acompanhamento terapÊutico: conhecer, tempo e arte

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Esse trabalho nos leva a testemunhar a maneira como os problemas contemporâneos afetam os modos de subjetivação do ser humano. Nessa perspectiva, o adoecimento psíquico pode ser visto não só como decorrente de dinâmicas intrapsíquicas, mas também pelo mal estar no mundo social e cultural. Diferentes autores (Adorno, Stein, Heidegger, Safra) têm assinalado que os problemas contemporâneos são também frutos pelo modo como o processo de conhecimento aconteceu na modernidade. Perspectivas epistemológicas utilizadas na maneira como se aborda o ser humano nas Ciências Sociais levam a conseqüências significativas na desumanização do mundo e na fratura do ethos humano.Tendo em vista este tipo de situação, tenho recorrido à pesquisa da literatura e da arte como modo de abordar a questão do conhecimento e como a temporalidade vem afetando a subjetividade humana.Um autor que tenho considerado bastante fecundo nessa investigação e reflexão é o poeta indiano Rabrindanath Tagore.

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Page 1: ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: CONHECER, TEMPO E ARTE

O movpsicodia jse desua cconspsicaterapdenopsiqu

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias  (Orgs.). A Unicidade  do Conhecimento.  Évora: Universidade de Évora.  

 

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foi  denominado  amigo  qualificado  e,  posteriormente,  acompanhante  terapêutico. Isto  ocorreu na medida  em que  o  trabalho  foi  se  dando mais  na  rua,  na  casa  do paciente e deixando a instituição psiquiátrica e os consultórios. 

Esse  trabalho  nos  leva  a  testemunhar  a  maneira  como  os  problemas contemporâneos  afetam  os  modos  de  subjetivação  do  ser  humano.  Nessa perspectiva,  o  adoecimento  psíquico  pode  ser  visto  não  só  como  decorrente  de dinâmicas intrapsíquicas, mas também pelo mal estar no mundo social e cultural.  

Diferentes autores (Adorno, Stein, Heidegger) têm assinalado que os problemas contemporâneos são também frutos pelo modo como o processo de conhecimento aconteceu  na  modernidade.  Perspectivas  epistemológicas  utilizadas  na  maneira como  se  aborda  o  ser  humano  nas  Ciências  Sociais  levam  a  conseqüências significativas na desumanização do mundo e na fratura do ethos humano. 

Tendo em vista este tipo de situação, tenho recorrido à pesquisa da literatura e da  arte  como modo  de  abordar  a  questão  do  conhecimento,  e  do modo  como  a temporalidade vem afetando a subjetividade humana. 

Um autor que tenho considerado bastante fecundo nessa investigação e reflexão é o poeta indiano Rabrindanath Tagore. 

Não há como abordar a obra de Tagore sem nos determos na articulação que ele apresenta ao se referir a Deus, à Natureza e ao Homem. Não seria exagero afirmar que toda sua obra é atravessada por esses três pontos e a relação entre eles. 

Ao  longo  de  seus  poemas,  ensaios  e  palestras,  o  poeta  faz  referência  a  Deus como: Senhor, Ser Supremo, Personalidade Suprema, Criador, Pai, Amigo, Amante, Poeta...  O  Criador  se  faz  presente  em  sua  criação  e  se  expressa  através  dela.  O Infinito habita o finito. Daí a importância da relação harmoniosa com o mundo e o que nele está, pois nestes elementos vislumbramos o Todo  Infinito. O mundo é o lugar da manifestação do Divino. A qualidade da relação que estabelecemos com o mundo contribuirá ou não para nos aproximarmos do Ser Supremo. 

Em seu modo de ver, tudo que existe no mundo está envolto por Deus e é fonte de  alegria,  deleite  e  experiência  poética.  Assim  sendo,  a  presença  divina  se manifesta em todos os elementos da natureza, o que leva o poeta a uma atitude de reverência e sacralização do mundo. 

À pergunta sobre o que é esse que tudo permeia, Tagore encontra resposta nos sagradas escrituras do Hinduísmo. 

O que é esse espírito? Diz o Upanixade: O ser que é em sua essência a luz e a vida em tudo, que é universalmente consciente, é Brahma. (Sadhana; p. 25) 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias  (Orgs.). A Unicidade  do Conhecimento.  Évora: Universidade de Évora. 

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Brahma, o Criador, é o princípio, o meio e o fim de todas as coisas, mas ele em si não  possui  um  começo  e  nem  um  término.  Toda  a  criação  está  nele,  mas  Sua Grandeza  não  está  em  sua  totalidade  contida  no  universo.  Ele  está  perto  e  ao mesmo tempo distante. Estamos diante do paradoxo, o mistério que não é passível de  ser  resolvido.  Vejamos  como  Rabindranath  organiza,  poeticamente,  essa questão do criador e da criatura: 

Colocas uma barreira no teu próprio ser, e depois 

chamas de volta o teu próprio ser, repartido em milhares 

de notas musicais. Essa parte dividida de ti mesmo é 

a que se encarnou em mim. 

(Gitanjali; estrofe do poema 71) 

A  relação  com  o  ser  supremo  determina  não  só  um  registro  religioso,  mas também  se  torna  uma  necessidade  ética,  para  que  o  homem  não  torne  o  outro‐coisa e aborde a Natureza, sem que ela seja mera fonte de materiais para os bens de consumo. 

