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Curandeirismo no século XIX: crime, medicina e religião
André Geraldo de Sá
Luís Carlos da Silveira
São João Del Rei, 2013
André Geraldo de Sá
Luís Carlos da Silveira
Curandeirismo no século XIX: crime, medicina e religião
Trabalho apresentado ao Professor Marcos
Ferreira de Andrade da disciplina Historia
e Fontes Cartoriais e Eclesiásticas:
Métodos e Abordagens, 3º Período do
curso de História.
UFSJ
São João Del Rei, 2013
1
Curandeirismo no século XIX: crime, medicina e religião
André Geraldo de Sá
Luís Carlos da Silveira
RESUMO
A medicina do século XIX teve seus desafios para consolidar seu prestígio na sociedade
brasileira, onde concorria com curandeiros, homeopatas etc. Houve um grande discurso por
parte dos magistrados reprimindo as práticas de curadores que não possuíssem diploma,
levando estes até a justiça onde geralmente eram condenados. Esses crimes envolvendo
curandeirismo e feitiçaria nos mostra como funcionava essa repressão, o que não possibilitou
a extinção dessas práticas. Neste presente artigo procuramos avaliar o caso de um crime de
espancamento envolvendo feitiçaria, fazendo um diálogo com a atual historiografia.
INTRODUÇÃO
Ao tentarmos explorar esse rico universo que foi Minas Gerais no século XIX
encontramos um plano onde fé, misticismo, escravidão e ciência se enfrentam e às vezes se
misturam. Vários autores já se debruçaram sobre tal tema e vamos utilizar principalmente
aqueles que retratam com muita clareza e domínio o que foi esse século grandioso.
Uma das obras que utilizamos como fonte foi o capitulo 5 do livro Religiosidade e
escravidão no século XIX: mestre Tito, da autora Regina Célia Lima Xavier onde ela retrata
uma região um pouco distante da nossa que é Campinas, mas que tem fortes semelhanças com
a realidade mineira em um período próximo ao contexto. Uma das grandes figuras que se
apresenta na obra da autora é Mestre Tito. Personagem que conviveu com todas essas
circunstancias de combate e alianças entre medicina, curandeirismo e religiosidade. É um
senhor respeitado tanto na arte de curar a população quanto em situações em que era indicado
para atuar no lugar dos médicos. Nossa tentativa em fazer ligações entre especificamente um
simples estudo de caso nos fez perceber como foi complexo o estabelecimento da medicina
como pratica confiável entre a população.
Graduando em História pela Universidade Federal de São João Del Rei Graduando em História pela Universidade Federal de São João Del Rei
2
Outro autor acrescentou muito no desenvolvimento de nosso estudo foi Marcelo
Rodrigues Dias em seu artigo Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais na segunda
metade do oitocentos onde ele desenvolve diálogos com fontes diversas como jornais da
época e principalmente processos criminais. Relatos curiosos envolvendo nascimentos de
chifres, cura de pessoas picadas por víboras são os assuntos que a medicina se esforça
imensamente para dar algum sentido lógico a população, mas acaba não encontrando bases
ainda solidas para se apoiar. Em um segundo momento nosso autor vai se aprofundar e
analisar os processos criminais onde os curandeiros e suas práticas vão sofrer uma forte
repressão. De fato não podemos atribuir essa perseguição a simples curandeirismo apesar da
medicina condenar tais práticas, mas sim o que esse quadro chega a acarretar. Charlatanismo,
extorsão, violência e até praticas messiânicas se envolvem nesse universo de magia dos
curandeiros.
O caso que apresentaremos está envolvido em toda essa complexa esfera, onde uma
filha que se encontra doente recebe o tratamento de uma medicina que não é eficaz, não
trazendo solução. O curandeiro se apresenta a casa de Manoel Fernandes Lima prometendo
lhe trazer o alivio para essa tão terrível dor. Após um seqüestro as ditas “feiticeiras” passam
por tortura imposta por João “Curador” que chega a limites extremos em um quadro que
apresenta algo que envolve muito mais que um processo mítico, mas sim um ar de vingança e
tantas outras coisas que estavam por traz dessas boas intenções desse curandeiro. É uma
situação muito complexa onde tentaremos chegar a melhores conclusões com o
desenvolvimento desse trabalho.
1. UM BÁRBARO CRIME ENVOLVENDO FEITIÇARIA
Aconteceu no mês de março, ano de 1896, no distrito de São Francisco de Paula,
pertencente à Comarca de Oliveira, um crime relacionado ao curandeirismo. A filha de
Manoel Fernandes Lima se encontrava a muito tempo doente e sem apresentar melhora
através de tratamentos medicinais da época, uma vez que havia sido ela prescrita de
medicamentos pelos diversos médicos que a examinara. Eis então que surge na casa de
Manoel um crioulo chamado João Curador que, ao examinar sua filha, concluiu que a mesma
havia sido enfeitiçada, e sugeriu que as responsáveis pelo feitiço seriam duas velhas de nomes
Thereza e Francelina, e que o próprio a curaria do feitiço diante da presença delas. Ambas
3
foram tragas à casa de Manoel por seu filho Joaquim e seu genro Pedro, e, na presença de
todos, João Curador atou as mãos das velhas e começou a chicoteá-las e espancá-las com o
cabo do relho. Manoel não admitindo atos tão violentos foi ameaçado por João Curador que
lhe mostrou um revólver em sua algibeira contendo seis balas, pedindo ainda que lhe
trouxessem ovos chocos. Quebrou dois deles na boca de uma das velhas e a obrigou engolir
enquanto arremessara o outro na segunda velha. Não terminado este bárbaro “ritual” ainda
requereu um rolo de fumo e com ele, novamente, castigou as ofendidas que logo vieram a
falecer. Os corpos de ambas foram levados ao quintal de Manoel onde abriram uma vala e lá
enterraram1.
