonado,

procura dar ao mundo uma outra imagem da Índia.

Este estudo, centrado em Adeodato Barreto, permitiu-nos compreender o estado

da arte da literatura indo-portuguesa, sua importância e perspetivas futuras, assim como

as características da goanidade e os vestígios da portugalidade, heranças da presença de

Portugal em Goa durante quase cinco séculos.

4 BARRETO, Adeodato – Civilização Hindu seguido de O livro da vida – Cânticos indianos. Lisboa:

Hugin, 2000.

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Para a preparação da Dissertação, deslocámo-nos a Aljustrel na procura de

vestígios da sua passagem, permanência e intervenção social feita em prol dos mineiros

e menos favorecidos. De facto, Aljustrel não esqueceu esta personalidade singular. Uma

das principais ruas, onde está a Câmara Municipal, tem o seu nome. Na Internet,

encontram-se dois sites a divulgar as comemorações do centenário do seu nascimento,

em Coimbra e em Aljustrel5.

Pesquisámos bibliografia na Biblioteca Nacional e nas bibliotecas da

Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais e Políticas, Universidade

Católica e Casa de Goa.

Pesquisámos, igualmente, na Internet, através da qual tivemos a possibilidade de

estabelecer contato com três investigadores sobre a temática da literatura indo-

portuguesa, o Professor Everton V. Machado da Universidade de São Paulo, o Professor

Paul de Castro da Universidade de Leeds e a Professora Sandra Lobo da Faculdade de

Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que prontamente

responderam às minhas questões.

A existência de uma literatura indo-portuguesa, e o caso particular de Adeodato

Barreto, suportada pela dinâmica da língua portuguesa, ilustra bem, estamos em crer, o

carácter universalista da cultura portuguesa que funcionará sempre como pano de fundo

do ensino do português enquanto língua estrangeira, seja qual for o espaço geográfico

onde esteja a ser trabalhada.

5 Na Biblioteca de Aljustrel encontram-se depositadas as fotocópias de um livro editado em Goa depois da

sua morte, da notícia do seu falecimento no Jornal República, em 1937, da notícia alusiva ao seu

falecimento em esperanto e de um opúsculo publicado em Bruxelas aquando do seu falecimento.

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CAPÍTULO I

I.1. ASPETOS BIOGRÁFICOS E INTERVENÇÃO SOCIOCULTURAL E

HUMANITÁRIA

Júlio Francisco António Adeodato Barreto nasce a 3 de Dezembro de 1905, em

casa dos seus avós maternos, em Loutolime, Margão.

A família Barreto é uma família tradicional goesa, católica onde pontificam vários

antepassados reconhecidos pela vasta cultura no campo da ciência, da cultura e da Igreja,

como, por exemplo, um bisavô e um tio-avô que foram padres e um avô que foi médico.

O pai de Adeodato, Vicente Barreto, era um homem igualmente culto, apaixonado

por educação e sociologia, poliglota, escrevia com muita fluência em português, inglês,

concanim, francês, latim e marata e que elegera o violino para manifestar a sua paixão

pela música.

Vicente Barreto vem a ter uma grande influência na formação humana e cultural

de Adeodato, como este reconhece e louva no livro Testamento Moral que colige. Trata-

se de uma coletânea de fragmentos das cartas de Vicente Barreto, compiladas pelo filho

numa edição privada e destinada exclusivamente a familiares e amigos no primeiro

aniversário do seu falecimento. Católico praticante, mas aberto às outras confissões,

inquieto com a condição social dos outros, mas sem intervenção político-partidária.

Adeodato caracteriza a educação recebida do seguinte modo:

“[…] ministrou-a não com assomos de severidade anacrónica, mas brincando e rindo como

é de uso na pedagogia moderna […] Durante os serões cantava e tocava para os filhos […]

Os próprios princípios morais incutiu-lhos – não à custa de ralhos e palmatoadas – mas

explicando fábulas, contando histórias, lendo o Telémaco ou lendo a Bíblia da Infância ou

o Catecismo Ilustrado […] Politicamente, não militou em partidos, embora mantivesse um

permanente interesse em todas as questões da ordem pública. Socialmente, foi um

inconformado […] Religiosamente, foi um cristão temperando o seu puritanismo espartano

com uma tolerância universal e magnânima pelas crenças e ideias dos outros.”6

Cedo, ainda na escola primária, manifesta os seus primeiros interesses literários,

cultivando o género epistolográfico. Faz os estudos secundários no Liceu Municipal de

6 MIRANDA, Lúcio – Adeodato Barreto (Ensaio bibliográfico e crítico). Bastorá: Editora Rangel, 1940,

p. 3.

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Margão sem grande brilho, revelando um carácter tímido, surpreendendo, porém, com

manifestações pontuais em que exterioriza a inquietude do seu espírito, como, por

exemplo, quando, aos doze anos, escreve os primeiros versos e lança o primeiro jornal

manuscrito e ilustrado com textos da sua lavra. Aos dezassete anos, nas vésperas da sua

vinda para Portugal, faz um poema intitulado O Génesis da Mulher7, onde faz a catarse

de uma desilusão amorosa.

Em 1923, matricula-se em Coimbra, na Faculdade de Direito e, no ano seguinte,

na Faculdade de Letras, tendo escolhido o curso de Histórico-filosóficas, que lhe vem a

dar os instrumentos necessários para manejar as singularidades da dupla vertente das

culturas que o impregnam, a Oriental e a Ocidental.

Lúcio de Miranda, amigo de longa data, descreve-o:

“[…] era magro, mais alto que baixo, trigueiro e desempenado. No seu porte varonil

adivinhava-se a linha estilística de um homem de raça. E no olhar, luminoso e claro, havia

o que quer que fosse de uma íntima superioridade. Logo, ao primeiro contacto, os traços

que mais se destacavam da sua personalidade inconfundível, estava aí uma encarnação das

preclaras virtudes indianas de todos os tempos: simplicidade, espírito de coerência,

autodomínio, tolerância e bondade.”8

Enquanto estudante em Coimbra desenvolve intensa atividade literária e cultural,

particularmente, na divulgação da cultura indiana. A profundidade do seu trabalho merece

a atenção de professores da Universidade de Coimbra, como Mendes dos Remédios,

Providência da Costa e Joaquim de Carvalho, que são fundamentais para a implementação

do Instituto Indiano. Funda também um jornal, Índia Nova 9, que, apesar de vida efémera,

tem como finalidade a difusão da civilização e do humanismo indianos no meio

intelectual português.

No âmbito da sua atividade no Instituto Indiano, entra em contacto com os mais

importantes escritores da Índia e orientalistas de renome, que colaboram

desinteressadamente com os seus trabalhos. Entre outros, estabelece relações epistolares

com Rabindranath Tagore e Sylvain Lévi, eminente sanscritólogo e professor do Colégio

de França, que incentivam e aplaudem a cruzada a que Adeodato se propõe.

Paralelamente, traduz a obra Mahatma Gandhi de Romain Rolland, que não só consente

7 Consultar Anexo VIII. 8 MIRANDA, Lúcio, Op. Cit. p. 7. 9 Que tem como diretores José Teles e José de Mascarenhas, de que são publicados seis números de 1928

e 1929.

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na tradução, como recusa todos os direitos de autor. Lamentavelmente, nenhum editor se

propõe a editar a obra.

Adeodato empreende, assim, um «[...] esforço em prol de interpenetração

espiritual euro-asiática e mormente luso-indiana, abrindo largo caminho a realizações

futuras.»10

Desenvolve trabalho de editor e o primeiro assunto das Edições Swatwa11 é a tradução

da defesa do revolucionário hindu Krishna Balabh Sahai, presidente da Comissão Distrital do

Congresso Nacional Indiano, feita perante o Tribunal de Harizabagh12.

Em Coimbra, faz duas licenciaturas, em Direito (1928) e Letras (1929), seguidas

do curso da Escola Normal Superior (1931), ao mesmo tempo que desenvolve uma

intensa e diversificada atividade intelectual. Trabalha na criação da Universidade Livre

de Coimbra e vem a ser presidente do Centro Republicano Académico. Paralelamente,

desenvolve atividades assistenciais junto dos necessitados que refletem as preocupações

humanitárias da sua personalidade.

Adeodato casa com Dona Emília Costa, de quem tem cinco filhos, cujos nomes

são uma curiosa e intencional combinação de nomes hindus e portugueses (Maria Regina

Veridiana Sarojini Barreto, Maria Isabel Lakshimi Barreto, Luís Maria Kalidas Costa

Barreto, Vicente Camilo Costa Barreto e Jacinta Costa Barreto).

Terminados os estudos em Coimbra, é professor na Figueira da Foz, em 1931, e,

em 1932, é colocado no Liceu de Évora, lugar que não ocupa, já que opta pela vaga de

escrivão de direito em Montemor-o-Novo. Meses depois, por concurso, é nomeado

notário em Aljustrel, onde vem a permanecer durante quatro anos, até que, por ter

adoecido com tuberculose, é internado no Sanatório dos Olivais, em Coimbra, tendo

falecido a 6 de Agosto de 1937.

Este período de tempo, pouco mais de seis anos, que intermedeia a sua

licenciatura e a sua morte, corresponde ao período de tempo em que o trabalho intelectual

de Adeodato mais produziu.

10 MIRANDA, Lúcio, Op. Cit. p 14. 11 Palavra que significa “liberdade” em sânscrito. 12 Onde fala, sob o pseudónimo Srivijaha Devadatta, sobre o amor à liberdade com o que implica de

heroicidade e sacrifício por uma causa referindo-se a Krishna Sahai.

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Da colaboração na revista Seara Nova, resulta, em 1935, a sua obra principal,

Civilização Hindu, que continua a ser um dos livros «[…] mais notáveis em língua

portuguesa, acerca da civilização e humanismo hindus.»13 Atento aos direitos de

cidadania dos indianos no território nacional, muitas vezes esgrime com a pena na

denúncia dos atropelos de que tem conhecimento. À dureza do polemista e à profundidade

do ensaísta, alia Adeodato Barreto a sensibilidade do poeta na tessitura regular de poemas

feitos ao longo dos dias e que vêm a constituir a obra Livro da Vida - Cânticos Indianos

editada postumamente.

Por onde passa, deixa o vínculo da sua personalidade, criatividade e solidariedade.

Em Coimbra, colabora com a fundação da Universidade Livre, em Montemor, funda a

Liga Pró-Instrução, que promove conferências e ensino para analfabetos.

A problemática socioeconómica que Adeodato encontra em Aljustrel leva-o a

dedicar o melhor da sua atenção aos mineiros, homens endurecidos por um trabalho

áspero nas galerias das minas de pirites alentejanas. Nesse sentido, desenvolve uma

intensa atividade humanitária, ao criar uma Escola Noturna para os Mineiro, onde ensina

a ler e a escrever gratuitamente e a organizar a “Sopa dos Pobres”, visando eliminar a

mendicidade.

Como consequência da tuberculose, que o vem a infetar, aos trinta e sete anos, e

com cinco filhos ainda crianças, aos sofrimentos físicos e morais vêm juntar-se-lhe as

carências económicas. Tendo pautado a sua vida pela ajuda aos fracos e aos doentes, vê-

se, então, na necessidade de receber a ajuda dos amigos, de onde releva a romagem de

gratidão, protagonizada pelos mineiros de Aljustrel, quando lhe vão oferecer o produto

das suas economias.

Adeodato é um estudioso e divulgador entusiasta do esperanto. Em Aljustrel,

institui um curso de esperanto por intermédio do qual pretende espalhar os ideais de paz

e fraternidade que constituem a essência do esperanto, enquanto língua auxiliar universal.

Para Adeodato, o esperanto é um instrumento vital para a unificação espiritual dos povos.

Esta sua atitude merece-lhe novas críticas de setores situacionistas que o acusam de fazer

propaganda subversiva, referindo-se a Adeodato como alguém que pretende ser dono da

terra que não é sua. Como consequência, há a tentativa de o nomear para a ilha do Pico.

13 MIRANDA, Lúcio, Op. Cit. p. 22.

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14

Ainda em Aljustrel, dirige o semanário Círculo, que, nos seus sete números

editados, vem a merecer a colaboração de importantes intelectuais portugueses, como

Brito Camacho e António Sérgio. Uma personalidade com uma atividade sociocultural

tão intensa, à época, é interpretada com desconfiança, de onde lhe vêm bastantes

dissabores, vindo a ser suspeito de ser comunista. Um jornal situacionista apelida-o de

clown, referindo «[…] um jornal que saiu em Aljustrel como um círculo […] com o centro

em Moscovo»14, terminando por desejar ao jornal que a terra lhe fosse leve.

Parafraseando Adeodato Barreto, a sua vida pauta-se pelo objetivo de atingir «[…]

aquela serena e augusta liberdade de alma, capaz dos heroísmos mais sagrados.»15

CAPÍTULO II

II.1. ADEODATO BARRETO E AS INFLUÊNCIAS HISTÓRICAS E

RELIGIOSAS. A GOANIDADE.

Adeodato Barreto nasce em Goa, a 3 de Dezembro de 1905, quatrocentos e sete

anos após a chegada de Vasco da Gama à Índia, em 20 de Maio de 1498, e trezentos e

noventa e cinco anos após a conquista de Goa por Afonso de Albuquerque, a 10 de

Dezembro de 1510.

Estas três efemérides são determinantes na vida de Adeodato Barreto e, de um

certo modo, balizam «[…] a influência que a colonização portuguesa teve na formação

do que se poderia chamar o homo goanensis, de que o escritor indo-português é o mais

fino espécime […]»16.

Na matriz pessoal e familiar de Adeodato encontramos a omnipresença da

História, que remete para os fundamentos do Império Colonial Português de que Goa,

para o bem e para o mal, faz parte. Kalidás Barreto, filho de Adeodato, em entrevista

concedida a Elsa Rodrigues dos Santos, não deixa de referir que «[…] Afonso de

Albuquerque e a sua lei de miscigenação provocou uma descendência de traços indo-

14 MIRANDA, Lúcio, Op. Cit. p. 9. 15 Idem, p. 10. 16 MIRANDA, Eufemiano de Jesus – O oriente e ocidente na literatura goesa. Goa: Goa 1556, 2012,

p.29.

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portugueses […]»17, traços esses que existem na sua família onde, paralelamente ao

sangue brâmane, que introduz na família a vertente intelectual, o sangue muçulmano

propicia na família a vocação para a finança e comércio. Nesta matriz, releva o sangue

cristão, consubstanciado na existência de vários sacerdotes católicos na família.

Na poesia de Adeodato18, redigida, maioritariamente, entre os vinte e dois e os

trinta e sete anos, em Portugal, onde reside metade da sua vida sem nunca ter regressado

à sua terra natal, abundam as referências ao “solo sagrado de Goa”19, sejam as de índole

espiritual, como quando fala das dolorosas relações entre as três religiões que estruturam

o imaginário religioso de Goa («Teus caminhos, Senhor/Teus caminhos de amor/,

Perdidos,/ Oculta-os a Mesquita, a cobiça infinita da Igreja,/ do Pagode»20), sejam as de

índole histórica («O mar é um inimigo […] e já te trouxe a santa Inquisição»21).

A presença concreta de Goa impregna a sua poesia ao chamar para os seus

poemas a orografia («Goa bela, olha os Gates em chama […]»22), a hidrografia, a fauna

(«[…] agora um pipilar de bulbuzitos […]»23), a flora (os zaiôs, os mogarins e os

champis24), as populações, («[…] a bailadeira e o pária, o mendigo faminto […]»25), ou

os cheiros e os sabores («[…] saudades da consoada dos fuguéus […]»26) ou o aconchego

das casas de Goa («[…] meus vosró é uma redoma de cristal […]»27). Todas estas

referências poéticas atestam a robustez do seu sentir, a partir do momento em que elege

os destinos de Goa como desígnio da sua vida.

O território de Goa28, de um ponto de vista geopolítico:

“[…] está dividido em Velhas e Novas Conquistas. As Velhas Conquistas, compreendendo os

actuais concelhos das Ilhas (Tisvadi) Bardez, Salsete e Mormugão são as áreas conquistadas no

17 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 20. 18 A poesia de Adeodato Barreto encontra-se compilada na obra Civilização Hindu seguido de O Livro da

Vida – Cânticos Indianos. Todos os poemas aqui citados podem ser consultados integralmente nos Anexos. 19 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 267. 20 In «Canção de Bhaul». Consultar Anexo XXVI. 21 In «Redenção». Consultar Anexo XVI. 22 In «Redenção». Consultar Anexo XVI. 23 In «Amanhecer». Consultar Anexo XX. 24 In «Apoteose». Consultar Anexo X. 25 In «Súria». Consultar Anexo XXV. 26 In «Natal Cristão». Consultar Anexo XV. 27 In «Ventania». Consultar Anexo XIX. 28 Por comodidade, quando me referir a Goa, estou a referir-me ao Estado da Índia, que integrava os

territórios de Goa, Damão e Diu e os enclaves de Dadrá e Nagar Aveli.

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século XVI. A ilha de Goa foi o primeiro território a ser conquistado por Afonso de Albuquerque

em 1510. Os territórios de Bardez e Salsete foram anexados definitivamente em 1543.”29

Já a região das Novas Conquistas integra os concelhos de Perném, Bicholim,

Sanguém, Quepém, Canácona e Satari. Esta região é anexada ao Estado da Índia em finais

do século XVIII e Pondá é o último território a ser-lhe agregado através de um tratado,

em Janeiro de 1791, travado com o Rei de Sunda, Savai Bassava Linga.30 No século

XVIII, Goa torna-se capital do Império Português no Oriente. Assim permanece até 1961,

quando é integrada na União Indiana como seu vigésimo quinto estado e com a

designação de Estado de Goa.31

Segundo Castanheda, aquando da conquista, «[ …] era pouoada de mouros

mercadores estrangeiros, muy honrados & ricos todos brancos, & também de gentios

naturaes da terra, & doutros filhos de mouros & de gentias & que se chamauão neiteàs.»32

Ao estar geograficamente integrada no subcontinente indiano, Goa é um outro

aspeto da civilização indiana: «[…] começada nos tempos védicos (2000-600 a.C.), e

continuada nos vinte e cinco séculos seguintes, chegou até aos nossos dias numa tradição

mais ou menos ininterrupta»33, o que a diferencia e revela uma vitalidade quando é

comparada com «[…] outras civilizações tão antigas como […] a egípcia, a grega, a

romana [que] não sobreviveram às vicissitudes das mudanças culturais a que ficaram

expostas […].»34

As características absorventes e plásticas da civilização indiana e a sua capacidade

integradora são postas à prova com:

“[…] as sucessivas invasões e conquistas, a começar com as dos Arianos, dos Gregos, dos Hunos,

até às mais recentes como as dos Portugueses, Ingleses e Franceses, contribuíram para contínuas

fusões das tradições antigas com novos elementos das culturas dos invasores […]”35

29 SALDANHA, Gabriel – História de Goa (política e arqueológica). 2.ª ed. Vol.I. Nova Goa, 1925, p.41-

45.; XAVIER, Filipe Nery - Gabinete literário das fontainhas. Vol II., p. 31, cit. por MIRANDA, Eufemiano

de Jesus – O oriente e ocidente na literatura goesa. Goa: Goa 1556, 2012, p. 26. 30 SALDANHA, Gabriel, Op. Cit. pp. 311-312, cit. por MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 26. 31 Idem, ibidem. 32 CASTANHEDA, Fernão Lopes – História do descobrimento & conquista da Índia pelos portugueses.

Livro 3, Cap. VIII. Coimbra, 1552, cit. por DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel, Op. Cit. p. 13. 33 MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 146. 34 Idem, ibidem. 35 Idem, ibidem.

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Desta forma, Eufemiano de Miranda conclui que a «[…] unidade na diversidade

e continuidade caracterizam o património cultural da Índia.»36

No sentido de melhor compreender as características desta civilização, remetemo-

nos para a antropologia cultural que sustenta que não é possível entender uma cultura sem

que compreendamos as suas matrizes religiosas.37 Assim: «os deuses do panteão indiano

não são pessoas. São tipos, símbolos com que se exprimem ideias filosóficas, se explicam

fenómenos naturais, se reforçam crenças políticas e doutrinas respeitantes ao

comportamento social»38.

A idiossincrasia cultural indiana tem uma estrutura complexa, basicamente

religiosa, «[…] edificada sobre a sabedoria védico-purânico-upanishádica39 […]»40 e

enriquecida por «[…]elementos da mundividência budista e jainista41[…]»42 e com

aspetos comuns aos dos «[…] sufis43, místicos islâmicos e os seguidores hindus da

36 Idem, ibidem. 37DAWSON, Christopher - Medieval Essays, cit. por MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 147. 38 MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 159. 39 Referente a Vedas, Puranas e Upanishads. Vedas deriva da palavra “vid” que significa “conhecer”. Os

quatro Vedas (Rig, Sama, Yajur e Atharva Vedas) são as escrituras antigas consideradas a fundação do

Hinduísmo. A origem dos Vedas é atribuída a inspiração divina, por isso o corpo de textos é respeitado

como um livro da revelação (shruti). É a mais antiga literatura indo-europeia (ca. 1500 a.C.). Os Puranas

são um grupo de textos que pertencem à categoria smrti (tradição memorizada). Purana significa “antigo”

em sânscrito e contêm relatos de reis e as suas crónicas, de locais de peregrinação, ensinamentos sobre o

dharma e o moksha. Os Upanishads são parte das escrituras shruti hindus, que discutem fundamentalmente

sobre filosofia e meditação. Originalmente, em número de catorze, surgiram como comentários sobre os

Vedas. Deriva da palavra upa (“perto”), ni (“em baixo”) e chad (“sentar”), representando o ato de estar-se

sentado no chão, junto a um mestre espiritual, para receber instruções. 40 MIRANDA, Eufemiano, Op. Cit. p. 147. 41 Jainismo é uma das religiões mais antigas da Índia, juntamente com o Hinduísmo e o Budismo. Tal como

o Budismo, não tem um Deus como criador ou figura central. O seu fundador foi Mahavira (ca. 540 a.C. –

ca. 570 a.C.). O Jainismo propõe que o ser humano reencarna noutro corpo após a sua morte, num longo

ciclo de sucessivas reencarnações, sempre evoluindo espiritualmente. Até chegar a um estágio máximo de

evolução espiritual, cessando as reencarnações. O Jainismo dedica-se a auxiliar esse processo de evolução

espiritual, através do cultivo de valores como a não-violência (ahimsa), a honestidade, a castidade, a

ausência de cobiça e a pobreza. 42 MIRANDA, Eufemiano, Op. Cit. p. 147. 43 Sufismo é a corrente mística e contemplativa do Islão, representando um afastamento da aproximação

legalista do Islão. Os sufistas ou sufis, praticantes do Sufismo, procuram desenvolver uma relação íntima,

direta e contínua com Deus, através de práticas de cânticos, música e dança (dervixes). As várias ordens

sufis (Tariqas) tanto podem estar relacionadas com o Islão sunita, Islão xiita, a uma combinação de várias

correntes ou a nenhuma delas. Os sufis acreditam que Deus é amoroso e o contacto com ele pode ser

alcançado pelos homens através de uma união mística. Devido a este conceito de Deus, foram muitas vezes

acusados de blasfémia e perseguidos pelos próprios muçulmanos exotéricos. Hallaj (ca. 858 d.C. – 922

d.C.), místico persa, foi executado, pois ensinou em êxtase que Deus e ele eram um. Para os sufis é

particularmente importante o termo fanaa, que significa aniquilar o “eu” enquanto se permanece

fisicamente vivo. É equivalente ao conceito budista do nirvana e do moksha hinduísta, que também têm

como objetivo a extinção do ego. Quando uma pessoa entra no estado de fanaa está mais perto de Deus.

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espiritualidade bhakti44[…]»45, contando ainda com o tributo do cristianismo que «[…]

contribuiu com vários elementos do Evangelho e do seu humanismo.»46

Por seu lado, a população, em geral, e o hindu, enquanto pessoa singular, vivem

esta cosmovisão, filosófica e religiosa, que se exprime «[…] através de uma rica

simbologia, um ritualismo que abrange todos os aspetos da vida social e individual»47 e

que não é pertença de toda e qualquer classe.

De um modo resumido, podemos referir que «[…] as matrizes da cultura

indiana[…]»48 assentam e comportam vários aspetos:

- o conceito da terra como mãe (Índia-Mãe/Bharat-Mata);

- a existência de um espírito supremo e imutável que penetra e perpassa o universo

inteiro (Brahman49, Bhagavan50, Ishvara51);

- o Homem, manifestação do ser supremo, não passando de ser uma das muitas

formas como o ser supremo se manifesta no universo;

44 Significa “devoção” em sânscrito. No Hinduísmo, é um movimento que enfatiza um apego emocional

mútuo e intenso e de amor de um devoto ao seu Deus pessoal e do Deus ao seu devoto. No texto religioso

Bhagavad-Gita, o caminho do Bahkti é contrastado com duas outras abordagens religiosas, o caminho do

conhecimento (jnana) e o caminho do ritual e das boas ações (karma) 45 MIRANDA, Eufemiano, Op. Cit. p. 147. 46 Idem, ibidem. 47 Idem, ibidem. 48 Idem, pp. 154-156. 49 Nos Upanishads, é a existência suprema ou realidade absoluta, a fonte de todas as coisas. Brahman é

eterno, consciente, irredutível, infinito, omnipresente, fonte espiritual do universo de finitude e mudança.

Diversas interpretações quanto à definição de Brahman caracterizam as diversas escolas do Vedanta, o

sistema ortodoxo da filosofia hindu. Não confundir Brahman (neutro) com Brahma, que juntamente com

os deuses Shiva e Vishnu, formam a Trimurti (trindade) hindu. 50 Em algumas tradições hinduístas, refere-se ao Ser Supremo ou Verdade Absoluta, mas possuindo uma

personalidade (um Deus pessoal). Este atributo pessoal distingue-o de Brahman, que é impessoal.

Bhagavan está mais próximo da concepção cristão de Deus. Bhagavan também é usado como título de

veneração e é muitas vezes traduzido como “Senhor”: Bhagavan Krishna, Bhagavan Rama, Bhagavan

Shiva, etc. No Bhagavad-Gita, Bhagavan designa um avatar do Senhor Supremo encarnado na Terra como

um ser humano, neste caso, o Senhor Krishna. 51 No Hinduísmo, é Deus entendido como pessoa, contrastando com o impessoal e transcendente Brahman.

Ishvara é particularmente favorecido por seguidores do Deus Shiva, ao passo que o termo Bhagavan, que

lhe pode ser comparável, é mais apreciado pelos seguidores do Deus Vishnu. Comunidades diferentes

dentro do Hinduísmo têm opiniões diversas quanto à relação de Ishvara com Brahman. Comunidades

teístas mantêm que ambos são a mesma coisa ou até que a representação pessoal é superior, ao passo que

outros, incluindo seguidores do Advaita Vedanta, argumentam que Ishvara é uma representação limitada e

inadequada de Brahman.

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- o conceito de Maya52 implica o mundo como ilusão, já que a única realidade é a

do espírito eterno e supremo ou Brahman, causada pela ignorância transcendental ou

avidya53;

- a doutrina do Karma54, da transmigração ou reincarnação da alma;

- a importância do conceito Dharma55, enquanto objetivo da vida, enquanto regra

da prática correta, da retidão e da justiça, o que impregna a filosofia religiosa com um

espírito de tolerância e de respeito pela liberdade alheia, cujo conceito que melhor o

traduz é o ahimsa56.

É a esta rica e complexa civilização que os portugueses aportam em 1510.

O choque cultural que terão sentido foi sustentado, entre outros fatores, pelo ideal

religioso que professam, o Cristianismo, que unifica a civilização ocidental, numa época

histórica em que se supunha «[…] que a religião cristã era bastante para transformar os

costumes e as ideias, identificando homens e povos de raças, costumes e religiões

diferentes.»57

Gilberto Freyre, na sua tese do Luso-tropicalismo, interpreta de um modo

amenizado a colonização portuguesa, chegando a chamar de «milagre sociológico»58 aos

quatrocentos e cinquenta e um anos da presença portuguesa em Goa, apontando como

chave para a compreensão deste processo sociológico o «[…] seu intenso amor e não

apenas do seu interesse económico»59, realçando o sentido da missão cristocêntrica da

colonização portuguesa em contraponto com o carácter etnocêntrico da dos outros povos

europeus. O autor interroga-se «[…] se esse espírito de missão se devia a um programa

52 De acordo com muitas escolas do Hinduísmo, o mundo é uma ilusão (Maya), um jogo divino da suprema

consciência de Deus. É uma projeção de coisas e formas que são temporariamente fenoménicas e sustêm a

ilusão de unidade e permanência. Maya significa irrealidade distinta da realidade de Deus ou Brahman.

Maya também é descrita nas escrituras hindus como o jogo (lila) que deus decretou através da sua energia

dinâmica e criativa ou força (shakti). 53 Palavra sânscrita que significa “ignorância”. A ignorância de que se é um com Brahman, resultando no

aprisionamento no ciclo da morte e nascimento. 54 Karma significa “ação”. No Hinduísmo, refere-se ao efeito que as nossas ações geram no nosso futuro,

tanto nesta vida como em outras vidas, após eventuais reencarnações. 55 Significa “lei natural”. É o caminho para a verdade superior. O Dharma é a base das filosofias, crenças

e práticas que se originaram na Índia. 56 Não-agressão. 57 COLAÇO, Agostinho – O sistema da colonização portuguesa. Coletânea de Escritos, Margão, 1988,

cit. por MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 52. 58 FREYRE, Gilberto – O luso e o trópico. Lisboa, 1961, cit. por DEVI, Vivala; SEABRA, Manuel, Op.

Cit. p. 16. 59 FREYRE, Gilberto - Integração portuguesa nos trópicos. Estudos de Ciências Políticas e Sociais VI

Mistério do Ultramar. J.I.U., p. 37 cit. por MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 14.

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político pré-estabelecido ou à idiossincrasia do povo português ou a uma simples

necessidade estratégica.»60

Ainda que fale numa Pax Portucalensis61 na relação dos portugueses com as

populações indianas, Gilberto Freyre não deixa de referir, por outro lado, a mácula da

colonização portuguesa, a presença e ação da Inquisição enquanto opressora das «[…]

populações e culturas orientais[…]»62, ainda que este processo tenha de ser

contextualizado historicamente. Agostinho Colaço explicita que «[…]é compreensível tal

zelo na evangelização numa época em que não se admitia a salvação das almas fora da

doutrina de Cristo e a civilização se supunha necessariamente ligada à religião católica.»63

Esta contradição caracteriza duas atitudes do português em Goa, para com a população e

para com a sua cultura: uma, como agente de uma relação colonial, outra, como Homem

com uma missão evangelizadora. Posições «[…] que apesar de inconciliáveis, não se

hostilizavam.»64

Na sua obra O Império Colonial Português, Charles Boxer começa por se

interrogar sobre quais os motivos e razões que levam Portugal a lançar-se numa empresa

de descobrimentos marítimos e a construir o Império Colonial Português que o autor

denomina como um dos «[…] maiores enigmas da História […]»65e a considerar que:

“a descoberta da América e a passagem para as Índias Orientais, através do Cabo da Boa

Esperança, são os dois maiores e mais importantes acontecimentos de que há notícia na História

da Humanidade” 66

A crise revolucionária de 1383-1385, de que Portugal fora palco, tem como

resultado uma profunda alteração na sua estrutura social. A antiga nobreza, tendo tomado

partido pelos invasores castelhanos, que são derrotados em Aljubarrota, vê a sua

importância fortemente abalada e dá lugar a uma dinâmica classe mercantil. Na altura da

conquista de Goa, Portugal é ainda um país feudal enquanto as outras potências europeias,

quando chegam ao Oriente, como os ingleses e os holandeses, são já países com uma

economia numa fase pré-industrial.