Podemos  apreender  uma  relação  bastante  pessoal  e  amorosa  entre  Criador  e criatura.  Tagore  cunhou  o  conceito  de  jiban­devata,  cuja  tradução  literal  seria Deus‐vida,  ou  seja,  o  Senhor  da  vida.  Ele  a  define  como  “o  aspecto  limitado  da Divindade  que  tem  seu  lugar  singular  na  vida  individual,  em  contraste  àquela [Divindade] que pertence ao universo”  (Imperfect encounter; p. 321). Curiosa esta afirmação do ilimitado fazendo‐se presente na parte, de uma porção personalizada de Deus. Aqui vemos também a proximidade dessas concepções com a perspectiva teológica  cristã, na qual Deus  limita‐se por meio do esvaziamento de  si  (kenosis) para  permitir  que  o  mundo  possa  existir.  No  Cristianismo  esse  esvaziamento atinge o seu ponto mais dramático pela encarnação da divindade, momento em que a natureza humana é acolhida pela divindade. 

No  final  de  seu  livro mais  autobiográfico,  Tagore  também  faz  uma menção  a estes aspectos: 

Eu não tenho a capacidade de revelar e apresentar a suprema arte pela qual o Guia de minha vida está, alegremente, me conduzindo através de todos  os  seus  obstáculos,  antagonismos  e  sinuosidades,  em  direção  à realização  de  seu mais  profundo  significado. E  se  eu  não  puder  tornar claro todo o mistério deste projeto, o que quer que eu tente apresentar é certo  que  será  confuso  a  cada  passo  do  caminho. Analisar  a  imagem  é somente alcançar a poeira e não a alegria do artista. (My Reminiscences, pp. 271­272) 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias  (Orgs.). A Unicidade  do Conhecimento.  Évora: Universidade de Évora.  

 

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Cada vida humana possui um Guia que a conduz em sua travessia pelo mundo. Isso se deve à concepção de que em cada homem habita a  face do Criador. Dessa forma o Guia é o Divino no homem, ansiando retornar à fonte original. Vemos que por essa perspectiva Tagore nos mostra que o destino humano é  sagrado, pois o Divino procura manifestar um dos aspectos de sua face pela vida singular. Há aqui uma  ética  frente  ao  imponderável  e  à  santidade  do  destino  do  outro.  É  nessa perspectiva que o olhar proposto por Tagore se constitui em um lugar ético. 

Talvez  fosse  interessante  esclarecermos  como  ele  organiza  essa  relação harmoniosa mesmo  nas  vicissitudes  da  vida.  A  harmonia  está  na  realização  das distintas dimensões humanas. Mas haveria algum dualismo entre Deus e o homem? 

Tudo tem seu dualismo de maya e de satyam, de aparência e de verdade. As palavras  são maya onde  são meros  sons e  finitas, porém  são  satyam onde são  idéias e  infinitas. Nosso ego é maya onde é apenas  individual e finito,  onde  considera  a  sua  separação  como  absoluta;  e  satyam  onde reconhece a sua essência no universal e infinito, no supremo si mesmo, no paramatman.  Isto é o que Cristo quer dizer quando  fala que  ‘antes que existisse, eu sou’. Esse é o eterno eu sou que  fala através do eu sou que  está  em mim.  O  eu  sou  individual  atinge  o  seu  perfeito  fim quando  realiza  a  sua  liberdade  de  harmonia  no  eu  sou  infinito. Então  ele  é  seu  mukti,  sua  libertação  da  escravidão  de  maya,  da aparência que brota da avidya, da ignorância; a sua emancipação reside no cantam, çivam advaitam, no perfeito repouso na verdade, na perfeita atividade na bondade, e na perfeita união no amor. (Sadhana; pp. 74­75; grifo nosso) 

Importante  assinalar  que  maya  surge  pelo  sentido  de  dualidade,  quando  o homem se desenraiza do infinito, aí surge o ego. No entanto, quando a dualidade é superada pelo acolhimento do paradoxo o que surge é a personalidade, morada da Suprema Personalidade. 

A perfeição, na concepção de Tagore, não está na infalibilidade humana, mas na realização da liberdade do eu sou individual em harmonia com o eu sou infinito. O eu sou imortal que se revela no mundo através do eu sou humano. Vemos que ele  nos  ensina  que  o  desenraizamento,  forma  epidêmica  de  adoecimento  do  ser humano  na  atualidade,  não  só  acontece  no  registro  ético‐cultural,  mas  também pela dessacralização da condição humana. 

A aparência de dualidade é decorrente da limitação do Poder de Deus com o fim de  possibilitar  a  criação.  A  separação  reside  apenas  na  aparência.  O  próprio Criador estabelece limites a fim de que sua onipotência não destrua o jogo da vida. O  ato  de  criação  é  um  movimento  de  kenosis,  ou  seja,  Deus  se  esvazia  de  sua plenitude  a  fim  de  tornar  a  criação  possível.  A  compreensão  desse  ponto  é fundamental, pois, embora a criação seja a dança de alegria da Divindade, nela está também  contida  a  dor  do  sacrifício  decorrente  da  separação  de  Deus  de  sua 

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plenitude. A criação move‐se em um ritmo de alegria celebrativa, ao mesmo tempo em  que  sofre  pelo  anseio  de  sua  fonte.  Recoloca‐se  nesse  ponto  o  registro  do paradoxo na compreensão da relação entre Deus‐Natureza‐Homem. Vejamos como Tagore vê a separação e a dor no mundo: 

A dor da separação invade o 

mundo e faz nascer inumeráveis formas no 

céu infinito. 

A tristeza da separação espia de 

estrela em estrela no silêncio da noite, e 

torna­se poética entre as folhas que 

farfalham na sombra chuvosa de julho. 

Essa dor transbordante se aprofunda 

em amores e desejos, em sofrimentos e 

alegrias, e penetra os lares humanos. É ela 

que sempre se dissolve e reflui em canções, 

através do meu coração de poeta.. 

