ações socioeducativas saberes e práticas formação dos operadores

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Janaina de Fatima Silva Abdalla Saturnina Pereira da Silva (ORGANIZADORES) AÇÕES SOCIOEDUCATIVAS SABERES E PRÁTICAS FORMAÇÃO DOS OPERADORES DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 1ª Edição Rio de Janeiro 2013

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Janaina de Fatima Silva AbdallaSaturnina Pereira da Silva

(ORGANIZADORES)

AÇÕES SOCIOEDUCATIVAS SABERES E PRÁTICAS

FORMAÇÃO DOS OPERADORES DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

1ª Edição

Rio de Janeiro2013

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©Janaina de Fátima Silva Abdalla Direitos desta edição adquiridos pelo DEGASE. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em siste-ma de banco de dados ou processo sim-ilar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e /ou autor

Janaina de Fátima Silva AbdallaElionaldo Fernandes Julião Soraya Sampaio VirgílioAlexandre de Moraes Lessa Christiane Mota ZeitouneRoberto Bassan Peixoto

Conselho Editorial

Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira Paula Verneck Vargens Alexandre de Moraes Lessa Tania Mara Trindade Gonçalves

Comissão Científica

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Janaina de Fatima Silva AbdallaSaturnina Pereira da Silva

(ORGANIZADORES)

AÇÕES SOCIOEDUCATIVAS SABERES E PRÁTICAS

FORMAÇÃO DOS OPERADORES DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

1ª Edição

Rio de Janeiro2013

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Diretor-GeralDepartamento Geral de Ações Socioeducativas

DEGASE

Diretora da Escola de Gestão Socioeduca-tiva Professor Paulo Freire

Assessora da Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso

Janaina de Fátima Silva Abdalla

Saturnina Pereira da Silva

Alexandre Azevedo de Jesus

Wilson Risolia Rodriues

Angélica Goulart

Maria do Rosário Nunes

Dilma Rousseff

Secretário de Estado de Educação

Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente

Ministra de Estado Chefe Secretaria de Direitos Humanos

Presidenta da República

Cláudio Augusto Vieira da SilvaCoordenador-Geral Programa de Implementação do Sistema

Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE

Sérgio de Oliveira Cabral Santos Governador do Estado do Rio de Janeiro

Capa Fernando Diaz

Diagramação Gabriela Costa

Revisão Thiago Pinheiro

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Ações Socioeducativas Saberes e Práticas Formação dos Operadores do Sistema

Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro

Janaina de Fátima Silva AbdallaSaturnina Pereira da Silva

Organizadores

Curso Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro

Bianca Veloso Coordenadora Pedagógica

Assessoria às MedidasSocioeducativas e ao Egresso -

AMSEG

AssessoraSaturnina Pereira da Silva

Equipe TécnicaDulcinéia Seabra de OliveiraFatima Dias Alves Tremura

Maria Stela de AraujoHilton Luiz Machado Serra Vera Lúcia da Silva Durão

Daniel Oighenstein Loureiro

Escola de GestãoSocioeducativa Paulo Freire –ESGSE

DiretoraJanaina de Fatima Silva Abdalla

Equipe TécnicaAndréa Cristina de Castro GamadanoBianca Ribeiro VelosoMaria Beatriz Barra de Avelar Pereira Tania Mara Trindade GonçalvesMarizélia Barbosa

Apoio Técnico Administrativo

Érica Peixoto FerreiraLuciana Cassia Costa da Silva Santos Mirian Maria da Fonseca Marcos Aurélio Pinto de Andrade

Estagiários

Thaisa Ambrósio Pinto Thaysa de Castro Bonfim Ivonete Guimarães LimaSamantha dos Santos Lidiane de Oliveira BragaEdgar Alves Pacheco

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Agradecimentos

Este livro é resultado de um esforço cooperativo e interativo.Agradecemos, inicialmente, ao Sr. Alexandre Azevedo

de Jesus, Diretor-Geral do DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), que, além de acreditar plenamente na realização deste trabalho, nos possibilitou ampla liberdade em todas as etapas da organização e execução do Curso de Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro que deu origem a esta publicação.

A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da Republica, tem sido uma parceira importante do Novo DEGASE, ao longo do último quinquênio e, desta maneira, dirigimos nossos agradecimentos a seu coordenador do SINASE Sr. Claudio Augusto. O seu apoio às atividades de planejamento e execução da política de formação realizada pela Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire e Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso – AMSEG do Novo DEGASE tem sido decisivo.