60 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 12. 61 BOXER, Charles – O império colonial português. São Paulo: Edições 70, 1977, p. 14. 62 Idem, p. 13. 63 COLAÇO, Agostinho – O sistema da colonização portuguesa. Boletim do Instituto Vasco da Gama

XLVII, 1940, cit. por MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 52. 64 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 11. 65 BOXER, Charles, Op. Cit. p. 13. 66 Idem, p. 20.

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Charles Boxer reconhece que Portugal é o pioneiro da expansão marítima

europeia, e na obra citada investiga também o modo como Portugal consegue manter parte

significativa do seu Império, mesmo quando assediado por outras potências europeias,

económica e militarmente mais fortes.

O Império Português chega ao século XX «[…] rígido, ortodoxo e decadente, a

apodrecer como uma antiga ruína no calor tropical»67. A questão da relação dos

portugueses com os autóctones dos territórios por eles colonizados traz à colação a

questão do racismo. Enquanto Gilberto Freyre apoia a tese de que os colonizadores não

alimentam preconceitos raciais, Charles Boxer defende tese contrária, fundamentado por

maciça e conclusiva documentação, sustentando que:

“Os portugueses eram intensamente racistas em África, em Goa e no Brasil e que no século XVI,

Portugal possuía, na Metrópole, um número de escravos muito superior ao de qualquer outro país

da Europa; talvez uns10% da população lisboeta era escrava“68

O autor contextualiza esta questão apoiando-se:

“[…] na crueldade e barbarismo da vida do mundo quinhentista […] a vida era desesperadamente

insignificante, a morte desesperadamente real, a pobreza do mundo tão grande que contrastava

com a intensidade das convicções religiosas fossem elas católicas ou protestantes. […] em S.

Francisco Xavier, a cobiça pelas almas era tão ávida como a cobiça pelo ouro e especiarias o era

em Vasco da Gama: assim, matar os que não se queriam converter, castigar os pagãos era

igualmente correcto, as outras raças eram inferiores, a escravidão, para elas, era justa”69

Charles Boxer, ainda que reconheça que os reis portugueses seguem o critério de

que deve ser a religião e não a cor o critério correto para atribuir a integração na

comunidade portuguesa, critério extensivo a todos os convertidos asiáticos ao

Cristianismo, não deixa de salientar as interdições que todas as ordens religiosas mantêm

em permitir a entrada dos autóctones nas ordens religiosas70. De facto:

“Todas as ordens religiosas recusaram admitir indianos e mistos nas suas fileiras pelos fins do

século XVI. E mantiveram a sua recusa por mais de um século e mesmo quando começaram a

admitir alguns poucos japoneses e chineses, mantiveram a recusa para os indianos e mestiços”71

De qualquer modo, e nesta sequência, Vimala Devi e Manuel de Seabra

identificam um modo português de colonizar que:

“[…] tornou possível a um país com pouco mais de um milhão e meio de habitantes não apenas

sustentar um dos mais extensos impérios da história, numa época de precários meios de

67 Idem, p. 18. 68 Idem, p. 19. 69 Idem, p. 20. 70BOXER, Charles – Relações raciais no império colonial português 1415-1825. Porto: Edições

Apontamento, 1972, cit. por MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 59. 71 Idem, p. 59.

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comunicação, mas também – e principalmente – dar origem a tipos peculiares de civilização, dos

quais o Brasil e Goa são talvez os exemplos mais flagrantes”72

Portugal tem uma diminuta população e não consegue disponibilizar para a

manutenção das colónias mais do que dois milhares de homens anualmente, pelo que se

vê obrigado a alternativas no sentido de conseguir aliados nas próprias populações nativas

e a transmitir os seus valores culturais, seja por descendência ou por assimilação. A

política de conversão dos indianos ao Cristianismo é uma das estratégias delineada por

Afonso de Albuquerque no sentido de estabelecer alianças com os autóctones e, assim,

colmatar a inferioridade numérica da população europeia. Garante, deste modo, uma

estabilidade da estrutura social, que lhe permita uma ocupação e uma administração

eficazes do território.

Por conseguinte, Afonso de Albuquerque, em 1510, após a reconquista da Ilha de

Goa «[…] promete aos habitantes não só não aumentar os impostos como [dar] liberdade

de culto»73 e promove o casamento entre soldados portugueses e mulheres dos islamitas

mortos nos confrontos ou que tinham fugido do território «[…] e distribui[u] terras pelos

novos matrimónios»74. Assim, foram constituídos «[…] os primeiros núcleos cristãos nos

arredores de Goa.»75 A propósito, a diretiva do Vice-Rei indica que não se façam cristãs

«[…] senão mulheres lustrosas e fremosas para que os homens perdessem o sentido das

gentias.»76

Os batismos gerais e as conversões em massa de grupos sociais são outro aspeto

desta política. Contudo, as conversões individuais, nos primeiros tempos, são difíceis de

concretizar, já que «o converso era expulso da sua comunidade, ficava isolado, como um

renegado da sua própria família.»77 Do ponto de vista sociológico, a estrutura social

pouco muda na medida em que:

“[…]os velhos usos e costumes, tradições, superstições, as estruturas sociais mantinham-se e uma

delas persistiu tão poderosamente que chegou até aos nossos dias, enformando toda a vida social,

cultural e psicológica do povo goês: as castas.”78

72 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 11. 73 Idem, p. 12. 74 Idem, ibidem. 75 Idem, ibidem. 76 Idem, p. 13. 77 Idem, p. 14. 78 Idem, ibidem.

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23

Do mesmo modo, as igrejas substituem os templos, as mazanias79 são

transformadas em confrarias, sendo que os rendimentos das primeiras passam a apoiar as

atividades das segundas.80

Sob domínio português, a organização hinduísta é substituída pela cristã ao ponto

de, em 1542, Francisco Xavier, numa carta dirigida à Companhia de Jesus, descrever Goa

«[…] como uma cidade admirável em que toda a população é cristã.»81

As leis de incidência religiosa publicadas de meados do século XVI ao século

XVIII se, por um lado, se comprometem com a proteção dos convertidos, por outro, são

altamente discricionárias em relação aos hindus, reprimindo a sua prática religiosa,

apontando-lhes a fé cristã como alternativa.82 Aos hindus não lhes resta outra hipótese:

ou se convertem ou abandonam o território. A intolerância religiosa é violenta nos

primeiros tempos com a destruição de templos hindus.

O estabelecimento da Inquisição, que perdura, em Goa, de 1560 até 1812, além

do ofuscamento cultural que provoca, vem a incitar a fuga dos hindus de Goa onde o

Catolicismo se torna a religião preponderante. Só com o fim da Inquisição, a política do

Marquês de Pombal, mais favorável aos hindus, e o advento das ideias liberais, os hindus

começam a regressar, especialmente aos territórios das Novas Conquistas, entretanto

anexados, inclusivamente à procura de trabalho.83

A política social é outro dos pilares da política portuguesa de ocupação do

território, implementada por Afonso de Albuquerque, e consolidada, em especial, através

da atividade da Misericórdia de Goa84 vocacionada para auxílio de viúvas, de órfãos, de

pobres, de idosos e de doentes, independentemente da sua nacionalidade ou religião.

Quando Afonso de Albuquerque conquista o território, Goa não é propriamente

um centro cultural, mas apenas «[…] uma dependência de um Rei Mouro»85 e do ponto

de vista da política da Educação, Afonso de Albuquerque vai implementar uma rede de

79 Corporação administrativa de um pagode ou templo hindu. 80 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 14. 81 Idem, ibidem. 82 MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 28. 83 Idem, ibidem. 84 Pyrard de Laval descreve o hospital da Misericórdia de Goa do séc. XVIII como o melhor hospital da

época, comparando-o com os de Portugal e os de toda a Europa. Já Gilberto Freyre valoriza a Misericórdia

ao ponto de afirmar «[..] que sem a Misericórdia de Goa, é duvidoso que houvesse hoje no Oriente esse

quase milagre sociológico que é a Índia Portuguesa.» (DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p.

16).

85 MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 29.

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escolas centradas no ensino do português e destinadas a formar funcionários naturais para

a prática administrativa, que transitam progressivamente para a esfera da Igreja.

A Igreja Católica vem a constituir um poderoso aliado da política portuguesa em

Goa, sempre confrontada com o reduzido número de portugueses para as complexas

tarefas da governação. Nesse sentido, tarefas de gestão sensível, como o ensino, passam

para a alçada da Igreja, tirando o poder político partido da sua ação junto das populações,

bem como do estudo que realizam dos costumes, religiões e línguas locais. As Ordens

Religiosas vêm, assim, a desempenhar um papel importante no desenvolvimento cultural

e social de Goa.

A Ordem Franciscana (Franciscanos da Observância) é a primeira ordem religiosa

em Goa. Em 1539, é fundado o Colégio de São Paulo, em 1543 os Jesuítas de São

Francisco Xavier e os Dominicanos e, em 1572, os Agostinhos, os Carmelitas, os Teatinos

e os Padres de São Filipe de Nery. «Fazer cristãos e ensinar foi, sem dúvida, uma das

preocupações das autoridades religiosas e civis, o que, combinado com a política de

miscigenação racial, criaria a base da presença portuguesa no Oriente.»86

No princípio do século XIX, a língua portuguesa está pouco divulgada em Goa. O

ensino primário confina-se às escolas paroquiais e há dois seminários que administram o

ensino secundário. É com o regime constitucional, em 1822, que o português é alvo de

uma maior divulgação, há um incremento da política educativa, aparecem a imprensa e

as revistas literárias e os goeses cristãos começam a procurar a metrópole para

prosseguirem os estudos. Em 1842, é criada a Escola Médico-Cirúrgica e, em 1854, o

Liceu Nacional. A implantação da República, em 1910, baliza outro surto de

desenvolvimento cultural, com a implementação da rede escolar e o reconhecimento à

comunidade hindu dos mesmos direitos que os habitantes da metrópole usufruem.87

A questão das castas constituiu um problema para a relação dos portugueses com

a sociedade indiana, na medida em que para o Catolicismo todos os homens são iguais,

«[…] ainda que, por vezes, se vissem forçados a capitular a fim de evitar reações

desfavoráveis de importantes sectores da população, obedecendo a certos

condicionalismos políticos – individualmente, quando não como governo, nunca as

reconheceram.»88 De qualquer modo, a colonização portuguesa não deixa de tomar

86 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 90. 87 MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 33. 88 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 16.

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atitudes interventivas da humanização, segundo o seu ponto de vista, dos costumes, como

a proibição do satî89, implementada por Afonso de Albuquerque, no século XVI, e que os

ingleses só vêm a proibir legalmente no séc. XIX, assim como a proibição da cerimónia

dos enganchados (em que os gentios da casta sudra são suspensos por ganchos de ferro

enfiados nas costas a fim de conseguirem pequenas parcelas para cultivar )90.

Por outro lado, a própria Igreja Católica tem de se adaptar ao sistema de castas de

que é exemplo o modo como as diferentes ordens religiosas se diferenciam a esse respeito,

nomeadamente em relação aos brâmanes e aos chardós, as duas castas de maior

predomínio social. Por exemplo, os Teatinos, os Jesuítas, os Agostinhos e os de São Filipe

de Nery só aceitam brâmanes, os Carmelitas só aceitam chardós e só os Franciscanos e

os Salesianos recebem praticamente todas as castas, embora seja muito improvável que

sudras e curumbins sejam admitidas91.

De qualquer modo, Portugal encontra nas tradições de tolerância religiosa indiana

uma aliada à sua política, que lhe permita constituir em Goa um estado cristão, plataforma

ao serviço dos seus interesses políticos, militares e económicos no Oriente. «O Português

chegou a Goa para ficar»92 e, neste sentido, Manohar Sardessai compara a colonização

portuguesa com a inglesa, referindo:

“The impact of Portuguese on Goa is much more considerable than that of the British on India this

is not only because the Portuguese remained in India for a longer period than did the British, but

also due to the fact that the Portuguese made its influence felt in almost every spheres of life with

the State and the Church actively aiding in its dissemination. The Portuguese were also more

interested in cultural assimilation than merely in political domination or economic exploitation.»93

Ao contrário de outras regiões do mundo que colonizam, os Portugueses

encontram-se em Goa «[…] com um povo de elevado nível civilizacional e de religião

altamente moral»94 a cujas características a sua política colonial tem de se adaptar de

89 Costume de imolar a viúva na pira do defunto. 90 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p.16. 91 Idem, p 87. 92 Idem, p. 15. 93 SARDESSAI, Manohar – The three dimensions. Indian Literature. Vol. 35, (1992), p. 132: «O impacto

dos portugueses em Goa é muito mais considerável do que o dos ingleses na Índia, não só porque os

portugueses permaneceram na Índia por um período mais longo do que os ingleses, mas também devido ao

facto de que os portugueses fizeram sentir a sua influência em quase todas as esferas da vida com o Estado

e a Igreja ativamente ajudando na sua disseminação. Os portugueses também estavam mais interessados na

assimilação cultural do que meramente no domínio político ou na exploração económica». 94 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 15.

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modo a constituir «[…]uma base estável de apoio ao seu monopólio comercial no

Oriente.»95

A historiografia portuguesa, tradicionalmente, refere-se a Goa e ao Brasil como

os pontos altos da sua ação colonizadora. A fase do colonialismo faz parte da história de

Portugal, assim como de outros países europeus, e importa contextualizar o fenómeno. Se

é certo que a história das relações coloniais é, até meados do século XX,

fundamentalmente escrita pelo colonizador, é interessante ver como a potência

colonizadora justifica em seu proveito a sua ação.

“O Colonialismo português na Índia procurou a sua legitimidade na Goa Dourada, a idealização de

uma sociedade ordenada, sem tensões ou rupturas, perceptíveis entre indivíduos e grupos,

convertida, em teoria, aos valores de igualdade do cristianismo e incompatível com a estratificação

social hindu. […] A representação da Goa Dourada emergiu sempre que o colonialismo português

previa uma crise decorrente da contestação local (e mais tarde internacional) do seu poder, e foi

manipulado pelos governantes portugueses como parte do mito de uma Roma do Oriente […] A Goa

Dourada teve repercussões mais efectivas entre a elite católica à qual era bastante alheia uma Goa

índica.” 96

II.2. A GOANIDADE

Adeodato é fruto do confronto, muitas vezes do conflito, entre duas civilizações,

filosófica e religiosamente muito diferentes, e a matriz da sua personalidade é estruturada

numa dinâmica cultural de dois polos; em última análise, o Ocidente e o Oriente, com

referências fortes a Goa e à Índia, por um lado, e a Portugal, por outro, de onde surge a

questão: o que é ser Goês? A questão da goanidade coloca-se num território caracterizado

por fortes influências luso-indianas97e que se podem encontrar na arquitetura, que

combina elementos tradicionais portugueses com elementos decorativos indianos, a par

de uma miscelânea cultural que se observa nos bordados, na ourivesaria, no mobiliário,

no folclore98 e na culinária99 (Devi; Seabra, 1971: 21).

95 Idem, ibidem. 96 PEREZ, Rosa Maria – O Tulsi e a cruz. Lisboa: Temas e Debates, 2012, p. 17. 97 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 18. 98 Como é o caso do mandó (canção tradicional de Goa) que tem sido comparado ao fado e à morna, ainda

que o primeiro seja uma canção de expressão coletiva ao passo que os segundos sejam mais de expressão

individual e pessoal. 99 Como é o caso do vindalho (prato tradicional goês) comparado à vinha de alhos portuguesa.

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Contudo, é na religião que a integração luso-indiana se revela mais profunda, com

a inclusão de elementos hindus. Exemplo disso são as procissões da Goa cristã adornadas

pelo colorido dos festivais hindus em que as ladainhas se assemelham à recitação dos

mantras100.

As artes plásticas são igualmente pródigas neste hibridismo. A pintura “A Virgem

e o Menino” mostra São José, a Virgem e o Menino envergando pudvém101 e saris102 junto

a esculturas de Nossas Senhoras indo-portuguesas do século XVII com traços orientais,

estátuas de Nossa Senhora e o Menino com feições maratas e santos católicos de marfim

esculpidos por artistas orientais com trajos orientais. O caso máximo que ilustra a

integração religiosa constitui a veneração que São Francisco Xavier, santo cristão, recebe

pela parte dos hindus de Goa103.

O processo de assimilação civilizacional é nos dois sentidos. Se Portugal

influencia, também é influenciado. Na metrópole, em finais do século XVII, a nobreza

portuguesa conserva ainda hábitos que vêm do princípio dos contactos com a Índia.

«Dizem que D. Manuel I usava trajos indianos. D. Pedro II – como toda a sua corte –

recebia visitas sentado no chão […] de pernas cruzadas à indiana.104»105 Ainda hoje, na

metrópole, a arquitetura lembra as influências dos contactos com a Índia, nomeadamente,

«[…] em que o gótico florido foi enriquecido por um conjunto de elementos de ornato

em que se sente a influência direta da gesta marítima portuguesa, em particular do

descobrimento da Índia.» 106

Se Goa «[…] não sendo totalmente indiana, também não é totalmente

portuguesa»107, neste contexto, e na sequência do que temos vindo a referir, «o goês sente-

se diferente e é olhado como diferente»108.

100 É uma sílaba ou poema religioso, normalmente, em sânscrito. O mantra é repetido de forma a auxiliar a

mente a concentrar-se na meditação. Os mantras tiveram a sua origem no Hinduísmo, porém também são

utilizados no Budismo e Jainismo. 101 Na antiga Índia Portuguesa era um pano que os homens enrolavam em torno dos quadris como um saiote. 102 Peça única de tecido, entre quatro e nove metros de comprimento e que pode ser enrolado em volta do

corpo em estilos diferentes, sendo o traje típico das mulheres indianas. 103 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 18. 104 Posição chamada padmâsana. 105 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 20. 106 MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 307. 107 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 17. 108 Idem, ibidem.

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É Jawaharlal Nehru quem diz da personalidade do goês: «Ajab hain Cova ke

log.»109e o poeta Baki Baskar, citado por Manoharrai Sardessai, descreve o goês

caracterizado por traços latinos, hedonista, poliglota, com sotaque nativo, estético e

epicurista:

“Generally warm, sociable, gay, talkative, pleasure-loving, relaxed and trustworthy. Like a latiner

enjoys talking and like him is not content unless he supports is his words with consonant gestures.

His inborn love for speech has made him a polyglot and he takes a special pleasure in speaking the

alien language he has picked up, in their native accent and in writing in them with their respective

flair. Intellectually sharp, his actions are mainly motivated more by feeling and belief than by

thought and reason. He is essentially aesthetic in his basic approach to life and an epicurean in his

tastes.”110

Raquel Soeiro de Brito refere a existência de vários biótipos humanos, havendo

grupos de população que, por exibirem fortes características europeias, se vêm excluídos

da sociedade goesa e forçados a constituir mais uma casta, um varna111: «se uns

conservam o tipo branco puro, outros revelam no bronzeado da pele e nos cabelos

corredios, inegáveis traços de mistura de sangue.»112

Vimala Devi procura fundamentar-se nas razões históricas, nomeadamente, na

permanência durante três séculos da Inquisição em Goa e «[…]o traumatismo psicológico

provocado na população cristã […]»113 para caracterizar psicologicamente o goês: «[…]

por norma, refugia-se no seu clã, na sua família ou grupo de famílias aliadas por

casamentos, e desconfia de tudo o que a esse círculo é exterior, reminiscências […] em

que só no lar […] se podia sentir a salvo de denúncias […]»114

Se a questão da goanidade ou identidade goesa se começa a pôr logo após a

conquista, o certo é que, sem nunca se sentirem completamente portugueses, os goeses

adotam alguns aspetos da cultura portuguesa que ainda hoje se mantêm115. Mas é nos

109 “Que estranho é o povo de Goa”. 110 SARDESSAI, Manohar, Op. Cit. p. 131 “Geralmente afável, sociável, alegre, falador, hedonista,

relaxado e confiável. Tal como um latino gosta de falar e tal como este não fica contente senão suportar o

seu discurso com gestos consonantes. O seu amor inato pelo discurso fez dele um poliglota e tem um

especial prazer em falar uma língua alheia no seu sotaque nativo e em escrevê-la com o seu respectivo

estilo. Intelectualmente astuto, as suas ações são principalmente motivadas pelos sentimentos e pela crença

em vez de pelo pensamento e razão. É essencialmente estético na sua abordagem básica da vida e é um

epicurista nos seus gostos.” 111 Palavra sânscrita que designa as castas. 112 BRITO, Raquel Soeiro – Goa e as praças do Norte. [s.l.]: Junta de Investigações do Ultramar, 1966, p. 36. 113 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 8. 114 Idem, ibidem. 115 O causídico e ex-deputado goês, Herculano Dourado, é da opinião que a herança legislativa das leis

portuguesas, nomeadamente, no Direito da Família, no Código Civil, e no Direito da Propriedade

contribuem para a identidade goesa, na sua especificidade, face às outras regiões da Índia. De facto, Goa

diferencia-se dos outros estados da União Indiana por ter uma uniformidade legislativa que garante a

igualdade entre hindus e cristãos. Diz: “O Código Civil é muito importante para manter a união coesiva das

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séculos XX e XXI que os estudos sobre a goanidade se desenvolvem, utilizando uma

visão pós-modernista, diversificando os campos de atuação com novelas, short-stories,

peças de teatro, panfletos, artigos de jornais e material publicado na internet, o que

permite uma melhor compreensão da imagem que os goeses têm de si próprios. A

goanidade é tema recorrente na literatura local e na diáspora onde se reflete a

complexidade do assunto e onde se identificam várias sensibilidades sobre o que é ser

goês. De facto, a literatura constitui uma fonte privilegiada para tomar o pulso a esta

problemática.

A novela Angela’s Goan Identity116, publicada em Goa, em 1994, da autoria de

Carmo de Souza, debruça-se sobre vários aspetos da goanidade e sobre as mudanças de

identidade por que as personagens vão passando ao longo da integração de Goa na Índia.

No foreward da pequena novela, o prefaciador Ashwin Tombat refere:

“Goan Identity means so many different things to so many people that although the term is

commonly used and abused, no two writers or two readers will quite be able to agree on what it

conotes exactly. […] The fact that Goan culture is such an assimilation of influences from all over

the world comes across.”117

A novela centra-se na evolução de um sentimento de pertença, a ideia de

goanidade de duas crianças, enquanto identidade goesa. A família da protagonista, goesa,

é pressionada pelo padre a dar-lhe um nome cristão, Ângela, diferentemente dos nomes

hindus dos seus quatro irmãos. Matriculada numa escola marata por iniciativa do pai, que

lhe quer propiciar uma educação indiana, vem depois a frequentar uma escola primária

portuguesa, cuja professora lhe consegue inculcar um forte sentimento de identificação

portuguesa. Se a família tinha indianizado o nome de Ângela para Angeli, na escola passa

a ser chamada por Anjinha numa recristianização do seu nome. Paralelamente, o seu

colega e amigo Atmaram, de orgulhoso hindu, ao longo da novela, vem a transfigurar-se

num forte defensor da identidade portuguesa. Num diálogo com Ângela, provoca uma das

gentes, entre hindus e cristãos e a própria identidade de Goa. O que é bom, temos de aceitar […] não

podemos esquecer a história de quatrocentos e cinquenta anos. É uma herança fantástica que temos.” (in

Jornal Açores 9 de 22/5/2014). 116 D´SOUSA, Carmo – Angela’s Goan identity. Panaji-Índia: New Age Printers, 1994. 117 D´SOUSA, Carmo, Op. Cit. p. vii. “A identidade goesa significa tantas coisas diferentes para tantas

pessoas que, apesar de o termo ser comummente usado e abusado, não existem dois escritores ou dois

leitores que estarão aptos a acordarem quanto à sua exacta conotação. […] Deparamo-nos com o facto de a

cultura goesa ser essa assimilação de influências de todo o mundo.”

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primeiras oscilações da identidade desta, quando a questiona se já tinha pensado que todos

os antepassados dos goeses, cristãos ou não, tinham sido hindus. A novela prossegue e

descreve a invasão efetuada pelas forças indianas em 1961. A educação de Ângela

prossegue na escola inglesa e vem a casar com um indiano sikh. Atmaram, que se tinha

disposto a defender Goa das tropas indianas, de armas na mão, não se adapta aos novos

tempos e emigra para Portugal, onde se vem a casar com uma cristã de Coimbra. No

reencontro entre os dois amigos, por ocasião do casamento de Ângela, esta pergunta ao

amigo se «agora és um português?»118. Este responde: «Sou um goês, tão a 100% como

tu», porque mesmo sendo um cidadão português e tendo uma identidade portuguesa, tal

não o impede de se lembrar que também é goês: «Nós nunca cessamos de ser goeses».

Atmaram tinha assumido a dualidade portuguesa/goesa e rejeitado o conceito da

identidade indiana, na convicção de que a identidade goesa está progressivamente em

mudança. A sua experiência de vida, na tentativa de resolução das demandas filosóficas

na procura de perceber quem é de um ponto de vista identitário, feito através de ruturas

em que põe em causa convicções anteriores, não sem a sua dose de angústia, leva-o a

concluir que a partir do momento em que não consegue negar as suas matrizes goesas e

portuguesas, nunca se poderia sentir indiano num sentido estrito. A sua postura, a sua

visão goesa/portuguesa, é sentida como imensamente dinâmica, o que o obriga a estar

aberto a possíveis mudanças. A “rejeição” da matriz estritamente indiana é percecionada

de uma maneira redutora. A componente portuguesa da sua dupla matriz implica o não

ser indiano. A sua matriz goesa permite-lhe, assim, tentar conciliar o inconciliável e surge

como a resposta possível às suas necessidades identitárias. A goanidade surge como a

resolução possível, no seu íntimo, deste conflito.

A novela termina quando Ângela, na sua viagem de núpcias, em visita aos velhos

templos de Tanjore, à sombra das velhas glórias da Índia, se questiona: «those temples

haunted Angela. Would that be the state of the Goan Identity?»119

Um posicionamento contraditório é consubstanciado por outros autores. K. A.

Abbas, em Maria, argumenta que os goeses têm uma identidade indiana, enquanto B. K.

Boman-Behram, em Goa and Ourselves, defende que os goeses têm identidade

portuguesa.

118 Idem, p. 144. 119 Idem, p. 147: “Aqueles templos assombravam Ângela. Seria esse o estado da identidade goesa?”

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«Look at any facet you like of Goan life and you will see Portugal deeply reflected in it. Ethnically

and culturally, the Goans have been moulded to the Lusitanian type they remain by tradition and

choice.»120

Sumeeta Peres da Costa em Homework dá conta dos receios que uma parte dos

goeses têm de que Goa passe de uma situação de colonialismo português para outra de

colonialismo indiano, sustentando que as ideias de integração na Índia não terão tido

origem em Goa, mas em goeses vivendo em Bombaim, apoiados pelo governo indiano121.

Em Liberation: A Novel de Jorge Ataíde Lobo uma personagem reage quando lhe

chamam indiana, defendendo que é portuguesa e que quer que Goa continue portuguesa.

O autor acredita que a identidade goesa é uma mistura de valores portugueses e indianos

e, mais do que isso, é uma nova consciência que concilia os valores do passado com os

valores do presente.122

Se, por um lado, a identidade goesa pode ir mudando ao longo dos tempos, por

outro, também pode ir mudando ao longo da vida de uma pessoa. Entre os muitos

exemplos, podemos referir o de Telo de Mascarenhas, que na sua autobiografia, When the

Mango Tree Blossomed123nos refere as mudanças nele operadas. Nasce e cresce sob o

regime colonial, completa os estudos em Bombaim antes de ir para Portugal estuda direito

na Universidade de Coimbra, exerce magistratura em Portugal, onde vem a casar com

uma portuguesa. Ao longo da sua vida, vai mudando os seus pontos de vista em relação

a Goa. Tem de sair de Goa para aprender sobre a Índia, o que vem a acontecer em

Portugal, estimulado pelo ambiente nacionalista que encontra na diáspora goesa em

Lisboa. Como muitos outros, refere que saiu de Goa como um Goês regionalista e, após

uma permanência em Lisboa/Europa, volta a Goa como independentista. De regresso a

Goa, é preso e deportado para Lisboa, onde adquire o estatuto de preso com notoriedade

por ser um nacionalista goês e estar sob alçada de um tribunal político, sendo protegido

pela Amnistia Internacional e Cruz Vermelha Internacional, que, no entanto, não

conseguem a sua libertação, o que só acontece após a morte de Salazar ao fim de dez anos

de prisão. Regressa, finalmente, a Goa.

120 BOMAN-BEHRAM - Goa and ourselves, p 57, cit. por YOUNG, Donna J - (2006) Defining Goan

Identity University. Georgia: Georgia State University, 2006. Dissertação de mestrado. “Olha para qualquer

faceta da vida goesa que tu queiras e verás Portugal profundamente reflectido nela. Étnica e culturalmente,

os goeses foram moldados pelo tipo lusitano a que eles permanecem fiéis por tradição e escolha.” 121 DA COSTA, Sumeeta Peres – Homework, cit. por YOUNG, Donna J., Op. Cit. p. 25. 122 LOBO, Jorge Ataíde - Liberation: A novel, cit. por YOUNG, Donna J., Op. Cit. p. 26. 123 MASCARENHAS, Telo - When the mango tree blossomed, cit. por YOUNG, Donna J., Op. Cit. p 27.

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A goanidade pode ser considerada, de facto, através de vários prismas e entre as

várias gerações há diferentes atitudes e opiniões. Inclusivamente, a nível individual há

um aspeto evolutivo que pode passar por diferentes posturas em relação à identidade

goesa.

Donna J. Young refere-se a um outro aspeto da identidade que tem que ver com a

questão linguística, entre adeptos do concanim e do marata como língua oficial do

estado.124 A escolha do concanim como língua oficial ajuda a reforçar a identidade

goesa.125 Em 1982, o concanim torna-se língua oficial de Goa e, em 1992, volta a ser uma

das línguas oficiais da Índia.

Embora o marata seja ensinado nas escolas, em Goa, e de ter sido nesta língua que

se tenham preservado os textos sagrados hindus no território goês aquando da repressão

colonial, aliado ao facto de ser a língua do estado vizinho do Maharastra, ainda assim, é

o concanim que pesa na opção dos goeses que pretendem Goa como um estado federal.

É, pois, significativo que, nas eleições de Fevereiro de 1967, a população de Goa rejeite

por quarenta e dois mil e trezentos votos a sua união com o estado de Maharashtra, em

que muitos hindus votam pela não integração, o que pode provar o sentimento de que os

próprios goeses se sentem diferentes.

No entanto, sob o ponto de vista linguístico, os goeses não estão unificados e,

segundo Luís S. Rita Vas, são referenciados três grupos linguísticos126:

- os assimilados, goeses com identidade portuguesa e que falam português e

concanim;

- os falantes do marata, geralmente descendentes de hindus que resistem à

influência estrangeira;

- os falantes de concanim, que compreende hindus e cristãos, que adotam

costumes culturais portugueses, como a música, a cozinha, a arquitetura, etc.127

A questão do marata/concanim é um debate dentro das fronteiras de Goa, pois a

diáspora utiliza cada vez mais o inglês, cujos escritores escrevem fluentemente em inglês,

124 YOUNG, Donna J., Op. Cit. p. 34. 125 NEWMAN - Konkani mai ascends the throne, p. 55, cit. por YOUNG, Donna J., Op. Cit. p. 35. 126 VAS, Luís S. Rita - Modern goan short stories, p. vii, cit. por YOUNG, Donna J., Op. Cit. p.35. 127 YOUNG, Donna J., Op. Cit. p. 50.