Temos aqui dois motivadores para este crime: uma filha doente que não apresentava
melhora com os tratamentos da medicina científica fazendo com que Manoel viesse buscar a
ajuda de um curandeiro, e uma antiga inimizade entre as vítimas e a família deste Manoel, não
citada na pequena introdução acima, mas verificada no depoimento de duas das testemunhas,
Torquato Marciano de Barros e João Coelho dos Santos. As duas vítimas foram chamadas por
Joaquim e Pedro para preparar um chá para a enferma, o que sugere que as vítimas também
viessem a conhecer as práticas curandeiras. O fato é que as duas foram acusadas por João
Curador e também Manoel de terem enfeitiçado sua filha.
Ao chegarem, Joaquim e Pedro, na casa de Francelina, relata Torquato que foram
chamá-la para dar um “remédio” a filha de Manoel e que logo o marido da mesma interveio
alegando que “ela não entendia de medicina”. “Os portadores do recado disseram que era
somente para dar um chá à menina doente”, ainda disse Torquato em seu depoimento. Mas o
que vem nos chamar a atenção é o relato de que “a cerca de doze anos existia inimizade entre
a gente de Manoel e as duas velhas Thereza e Francelina”, o que também aparece no
testemunho de João Coelho que relata a chegada de Joaquim e Pedro em sua casa solicitando
o acompanhamento de Thereza para tratar da filha de Manoel que estava “a morrer”. Disse
também que “a ela ponderou não ouvisse ao pedido”, devido a existência de um
“estremecimento de relações entre Thereza e a família de Manoel Fernandes”, pois ele estava
“receoso de que ela fosse vítima de alguma emboscada”. As preocupações de João Coelho se
mostraram não ser uma simples desconfiança, já que “por intermédio de pessoas de seu
conhecimento” soube do assassinato de Thereza “bem como de Francelina”.
1 Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, 1898, registro nº 798, cx. 37.
4
Como podemos ver na confissão de Manoel, não foi por vingança que tal crime
ocorreu. Tratava-se da doença de sua filha que já se estendia por anos e que nenhum
tratamento da medicina da época foi capaz de curá-la. Em seu interrogatório disse ter João
Curador o procurado e se prontificado a cuidar de sua filha, e, Manoel, acreditando que se
trataria somente de uma prática de contra-feitiço, permitiu ao curandeiro que o fizesse. Então,
ao ter-lhe dito João Curador que as responsáveis pelo feitiço seriam as duas mulheres já
mencionadas, mandou Manoel que seu filho e seu genro as buscassem, e somente em sua casa
percebeu a gravidade dos atos de João Curador, e mesmo tentando impedi-lo de continuar
com a crueldade, disse ter sido ameaçado e desacordado pelo curandeiro, recobrando os
sentidos somente após as mulheres terem sido enterradas. Ainda fora ameaçado por João
Curador novamente para que não “desse parte” às autoridades, que somente após oito dias do
assassinato ter ocorrido é que chegaram a sua casa onde Manoel confessou o crime e ainda
mostrou a eles a cova onde estavam enterradas as duas mulheres.
É uma pena não constar no processo o depoimento de João Curador, que
supostamente, após o crime, desapareceu. No depoimento de Manoel fica evidente uma
preocupação por parte dele de responsabilizar o curandeiro de toda a crueldade do crime,
tentando livrar-se da sentença impune. Também com a presença do curandeiro poderíamos
investigar melhor as argumentações da promotoria em relação às práticas de João Curador, o
que não será possível.
Essa suspeita de que as mulheres Thereza e Francelina haviam enfeitiçado a filha de
Manoel não partiu de João Curador e sim do próprio Manoel, isso é mostrado em um relato de
João Coelho que “havendo rompimento de relações entre Thereza, o réu e sua família, em
razão de desconfiar esta família que algum feitiço de Thereza fosse a causa da tenaz e
incurável moléstia da filha do réu, sendo este rompimento já de doze anos antes”.
É sabido que no decorrer da segunda metade do século XIX essas práticas curandeiras
foram reprimidas em decorrência de uma árdua luta da classe médica diplomada, que detinha
a qualificação regulamentada em lei para tratar de doenças, em obter a hegemonia e
desqualificar estes que seriam meros especuladores, homens que se aproveitavam das mazelas
da sociedade para fazer fortuna (XAVIER, 2008). Mas esse assunto será tratado mais a frente.
Então esses casos envolvendo curandeirismo e feitiçaria passaram a ser fortemente
combatidos no poder judiciário, como nos diz Regina:
5
“Nos anos 1850, era recorrente a reclamação contra e ‘imensa chusma de
curandeiros e mesinheiros’, que matavam seus pacientes e prejudicavam a
população. Esse combate tão efetivo contra os ‘curandeiros’, seguidamente
tidos também como ‘charlatões’, não acontecia apenas porque de suas
capacidades curativas não eram reconhecidas, mas também porque
disputavam a clientela com os médicos2.”
Mas não consta no documento estudado um debate sobre os métodos ou as práticas de
João Curador e os demais participantes no crime, todos foram enquadrados no artigo 294
parágrafo 1º do Código Penal referente ao ano vigente. Talvez devido ao inexplicado sumiço
de João Curador, e também do genro de Manoel, Pedro, que sequer foram a julgamento. Mas
o fato é que Manoel e seu filho Joaquim responderam pelo assassinato e foram absolvidos
pelo júri que entendeu ser João Curador o responsável pelo acontecimento.
2. RELIGIOSIDADE E CURANDEIRISMO NO BRASIL DO SÉCULO XIX
As práticas curandeiras presentes na segunda metade dos 1800 no Brasil, nos mostram
a necessidade de técnicas curativas em um momento em que o território de um modo geral era
atacado por várias doenças que se explicavam por situações em que o mal atuava severamente
em uma esfera sobrenatural. Regina Célia Lima Xavier em seu livro, Religiosidade e
escravidão no século XIX: mestre Tito, nos mostra muito bem isso;
“As doenças e as experiências negativas da vida eram causadas pela
interferência de forças maléficas presente no cosmos. Nada mais
compreensível, então, que fossem curadas por meio de rezas, magias ou
que passem pela interferência dos santos. Dessa feita, a crença nos
dois mundos- natural e sobrenatural – e na capacidade dos deuses ou
de forças existentes no cosmo interferirem na vida dos homens para o
bem ou para o mal unia, apesar das diferenças, a tradição católica
européia com a tradição religiosa européia3”.