(Gitanjali, poema 84) 

A dor está presente também na alegria. Por outro lado, a alegria de Deus está em submeter‐se  às  leis  que  estabeleceu  a  si mesmo.  Enquanto,  a  alegria  do  homem está em transfigurar o que aí está e revelar a face do divino na água, na terra e em tudo que nos  cerca. É uma alegria que nasce da alma em dor pelo anseio de  seu criador.  Nesta  transfiguração  do  que  aí está  naquilo  que  realmente é,  o  homem participa da obra do Criador. 

Assim como a natureza se acha separada de Deus por meio dos limites da lei,  também  são  os  limites  do  egoísmo  que  separam  o  eu  em  relação  a Deus.  Ele  voluntariamente  colocou  limites  para  sua  vontade,  e  deu­nos domínio sobre o nosso pequeno mundo. É como um pai que entrega a seu filho uma quantia dentro do limite no qual o filho é livre para fazer o que desejar.  ...Assim, o amor de Deus, a partir do qual o nosso eu  tomou forma, tornou­o separado de Deus; e é o amor de Deus que de novo 

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estabelece uma reconciliação e une Deus com o nosso eu através da separação. (Sadhana; p.76; grifo nosso) 

A  vontade  para  Tagore  é  fruto  do  amor  e  para  se  realizar  verdadeiramente, precisa que a vontade do outro seja  livre também. Nesta dimensão, a harmonia é casamento de liberdade e liberdade. O encontro exige um sim de ambas as partes. Vemos então que a relação do homem com Deus e do Criador com o homem é de amor. Tagore afasta‐se, dessa forma, de qualquer outra concepção teológica que vê a  relação  do  homem  com  Deus  pelo  vértice  da  submissão. Deus  e homem  são amantes  e  sua  câmara nupcial  é a Natureza! Vejamos  como  essa  perspectiva comparece na prática do acompanhamento terapêutico:  

Na primavera de 1996 acompanhei José a um parque. Sentamos em um banco, enquanto  ele  fumava  um  cigarro,  conversamos  entrecortadamente.  Mais  tarde, sugeriu que pegássemos um ônibus para passear – percurso que já havíamos feito nas duas semanas anteriores – e eu  insisti que naquele dia passeássemos por ali mesmo. Falei da primavera: as flores, o verde claro das folhas jovens, o movimento do  povo  pelo  parque.  Resolvemos  caminhar  um  pouco  pelo  fluxo  de  pessoas correndo,  pedalando,  exercitando‐se;  crianças  brincando,  patinando  e  jogando bola; mães com seus bebês; pombos voando, marrecos e patos agrupados à beira do  lago;  algumas  garças  e  biguás  buscando  o  de‐comer;  sabiás  e  bem‐te‐vis  em coro  pelas  árvores...uma  verdadeira  explosão  de  vida!  Em  um  determinado momento,  José me pediu  para  que  fôssemos  ao  hospital‐dia  para  ele  tomar  uma injeção.  

­ Por que você quer tomar injeção? 

­ Porque é bom. 

Pela  convivência  com  José  ao  longo  dos  anos,  observei  que  apesar  de  sua medicação  não  ser  feita  por meio  de  injeções,  às  vezes,  quando  ele  estava mais angustiado ou experienciando sentimentos que não conseguia dar contornos, pedia aplicações de injeção. Além disso, os passeios ao parque sempre tinham um certo padrão:  inicialmente  recusa  e  tentativa  de  ir  embora  que  se  transformavam  em satisfação  com  toda  a  experiência.  Resolvi  compartilhar  com  ele  a  maneira  que estava vivendo aquele momento: 

­ Isso que estamos vivendo aqui é uma verdadeira  injeção de vida. Estar passeando aqui com você, batendo papo, vendo as pessoas se exercitando, as crianças brincando, os pássaros cantando, as flores, o verde­primavera das  árvores,  o  lago...me  deixa  emocionado.  Todas  essas  coisas  juntas tocam o coração. 

Não me lembro qual foi sua resposta, mas o pedido de uma injeção desapareceu andamos  um  pouco  mais  e  nos  sentamos  em  um  banco  com  vista  para  o  lago. 

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Conversamos  sobre  assuntos  variados.  Entretanto,  o  que  mais  me  chamou  a atenção foi um comentário solto que fez na hora de partirmos: 

­ Nossa! Hoje valeu, viu?! 

Percebi  que  nossa  experiência  havia  sido  bastante  significativa  e  o  fato  de compartilhar aquilo que eu estava sentindo ajudou‐o a dar um contorno simbólico para as suas vivencias. Algo bastante diferente de lidar com a situação através de uma injeção. 

A travessia humana se consuma no mergulho incessante no universal que brota a cada  instante no perfeito casamento de beleza e  força. O eu abre‐se para o seu devir, em metamorfoses contínuas, em um vôo saudoso e contínuo em direção ao Ser  Supremo.  O  eu  estancado  no  apego  ao  tempo  pelo  temor  da  vertigem  da metamorfose encontra a esclerose da dualidade e se perde nos véus de maya. 

Vemos em todo  lugar o  jogo da vida e da morte – essa transmutação do velho no novo. O dia vem a nós a cada manhã, nu e branco, fresco como uma flor. Mas sabemos que ele é velho, que ele é a própria idade. É aquele longínquo dia que tomou a terra recém­nascida em seus braços, cobriu­a com seu branco manto de luz, e a enviou para a sua peregrinação entre as estrelas. (Sadhana; p 77) 

Compartilhamos  o  destino  da  terra.  Somos  peregrinos  através  das  idades  do tempo,  que  a  cada  dia  se  apresenta  a  nós  como  novo,  mas  traz  em  seu  seio  a antiguidade da origem – novo paradoxo. A verdade é saudação que o dia nos traz abrindo no horizonte o envelope com o amuleto de ouro da eternidade anunciando com a mensagem de amor do criador sempre fresca, jovem e antigo como o ‘Ancião dos Dias’. 