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como são os casos de Lino Leitão, de Victor Rangel Ribeiro e de Peter Nazareth. A

propósito, Donna J. Young sintetiza:

“Identity does not remain static, but instead it constantly undergoes changes; even among

generations, there are diferences between atittudes and opinions. Goa became part of Índia over

40 years ago, but there are still Goans who view themselves as being Goan or Indian or both. While

identifying with the Portuguese and having Portuguese citizenship was a debated issue before and

during Liberation, most Goans today do not believe they are Portuguese. There are Goans,

however, who continue to speak Portuguese and still love aspects of Portuguese culture, but they

do not claim to have a Portuguese identity.”128

Prilokar tem uma posição mais abrangente:

“Goês é alguém que independentemente do sítio onde viva, cujos antepassados estiveram

domiciliados em Goa em qualquer época da sua história e que está ciente desta conecção e

que a preza e lhe dá valor.”129

CAPÍTULO III

III.1. ADEODATO BARRETO E A GERAÇÃO INDIANISTA E NACIONALISTA

GOESA

Adeodato Barreto tem apenas cinco anos em 1910, quando, em Portugal, é

implantada a República, o que não lhe terá permitido aperceber-se da importância do

acontecimento e das suas consequências sociais, culturais e políticas não só para o país,

mas também para Goa e, necessariamente, para a sua própria vida. Nessa altura, vive em

Goa, no seio de uma família tradicional, católica, de cultura portuguesa, fazendo os

estudos secundários no Liceu Nacional de Margão até aos dezassete anos, idade em que,

128 YOUNG, Donna J., Op. Cit. p. 50. “A identidade não permanece estática, mas, em vez disso, está

constantemente a sofrer mudanças; mesmo entre gerações existem diferenças entre atitudes e opiniões. Goa

tornou-se parte da Índia há quarenta anos, mas continua a haver goeses que se veem a si mesmos como

goeses ou indianos ou ambos. Enquanto a identificação com os portugueses e a cidadania portuguesa foi

um assunto debatido antes e depois da liberação, a maioria dos goeses hoje em dia não acredita ser

portuguesa. Há goeses, no entanto, que continuam a falar português e continuam a amar aspectos da cultura

portuguesa, mas não que não clamam ter uma identidade portuguesa.” 129 PRILOKAR - Who is a Goan? p. 269, cit. por YOUNG, Donna J., Op. Cit. p.13.

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como tantos outros filhos de famílias tradicionais, vai para Coimbra fazer os estudos

universitários.

Até aos dezassete anos, idade das dúvidas e das procuras da adolescência e tendo

em conta a formação que tem, não é difícil adivinhar o modo como Adeodato se confronta

com os acontecimentos de uma Goa, palco de uma grande efervescência cultural, religiosa

e política. Os seus biógrafos, como Lúcio de Miranda, caracterizam a sua personalidade

«[…] de caracter tímido mas com sinais de inquietude de espírito»130.

Orlando da Costa, conterrâneo de Adeodato, relembra o mesmo trajecto feito vinte

e oito anos depois, com a mesma idade, rumo a Coimbra e recorda o estado de espírito

em que ao:

“[…] desassossego de aspirações artísticas juvenis […] se juntava o desassossego de uma

inquietante, contraditória consciência nacionalista emergente – um sentimento descentrado,

situado entre dois polos civilizacionais, espaço em que as culturas ora se avizinhavam, ora se

hostilizavam num sistema planetário de múltiplas constelações.”131

A sua formação intelectual, iniciada no seio da família e na sociedade goesa de

então e, depois, em Coimbra, vai evoluir no contacto com a diáspora goesa de um

regionalismo fortalecido, em Goa, para um nacionalismo adquirido em Lisboa. Esta tese

da formação nacionalista por “etapas geográficas” é defendida por alguns autores. No

entanto, Sandra Lobo defende a ideia de que:

“[…] sobretudo na década de 20, se construiu de forma articulada a afirmação de correntes

nacionalistas em Goa e na metrópole, sendo desmontadas as persistentes afirmações dos estudantes

nacionalistas católicos em terem “descoberto” o nacionalismo e a Índia na metrópole. Sugeriu-se

a existência de triangulações com os núcleos académicos na Europa e possivelmente nos E.U.A.

Foram apontados os sinais precoces de correntes nacionalistas e discutida a importância de T.B.

Cunha132.” 133

Como resultado da sua militância pela causa da Índia sob o jugo colonial,

Adeodato vai também entrar em contacto com a diáspora indiana na Europa e receber as

influências do Indianismo enquanto corrente literária com pressupostos políticos. «Esta

130 MIRANDA, Lúcio, Op. Cit. p. 34. 131 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 7. 132 Tristão de Bragança Cunha (1891-1958), nacionalista indiano e fundador do Goa Congress Committee

considerado o pai do nacionalismo goês. 133 LOBO, Sandra – O desassossego goês: Cultura e política do liberalismo ao acto colonial. Lisboa:

Universidade Nova de Lisboa, 2013. Dissertação de doutoramento, p. 552.

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tendência indianista na vida cultural de Goa foi marcante no período que vai de

sensivelmente de 1900 a 1930»134.

III.2. INDIANISMO

O movimento indianista é caracterizado pela recuperação, enaltecimento e

divulgação das tradições indianas que se vai entrosar em Goa com uma consciência

política crescente que, mesmo com avanços e retrocessos, já vem do século anterior. A

implantação da República em Portugal, em 1910, e as reformas políticas de cariz liberal

vêm a permitir em Goa uma certa liberdade e uma maior consciência dos direitos da

cidadania135.

Do ponto de vista literário, os autores goeses do princípio do século XX

constituem como que uma segunda geração que rompe com a tradição literária anterior e

que se caracteriza por assumir a sua filiação cultural portuguesa e católica, evidenciando

um seguidismo dos cânones românticos da literatura portuguesa, referindo as temáticas

caras às teses do Império português.136 É de referir, no entanto, a existência no século

XIX, de prosadores como Francisco Luís Gomes e Francisco João Costa que já se

manifestam críticos quanto à relação colonial. De qualquer modo, são os poetas que, ao

assumir as teses indianistas, agitam as águas por serem mais interventivos cultural e

politicamente.

As obras de cariz indianista aparecem de 1900 a 1930 e integram, entre outros

escritores, Paulino Dias (1874-1919), Mariano Gracias137 (1981-1931) e Nascimento

Mendonça (1884-1926), Cristóvão Aires (1853-1930) e Adeodato Barreto138 (1905-

1937).

134 PASSOS, Joana - O indianismo do princípio do século XX – O movimento de redescoberta da identidade

Indiana dos Goeses. In Goa passado e presente. Lisboa: CEP e Universidade Católica, p. 255. 135 “[…] o recurso a temas, motivos, figuras históricas, deuses, símbolos e referências culturais indianas,

mas também com uma possível intenção de intervenção política nacionalista, declaradamente pró-indiana

ou tão só alteridade em relação a Portugal” (Idem). 136 “[…] de meados de oitocentos, a qual manifestou alguma lusofilia nos seus poemas de devoção católica,

de nostalgia pela grandeza imperial do passado […]” (Idem, p.266). 137 Com o fim do jornal índia Nova e a morte de Mariano Gracias, em 1931, fechou-se o ciclo “ […]

representado por esta geração indianista.” (Idem, p. 268). 138 Sobre a obra poética e ensaística deste autor debruço-me no Capítulo “O Oriente e o Ocidente na Obra

de Adeodato Barreto“, da presente dissertação.

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A sua inspiração indianista revela-se na valorização do lado oriental da cultura

goesa. Do ponto de vista estilístico, os escritores, particularmente os poetas, revelam

influências da literatura indiana em sânscrito, mostrando estar familiarizados com as

grandes epopeias indianas, como o Mahabharata ou o Ramaiana, e com conhecimento

das literaturas clássica, medieval e pré-moderna e moderna indianas. Ao mesmo tempo,

revelam influências dos cânones do Romantismo tardio da literatura portuguesa, que o

facto de escreverem em português facilita139.

Os traços comuns desta geração de escritores são de natureza mais

estilístico/literária do que ideológica, já que partilham diversas soluções para o futuro de

Goa: «Existiam três alternativas: a libertação de Goa do regime colonial português e sua

integração na União Indiana, a independência do Estado de Goa e autonomia do Estado

de Goa num regime federal ligado a Portugal.»140

Entretanto, as ideias independentistas que grassam “ao lado”, na Índia colonizada

pela Inglaterra, agitam as elites goesas católicas que começam a manifestar uma visão

mais crítica do modelo colonial português e desassossega a comunidade Hindu com

reivindicações crescentes. A questão dos direitos civis ganha dimensão. Estas ideias, que

já vêm desde a viragem do século, ainda que de um modo mais intenso após a I Grande

Guerra, são empolgadas, em 1913, com a atribuição do Prémio Nobel da Literatura ao

poeta bengali Rabindranath Tagore pela sua antologia de poemas Gitanjali141. Trata-se

de uma obra constituída por um conjunto de poemas filosóficos, impregnados por uma

devoção às divindades hindus, que vai chamar a atenção do mundo para os problemas da

Índia, pressionar as autoridades e alertar a opinião pública inglesa, o que, obviamente, se

repercute em Goa.

A investigadora Joana Passos, ao debruçar-se sobre esta geração de poetas, chama

a atenção para a importância das revistas literárias, que os albergam e divulgam a sua

poesia comprometida.142 A Revista da Índia (1913 – 1914) resulta de um projecto cultural

de Paulino Dias e Adolfo Costa que se pauta por afirmar uma identidade cultural goesa e

139 É de referir que a literatura goesa dessa época, além do português, também se expressava em concanim,

marata e inglês. 140 PASSOS, Joana, Op. Cit. p. 259. 141 A 13 de Novembro de 1913 o jornal Diário de Notícias anunciava: “O prémio Nobel da Literatura de

1913 foi concedido ao poeta anglo-hindu Rabindranath Tagore” (SANYAL, Sovon - Universalism of

Tagore: Specificities of the Portuguese Reception. Hispanic Horizon Journal of the Center of Spanish,

Portuguese, Italian & Latin American Studies. Jawaharlal Nerhu University, (2010), p. 347). 142 PASSOS, Joana - O Indianismo do princípio do século XX – o movimento de redescoberta da identidade

indiana dos goeses. In Goa passado e presente. Lisboa: CEP e Universidade Católica, 2013, p. 266.

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oriental, ao mesmo tempo que procura ser «[…] uma forma de intervenção política

através de meios culturais.»143 A Revista Luz do Oriente (1907-1920) constitui-se como

um projeto mais ambicioso, que conta com a colaboração de Paulino Dias e Nascimento

Mendonça, publicando biografias de personalidades indianas, tratados sobre a civilização

hindu, refletindo sobre a importância da Índia no concerto das nações.

O jornal Índia Nova (1928 – 1929), com o subtítulo Jornal de expansão da cultura

indiana144, fundado por Adeodato Barreto, em Coimbra, e que conta com a colaboração

de Telo de Mascarenhas, António Furtado, T. B. Cunha, assume uma intenção «[…] mais

explicita no seu intuito de intervenção política»145 e «[…] ao denunciar o colonialismo

ocidental, ao exaltar a língua concanim, ao divulgar a obra de Tagore e ao encorajar os

goeses a tomar consciência política da sua situação de dependência.»146

A existência do jornal Índia Nova não é alheia ao projeto que leva Adeodato a

fundar em Coimbra, em 1928, o Instituto Indiano147 e que a par do Centro Nacionalista

Hindu criado por Telo de Mascarenhas, em 1926, são a expressão de duas realizações

coletivas com o objetivo de divulgar a cultura indiana.

Para a criação do Instituto Indiano consegue o apoio dos Professores de Coimbra

Mendes dos Remédios, Providência da Costa e Joaquim de Carvalho. No âmbito das suas

143 Idem. 144 “O título escolhido ao evocar o influente semanário Young India, publicado por Gandhi entre 1919 e

1932, denunciava a simpatia pelo movimento nacionalista que vinha abalando o edifício do Império

Britânico na Índia […] O subtítulo “Jornal de expansão da cultura indiana” anunciava o âmbito em que se

moveria, sendo no editorial de apresentação estabelecido o entendimento abrangente do conceito de cultura,

abarcando o campo político-cultural. Tal esforço de divulgação inscrevia-se numa estratégia de resistência

cultural, visando a restauração da identidade goesa, considerando-se que a sua reinscrição na civilização

indiana permitiria a devolução do sentimento de comunidade e a sua união em torno de um projecto de

futuro […] ”investigar e fazer reviver” a cultura indiana, demonstrando a excelência da cultura indiana […]

No que respeita à situação goesa, o discurso respeitante à centralização da questão da língua e correlativo

problema educativo no desenraizamento cultural goês, em particular da sua população católica por nela ter

incidido a política de assimilação, concentrava o essencial da crítica às práticas do domínio português,

destacava a responsabilidade da elite cultural na liderança de uma política possível de resistência cultural e

reflectia as contradições que marcavam as elites nativas” (LOBO, Sandra - Índia Nova: Nacionalismo e

Cosmopolitismo num Jornal Académico. Cultura Revista de História e Teoria das Ideias. Vol. 6, (2009),

p.234. Acedido em Março de 2014 em http://cultura.revues.org150). 145 Idem p. 266. 146 Idem, ibidem. 147 “O Instituto Indiano apresentava-se como um projecto de carácter académico que desafiava a

Universidade portuguesa a criar uma tradição indialogista que impulsionasse o conhecimento da cultura

indiana, cumprindo Portugal finalmente a sua obrigação enquanto país colonizador. A argumentação usada

em defesa da existência do Instituto construía-se como contradiscurso da ideologia colonial, ao subverter o

núcleo da fundamentação do domínio dos povos não-europeus. […] A iniciativa de criação do Instituto

Indiano correspondia à ambição dos estudantes goeses de verem reconhecida e divulgada a relevância

civilizacional indiana, mas assumia-se sobretudo como provocação para uma nova postura de Portugal

enquanto potência colonial.” (LOBO, Sandra, 2009, Op. Cit. p. 234).

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atividades chega a estabelecer relações epistolares com personalidades como o poeta

Rabindranath Tagore, o escritor Romain Rolland e o sanscritólogo Sylvain Lévi.

O primeiro número da Índia Nova publica um documento histórico: a carta148 em

que Tagore responde a Adeodato manifestando a sua satisfação pela fundação do Instituto

Indiano e identificando-se com os objetivos deste, que reconhece serem idênticos aos de

Visva-Bharat, Universidade Internacional fundada por Tagore em Santiniketan. Da

correspondência de Adeodato é de referir também a carta com que Romain Rolland lhe

responde. Estes contactos expressam a notoriedade alcançada por Adeodato quando lhe é

reconhecida internacionalmente os mesmos propósitos do laureado poeta hindu.

“Tagore e Adeodato encontram-se na mesma situação sociopolítica e desejam seriamente alterá-

la através de diálogos inter-civilizacionais com o respeito genuíno e reconhecimento das nações

por alcançar um nível mais alto de entendimento universal.” 149

Outro pilar da intervenção cultural e política de Adeodato é a Editora

“Swatwa”150, que funda e dirige. A publicação da defesa do revolucionário e

independentista hindu Krishna Balab Sahai, presidente da Comissão Distrital do

Congresso Nacional Indiano no Tribunal de Harizabah, é bem o testemunho do seu

envolvimento na luta pela independência da Índia151.

III.3. LÍDERES E ACONTECIMENTOS POLÍTICOS

Do ponto de vista político, é nesta transição do século XIX para o século XX, e

nas primeiras décadas do século XX, que aparece uma geração com intensa atividade

intelectual, não só em Goa, mas também em Portugal e na Europa, nomeadamente, em

Inglaterra, França e Alemanha, onde sopram fortes os ventos de um espírito orientalista

e anti-imperialista que integram uma diversificada rede de correntes académicas,

religiosas, culturais e políticas. Nesta geração pontifica Tristão de Bragança Cunha

(1891-1958) que fica para a História como pai do Nacionalismo Goês. Estuda Engenharia

em Paris, escreve para a imprensa de esquerda na divulgação da causa indiana, chegando

148 Consultar Anexo III. 149 SANYAL, Sovon, Op. Cit. p. 352. 150 Palavra que em sânscrito significa liberdade. 151 Consultar Anexos.

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a colaborar com Nerhu e Rolland no Comité de Informação Pró-Indiano e é filiado na

Terceira Internacional. O seu irmão, Francisco de Bragança Cunha (1887-1954), estuda

em Londres e Paris, é licenciado em Letras e chega a lecionar na Sorbonne. É tradutor de

Tagore, que o convida a integrar a Universidade Internacional Visva-Bharat152.

O médico António Aleixo Santana Rodrigues (1887-1966) doutora-se em

Medicina, em Lisboa, cidade onde tem uma intensa atividade na divulgação do ideário

gandhiano e da cultura indiana numa estratégia de desmontar as falsas ideias correntes na

Europa sobre a Índia e seus líderes. Critica o colonialismo inglês na defesa de uma

Federação Indiana de base democrática, em entrevistas aos jornais Diário de Lisboa e O

Dia, cujos ensaios são reunidos no volume A Índia Contemporânea. Santana Rodrigues

vai ser uma personalidade com grande influência na formação de Adeodato Barreto.

Santana Rodrigues inova o discurso das elites católicas quando chama à colação a

situação dos hindus que, embora perante a nova República Portuguesa tenham

reconhecidos os seus direitos enquanto cidadãos, na prática, tal continua a não

acontecer153.

António Floriano de Noronha (1873-1931) também se debruça sobre esta última

problemática, nomeadamente, num artigo que escreve, em 1922, intitulado Os Hindús e

a República Portuguesa154.

Hegdó Dessai (1885-1949), hindu farmacêutico, advogado e jornalista, é o

fundador e diretor do jornal Bharat. Este periódico surge em 1912, em Pangim, e é escrito

em marata e português. É o mais importante jornal hindu, apesar de ao longo da sua

atribulada existência ter sido sujeito a suspensões, pressões políticas e processos judiciais

por delito de opinião. Com a radicalização progressiva do seu discurso em relação à

problemática goesa, o Bharat vai ser palco «[…] da confluência do nacionalismo hindu e

católico»155.

Fernando da Costa (1900 - ?) estuda engenharia em Lisboa e posteriormente vai

para a Alemanha, onde vem a aderir à Terceira Internacional. Discordando do ideário da

não-violência gandhiana, acredita que só o Partido Internacional Comunista poder apoiar

152 LOBO, Sandra Ataíde - O Reencontro da Indianidade: o nacionalismo goês nos anos 20. In Goa,

Passado e Presente. Lisboa: Centro de Estudos dos Povos de Expressão Portuguesa e Centro de História

de Além-Mar, 2012, p. 278. 153 Idem, ibidem. 154 Idem, ibidem. 155 Idem, ibidem.

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uma ação de cariz militar no processo de independência da Índia, ainda que no caso Goês

propugnasse por um processo autonómico progressivo. Personalidade combativa e

controversa, em 1923, protagoniza um aceso debate no 6º Congresso Provincial, em que

é vaiado por propor para Goa uma solução de inspiração canadiana com ampla autonomia:

“[…] com membros e conselho puramente indianos […] instrução em língua vernácula; haja

escola de sânscrito; que nas escolas se ensine antes de tudo a história da Índia, sobretudo da Índia

Portuguesa.”156

Em 1925, Fernando da Costa, conjuntamente com António Furtado, Telo de

Mascarenhas, António Noronha e Druston Rodrigues, é um dos principais organizadores

de um histórico jantar de Natal, onde também participa Adeodato Barreto como líder da

comunidade de estudantes goeses de Coimbra.

Sandra Lobo chama a atenção para a efervescência cultural e ideológica que anima

Goa nessa altura, com intensas polémicas nas páginas dos principais jornais.

Paralelamente, existe uma atividade editorial diversificada com textos indianos e

traduções para português de textos redigidos em diversas línguas vernáculas, em marata,

hindi, bengali e sânscrito157.

Bascora Sar Dessai (1889-1979), defensor e divulgador do tilakismo158, através

do jornal Kesari, influencia a comunidade hindu goesa.

Luís Menezes de Bragança (188-1938), diretor do jornal O Debate, republicano,

tem uma linha editorial que se caracteriza pela defesa dos valores laicos e democráticos.

Os jornais Bharat e O Debate vão protagonizar intensas e apaixonadas polémicas,

nomeadamente, sobre a questão hindu.159 No Bharat, Hegdó Dessai contesta a ideia,

politicamente correta, de Goa ser um país essencialmente católico e desenvolve as suas

teses em prol da cidadania hindu. O jornal vai apoiar, em Junho de 1920, a proposta de

Bascora Sar Dessai da criação de um Congresso Provincial Hindu, à imagem do

Congresso Nacional Indiano, que defenda os interesses da comunidade hindu. A polémica

rebenta e o jornal O Debate contesta estas posições, receoso de que essas propostas

intensifiquem as tensões entre as comunidades, remetendo para as virtualidades do regime

republicano recém-implantado, como o espaço onde o debate e resolução dos problemas

156 Idem, p. 29. 157 Idem, ibidem. 158 Ideário e pensamento do político marata Bal Gangadhar Tilak. 159 LOBO, Sandra Ataíde, 2012, Op. Cit. p. 275.

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existentes devem ser equacionados. Os líderes hindus, por sua vez, desconfiam da

bondade das intenções e apontam a contradição entre as desigualdades existentes entre as

comunidades hindus e católicas, embora a Constituição Republicana proponha a

igualdade. Assim, defendem que só a comunidade hindu, organizada, pode defender os

seus interesses. O facto de o direito de voto depender do saber ler e escrever, é outro pomo

da discórdia.

A radicalização da linha editorial do jornal Bharat manifesta-se numa defesa cada

vez mais intransigente da causa hindu. Em 1922, dá relevo à conferência que o redator

principal do jornal Kesari faz em Goa, consubstanciada na frase «India is one and

indivisible» e, em 1923, toma posição contra as Comemorações do Centenário de Vasco

da Gama, o que é motivo para mais uma suspensão;

“Somos hindus e índios. Isto é, não somos portugueses de Portugal nem portugueses convertidos

da Índia, consideramo-nos hindus e índios aportuguesados pelo poder do Destino. […] Esta

circunstância não obsta, porém, a que sejamos amigos e admiradores dos bons portugueses de

Portugal e da Índia. […] Porquê, pois, tamanho chinfrim em volta do nosso protesto contra a

celebração do centenário dum mau português?”160

Em 1926, o Jornal Bharat dá grande relevo ao jantar de Natal de 1925 da

comunidade católica goesa em Lisboa, onde é defendida a independência total da Índia.161

Discursam Zacarias Antão, Benedito Fulgêncio Brito, Aires Gracias, Druston Rodrigues

e Cunha Gomes que subscrevem a principal mensagem do movimento:

“Que pretendemos nós? […] Independência completa de toda a índia, isenta de todas as ligações

imperiais e livre de toda a supervisão estrangeira; estabelecimento da República Federal dos

Estados Unidos da Índia da qual Goa constituirá um estado federal. Não se trata, pois, da

emancipação de um povo apto para se governar. Trata-se, sim, mais da sua libertação política.”162

A iniciativa tem grande repercussão em Goa, com o jornal Bharat a fazer uma

edição especial. A publicação dos temas e a nomeação dos participantes provocam um

alarme nas famílias dos estudantes participantes que pressionam os filhos a demarcarem-

160 UM GRUPO DE ACADÉMICOS, Agora nós. In Bharat, 10/1924, cit. por LOBO, Sandra Ataíde,

2012, Op. Cit. p. 82. 161 À semelhança do que dias antes tinha acontecido em Londres com a realização de um encontro de

estudantes indianos, a diáspora goesa de Lisboa reúne-se num jantar. O evento juntou nacionalistas

católicos, a maior parte filhos das elites católicas goesas a estudar em Lisboa. O objetivo da reunião, além

do envio de um telegrama de solidariedade aos estudantes indianos em Londres, assim como aos núcleos

académicos de Coimbra e do Porto, seria decidir a fundação de um partido nacional indiano, tendo os

promotores a preocupação de frisar o carácter supra religioso da iniciativa. 162 Pela Pátria. In Bharat, 15/4/1926, cit. por LOBO, Sandra Ataíde, 2012, Op. Cit. p. 272.

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se das intenções políticas do jantar de Natal. Várias retificações são feitas,

nomeadamente, dos sectores católicos ao substituir-se a palavra hindu por indiano163.

Assim, o movimento nacionalista vai-se estruturando, ainda que seja percetível a

existência de várias fações, nomeadamente, uma fação gandhiana em oposição a outra,

mais radical e mais próxima de Nehru. Com o decorrer dos tempos o movimento

nacionalista vem a ser fraturado por várias dissensões consubstanciadas, por exemplo,

nas leituras marxistas do nacionalismo indiano feitas por Tristão de Bragança Cunha. Por

sua vez, Fernando da Costa divide os goeses em «[…] nacionalista, medrosos, fanáticos

e canalhas»164, chegando a insultar Meneses de Bragança, personalidade

respeitabilíssima em Goa. Telo de Mascarenhas refere-se aos portugueses como «[…]

piratas e tiranos que devemos desdenhar e olvidar como única forma de vingarmos os

nossos antepassados»165 em intervenções inflamadas que ofendem a sensibilidade de

sectores mais lusófonos da sociedade goesa.

A criação em Goa da secção goesa do Congresso Nacional Indiano, em 1928, não

esconde as dificuldades da coordenação das várias sensibilidades nacionalistas,

nomeadamente, com as da metrópole, onde o Centro Nacionalista Hindu se vem a diluir

nunca tendo conseguido organizar-se num partido. Neste contexto, Adeodato Barreto, que

se considera um nacionalista da escola de Gandhi, propõe uma prática que se preocupe

com a adesão dos goenses à causa através de uma pedagogia do nacionalismo, centrada

numa intervenção cultural, ainda que com intenções políticas. É assim que surgem as três

realizações, já referidas, da praxis de Adeodato: o Instituto Indiano, o jornal Índia Nova

e a editora “Swatwa”.

No plano individual, os nacionalistas continuam a desenvolver a sua atividade em

prol da causa. Druston Rodrigues, em Lisboa, entrevista várias personalidades

oposicionistas da intelectualidade portuguesa, como Reinaldo Ferreira, Rocha Martins,

Ferreira de Castro, Mário Domingues que expressam simpatia pela causa indiana.

António Furtado, Telo de Mascarenhas e T. B. Cunha vão mais tarde apoiar a integração

de Goa na União Indiana. Adeodato Barreto colabora com vários jornais oposicionistas e

163 Adeodato Barreto, líder do núcleo dos estudantes de Coimbra, e assumidamente nacionalista, é um dos

protestativos ao denunciar manobras abusivas. 164 Pni. In Bharat, 8/4/1926, cit. por LOBO, Sandra Ataíde, 2012, Op. Cit. p. 273. 165 MASCARENHAS, Telo de - A morte dos ídolos. In Bharat, 4/11/1926, cit. por LOBO, Sandra Ataíde,

2012, Op. Cit. p. 273.

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publica uma série de ensaios na revista Seara Nova, reunidos mais tarde no volume

Civilização Hindu.

De qualquer modo, os anos 20 são caracterizados por Sandra Lobo como:

“O início da ruptura das elites goesas com o projecto de construção de uma identidade goesa de

nacionalidade portuguesa e da adopção do projecto de construção duma nacionalidade indiana.

Este processo verificar-se-ia particularmente difícil para as elites católicas nas quais nacionalidade,

religiosidade e poder social tenderam a confundir-se.”166

Joana Passos refere o fim do jornal Índia Nova, em 1929, e a morte de Mariano

Gracias, em 1939, como o fim de um ciclo em que o Estado Novo, fortalecido em

Portugal, vai silenciar a atividade literária goesa e tentar reprimir as ideias nacionalistas.

Corta, assim, cerce, as possibilidades da resolução política dos destinos de Goa por via

diplomática, como acontece com os colonialismos Inglês e Francês na Índia, dando azo a

uma resolução imposta pela força das armas, em 1961. No entanto, por «[…] ironia do

destino, Goa foi, mesmo assim, a primeira colónia portuguesa a libertar-se das malhas do

império.»167

CAPÍTULO IV

IV.I. ADEODATO BARRETO E A LITERATURA INDO-PORTUGUESA. O

CONCANIM E A QUESTÃO LINGUÍSTICA

Adeodato Barreto é, segundo especialistas168, um dos escritores mais importantes

da literatura indo-portuguesa, com características originais, ao introduzir a questão do

nacionalismo na sua geração literária.169

A chamada Literatura Indo-portuguesa, conceito polémico, é constituída por um

corpus literário imenso, composto ao longo de quinhentos anos de relações coloniais entre

Portugal e Goa e que contempla variados estilos, como a poesia, o conto, o romance, a

166 LOBO, Sandra Ataíde, 2012, Op. Cit. p. 274. 167 PASSOS, Joana, 2012, Op. Cit. p. 268. 168 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. 267. 169 MACHADO, Everton V- Un exercise de Mythocritique à partir d´un poète Indoportugais du XXE Siècle.

In BUSCHINGER, Danielle (ed.) - Mythes e Metodologies. Amiens: Presses du Centre d´Études

Médiévales de l´Université de Picardie – Jules Verne, 2012, p.154 – 158.

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critica, o teatro, a historiografia, a religião e outras, escritas em mais de catorze línguas,

entre as quais, o concanim, o marata, o português, o francês e o inglês.

Vimala Devi e Manuel de Seabra consideram António Galvão, o Apóstolo das

Molucas (? - 1557), como o primeiro escritor goês de língua portuguesa, que ocupa «[…]

um lugar dos mais importantes entre os prosadores de língua portuguesa do século

XVI»170, pertencendo a uma geração que integra, entre outros, Jorge de Lemos ( ? – 1593)

Baltasar da Costa (1538-1580), André Baião (1556-1640), Belchior de Figueiredo (1529-

1607) e Lourenço Pires (? - 1601).

O ciclo de cinco séculos por que se espraia a Literatura Indo-portuguesa ultrapassa

o ano de 1961, data da integração de Goa na União Indiana, e é já nos séculos XX e XXI

que se referencia a última geração de escritores indo-portugueses. Esta geração, entre

outros, é constituída por escritores residentes em Goa como Maria Elsa da Rocha (1923),

Carmo de Noronha e Epitácio Dias (1928-2010).

Com obras publicadas em Lisboa e residindo fora de Goa é de referir, entre outros,

Orlando da Costa (1929-2006), que escreve a peça de Teatro Sem flores nem coroas

(1971), que versa a integração de Goa na União Indiana e O último olhar de Manú

Miranda (2000) sobre o fim da colonização portuguesa, assim como Vimala Devi, (1938),

Agostinho Fernandes (1932). Com o desaparecimento destes autores desaparecerá a

última geração de escritores da Literatura Indo-portuguesa171.

IV.2. DEFINIÇÃO E SISTEMATIZAÇÃO DA LITERATURA INDO-

PORTUGUESA

O fanatismo religioso dos primeiros tempos da presença de Portugal em Goa, com

a consequente destruição do acervo literário existente em línguas vernáculas, provoca um

hiato na construção de uma tradição literária, pelo que é preciso transcorrer um século e

meio após a chegada dos portugueses para aparecem as primeiras obras literárias escritas

em português, língua que o escritor goês assimilou como a sua língua materna.

Os primeiros escritores goeses são católicos, filhos de metropolitanos que, em

Goa, exercem funções militares, mercantis ou administrativas, perfeitamente integrados

170 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 104. 171 MACHADO, Everton V - Vida, paixão e morte da literatura indo-portuguesa. Encontros lusófonos 2010-

09-30. Sophia University, 2010, pp. 25, 26.

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na estratificação sociológica de Goa. Face a estas características sociológicas e culturais

tão diversificadas, Manohar Sardessai levanta a questão de saber o que se entende por

Literatura Indo-Portuguesa172.

O conceito indo-português combina necessariamente elementos da Índia e de

Portugal, pelo que Eufemiano de Jesus Miranda divide os escritores indo-portugueses em

três grupos173:

- escritores portugueses que escrevem sobre a Índia, onde se incluem

personalidades como João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda, Diogo do Couto,

Cristóvão Aires, etc.;

- escritores etnicamente portugueses que vivem na Índia, como Cristóvão Aires,

Tomás Ribeiro, Fernando Leal;

- escritores etnicamente indianos de Goa, que em cânones literários europeus

versam temas locais de colorido indianista. É neste grupo que se inclui Adeodato Barreto,

integrante de uma geração talentosa que desenvolve uma literatura goesa escrita em

português e cujo início é geralmente assinalado em 1866 com a edição do romance Os

Bramahanes de Francisco Luís Gomes.