Regina e a atual historiografia ilustram bem quem eram esses homens: tratava-se de
pessoas pertencentes à parcela menos abastada da população, na sua maioria negros. Atuavam
como uma ponte entre o mundo espiritual e o mundo físico, e por intermédio de santos e
2 XAVIER, R. C. L. . Religiosidade e Escravidão, século XIX: mestre Tito. 1. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2008, p. 61. 3 Idem, p. 150 e 151.
6
talismãs podiam muito bem curar doenças ou causá-las, além de se utilizarem de plantas e
ervas inúmeras para remediar seus pacientes. Eram pessoas próximas a aquelas demais da
sociedade, e por esse fator intervinham com certa “urgência” no tratamento de alguma
doença, além de serem pessoas relacionadas a figuras religiosas, pois traziam consigo
imagens de santos e faziam rezas por intercessão destes.
Apesar da obra da autora estar situada em uma região bem diferente da que trata nosso
documento, podemos observar grandes semelhanças que se encontram ao tratarmos da prática
dos curandeiros nas duas regiões. Era uma prática de bipolaridade, ela poderia trazer o mal e
ao mesmo tempo retirar esses tais malefícios. Em nosso documento específico João
“Curador”, indica que a filha de Manoel Fernandes Lima teria sofrido um feitiço de duas
senhoras (Theresa e Francellina). Teoricamente a retirada do suposto mal seria feito com a
presença das “feiticeiras”.
Chamemos a atenção nesse momento específico para os curandeiros, homens que
serviam o povo, e tentavam curar chagas que muitas às vezes a precária medicina da época
não alcançavam por vários motivos que serão tratados no decorrer da tentativa de exploração
desse Brasil místico do século XIX.
Mestre Tito, um dos personagens abordado na obra de Regina Célia Lima Xavier
mostra como curandeirismo e religiosidades andaram juntas:
“Benedito Barbosa (1977) conta que Tito de Camargo Andrade fora
movido por razões profundas quando tomou iniciativa de transformar a
antiga capela do Cônego Melchior, já em ruínas naquela ocasião, na
futura Igreja de São Benedito. Segundo sua narrativa, Tito de Camargo
fez uma promessa diante do altar daquele santo: caso não fosse
contagiado pela moléstia que assolava a cidade, dedicaria o “resto da
sua existência” à obtenção de meios necessários a construção daquela
igreja4”.
Esse direcionamento aos santos era muito comum, pois tinham eles uma ligação
especial com o sagrado devido a uma trajetória terrena. Faziam uma “ponte” entre o mundo
dos humanos e a esfera celestial.
A existência de um segundo ponto que de certa forma coloca essa pratica às vezes tão
benéfica pra sociedade em uma posição de perseguição aos olhos da justiça. Marcelo
4 Idem, p. 149.
7
Rodrigues Dias nos mostra muito claramente em seu trabalho “Repressão ao curandeirismo
nas Minas Gerais na segunda metade do oitocentos” que essa pratica foi também muito
perseguida. A grande quantidade de periódicos e processos criminais utilizada por ele
relativos aos arquivos de São João Del Rei, Oliveira, Campanha e Pitangui nos dá a dimensão
do quanto essas práticas curativas foram empregadas no território das Minas Gerais.
Como observou bem Dias no caso envolvendo Manoel Fernandes Lima não foi a
feitiçaria que levou tal caso a justiça, mas sim as atitudes de João “Curador”, tendo essa
história um final trágico com o falecimento das duas senhoras. As atitudes agressivas do
suposto feiticeiro não é uma exceção. Esses métodos chamados de contra-feitiços serviam
para a quebra os encantos. Junto com fortes castigos físicos eram empregados o fumo de rolo
e ovos chocos acreditando que isso anularia o encantamento. Nas palavras de Marcelo
Rodrigues Dias:
“E tais atos mágicos estavam inseridos dentre os variados recursos da
época utilizados para se obter soluções de enfermidades, na medida em
que se acreditava que um estado harmonioso original fora abalado
pela realização de um feitiço. E através de procedimentos rituais às
vezes violentos almejava-se a quebra do encanto e o restabelecimento
da saúde da pretensa vítima do feitiço. Casos de espancamentos
acompanhados de ovos chocos e fumo foram relatados também nos
processos que vitimaram os acusados de feitiçaria Silvério Bernardo da
Costa, o preto Manoel e o idoso octogenário José da Costa5.”
Além dessa violência ocorrida na sociedade da época a justiça tinha uma preocupação
fundamental em reprimir tais práticas. Dias ressalta o tamanho esforço das autoridades para
desqualificar a ação dos curandeiros, ele demonstra através de analise de vários processos
criminais o tamanho dessa repressão. A medicina e a farmacologia vinham se desenvolvendo
e se consolidando através das praticas acadêmicas. Tendo um estudo cientifico apurado as
curas seriam de maior confiabilidade. Um problema maior atrapalhava a consolidação dessa
nova maneira de se tratar as doenças. O tamanho da procura de determinada parcela da
sociedade ia totalmente contra essa política das autoridades da época. O que não quer dizer
que não haveria um abalo nesse dialogo. Vários inquéritos policiais foram abertos devido a
essa circunstancia. O relacionamento entre curandeiro e enfermo que tinha desavenças onde
5 DIAS, M. R. . Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais na segunda metade do oitocentos. São João Del
Rei. 2010. 185 p. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de São João Del Rei, p. 145.