A dança da criação é uma dança de renascimentos e mortes em ciclos contínuos e  rítmicos. Contraponto entre o  “desaparecimento” do  ser no abismo  infinito e o seu renascer no orvalho de cada manhã. O ciclo dos dias e dos anos espelha a dança cósmica, na qual o homem participa em mortes e renascimentos. A cada dia, a cada aurora  a  vida  celebra  a  alegria  da  ressurreição  da  face  do  divino  que  sorri  no horizonte  do  mundo.  No  reencontro  de  cada  manhã  o  coração  do  mestre  se derrama em melodias de luz, flores e orvalhos. 

A vida é abundante e caprichosa, eternamente gerando o novo no seio do velho, a vida no berço da morte. A juventude da vida demanda a morte e o renascimento a cada  instante  de  vida.  O  paradoxo  é  envelhecer  para  reencontrar  a  juventude ontológica. O homem é contínua metamorfose e devir. Em seu envelhecer sopra a juventude eterna – o novo, que a cada dia acolhe o ser humano em seu despertar. Vida: perene renovação e ressurreição. Temos aqui a apresentação de um tipo de temporalidade cíclica, aparentada ao modo de ser humano. 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias  (Orgs.). A Unicidade  do Conhecimento.  Évora: Universidade de Évora.  

 

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Nossa vida, como um rio, bate a suas margens não para  ficar encerrada dentro delas, mas para perceber de novo a cada momento que possui a sua inesgotável saída para o mar. É como um poema que compassa o seu metro  a  cada  passo  não  para  ser  silenciado  por  seus  rígidos regulamentos,  mas  para  a  cada  momento  dar  expressão  à  liberdade interior da sua harmonia. (Sadhana; pp. 78­79) 

O infinito é para ser vivido no coração e não na pele que é a marca da separação e  do  amor  do  ser  humano  em  relação  ao  Ser  Supremo.  Ter  o  infinito  na  pele  é querer fechar‐se no egoísmo do tudo‐em‐si.  

Rabindranath dá  contorno poético  à  sua  consciência da pulsação do universal no  coração  de  todas  as  coisas.  Podemos  aqui  observar  as  núpcias  acontecendo entre  Criador  e  criatura  no  leito  da  Natureza.  O  amor  do  poeta  não  acontece somente  em  relação  ao próximo, mas  em  relação  à  terra,  ao  céu,  à Natureza. No mundo  ocidental,  freqüentemente  encontramos  formulações  nas  quais  a  ética acontece entre o ser humano e o rosto do outro humano (Levinas, 1991). Tagore nos  lembra  que  “A  Face”  está,  não  só,  nos  outros  seres  humanos,  mas  em  toda criação. 

O arranjo das estrelas pode ser explicado na sala de aula por diagramas, mas a poesia das estrelas está no encontro silencioso de alma com alma, na confluência do claro e do escuro, onde o infinito imprime seu beijo na fronte do  finito,  onde nós podemos  ouvir a música do Grande  ‘EU  SOU’ produzida  no  grande  órgão  da  criação  por  meio  de  suas  incontáveis flautas  em  harmonia  infinita. É  perfeitamente  evidente  que  o mundo  é movimento.  (a  palavra  em  sânscrito  para  o mundo  significa  ‘o  que  se move’). (Personality, p.59)  

A  relação  ética  com  a  Natureza  não  pode  ser  pautada  pelas  medidas matemáticas científicas, mas pela poesia. Poesia aqui é ética! É olhar poético que revela o dharma do homem e da Natureza. Entre ambos “A Face” se revela e o amor movido  pela  dor  originária  encontra  um  momento  de  celebração.  O  mundo  é movimento realizando a eterna sinfonia do Maestro/Compositor. 

Qual  a  possibilidade  de  olharmos  o mundo,  a  natureza  e  tudo  que  nos  rodeia com uma visão espiritual que nos revela a verdade total? Esta verdade nada mais é do que o descortinar da unidade que tudo permeia. O mundo visto como oferta de mensagens de amizade, pelo olhar poético do homem, revela a verdade ontológica das coisas. Tagore propõe aqui uma  forma de conhecimento do real, da verdade. Este vértice nos remete àquela compreensão védica de natureza humana habitada pelos  dois  pássaros:  um  ocupado  em  comer  e  encontrar  alimento,  enquanto  o outro,  apenas  contemplando  a  beleza  do  mundo.  Penso  que  esta  perspectiva encontra ressonância quando Fernando Pessoa nos adverte que navegar é preciso, viver não é preciso; ou quando Guimarães Rosa diz que é preciso ter um olho na via e outro na poesia.  

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias  (Orgs.). A Unicidade  do Conhecimento.  Évora: Universidade de Évora. 

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A realização plena de nossa humanidade implica na união com Deus por meio da qual percebemos a perfeita harmonia na unidade Deus‐Natureza‐Homem. 

Para  Tagore  o  universo  é  portador  de  uma  mensagem  que  parte  de  uma personalidade  que  se  preocupa  em  nos  dar  alegria  e  não  apenas  informações.  Encontra‐se  aqui  um  contraponto  com  a  visão  tradicional  da  ciência. Diferentemente  de  outras  perspectivas,  esse  toque  mágico  que  revela  a personalidade,  não  é  passível  de  ser  decomposto  e  analisado.  Trata‐se  de  uma experiência que precisa ser sentida. O mundo não pode, eticamente, ser conhecido apenas  pela  razão  e  suas  medidas,  mas,  fundamentalmente,  pelo  coração  e  sua poesia. 