Será Joana Passos a dar continuidade à reflexão sobre este assunto, sublinhando

que «o que é relevante para inserir um texto no cânone de uma dada literatura é a sua

relação com essa sociedade e esse povo num determinado tempo.»174, questionando a

inclusão nesse grupo escritores como Baltazar da Costa (1538-1580), que escreve sobre

diversas parte do império fora de Goa e Belchior de Figueiredo, que se debruça sobre as

atividades da Companhia de Jesus no Oriente, editadas em Lisboa.175 Já Vimala Devi e

Manuel de Seabra chamaram a atenção para outros casos, na literatura mundial, em que

autores têm nacionalidades diferentes da literatura em que são integrados.176

A investigadora Joana Passos define os critérios a ter em conta para a classificação

172 SARDESSAI, Manohar - The three dimensions. Indian Literature. New Delhi. Vol. 35, (1992), p.131. 173 MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit.. p. 18. 174 PASSOS, Joana - Literatura Goesa em Português nos Séculos XIX e XX: Perspectivas Pós-

coloniais e Revisão Crítica. Ribeirão: Editora Humus, 2012, p. 25. 175 Idem, ibidem. 176 É o caso de Panaït Istrati que escreveu sobre a Roménia em francês, de Rudyard Kipling que escreveu

sobre a Índia, nasceu na Índia mas que é considerado um autor intrinsecamente inglês, enquanto Soyinca e

Elechi Amadi são considerados escritores nigerianos embora escrevendo em inglês, e em relação a outros

autores fica a mesma dúvida: Arthur Koestler (literatura húngara ou inglesa?), Dom Moraes (literatura

indiana, goesa ou inglesa?), Naipul (Índia, Jamaica, Inglaterra) Conrad, etc. (DEVI, Vimala; SEABRA,

Manuel de, Op. Cit. p. 103).

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de uma literatura, tais como a temática da obra, a naturalidade do autor e a língua em que

está escrita. Diferencia historicamente uma fase indo-portuguesa, que tenta o

conhecimento e a compreensão da Índia, de uma fase a que se poderá chamar literatura

goesa em língua portuguesa, já autónoma por privilegiar a realidade local, mas de

características híbridas por traduzir uma miscigenação cultural. A transição de uma fase

para outra acontece, necessariamente, integrada no processo histórico de Goa, quando os

escritores começam a ter uma consciência crítica das suas raízes indo-portuguesas e

mergulham na realidade goesa, o que historicamente coincide com a chegada ao território

das ideias liberais da metrópole, que irão conduzir à Carta Constitucional de 1820.

IV.3. FUNDAMENTOS IDEOLÓGICOS E CARACTERIZAÇÃO DA

LITERATURA INDO-PORTUGUESA

Nos séculos XVII e XVIII, a religião é o principal tema dos escritores goeses, em

que dois terços são sacerdotes. É nestes séculos que se estruturam as bases de uma cultura

goesa de características luso-indianas e que, no caso da literatura, evidencia vitalidade ao

estruturar-se num período de tempo de dois séculos, ao passo que as literaturas europeias

demoraram nove séculos a evoluir da matriz bárbaro-romana.

Quando os escritores goeses da fase da Literatura Indo-portuguesa, propriamente

dita, saem dos conventos, deixam de olhar para a metrópole como fonte dos seus

interesses literários e mergulham no seu próprio meio social e cultural, despertam para a

realidade e confrontam-se com o incontornável problema da existência das castas, que

elegem como um dos seus temas principais. O seu hibridismo cultural é caracterizado

pela:

“[…] coexistência na mesma área da cultura do espírito democrático ocidental com o espírito

teogónico indiano, apoiado na noção de castas de origem rácica e política e justificadas pela

religião; da universalidade cristã com o circunstancialismo social hindu; da mentalidade

pragmática europeia com a mentalidade conceptualista indiana; da rigidez moral judaico-cristã

com o espírito de tolerância próprio de uma cultura tropical ainda de fortes raízes totémicas; do

puritanismo cristão com o vitalismo do paganismo hindu”177

177 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 114.

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O escritor indo-português depara-se, então, com uma questão moral, o que o leva

a um grande esforço de interpretar e justificar o que, para ele, à base da religião que

professa, não se compreende nem se justifica. O conceito de que todos os homens são

filhos de Deus, um dos pilares fundamentais da teologia cristã, esbarra com a tradição

teológica hindu de serem os brâmanes (brâhman) nascidos da boca de Siva de onde são

recrutados os sacerdotes, os chardós (Kshatriya) do braço, de onde são recrutados os

guerreiros, os vaixiás (vaisya) da coxa e os sudras (sûdra) dos pés, de onde são recrutados

os elementos da população para funções menos prestigiadas.

Assim, as primeiras obras literárias de Goa refletem esta problemática, como as

dos padres Francisco do Rego (1686), António João de Frias (1664-1727) e Leonardo

Pais (1662-1715), que, enquanto católicos indianos, procuram integrar o conceito de casta

nas características sociais da Índia, numa perspetiva da teologia católica. João da Cunha

Jaques escreve contra o Hinduísmo enquanto paganismo e Sebastião do Rego (1699-

1785) pretende provar que a chegada dos portugueses à Índia foi providencial no sentido

de uma missão designada por Deus.178

Vários fatores condicionam o desenvolvimento da Literatura Indo-portuguesa,

como o facto de não haver tipografia em Goa, o que só acontece em 1556 sendo, ainda

assim, a primeira a ser instalada em toda a Índia. Tal acontecimento transforma Goa no

centro difusor da cultura portuguesa no Oriente, publicando basicamente cartilhas,

catecismos, vocabulários e manuais de línguas orientais, não tendo tido, pelo menos numa

primeira fase, grandes repercussões na atividade literária.179

A fase da literatura goesa em língua portuguesa coincide com uma liberalização

da política colonial em Goa, fruto da implementação do liberalismo que permite aos

escritores começar a integrar novas preocupações temáticas nos cânones literários

europeus utilizados, mormente no Romantismo tardio português, ao mesmo tempo que se

começa a sentir uma maior intervenção da comunidade hindu.

178 Idem, p. 115. 179 Durante este período foram publicadas, entre outras, as seguintes obras: Catecismo da Doutrina Christã

de Francisco Xavier, em 1557, Compêndio Espiritual da Vida Christã de D. Gaspar Leão Pereira, 1º

arcebispo de Goa, em 1561, Colloquios dos Simples e Drogas Medicinais de Garcia da Orta, em 1563,

Carta ao Povo de Israel de D. Gaspar Leão Pereira, em 1565, Constituições Synodaes do Arcebispado de

Goa, 1568, Desenganos Perdidos, 1573, Purâna, em verso concanim (livro sagrado hindu, pertencendo à

classe dos smirtis, ou livros a serem memorizados) de Thomas Estêvão (1549-1619, jesuíta e missionário

inglês, escritor e linguista na Índia Portuguesa. (Idem, p.133)

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Na viragem dos séculos XIX/XX surge a geração dos anos 20, influenciada pelas

ideias indianistas e nacionalistas que agitam a Índia, a germinar anseios de independência

e que vai beneficiar das ideias democráticas permitidas pela implantação da República,

em 1910, acentuando a alforria desta literatura face a Portugal. No entanto, a ausência de

um público que justifique a existência de editoras leva a que as obras sejam quase todas

edições de autores e praticamente só circulam em Goa.

A literatura goesa em língua portuguesa nunca se consegue estruturar num campo

literário próprio, pelo menos, do ponto de vista estilístico e estético, tendo mantido uma

subordinação aos cânones «[…] da literatura ocidental […] e não se ter enriquecido com

o português dialetal de Goa.»180 Não se encontrando na Literatura Indo-portuguesa:

“[…] essa harmoniosa conciliação entre temática e forma de expressão de que fala Celso Cunha

a respeito da literatura brasileira “que se encontra na literatura lusófona africana, asserção também

aplicável à África literária lusófona e ainda ao mais representativo da literatura indiana de língua

inglesa […]”181

IV.4. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E LITERÁRIO DA LITERATURA

INDO-PORTUGUESA

O desenvolvimento do movimento literário goês, ao longo de cinco séculos, vai

passar, necessariamente, por períodos de ofuscamento e de renascimento, num ciclo de

destruição/criação, que remete para outras referências, não a despropósito, tendo em conta

o tema desta dissertação, como o mito do eterno retorno, tão caro à filosofia hindu. Estes

ciclos têm que ver com os ventos que sopram da metrópole na sequência das alterações

políticas que aí se vão processando.

Os principais períodos de ofuscamento cultural de Goa, para além da presença

durante três séculos, do século XVI ao século XIX, da Inquisição, preocupada com o

Judaísmo e Islamismo, gentilidade, heresias e superstições, têm que ver com outros

acontecimentos como, por exemplo, em 1657, ao ser proibida toda a imprensa,

inclusivamente a eclesiástica, e, em 1759, quando os jesuítas são expulsos da Índia, o que

180 EVERTON, Machado V., Op. Cit. p. 26. 181 CUNHA, Celso - Língua Portuguesa e Realidade Brasileira. Lisbonne: Sá da Costa, «Livros Plural»,

1999, p. 15, cit. por MACHADO, Everton V., Op. Cit. p. 26.

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vai provocar um forte vazio cultural em Goa de que o Oriente português se vai ressentir.

Os períodos de renascimento cultural, em Goa, ocorrem principalmente durante o

século XVIII, tais como durante o governo de Marquês de Pombal (1699-1782), em que

é implementada uma política que tem por base a equiparação dos goeses aos habitantes

da metrópole182, reconhecendo-lhes, nomeadamente, a possibilidade de ser agraciados

com Comendas. Neste período, em 1774, é extinta, temporariamente, a Inquisição, para

ser logo reinstalada em 1778, aquando da destituição do Marquês de Pombal.

A importância histórica da Carta Constitucional de 1820, sessenta e nove anos

depois da expulsão dos jesuítas, vem a permitir novo renascimento cultural do território.

É extinta definitivamente a Inquisição, e a Junta Provincial, ao reinstalar a tipografia, vem

a permitir o aparecimento da imprensa periódica, animada pelas ideias liberais. É neste

contexto que se sequenciam os governos dos Secretários do Governo da Colónia Cunha

Rivara, de 1855 a 1870, e Tomás Ribeiro, de 1870 a 1901. Ao primeiro deve-se o

reconhecimento do concanim, que passa a ser ensinado nas escolas na convicção de que

a implementação do português passa pelo desenvolvimento das línguas vernáculas. É

nesta altura que Rodolfo Delgado, filologista de renome internacional, publica os

dicionários Português-Concanim, Concanim-Português, Vocábulos Portugueses nas

Línguas Asiáticas e Vocábulos Indianos nas Línguas Indianas. A Tomás Ribeiro deve-se

a fundação do Instituto Vasco da Gama, instituição vocacionada para o desenvolvimento

da ciência e da literatura, em Goa, que afirma no seu discurso de inauguração que «a Índia

é terra para letras.»183

A consolidação do regime constitucional, em Goa, vem, assim, possibilitar uma

nova dinâmica sociocultural em que as letras goesas são ateadas por um surto de

desenvolvimento, despertam potencialidades adormecidas e fazem surgir uma nova

plêiade de escritores.184

182 “[…] posto que sejam na cor mais brancos ou mais escuros. Porque além de serem todos egualmente

vassalos de S. Magestade, assim é conforme do direito divino, natural e das gentes.” (MIRANDA,

Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 60). 183 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 167. 184 Francisco Luís Gomes (1829 - 1869), considerado como o escritor goês representante do liberalismo em

Goa, tendo vindo a representar o círculo eleitoral de Margão no parlamento português, em 1860. O seu

romance os Brahamanes é considerada a primeira obra de literatura moderna a denunciar os abusos do

colonialismo, a sugerir a retirada das potências estrangeiras e ainda constitui o primeiro ataque frontal ao

sistema hindu de castas. Mariano Gracias (1871-1931), poeta muito influenciado pela doutrina da

metempsicose, revelando-se um homem muito versado na cultura da Mãe-Índia. Paulino Dias (1874-1919)

referenciado pelo soneto Viasa que expressa a beleza e exalta o processo artístico da epopeia Mahabharata.

Nascimento Mendonça (1884-1926), considerado o maior poeta indo-português, conhecido,

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Para o investigador Eufemiano de Jesus Miranda, o escritor indo-português:

“[…] definiu-se como homem sob o signo da ruptura, sendo etnicamente indiano, é uma pessoa que

em virtude da cultura cristã ocidental que assimilou e a existência de um substrato subconsciente

upanixádico-vedântico hindu que o domina, assume de uma maneira dolorosa e dramática, à maneira

dos românticos, no desejo de saber quem é e no desejo de se definir. Salvo raríssimas excepções,

definiu-se como um indiano autêntico, telúrico, de expressão portuguesa.”185

Esta fase histórica de Goa, influenciada pelas ideias liberais e depois republicanas,

assiste ao aparecimento de várias publicações do âmbito literário e cultural, com

influência e tempo de vida variáveis, em que se destacam a Chrónica Constitucional,

editada pelo Governo, O Português, em Damão, o Mensageiro Bombaiense, em

Bombaim, A Ilustração Goana, influente revista literária, a Harpa Literária, e O Heraldo,

editado no início do século XX e que vem a ser o primeiro jornal diário em Goa e nas

colónias portuguesas, e a Luz do Oriente, que no seu estatuto editorial se propunha «[…]

fornecer aos ocidentais todas as noções no que diz respeito ao Oriente fazendo inteira luz

sobre os seus usos e costumes.»186

Inúmeras publicações, ainda que de vida efémera, emprestam um forte contributo

à difusão da literatura, o que supre o vazio provocado pela inexistência de uma editora

em Goa. Paralelamente, o estatuto de escritor é socialmente muito valorizado, já que sê-

lo significa ter prestígio, assim como ser alguém que domina a língua portuguesa, tendo

visibilidade nos meios de comunicação.

fundamentalmente, por dois poemas A Morta e Vatsalá. Orlando da Costa (1929-2006), escritor integrado

no movimento neorrealista, cujo principal romance é O Signo da Ira (1962), que é considerado o primeiro

romance adulto de ambiente goês. Laxmanrao Sardessai (1904-1986) é considerado o mais criativo escritor

indo-português da comunidade hindu, autor de contos e poesias. Floriano Barreto (1877-1905), autor que

se caracteriza por um romantismo já um pouco decadente, é o autor do longo poema A Bailadeira da Índia.

Gip, pseudónimo de Francisco João da Costa (1864-1901), em Jacob e Dulce retrata a sociedade goesa dos

séculos XIX e XX, caracteristicamente burguesa e feudal. Agostinho Fernandes (1932), médico formado

na Escola Médico-cirúrgica de Goa, é o autor do romance Bodki, centrado na prática de um médico que

procura combater o obscurantismo numa zona rural da Índia. Vimala Devi, de seu nome próprio Teresa da

Piedade Baptista Almeida (1932), que, além de poetisa, contista e crítica, é autora da obra A Literatura

Indo-portuguesa, referência na historiografia literária goesa. Adeodato Barreto (1905-1937), cuja

personalidade e obra me merece atenção desenvolvida em capítulos autónomos. Para além da poesia e do

romance, é de referir a existência de outros escritores que se exprimiram no teatro, no jornalismo e na

historiografia, que desde Filipe Nery Xavier (1804-1875), passando por José Inácio de Loyola (1834-1902),

José António Ismael Gracias (1857-1919), Luís Menezes Bragança (1878-1938) até Rajarama Pundolica

Sinai Quelecar (1894-) e Megasham Deshprabhu (1902-) (Idem, p. 224). 185 MIRANDA, Eufemiano de Jesus, Op. Cit. p. 299. 186 Idem, p. 48.

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IV.5. A LITERATURA INDO-PORTUGUESA – UMA MORTE ANUNCIADA. A

REVISITAÇÃO DOS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS E DOS ESTUDOS DA

SUBALTERNIDADE.

Na medida em que o português é a língua em que a Literatura Indo-portuguesa é

escrita, não é de estranhar que o seu ocaso, em Goa, após a sua integração na União

Indiana, em 1961, tenha ditado o seu desaparecimento progressivo. No entanto, Vimala

Devi e Manuel de Seabra questionam-se sobre «[…] a possibilidade de a literatura indo-

portuguesa continuar viva»187 após a integração de Goa na União Indiana ao constatar,

em Goa, a existência de escritores como Maria Elsa da Rocha, Carmo de Noronha e

Epitácio Pais e, em Portugal, de Orlando da Costa, Agostinho Fernandes e a própria

Vimala Devi, ainda que a viver em Barcelona. Refere, igualmente, a «[…] existência de

vários jovens, poetas e críticos que ainda não nos deram a medida das suas

possibilidades.»188 Elege à categoria de «[…] fenómenos muito interessantes e que podem

vir a ter muito significado»189 os casos de Laxmanrao Sardessai, escritor de língua marata,

nacionalista, preso político por lutar pela integração de Goa na União Indiana e que

começou a escrever em português após a integração; Evágrio Jorge, também partidário

da integração indiana, ex-chefe dos serviços de música ocidental e língua portuguesa da

emissora de Goa e que após a integração se começa a debruçar sobre temas da cultura

portuguesa; assim como R.V. Pandit, que, também após a integração, inicia a tradução

para português da sua poesia em concanim.190

O certo é que a existência de um corpus literário, forjado ao longo de quinhentos

anos, fazendo parte inalienável da História de Goa e do seu relacionamento com aspetos

muito importantes da História de Portugal, levanta outro tipo de questões.

Segundo o investigador Everton Machado, em 2011, aquando da celebração do

aniversário do cinquentenário da integração de Goa na União Indiana (1961-2011), a

intelectualidade local desperta para o interesse crítico da história colonial de Goa e a

consequente chamada de atenção para a existência:

“[…] de uma literatura em português na costa malabar […] para os pesquisadores trata-se aí de

187 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 343. 188 Idem, ibidem. 189 Idem, ibidem. 190 Idem, ibidem.

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mais um desafio ao mesmo tempo que esta literatura começa a chamar a atenção de comparatistas,

lusitanistas e indianistas em Portugal, na Índia, na França, no Brasil e no Reino Unido, ela começa

a desaparecer, devido, sobretudo à situação bastante crítica nos dias actuais da língua portuguesa

em Goa.”191

Ao mesmo tempo, os estudos pós-coloniais e os estudos da subalternidade,

enquadrados por novos pressupostos ideológicos e propondo novas metodologias de

análise literária e histórica, dão um novo e valioso contributo para a compreensão da

Literatura Indo-portuguesa, integrada no processo histórico. Uma revisitação desta

herança literária, numa perspetiva dos estudos coloniais e pós-coloniais, terá em vista:

“Avaliar questões de percepção cultural, isto é, o modo como as culturas locais são percebidas

pelas estrangeiras, e como essa percepção afecta a maneira como a hierarquia social é vista de

baixo para cima e de que modo estereótipos enraizados produzidos por textos orientalistas

(misticismo, exotismo, casta, representações de género como sati, purdah, casamento infantil)

racionalizaram a presença europeia no país.”192

Everton Machado, no âmbito dos Subaltern Studies, refere que, exatamente vinte

anos após a integração de Goa na Índia, um grupo de historiadores indianos, recuperam

dos diários da prisão de Antonio Gramsci, Cuaderni del Carcere (1940), as noções de

subalterno e de hegemonia, o que permite uma reflexão sobre como uma certa

intelectualidade indiana pode encarar a Literatura Indo-portuguesa como herança de uma

situação colonial.

“ […] enquanto o teórico italiano procura compreender como se organiza e se reproduz o poder no

seio das sociedades capitalistas, os subalternistas insistiam numa concepção da história regida pela

ideia de cultura dominante a fim de sublinhar a capacidade desta em eliminar ou afastar a herança

cultural dos subalternos […] ora, uma análise das obras literárias escritas em português pelos

goeses pode contribuir para o alargamento à Índia Portuguesa das questões levantadas pelos

Subaltern Studies, não apenas para ao sondar a implicação da religião no protagonismo social do

meio convertido pelos portugueses ao catolicismo - visto tratar-se de uma literatura

exclusivamente por autores educados neste – mas ainda fornecer pistas para o redimensionamento

tanto de factos históricos como de situações quotidianas […] a questão da língua ou antes da

subalternização do concanim em Goa é um exemplo flagrante oferecido pelos autores indo-

portugueses ao se ter relegado o concanim para o tratamento com os domésticos ou outras classes

baixas da sociedade, por vezes nem mesmo ocorrendo a utilização desta língua no universo restrito

familiar.”193

191 MACHADO, Everton V. - Vida, Paixão e Morte na Literatura Indo-portuguesa. In Encontros

Lusófonos. Sophia University, 2010, p.26. Acedido em Março de 2015 em

attp://repositor.cc.sophia.ac.jp/dspace/handle/123456789/1690. 192 PEREZ, Rosa Maria - O Tulsi e a Cruz. Lisboa: Temas e Debates Círculo dos Leitores, 2012, p. 22. 193MACHADO, Everton V. - Vem Chandrim feiticeiro: Goa subalterna na Literatura Indo-portuguesa. In

MATOS, Artur Teodoro de; CUNHA, João Teles e (ed.) - Goa: Passado e Presente. Lisboa: Centro de

Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa/Centro de História de Além-mar, 2012, p. 885,886

e 887.

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A historiografia do nacionalismo indiano encontra nos Subaltern Studies um

suporte que lhe permite analisar o discurso das elites, coloniais e colonizadas, analisando

a subalternidade que se manifesta «[…] através das relações de classe, género, raça,

parentesco, etc., associando ao seu projeto a análise literária do discurso.»194

Há várias referências na Literatura Indo-portuguesa de como a língua é utilizada

como estruturante da sociedade goesa e na separação entre cristãos e os hindus, como é

revelado nos romances Casa grande e outras recordações de um velho goês (2008), de

Leopoldo da Rocha, no conto Natak (1936), de Vimala Devi, e em O úlltimo olhar de

Manú Miranda (2000), de Orlando da Costa.

Numa perspetiva dos Subaltern Studies, Everton Machado descobre aspetos da

resistência da população goesa face à cultura do colonizador em inúmeros textos, como

por exemplo, no romance de Orlando da Costa O útimo olhar de Manú Miranda onde é

patente:

“[…] a crença dos dravidianos na árvore mágica kuiãmork plantada afrontosamente junto a um

templo cristão, tanto marcam na narrativa a resistência ao colonialismo português quanto velam

pela ruína financeira da aristocracia rural até ao início, na intriga, das primeiras movimentações

dos satyagrahas195 e dos freedom fighters196 em Goa.” 197

Já no poema “Chandrîm”198 de Vimala Devi, a escritora invoca o deus dravídico

Chandrîm, das culturas animistas do sul da Índia e venerado também pelos camponeses

católicos, além dos hindus, o que é perspetivado como uma atitude de protesto.

“Vem, Chandrim feiticeiro, com a tua luz concreta,

Transformar as casas de churtas199 em casas de prata […]

Vem, Chandrim, alumiar poços e regatos,

Onde mainatos200 vergados, lutam com a imundície […]”

194 Idem, p. 886. 195 Resistência passiva à ocupação do colonizador, defendida por Gandhi. 196 Combatentes pela descolonização de Goa. 197 MACHADO, Everton V., 2010, Op. Cit. p. 890. 198 In Súria, 1962. Consultar Anexo XI. 199 Servidores de casta baixa. 200 Lavandeiros de casta baixa.

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Existe, assim, um caldo de culturas onde fermenta o ideário gandhiano da não-

violência e da resistência passiva ao colonialismo o que, na perspetiva dos Subaltern

Studies, denuncia uma resistência do subalterno à assimilação cultural da potência

colonial.201

Os Estudos da Subalternidade põem em relevo a «[…] superdeterminação do etos

religioso»202, visto que o escritor indo-português pertence a uma elite com forte educação

portuguesa/Ocidental, pelo que se torna patente no romance Os Bramahanes, onde o autor

Francisco Luís Gomes associa os dogmas cristãos ao ideário da Revolução Francesa, ou

no romance Bodki de Agostinho Fernandes em que o narrador é um representante da

modernidade laica ocidental, na pessoa de um médico cristão que vai curar a população

das suas superstições religiosas.

A “demonização dos paclé203, nome depreciativo, presente em várias classes da

estratificação social goesa, é um outro campo dos Subaltern Studies que realça os aspetos

da resistência dos subalternos, mais defensiva do que agressiva. Nesta sequência de

ideias, os católicos denominam pejorativamente os hindus com o termo konkon.204

As novas ideias pós-modernistas de análise literária, surgidas na segunda metade

do século XX, alargam horizontes na medida em que diversificam os objetos de estudo,

desde os textos mais populares aos mais intelectualizados, valorizando panfletos

ideológicos, contractos comerciais, pareceres administrativos ou sentenças judiciais que

quebram barreiras de género literário e fomentam intertextualidades. Trazem, assim, à

análise aspetos da ideologia do Ocidente como construtora do “objeto colonizado”, para

melhor apropriação, ao mesmo tempo que ajudam a desconstruir os mitos da validade do

projeto colonial, a superioridade do homem branco, a credibilidade da cultura ocidental e

a sua ação evangelizadora e civilizacional. De facto, e retomamos aqui as teses da

investigadora Joana Passos de que os estudos pós-coloniais reconhecem «[…] a

integridade dos sistemas literários que se formaram durante o período colonial»205 e

consideram «[…] que pensar a literatura goesa em português é recuperar um sistema

201 MACHADO, Everton V., 2010, Op. Cit. p. 888. 202 Idem, p. 886. 203 Nome depreciativo por que os portugueses eram conhecidos em Goa. 204 MACHADO, Everton V., 2010, Op. Cit. p. 888. 205 PASSOS, Joana - O ‘Indianismo’ do Princípio do Século XX – o Movimento de Redescoberta da

Identidade Indiana dos Goeses. In Goa Passado e Presente. Lisboa: CEP e Universidade Católica, 2013,

p. 255-271.

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literário particular, local, que efetivamente floresceu durante o período colonial.»206 Para

além de se debruçar sobre o modo como a cultura goesa absorve a influência da cultura

portuguesa, a crítica pós-colonial:

“[…] na era da globalização, à luz de um pensamento pós-colonial em rotura com uma visão

eurocêntrica e normativa de padrões estéticos e literários, pretende-se antes um conhecimento da

literatura goesa como objecto autónomo, passível de ser integrado numa plataforma

comparativa”207

com outras literaturas, nomeadamente, as indianas, mas também as produzidas em

contextos coloniais como as do espaço da lusofonia, da francofonia ou das de influência

britânica

A abordagem da literatura goesa em português, de um modo autónomo em relação

a Portugal, tem de ter em conta o ocaso do português em Goa a partir de 1961, o que

justifica o seu apagamento e invisibilidade. No entanto, o espaço de tempo decorrido

amadurece um processo político e social que permite olhá-la agora como uma herança

cultural produzida num contexto colonial, sem preconceitos nem traumas.

IV.6. O CONCANIM E A QUESTÃO LINGUÍSTICA

Questão cara aos estudos da subalternidade é o concanim, em Goa, já que:

“[…] a língua, como os gestos, as relações espaciais e a partilha de alimentos são, todos eles,

utilizados como recursos para construir relações hierárquicas na criação imanente de

posicionamento social.”208

Vimala Devi e Manuel de Seabra debruçam-se sobre os aspetos históricos e os

aspetos linguísticos do concanim.209 Denominada pelos antigos escritores portugueses

como língua côncana, a partir do século XVIII, começa a receber a denominação de

206 Idem, ibidem. 207 Idem, ibidem. 208 PEREZ, Rosa Maria, Op. Cit. p. 75. 209 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. pp. 39-68.

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concanim ou komkani. A sua evolução é muito influenciada pela colonização portuguesa

e a literatura em concanim é implementada por sacerdotes cristãos.

Não há certezas sobre a sua origem210, já que a língua original de Goa, muito

provavelmente, seria o marata. Há fundamentos históricos, antropológicos, linguísticos e

mitológicos que sustentam a tese de que o concanim teria sido levada do exterior. Os

aborígenes de Goa seriam os atuais gaudó211, que, uma vez vencidos pelos Arianos,

teriam sido relegados para uma posição inferior, constituindo, atualmente, a casta mais

desprivilegiada de Goa. Provavelmente, falariam um dialeto dravídico, não relacionado

com a família indo-europeia.

A mitologia hindu contribui com a lenda de que teria sido Parasurâma, o sexto

avatar de Vishnu, que, ao levar as famílias brâmanes de Tiruht para Goa, teria introduzido

o concanim. Parasurâma, nos Puranas, é chamado de Konkanâ-suta, isto é, filho de

Konkanâ.212

Vimala Devi e Manuel de Seabra caracterizam o concanim na sua vertente

linguística. Classificam-na como uma língua ariana, não dravidiana, constituindo o ramo

mais meridional das línguas sânscritas, cuja área geográfica confina na sua fronteira sul,

em Mangalore, onde as línguas dravídicas213 começam a ser faladas. Do ponto de vista

estrutural, os autores caracterizam o concanim como «[…] o filho direto do sânscrito […]

muito mais próximo que o marata, sendo o neoprácrito que mais se aproxima da língua

mãe.»214 Do ponto de vista dialetal, o concanim revela-se uma língua muito complexa e

variada. Não é falado unicamente em Goa e pode ser dividido em três dialetos principais

consoante a região: o dialeto do Norte, chamado Kudâli, por ser falado no Kudâl, e o

dialeto do Sul, falado em colónias de concanós em Kânada e Mangalore. Em Goa, é

denominado por gomâmtaki, que deriva da palavra sânscrita que significa “terra fresca e

fértil”, falado sob a forma de vários dialetos, que variam de aldeia para aldeia e em função

das castas, dos quais os mais importantes são o bardês e o Salsete. Quanto à sua fonética,

como no caso do marata e do hindi, assim como outras línguas indianas, possui sons

desconhecidos das línguas ocidentais, com a consequente criação de símbolos

210 Teses mais eruditas sustentam que o nome deriva do sânscrito Kolkan, que remete para Concão, região

do sudoeste da Índia onde se situa Goa. 211 A casta mais desprivilegiada de Goa, à qual estão reservados os trabalhos mais rudes. 212 CUNHA, Gerson - The Konkani language and literature, cit. por DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de,

Op. Cit. p. 40. 213 Línguas dravídicas ou dravidianas são línguas que não estão relacionadas às da família indo-europeia. 214 Idem, p. 42.

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convencionais para a sua representação. No que respeita ao alfabeto, devido à queima dos

livros vernáculos nos primeiros tempos da conquista, desconhece-se em que alfabeto é

escrito o concanim. Surgem teses de que tinha possuído alfabeto próprio, enquanto outras

sugerem que se usava o canarês. Hoje em dia, considera-se que é o alfabeto

devanagárico215 o que melhor traduz os fonemas que lhe são afins.

A evolução do concanim é muito influenciada pela colonização portuguesa. Além

da referida destruição inicial dos documentos históricos em línguas vernáculas, que,

muito provavelmente «[…] não foi parte de um plano preestabelecido, mas produto de

curteza de ideias de funcionários ou sacerdotes ignorantes.»216 De qualquer modo,

Portugal «[…] não promoveu, como governo, a instrução e a cultura das línguas

indígenas, para serem veículo do pátrio idioma e da sua civilização […] esta atitude dos

portugueses para com o concanim é, de facto, caso único na história da expansão

portuguesa no Mundo […].»217 Como consequência, «Goa foi a única região onde não

nasceu propriamente um crioulo português, o que é fenómeno digno de nota.»218 É de

referir a inflexão desta política, implementada pelo homem de letras, o Governador Cunha

Rivara, que, em 1684, desenvolve o ensino do concanim, ainda que numa estratégia para

o desenvolvimento e crescimento da língua portuguesa e reage contra a situação que

encontrara em Goa: «a sentença de extermínio contra o concanim.»219

A questão da subalternização do concanim, em Goa, manifesta-se, por exemplo,

na glotofagia, como acontece com certas elites católicas goesas que relegam o concanim

para o «[…] tratamento com os domésticos ou outras classes baixas da sociedade, por

vezes nem mesmo ocorrendo a utilização desta língua no universo restrito familiar.»220

No contexto da Literatura Indo-portuguesa, em particular, e na vida social goesa, em

geral, o concanim nunca chega a recuperar o seu prestígio. Os escritores goeses evitam-

no e são alguns padres católicos europeus que o cultivam, como Frei Gonçalo de S.