8
acabava em ocasiões de extremo atrito era intermediado pela justiça que por sua vez se
empenhava ao máximo para isso uma vez que era muito interessante combater essas práticas
mágicas:
No entanto casos de instauração de processos criminais contra estes
curadores populares também ocorreram em função de um
estremecimento neste diálogo. O rompimento deste fluxo amistoso na
relação curandeiro-enfermo acabava gerando a busca de se condenar
o curandeiro na Justiça. Este estranhamento e interrupção numa
relação até um certo momento fluente e estável redundava justamente
na interceptação das atividades dos curandeiros através de denúncias
que as autoridades policiais acatavam prontamente.
Muitos dos processos criminais que buscavam reprimir curandeiros
tratam de situações-limite em que a insatisfação dos pacientes somada
à sanha acusatória e persecutória das autoridades buscavam
incriminar estes agentes populares da cura e eliminar suas atividades6.
Essas manifestações que estamos analisando através desse breve estudo, não surgiram
nessa nação no século XIX. Elas têm toda uma história, um longo percurso até a consolidação
e a credibilidade de sua prática. Desde o período colonial, algumas classes estavam
diretamente ligadas a essas manifestações, como por exemplo, os jesuítas, sangradores,
boticários e curandeiros. A metrópole de certa forma incentivou essas praticas ao proibir a
criação de Escolas superiores em território brasileiro durante o período colonial. Esse sistema
de cultura múltipla formado por indígenas de varias crenças, negros de diversas partes do
continente africano e catolicismo europeu formaram uma cultura tão diversificada e tão
complexa que não pode passar despercebidos aos olhos da Inquisição:
“Malgrado a preocupação da Inquisição e da própria legislação real,
proibindo a prática das feitiçarias e superstições, no Brasil Antigo, em
toda a rua, povoado, bairro rural ou freguesia lá estavam as
rezadeiras, benzedeiras e adivinhos prestando tão valorizados serviços
à vizinhança. No nordeste, nas Minas e no resto da Colônia, são
freqüentes as denúncias contra homens e mulheres que recorriam aos
feiticeiros e feiticeiras, em especial, quando os exorcismos da Igreja e
os remédios de botica não surtiam efeito na cura de variegada gama de
doenças7 ”.
6 Idem, p. 13.
7 MOTT apud DIAS, 2010, p.14.
9
A presença mística é ainda comprovada pela Inquisição nos Arquivo da Torre do
Tombo, em Lisboa. Donald Ramos abordou em suas pesquisas com fontes eclesiásticas a
grande difusão e práticas e confirma a utilização de tais procedimentos.
“No século XVIII a repressão às práticas alternativas de cura partia
das autoridades eclesiásticas, através das visitas episcopais e das
devassas, já na segunda metade do século XIX tal poder coercitivo
passaria a partir do aparato judicial que viria a se constituir no Brasil
da época8”.
Dois fatores dificultavam a ação dos médicos na época: a primeira era a falta de
credibilidade dos médicos que, por ser uma ciência que ainda “engatinhava”, despertava
grande desconfiança. O segundo fator era o preço de custo de uma consulta medica na época.
A maioria da população não provinha de recursos que colocassem a atividade medica
disponível em suas vidas. Os mecanismos que eram fornecidos aos curandeiros eram de baixo
custo como, por exemplo, fumo, toucinho e rezas que eram usados para o tratamento de
picaduras de cobras. A substituição desse procedimento só veio a ocorrer no século XX com a
descoberta do soro antiofídico.
Já no período republicano houve um enrijecimento das leis, o que de certa forma pode
ter certa ligação com o fortalecimento das praticas médicas. Tal postura é confirmada no
Código de Posturas municipais e Regimento interno da Câmara de São João Del-Rei de
1887. Nas palavras de Marcelo Rodrigues Dias:
“Nas legislações do Império, os crimes de curandeirismo eram
caracterizados como contravenção e ato fraudulento no artigo 264 na
falta de artigos específicos, ou ainda podiam ser punidos como
infrações dos Códigos de Posturas Municipais disseminados pelas
localidades do país. O Código de posturas e Regimento interno da
Câmara de São João del-Rei de 1887, por exemplo, rezava em seu
Título IV art. 28 que ‘é proibido fingir se inspirado por potências
invisíveis ou predizer casos tristes ou alegres, do que resulta prejuízo a
alguém. É proibido inculcar-se curador de enfermidades ou moléstias
por via do que vulgarmente se chama feitiços’.9”
8 DIAS, M. R. . Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais na segunda metade do oitocentos. São João Del
Rei. 2010. 185 p. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de São João Del Rei, p. 16. 9 Idem, p. 20.
10
3. UMA LUTA ACIRRADA: OS DIPLOMADOS CONTRA OS “EMPÍRICOS”
3.1 MÉDICOS CONTRA OS CURANDEIROS
Houve durante o século XIX um grande embate por parte dos médicos diplomados,
que juridicamente possuíam o direito de intervir na saúde pública. Uma vez que esses médicos
possuíam uma formação acadêmica e utilizavam de métodos científicos, ao contrário dos
curandeiros, procuravam “um lugar exclusivo no tratamento dos doentes, desclassificando em
seus discursos, principalmente os homeopatas e os curandeiros” (XAVIER, 2008). Alegavam
estes médicos que os curandeiros não poderiam atuar na cura das pessoas por não tiverem
uma formação ou práticas aprovadas pela ciência, e aproveitavam da ignorância do povo para
se firmarem como curadores de suas mazelas. O poder judiciário e as autoridades por sua vez
“preferiram regular e não reprimir” as práticas destes curandeiros (XAVIER, 2008). A
regulamentação do exercício das atividades de cura se deu somente em 1850 quando foi
instituída a Junta Central de Higiene Pública, como nos mostra Dias. Para podermos entender
melhor essa relação entre curandeiros e médicos, observemos esse trecho de Regina:
“Essa oposição entre médicos e curandeiros, entretanto, deve ser entendida
em sua dimensão política, em um momento quando a medicina acadêmica
buscava erigir para si um lugar específico de atuação, diferenciando-se da
atividade de outros profissionais, especializando suas práticas e atribuindo-
lhes um caráter científico10
”.