No Novo DEGASE , os aportes da direção da Assessoria de Sistematização Institucional- ASIST, Soraya Sampaio e Gabriela , juntamente com a Coordenação Administrativa e Financeira -COAFI, Sr. Wilson Richard e Maurício Gomes Teixeira, foram essenciais na definição e desenvolvimento do projeto que deu origem a este livro. Este agradecimento se estende, também, a todos os profissionais e técnicos, do Novo DEGASE que, de diferentes formas, têm interagido com nossa equipe.

A nossos parceiros professores, mediadores e cursistas do Curso de Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, pela oportunidade de trabalharmos e aprendermos juntos e por suas valiosas e inspiradoras contribuições como autores deste livro. Além de dominarem conhecimentos sobre conceitos e metodologia de atendimento socioeducativo, as contribuições registradas neste livro demonstram o comprometimento com as ações socioeducativas na direção transformadora da doutrina da proteção integral da infância e juventude brasileira.

Janaina de Fátima Silva Abdalla e Saturnina Pereira da Silva

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Sumário

Apresentação

As Ações De Formação Continuada Do Curso Dos Operadores Do Sistema Socioeducativo Do Estado Do Rio De Janeiro: Concepção E Estrutura Pedagógica.Bianca VelosoMarizélia Barbosa

Parte I Saberes, infância e juventudes

Reflexões Sobre A Juventude Em Conflito Com A Lei: A Infância, A Adolescência E A Família Como Uma Construção Social E HistóricaChristiane Mota ZeitouneElis Regina Castro LopesMurilo Peixoto Da Mota

InfânciasoMarginalizadas,oAdolescentes Criminalizados?Virginia Georg Schindhelm

O Adolescente No Sistema Socioeducativo: Uma Reflexão A Partir Da PsicanáliseErimaldo Matias Nicacio

Violência Doméstica e Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes na Contemporaneidade: Um Processo de Judicialização da Questão Social?Paula da Silva Caldas

Adolescentes E Medida Socioeducativa: Discursos em questãoAndreia Gomes Da Cruz Janaína de Fátima Silva AbdallaSharon Varjão Will

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Parte II Políticas e Socioeducação

O Sistema De Garantia Dos Direitos Da Criança E Do Adolescente E O Departamento Geral De Ações Socioeducativas Do Estado Do Rio De Janeiro Equipe Assessoria Às Medidas Socioeducativas E Ao Egresso – AMSEG

O Adolescente, A Sociedade Dos Direitos E O Trabalhador Social: Aonde Vai Dar Tudo Isso?Heloisa MesquitaAnália Barbosa

Panorama Histórico Da Atenção À Criança No BrasilJoão Carlos De Paula

Notas Criminológicas Sobre Juventude E Controle SocialRoberta Duboc Pedrinha

A Mediação E O Sistema SocioeducativoFlávia GalloGlória Mosquéra

Parte III Ações socioeducativas : práxis

Violência,oDrogas,oEducaçãooEoInstituição Socioeducativa A Adolescentes Em Conflito Com A Lei: Uma Experiência Em ConstruçãoJanaina De Fátima Silva AbdallaSoraya Sampaio Vergilio

Papo Aberto: Uma Proposta E Experiência De IntervençãoCláudia Da Silva RodriguesJuana Dos Anjos Cunha Louzada

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Famílias E Escola Como Dimensões Possíveis Na (Re)Construção Da Cidadania Do Adolescente/Jovem Em Conflito Com A LeiAna Maria Vasconcelos MoreiraFabiana Ferreira Braga

Os Desafios Para A Efetivação Do Sinase No Centro De Referência Especializado De Assistência Social – CREASMaurizete Da Silva ArrudaJanine Duarte FernandesRenaud Brazileiro Nogueira Da Silva

O Sancionatório E O Pedagógico Nas Medidas Socioeducativas: Reflexões À Luz Do Pensamento De Erving Goffman E Michel FoucaultLeonardo Possidonio Domingos Pedro De Oliveira Ramos Junior

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Desde 2007, com a reestruturação do Novo DEGASE, a Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, responsável pela formação dos operadores do sistema socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro vem realizando diversos cursos em parceria com universidades, instituições públicas e privadas, promovendo conhecimentos nas diversas áreas que demandam a problemática do atendimento socioeducativo, possibilitando a reflexão e mudanças nas práticas institucionais. Tais ações foram implementadas com o apoio da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Inicialmente, através da realização da Pesquisa Perfil das Relações Humanas Institucionais do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, possibilitando o mapeamento das medidas socioeducativas no Estado, e com o Convênio 076/2007 para Formação de Operadores do Sistema Socioeducativo Estadual. Este ultima, possibilitou a formação continuada de servidores do DEGASE e dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social - CREAS repercutindo na articulação e construção de redes para a municipalização das medidas em meio aberto do Estado do Rio de Janeiro.