A mera  informação dos  fatos, a mera descoberta do poder, pertence ao exterior e não à alma  interna das coisas. A alegria é o único critério de verdade, e nós sabemos quando tocamos a Verdade pela música que Ela nos dá, pela alegria da saudação que ela envia à verdade em nós. Como eu disse  anteriormente,  não  é  com  as  ondas  etéricas  que  nós  recebemos nossa luz: a manhã não espera que algum cientista a apresente a nós. Da mesma maneira, nós tocamos a realidade infinita, imediatamente, dentro de nós,  somente quando nós  recebemos a  verdade pura do amor ou da bondade, não com a explicação de teólogos, não com a discussão erudita das  doutrinas  sobre  a  ética.  (Lectures  and  addresses;  pp.  15­16;  grifo nosso) 

O  poeta  assinala  que  a  experiência  da  verdade  não  é  do  domínio  do conhecimento  e  da  erudição.  A  escolástica  jamais  poderá  fazer  da  Verdade  uma refém, seqüestrando‐a do mundo. O único critério para a verdade é a alegria que ela  desperta  em  nossos  corações,  pois  ela  é  palco  de  um  encontro  fundamental entre  a  Personalidade  Suprema  e  a  personalidade  humana.  A  verdade  não  é encontrada  pela  coerência  e  articulação  de  nossas  idéias,  ela  é  descoberta  na experiência amorosa de encontro com os outros humanos e com a Natureza. 

A  lei  é  o  primeiro  passo  em  direção  à  liberdade;  a  beleza  é  a  total libertação,  alicerçada  no  pedestal  da  lei.  A  beleza  harmoniza  em  si mesma o limite e o além, a lei e a liberdade. (Sadhana; p. 84) 

A  beleza,  a  experiência  estética  revela  a  face  do  Infinito  na  finitude.  Ela  se encontra entre a plenitude e o limite – lugar da criação. Ela torna a inflexibilidade da lei em direção amorosa. 

Na esfera da natureza a flor leva consigo um certificado que a recomenda como  possuindo  uma  imensa  capacidade  de  realizar  um  trabalho  útil, mas ela traz uma carta de apresentação diferente quando bate à porta do nosso  coração. A  beleza  torna­se  então  a  sua  qualidade  única.... A  flor, portanto, não  tem apenas uma  função na natureza, mas  também outra grande função, que ela exerce na mente humana. E qual é essa função? Na 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias  (Orgs.). A Unicidade  do Conhecimento.  Évora: Universidade de Évora.  

 

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natureza o  trabalho dela é de uma  serva que deve aparecer em  tempos determinados, mas no coração do homem ela chega como mensageira do Rei.... (Sadhana; pp. 86­87; grifo nosso) 

A flor para a nossa mente racional carrega uma série de informações, mas para o coração humano ela é mensageira do Amante e  traz, da parte dele, uma carta de amor. O homem, dessa forma, em seu coração tem o dom litúrgico de dar aos entes naturais  o  dom  da  sacralidade.  Assim  sendo  o  homem  é  chamado  a  revelar  a realidade do mundo, ação que só acontece no diálogo em amizade e em alegria com o criador. 

Poderíamos  ilustrar  estes  aspectos  que  estamos  discutindo  a  partir  do  que  o artista  plástico  Frans  Krajcberg  relata  como  seu  segundo  nascimento  e  os desdobramentos  que  essa  experiência  teve  em  sua  vida  e  na  vida  de  outras pessoas. A despeito da posição do artista que, certamente, recusaria esta noção de alegria. 

Krajcberg nasceu em uma família judia na cidade polonesa de Kozienice. Sofreu  na  pele  toda  a  discriminação  por  sua  origem  judaica.  Após  a invasão  da  Polônia  pelos  nazistas  alistou­se  no  exército  russo  para combater  os  alemães. Porém,  foi  afastado  da  frente  de  batalha  por  ter adoecido.  Cursou  Engenharia  e  Belas  Artes  em  Leningrado  (atual  São Petersburgo­Rússia).  Participou  nas  batalhas  que  culminaram  com  a queda de Berlim anos mais tarde, agora ao lado do exército polonês. Com o término da guerra decidiu voltar para sua cidade natal. As atrocidades que havia presenciado  fizeram com que ele perdesse  toda crença no ser humano. Quando chega à sua cidade, ele relata: 

...  fui  em  casa  e  bati  na  porta.  Uma  senhora  abriu.  Tudo  estava  como antes. Só que minha família não estava lá. Meus pais e irmãos morreram em  campos  de  concentração  ou  desapareceram.  A  seguir  a  senhora começou a me xingar de uma maneira horrível, por eu ser judeu. Em vez de pegar um  revólver  e dar um  tiro nela,  comecei a  chorar....  (Caderno Mais! da Folha de São Paulo, de 10 de fevereiro de 2002, p.16) 

Foi o ápice do desalojamento e a descrença no ser humano se aprofundou ainda mais.  Perdido  e  sem  rumo,  mas  determinado  a  nunca  mais  colocar  os  pés  na Polônia,  passou  um  tempo  na  Alemanha.  Depois  partiu  para  a  França  com  uma carta  de  recomendação.  Por  fim Marc  Chagall2  o  acolhe  em  sua  casa  por  quatro meses: 