“contudo, para além do discurso político, havia uma prática social que, justamente, se opunha
a essa dicotomia criada entre médicos diplomados (científicos) e outros profissionais
(empíricos)”, ainda ela salienta.
Houve ainda, segundo Regina, para o tratamento dos doentes, a construção das casas
de saúde, hospitais e lazaretos, onde os enfermos, geralmente as camadas mais pobres da
sociedade, eram internados a fim de tratarem suas doenças e oferecer um controle sobre as
epidemias. Nesses locais atuariam somente médicos aptos para o tratamento, ou seja, aqueles
que possuíssem diplomas. As cirurgias ali realizadas eram divulgadas nos jornais a fim de se
10
XAVIER, R. C. L. . Religiosidade e Escravidão, século XIX: mestre Tito. 1. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p. 167 e 168.
11
legitimar a classe médica como verdadeira detentora dos eficazes métodos de cura, reforçados
ainda pelo testemunho dos pacientes que alegavam a eficácia dos tratamentos.
Apesar de toda essa tentativa de eliminar da sociedade esses homens tidos por
curandeiros, o povo sempre teve sua preferência por eles. Ora por estarem os mesmos mais
próximos da população num aspecto social, ora por as pessoas terem um “horror a hospitais e
lazaretos, considerados focos de contágio e lugares de morte”, ora pelo alto custo de uma
consulta médica e um número muito reduzido destes em relação aos curandeiros, como
explica Regina:
“A preferência da população por curandeiros pode, logo, ser explicada a
partir de fatores muito variados. As diferenças sociais e econômicas entre
médicos [...] e curandeiros [...] talvez esclareçam o lugar subalterno que
procurou a reservar a estes últimos ou justifiquem a dificuldade dos médicos
em diagnosticar e tratar dos doentes, sobretudo daqueles mais desvalidos.
Além disso, o autoritarismo de métodos empregados pelas autoridades [...]
pode informar muito sobre as preferências da população11
.”
Ao voltar no processo analisado sobre o assassinato das velhinhas Thereza e
Francelina podemos entender também os motivos que levavam as pessoas a procurarem os
curandeiros, uma vez que a filha de Manoel “estando [...] doente a tempos, que tem tomado
muitos remédios receitados por médicos e nada de melhoras”. Isso nos mostra que houve uma
tentativa em vão de se tratar a enferma com os métodos da medicina acadêmica, o que
reforçou a crença em uma suposta feitiçaria, e que somente após esses métodos terem se
mostrado ineficazes é que Manoel requereu a ajuda do curandeiro. Regina mostra em seu
trabalho que havia muitos casos em que a população, mesmo os mais ricos, tinha preferência
pelos curandeiros e explica que:
“A opção pelos curandeiros demonstrava ainda o quanto o discurso médico
não tinha muita penetração entre os pacientes, mesmo no que tocava à elite, a
despeito de tantas vezes reiterado nos relatórios sanitários, nas
correspondências às autoridades provinciais, nas reclamações ao delegado
de polícia e nas brigas pessoais que, por vezes, terminavam em processos
crimes na justiça, enfim, apresar de toda a energia gasta pelos médicos em
defesa dos diplomas12
”.
11
Idem, p. 179. 12
Idem, p. 167.
12
Cabiam a estes médicos a acusarem, no caso de morte do paciente, os métodos
aplicados pelos curandeiros de serem os responsáveis, mesmo que não se saiba a causa exata.
Mas na verdade muitas pessoas morriam, realmente, nas mãos destes curandeiros, bem como
nas mãos de médicos, com a diferença de que, no caso dos curandeiros, estes levavam a culpa,
enquanto no caso de um médico renomado, por exemplo, a morte do paciente seria uma mera
fatalidade. E quando se tratava de um paciente ter conseguido a cura pelo tratamento de um
curandeiro, este tinha sua perícia reconhecida, “mas não era respeitada como estando no
mesmo patamar da perícia dos médicos13
”.
3.2 JUDICIÁRIOS CONTRA OS CURANDEIROS
Quando os curandeiros despertavam a insatisfação da população, ou a ira dos médicos,
iam parar nos tribunais, onde geralmente eram enquadrados no artigo 158 do código penal
“que exigia a proibição de ‘ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo interno
ou externo, e sob qualquer forma preparada, substâncias de qualquer dos reinos da natureza,
fazendo ou exercendo assim o ofício denominado de curandeiro”14
, ou no artigo 156 que
proibia “a prática ilegal da medicina, arte dentária e farmácia”15
, e ainda o 157 que repudiava
“praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancias, para despertar
sentimentos de ódio e amor, inculcar curas de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para
fascinar e subjugar a credulidade pública”16
. Era prevista “uma pena de um a seis meses de
prisão celular, majorada se resultasse alteração temporária ou permanente das faculdades
psíquicas do paciente”.17
Raramente eram enquadrados em apenas um dos artigos, tendo em vista que esses
curandeiros se utilizavam de ervas e chás, ou seja, “substâncias de qualquer dos reinos da
natureza”, referente ao artigo 158, para tratarem das doenças de seus pacientes exercendo
assim “a prática ilegal da medicina [...] e farmácia”, artigo 156, e, finalmente “inculcar curas
13
Idem, p. 176. 14
DIAS, M. R. . Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais na segunda metade do oitocentos. São João Del Rei. 2010. 185 p. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de São João Del Rei, p. 59. 15
Idem, ibidem. 16
Idem, p. 59 e 60. 17
Idem, p. 60.
13
de moléstias curáveis ou incuráveis”, seja “para fascinar e subjugar a credulidade pública”, ou
mesmo para um tratamento eficiente de suas mazelas.