Atualmente é possível perceber as mudanças ocorridas através de alguns indicadores de desempenho, dentre eles, a participação mais efetiva e consciente dos servidores do Sistema Socioeducativo Estadual nos processos sociopedagógicos que permeiam a execução e acompanhamento das medidas socioeducativas e na promoção da garantia de direitos, processos estes que foram explicitados no Plano de Atendimento Socioeducativo do Governo do Estado do Rio de Janeiro - PASE - Decreto N°42.715 de 23 de novembro de 2010 e na finalização do Plano Pedagógico Institucional - Novo DEGASE.

Na medida em que se amplia a possibilidade de debate, reflexão, conscientização da realidade vivenciada, outras demandas são geradas, surgindo à necessidade de ações pedagógicas contínuas e aprimoradas para a melhor direção do atendimento, necessitando constantemente ser renovado e

Apresentação

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adequado às necessidades reais do período histórico, político e social.Cônscios da responsabilidade e da competência atribuída,

a política de formação do Novo DEGASE, em 2011, através da Secretaria de Estado de Educação/ DEGASE firma novo convênios com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República SDH/PR – (Convênio 756784/2011) visando a execução do Curso de Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro

A União e os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênios ou contratos entre os entes federados. (art. 39, CF/88)

Este curso envolveu cerca de 600 (seiscentos) profissionais que atuam diretamente e indiretamente com as medidas socioeducativas de restrição e privação de liberdade do DEGASE e em medidas em meio aberto dos- CREAS e 36 (trinta e seis) municípios. Atuaram diretamente 22 (vinte e dois) profissionais do DEGASE, pertencentes à Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso – AMSEG e à Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire – ESGSE. Participaram do processo de elaboração e execução do curso, cerca de 40 (quarenta) professores-pesquisadores de universidades federais, estaduais e privadas e 10 (dez) mediadores na gestão pedagógica dos polos de extensão descentralizados nos municípios de Macaé, Teresópolis, Nova Iguaçu, Niterói, Belford Roxo, Volta Redonda e na Capital, este ultimo, nos bairros da Ilha do Governador e Bangu. Em termos qualitativos de política pública, esse eixo de intervenção representou um considerável avanço à humanização do atendimento aos adolescentes e suas famílias, nos princípios legais e éticos.

Acreditamos que a formação dos profissionais socioeducativos garante uma abordagem crítica e reflexiva acerca

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da natureza da atividade socioeducativa, bem como mudança de mentalidade e do olhar para o sistema, saindo dos moldes cristalizados de coerção para uma mudança de paradigmas onde o atendimento realizado se traduza em reinserção do adolescente em conflito com a lei.

Cabe ressaltar que o processo de formação vem fomentar a necessidade da implementação e expansão de uma rede de serviços. Entendendo a incompletude institucional, faz-se mister destacar que as ações supracitadas encontram-se respaldadas na Constituição Federal e no SINASE.

Os programas de atendimento que executam a internação provisória e as medidas socioeducativas deverão buscar profissionais qualificados para o desempenho das funções utilizando critérios definidos para seleção e contratação de pessoal, entre eles a análise de currículo, provas escritas de conhecimento e entrevista. Deve ainda oportunizar e oferecer formação e capacitação continuada específica para o trabalho socioeducativo em serviço. (item 6.2.5, SINASE)

Assegurar a implementação de ações e políticas que atendam às exigências de formação continuada e capacitação em serviço é um desafio a ser superado cotidianamente. Assim, na formação dos operadores socioeducativos proposto pelo curso buscou-se a articulação das parcerias institucionais prevista pela incompletude institucional e profissional do Sistema Socioeducativo Estadual. Sistema que se traduz por rede, conjunto, tendo como foco o atendimento socioeducativo ao adolescente.

A formação continuada dos atores sociais envolvidos no atendimento socioeducativo e fundamental para a evolução e aperfeiçoamento de práticas sociais ainda muito marcadas por condutas assistencialistas e repressoras. Ademais, a periódica discussão, elaboração interna e coletiva dos vários aspectos que cercam a vida dos adolescentes, bem como o estabelecimento de formas de superação dos entraves que se colocam na pratica socioeducativa exigem capacitação técnica e humana permanente e continua considerando, sobretudo o conteúdo relacionado aos direitos humanos.

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A capacitação e a atualização continuada sobre a temática “Criança e Adolescente” devem ser fomentadas em todas as esferas de governo e pelos três Poderes, em especial as equipes dos programas de atendimento socioeducativo, de órgãos responsáveis pelas políticas publicas e sociais que tenham interface com o SINASE, especialmente a política de saúde, de educação, esporte, cultura e lazer, e de segurança publica. (SINASE)

O objetivo deste livro é contribuir para a humanização do atendimento aos adolescentes envolvidos em atos ilícito a partir de pesquisas, experiências e saberes produzidos pelos professores, coordenadores, mediadores, gestores e cursistas durante o Curso de Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro.