Miguel e o próprio S. Francisco Xavier que na sua atividade pastoral escreve uma Paixão

de Cristo em três mil versos e em concanim.221

Fora de Goa, nomeadamente, durante a época colonial, há núcleos de língua

215 Alfabeto em que estão escritas as línguas sânscritas na Europa. 216 Idem, p. 44. 217 Idem, ibidem. 218 Idem, p. 39. 219 Idem, p. 45. 220 MACHADO, Everton V., 2010, Op. Cit. p. 887. 221 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 19.

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concanim em Mangalore e Mumbai, cidade que desde sempre é um importante foco de

atração de fluxos migratórios, o que lhe dá a importância de um centro de cultura goesa.

Alfred F. Braganza introduz a questão das relações linguísticas com o poder, ao

referir:

“It is a truism that linguistic domination follows upon political domination. It happened in India.

When the Moghuls held the sceptre, persian became the privileged language; when Muslims were

in power, Urdu reinforced with Arabic became the ruling language. With British domination came

the reign of the English language, but much before it the Portuguese conquerors ushered in the

supremacy of the Portuguese language on the West coast of India. (…) There language begun to

be spread by force as early as 1545 when the Portuguese vice-Roy Dom João de Castro ordered

the opening of Portuguese schools in all villages of Goa.”222

Como referimos no Capítulo III, a propósito da Goanidade, a questão linguística,

em Goa, protagoniza um debate entre adeptos do concanim e do marata, sobre qual dever

ser considerada a língua oficial do estado surgido em 1961, após a integração na União

Indiana. Os adeptos do marata argumentam que, ao longo dos séculos da presença

portuguesa, a língua continuara a ser ensinada e que nela tinham sido preservadas as

escrituras sagradas do Hinduísmo. A questão resolve-se quando, em 1982, o concanim se

torna a língua oficial de Goa e é reconhecido, em 1992, como uma das línguas oficiais da

Índia.223

CAPÍTULO V. ADEODATO BARRETO E A DINÂMICA CULTURAL

OCIDENTE/ORIENTE NA SUA OBRA LITERÁRIA

V.I. O LIVRO DA VIDA (CÂNTICOS INDIANOS) - POESIA

222 BRAGANZA, Alfred F. - Goans and the Portuguese Language. Journal of South Asian Literature.

Michigan State University. Vol.18, (1983), p.150. Acedido em Março de 2014 em:

http://www.jstor.orgstable/40872550. “É um truísmo dizer que a dominação linguística precede a

dominação política. Aconteceu na Índia. […] Quando os muçulmanos estavam no poder, o urdu reforçado

com o árabe tornou-se a língua dominante. Com o domínio britânico veio o reinado da língua inglesa, mas

muito antes disso os portugueses lideraram na supremacia da língua portuguesa na costa ocidental da Índia.

[…] Nessa altura, a língua começou a ser difundida pela força, em 1545, quando o Vice-Rei Dom João de

Castro ordenou a abertura de escolas portuguesas em toas as povoações de Goa” 223 YOUNG, Donna J., Op. Cit. p. 34.

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Segundo Vimala Devi e Manuel de Seabra224, Adeodato Barreto é uma das figuras

mais interessantes da moderna literatura goesa, embora reconheçam que não é um grande

poeta. Everton Machado225 carateriza a sua obra poética de uma qualidade irregular. O

próprio autor, no prefácio do seu único livro de poesia, O Livro da Vida – Cânticos

Indianos226, atesta: «Os versos que aí vão foram começados num momento de arroubo

quase místico»227, confessando tê-los escrito na emoção consequente da leitura de Cantos

de Vida e Esperança de Ruben Dario. «[… ] Não se trata de uma obra de arte mas de um

[…] desabafo de alma.» 228 Recusando os moldes consagrados na escrita da poesia à

época, adere aos aspetos formais do modernismo, libertando os poemas do espartilho das

métricas, ritmo e rimas para melhor dar expressão aos seus “desabafos de alma”.

Se encontramos influências de indianismo na sua poesia, para além do aspeto

literário, essa circunstância poderá traduzir, a nível individual, uma necessidade de

sobrevivência num espaço vivencial onde o poeta sente um conflito entre as “duas-

metades-de-si”, entre o Cristianismo e o Hinduísmo, entre a cultura portuguesa e a

indiana, entre o Ocidente o Oriente. É neste contexto que a sua construção poética traduz

uma ânsia de harmonizar o conciliável e o inconciliável.

Os seis anos de maior produção intelectual, mediados pela licenciatura e a sua

morte, ocorrem em Portugal, sem nunca ter renegado o seu ethos original.229 Neste

sentido, as influências indianistas são aproveitadas como uma possibilidade de resolver

as contradições com que se confronta, num patamar filosófico mais elevado de

características universalistas e humanistas. A sua poesia mostra o poeta integrado na

filosofia oriental, o poeta fusionado na Natureza, numa visão e compreensão do mundo

que remete para a filosofia hindu do samsara e do panteísmo, que é recorrente nos seus

poemas.

As saudades de Goa manifestam-se poeticamente associadas à angústia da partida,

224 DEVI, Vimala; SEABRA, Manuel de, Op. Cit. p. 229. 225 MACHADO, Everton V., 2009, Op. Cit. p. 155. 226 Os poemas que constituem a obra poética O Livro da Vida - Cânticos Indianos de Adeodato Barreto

foram escritos entre os vinte e três e os trinta anos (1928–1935) e repartem-se pela Figueira da Foz,

Coimbra, Montemor-o-Novo e Aljustrel. 227 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 301. 228 Idem, ibidem. 229 “Longe da Índia, onde nasceu, em contacto com um meio europeu, jamais perdeu as características,

sentimentais e mentais, que constituíam o seu ethos originário. Adeodato Barreto permaneceu sempre, no

fundo, um oriental. A ausência do torrão, embora num país onde era estimado, onde triunfou, e onde

constituiu família, tinha para ele o ressaibo amargo de um exílio forçado.” (DEVI, Vimala; SEABRA,

Manuel de, Op. Cit. p. 12).

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na ambivalência e na culpabilidade sentidas, como, por exemplo, no poema “O Fim”230,

escrito em Aljustrel, com trinta anos, que se inicia com o verso: «Chegou a minha vez –

ó mãe – é hora: vou partir». Ao mesmo tempo que consola a mãe com uma construção

poética impregnada de uma filosofia muito oriental, do homem integrado na Natureza:

«Tu verás a brilhar/Num pirilampo/A luz do meu olhar».

No poema “Tragédia dos que partem”231, em três atos, redigido em Aljustrel, com

trinta anos, retoma o tema da ambivalência da partida, quando afirma: «Suspende a tua

partida! [...] /E o coqueiro, em segredo, solícito, acudia: Fica! Não tenhas mêdo! […]/O

derradeiro adeus! Foi do Farol da Aguada, à largada […]».

O seu destino é Portugal, onde vai viver metade da sua vida, onde se vai sentir

português e estrangeiro, contradição que poeticamente resolve na categoria do Belo, onde

estabelece, delicadamente, uma hierarquia de afetos, ao escrever no poema

“Apoteose”232, composto em Coimbra, com vinte e seis anos de idade, referindo-se a Goa:

«[…] jardim tão pequenino, e delicado […]/Que eu nunca vi outro igual: é lindo, muito

mais lindo do que o lindo Portugal!».

As menções saudosas ao seu torrão natal são constantes: deixa-se levar pelos

sonhos e interpenetra espaços geográficos e vivenciais, Goa e Coimbra. Em

“Ventania”233, escrito em Coimbra, aos vinte e sete anos, o poeta descreve as visões

goesas que os sons da tempestade, que grassa fora das sacadas coimbrãs, lhe provocam:

«Serão larápios limpando/Os cajueiros dos montes?/[…]Serão serpentes silvando,/Ou um

sonho,/A febre das minhas fontes?». Ou, ainda, no poema “Amanhecer”234, em que as

sugestões tropicais impregnam os sentidos no ato do despertar: «Agora um pipilar de

bulbulzitos/Nos crótones ligeiros, saltitando/À volta dos seus ninhos […]»

As figuras familiares são suportes presentes em cinco poemas, lavrados em

Aljustrel, com trinta anos, como em “O Avião”235, metáfora que lhe permite elaborar a

impotência e a raiva que sente por não poder corresponder ao chamamento do pai

moribundo: «Se ao menos teus motores/Cantassem como os outros voadores!/Se tivessem

o trinar da cotovia/E o fru-fru alacre do bul-bul/Mas imitas os zangãos daninhos/E a voz

230 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 309. Consultar Anexo XXIII. 231 Idem p. 286. Consultar Anexo XXI. 232 Idem p. 267. Consultar Anexo X. 233 Idem p. 230. Consultar Anexo XIX. 234 Idem p. 279. Consultar Anexo XX. 235 Idem p. 312. Consultar Anexo XXIV.

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dos ditadores […]»

Ainda no quadro das referências tutelares, inspira-se em Tagore e elabora duas

adaptações de duas poesias do poeta indiano, o que atesta a importância daquele na sua

formação. É o caso dos poemas “O Princípio”236 e “O Ocaso do Século – pelo último

poente do século XIX”237. O primeiro, mais filosófico, ao abordar de novo a relação

materna, permite-lhe mergulhar na ontogenia do Ser, enquanto no segundo assume um

cariz mais político, adotando as teses do despertar da Índia.

Já sob um pseudónimo hindu, Srivijaya Deodatta, aos trinta e cinco anos, em

Aljustrel, possivelmente para reforçar o “outro lado-de-si”, o poeta explode em “Cântico

a Súria”238 todo o seu misticismo hindu: «Sol!/És como o que de grande,/O que de

santo,/Existe em mim!».

No poema, Adeodato assume uma posição crítica quando refere: «[…] agora, a

Humanidade adora/Deuses pálidos, tristes,/Em tristes, ensombrados lugarejos[…]». Para

terminar confiante: «Ó Deus dos meus avós, de meus irmãos!/ Tu serás amanhã o único

Deus/ dos nossos filhos!». Este poema dá a Adeodato a oportunidade de assumir o

incómodo cristão e o incómodo gandhiano face à Varmashrama-Dharma, o sistema de

castas, quando se refere aos proscritos e abandonados, como os párias: «[…] a esses, só

lhes fala um coração/a esses, só se antolha um seio aberto: és TU!».

Adeodato volta à incómoda questão das castas ao traduzir para português o poema

“A Casta”239, do poeta canarês Sarvajna, do século XVII: «Quando o sol entra na

choupana escura/E vai beijar na esteira o pobre pária,/Fica a sua luz, acaso, menos pura?».

Para lançar nova pergunta, desta vez na forma de protesto: «Dizei-me então,/Vós que no

varnasharama acreditais,/Se Deus nos fez nascer assim iguais,/Como é que ainda há castas

em seu nome?».

Adeodato Barreto revela na sua poesia as suas preocupações ecuménicas, como

por, exemplo, no poema “Canção de Bhaul”240, em que refere: «Teus caminhos,

Senhor,/Perdidos,/Oculta-os a Mesquita,/A cobiça infinita/Da Igreja,/Do Pagode». Para

lançar a dúvida: «Acaso as proporções dum relicário/Podem conter a Tua astral

236 Idem p. 306. Consultar Anexo XIX. 237 Idem p. 351. Consultar Anexo XVII. 238 Idem p. 321. Consultar Anexo XXV. 239 Idem p. 336. Consultar Anexo IX. 240 Idem p. 327. Consultar Anexo XXVI.

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grandeza?/P´ra quê erguer-te templos, se o primeiro,/Se o mais extraordinário,/É o

templo, sem par, da Natureza,/Uma obra das tuas mãos?»241

O tema do ecumenismo reacende-se no poema “Fala Ishvara”242 impregnado de

sugestões da metempsicose e panteísmo hindus: «Porque me buscas longe, nos

espaços,/Filho meu,/Se eu vivo ao alcance dos teus braços!?/Não me sentes na ervinha

desprezada/Que descuidoso, pisas?/No gineceu/Onde o perfume oculta, envergonhada,/A

delicada flor, não me divisas?/Não te falam de mim as pombas mansas?/Não me ouves

nas vozes das crianças?». Sugestões que também se encontram no poema

“Confidência”243: «Não sou capaz, não posso/Por mais que queira,/Pousar o pé, sorrindo,

indiferente/Sobre um verme que arrasta tristemente/Seu mísero fadário, na poeira […]

Que invejável destino/Para os corpos dos nossos pais,/Renascer, volver, não só/Nos

corpos tenros dos filhos,/Mas até no extenso prado,/Que o gado esfomeado/Tasquinha à

beira dos trilhos».

O livro de poesia em análise integra vários poemas traduzidos do canarês,

nomeadamente, de poetas dos séculos XII, XIV e XV, o que, além de mostrar os

conhecimentos dos vernáculos de Goa, atesta a sua erudição e a profundidade da sua

formação espiritual. Adeodato parece ir à procura de posições menos ortodoxas do

Hinduísmo que o ajudem a encontrar justificações para o seu desassossego face à

problemática das castas, da idolatria, dos banhos purificadores, dos Templos e dos rituais

Os seus conhecimentos linguísticos dos vernáculos de Goa são manifestos

também no poema “Bekaryanc”/”Mendigos”244, escrito em concanim, com a idade de

trinta anos. Orlando da Costa chama-nos a atenção para este poema, enfatizando ter sido

escrito:

“[…] no seu desterro em Aljustrel, de quem não se esquece dos desprotegidos de Goa […] um poema

dedicado aos mendigos da nossa terra – escrito na língua de todos os goeses – hindus, cristãos,

muçulmanos – o concanim […].”245

241 Neste poema Adeodato faz referência ao “Bhaúl” que significa “excêntrico” em sânscrito, adepto de

uma religião da consciência com um sincretismo religioso na base do respeito pela natureza e pela pessoa,

sem sacerdotes nem templos, refratários à fixação escrita da sua doutrina. Maioritariamente recrutados nos

excomungados do hinduísmo e do islão. (BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 369). 242 Idem, p. 331. Consultar Anexo XIII. 243 Idem p. 301. 244 Idem p. 352. Consultar Anexo XXIII. 245 Idem, p. 8.

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A poesia de Adeodato Barreto está imbuída da noção do Dharma, enquanto

missão do Homem integrado na Natureza onde poderá realizar a sua missão, já que, na

perspetiva hindu, é na ordem cósmica que é possível atingir a Perfeição, o Moksha. Esta

aspiração colide com a outra sua “metade-de-si”, cristã, onde o Homem, na sequência da

expulsão de Adão do paraíso, está descentrado da Natureza.

A sua poesia, fortemente impregnada pela espiritualidade indiana, integra, de um

modo aparentemente natural, os seus valores cristãos como que procurando nivelar as

duas “metades-de si”, numa tentativa de alcançar um sincretismo, propósito

eventualmente nunca atingido.

No poema “Natal Cristão”246 percebe-se uma exaltação sentida do Natal de Goa,

que denuncia a sua matriz cultural portuguesa, nomeadamente, na ternura manifestada

quando fala do Deus Menino e do Presépio: «Saudades da consoada dos fuguéus,/Da

mesa e da toalha cor de leite,/Da noite mais formosa entre as mais belas,/Em que pelas

cozinhas nas panelas,/Cantam gordos oddés, cheirando a azeite/Natal do meu país! Natal

do Amor!/Nas palhas do curral, na grande Igreja,/Jesus contempla a vaca, que o

bafeja,/Mamando alegre o dedo indicador».

Também no já referido poema “Fala Ishvara” identifica o Ser Supremo ao Deus

Cristão numa das mais belas estrofes que escreve, no ponto mais próximo do sincretismo

religioso que procura: «É minha a luz/que os rostos alumia/aos que morrem na Cruz».

Ou, ainda, no poema “Jesus de Nazareth”, onde se revela um poeta com intenções

políticas, de tonalidades anarquistas, quando reage à tragédia da Guerra Civil de Espanha:

«[…] “…pega na carabina/desce à trincheira ardente/como outrora subiste para o

Calvário» 247. Ou na escolha do título “Redenção” para o seu poema, tão caro às escrituras

cristã.

Percebe-se em Adeodato Barreto, para além do esforço de conciliar as temáticas caras

às duas filosofias religiosas, a coexistência de duas estéticas, a Oriental e a Ocidental.

Cremos ser no poema “As Azinheiras”248, escrito em Aljustrel, ao fim de seis anos a

viver no Alentejo, que a estética ocidental é mais assumida. Muito provavelmente, Florbela

Espanca (1884-1930), sua contemporânea, não o desdenharia assinar e que pode ser lido em

246 Idem p. 296. Consultar Anexo XV. 247 Poema Jesus de Nazareth publicado pela primeira vez em língua portuguesa na Acção Direta, jornal

anarquista do Rio de Janeiro, em 15/9/1948. Consultar Anexo XIV. 248 Idem p. 315. Consultar Anexo XII.

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contraponto com o seu poema “Árvores do Alentejo”. 249

A independência da Índia teria de influenciar o destino político de Goa. Tagore

inspira fortemente Adeodato, seja a nível literário, ideológico, político ou pedagógico. Na

produção de poemas inspirados na sua obra, na tradução dos seus poemas, assim como

na tradução de textos de outros nacionalistas indianos, como Gandhi, está patente uma

estratégia pacifista de confronto com a política de Portugal em relação aos goeses250.

Everton Machado sublinha a originalidade da poesia de Adeodato Barreto, no

contexto da Literatura Indo-portuguesa, ao introduzir a questão do nacionalismo no seio

de uma comunidade católica habituada a afirmar a sua identidade portuguesa251.

Três poemas de Adeodato (“Apotheose”, “Shivaji” e “Redenção”) têm merecido a

atenção de estudiosos, por neles estarem condensadas o núcleo da mundividência de Adeodato:

o tema da independência da Índia, a sua profunda crença na realização das potencialidades

da noção hinduísta do Dharma, caro à mitologia indiana depois do Athar-vaveda, com

referência aos deuses da Trimurti indiana, cujas funções se inserem no quadro do eterno

retorno: Brahma, o criador, Vishnu, o preservador, Shiva, o destruidor e a presença do mito

do Eterno Retorno252.

249 Consultar Anexo I. Atente-se na comparação dos poemas “Árvores do Alentejo”, de Florbela Espanca, e

“As Azinheiras”, de Adeodato Barreto, particularmente na primeira e segunda quadras, em que os poetas se

identificam com as árvores na assunção dos sentimentos que os desassossegam. 250 Sovon Sanyal considera este fenómeno como “uniquely nationalistic and decidedly a dual process of

cultural self-discovery and self-assertion of a colonized people.” (SANYAL, Sovon, Op. Cit. p. 51).

Embora os goeses fossem coagidos a aceitar ou a crer em Portugal como a sua prática, a presença nativista

na literatura simboliza um crescendo das ideias de resistência ao nacionalismo português. Segundo o

mesmo autor (pág. 50) à época: “the inhabitants of Goa were Portuguese without really a meaningful sense

of nationalism.” (SANYAL, Sovon, Op. Cit. p. 50) 251 MACHADO, Everton V., 2009, Op. Cit. p. 155. 252 ”O eixo fundamental do mito do Eterno Retorno, na formulação de Mircea Eliade, é definido como a tendência

dos homens das culturas tradicionais para repetir ritualmente os gestos realizados nos tempos primordiais pelos

deuses, heróis e ancestrais, operando, assim, uma espécie de abolição do tempo pela reactualização do acto

cosmogónico. O mito do Eterno Retorno comporta uma função regeneradora para o homem e para o cosmos, em

virtude do seu carácter cíclico, estabelecendo uma regra segundo a qual as crenças primitivas investem no tempo,

permitem a destruição e a regeneração periódicas do universo, estabelecendo, assim, uma regra. Segundo a

filosofia hindu, o homem encontra o equivalente a esta destruição e recriação do universo no ciclo perpétuo do

nascimento e da morte. Para escapar a esta situação o homem tem de aniquilar o seu karma, enquanto acto de

liberdade espiritual. O karma, que obriga a alma a renascer na sequência da qualidade dos atos passados, é regido

pelo samsara, onde o homem vê oferecer-se-lhe uma possibilidade de regeneração de modo a cumprir-se o

dharma, dever social e religioso, mas que designa também a ordem cósmica “ (Idem, ibidem).

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Everton Machado253 analisa os três poemas segundo uma análise mitocrítica254,

de modo a perceber como os mitos a que os poemas fazem referência lhe permitem

assumir uma tinta indianista numa narrativa nacionalista.

No poema “Apoteose”, Adeodato começa por se referir a Goa como «[…] um

jardim plantado por Brahma […]», o criador do Universo. Conjuntamente à alusão ao

mito de Parasurama, cujo dardo vai fecundar as terras, dá a Goa uma origem duplamente

sagrada ao integrar dois gestos divinos: a mão de Brahma, que planta um jardim, e a mão

de Parasurama, que lança um dardo que fere a lua do crescente, numa sequência de

construções/destruições regidas pelo samsara, num ciclo que remete para o mito do

eterno retorno: «Que invejável destino/Para os corpos dos nossos Pais/Renascer, volver,

não só/Nos corpos tenros dos filhos,/Mas até no extenso prado/[…]Que o gado

esfomeado/Tasquinha à beira dos trilhos[...]O solo sagrado de Goa/Ah! Nesse jardim

bendito[…]/Hei-de escolher uma flor/Para depois a fecundar/E o fruto que germinar/Hei-

de o apartar/Para semente[…]E a semente há-de grelar/E a planta há-de crescer». O poeta

faz, em seguida, alusão «à luz do sol resplandecente do Oriente e à chuva d´oiro» que há-

de acarinhar «[…] essa Árvore […] que é a viva perspetiva do teu futuro risonho […]» e

que prepara o leitor para a apoteose final: «[…] e se és, atualmente, no Oriente/Uma

princesa desditosa:/Serás então, com certeza/Uma Rainha no mundo!». Quando refere

que Goa «[…] às vezes parece a meia lua crescente» é uma alusão ao domínio

muçulmano, nomeadamente, mongol contra o qual se afirmaria Sivaji, o herói libertador

da nação marata no século XVII, recorrentemente invocado pelo poeta.

“Sivaji”255 é o poema mais politizado e de leitura mais imediata. Homenageia

Sivaji, personagem histórica do século XVII, fundador da Nação Marata, nome por que

os hindus designam a Índia após lutar contra o domínio mongol de religião muçulmana e

equipara-o a Parasurama, brâmane lendário (1176 a.C.)256: «Sob a opressão do Islam, vê

a Índia tristemente,/Nos seus templos erguer-se a curva do Crescente/O Ídolo sagra: a

Deusa Bhavani/Caiu do pedestal[…]». Mas o movimento cíclico do mundo oscila da

libertação contra os mongóis para novo período de esquecimento sob o jugo inglês:

253 MACHADO, Everton V., 2009, Op. Cit. p.154-158. 254 Iniciada nos anos 70 por Gilbert Durand, e que para Ivane Rialland consiste em estudar «[…] a

irradiação de um mito emergente num texto, tendo em conta a sua flexibilidade», ou seja, estudar o modo

como um mito que aparece num texto sofre modificações e adaptações e ganha um poder de sugestão pela

simples menção no texto que o contém. (MACHADO, Everton V., 2009, Op. Cit. p. 154). 255 BARRETO, Adeodato. Ob Cit.p. 354. Consultar Anexo XXVII. 256 Idem, p. 365.

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desapareceu o fez muçulmano, apareceu o helmet inglês - «o brâmane polui-se, efeminou-

se o kxátria». Para lançar a esperança: «Hoje há em toda a parte uma ânsia indefinida/ -

ânsia duma vida –». O poema termina com um apelo a Bhavani, deusa tutelar de Sivaji,

para que liberte a Índia: «Ó Deusa Bhavani!/Para guardar teus templos, para salvar teu

povo/Porque não dás de novo/À Índia, um Sivaji!»257.

O poema “Redenção”258, escrito na época em que Gandhi deixa a África do Sul, coincide

com a afirmação dos movimentos anticoloniais. Afirma a identificação de Adeodato com o

ideário independentista. Este poema centra-se na causa goesa, incitando a Índia Portuguesa a

seguir o exemplo da Índia Britânica, até porque a independência daquela não poderá ser completa

sem o compromisso desta.

No poema, “Os Gates Floridos”, referindo-se a Goa, são igualmente os «[…] Gates em

chama […]», na imagem de revolta «[…] dos tigres à solta nos bosques de Bengala […]», palco

de forças destrutivas e criativas consubstanciadas nos conflitos entre interesses estrangeiros e

nacionais: «Goa bela!/Olha os Gates em chama!/Olha a crista revolta/que se inflama!/Andam

tigres à solta/nos bosques de Bengala […] Goa! Olha os Gates floridos!». Ao longo do poema

aparece a imagem do «pólen da vida», lançado sobre Goa pelo deus solar Súria numa analogia

ao dardo de Parasurama, um avatar do deus Vishnu, que, por sua vez, remete para Sivaji. O dardo

lançado sobre Goa acende a «aurora da redenção» no movimento cíclico do devir da História de

Goa, matizada pelas memórias da Inquisição e profanação dos templos de Goa: «Goa bela!/Eis o

pólen da Vida/Que Súria vem verter nos teus jardins! [...]/Olha os reflexos da Aurora/Da tua

redenção![...]/Vieram sobre ti banquetear-se/E te servirem fogo em vez de luz:/E mancharem teus

lares/E queimarem teus filhos,/Teus livros, teus tesouros, teus altares/Frias, pálidas mãos alçando

a Cruz!». O poema termina com a evocação da deusa Lakshmi, esposa de Vishnu, o guardião do

Dharma, a ordem cósmica, trazendo riqueza e prosperidade: «Ó Goa Bela, acorda!/Esquece-te e

recorda![...]/E sobre o gineceu – exulta ó Goa bela! –/Surge, de novo, ovante, a Deusa Lakximi!»

Os poemas, de um modo recorrente, invocam a figura histórica de Sivaji, o libertador, e

estão impregnados do mito de Parasurama, mito que integra forças destrutivas e criadoras, já que

o renascimento implica destruição e dão sequência ao mito do Eterno Retorno. Ao invocar

Parasurama, avatar do Deus Vishnu, Adeodato afirma a sua convicção na realização do Dharma

da Independência da Índia e a esperança de um futuro radioso para Goa.

258 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 356. Consultar Anexo XVI.

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V.II. A CIVILIZAÇÃO HINDU - ENSAIOS

É significativo que na Introdução à obra Civilização Hindu, Adeodato Barreto

chame a atenção, em nota de rodapé, para o facto de que:

“Não nos propomos fazer aqui uma exposição sistemática do pensamento hindu, e aos

leitores que a pretenderem, remetemo-los aos interessantes livros do Dr. Santana Rodrigues

(Índia Contemporânea) […]“259

Refere também as obras do Dr. Luís da Cunha Gonçalves (Direito Hindu e

Maometano) e do Prof. Pissurlencar (Aspetos da Civilização da Índia Antiga).

Os artigos que integram A Índia Contemporânea (1926) são uma coletânea de

artigos publicados no jornal O Dia e constituem uma das primeiras tentativas, em

Portugal, de desmontar a imagem que o Ocidente tem da Índia e dos indianos. São

publicados numa altura em que, em Portugal, se discute a autonomia das colónias, ao

mesmo tempo que fazem eco às novas aspirações da Índia que despertava.260 A sua

publicação vem a servir de inspiração a Adeodato Barreto para a série de artigos

publicados na revista Seara Nova, depois reunidos no livro Civilização Hindu (1936).

O médico António Aleixo Santana Rodrigues (1887 – 1966) é uma das

personalidades que mais influenciam Adeodato Barreto e é considerado um dos pioneiros,

em Portugal, do esclarecimento da opinião pública sobre o movimento indiano «[…] cuja

acção nesse campo se encontra totalmente esquecida.» 261

Numa carta a Rabindranath Tagore, de 28 de Abril de 1921, aquando da prevista

visita deste a Portugal, que nunca se efetiva, Santana Rodrigues manifesta as

idiossincrasias da sua personalidade quando declara:

259 BARRETO, Adeodato, 2000, Op. Cit. p. 63. 260 No prefácio de Azevedo Neves a A Índia Contemporânea de Santana Rodrigues (p. V), é referido o

contraste entre a situação colonial britânica e a situação portuguesa sob a égide da República: «O hindu da

Índia portuguesa é em Portugal, perante a lei e para a consideração e respeito de todos os portugueses, um

cidadão perfeitamente igual ao nascido no burgo mais europeu do nosso continente.» 261 LOBO, Sandra - O desassossego goês: Cultura e política do liberalismo ao ato colonial. Lisboa:

Universidade Nova de Lisboa, 2013. Dissertação de doutoramento. P. 410.

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“[…] que apesar dos nomes portugueses impostos aos infelizes antepassados pela

intolerância católica, os goeses pertenciam a famílias hindus não miscigenadas e eram

profundamente amantes da infeliz pátria.”262

Na sua obra, Adeodato começa por denunciar a complexidade do assunto que vai

tratar, a Civilização Hindu, já que a Índia é um todo, habitado por trezentos e cinquenta

milhões de habitantes e constituído por uma grande diversidade, quer a nível linguístico

(duzentas e duas línguas e dialetos), quer a nível religioso (contam-se por centenas as

suas religiões e cultos), quer a nível de culturas locais (no dizer do próprio autor, “[…]

diversas maneiras de ser e de pensar […]”263). Assim, Adeodato propõe-se abarcar o todo

da Civilização Hindu, de características complexas, variadas e dinâmicas, numa

abordagem mais subjetiva do que objetiva, civilização que, ao contrário das Civilizações

Grega, Assíria e Egípcia, não é uma civilização fóssil e pertença do passado. Ao longo da

sua obra, Adeodato não se cansa de enaltecer as virtualidades da Índia que, segundo ele,

“[…] não se resigna ao papel humilhante de imitador servil da Europa […]”264.

Nesta sequência, Adeodato inicia o capítulo dedicado à História com a seguinte

ideia: “A Índia é bem uma síntese do mundo”265, já que, segundo o psicólogo/sociólogo

Gustave Le Bon “[…] fazer a sua história era fazer a da humanidade, pois naquela

reapareciam todas as idades desta.”266

Numa metodologia recorrente ao longo da sua obra, Adeodato parte de uma

comparação da Índia com a Europa, já que ambas são o resultado da invasão de vários

povos. Se na Europa estes se organizam num sentido horizontal, ou seja, distribuindo-se

no espaço, formando nações, na Índia organizam-se num sentido vertical, sedimentando-

se de um modo hierárquico, em castas (por exemplo, os drávidas ocupam os patamares

inferiores do sistema de castas, ao passo que os árias ocupam o vértice), constituindo uma

estrutura social que, em última análise, possibilita a coesão de uma sociedade

multicultural e que a religião bramânica vai justificar. Pese embora estas diferenças, no

que diz respeito ao processo histórico, o autor chama a atenção para um paralelismo

evolutivo entre a Índia e a Europa, que se acentua, particularmente, a partir do século VII

a.C., quando compara o período Védico à Civilização Helénica ou quando compara o

Império Maurya ao Império Romano no seu ápice de expansão. No século VI a.C., tanto

262 Idem, p. 411. 263 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 61. 264 Idem, p. 63. 265 Idem, p. 67. 266 Idem, ibidem.