Um  dia  o  dono  de  uma  agência  [de  viagens]  foi  jantar  lá.  O  dono  da agência disse que podia me arrumar uma viagem para o Brasil. Eu nem sabia  direito  onde  era  o  Brasil.  Respondi  que  qualquer  lugar  me servia...cheguei ao Rio. Sem dinheiro, sem  falar português, sem conhecer 

2 Marc Chagall (1887‐1985), pintor de origem russa radicado na França. 

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ninguém. Dormia  na  Praia  de  Botafogo. Não  agüentava  a miséria.  Fui para São Paulo de trem, clandestino. (op.cit., p.17) 

Em São Paulo empregou‐se no Museu de Arte Moderna. Tempos depois, mudou‐se para o Paraná, agora empregado como engenheiro. Certo dia, caminhando pela mata local, viveu uma experiência que transformou sua vida: deparou‐se com uma flor de orquídea. Sua beleza e delicadeza o impactaram. Renasceu por meio da flor, renasceu  no  seio  da  mata.  Em  suas  próprias  palavras,  viveu  seu  segundo nascimento. 

Com  o  passar  do  tempo  dedicou‐se,  exclusivamente,  às  artes  plásticas.  Seu trabalho ganhou reconhecimento  tanto no Brasil quanto no exterior. Não é de se estranhar  que  sua  arte  seja,  profundamente,  ligada  à  natureza.  Por meio  de  seu trabalho busca denunciar a necessidade de preservarmos e cuidarmos da natureza. Para  ele  a  destruição  dos  recursos  naturais  e  das  matas  é  equivalente  ao holocausto  e  a  uma  guerra.  São  facetas  de  um  mesmo  fenômeno.  Com  o reconhecimento  de  seu  trabalho,  os  meios  de  comunicação  têm  apresentado reportagens a seu respeito. 

Há alguns anos atrás uma revista de circulação nacional publicou uma matéria sobre uma série de suas criações a partir de troncos e galhos de árvores marcados pelo fogo, recolhidos de áreas que sofreram queimadas.  

Em  um  presídio  feminino  na  Bahia,  uma  detenta  condenada  por  assassinato, folheava  a  revista  e  interessou‐se  pela  matéria  sobre  Krajcberg  e  sua  obra. Encantou‐se  com seu  trabalho,  feliz por  saber que existia uma pessoa no mundo capaz  de  transformar  em  arte  um  pedaço  de  madeira  queimada  supostamente estragado e sem utilidade. Ela sabia que sua vida tinha se queimado, virado carvão e que não teria mais saída. Presa naquela situação desoladora em que vivia, ficou contente  em  saber  dessa  possibilidade no mundo.  Escreveu uma  carta  ao  artista plástico contando sua história e como se sentiu ao saber de seu trabalho. Esta carta chegou às mãos do destinatário. Entre as centenas de cartas que costuma receber, esta tocou‐o em particular: guardou‐a. 

Cumprindo  um  ritual  que  se  repetia  há  alguns  anos,  de  comemorar  seu aniversário,  em  um  Café  de  Paris,  com  um  jovem  amigo  brasileiro,  nascido  no mesmo  dia;  Kajcberg  durante  a  celebração  passou  a  carta  ao  amigo.  Este  ficou impressionado  e por  ser diretor de  cinema, disse  imediatamente:  “Eu vou  filmar isto!” 

Walter Salles Jr3, o amigo, decidiu fazer um documentário sobre Socorro Nobre, a  presidiária.  Diferentemente  dos  outros  documentários  que  já  havia  realizado, este  foi  filmado  sem  roteiro,  sem  distanciamentos  em  relação  ao  objeto  do documentário.  Foi  com  sua  equipe  de  trabalho  e  seus  equipamentos  para  o 

3 Walter Salles Jr, dirigiu filmes como Central do Brasil e Abril despedaçado entre outros. 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias  (Orgs.). A Unicidade  do Conhecimento.  Évora: Universidade de Évora.  

 

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presídio. Por cerca de vinte minutos ele nos apresenta os protagonistas: Socorro, Krajcberg e o  encontro entre  eles.  Segundo Frans,  a  experiência do mergulho no Documentário  transforma  seu  amigo.  Durante  todo  este  processo  foi amadurecendo  no  diretor  a  concepção  de  um  filme  realizado  alguns  anos  mais tarde, que se chamou Central do Brasil. O filme conta a história de uma escrevedora de cartas inescrupulosa e desonesta que, gradualmente, se transforma no encontro com um menino órfão na cidade do Rio de Janeiro. Vale lembrar que esta mulher, movida pela ganância, vendeu o garoto para traficantes de órgãos de crianças, mas depois,  arrependida,  o  resgata.  Após  o  resgate  a  dupla  empreende  uma  jornada pelo  sertão  do  nordeste  brasileiro  em  busca  do  pai  do  garoto.  Aliás,  uma  das ocupações de Socorro Nobre na penitenciária era escrever cartas para as detentas analfabetas.  Ela  participou  do  filme:  a  primeira mulher  a  ditar  uma  carta  para  a escrevedora.  Fenômeno  de  saneamento  da  alma  humana  por meio  da  arte  e  do gesto do outro. 

Estas histórias marcadas por tragédias que se transformam pelo encontro com uma  flor  de  orquídea,  pelo  encantamento  com  uma  obra  de  arte,  pelo  encontro significativo  com  um  outro  humano,  revelam  uma  dimensão  do  acontecimento humano apontado pelo escritor russo Fiodor Dostoievsky: 

Beleza salvará o mundo! 

Para  o  poeta  o  encontro  entre  Ciência  e  Religião  é  benéfico  para  ambos  os campos  de  experiência  e  conhecimento.  Como  temos  observado,  Tagore  nunca perde uma visão crítica das duas. 