Acreditamos que a formação continuada dos operadores do sistema possa contribuir em sua qualificação e permitir mudanças de paradigmas, a fim de garantir a formação plena do adolescente, autor de ato infracional, o seu exercício de cidadania e a sua qualificação para o trabalho (Alexandre de Azevedo Jesus, 2010,p :8)

Este livro está organizado em três partes precedidas por um artigo explicitando a estrutura pedagógica do curso e a política de formação da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire.

Esta organização tem como referência três temáticas que de articulam: “Saberes , infância e juventudes ”, “Políticas e Socioeducação” e “Ações socioeducativas : práxis ”, procurando situar o debate e as formas recentes encontradas pelas políticas públicas para o atendimento socioeducativo na esfera nacional e estadual.

Na Parte I “Saberes, infância e juventudes”, apresenta-se cinco artigos, de diferentes enfoques teóricos e conceituais, propõem a problematização, reflexão e análise do processo de construção histórica e social da infância e “das juventudes”, que repercute do processo de subjetivação dos adolescentes envolvidos em atos ilícitos: vítimas e vitimadores da violência na atualidade.

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Na Parte II “Políticas e Socioeducação” composta por quatro artigos, procura-se apresentar o contexto das políticas públicas no atendimento aos adolescentes autores de atos infracionais e a interface com os saberes e práxis de seus operadores. Nesse desdobramento, expõem-se e analisam-se os instrumentos legais, normativos e as práticas nos arranjos da execução das políticas públicas do Sistema Socioeducativo.

Na Parte III “Ações socioeducativas” dedica-se a reflexão da execução das medidas socioeducativas no interior de suas instituições, a cotidianidade do saber-fazer da socioeducação, através de cinco artigos, os quais nos convidam a debater e analisar os discursos, as redes de poder-saber , a construção de redes institucionais, a gestão e as ações socioeducativas cotidianas no atendimento aos adolescentes e suas famílias.

Esta publicação reafirma o compromisso do Novo DEGASE/ SDH- PR no investimento na formação dos profissionais que atuam no atendimento ao adolescente e suas famílias.

Enfim, eis um convite a que todos corroborem para construção de um Sistema Socioeducativo mais humanitário, onde todos sejam sujeito de direito e solidários.

Janaina de Fátima Silva Abdalla

Saturnina Pereira da Silva

Rio de Janeiro, novembro de 2013

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As ações de formação continuada do Curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro:

concepção e estrutura pedagógica

Bianca Veloso1

Marizélia Barbosa2

Transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é

amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador.

Paulo Freire

Introdução

O curso de formação para os Operadores do Sistema de Atendimento Socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei objetivou promover a formação continuada dos profissionais que atuam tanto com as medidas em meio aberto quanto com as restritivas e privativas de liberdade no estado do Rio de Janeiro, para o domínio efetivo dos fundamentos teóricos e metodológicos da prática socioeducativa, em conformidade com o SINASE.

O curso teve a duração de seis meses com carga horária total de 215 horas. Foi destinado aos profissionais com escolaridade mínima equivalente ao Ensino Médio, atuantes de forma direta ou indireta no atendimento socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei.

O currículo se estruturou por módulos ministrados às terças-feiras, às quartas-feiras e às quintas-feiras, das 8h30min às 17h30min, em dez turmas descentralizadas e distribuídas em dez polos pela Capital e pelo Estado do Rio de Janeiro, divididos em dois eixos: o primeiro com início em novembro de 2012 e o segundo, em março de 2013.1 Divisão Técnico Pedagógica da ESGSE/Novo DEGASE2 Divisão Técnico Pedagógica da ESGSE/Novo DEGASE

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Concepção pedagógica

A Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, responsável pela execução do curso dos operadores do sistema socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, foi criada em 31 de Agosto de 2001 com o nome “Escola Socioeducativa”. Em 2008, com a alteração da Estrutura Organizacional do DEGASE, passou a ser denominada “Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire-ESGSE”.

Partimos da concepção de escola como instituição histórico-social, inserida na sociedade e, por isso, determinada por um constructo social e, ao mesmo tempo, reprodutora das contradições nela existentes.

Sendo a escola uma instituição social, faz-se necessário que seus projetos de formação sejam elaborados levando em consideração alguns elementos importantes para a manutenção de práticas educativas democráticas. Dessa forma, elencamos alguns elementos que consideramos fundamentais na construção de ações de formação tendo em vista um viés humano: a promoção dos sujeitos que compõem a escola como agentes de intervenção efetiva nas ações por ela promovidas; a democratização do planejamento das atividades de formação; a sistematização do conhecimento produzido pelo processo de formação e a valorização dos saberes e das práticas advindas dos sujeitos que participam desse processo.