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a Índia como a Europa sofrem a invasão dos povos bárbaros. Na Idade Média europeia,

assiste-se à importância do Papado, enquanto, na Índia, a Igreja Bramânica cimenta a

unidade indiana. Nos séculos XV e XVI, há uma correspondência entre a Renascença

europeia e indiana, esta sob o regime mongol, que estabelece a unidade política da Índia,

e que coincide com a chegada dos portugueses à Índia. No século XVIII, Tipu Sahib, o

último líder indiano, é morto pelos ingleses e a Índia entra em retrocesso e é reduzida ao

estatuto de colónia. A relação da Europa com a Índia passa a ser a de

colonizador/colonizado até a Rússia e o Japão despertarem as ideias anticolonialistas na

Índia, confrontando a Europa com a sua ilusão. Desponta, entretanto, a geração de Tilak,

Vivekananda, e Gandhi com as suas ideias libertárias agitadas “pelos ventos da História”.

Adeodato inicia o capítulo da Religião referindo que a Índia, constituída

sociologicamente por uma grande variedade de raças e castas, ao longo da sua História, é

palco do aparecimento de inúmeras religiões, que enumera e caracteriza: o Vedismo,

«[…] singelo e naturalista […]» 267, o Bramanismo, «[…] ritualista e formulário […]»268,

o Budismo, emancipador e igualitário, o Jainismo, o da não- violência, o Sikhismo, «[…]

conjugação eclética do dharma dos hindus e do islão dos maometanos»269, que procuram

responder aos mistérios da ontogénese sintetizada na pergunta, inscrita no Rigveda, “Ó

sábios, quem o sabe ?”.

A tese da origem indiana desta diversidade religiosa é suportada pelo facto de

todas elas partilharem de duas ideias fundamentais, que lhe são comuns: o panteísmo e a

metempsicose. O panteísmo é a crença de que o Deus Supremo (Brahman) e a Alma

Universal (Atman) são um e o mesmo, sendo a alma humana apenas um fragmento e o

corpo não passando de uma ilusão (Maya). A metempsicose, enquanto transmigração da

alma, «[…] proclama a solidariedade vital de todos os seres vivos. Em demanda da

perfeição o espírito percorre toda a escala animal […]»270. Esta transmigração é regida

pela lei do Karma e tem que ver com o Dharma de cada um.

O Budismo merece a Adeodato Barreto uma atenção especial, caracterizando-o

como um movimento de ideias que, pela universalidade e profundeza dos seus efeitos, só

encontra rivais no Cristianismo e na Revolução Francesa.

267 Idem, p. 74. 268 Idem, ibidem. 269 Idem, ibidem. 270 Idem, ibidem.

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Ensaia uma biografia do príncipe Siddhartha Gautama. Ao referir-se ao seu

nascimento, faz um paralelismo com o nascimento de Jesus Cristo. Maria, mãe de Cristo,

assim como Mayia, mãe de Buda, concebe de um modo sobrenatural. No caso desta

última, por intervenção de um elefante branco. Em ambas as histórias há referências a

estrelas e ambos os nascituros recebem a homenagem de reis, seja o rei dos Nagas, sejam

os Reis Magos do Oriente. Ambas as biografias referem as predições sobre o destino

grandioso das duas crianças, seja a do eremita Asita, seja a do velho Semeão à porta do

Templo de Jerusalém. Buda, ao combater a ortodoxia filosófica dos brâmanes e certos

exageros do culto popular, como o das mortificações e o da ascese, procura a

reformulação da religião Hindu, preocupando-se essencialmente com a dor da

humanidade, proclamando a inutilidade das orações e dos sacrifícios e enaltecendo a

justiça da lei do Karma

A partir do momento em que considera a lei do Karma incompatível com a

existência de um Deus, Ishvara ou outro («Se ele existisse, todas as coisas seriam

submetidas ao seu poder […] não haveria virtude a praticar»271), Buda assume-se como

um ateu (“São os nossos próprios atos que produzem os seus bons e maus resultados”272),

não obstante, criando uma religião. A primitiva doutrina de Buda tem, portanto,

características de um ateísmo filosófico que, no entanto, vai evoluir para uma religião

deísta e idólatra, em que o próprio Buda vem a ser adorado como a um Deus. Esta

apropriação num culto popular pelas massas tem que ver com a sua ininteligibilidade: a

complexidade de uma fase do Budismo que se apresenta muito hermética, excessivamente

filosófica e racional, para a mentalidade folclorista do povo.

Esta interdependência entre a filosofia e a religião é aprofundada por Adeodato

no Capítulo sobre a Filosofia ao afirmar que, na Índia, a filosofia impregna a inquietação

religiosa. Faz um estudo comparativo entre a evolução da filosofia na Europa e na Índia,

valorizando o dinamismo filosófico indiano que, ao modernizar e reformando as religiões,

as fazem progredir. Considera que se na Índia houve uma evolução das ideias religiosas

no sentido da dúvida para a crença, na Europa o movimento foi inverso. Para corroborá-

lo, Adeodato dá como exemplos um dos principais darsanas273, o Sânkia, cuja conceção

271 Idem, p. 84. 272 Idem, ibidem. 273 Da palavra sânscrita que significa “ver”, são cada uma das seis escolas filosóficas da Índia com uma

visão própria da natureza da realidade, classificadas, em geral, em heterodoxas e ortodoxas segundo

aceitem, ou não, a autoridade dos Vedas.

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do mundo é ateísta, e os Vedas, as Upanishads e as epopeias Mahabharata e Ramaiana

em que figuram importantes linhagens de ateus, assim como o próprio Budismo, que

evolui de uma doutrina ateística. Adeodato termina o capítulo reforçando as

características de profunda tolerância, ecumenismo e recusa do dogmatismo da Índia em

oposição à Europa.

No capítulo dedicado à Arte, Adeodato começa por se referir à conceção do

universo sensível enquanto Maya274, ensaiando uma comparação desta com a escola

eleática grega, que discute a realidade do movimento, e o idealismo de Berkeley. No

entanto, enquanto na Europa tais conceções se circunscrevem às divagações filosóficas,

na Índia, impregna toda a atividade humana consubstanciada na descoberta de Atman

Brahma.

Na base de duas conceções artísticas distintas, a ocidental e a indiana, está o

conceito de realidade da natureza: para o artista hindu, sendo esta uma ilusão, não se trata

de imitá-la, mas de superá-la a partir da imaginação, reproduzindo apenas referências

indispensáveis à inteligibilidade da obra, ao passo que o artista ocidental está mais preso

por uma cópia da realidade. Resulta daqui duas conceções do Belo diferentes, tendo por

base as características distintas de cada cultura, não comungando o artista hindu das

noções de proporção e exatidão do artista ocidental.

Adeodato é da opinião de que é a arte hindu que mais se aproxima do ideal racional

de beleza, no que se aproxima de alguns europeus, como Goethe275 e Victor Cousin276, e

cujos princípios racionais também se percebem na arte moderna europeia. Contudo, não

obstante esta relacionação, Adeodato refere aspetos divergentes: enquanto o Ocidente

valoriza o individualismo e o subjetivismo, na Índia a arte tem características coletivas

destinadas a uma comunidade, o que denota uma forte inspiração religiosa. Enquanto no

Ocidente se valoriza o artista, na Índia este permanece anónimo. Ainda em relação à arte

moderna, Adeodato diferencia-a da indiana, já que na primeira a realização artística se

preocupa em traduzir a impressão subjetiva do autor, na Índia, o artista tem de traduzir o

ideal da coletividade para que trabalha. Assim, a arte indiana é eminentemente simbólica.

274 De acordo com muitas escolas do Hinduísmo, o mundo é uma ilusão (Maya), um jogo divino da suprema

consciência de Deus. É uma projeção de coisas e formas que são temporariamente fenoménicas e sustêm a

ilusão de unidade e permanência. Maya significa irrealidade distinta da realidade de Deus ou Brahman.

Maya também é descrita nas escrituras hindus como o jogo (lila) que deus decretou através da sua energia

dinâmica e criativa ou força (shakti). 275 “A arte só é arte quando não é natureza” (BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 92). 276 “A beleza é uma ideia absoluta e não uma simples cópia da imperfeita natureza” (Idem).

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Adeodato dá o exemplo da estátua de Shiva Nataraja277. O complexo simbolismo da

estátua com os quatro braços, os cabelos eriçados, segurando o tambor e o facho aceso,

etc., simboliza a “noite de Brama”278 da cosmologia hindu.

Adeodato debruça-se depois sobre a Literatura Hindu, onde realça as suas

características predominantemente morais. O literato, como o artista hindu, ao não estar

preso à realidade, liberta a imaginação, o que lhe permite consagrar-se ao que considera

a única coisa fundamental e real no universo, o Atman. Mahabharata e Ramaiana são as

duas grandes epopeias hindus e Adeodato reage às comparações feitas com a Ilíada e

Odisseia gregas. Estas últimas encontram-se centradas em heróis, ao passo que as duas

primeiras valorizam os princípios morais que os seus heróis representam. No caso de

Rama, herói do Ramaiana, simboliza o amor de esposo e a abnegação heroica. Já Arjuna,

herói do Mahabharata, personifica o dever, a fraternidade humana que vão entretecer o

seu dilema no famoso episódio do Bhagavad-Gita - como matar sem pecar? Para além

destas duas obras, a literatura indiana é vastíssima, considerando-a Sylvain Lévi como a

mais abundante no mundo. Vasta e diversificada, congrega escrituras religiosas

(Puranas279 e Xastras), fabulários (como o Hipotadexa e o Panchatantra), tratados de

ciência política (Artaxtra de Kautília), obras dramáticas (Xacuntalá de Kalidasa), etc.

Nos capítulos intitulados Ciências Puras e Ciências Aplicadas, Adeodato Barreto

procura contrapor a ideia generalizada no Ocidente pelos primeiros europeus, e que foi

aproveitada pela época colonial, de que a Índia é uma terra de místicos e contemplativos

que encaram o mundo de um modo idealista. Mesmo assim, vultos ocidentais como

Nietzsche, Goethe, Schieller, Max Mueller e Macauley descobrem na Civilização Indiana

valores estéticos e filosóficos que os vêm a influenciar. Para certos autores a pujança da

Civilização Indiana encerra em si fragilidades: a de não ter conseguido criar uma arte com

a harmonia da grega, nem se ter robustecido com uma ideia de Estado forte. Mais tarde,

de modo mais evidente, no pós-guerra, surge uma geração de investigadores europeus e

indianos que mergulham no passado indiano, estudando os seus múltiplos aspetos.

Chegam à conclusão de que nem mesmo durante a ocupação inglesa a Índia tivesse

277 Consultar Anexo XVIII. 278 O conceito Védico do Tempo é cíclico, correspondendo a períodos de criação e destruição do Universo.

Assim sendo, o universo é criado, destruído, e recriado numa série eternamente repetitiva de ciclos. Na

cosmologia hindu, um universo perdura por cerca de 4.320 milhões de anos (um dia de Brahma, o criador,

ou um kalpa) e depois é destruído. Neste ponto, Brahma repousa por uma noite. 279 Os Puranas são um grupo de textos que pertencem à categoria smrti (tradição memorizada). Purana

significa “antigo” em sânscrito e contem relatos de reis e as suas crónicas, de locais de peregrinação,

ensinamentos sobre o dharma e o moksha.

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estiolado do ponto de vista da produção intelectual, filosófica, cultural ou científica ou se

tivesse remetido para um isolacionismo estéril. Segundo Adeodato, a Europa vai

encontrar na filosofia da Civilização Indiana uma resposta à sua necessidade de

espiritualidade e procura valorizar e identificar a influência do pensamento hindu sobre a

civilização europeia, não só a nível da filosofia, mas também do ponto de vista do

pensamento científico. Assim, enumera uma série de exemplos em abono da tese de que

muitos factos científicos têm origem indiana, muitos séculos antes de a Europa os

conhecer, muitas vezes por intermédio dos árabes:

- o Teorema de Pitágoras, o Cálculo diferencial, as teses das esfericidade da Terra

e do seu isolamento no espaço, a atração universal, o Heliocentrismo, antecipando-se dois

séculos a Copérnico;

- a invenção de instrumentos astronómicos, como o astrolábio, a clepsidra e a

bússola, no que se antecipou aos europeus;

- a teoria dos átomos e das combinações moleculares, a lei da conservação da

matéria e da energia, os fenómenos do magnetismo e da eletricidade;

- a invenção das sete notas musicais, só introduzidas no século XI na música

europeia;

- a invenção dos balões aerostáticos, da pólvora, a descoberta do ouro e de mais

seis metais, só do conhecimento da Europa no século XVI.

O autor destaca o livro de Garcia da Orta, Colóquio das Drogas e Símplices das

Índias, que coleciona os conhecimentos hindus sobre botânica, assim como a

personalidade do Padre José Custódio Faria, o goês Abade de Faria, como o verdadeiro

criador do hipnotismo ao ter estabelecido a teoria e o método de atingir o estado hipnótico

pela sugestão.

Ao longo da sua História, o povo indiano desenvolve capacidades de especulação

e de síntese pelo treino mental que, nomeadamente, advém da tradição de memorizar as

grandes epopeias (Mahabharata, Ramaiana, etc.) antes da generalização da escrita, de

modo a garantir a sua passagem de geração em geração. Estas características de concisão

e de síntese do pensamento indiano encontra-as o autor no sânscrito clássico, que é um

idioma intrinsecamente sintético e nos textos bramânicos, que são intrinsecamente

ambíguos. Adeodato Barreto valoriza, assim, as características especulativas e o poder de

síntese do espírito indiano e procura desmontar uma certa visão da Índia pelo Ocidente

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de que teria descurado a matéria em detrimento do espírito, referindo o desenvolvimento

de disciplinas científicas milénios antes da própria Europa.

Começa por enfatizar a medicina, equiparando os médicos indianos Charaka e

Susruta aos gregos Galeno e Hipócrates e aos árabes Averróis e Avicena. Defende a tese

de que a medicina indiana é anterior à árabe, tendo-a influenciado, já que esta teve

contacto com os tratados sânscritos do século IX o que, por sua vez, teve influências na

medicina europeia até ao século XVII. Defende a primazia dos médicos indianos em

empregar os minerais para uso interno, tais como os sais de ouro no tratamento da

tuberculose e do mercúrio, assim como outros para combater o veneno das serpentes

venenosas, com uma prática curativa baseada no conhecimento de mais de quatrocentas

e cinquenta plantas medicinais. A medicina e farmacologia indiana, ou ayurvédica, vem

a influenciar as medicinas tibetana, chinesa, árabe, persa, hebreia, chinesa e europeia.

O autor defende a primazia do conhecimento na Índia sobre o sistema linfático,

circulação do sangue, a distinção entre veias e artérias, a localização do pensamento no

cérebro, as técnicas cirúrgicas como a rinoplastia e a litotomia, a prática da autópsia e o

exame post-mortem, que durante muito tempo a Europa considera um sacrilégio. A

prevenção das doenças já faz parte da medicina indiana, nomeadamente, os princípios da

eugenia e da educação sexual (Kamasutra de Vatsyáyana no século III), assim como as

primeiras vacinas descobertas por Dhavanantari.

No campo das letras, Adeodato justifica a superioridade dos conhecimentos

gramaticais pela relevância que a classe sacerdotal da religião bramânica dá à

interpretação dos textos védicos. Refere a importância de Pánini (século XII a.C.), que na

gramática é equiparado a Aristóteles com a sua lógica. Segundo a sua visão, ambos

atingem o cume nas respetivas áreas. Chama a atenção para a existência de dicionários,

como o de Amara no século XIV e o de Xcvata, muito mais antigo.

Acerca do sânscrito e do seu alfabeto sagrado ou devanagari280, Adeodato refere

a fascinação do Ocidente quando sobre ele se debruça. No dizer de Cust, em Linguistic

Oriental Essays, que Adeodato transcreve: «Ele representa uma combinação simétrica de

símbolos destinada por hábeis gramáticos em indicar várias gradações de sons, dispostos

e agrupados numa ordem estritamente científica.» 281 Refere, ainda no século III a.C., a

280 Que significa “a escrita dos deuses”. 281 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 122.

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existência de sessenta e quatro alfabetos e de matérias de escrita, como o papel de algodão

muito anterior à chegada de Alexandre. Menciona, igualmente, a existência de um corpus

literário de oitocentas e setenta e duas obras sobre escrita, outras tantas na poética, além

das da dramaturgia e da retórica em geral, além de tratados sobre a lógica, valorizando o

silogismo como meio de raciocínio dedutivo muito diferente do aristotélico.

No que à História diz respeito, Adeodato chama a atenção para o facto de a sua

conceção ser bastante diferente entre indianos e europeus. Assim, por oposição aos

gregos, para quem é fundamental os heróis permanecerem na memória humana, os

indianos valorizam outros aspetos que os leva a aproximar a lenda da História.

Concentrados que estão na “transitoriedade das formas da existência material”, e na noção

de que existem para lá das transmigrações, os indianos preocupam-se com a permanência

de princípios simbolizados pelos seus heróis como Rama, Krishna ou Sitá, ou de ideais

como os de Xánkara ou Kabir. Assim, é nas epopeias como o Mahabharata, o Ramaiana

e as Puranas, que se encontra relatada a verdadeira História da Índia, feita, não pela

descrição de factos e episódios, mas de sínteses. No entanto, o autor tem a preocupação

de salvaguardar a existência de arquivos oficiais, notícias e crónicas ao jeito europeu, o

que se contrapõe a uma certa visão do Ocidente, quando critica a ausência de um sentido

histórico na Índia.

No que respeita à política, à estadística e à estratégia, Adeodato faz referência a

vários tratados. Em relação ao primeiro assunto, refere Artaxastra, que considera

comparável a O Príncipe de Maquiavel. No tratado Nitixastra, que versa sobre a

organização económica do Estado, refere ideias de salário mínimo e de assistência para a

velhice, assim como a igualdade de todos perante o imposto, que antecipam ideias

recentes no Ocidente. No tratado Dhanurveda, que se reporta à organização militar do

Império Maurya, enaltece uma organização que não tem comparação com nenhum outro

povo da humanidade.

Adeodato faz ainda referências à arquitetura, à pintura, à música e à coreografia,

mencionado a existência de cento e dez Xilpas-xastras, sobre arte, duzentas e quarenta

obras sobre música e a famosa Natyaxastra de Kohala sobre dança.

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No Capítulo sobre Ciência Política (“O Direito, o Estado e o Indivíduo”),

Adeodato desmonta as generalizações de pensadores ocidentais como Henri Massis282,

que encerram num mesmo conceito de “Oriente” ou “Asiático” um complexo e diverso

pot-pourri, onde estão o árabe, o chinês, o quirguiz, o indiano ou iraniano. Este conceito

é, para o autor, uma mistificação política, religiosa e sociológica, que deriva da literatura

de nomes como Kipling, Loti ou Farrère, que pecam pela fantasia e superficialidade.

Ao longo da sua História milenar, a Índia implementa uma organização política

de sistemas de autoadministração local, como as das comunidades aldeãs, e, no dizer de

Adeodato, assegura os princípios básicos defendidos pelo moderno Ocidente, tais como

a organização corporativa dos trabalhadores, a divisão e equilíbrio dos poderes e eleição

das mulheres para os cargos públicos.

Contra as aleivosias do Ocidente de que a Índia tem uma tradição de regimes

despóticos tutelados por tiranos, Adeodato refere que o próprio poema Mahabharata

valida o regicídio no caso de tirania, assim como Manu afirma que o rei responde sob o

primado da Lei. Na Índia antiga há regimes republicanos. Kautília, o autor de Artaxastra,

cita vinte e seis repúblicas, que desempenham um papel importante na barragem aos

exércitos de Alexandre. João de Barros, nas Décadas da Ásia, refere que as Ilhas de Goa

estão organizadas numa confederação republicana, constituída por trinta aldeias, pouco

antes da dominação muçulmana, à qual se segue a portuguesa. No século XVII, altura em

que em França as instituições republicanas são implementadas pela Revolução Francesa,

coincide ironicamente com o fim da última república democrática indiana, a república de

Laknesvar.

Adeodato acusa os ingleses de desarvorarem o sistema de aldeias enquanto

comunidades políticas exemplares, que Gandhi vai recuperar no ideário da independência

da Índia. Noticia que, em Goa, no início do século XX, a população ainda está organizada

em comunidades político-económicas, elegendo os seus líderes. Ao nível das cidades,

existe uma organização semelhante, regida pelos mesmos princípios, a uma escala

obviamente maior, em que as mulheres desempenham funções administrativas e os

grupos sociais, como os operários, estão organizados em associações. O grau de

282 Escritor da Direita Católica, anti-modernista e divulgador das teses de Charles Maurras (anti-semita,

germanófobo, teórico do Nacionalismo Integral, que influenciou o pensamento de Oliveira Salazar).

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autonomia de que estas estruturas gozam permite-lhes lidar com as vicissitudes do

governo central.

No campo jurídico, Adeodato contesta, mais uma vez, as calúnias de Massis

quando afirma que os orientais não se preocupam com o direito e as relações jurídicas.

Antes pelo contrário, como Adeodato refere, é no período védico, em que o Yajurveda

constitui a fonte jurídica na Índia, que dá origem a várias escolas de jurisprudência, as

charanas, com diversas elaborações jurídicas que se manifesta nas coleções de preceitos

(sutras) religiosos, morais e sociais. Assim, a legislação jurídica da Índia é rica e variada

e no Brihadaraniak-Upanishad consta que: «A lei é a força das forças: não há, pois, nada

que lhe sobreleve.»283. Orientalistas mais recentes referem que o Código de Manu contém

disposições jurídicas baseadas nos princípios universais da justiça, não referindo, por

exemplo, a ideia de vingança, o que só acontece na Europa após o século XVIII. Vários

viajantes que visitam a Índia do século IV a.C. ao século XVII da era cristã, como

Estrabão, Marco Polo, entre outros, enaltecem o elevado nível de moralidade da

Civilização Hindu, que, aliás, se encontra para além do campo jurídico nos poemas,

contos, fábulas, lendas, folclore, mitos religiosos, o que provaria a subordinação da

sociedade ao sentimento de justiça e à força do direito. A propósito, refere a

Panchatantra, um fabulário que congrega princípios morais (tais como, a fraternidade, a

fidelidade, a caridade, os deveres dos reis, o apreço pela liberdade, etc.) que a civilização

moderna não descura.

No que à instrução diz respeito, Adeodato Barreto refere que, como é habitual na

Antiguidade, também na Índia é um privilégio reservado às elites. Tal como as escolas

gregas, as escolas indianas, bramânicas ou budistas, praticam um ensino exotérico, mais

mainstream, e um ensino esotérico, mais penetrante, reservado apenas às classes

superiores. Adeodato alude, no entanto, à existência de escolas rurais da responsabilidade

das comunidades de aldeia que praticam uma instrução elementar, que no período búdico

proporcionam uma alfabetização de grau elevado. O ensino é ministrado sem distinção

de género, de castas ou de grupos sociais. Coexistem com as tapovanas, escolas da

floresta, onde o movimento europeu da Escola Nova se terá inspirado. Dá notabilidade

especial ao ensino universitário pelo nível atingido em termos organizativos, com

referências à Universidade de Taxila do século VI a.C., a que Ptolomeu, Estrabão e Plínio

se referem. A Universidade de Nalanda, no século VII a.C. é a maior da Índia e chega a

283 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 135.

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albergar dez mil alunos, ministrando gramática, lógica, medicina, línguas sânscritas e

música. Do ponto de vista económico, a manutenção é garantida por rendimentos próprios

de cerca de trinta aldeias e em donativos de vários monarcas. As Parixadas congregam

os mais eloquentes eruditos dos tempos dos primeiros séculos da era cristã, sendo

equiparados às atuais Academias de Letras e Ciências.

Relativamente às preocupações assistenciais com os necessitados na Índia, com o

poderoso ideário humanitário de religiões como o Humanismo e o Budismo, desde

sempre existem instituições públicas e privadas. Adeodato menciona Ashoka, o grande

imperador budista da Índia no século II a.C., que desenvolve forte atividade humanitária,

nomeadamente, para com os doentes mentais e para com os animais.

Grande parte dos textos que Adeodato Barreto escreve sobre a Civilização Hindu

é dedicada a vários aspetos do humanismo hindu, nomeadamente, à sua génese, aos

aspetos práticos e históricos, a uma nova forma de humanismo e a uma interpretação das

diferenças entre o humanismo europeu e o humanismo hindu.

Tendo a Civilização Indiana começado na planície indo-gangética, que foi palco

da invasão de variadíssimos povos, Adeodato caracteriza-a tendo uma natureza plástica,

já que soube integrar as variadas culturas. Por outro lado, o autor caracteriza os indianos

como naturalmente pacifistas, ao contrário de outros povos, como os egípcios, os assírios,

os romanos, os cretenses ou os gregos. O autor não se cansa de chamar a atenção para o

alicerce espiritualista da Civilização Indiana, baseado em ideais de tolerância e

humanismo, com a finalidade de contribuir para a unidade espiritual entre os povos. Estas

preocupações estão patentes nas antigas Upanishads, tal como no poema Mahabharata

que contém o Dharma-raja (Reino da Justiça).

Como reação aos impérios materiais da Antiguidade (Império Assírio, Babilónico,

Persa ou Macedónico), porque apenas baseados na força e na superioridade das armas, na

História da Humanidade surgem respostas espirituais, tais como as das doutrinas de Buda

e Mahavira, Lao-Tsé e Confúcio, antecedidas pela reforma zoroastriana na Pérsia e na

Palestina, vai surgir um espiritualismo profético que vai permitir o desabrochar das

sementes do Cristianismo.

Como exemplo destas duas posturas divergentes, Adeodato transcreve uma

inscrição do rei assírio Assurnazirhapal: «[…] mandei esfolar os chefes da revolta e cobri

esse muro com a sua pele. Alguns foram murados vivos na alvenaria, outros crucificados

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ou empalados ao longo do muro.»284; em oposição a uma inscrição do rei persa Dario:

«[…] Eis a razão por que Ashura Mazda me auxiliou […] eu não fui vingativo, não fui

um assassino, não fui um déspota […]»285; e invoca os mandamentos de Ashura Mazda:

«[…] não erreis, não vos afasteis do bom caminho, não cometeis pecado.»286, que, para

Adeodato Barreto, balizam duas fases da evolução da humanidade

Adeodato centra-se, depois, no caso da Índia, no que diz respeito à gestação da

atitude espiritualista. As suas raízes encontram-se nos hinos do Rig-Veda e nos grandes

poemas do Mahabharata e do Ramaiana, de onde surgem as doutrinas universalistas e

aglutinantes e ainda nos poemas épicos, que rejeitam a apologia da violência. A própria

guerra é utilizada como oportunidade para reflexão de grandes questões ético-filosóficas,

em que o herói não representa a exaltação de uma etnia, mas sim de um ideal. Uma das

questões centrais é a da legitimidade da guerra, patente no Bhagavad-Gita e

consubstanciada no dilema de Arjuna287.

Às sínteses platónicas e aristotélicas e aos sistemas unitários de Lao-Tsé e

Confúcio vão corresponder as filosofias de Buda e Mahavira, que representam, na Índia,

o que, séculos depois, Jesus Cristo e João Baptista representam na Judeia. O autor centra-

se na comparação destas duas últimas Civilizações – Indiana e Judaica – em que estas

quatro personalidades retratam a necessidade de libertação espiritual, reagindo, na Índia,

contra a injustiça do sistema de castas e a austeridade da disciplina bramânica e, na Judeia,

reagindo contra os rituais do Antigo Testamento e a dessacralização do Templo. Embora

fortemente espiritualistas, estes movimentos mantêm também recortes políticos. No caso

do Budismo e do Jainismo, partiram do Ksatryanismo político, ou seja, de uma revolta da

casta guerreira ou ksatrya contra o poderio da casta sacerdotal ou brâmane. No caso judeu,

parte-se de um confronto com os sacerdotes do templo. 288

Ainda que o Jainismo e o Budismo derivem do Hinduísmo, as duas religiões vão

ter uma implantação diferente. O Jainismo vai circunscrever-se a uma pequena região,

284 Idem, p. 232. 285 Idem, ibidem. 286 Idem, ibidem. 287 Por volta de 3000 a.C., primos entraram em guerra sobre a herança de um reino. Os seus exércitos foram

compostos por parentes, professores e líderes comunitários respeitados. Arjuna era um guerreiro renomado,

reconhecido asgeeta, um mestre arqueiro. Seu amigo de infância, Senhor Krishna, concordou em ser o

cocheiro de Arjuna. Arjuna ficou perplexo ao ver as pessoas que ele amava e respeitava no lado oposto ao

seu da batalha, dizendo ao Senhor Krishna: "Eu não desejo matar os meus líderes espirituais, e parentes que

estão prontos para nos matar, mesmo que para a soberania dos três mundo, sem falar neste reino terrestre,

Ó Krishna." (1,34-35). 288 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p.154.

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enquanto o Budismo se vai difundir pela Índia durante séculos, até perder importância

relativamente ao Vaishnavismo. De qualquer modo, o Jaino-budismo vem a influenciar o

Hinduísmo, nomeadamente, na proibição dos sacrifícios dos animais, sendo que o seu

princípio de não-violência (ahimsa) é adotado pelos hindus. Por sua vez, o Budismo,

reagindo contra a superstição e ritualismo do Hinduísmo, vai integrar na demanda do

Nirvana a compaixão por todos os seres racionais e irracionais, a qualidade do

comportamento moral, o amor pela verdade, a Santidade como objetivo. Adeodato

Barreto faz um paralelismo entre estas alterações e as da Reforma Católica com as suas

correções. Com os aportes jaino-budistas, o Hinduísmo vai, assim, consolidar a sua

filosofia e o seu humanismo.

O Budismo vem a ter uma grande difusão a partir do século III a.C. com o grande

Imperador máuria Ashoka, que envia missionários para a Birmânia, Síria, Egipto, Ceilão,

dando substância a um imperialismo da paz e da civilização. As influências do Budismo

a Ocidente manifestam-se na seita ascética dos essénios, que, por intermédio de João

Baptista, chegam a Jesus Cristo, influenciando muitas das crenças essenciais do

Cristianismo.

Adeodato assinala uma interinfluência entre as duas grandes religiões. Se, por um

lado, Cristo é identificado com o Buda Maitreya 289(o Buda da Bondade), o próprio Buda

é identificado como São Josafat290, corruptela da palavra Bodhisattva291. A impressão

digital das doutrinas indianas é percetível em quase todas as filosofias peri-

mediterrânicas, desde os primeiros séculos da Era Cristã até à Idade Moderna. A postura

herdada do racionalismo grego vai levar a Europa a conviver mal com estas influências

budistas, considerando-as «[…] uma degradação do pensamento filosófico»292, que

casava mal «[…] com o claro pensamento helénico.»293 O certo é que esta fase histórica

289 Maitreya ou Maitria vem da palavra sânscrita que significa “amistosidade”. Assim se designa o Buda

do futuro, renovador do Budismo, o próximo Buda, que reiniciará o actual ciclo iniciado por Siddhartha

Gautama, quando os ensinamentos deste tiverem sido esquecidos. Alguns cálculos apontam para que este

renovador do Budismo nasça daqui a 3 000 anos (Idem, p. 159).

290 Nasceu na Ucrânia, cerca do ano 1580, de pais ortodoxos. Abraçou a fé católica e entrou na Ordem de

S. Basílio. Ordenado sacerdote e eleito bispo de Polock, dedicou se com grande empenho à causa da unidade

da Igreja, pelo que foi perseguido pelos seus inimigos e morreu mártir em 1623 (Idem, ibidem). 291 No Budismo, um bodisatva ou bodhisattva é um ser (sattva) iluminado (bodhi). Um bodhisattva é

qualquer pessoa que, movida por grande compaixão, tem o desejo espontâneo de atingir o mesmo status

de Buda para o benefício de todos os seres sencientes (Idem, ibidem).

292 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 160. 293 Idem, ibidem.