Porém, como vimos no processo envolvendo Manoel Fernandes Lima, os réus não
foram incursos nesses artigos do código penal, e sim no artigo 294, “matar alguém”, além dos
possíveis agravantes, ou seja, foram a julgamento por homicídio e não por “prática ilegal da
medicina”. Talvez por perceberem as autoridades que Manoel não se tratava de um
curandeiro, era um homem de 53 anos, casado que exercia a ocupação de lavrador. Tinha
residência fixada no distrito de São Francisco de Paula, assim como seu filho Joaquim.
Nenhuma das testemunhas depôs a acusá-lo de “feiticeiro”, ao contrário do que acontece em
outros processos, como os analisados por Dias. “O denunciado se acha indomiciliado”, era
como a maioria dos acusados por curandeirismo se encontrava, além de, geralmente, não
exercerem outra ocupação se não o curandeirismo. “A necessidade de uma averiguação do
tipo de trabalho no qual o ‘curandeiro’ se empregava quando não estivesse exercendo suas
práticas de cura foi bastante freqüente no decorrer dos processos-crimes”, ainda afirma Dias.
Caso constasse no processo o julgamento de João Curador, que por um misterioso sumiço não
possibilitou uma discussão mais profunda acerca do curandeirismo presente neste crime.
A Promotoria do caso acusou os réus de homicídio com os agravantes de terem
cometido “o crime com premeditação, mediando entre a deliberação criminosa e a execução
do espaço pelo menos de 24 horas”, “tendo procedido com traição” e “com emprego de
diversos meios”, “impelidos por motivo privado”, sendo eles “superiores as ofendidas,
quando cometeram o crime, em armas, força e sexo, de modo que elas não podiam se
defender com probabilidade de repelir as ofensas”. Como podemos ver não há menção sobre o
contra-feitiço empregado por João Curador. Como este desapareceu e também Pedro, os réus
Manoel e Joaquim foram absolvidos da acusação.
Dias também averiguou em seu trabalho que a cobrança dos curandeiros por suas
consultas também incomodava as autoridades, pois “tanto o conteúdo acusatório das
denúncias como os depoimentos de várias testemunhas confirmaram o procedimento habitual
dos curandeiros denunciados de cobrar por seus serviços prestados18
”. Esse pagamento
também servia de incentivo para os curandeiros serem levados a justiça por parte de seus
pacientes, uma vez que pago o serviço e a cura pretendida não alcançada esses curandeiros
eram tidos por “charlatões” e “enganadores”, e logo esses pacientes que se sentiam lesados
18
Idem, p. 126.
14
estavam nos tribunais depondo contra eles.
Também foi mostrado por Dias que curandeiros buscavam a justiça para arcar com a
violência sofrida por mãos de pessoas intolerantes a seus atos, ou mesmo aquelas que se
sentiam lesadas por seus serviços. Muitos casos averiguados por ele nos mostra isso, e ainda
podemos usar de exemplo o caso das velhas Francelina e Thereza. Apesar de elas terem sido
assassinadas em decorrência de um contra-feitiço praticado por João Curador, podemos
imaginar casos de pessoas que sobreviviam a esses rituais e procuravam a justiça e incriminar
seu(s) agressor(s). Tais atos violentos, envolvendo curandeirismo ou não, eram
frequentemente levados a justiça durante o século XIX e constituíam a maior parte dos
processos, como pode ser visto no trabalho de Ivan Vellasco.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi visto o debate acadêmico envolvendo as práticas de cura não exercidas pelos
magistrados eram reprimidas pelos mesmos e pelos legisladores do século XIX. E mesmo
apesar de todo esse empenho da medicina em se consolidar como a hegemônica nos
tratamentos das mazelas da sociedade brasileira esses curandeiros ainda possuíam a
preferência da maioria da população.
No caso trabalhado de Manoel Fernandes Lima e o assassinato das velhas Thereza e
Francelina diz que a filha de Manoel foi tratada por diversos médicos sem êxito, obrigando-o
a considerar a ajuda de João Curador, o que acabou em um trágico crime. No processo não se
pode saber do que a filha de Manoel sofria e se obteve uma melhora após a intervenção de
Curador, mas na historiografia percebemos casos semelhantes, de pessoas que não
conseguiram a cura por meio da medicina acadêmica, mas que a conseguiram por intermédio
dos curandeiros.
Contribuíram para essa preferência o fato de esses curandeiros se tratarem de figuras
populares e estarem, na maioria dos casos, envolvidos com a religião, se tornando assim mais
próximos às pessoas que necessitavam de seus tratamentos. Enquanto a medicina acadêmica
da época ainda escassa contava com poucos médicos, esses curandeiros se achavam aos
montes, se considerarmos até mesmo aqueles que somente produziam chás “milagrosos” e
antídotos para picadas de cobra.
15
A maior dificuldade encontrada no caso avaliado foi o sumiço de João Curador, figura
importantíssima no acontecimento, que, caso fosse a julgamento, nos enriqueceria com seu
depoimento e acusação das velhas de feiticeiras. Outros casos são conhecidos e foram
tratados por Dias, assim como esse, e inúmeros outros ainda podem existir nessa região de
Oliveira. Por se tratar de um primeiro artigo escrito por ambos os autores outras dificuldades
foram surgidas e contornadas e no fim, ao olhar tudo isso pronto nos enche de motivação para
continuar com a pesquisa na área e abordar novos casos.
REFERÊNCIA
Processo criminal das senhoras Tereza e Francelina, 1898, registro nº 798, cx. 37.
BIBLIOGRAFIA
DIAS, M. R. . Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais na segunda metade do
oitocentos. São João Del Rei. 2010. 185 p. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade Federal de São João Del Rei.
GRINBERG, Keila . Processos criminais: a história nos porões dos arquivos judiciários. In:
Carla B. Pinsky; Tania Regina de Luca. (Org.). O historiador e suas fontes. 1ed. São Paulo:
Contexto, 2009, v. 1, p. 119-139.
NOVAIS, Fernando; ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Orgs.). História da vida privada no
Brasil - volume 2. Império: a Corte e a modernidade nacional. 1 ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.