As ações de formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo consideraram todos os aspectos supracitados, reafirmando a ideia que defende o trabalho como atividade humana e educativa. O trabalho como atividade humana difere do trabalho como se apresenta no contexto atual de produção, dividido, fragmentado, incompleto e alienado. Como apontou Manacorda (2010), o trabalho no seu sentido genérico se manifesta como atividade vital de reprodução da condição de existência do ser humano.

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Nesse sentido, o trabalho é práxis. Estas categorias – trabalho e práxis – foram objetos de estudo de incansáveis teóricos no campo da sociologia do trabalho, esclarecendo que não é nosso objetivo apresentar as complexas formulações e significações que envolvem essas categorias, mas elucidar, a partir dessas definições, algumas questões sobre as ações de formação em voga.

“É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento.” (MARX, 1991, p.12) Apesar de o pensamento se antecipar à prática, esses estão completamente interligados. Sendo assim, teoria e prática são indissociáveis e interdependentes. “A ação humana no trabalho pressupõe sempre uma intencionalidade, um certo grau de racionalidade e o intercâmbio com os outros seres sociais.” (NEVES, 2008, p.21)

O trabalho histórico-econômico caracteriza-se, no contexto do capitalismo, como produtor de bens materiais que satisfazem as necessidades humanas. Nessa tendência, ocorre a coisificação das relações, em que tudo se torna mercadoria. Assim, a educação para o trabalho e no trabalho segue essa visão. A educação se tornou algo comprável e vendível. Em detrimento dessa concepção que reduz o caráter humano da educação ao caráter mercadológico, consideramos uma concepção ampliada de educação e de formação para o trabalho.

Nesse sentido, as ações de formação promovidas pela Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, em especial as desenvolvidas pelo curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo, visam à valorização de espaços formativos crítico-reflexivos, onde o processo de ensino-aprendizagem aconteça de forma dialógica, a partir da abordagem histórico-social do sujeito, das instituições de privação de liberdade, das medidas de atendimento socioeducativo e do próprio adolescente em conflito com a lei.

Para tanto, estruturou-se o currículo do curso em dez módulos: a) Infância, Adolescência, Família e Sociedade; b)

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Marco Legal, Políticas Públicas e Sistema de Garantia de Direitos da Criança e Educação em Direitos Humanos e PNDH-3 do Adolescente; c) Instrumentos Legais, Normativos do SINASE, PNDH-3 e PNEDH; d) Socioeducação e Responsabilização: Natureza e Dupla Face da Medida Socioeducativa entre o Sancionatório ao Pedagógico; e) Socioeducação: Práticas e Metodologias de Atendimento em Meio Aberto; f) Socioeducação: Práticas e Metodologias de Atendimento em Meio Fechado; g) Plano Individual de Atendimento; h) Gestão e Financiamento do Sistema Socioeducativo; i) Programas de Justiça Restaurativa; j) Parâmetros Socioeducativos – Segurança.

Como estratégia para sistematização do conteúdo lecionado aos alunos, adotou-se um instrumento avaliativo de caráter processual, ou seja, os alunos, ao longo do módulo, foram estimulados à construção de textos a partir das leituras propostas pelos docentes. Como estratégia de avaliação, adotou-se a apresentação oral, pelos grupos discentes, dos trabalhos por eles elaborados.

Dessa forma, distanciamos nossas ações de formação continuada das ideias pragmáticas, pontuais, descontextualizadas, positivistas e tecnicistas de educação. Aproximamo-nos da acepção de formação continuada destinada a adultos trabalhadores decorrente das correntes críticas3 da educação brasileira.

Estrutura pedagógica

A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições

de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.

BRASIL, 1996.

3 Dentre elas, a Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, e a Pedagogia histó-rico-crítica, de Dermeval Saviani

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Acreditamos na ideia do trabalho coletivo. Nesse sentido, adotamos, durante todo o processo de construção das ementas, dinâmicas de trabalho que reunissem a equipe técnica e a equipe docente, conformando, assim, um trabalho mais democrático.

Os professores foram convidados a participar desse projeto, partindo de critérios de seleção elaborados pela coordenação do curso, como de análise das suas experiências profissionais e da formação acadêmica desses. Foi adotado, também, o critério de referência, convidando professores renomados por seus trabalhos nas temáticas ministradas em cada módulo. Um grupo de professores está ligado às Universidades, aos Centros Acadêmicos, às Instituições parceiras; e outro grupo, aos setores da Secretaria Estadual de Assistência Social, aos locais onde se realiza amplo trabalho na área da socioeducação. Teve-se sempre a preocupação de convidar professores gabaritados não só no âmbito da titulação, mas também no âmbito da experiência profissional, para que se alcançassem de forma mais efetiva os objetivos traçados em cada módulo.