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corresponde a uma grande necessidade espiritual da humanidade, numa época de grande

internacionalismo. Adeodato faz uma transposição para o seu período histórico, também

caracterizado por um grande internacionalismo, num empenho em harmonizar o

pensamento do Oriente com o do Ocidente, numa nova visão humanista de características

sincréticas. A propósito, Adeodato chama a atenção para a fase inicial do Budismo, em

que a sua preocupação com a simplicidade e os aspetos essenciais da vida do Homem se

aproximam das preocupações de Cristo. É quando o Budismo se afasta desta simplicidade

e se adensa em especulações teológico-filosóficas, que o Vaishnavismo e a sua doutrina

do amor divino se impõe e seduz a Índia.

Adeodato dá particular atenção à ação civilizadora da Índia sobre o Extremo

Oriente: durante oito séculos, a partir do século V a.C., os missionários indianos levam o

Budismo ao Ceilão, China e Japão, Indochina, Indonésia, da Mongólia e Tibete. O autor

reforça a ideia de que a Índia nunca teve expedições bélicas contra outros países, ainda

que reconheça que a expansão da sua ideologia espiritual não seja alheia às suas políticas

comerciais. As metodologias variam em função das culturas que contactam. Enquanto na

China e no Japão, possuidores de uma estrutura cultural sólida, os missionários são

pregadores e filósofos que discutem e fundam escolas filosóficas, na Indonésia e no

Tibete, tornam-se arquitetos e pintores, procurando impressionar pelas obras que

realizam.

Mesmo quando o Budismo entra em declínio na Índia e dá lugar ao Vaishnavismo,

a influência dos seus missionários mantém-se como o atestam os Templos dedicados às

divindades bramânicas em Java e no Camboja.

Adeodato Barreto, de forma a ilustrar as características do Humanismo Hindu,

elege algumas personalidades à categoria de heróis e santos, entre as quais Ashoka, o

grande imperador Maurya do século III a.C., Akbar, o imperador mongol do século XVI

e Shivaj, que liberta o estado Marata do jugo maometano, personalidades que lhe

merecem atenção especial.

Adeodato Barreto considera Ashoka «]…] uma das mais extraordinárias e

simpáticas figuras da História»294 ao recusar a tradição dos imperialismos sanguinários e

a infletir na prática de um imperialismo da paz e da civilização. Após conquistar um vasto

império, em 262, data da sua última conquista, denuncia as atrocidades da guerra e deixa-

294 Idem, p. 156.

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se seduzir pelo Budismo, não tanto pelos aspetos teológicos e filosóficos, mas pela sua

essência humanitária de tolerância, nomeadamente, na relação com as religiões alheias.

Torna-se monge budista, fazendo sua a proclamação do mestre: «Sava munisa me

paja.»295 Investe na expansão do Budismo à Síria, Macedónia, Egito, Ceilão e Japão.

Dentro e fora das suas fronteiras, em pilares comemorativos, grava pensamentos

moralistas: «Se lhes acontecer vencerem pelas armas, que exerçam o seu poder com

doçura e não considerem vitória senão a vitória da religião; este vale não só para este mas

também para outros mundos.»296 Para Adeodato Barreto, o Dharma-raja de Ashoka, o

reino da Justiça e do Amor, antecede em séculos o ideário da Revolução Francesa. O

entusiasmo de Adeodato por esta personalidade histórica vai ao ponto de referir “[…]

uma verdade histórica que as nações ocidentais não assimilaram ainda […] O Dharma-

raja de Ashoka, reino da Justiça e do Amor, foi recordado à Humanidade pela Revolução

Francesa.”297

Akbar, o Grande, o imperador mongol da Índia, que também adota o Budismo

durante o seu reinado, corresponde à idade de oiro da Índia moderna. Em 1552, Akbar

rompe com a ortodoxia sunita em que se formara e pratica um sincretismo de adoração

de um Deus único comum a hindus, judeus, cristãos e muçulmanos. Numa moeda

cunhada no seu reinado está inscrita a frase: «Ser justo é a única forma de agradar a Deus:

Nunca ninguém se perdeu por andar pela via da rectidão». Durante o reinado do seu filho,

Jehangir, a tolerância manifesta-se na proteção ao Cristianismo, nomeadamente, em

relação aos padres jesuítas.

Adeodato debruça-se, depois, sobre os sikhs e os maratas, que, em épocas diferidas

da história, balizam momentos centrais da reação nacional hindu face à degradação da

política mongol.

Os sikhs são os seguidores de Guru Nanak (1469-1539), por sua vez, discípulo de

Kabir (1440-1518), poeta-místico teorizador da fusão do movimento bhakti hindu e do

Sufismo muçulmano. Defendem a unidade de Deus, a igualdade das castas, desmerecendo

o culto público e os ídolos. O quinto Guru dos sikhs, Arjuna, autor do Adi Granth,

sistematiza a nova crença de características ecléticas entre o Dharma dos hindus e o islão

dos maometanos.

295 Idem, p. 141. “Todos os homens são meus filhos”. 296 Idem, p. 158. 297 Idem, p. 165.

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Akbar, que se sente próximo de alguns princípios sikhs, protege-os, chegando a

ceder-lhes o terreno onde ainda hoje se encontra o Templo Dourado de Amritzar. No

entanto, os seus sucessores tornam-se sectários e opressores e os sikhs, assim como os

não islâmicos, são perseguidos, o que os leva, por razões de autodefesa, a organizarem-

se militarmente contra os imperadores mongóis e a evoluírem politicamente até se

constituírem num estado, o Panjab, no século XVIII.

O outro polo da reação nacional hindu é constituído pelo marata Shivaji. Foi o

fundador da Confederação Nacional Marata, que Adeodato considera o «[…] herói

máximo da índia Moderna […]» 298, o «[…] Napoleão Hindu […].” 299 Este herói vem a

merecer a Adeodato Barreto inspiração para o poema, justamente intitulado “Shivaji”,

assim como já tinha acontecido com os poetas Ramdás300 e Tukarám301, que nele se

tinham inspirado, o que atesta a sua importância histórica e simbólica para o ideário

independentista da Índia.

Shivaji, na convicção de que Deus lhe confiara a missão de fundar um grande

Império que englobasse toda a Índia, reage contra o domínio mongol e vem a constituir,

de facto, à data da sua morte, em 1680, a Confederação Marata que ocupa toda a Índia

Central. A sua originalidade consiste em ser uma confederação popular, impregnada por

um novo e forte sentimento de nacionalidade. Protege a língua popular, o marati, que vai

suportar uma literatura pujante. Fruto da sua história, os maratas são dos povos indianos

que mais resistem à absorção colonial.

Adeodato, no capítulo “A escravidão de um povo”, debruça-se sobre a

colonização inglesa como marco para o surgimento de um novo humanismo. A

colonização indiana inicia-se com a atividade consolidada de uma união de empresas

comerciais, em 1709, denominada The Inited Company of Merchants of England trading

to the East Indies ( East India Company) que implementam uma rede de feitorias e que

vão fortificando a pouco e pouco. À data, a tentativa da construção de uma confederação

Hindu tinha-se esboroado e o território indiano encontra-se politicamente dividido num

complexo xadrez. O sucessor imperial dos Mongóis exercia o seu poder na zona de Delhi,

a norte, o reino sikh, com capital em Lahore, no centro da Índia, o estado Marata, com

298 Idem, p.180. 299 Idem, ibidem. 300 Poeta marata do século XVII que Gandhi cantou. 301 Poeta e santo marata do século XVII, um dos expoentes do movimento bakhti.

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sede em Puna e os estados do Nepal e de Bengala, entre outros estados, reinos e

principados.

Durante cerca de cento e cinquenta anos a Inglaterra tem uma atividade comercial

até que, em 1744, eclode a guerra entre a Inglaterra e a França que tem o seu epílogo em

1799 com a derrota de Tipu Sahib, que baliza a perda de influência dos franceses na Índia.

Consequentemente, aumenta a influência inglesa que vai implementar uma política sob a

égide da East India Company de características despóticas e que, na expressão de John

Sullivan, se assemelha a «[…] uma esponja que se ensopasse nas águas do Ganges para

ser espremida a seguir no leito do Tamisa.»302 Em 1857, acontece a Revolução Nacional,

denominada Revolta dos Sipais, que exprime a rebelião da população face à política

tirânica da East India Company e que constitui o pretexto que falta ao Parlamento

Britânico para aprovar o bill da transferência do domínio da Índia para a Coroa Britânica.

A transferência pouco altera a condição de vida dos indianos, que se deparam, em 1860-

61, com um surto de fome de proporções bíblicas, que vitimiza, só em Orissa, cerca de

dez milhões de vidas e que se vem a repetir, em 1878, com mais cinco milhões de vítimas.

As políticas de industrialização da Índia, ao impedirem os indianos de se dedicarem à

tecelagem e à fiação, o que constitui um complemento aos seus magros proventos dos

trabalhos agrícolas, associado ao desemprego cíclico de oito meses e às fomes crónicas

que afetam cerca de cinquenta milhões de pessoas, vêm a constituir o cadinho onde

começam a fermentar as ideias do nacionalismo hindu. Sob a direção de Lokhamânia

Tilak (1855-1920), as análises e ideais libertários começam a despertar a consciência

politica, ainda que numa primeira fase fosse difícil conseguir a aderência das massas

populares. É quando surge uma personalidade que Adeodato não se cansa de enaltecer e

que Tagore nos apresenta: «De pé, no limiar da cabana de milhões de deserdados, vestido

como qualquer um deles e falando-lhes na própria língua, apareceu Gandhi. E viu-se pela

primeira vez a Verdade sem ser numa citação de livro.»303 Adeodato Barreto lamenta que

«[…] a Europa liberal não tenha ainda compreendido integralmente – não obstante os

generosos esforços de Romain Rolland - esse alcance universal do nacionalismo

gandhista, que reveste sem dúvida o significado duma nova encarnação de humanismo,

delicado e original.»304. Adeodato Barreto, homem de duas culturas, não hesita em

302 BARRETO, Adeodato, Op. Cit. p. 143. 303 Idem, p. 191. 304 Idem, p. 192.

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compará-lo com a «[…] doçura de São Francisco […]»305, «[…] a tenacidade de Loyola

[…]»306 e termina o capítulo referindo: «Teve, por isso, razão o bispo americano ao

compará-lo a Jesus Cristo. A sua doutrina é efetivamente um evangelho: o Evangelho de

ação heroica de que o mundo tanto necessita.»307

No capítulo intitulado “Uma nova forma de humanismo (não violência e

comunhão dos povos)”, Adeodato Barreto desfia o referido Evangelho com a pergunta:

“Em que consiste o Evangelho de Gandhi?”. Começa por tentar precisar o método de

Gandhi, o Satyagraha, que significa “força da vontade e do sacrifício”, conceito

complexo de resistência que rejeita a violência, criado por ele ainda na África do Sul e

onde o põe em prática pela primeira vez. No seu jornal, Young India, expressa as suas

ideias: «Evitai a violência! Eu não creio que a violência seja um processo político eficaz

para a libertação da Índia. Na violência temos vivido, contra a violência nos insurgimos,

e não podemos impor aos outros o que consideramos para nós um malefício».308

Gandhi vai chamar a atenção de personalidades de personalidades como Romain

Rolland, no Ocidente, e Rabindranath Tagore, no Oriente. Se Gandhi escreve: «A nossa

luta tem por fim a amizade com o mundo inteiro»309 e Tagore reforça «[…] o Suaraj

(independência) não é a nossa finalidade exclusiva. A nossa luta é em prol do Homem»310,

Romain Rolland faz a síntese e como que implora:

“Ó Tagore! Ó Gandhi! Rios da índia que, tais como o Indo e o Ganges, abraçais num amplexo

comum o Oriente e o Ocidente, este, uma tragédia da acção heróica, aquele, um vasto sonho

de luz, emanando ambos do seio de Deus sobre o mundo revolvido pela charrua da violência,

- espalhai as vossas sementes!”311

Adeodato Barreto faz um esforço de integrar a ideologia gandhiana, no que

entende como a tradição da tolerância hindu, uma «[…] civilização que, desde remota

data, banira a violência do seu Código social e religioso»312, em que «a maravilhosa

eficácia do Satyagraha provinha, exatamente, da sua plena concordância com a feição

especial da alma hindu, propensa desde sempre a vencer sofrendo mais do que a

sofrer.»313

305 Idem, p. 193. 306 Idem, ibidem. 307 Idem, ibidem. 308 Idem, ibidem. 309 Idem, p. 202. 310 Idem, ibidem. 311 Idem, p. 206. 312 Idem, p. 199. 313 Idem, ibidem.

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Este essencialismo de Adeodato Barreto, ao branquear fases violentas da relação

entre as várias religiões e culturas locais que integram o panteão indiano, só pode ser

compreendido à luz da fase histórica em que são escritas e em que a Índia se quer impor

no concerto das nações. Não obstante, no capítulo seguinte, “Humanismo europeu e

humanismo hindu (ensaio de interpretação das suas diferenças)”, Adeodato Barreto

denuncia aspetos contraditórios da civilização indiana que, ao mesmo tempo que está

impregnada do espiritualismo do Hinduísmo e do humanismo budista, também permite

no seu seio «[…]produtos, ainda que bastardos […]»314, «[…] como o sati (queima das

viúvas), o casamento das impúberes, o parda (reclusão das mulheres), o sistema de castas,

a degradação dos párias e a consagração dos ídolos, a coexistência de cidades opulentas

ao lado de aldeias miseráveis e a existência de tribos com um tipo de vida primitiva».315

Adeodato Barreto ensaia, então, uma tentativa de compreensibilidade quando afirma que

«estes contrastes […] explicam o segredo da sua [civilização indiana] admirável

continuidade, e constituem mais um argumento em prol do seu humanismo

imorredoiro.»316

Caracteriza o humanismo ocidental, criado na polis, mais preocupado com a

dimensão da extensão, no cuidado do nivelamento gradual dos seres «[…] dentro dum

sonho abstrato de igualdade e fraternidade»317, enquanto o humanismo oriental, criado na

natureza, tem uma preocupação da profundidade e, mais do que resolver diferenças,

preocupa-se em harmonizá-las dentro de um todo, integrando cada pessoa «[…] na

tranquila consciência da sua missão social e moral […]» 318 do seu Dharma.

Adeodato denuncia o excesso e a rigidez do pensamento religioso de épocas que

considera decadentes da história hindu, em que as pessoas se preocupam unicamente em

compreender o seu Dharma de um modo rígido, o que se torna um preconceito, um

costume, um ritual despido de sentido que impossibilita o progresso, a sua evolução. Dá

o exemplo do sati que se torna um costume a partir da valorização de algumas viúvas que

se suicidam na pira dos maridos ou como a degeneração do estatuto das devadassis, servas

e cantoras de Deus, em prostitutas públicas ou a praga social que se torna a imitação

vulgar da renúncia de alguns espíritos elevados.

314 Idem, p. 209. 315 Idem, ibidem. 316 Idem, ibidem. 317 Idem, p. 210. 318 Idem, ibidem.

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Estes costumes, que Adeodato considera de «[…] perversões lastimosas ]…]»319

são resolvidas no seio da consciência indiana que sabe contrabalançar o «[…] quietismo

]…]»320, que corre o risco de estagnação, com a «[…] tensão máxima da vontade

consciente […].»321 Assim, a realização do Dharma, longe de ser um laisser-faire, é uma

«[…] conquista consciente, orientada pela vontade esclarecida.»322 Adeodato faz

comparações. Quando o Hinduísmo advoga que cada um se deve conformar com o seu

Dharma, tal não tem nada que ver com o modo fatalista da mentalidade árabe. A imagem

de Buda olhando o umbigo, que o Ocidente compreende mal, mais não significa que uma

atitude reflexiva, do primado da vontade do «[…] pensamento liberto dos imperativos da

matéria e perscrutando-se a si mesmo.»323 O Yoga, a ascese, a mortificação dos sentidos,

são, também, um estilo de educação física com o objetivo de possibilitar «o domínio

máximo da vontade sobre os sentidos»324, do espírito sobre a matéria. A libertação

espiritual que propugna visa o domínio da vontade sobre a carne, ao invés do

Cristianismo, que defende o aniquilamento da carne. Adeodato Barreto encontra na

problemática da relação da matéria com o espírito a diferença principal entre a Europa e

a Índia, entre o Cristianismo e o Hinduísmo. Enquanto o Ocidente relaciona essas

categorias pela oposição, a Índia fá-lo pela harmonia.

Ambas as religiões partem de um pessimismo em relação à condição humana e

ambas anseiam a libertação da alma, seja através da salvação para uns, seja através da

moksha para outros. Mas enquanto o Cristianismo parte de uma oposição do homem à

natureza, consubstanciado na expulsão de Adão do paraíso, o Hinduísmo procura a sua

integração de modo a possibilitar a realização do Dharma.

O ideal cristão, sendo abstratamente perfeito, encaminha o crente para uma

perfeição absoluta, numa igreja que se lhe oferece como exemplo, à renúncia do pecado,

nomeadamente, pela mortificação da carne, o que considera diametralmente diferente do

ideal hindu que propõe o domínio de si mesmo, em que a abstinência e a mortificação da

carne são um processo de fortalecimento mental, nomeadamente, da vontade, que lhe

319 Idem, ibidem. 320 Idem, ibidem. 321 Idem, ibidem. 322 Idem, p. 212. 323 Idem, ibidem. 324 Idem, ibidem.

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permita a reflexão sem a intromissão dos sentidos, de modo a atingir o samadhi, a

identificação mística com o Absoluto.

É, assim, que Adeodato considera que a noção de Dharma permite uma ampla

margem de progresso individual. «O asceta hindu que sofre para se exercitar é oposta à

do asceta cristão que sofre para merecer o céu.»325

Do ponto de vista histórico, Adeodato lembra que enquanto o Hinduísmo é um

produto da própria Índia, baseado nas crenças indianas, das suas ideias filosóficas e

morais, elaboradas por uma imensidão de comunidades ao longo de milénios a que o

bramanismo dá um sentido comum, o Cristianismo, no que diz respeito à Europa, é

elaborado por um povo e uma cultura do Médio Oriente, que lhe são estranhos, embora

tenham sido integrados e elaborados no que Adeodato percebe um estado de «[…]

conflito perene com o espírito europeu.»326

Adeodato considera o Hinduísmo «uma enorme massa polimorfa em que os ideais

mais elevados se acamaradam, por vezes com as práticas mais grosseiras. A sua ideologia

é difusa, a sua metafísica é contraditória, a sua disciplina é inexistente»327, enquanto

reconhece no Cristianismo «um todo coerente e equilibrado»328, servido por uma

hierarquia bem disciplinada e organizada, com uma doutrina acessível e uma metafísica

simples. Adeodato denuncia no Cristianismo a inexistência de uma «verdadeira sede

espiritual. A religião não acompanha o homem em todas as suas manifestações»329, em

que muitas vezes o crente parece satisfazer-se mais com a participação em rituais de culto

que lhe são exteriores do que mergulhar na essência da religião.

O pensamento de Adeodato Barreto evolui depois para uma compreensibilidade

da evolução histórica da Europa, não no domínio estritamente religioso, mas nos

domínios da Política, da Arte, da Literatura, da Vida Social, onde julga perceber «uma

luta contra si própria […] um esforço para ajustar a sua realidade social aos grandes

princípios diretores da sua civilização […] numa sucessão de tentativas abortadas.»330.

São «{…] as chamadas Renascenças.»331 Como princípios diretores, Adeodato identifica

«[…] o monoteísmo hebraico, o racionalismo helénico, o imperialismo romano, o

325 Idem, p. 215. 326 Idem, p. 216. 327 Idem, ibidem. 328 Idem, ibidem. 329 Idem, p. 217. 330 Idem, p. 218. 331 Idem, ibidem.

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individualismo germânico […]»332, aquisições bruscas e não adquiridas por lenta

infiltração. Como consequência, Adeodato apercebe-se na história europeia de um

divórcio entre as elites e as massas, um conflito permanente entre «[…] empirismo e

racionalismo, romantismo e classicismo, espiritualismo e materialismo, aristocracia e

democracia»333 e considera que a Europa não encontrou ainda uma solução para estes

conflitos e contradições. Em oposição, Adeodato Barreto julga ter encontrado na Índia a

solução para estas questões, consubstanciada no seu espírito de tolerância, o respeito pela

multiculturalidade dos povos que a integram e dos povos com que contacta. São estas

características intrínsecas que permitem à Índia não soçobrar ao peso das culturas dos

povos que ao longo dos tempos a ocupam como os hunos, os afegãos e os mongóis, entre

outros.

O ponto alto da filosofia consubstancia-se no que entende ser “A missão da Índia

Nova” e que constitui o último ensaio incluído em Civilização Hindu.

Debruçando-se sobre «a civilização universal, na hora que passa […]»334 e

denunciando as suas contradições conclui que «como no século III, os espíritos

insatisfeitos aspiram por uma síntese, ansiosos por encontrar a fórmula ideal que

estabeleça e afirme os valores fundamentais da civilização material e moral, sem

sacrificar os direitos sagrados da pessoa humana.»335 Encontra no primado do material e

na hipertrofia do desejo, que norteiam as ideias de progresso, duas das principais causas

da referida insatisfação.

É chegado a este ponto que Adeodato acredita que a Índia pode vir a dar uma

reposta, dado o apetrechamento filosófico da sua dinâmica cultural e ilustra com a

transcrição de alguns ensinamentos dos seus Livros Sagrados, tal como do Bhagavad-

Gita:

- «Do desejo surge a cólera, da cólera a ilusão, da ilusão a confusão da razão e da

confusão da razão, a morte»;

- «Só a Razão daquele cujo coração está em descanso, conquista o equilíbrio»;

332 Idem, ibidem. 333 Idem, ibidem. 334 Idem, p. 224. 335 Idem, ibidem.

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- «É necessário que os nossos desejos corram como os rios para o oceano, que

apesar de cheio de água, permanece imóvel.»

À exagerada especialização científica e educativa europeia que estimula um

espírito analítico, que separa e não une, Adeodato Barreto contrapõe a sabedoria indiana

que propõe «[…] a unidade na pluralidade»336 já que «as diferenças são matizes que

embelezam e enriquecem a existência social. A uniformização é a monotonia, a morte.»337

Adeodato Barreto acredita que a «[…] Índia tem uma missão superior no mundo

moderno»338 com uma proposta ecuménica e de paz, dando o exemplo de Tagore na

aproximação do Oriente e do Ocidente, no campo da cultura, de Bose, que no campo da

ciência descobre a sensibilidade no mundo vegetal e permite a compreensibilidade da

unidade do mundo biológico e o exemplo da praxis de Gandhi no campo político.

Adeodato termina o seu livro transcrevendo Benoy Kumar Sarkar (The pedagogy

of the Hindus), que contém um alerta para as possíveis consequências para a Índia destas

teses de ecumenismo que se consubstanciam na aproximação do Ocidente e do Oriente:

“A Índia não pode render-se ante a força agressiva das locomotivas da civilização […] e

assimilar os ideais que eles implicam [….] O Hindu, sob o estímulo da influência estrangeira,

desenvolverá sem dúvida mais intensamente os aspectos materiais da sua civilização […] não

para se tornar escravo dos gozos materiais […] antes, sim, para descobrir novos métodos de

autossacrifício e filantropia e divisar horizontes mais amplos para a sua actividade altero-

centrista […] provando ao mundo que o amor, o respeito a renúncia podem perfeitamente

combinar-se com a ciência, o self-government e a democracia.”339

Tal como Adeodato, acredita que a missão da Índia é «derramar sobre as nações

do mundo um dilúvio de idealismo, de espiritualidade e de misticismo.»340

336 Idem, p. 225. 337 Idem, ibidem. 338 Idem, p. 226. 339 Idem, ibidem. 340 Idem, ibidem.

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Conclusão

Adeodato Barreto revelou-se-nos uma personalidade complexa, no sentido de

Edgar Morin, para quem o conceito de complexo é caracterizado por incluir constituintes

heterogéneos inseparavelmente associados, conceito paradoxal, uno e múltiplo. A sua

dualidade goesa-portuguesa foi posta à prova no modo como a sua honestidade intelectual

abraçou, com igual intensidade, a causa indiana e a causa das necessidades sociais e

culturais do povo português.

Se, por um lado, nos fascinou o colorido indianista da sua intervenção literária,

seja na exaltação poética, seja na profundidade ensaística, seja no entusiamo com que

abraçou as teses do nacionalismo goês, por outro, comoveu-nos o preito de homenagem

dos mineiros de Aljustrel quando, na hora da sua morte, se deslocaram ao Sanatório de

Coimbra e lhe ofereceram as suas parcas economias, como reconhecimento pela sua

grande humanidade e solidariedade.

Dos seus dezassete anos até aos trinta e dois, idade em que faleceu, viveu neste

país onde estudou, trabalhou e casou, onde lhe nasceram os filhos, onde adoeceu e faleceu

prematuramente. Em Portugal, desenvolveu intenso trabalho intelectual e relacionou-se

com pessoas do nível de um Rabindranath Tagore, de um Sylvain Lévi e de um Romain

Rolland, que lhe reconheceram o brilhantismo do pensamento. Ao mesmo tempo,

desenvolveu um intenso trabalho cultural, assistencial, humanitário e sociopolítico junto

dos necessitados, nomeadamente, em Coimbra, Montemor-o-Novo e Aljustrel, e que

também lhe mereceram as atenções e incómodos da Polícia Política do Estado Novo e a

ameaça de deportação para a Ilha do Pico, nos Açores.

Adeodato Barreto escreveu páginas que aprofundaram as características

multiculturais da cultura portuguesa. Adeodato Barreto também faz parte do património

cultural de Portugal.

Enquanto voz de dois mundos, a linha de pensamento de Adeodato Barreto pode

situar-se próxima da tradição dos intelectuais hindus do século XIX e do século XX, a

que Max-Jean Zins341 se refere, e que comungam ideais cristãos e hinduístas, comunhão

341 ZINS, Max-Jean - L´Intellectuel occidantalisé indien: de l’intellectuel syncrétique à l’intellectuel

organique. In TREBITSCH, Michel; GRANJON, Marie-Christine - Pour une histoire comparée des

intellectuels. Paris: Édition Complexe, 1998, p. 142.

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essa que vai estruturar as bases filosóficas das ideias nacionalistas que mais tarde levarão

à independência da Índia, em 1947, e à integração de Goa na União Indiana, em 1961.

Quando Gandhi, exemplo primordial da fusão dos sistemas cristão e hindu, elege

como arma política a não-violência, que se aproxima do conceito cristão “do dar a face”,

ao mesmo tempo que isso lhe vai permitir o respeito do Ocidente, consegue a

compreensão e aderência dos seus compatriotas ao recuperar o conceito hindu da ahimsa.

Adeodato Barreto é outro exemplo de uma tentativa de síntese euro-asiática

quando procura conciliar as doutrinas hindus da liberdade integral, autodomínio e unidade

com os métodos de análise do racionalismo europeu. Ambos, tanto Gandhi como

Adeodato, recusaram a dicotomia civilização ocidental/civilização oriental, no que foram

acompanhados por contemporâneos como Rabindranath Tagore e, no Ocidente, por

Romain Rolland e Keyeserling. É nesta linha de pensamento que Adeodato propõe a

hinduização da humanidade, uma praxis que, baseada na tolerância e na liberdade, pugna

pelo predomínio dos valores do espírito sobre a matéria.

Em última análise, Adeodato Barreto reage a duas cristalizações:

“ […] a do mundo oriental na Índia, que conservou intactas as suas tradições espirituais presa no

egocentrismo metafísico e apático da velha filosofia búdica e bramânica e a do mundo ocidental,

grego ou romano ou euro-americano, no apogeu do materialismo pragmatista […]”342

Para a história, fica o papel desempenhado por Adeodato Barreto ao colocar a

questão do nacionalismo indiano nas preocupações da sua geração e ao levantar a questão

numa Goa de matriz portuguesa e cristã.

À distância de pouco mais de meio século, constata-se a trajetória divergente do

Ocidente e do Oriente, em que as duas civilizações se mostraram incapazes de solucionar

os problemas do homem moderno

Pode-se criticar o idealismo e até a parcialidade de algumas das teses de Adeodato,

como a do pacifismo inato do povo indiano, como característica marcante do Hinduísmo.

O diplomata e escritor indiano Pavan K. Varma refere:

“Os indianos não são naturalmente pessoas não violentas. O mito da ahimsa ou não violência como

sendo parte intrínseca da personalidade indiana foi vendida por Mahatma Gandhi e

convenientemente comprado pela nação.”343

342 MIRANDA, Lúcio, Op. Cit. p. 56. 343 VARMA, Pavan K. - Índia no Século XX. Queluz de Baixo: Editorial Presença, 2006, pp. 192-193.

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A Índia pré-europeia não foi de certeza o paraíso na terra, os modernos

historiadores indianos não prescindem dos arquivos históricos e relacionam-se com o

Mahabharata pela sua importância cultural e não como a verdadeira história da Índia e

na descrição dos Imperadores indianos, que Adeodato Barreto eleva à categoria de Heróis

e Santos Indianos, o seu discurso resvala para um nacionalismo hindu que, tendo em

consideração as reações muçulmanas, tanta violência causou. Estes aspetos do discurso

de Adeodato Barreto são tremendistas e procuram ser uma resposta aos discursos

orientalistas das potências europeias, que rebaixavam as culturas dos países orientais no

sentido de melhor os dominar.

Muitas das afirmações que faz, hoje, seriam insustentáveis para um goês católico,

num mundo agitado pelas fações radicais das principais religiões344.

Hoje, as teses defendidas por Adeodato Barreto são discutíveis, podendo parecer

até essencialistas e maniqueístas. No entanto, a sua contextualização histórica permite

compreendê-las como reação ao discurso colonial europeu sobre o não-europeu, com

origem nas ideias do revivalismo hindu que já vinha do século XIX e que a diáspora

goesa, em Coimbra, onde pontificavam Adeodato Barreto, Telo de Mascarenhas e outros,

celebrava com entusiasmo. O discurso de Adeodato Barreto e o da sua geração foi o modo

possível de iniciar o discurso anticolonialista e balizar o pós-colonialismo. Contudo, é de

realçar que durante a vida de Adeodato Barreto as ideias anticolonialistas eram muito

mais reformistas do que abolicionistas.

Falar de Adeodato Barreto é falar de Goa e de Portugal. Falar de Adeodato

Barreto, hoje, é, também, falar das relações de Portugal com a Índia, pois é neste contexto

que o estado da arte da Literatura Indo-portuguesa e o seu futuro deverá ser equacionada.

O estudo da Literatura Indo-portuguesa começa «[…] a chamar a atenção dos

comparatistas, lusitanistas e indianistas em Portugal, na Índia, na França, nos E.U.A. e no

Reino Unido» num momento «[…] em que ela começa a desaparecer devido, sobretudo,

à situação bastante crítica nos dias actuais da língua portuguesa em Goa.»345 Este facto

344ALMEIDA, Albertina et al. - Common sense and Hindu nationalism – Why the Catholics in Goa are not

Hindu: Albertina Almeida & Others. 2013. Acedido em Março de 2014 disponível em

http://kafila.org/2013/09/16/common-sense-and-hindu-nationalism-why-the-catholics-in-goa-are-not-

hindu-albertina-almeida-others/

345 MACHADO, Everton V., 2010, Op. Cit. p. 26

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deveria justificar um redobrado interesse de intelectuais portugueses e goeses/indianos.

Existe um património literário importante constituído por um corpus de obras que se

repartem pela poesia, conto, romance, crítica, teatro, historiografia, religião, mas que não

sobreviveu ao processo de descolonização, ao contrário de outras literaturas na língua do

colonizador praticadas noutros contextos coloniais, como é o caso dos países africanos de

língua oficial portuguesa, além de Timor e Brasil.