PUTTINI, R.F. . Curandeirismo, curandeirices, práticas e saberes terapêuticos: reflexões
sobre o poder médico no Brasil. Revista de Direito Sanitário, v. 11, p. 32-49, 2011.
SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América
portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
VELLASCO, Ivan de A. . As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração
da justiça Minas Gerais, século 19. 1º. ed. Bauru/São Paulo: EDUSC/ANPOCS, 2004.
XAVIER, R. C. L. . Religiosidade e Escravidão, século XIX: mestre Tito. 1. ed. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2008.
16
ANEXO
(Páginas 3-5) “O Promotor da Justiça da Comarca, usando de suas atribuições, vem perante V.
S.ª denunciar de João Curador, Manoel Fernandes Lima, Joaquim e Pedro de tal, o primeiro
filho e o segundo genro de Manoel Fernandes Lima, brasileiros e residentes no distrito de São
Francisco de Paula, pelo crime que passa a expor:
Em princípios do mês de março deste ano (1896), tendo a autoridade policial de S.
Francisco de Paula, tido denúncia de que haviam desaparecido do lugar denominado “Serra”
naquele distrito duas velhas de nomes Thereza e Francelina, para lá se dirigir em companhia
do escrivão de paz e Felisbino na Motta.
Chegados em casa de um dos denunciados, Manoel Fernandes Lima, e sindicando a
autoridade do paradeiro das duas infelizes, soube pelo próprio Manoel Fernandes Lima, que
existindo em sua casa uma filha doente há tempos, ali apareceu um crioulo de nome João
Curador, morador entre Santa Ana do Jacaré e Cana Verde, e disse-lhe: “que sua filha doente
se acha com feitiço, e que ele a curaria mediante a presença das duas velhas Thereza e
Francelina, que haviam enfeitiçado a sua referida filha.”
Prontamente, mandou Manoel Fernandes Lima a seu filho Joaquim e a seu genro
Pedro, que fossem buscar as supra ditas Thereza e Francelina.
Uma vez as duas, em presença de João Curador e dos três outros denunciados, aquele
fez sentir-lhes que são elas que haviam enfeitiçado a filha de Lima e exprobrando-as começou
de dar, nas duas infelizes, cacetadas, com um cabo de relho, depois pediu que lhe trouxessem
ovos chocos, e quebrou-os na boca de ma delas, atirando, o outro, em a outra.
Fernandes Lima parece que procurou impedir a João Curador na barbaridade do crime,
mas não o fez com a energia precisa. Não contente com tamanha desumanidade, João Curador
ainda exigiu que lhe trouxessem algumas varas de fumo em rolo, e de novo começou a
ofender e castigar as infelizes Thereza e Francelina.
Pouco a pouco, devido às pancadas, foram desfalecendo as duas vítimas do fanatismo
feérico e expiraram logo em seguida. Querendo os denunciados furtarem-se a ação da justiça,
sorrateiramente levaram os dois cadáveres para o quintal e dentro de um valo as enterraram
em uma só cova, que dez dias depois, ainda fora mostrada à autoridade.
17
Assim, pois, em face do que venho a expor a V. S.ª, ofereço, contra João Curador,
Manoel Fernandes Lima, Joaquim de tal e Pedro de tal, filho e genro deste, denúncia, como
incursos nas penas do artigo 294 parágrafo 2 do Código Penal na qualidade de autores ou co-
autores do delito, e requeiro que para se proceder a formação da culpa, mande V. Sª intimar as
testemunhas que abaixo vão arroladas para deporem no dia e hora por V. S.ª designado.
Oliveira, 29 de Março de 1896.
O Promotor de Justiça
Leopoldo Ferreira Monteiro
Rol das Testemunhas
1. Saturnino de Paula Teixeira
2. Felisbino Luiz da Motta
3. João Coelho dos Santos
4. Sydnei de Tal
5. Torquato de tal (ex escravo)
Residentes no distrito de São Francisco de Paula.”
(Páginas 9-11) “Chegando ao meu conhecimento que no lugar denominado Serra, deste
distrito, desapareceram as duas velhas Theresa e Francelina, que são moradoras nesse mesmo
lugar, isto a sete ou oito dias, em vista do que, dirigi-me a esse lugar acompanhado do
Escrivão, a fim de verificar-me da veracidade desse fato para dar as providências necessárias
e chegando na casa de Manoel Fernandes Lima perguntei a ele se sabia das referidas Theresa
e Francelina e ele disse-me, em presença do Escrivão e de Felisbino da Motta, que se achava
presente, que estando uma sua filha doente a tempos, que tem tomado muitos remédios
receitados por médicos e nada de melhora, apareceu em sua casa um crioulo de nome João
Curador, morador entre Santa Anna do Jacaré e Cana Verde e lhe disse que a sua filha estava
com feitiço e que quem tinha posto feitiço nela era as referidas Theresa e Francelina, e que ele
a curava, mas para poder curá-la era preciso que elas estivessem presentes, em vista do que
ele mandou buscar as referidas Theresa e Francelina por seu filho Joaquim e seu genro Pedro
e chegando elas, ele curador disse a elas que elas tinham posto feitiço na filha dele e para que
fez isso e começou a dar nelas relhadas e cacetadas com o cabo do relho e que ele disse ao
curador que não queria que ele batesse nelas, e que ele tirou da algibeira um revólver e disse
em voz alta que tinha seis balas e não se importava com ninguém e continuou a bater nelas e
18
pediu ovos chocos, dizendo que não podia curar a menina sem que quebrasse o encanto delas
e trouxeram três ovos e ele pôs dois forçosamente na boca de uma delas e fez ela os beber e
atirou o outro na outra e pediu fumo e lhe trouxeram e ele começou a dar nelas com o fumo e
elas foram desfalecendo e faleceram e depois o curador com o dito seu filho e genro levaram
os cadáveres e os enterraram perto do fundo da horta e eu disse a ele que fosse nos mostrar a
cova e ele foi com nós e encontramos uma cova feita de novo dentro de um valo, que cerca
dois pastos de capim gordura e ele nos disse que nessa cova estava elas todas, as duas
sepultadas. O tal Curador acha-se aqui e julgo necessária a prisão preventiva dele.