Mencionei em relação à minha experiência pessoal algumas canções que tinha  ouvido,  inúmeras  vezes,  dos  cantores  andarilhos  das  vilas, pertencentes a uma seita popular de Bengala, chamados Baüls, que não têm  nenhuma  imagem,  templos,  escrituras,  ou  cerimoniais.  Eles declaram em suas canções a divindade do Homem, e expressam por ele  um  intenso  sentimento  do  amor.  Vindo  de  homens  não­sofisticados, vivendo uma vida  simples na obscuridade, dá­nos um indício ao significado interno de todas as religiões. Pois sugere que estas religiões nunca são sobre um Deus de força cósmica, mas sim, sobre o Deus de personalidade humana. 

Ao mesmo  tempo  deve­se  admitir  que mesmo  o  aspecto  impessoal  da verdade  tratado  pela  Ciência  pertence  ao  universo  humano.  Mas  os homens da Ciência dizem­nos que a verdade, ao contrário da beleza e da bondade,  é  independente  de  nossa  consciência.  Explicam­nos  como  a crença de que a  verdade não  é  independente da mente humana  é uma crença mística,  natural  ao  homem, mas  ao mesmo  tempo  inexplicável. Mas não poderia a explicação ser esta, que a verdade  ideal não depende da mente individual do homem, mas da mente universal que compreende o indivíduo? Pois dizer que a verdade, como nós a vemos, existe aparte da 

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humanidade é realmente contradizer a própria ciência; porque a ciência pode  somente  organizar  em  conceitos  racionais  aqueles  fatos  que  o homem é capaz de conhecer e compreender, e a lógica é uma maquinaria de pensar criada pelo homem mecânico. (The Religion of Man; pp. 87­89, grifo nosso) 

A dimensão humana é o denominador comum entre Ciência e Religião. O infinito é a própria medida do homem e do mundo. A concepção de uma verdade impessoal não  pode  ser  aceita  por  Tagore.  Em  sua  perspectiva,  a  visão  da  verdade  é fenômeno humano, uma das faces da relação entre o Homem e o homem. 

Neste aspecto havia uma divergência entre Einstein e Tagore: 

Em  1930,  conversando  com  Albert  Einstein  na  Alemanha,  Tagore  lhe disse:  ‘Este  mundo  é  um  mundo  humano  –  a  visão  científica  dele  é também  aquela  do  homem  científico’.  Embora  Einstein  não  tenha concordado, alguns distintos cientistas vêem agora a posição de Tagore. Um deles, Ilya Prigogine, um  laureado com o Nobel de Química, afirmou em  1984:  ‘Curiosamente  o  bastante,  a  atual  evolução  da  ciência  está caminhando  no  sentido  indicado  pelo  grande  Poeta  Indiano’. (Dutta&Robinson, 1996; p.14) 

A ARTE COMO O OUTRO DA CIÊNCIA

O poeta ocupou‐se,  principalmente  em  suas  conferências,  com a  relação  entre arte e ciência. 

Vimos  como o homem primitivo  estava ocupado  com  suas necessidades físicas,  e assim  restringiram­se ao presente que  é  o  limite de  tempo do animal;  e  ele  perdeu  o  impulso  de  sua  consciência  em  procurar  sua emancipação em um mundo de valor humano final. 

A civilização moderna pela mesma razão parece voltar­se para  trás em direção a essa mentalidade primitiva. Nossas necessidades  furiosamente se multiplicaram tão rápido que perdemos nosso lazer para a realização mais  profunda  de  nosso  self  e  de  nossa  fé  nele.  Isto  significa  que perdemos nossa religião, o anseio pelo toque do divino no homem, o construtor do céu, o criador de música, o  sonhador de  sonhos.  Isto tornou mais  fácil  estilhaçar nossa  fé na perfeição do  ideal humano,  em sua  totalidade,  como  o  significado  mais  completo  de  realidade.  Sem dúvida  é  maravilhoso  que  a  música  contém  um  fato  que  tem  sido analisado e medido, e representa aquilo que a música tem de comum com o  zurrar  de  um  burro  ou  de  uma  buzina  de  carro. Mas  é  ainda mais maravilhoso que a música tem uma verdade, que não pode ser analisada em frações; e lá a diferença entre ela e a impertinência gritante da buzina 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias  (Orgs.). A Unicidade  do Conhecimento.  Évora: Universidade de Évora.  

 

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do  carro  é  infinita.  Os  homens  de  nossas  épocas  analisaram  a  mente humana,  seus  sonhos,  suas aspirações espirituais,  ­­ na maior parte das vezes  capturada  desapercebida  no  estado  estilhaçado  da  loucura,  da doença e de  sonhos  fragmentados – e descobriram, para  sua  satisfação, que  estes  são  compostos  de  animalidades  elementares  amarradas  em vários nós. Esta pode ser uma descoberta importante; mas o que é ainda mais  importante  de  realizar  é  o  fato  de  que,  por  algum  milagre  da criação, o homem transcende infinitamente as partes componentes de seu próprio caráter. (The Religion of Man; pp. 143­145, grifo nosso)  

A Ciência desenvolve‐se fundamentalmente por meio do emprego da análise dos fatos,  dissecando‐os  e  objetificando‐os  a  fim  de  conhecer  seus  componentes  e descobrir  a  lei  que  os  rege.  Como  o  poeta  afirmou  anteriormente,  o  homem também precisa ser conhecido por meio da Ciência. Porém não podemos perder de vista o milagre da criação que faz com que os elementos que compõem o homem, sua personalidade e o mundo transcendem suas partes. Nos dias atuais o cientista tem  tido  um papel  de  destaque  na  sociedade, mas  o  poeta  nos  chama  a  atenção para  o  toque  do  divino  no  homem  que  vem  a  ser  a  religião  do  artista.  Assim  a presença  da  arte,  em  um  mundo  organizado  pelos  princípios  da  técnica  e  da objetividade, traz ao homem a memória do necessário à sua natureza, e do anseio que habita o seu ser. 