As ementas foram construídas a partir da intervenção dos professores, que assumiram um papel importante nesse processo, para além do trabalho técnico, mas também do trabalho pedagógico, de pensar as aulas de forma didática, com a elaboração de material de estudo e de projeção, assim como a pesquisa de filmes e vídeos escolhidos de acordo com os objetivos de cada conteúdo.

Os conteúdos foram escolhidos pelos professores de cada módulo, tendo em vista a ementa e as visões teóricas trazidas pelo corpo docente, a fim de construir um processo que culminasse nas aulas e nas relações pós-aulas, processo que se inicia quando findam as aulas, momento em que os alunos tiveram a oportunidade de ter acesso ao material disponibilizado pelo professor para estudo pessoal.

A metodologia proposta para as aulas considerou a centralidade da construção do conhecimento, a partir de

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análises sócio-históricas da sociedade com relação aos objetos de conhecimento analisados em cada módulo.

As aulas assumiram um formato didático basicamente formado por aulas expositivas, dinâmicas em grupo, estudos de caso, leituras individuais, apresentações projetadas, exibição de vídeos e filmes e debates. Foram realizadas reuniões periódicas, em um primeiro momento, com a coordenação pedagógica do curso e, em segundo momento, entre os próprios professores.

O projeto previu avaliações formais, com a pretensão de classificação em aprovação ou reprovação a partir do parâmetro da média no valor de 7,0 (sete) pontos. Entretanto, sabe-se que a avaliação não deve assumir um sentido classificatório, quantitativo e pontual, mas um sentido formativo e processual e, nesse sentido, a partir das discussões realizadas entre a coordenação pedagógica e os professores, elaboraram-se avaliações como mais um espaço de reflexão e construção de conhecimento crítico frente às temáticas e às questões apresentadas pelos módulos. Portanto, apesar de as avaliações culminarem em valores que determinariam a aprovação ou reprovação do cursista, usou-se esse espaço como parte integrante do processo de construção do conhecimento.

O trabalho técnico-pedagógico desenvolvido pela ESGSE articulou-se ao trabalho técnico-administrativo executado ao longo dos cursos. A gestão da frequência e da entrega de trabalhos elaborados pelos alunos foi essencial para auxiliar o acompanhamento organizacional e pedagógico dos alunos. Consonante com o projeto que originou o curso, a frequência mínima para aprovação foi de 75% do total da carga horária e a média mínima para aprovação no módulo, de 7,0 (sete) pontos.

O curso foi dividido em dois eixos: o primeiro descentralizado em quatro turmas (duas na Ilha do Governador, uma em Bangu e uma em Belford Roxo); o segundo em seis turmas (Ilha do Governador, Macaé, Niterói, Volta Redonda, Nova Iguaçu e Teresópolis).

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O primeiro eixo foi destinado aos servidores do DEGASE lotados em unidades da capital; e o segundo eixo, destinado aos servidores dos CREAS e CRIAADS. As turmas do segundo eixo possuíram alguns servidores do DEGASE, assim como servidores de Conselhos Tutelares, Tribunais e demais entidades que trabalham com os adolescentes em conflito com a lei.

No polo localizado na cidade do Rio de Janeiro, participaram os seguintes CREAS: João Manoel, Arlindo Rodrigues, Stella Mares, SMDS, Wanda Engel, Padre Guilherme, Capital, Janete Clair, Adaiza Sposati, Nelson Carneiro, Simone de Beauvior, Márcia Lopes, CSIRS 10ª CAS, Adaiza Sposati, Zilda Arns, João Hélio, Daniela Perez. No polo de Niterói, Itaboraí, Niterói, S.P. da Aldeia, São Gonçalo, Magé, Maricá, Saquarema, 5ª Creas/RJ. No polo de Macaé, Campos dos Goytacazes, Macaé, Quissamã, Depto. Proteção Social Rio das Ostras, Conselho Tutelar de Macaé, Cabo Frio. No polo de Volta Redonda, Levy Gasparian, Resende, Paraíba do Sul, Porto Real, Miguel Pereira, Barra Mansa, A. dos Reis, Valença, Volta Redonda. No polo de Nova Iguaçú, Itaguaí, Nilópolis, Japeri, Paracambi, Mesquita, São João de Meriti, Queimados, B. Roxo P. Amorim, Seropédica, B. Roxo-S. Amélia, SEMAS-Nova Iguaçu, SMAS-Duque de Caxias. E, no polo Teresópolis, Nova Friburgo, Três Rios, Teresópolis, Guapimirim, T.J.R.J, MP Teresópolis.