José Miguel Ribeiro Lume advoga:

“A Herança cultural portuguesa em Goa, passados trinta e oito anos da sua integração na Índia,

mantém-se nos monumentos, nas edificações urbanas e rurais de que são testemunho as conhecidas

e bem características casas indo-portuguesas, na prática religiosa, nos festivais populares e nos

rituais e costumes sociais ou familiares de vária ordem. Mas a cultura literária indo-portuguesa

permanecerá passadista e remetida às prateleiras do esquecimento se não se intensificar a divulgação

em Goa da literatura portuguesa actual, das literaturas em língua portuguesa, se não se divulgar e

promover a língua portuguesa como meio de comunicação e de vivência cultural.”346

O estudo, divulgação e futuro da literatura indo-portuguesa dependerá,

evidentemente, das coordenadas a serem definidas por uma política de difusão da língua

portuguesa, cuja eficácia muito dependerá da qualidade das relações diplomáticas entre

Portugal e a Índia

Constantino Xavier, investigador do Instituto Português de Relações

Internacionais (IPRI), em declarações ao Semanário Expresso, de 17 de Maio de 2014,

refere que a imagem de Portugal nem sempre é boa, por razões históricas, e que não há

grande investimento na língua portuguesa. «Em vez disso, gastamos os nossos últimos

cêntimos numa política cultural novecentista focada em Gama e Camões que já não

interessa nem aos historiadores indianos».347

O Jornal de Negócios de 9 de Maio de 2014 publicava uma entrevista ao

Embaixador da Índia em Portugal, em que este, começando por lamentar que os laços

económicos entre os dois países fossem tão fracos, o volume de negócios em 2012-2013

tinha sido inferior a mil milhões de dólares, valorizava a comunidade de origem indiana

em Portugal como uma ponte importante entre os dois países « […] constituída por cerca

de setenta mil pessoas vindas de Goa em duas vagas, antes e após 1961, e outras vinda de

346 LUME, José Miguel Ribeiro - A Cultura Literária em Goa como Referência da Herança Cultural

Portuguesa na Índia. Acedido em Março de 2014 disponível em

http://www.geocities.ws/ail_br/aculturaliterariaemgoa.htm. 347 Semanário Expresso (Lisboa) de 17/5/2014.

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Angola e principalmente de Moçambique.»348 Nos anos mais recentes, observa-se uma

migração vinda de outras regiões da Índia. «Não os vemos apenas como indianos. Eles

são portugueses […] estão bem integrados na sociedade portuguesa e tenho de

cumprimentar o vosso sistema político que é tão inclusivo e nestes tempos difíceis estas

pessoas não abandonaram Portugal.»349 Reforçando a ideia de existe um capital humano

que não pode ser ignorado e que deve ser valorizado, concluía referindo que «os dois

países […] a Índia e Portugal já estiveram mais perto. E já estiveram mais longe. Mas as

suas ligações históricas são tão vastas […]»350

Uma história com quinhentos anos de contacto justificaria, provavelmente, um

patamar de relacionamento mais elevado.

Património, capital humano e uma língua com potencialidades existem à partida.

348 Idem. 349 Idem. 350 Jornal de Negócios (Lisboa) de 9/5/2014.

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BIBLIOGRAFIA

Espólio da Biblioteca da Câmara Municipal de Aljustrel

- Fotocópia da carta de Sylvain Lévi, de Tóquio, para Adeodato Barreto, de 6/5/1928

- Fotocópia de carta de Rabindranath Tagore, de Santiniketan, para Adeodato Barreto,

sem data

- Fotocópia da notícia morte de Adeodato Barreto no jornal República de 6/8/1937

- Fotocópia da notícia da morte de Adeodato Barreto em esperanto de Outubro de 1937

- “Apontamento de Homenagem” a Adeodato Barreto publicado no jornal Filhos de

Aljustrel de 29/3/1974

Espólio à guarda de Sandra Lobo

- Fotocópia de artigo do jornal Heraldo de Goa sobre a morte de Adeodato Barreto de

4/8/38

- Fotocópia de artigo da Seara Nova, sobre o cinquentenário da morte de Adeodato

Barreto

- Fotocópia de artigos sobre Adeodato Barreto por Piteira Santos, Orlando da Costa, Elsa

R. Santos e de seu filho Kalidás Barreto

- Fotocópia dos textos das conferências de José Teles, em 1941, e de Rita Vaz, em 1939,

sobre Adeodato Barreto

- Catálogo de exposição sobre Adeodato Barreto (com fotocópias, documentos pessoais,

manuscritos, diários de viagem, descrição de objetos pessoais, etc.)

- Fotocópias da correspondência entre Romain Rolland e Gandhi

- Fotocópias de artigos de Adeodato Barreto publicados em vários jornais

- Inventário da bibliografia completa de Adeodato Barreto

- Fotocópia do poema A Jesus de Nazareth de Adeodato Barreto

- Manuscritos de diários de viagens de Adeodato Barreto

Fontes: Publicações periódicas, jornais, revistas e catálogos

Correio da Manhã, (Lisboa),14/1/2014

Correio da Manhã (Lisboa),16/2/2014

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Diário de Notícias (Lisboa),16/4/2014

Expresso (Lisboa), 17/5/2014

Jornal Açores 9, de 22/5/2014

Jornal de Negócios (Lisboa), 9/5/2014

Público (Lisboa), 27/5/2014

Oceanos (Lisboa), nºs 19/20, Setembro/Dezembro de 1994, CNDP

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ANEXOS

ANEXO I – “Árvores do Alentejo” de Florbela Espanca

Árvores do Alentejo

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Ao Prof Guido Battelli

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte

A planície é um brasido... e, torturadas,

As árvores sangrentas, revoltadas,

Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte

A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,

Esfíngicas, recortam desgrenhadas

Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,

Almas iguais à minha, almas que imploram

Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

- Também ando a gritar, morta de sede,

Pedindo a Deus a minha gota de água!

Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"

ANEXO II – Carta de Rabindranath Tagore, sem data, para Adeodato Barreto

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102

ANEXO III – Carta de Sylvain Lévi de 6 Maio 1928 para Adeodato Barreto

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103

ANEXO IV – Fotografia de Adeodato Barreto

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104

ANEXO V – Homenagem póstuma publicada no jornal “Filhos de Aljustrel”

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105

ANEXO VI – Notícia da morte de A. Barreto no Jornal República

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106

ANEXO VII – Notícia da morte de Adeodato em Esperanto

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107

ANEXO VIII – “O génesis da mulher”

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ANEXO IX – Poema “A Casta” de Sarvajna

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“A Casta”

(Sarvajna)

(por Sarvajna, nome poético de

Pushpadatta, poeta, canarês,

autor do Sarvajna-Pagadalu, versos

populares em metro tripadi; século XVII)

Quando o sol entra na choupana escura

E vai beijar na esteira o pobre pária,

Fica a sua luz, acaso, menos pura?

Ó! Não faleis em casta “ordinária”,

Ou “baixa” ou “alta ou “plebeia” ou “nobre:

Só é alto no mudno quem Deus cobre

Com a sua graça;

Só é grande quem é filho de Deus!

Quando a desgraça

Nos bate à porta, a “nobres” e a “plebeus”,

Todos tragamos igualmente a taça

Da Amargura;

Quando a Ventura

Alegre e prazenteira nos acolhe,

Entre pobres e ricos não escolhe;

Quando na ígnea pira mortuária

O fogo nos consome,

Não arde mais o coração do pária!

A mesma fonte nos sacia a sede,

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110

A mesma várzea nos fecunda o pão

Que mata a fome:

Dizei-me então,

Vós que no varnashrama351 acreditais,

Se Deus nos fez nascer assim iguais,

Como é que ainda há castas em seu nome?

351 Varmashrama-Dharma – sistema das castas.

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111

ANEXO X – Poema “Apoteose”

Apoteose

A Terra!

A nossa Terra!

Jardim florido,

Estendido

Do mar à Serra…

Jardim plantado por Brahma

Com a própria mão,

Jardim que, às vezes, parece

A meia lua crescente

Que um dardo de Parasurama

Ferisse impiedosamente

E, despenhando, viesse

Engastar-se no Concão…

Jardim…

Fecundo palmar

Que os sândalos do Gate

E o cheiro quente do bate

Nas morodas buliçosas,

Vão perfumar;

Que os regueiros de águas mansas

E rumorosas

Vêm regar;

E onde as flores mais viçosas

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112

São boquitas de crianças

A galrejar…

Jardim tão pequenino

E delicado

- fruto divino

Gerado

Da monção –

Que, por todo o mundo infindo

(já o percorri por meu mal),

Eu nunca vi outro igual:

É lindo, muito mais lindo

Do que o lindo Portugal!

Jardim alegre e, às vezes

Campo santo,

Onde as torrentes de pranto

Tornam em lindos canteiros

Os covais;

Ou as quentes

Cinzas das piras ardentes,

Dispersas p’los vendavais,

Vão nos vales, nos outeiros,

Dar flores aos espinheiros

E adubar os arecais…

(Que invejável destino

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113

Para os corpos dos nossos Pais,

Renascer, volver, não só

Nos corpos tenros dos filhos,

Mas até no extenso prado,

‘té no verde taiquiró

Que o gado

Esfomeado

Tasquinha à beira dos trilhos!)

Ah! Nesse jardim bendito

- torrãozinho

Aconchegado

E regadinho

A primor –

Hei-de escolher uma flor

Para depois a fecundar;

E o fruto que germinar

Hei-de o apartar

Para semente:

Numa noite de luar,

Secretamente,

No canteiro mais viçoso,

Entre zaiôs e champins

Perpétuas e mogarins

(turíbulos a incensar…)

Eu a irei semear…

E, então,

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114

Anjos e apsarás do céu

Virão cantar e regar.

E a semente há-de grelar

E a planta há-de crescer,

E crescerá tanto, tanto,

Que não poderá caber

Na área do campo santo:

E irá subindo, subindo,

Mais alto do que o Sidnate,

Que o Chandernate,

Que o Gate,

Sempre subindo…

E, quando o sol resplendente,

No Oriente,

Romper os montes fronteiros,

Entre fumos chamejantes,

Como um obus:

Os seus cimos triunfantes

Tornar-se-ão os primeiros

Mensageiros

Da sua luz!

E o oiro da luz se espalha

É limalha

A chuviscar – chuva d’oiro –

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115

Retém-na o verde dos frutos

E faz-se mais e mais loiro:

E acorrem aves em bando,

E comem mordiscando,

Debicando,

Pica, pica,

No oiro em pó,

Vão-se os frutos descarnando,

Mas, das sementes que caiem,

Não morrerá uma só!...

Pois a grande árvore amiga

- a árvore que hei-de plantar –

A toda a nuvem esquiva

Que o vento trouxer do Mar,

Irá bradar:

- Não prossigas!

Integra em firme estrutura

Tuas formas vaporosas!

Estaca em teu caminhar!

Lá em baixo a terra é dura

E há mil bocas sequiosas

Por saciar!

E a nuvem feita chuvinha

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116

Irá das folhas aos ramos,

Irá dos ramos ao chão,

Pingo a pingo, miudinha,

- a chuva da Redenção! –

Do chão passará às fontes,

Da fonte à erva dos prados,

Da erva às bocas dos gados,

No gados far-se-á em leite

- deleite

P’ra a criancinha,

Riqueza para os pastores! –

E as fontes darão ribeiros

E, neles, os pescadores,

Terão já mais que pescar;

E os ribeiros darão rios,

E, do rio, os marinheiros

Poderão, empreendedores,

Lançar-se, agora, aos azares

Das ondas do vasto Mar!...

E aumentarão os navios:

- patmarins de brancas velas

Vogando à luz das estrelas

Sobre as ondas de turquesa –

E as sete estradas marinhas

Cruzarão nas nossas praias,

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117

Deixando-as cheias de alfaias,

Das gemas mais preciosas,

De perfumes, de riqueza…

E a nossa Terra florida,

Rescendente a mogarins,

Se é jardim de princesa,

Será, então, com certeza,

A princesa

Dos jardins…

Ah! Como será bendita

Na sua bondade infinita

A Árvore que hei-de plantar!

Mas se um dia a chuva

Não bastar,

Nem por isso a Árvore

Há-de murchar:

Em noite tranquila

De luar,

Hei-de ir à sua sombra

Descansar:

Seus letais eflúvios

Ao verter,

Irão à minha alma

Recolher.

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118

E vós, que passardes,

De alvorada,

Erguei a carcaça

Inanimada;

Minha intenção bondosa

Compreendei,

Meu sacrifício obscuro

Respeitai;

Ide dizer aos sinos

Tangei, tangei!

Também pedi às vinas:

Tocai, tocai!

Depois lançai meu corpo

À pira ardente,

Ou entregai-o à Terra,

Simplesmente…

Mas, quer em cinzas feito

Ou podridão

Quer voltar ao húmus,

Volver ao chão:

Vão meus restos a Terra

Alimentar,

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119

Junto à grande Árvore amiga

Que hei-de plantar.

Deve saber tão bem – Não? –

Voltar à vida

Na seiva fresca de árvore

Reflorida!

*

Essa Árvore, ó Terra amada,

Não é sonho, não é apenas miragem

Fugitiva:

É a viva

Perspectiva

Do teu futuro risonho!

(Na indecisão duma imagem

De poesia, quantas vezes a Verdade

Se anuncia!

Mas apenas a desfruta

Quem sabe

Reconhecer

Os seus fulgores dispersos)

Terra de Saudade!

Terra de Beleza!

Escuta!

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120

São luz e cor os meus versos

Simplesmente;

Mas goza,

Mas procura compreender

O que há neles de profundo…

E se és, actualmente,

No oriente,

Uma princesa

Desditosa:

Serás então, com certeza,

Uma Rainha, no mundo!

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121

ANEXO XI – Poema “Chandrîm” de Vimala Devi

“Chamdrîm”

(Vimala Devi)

Vem, Chamdrîm feiticeiro, com a tua luz concreta,

Transformar as casas de churtas352 em casas de prata,

E deixar que os farazes353 penetram oiteiros

Em busca de bambus com que tecer sobrevivência!

O Mandovi e o Zuari354, fios de lágrimas salgadas,

Abrigam deuses tisnados e humildes,

Que nas noites escuras regressam tristes

Com alforrecas nas redes e com as tonas vazias.

Vem, Chamdrîm, rei do firmamento nocturno,

Perolizar, com as tuas tintas mágicas,

Os troncos nus de curumbins355 crestados pelo sol

- Velas derretendo no perene meio-dia!

Vem rasgar o mistério das aldeias moribundas

Onde serpentes venenosas mordem a noite.

A morte espia os camponeses, no regresso das várzeas,

Banhados em suor de terra – com olhos nos pés!

Vem, Chandrîm, alumiar poços e regatos,

Onde mainatos356, vergados, lutam com a imundície.

352 Folhas de palmeira. 353 Servidores de casta baixa. 354 Rios de Goa. 355 Agricultores (casta baixa). 356 Lavandeiros (casta baixa).

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122

Sem ti, o sol tropical ardia crânios…

Por isso, Chandrîm, és o Deus dos pobres!357

357 Vimala Devi, Súria, Lisboa, Agência-geral do Ultramar, 1962, pp. 11-12.

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123

ANEXO XII – Poema de A. Barreto “As Azinheiras”

AS AZINHEIRAS

São como eu aquelas azinheiras

do montado...

Como o verão alegre põe doçuras

e sorrisos no côncavo estrelado,

aprestam, em sorrisos, seu toucado

e vão erguendo ao céu os galhos novos.

Mas sob o verde-claro dos renovos

o negro da tristeza

se lhes adensa, em rama, tristemente

nos abrigos;

e quem as vê por dentro já pressente

o inverno que ameaça a Natureza:

-igual ao que se adensa na minha alma,

igual ao que não vêem meus amigos...

Aljustrel, 28 de Agosto de 1935.

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124

ANEXO XIII – Poema de A. Barreto “Fala Ishvara”

Fala Ishvara

Porque me buscas longe, nos espaços,

Filho meu

Se eu vivo ao alcance dos teus braços?!

Não me sentes na ervinha desprezada

Que descuidoso, pisas?

No gineceu

Onde o perfume oculta, envergonhada,

A delicada flor,

Não me divisas?

Não te falam de mim as pombas mansas?

Não te dizem meu nome a fraga escura?

E a espuma que a beija, à beira-mar?

Não me ouves nas vozes das crianças

A brincar?

Ó não busques o rastro dos meus passos

No chão dum santuário!

Pode a pálida luz duma candeia

Que arde, a crepitar, num lampadário

Simbolizar o Fogo que os espaços

Incendeia?

Acaso o oiro frio dum sacrário

Pode dar-nos calor,

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125

Conter a vida?

A Vida!

Sou a Verdade e o Amor!

Eu rebrilho na lágrima sentida

Que nos olhos da viúva surge e rola

Para o chão!

Eu sorrio no pão

Que dás de esmola,

Eu verdejo no musgo que a fraga

Amacia;

Vivo na mão que afaga

E no ventre que cria…

É minha a luz

Que os rostos alumia

Aos que morrem na Cruz!

É minha a energia

Que a garganta anima ao moribundo

Que tombou sob a bala policial,

E a fez bradar ainda:

Viva o Ideal!

Sou valor em quem luta a luta nobre,

Sou o sonho da luz que sonha o pobre,

Sou a dor de quem sofre a dor alheia!

Em tudo o que há de são sou a saúde,

Em tudo o que há bom sou a bondade,

Sou a essência e tudo o que o céu cobre,

Chama para a candeia,

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126

Ária para o alaúde,

Suspiro para a saudade!

Porque me buscas longe nos espaços

Filho meu?

Eu vivo ao alcance dos teus braços!

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127

ANEXO XIV – Poema de A. Barreto “Jesus de Nazareth”

Jesus de Nazareth

Há dois mil anos – dizem – tu falaste,

Erguendo,

Entre as colinas do Jordão umbroso,

Débeis, doces sermões.

Mas o Universo – parece –

Nem deu sequer pelo eco da tua voz…

Há dois mil anos já – dizem – que falas

Pela boca dos papas e dos cardeais,

Pelos órgãos potentes

Das grandes catedrais-

Pelas pompas das procissões,

Pelos ais dos flagelados,

Pela cúpula orgulhosa

Do Vaticano olímpico e festivo…

Mas o Universo parece –se está vivo,

Vive surdo e insensível como outrora…

Se acaso existes Cristo, ergue-te e surge agora!

Sobre a Terra, a Terra, que teu sangue inocente

Pretendeu redimir salvando-a do egoísmo,

Os abutres cairão, aos bandos, vorazmente,

E o ódio desaba, qual cordilheira, em abismo!...

Contra os vendilhões que expulsaste, e hoje vendem a Espanha,

Contra os fariseus que humilhaste, e hoje mentem à Espanha,

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Contra as legionários que te flagelaram, hoje flagelam a Espanha,

Contra os poderes que crucificaram, e hoje crucificam o povo de Espanha!

Quebra as tuas grilhetas divinas!

Irrompe dos sacrários!

Rasga o véu dos Templos!

Vem!...

Visita a barricada

Volve os teus passos firmes à trincheira sangrenta;

Mete as mãos, como Tomé, nas chagas gotejantes;

Ausculta os Ideais

Perscruta os corações!...

Aí é que palparás a poeira perdida e milenária

Dos teus sermões;

Aí é que tocarás as gotas do teu sangue da mártir;

Do sangue que verteste no Calvário;

Aí,

Nos irmãos carpinteiros,

Nos irmãos calceteiros,

Nos irmãos motoristas e pedreiros;

Aí,

Na dedicação dos velhos,

No sacrifício das mães,

No heroísmo dos jovens;

Aí,

No sangue que empata a terra;

No anseio duma vida livre,

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No anseio duma Espanha nobre,

No anseio duma Espanha nova!...

Deixarás tu, ó Cristo, que nessa terra santa,

Adubada pelos mártires,

Fecundada de esperanças,

Cresça

Em, em teu nome, o Ódio e a Prepotência?...

Ah, não consintas, Cristo!...

Não deixes que a imagem

Do humilde, que morreu pelos humildes,

Flamule em pendões vitoriosos

Dos poderosos,

Dos fariseus hipócritas,

Da soldadesca, ignóbil e devassa!...

Não consintas, ó Cristo,

Que os vendilhões, à sombra dos teus templos,

Açoutem armas de morte: destes templos

Não fique,

Por anátema teu, ó Cristo justo

Nem pedra sobre pedra!

Não consintas jamais, ó Cristo mártir,

Que o Ódio e a Tirania

Vençam o Amor, o Bem e a Verdade

- ideais, nossos ideais,

Ideais pelos quais deste a vida um dia!

Mas se, por fim,

Te sentires, no íntimo, impotente

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Para salvar a Espanha como Deus:

Pega na carabina

Desce à trincheira ardente,

Como outrora subiste para o Calvário

- e morre, heroicamente,

Às mãos dum legionário!

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ANEXO XV – Poema de A. Barreto “Natal Cristão”

Natal Cristão

Natal do meu país. Cantam fuguéus!

Natal do mandarés e de filhoses!

Nos tachos da lareira cantam vozes!

Acompanhando as cores lá do céu!

Natal bendito! Tocam sinos graves…

No seio dos palmares, nas mangueiras,

Há gargalhadas rápidas, ligeiras,

Subindo ao Céu no gorjear das aves!

Natal do meu país! Natal divino!

Fulgem nas trevas as línguas dos archotes;

Mancham a treva dos vultos que aos magotes,

Vão ver o Deus menino…

Natal do meu país! Natal do Amor!

Nas palhas do curral, na grande Igreja,

Jesus contempla a vaca, que o bafeja,

Mamando alegre, o dedo indicador…

No coro soam vozes; voam hinos,

Com turbilhões de incenso, pelos ares;

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Flamejam círios brancos nos altares!

Estouram foguetões! Repicam sinos!

E o órgão soa lânguido e profundo

As notas pairam graves, harmoniosas,

Na nave abobadada ;

Parecem vozes d’almas vaporosas

Voltando ao Mundo

A mitigar saudade da consoada…

Saudades da consoada, dos fuguéus

Da mesa e da toalha cor de leite,

Da noite mais formosa entre as mais belas,

Em que pelas cozinhas, nas panelas,

Cantam gordos oddés cheirando a azeite!

Saudade desse tempo em que sentados

À volta do fogão, todos em coro,

Cantando, rindo, quando atarefados,

Jaziam mandarés em pratos d’ouro.

Saudades das imagens seculares,

Do oratório onde ardem brancos círios,

Do nédio Santo António com o Bambino

Mostrando a calva entre boquete de lírios!

Saudades do presépio construído

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Com hastes de bambú, onde descansa

Um Menino Jesus de celulóide

Entre burricos lindos de faiança…

Saudades do Natal da minha aldeia

Bem as sinto também como essas almas

Que das regiões do Azul, etéreas, calmas

Voltam aos lares a compartir da ceia.

Natal da minha terra, perfumado,

Cheio de encanto místico e profundo!

Oh! Quem me dera as asas vaporosas

Com que voam as almas d’outro mundo!

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ANEXO XVI – Poema de A. Barreto “Redenção”

Redenção

Goa bela!

Olha os Gates (1) em chama!

Olha a crista revolta

que se inflama!

Andam tigres à solta

nos bosques de Bengala!

É a Índia que te fala!

É a Índia que te chama!

Olha os Gates floridos, Goa bela!

Seus píncaros parecem mil canteiros

de corolas subtis, multicolores;

nos seus desfiladeiros,

a Água se transforma em mar de leite

e o leite em mar de Flores!

Eis a Manhã de Glória, que desponta

num clarão!

Goa! Olha os Gates floridos!

Olha os reflexos da Aurora

da tua redenção!

Vês como, além, o areal palpita

e as arequeiras

suas copas virentes entrelaçam

ao seu calor?

No jangál (1) já vê o wág (1) se não agita,

e, alacres, despertam capoeiras,

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e mil casais se enlaçam

com amor...

É o fulgor

da tua manhã de Glória que os excita!

Ó Goa bela, ouve os Gates cantando:

nos seus milhares

de ôllos (1) seculares

— imensas catedrais abobadadas —

acordam as ninhadas!

A brisa do Decão traz-nos, dos ninhos,

suas canções:

parecem luz a entrar aos bocadinhos

nos corações!

Olha os Gates, ó Goa, Goa bela!

Vê como as verdes olas se espanejam

nos seus palmares;

e os bule-bules gárrulos festejam

a hora do resgate!

O coco, escrínio de oiro,

tingiu-se de mais loiro,

e nas searas das morodas (1)

se aloira mais o bate!(1)

Goa bela!

Eis o pólen da Vida

que Súria (1) vem verter nos teus jardins!

Abre à Vida o teu peito:

o seu beijo fecundo redimida,

a Natureza juncará teu leito

de mogarins (1) !...

O Mar, teu bardo antigo,

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teu velho amante,

estorce-se em tuas praias suplicante,

esmolando carícias:

(blandícias

de traição...)

Mas não lhe volvas teu olhar amigo,

ó Goa bela!

O mar é um inimigo:

se te traz a monção,

também te traz procela

e já te trouxe a santa

Inquisição...

O Mar, teu velho amante?

Tola a paixão qu´inda por ele nutres!

pelos trilhos

do seu dorso gigante,

pombas de brancas asas,

(por dentro abutres

de goela hiante...)

vieram sobre ti banquetear-se

e te servirem fogo em vez de luz:

e mancharem teus lares

e queimarem teus filhos,

teus livros, teus tesouros, teus altares

frias, pálidas mãos alçando a Cruz!

E com os filhos queimados,

com os livros perecidos,

os altares destruídos

e os templos profanados,

os teus Deuses te deixaram,

os teus sábios morreram

as virtudes debandaram

e... os abolins feneceram...

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Hoje na tua vida

tudo é monotonia:

sem ciência nem cultura, sem génios nem poetas

vegetas...

Pobre mina exaurida!

No ritmo da ataxia

a seiva produtiva

estancou em tuas veias...

E crês-te progressiva!

E pensas iludir essa melancolia

caiando de alvaiade as faces bronzeadas,

a fingir de .... europeias!

Mas ficam furta-cores...

Águias ousadas

e inquietas,

condores

ansiosos de vida e de espaços,

teus filhos,

buscando novos trilhos

abandonam-te em triste debandada.

Uns encontram a Glória, outros a Morte:

eles, águias inquietas

na sua sede de vida e de espaços!

Mas tu, indiferente à sua sorte,

comes do ganho dos seus braços

e encostas-te às muletas

como uma velha trôpega e cansada!

Eis a lição,

«a exploração»,

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que te legou a Europa, tua senhora:

ela explorou-te outrora,

tu exploras agora

os filhos do teu próprio coração!

Pobre Goa, tão pobre! Em que ignóbil carcaça

pôs a tua alma d´ouro, a hora da desgraça!

Teu cérebro esgotado

dormiu na inconsciência!

E, esquecido o passado,

interrupta a História,

bate em vão a alheias portas em busca da Ciência!

Vai em balde a estranhas terras à procura da Glória!

Ó Goa bela! Acorda!

Esquece-te e recorda!

Esquece os longos anos de desdita,

de miséria infinita,

de revolta, de luto, de opressão!

Esquece a Inquisição,

e o Jesuíta

que te torceu a alma,

que te deixou por arma

a hipocrisia,

e cavou mil abismos penetrantes

(fé, costumes, língua, tradição...)

entre

os filhos do teu ventre.

Esquece-te das noites horrorosas

e trágicas, de incêndios crepitantes

em que, templo após templo,

campo após campo,

se consumia

o melhor das riquezas portentosas

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que no teu seio havia.

Ó Goa bela, acorda!

Esquece-te e recorda!

Recorda a tua História!

Folheia o Livro de Ouro do Passado!

Volve às eras de glória

em que eras grande, em que eras moça e sábia,

em que os homens do Pérsico e do Tigre

te vinham ofertar corcéis da Arábia

e tu lhes davas sândalo e gengibre;

em que os teus cinco rios,

cantados

pelas Puranas santas

lavavam os pecados

e eram visitados:

rios cuja água, bebida,

era uma fonte de amor, doçura e vida!

Esses tempos passaram,

estas glórias morreram,

essas árvores d´ouro feneceram,

e as águas sagradas,

abandonadas,

se profanaram...

Jamais um batelão

de quilha donairosa

flutuou triunfante à tona do Zuari (1);

e a flor da tradição

tremeu e, pressurosa

fugiu de ao pé de ti...

Outros povos, porém, outros ares mais puros

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e reinos mais seguros

guardaram com unção

o seu botão.

Hoje, desabrochada, as pétalas estrela

e estende para ti:

E sobre o gineceu — exulta ó Goa bela! —

surge, de novo, ovante, a Deusa Lakximi (1)!

E agora

olha a manhã de glória que desponta

num clarão:

É ela

— Ó Goa bela!

São os Gates floridos!

São os reflexos da Aurora

da tua redenção!

(1) Glossário de termos de origem indiana:

Gates - do concanim «Ghant» ou cordilheira que separa a zona litoral de Goa do

planalto de Decão.

Jangál - floresta

wág - tigre

ôllos - rimas populares

morodos - terrenos cultivados nas encostas das colinas

bate - arroz antes de ser descascado.

Súria - Sol

mogarins - flores brancas e cheirosas, muito procuradas pelas senhoras indianas para

adorno da cabeça e para grinaldas.

abolins - flores encarnadas, sem notável cheiro, e muito utilizadas em Goa nos serviços

religiosos, e para fabricar grinaldas.

Zuari - o maior rio ao sul de Goa.

Lakximi - deusa consorte de Vishnu, e fonte de beleza e de fortuna.

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ANEXO XVII – Poema de A. Barreto “Sivaji”

Sob a pressão do Islam, vê a Índia tristemente

Nos seus templos erguer-se a curva do Crescente.

O Ídolo sagrado: a Deusa Bhavaní

Caiu do pedestal. Não canta o moruoní

Nos verdes mangueirais,

E, nos tanques em flor das abluções rituais,

Tenros lótus a abrir – reflexos das estrelas –

Murcham de não beijarem os corpos das donzelas.

Esmaga a Índia toda

Uma ânsia que confrange,

Uma ânsia indefinida

- ânsia de uma outra vida –;

E vê-se, em cada canto, a espreitar, um alfange,

E, em cada porta, um “fez”:

Como se o Tamerlão,

Descendo ao Indostão,

Viesse devastar o mundo uma outra vez…

Mas rompe um dia a Aurora! Uma espada de Luz,

Alva como as manhã e as vestes dos gurus,

Ilumina o Concão?

Desde o Himalaia, ao norte, até ao Comori

Exulta ao povo hindu! Já canta o moruoní!

Sivá Chatrapati salvou o Indostão!

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E os rútilos faróis,

A luz que alumiara os fados dos mogóis

Não mais fugiu depois. Ante o Leão Marata

Minguou cobardemente o crescente de prata,

E nunca mais deu luz:

E o mundo conheceu que a Terra do Bharata

É e será para sempre a Terra dos Hindus!

Veio depois, sombrio, o ocaso: Panic pat.

As asas da Vitória

Bateram, ergueram voo, e a estrela marata

Apagou-se de vez no fulvo céu da História…

Densos e negros céus desceram sobre a pátria:

O Brâmane poluiu-se, efeminou-se o Kxátria

Nos mangueirais em flor calou-se o moruoní…

E viu-se em cada canto, a espreitar, não o “fez”

Mas o “helmet” inglês…

Hoje há em toda a parte uma ânsia indefinida

- a ânsia de uma outra vida –

Ó Deusa Bhavaní!

Para guardar teus templos, para salvar teu povo

Porque não dás de novo

À Índia, um Sivají?

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ANEXO XVIII – Shiva Nataraja

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ANEXO XIX – Poema “Ventania”

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ANEXO XX – Poema “Amanhecer”

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ANEXO XXI – Poema “Tragédia dos que partem”

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ANEXO XXII – Poema “O princípio”

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ANEXO XXIII – Poema “O fim”

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ANEXO XXIV – Poema “O avião”

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ANEXO XXV – Poema “Cântico a Súria”

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ANEXO XXVI – Poema “Canção de Bhaul”

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ANEXO XXVII – Poema “O ocaso do século”

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ANEXO XXIII – Poema “Bekaryanc”