Suponha  que  algum  explorador  psicológico  suspeite  que  a  devoção  do homem à sua amada funda­se no anseio do nosso estômago primitivo pela carne humana, não necessitamos contradizê­lo; pois o que quer possa ser sua  genealogia,  sua  composição  secreta,  o  caráter  completo  de  nosso amor,  na  sua  combinação  perfeita  das  associações  físicas,  mentais  e espirituais,  é  única  em  sua  total  diferença  do  canibalismo.  A  verdade subjacente  à  possibilidade  de  tais  transmutações  é  a  verdade  de nossa religião. Um  lótus  tem em comum com um pedaço de carniça os elementos do carbono e do hidrogênio. Em um estado de dissolução não há  nenhuma  diferença  entre  eles,  mas  em  um  estado  de  criação  a diferença é imensa; e é essa diferença que realmente importa. Nos dizem que  alguns  de  nossos  sentimentos  mais  sagrados  guardam  escondido neles  instintos  contrários  ao  que  estes  sentimentos  professam  ser.  Tais revelações  têm  o  efeito  sobre  determinadas  pessoas  de  alívio  de  uma tensão, até mesmo como o relaxamento na morte do incessante desgaste da vida. (The Religion of Man; pp. 143­145, grifo nosso) 

Essas  considerações  nos  permitem  afirmar  que  a  Arte  e  a  Religião  são,  não somente,  o  Outro  da  Ciência,  mas  também  da  Psicologia  e  da  Psicanálise.  Para conhecermos  verdadeiramente  algo  precisamos  encontrá‐lo  em  seu  estado  de criação  e  não  de  decomposição.  É  aqui  que  cada  coisa,  cada  ser  é  mensagem poética, lembrando ao homem o destino de sua viajem.  

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias  (Orgs.). A Unicidade  do Conhecimento.  Évora: Universidade de Évora. 

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Encontramos na literatura moderna algo como uma gargalhada de uma exultante  desilusão  que  está  se  tornando  contagiosa,  e  os  cavaleiros errantes  do  culto  incendiário  estão  à  solta,  ateando  o  fogo  a  nossos altares sagrados de adoração, proclamando que as imagens consagradas neles, mesmo que belas, são feitas de barro. Dizem que se descobriu que as aparências  no  idealismo  humano  são  enganadoras,  que  a  lama subjacente  é  real.  De  tal  ponto  da  vista,  o  todo  da  criação  pode  ser compreendido como uma decepção gigantesca, e os bilhões de partículas elétricas  pululantes  que  têm  a  aparência  de  ‘você’  ou  ‘eu’  devem  ser condenados como portadores de falsa evidência. (The Religion of Man; pp. 143­145) 

Penso  que  Tagore  esteja  criticando  uma  atitude  do  homem  moderno  que impregnou  todas  as  áreas  de  expressão  e  conhecimento  humano,  com  uma perspectiva objetiva e realista que abole o sonho e a poesia do mundo, levando o homem a um tipo de adoecimento grave: a doença da alma. 

Mas quem  eles procuram  enganar?  Se  for  seres  como nós que possuem algum critério inato do real, então para eles estas mesmas aparências em sua  integridade  devem  representar  realidade,  e  não  suas  partículas elétricas componentes. Para eles a rosa deve  ser mais  satisfatória como um objeto do que seus gases constituintes, que podem ser torturados para depor  contra  a  identidade  evidente  da  rosa.  A  rosa,  assim  como  o sentimento humano de bondade, ou o ideal de beleza, pertencem ao reino  da  criação,  em  que  todos  os  seus  elementos  rebeldes  estão reconciliados em uma harmonia perfeita. Porque estes elementos em sua  simplicidade  se  rendem  ao  nosso  escrutínio,  nós  em  nosso  orgulho somos inclinados a dar­lhes os melhores prêmios como atores nesta peça­mistério,  a  rosa.  Realmente,  tal  análise  está  dando  somente  um prêmio à nossa própria habilidade detetivesca. (The Religion of Man; pp. 143­145, grifo nosso) 

Infelizmente,  nossa  cultura  tem  entronizado  este  aspecto  detetivesco provocando  enormes  sangrias  em  tudo  que  há  de  mais  precioso  no  tesouro  da humanidade.  O  reino  da  criação  tem  sido  aviltado  continuamente.  Trata‐se  da impossibilidade  de  o  homem  atual  deter‐se  frente  ao  mistério  da  criação,  que devolve  o  homem  à  sua  origem.  A  arte  é  fundamental  como  contraponto  à disciplina  científica, pois assim as descobertas dessa última encontram seu  lugar apropriado na grande música do Homem. 

Neste sentido a intervenção por meio do Acompanhamento Terapêutico, por se dar no cotidiano de uma pessoa,  favorece o encontro sujeito‐sujeito, acolhendo o tempo  da  experiência  constitutiva.  O  vértice  artístico,  neste  trabalho  presente através  da  literatura,  permite  que  se  possa  articular  e  refletir  sobre  o  acontecer humano preservando os fundamentos de seu ethos. 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias  (Orgs.). A Unicidade  do Conhecimento.  Évora: Universidade de Évora.  

 

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