Na capital e em Nova Iguaçú, não houve a participação de nenhum CRIAAD. Em Niterói, participaram os CRIAADS da Ilha e de Niterói. Em Macaé, Macaé e Campos. Em Volta Redonda, V. Redonda, Barra Mansa. Em Teresópolis: Nova Friburgo, Teresópolis.

No Eixo I, o dos CRIAADS participantes, temos a seguinte divisão: CRIAAD Ilha (no polo da ESGSE e do professor Antônio Carlos Gomes da Costa), o CRIAAD Nova Iguaçú (no polo do Cai Belford Roxo) e o CRIAAD Bangu (no polo do ESE).

Podemos apontar que a execução do curso apreendeu o entendimento de que todos os atores nele envolvidos, em certa

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medida, são educadores ao mesmo tempo em que são educandos. Sendo assim, a formação continuada dos servidores foi vista como um dos caminhos para que o DEGASE cumprisse sua missão de garantir os direitos fundamentais dos adolescentes em conflito com a lei que cumprem medidas socioeducativas e/ou protetivas no Sistema.

Conclusão

Compartilhando as experiências e percepções obtidas nesse processo, podemos concluir que esse trabalho nos levou a refletir sobre a nossa própria práxis, buscando compreender como os diferentes temas abordados no curso para os operadores do Sistema Socioeducativo dariam base para as reflexões sobre o trabalho nesse sistema.

A ideia de que o DEGASE e cada servidor sozinhos não podem dar conta de todas as demandas que chegam através dos adolescentes atravessou todos os módulos. Os diferentes temas apontaram para o trabalho em rede, para a necessidade do fortalecimento da rede interna e para a ampliação da rede externa.

Foi predominante o pensamento de que é importante estreitar o diálogo com os diferentes setores do DEGASE. O curso, por congregar servidores dos diferentes setores e com variadas funções e formações, propiciou um espaço de desconstrução de mitos institucionais e de reafirmação de algumas parcerias.

Através de ações proativas – cursos, palestras, práticas de trabalho inclusivas, grupos de estudo e outros encaminhamentos –, o Novo DEGASE vem investindo na valoração de seus servidores. Temos ações objetivas que buscam a desconstrução de diferentes estigmas da figura do servidor. Estamos no processo, construindo novas práxis socioeducativas, em uma perspectiva crítico-emancipatória. Para isso, nossas finalidades de educação estão alinhadas às de formação humana, de maneira que os

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trabalhadores possam, alicerçados por ferramentas conceituais, teóricas e metodológicas, adquiridas ao longo do curso, atuar alinhados à prática socioeducativa.

Para Costa (2001), a formação plena do educando contribui para torná-lo autônomo, com competência para fazer análises de diferentes circunstâncias, de fazer escolhas, deixando-o apto a retornar à sociedade, sabendo distinguir o certo e o errado, sabendo dos seus direitos e também dos seus deveres, ou seja, tornando-o um cidadão.

O Novo DEGASE, como órgão de proteção integral aos adolescentes em conflito com a lei, tem caminhado firmemente em sua missão. Várias unidades têm investido em sua rede interna e externa, ampliando, assim, as possibilidades de sucesso às demandas apresentadas pelos adolescentes e seus familiares.

Os desafios continuam muitos, entre esses o de acompanhar o desenrolar dos diferentes casos quando o adolescente perde o vínculo formal com a instituição, assim como entender que a sua reestruturação visa ao adolescente que pretende formar.

As reflexões acima tentam organizar o panorama no qual está se dando o Curso para os Operadores do Sistema, buscando estratégias que facilitem a interlocução dos atores citados.

Os espaços ocupados pelos servidores do sistema socioeducativo ainda estão refletindo o desgaste na “qualidade” da comunicação dos diferentes sujeitos. Pequenos, mas importantes acordos podem ser feitos, necessitando-se para isso de disponibilidade para o “ouvir”.

A partir da execução do curso, algumas demandas advindas da implementação do curso a partir da sua descentralização começam a surgir, pedindo urgência em seus encaminhamentos. As atribuições da equipe, dentre outras, estiveram ligadas às escolhas dos melhores caminhos para a operacionalização do curso, ou seja, como fazê-lo acontecer da melhor forma possível.

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Desde as reuniões com os professores para o planejamento dos módulos até a elaboração das ferramentas de organização (inscrições, programas, matrícula, listagens para controle de frequências e notas e outros), sempre se buscou, dentro das nossas possibilidades, respeitar as diferenças dos atores envolvidos nessa organização, assim como considerar as suas capacidades e habilidades.