Saúde e fraternidade
São Francisco de Paula – 10 de março de 1886
Ilmo. Dr. Juiz Substituto da Comarca de Oliveira
O Subdelegado de Polícia
Saturnino de Paula Teixeira”
“Depoimentos:
1º -(paginas 23, 24 e 25) Saturnino Paula Ferreira, com 50 anos, solteiro, negociante, natural e
residente em S. Francisco de Paula, sendo inquirido disse: que chegando em casa de Manoel
Fernandes, depois de ser chamado, por denúncia por terem desaparecido as pretas velhas
Francelina e Thereza e que ambas foram chamadas por Manoel Fernandes de Lima e ali
chegando ao mesmo Fernandes Lima perguntou o que havia sobre as 2 velhas e ele sem
hesitar disse que tudo sabia e passou a descrever o fato, a disse Fernandes Lima que estando
doente uma sua filha, que já tinha tomado muito remédio, ali apareceu o diabo João Curador,
e disse que a curava, que aquilo era feitiço, mas que precisava da presença das duas pretas
Francelina e Thereza, que foram chamadas por Joaquim filho de Fernandes Lima e Pedro
genro do mesmo, isto por ordem de Fernandes Lima, assim chegaram, foram as mesmas
amarradas por João Curador , que principiou a dar-lhes pancada ao que foi obstado por
Fernandes Lima, então João Curador tirou um revólver e ameaçou aos presentes, e pedindo
ovos chocos, obrigando uma das pretas a beber, e atirou a outra e deu-lhes mais com fumo,
nisto elas foram desmaiando e morrendo. A testemunha na qualidade de autoridade perguntou
a Fernandes de Lima “onde as havia enterrado” este depois de algumas evasivas mostrou a
sepultura das duas vítimas no fundo da horta em um valo velho, dizendo que João Curador, as
19
enterrou ajudado por seu filho Joaquim e seu genro Pedro. Como nada mais disse assino como
delegado depois de lido por mim Evaristo Moreira
Josué Espínola de Resende.
Saturnino de Paula Teixeira”
2ª testemunha- João Coelho dos Santos. 38 anos de idade, solteiro, roceiro, natural e morador
de S. Francisco de Paula, aos costumes disse nada, testemunha jurada, sendo inquirido sobre a
denúncia que lhe foi dita disse que Pedro Luiz Vieira, Joaquim Fernandes de Lima, foram a
sua casa a mandado de Manoel Fernandes Lima, chamar a preta Thereza para ajudar uma sua
filha a morrer. Como a muitos anos existisse estreitamento de relações entre Thereza e a
família de Manoel Fernandes, a testemunha a ela ponderou não ouvisse ao pedido, receoso de
que ela fosse vítima de alguma emboscada, posteriormente soube do seu assassinato como de
Francelina por intermédio de pessoas de seu conhecimento. E como nada mais disse nem lhe
foi perguntado, deu-se por findo o seu juramento que, assina com (...). Eu Martiniano (?)
Cordeiro escrivão o escrevi.
3ª testemunha – Torquato Marciano de Barros, idade quarenta anos mais ou menos, casado,
lavrador, natural da Comarca de Bom Sucesso, residente do distrito de São Francisco de
Paula, aos costumes disse nada, testemunha jurada aos Santos Evangelhos em um livro deles
na forma da lei, e sendo inquirido sobre a denúncia que lhe foi dita disse que estava em casa
de Francelina no dia do acontecimento, quando Pedro de tal, Joaquim Fernandes, filho e genro
de Manoel Fernandes, foram chamá-la a mando deste, para dar um remédio a sua filha que se
achava doente. O marido de Francelina, opondo-se a sua ida a casa de Manoel Fernandes, pois
que, ela não entendia de medicina, os portadores do recado disseram que era somente para dar
um chá e menina doente. Disse mais que a cerca de dez anos existia inimizade entre a gente
de Manoel Fernandes e as duas velhas Thereza e Francelina. E como nada mais disse nem lhe
foi perguntado, deu-se por findo o seu juramento, que, por não saber ler nem escrever (?)
assinou (...). Eu Martiniano (?) Cordeiro o escrevi.”
”Por libelo crime acusatório
Diz a Justiça pública, por seu promotor contra os réus João (Curador), Manoel Fernandes
Lima, Joaquim Fernandes Lima e Pedro Luiz Vieira por esta e na melhor forma de direito
seguinte:
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E. S. C.
1.
P. Em principio do mês de Março do ano corrente de 1896, no lugar denominado “Serra” do
distrito de S. Francisco de Paula, desta Comarca, os réus acima referidos mataram as infelizes
Thereza e Francelina.
2.
P. Os Réus cometeram o crime com premeditação, mediando entre a deliberação criminosa e
a execução, o espaço, pelo menos de 24 horas.
3.
P. Os Réus cometeram o crime tendo procedido com traição.
4.
P. Os Réus cometeram o crime com emprego de diversos meios.
5.
P. Os Réus cometeram o crime impelidos por motivo privado.
6.
P. os Réus eram superiores as ofendidas, quando cometeram o crime, em armas, força e sexo,
de modo que elas não podiam se defender com probabilidade de repelir as ofensas.
Nestes termos
Pede-se a condenação dos Réus: João Curador, Manoel Fernandes Lima, Joaquim Fernandes
Lima e Pedro Luiz Vieira, nas penas de grau Maximo do art. 294 p. 1º do Código Penal por
terem se dado a circunstâncias elementares dos parágrafos 2; 7 e 17 do artigo 39 e também as
agravantes dos parágrafos 4 e 5 do artigo 39 do mesmo código.”(pagina 66)