Alguns encaminhamentos foram necessários para que houvesse um processo coerente de trabalho, frente às diferenças supracitadas. As reuniões entre a equipe técnica aconteceram buscando um enfoque multidisciplinar, que não pretendeu criar uma “receita”, e sim agregar valores frente aos desafios propostos.

Muitas questões perpassaram o trabalho da equipe pedagógica, a valer: a) ofereceu-se uma estrutura facilitadora do processo de formação em serviço?; b) houve acesso aos materiais didáticos de forma adequada?; c) a dinâmica do curso foi bem compreendida pelos servidores?

Entendemos a tarefa socioeducativa como sendo de toda a sociedade, garantindo aos usuários dessas redes, os adolescentes em cumprimento de mediadas socioeducativas, um suporte que esteja disponível sempre que necessário. Dessa forma, verificamos que se faz cada vez mais necessária a promoção da formação continuada dos operadores do Sistema Socioeducativo, de forma a atingir o propósito da efetiva garantia dos direitos do adolescente em conflito com a lei e de aperfeiçoamento das práticas cotidianas.

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Referências bibliográficas

COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Aventura Pedagógica: Caminhos e Descaminhos de uma Ação Educativa. Belo Horizonte: Modus Faciendi, 2001.BRASIL. Lei n. 9.394 de 1996. Dispõe sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001.MARX, K. A ideologia alemã.. São Paulo: Hucitec, 1991.MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna. Campinas, SP: Editora Alínea, 2010.NEVES, Lúcia Maria Wanderley. O mercado do conhecimento e o conhecimento para o mercado: da formação para o trabalho complexo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: EPSJV, 2008.

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Parte I “Saberes, infância e juventudes”

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Reflexões sobre a juventude em conflito com a lei: a infância, a adolescência e a família como uma construção

social e histórica.

Christiane Mota Zeitoune4

Elis Regina Castro Lopes5

Murilo Peixoto da Mota 6

Resumo: O presente artigo busca refletir sobre a dimensão social que envolve os jovens em conflito com a lei, acentuando uma crítica à perspectiva da análise funcionalista sobre o crime e a criminalidade. Estão em discussão as ações e intervenções no âmbito das políticas públicas para a criança e o adolescente, a partir das aulas realizadas no Curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. Imerso em um campo teórico-metodológico da construção social, abre-se para um breve panorama social e histórico sobre as categorias infância, família e adolescência.

Palavras-chave: ato infracional; políticas públicas; criança; adolescente.

4 Psicóloga. Coordenadora de Saúde Integral e Reinserção Social do Departamento Geral de Ações Socioeducativas. Doutora em Teoria Psicanalítica – UFRJ. Mestre em Psicologia Clínica – PUC-RJ. Formação Psicanalítica. E-mail: [email protected] Psicóloga Clinica; Agente Socioeducativo do Departamento Geral de Ações Socioeducativas; Mestre em Políticas Públicas do adolescente em Conflito com a Lei/UNIBAN-SP. E-mail: [email protected] Sociólogo do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely de Sousa Almeida/UFRJ. Doutor em Serviço Social – ESS/UFRJ. Mestre em Saúde Pública – ENSP/FIOCRUZ. [email protected]

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Introdução

No decorrer do ano de 2012, a proposta de capacitar os profissionais do Departamento Geral de Ações Socioeducativas – DEGASE – foi vislumbrada como um desafio concreto para a equipe e consultores convidados. A ideia de um projeto planejado logo estaria em pauta nos comentários do cafezinho, na fila do almoço, nas conversas informais e reuniões institucionais, envolvendo estudiosos e pesquisadores, com expertise no campo de reflexões, que pudessem ampliar uma análise crítica sobre a clientela abordada, ou seja, jovens em conflito com a lei.

O que era um projeto de curso se evidenciou como uma realidade interventiva. O Curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo entraria em prática com amplos objetivos e desafios, principalmente o de possibilitar envolver o profissional técnico como um protagonista de suas ações, sem determinações de manuais ou regras impostas. Entrava em questão a efetivação de um debate crítico e frutífero sobre os amplos aspectos que envolvem o adolescente em conflito com a lei que aportasse uma reflexão metodológica, a fim de situar o educador nos amplos aspectos que a questão socioeducativa envolve.

Salienta-se a convicção de que o trabalho que o educador do DEGASE desenvolve origina-se no contexto da totalidade de sua vida, cujos temas infância, família e adolescência não são conceitos ignorados. Não seria trivial afirmar o fato de que não há quem não se emocione com as inúmeras questões sociais que afetam a clientela atendida pela Instituição. De todo modo, no âmago de todo o processo em discussão está a ampliação de habilidades já existentes na atividade profissional.

Nos debates sobre o conteúdo do curso, as categorias infância, família e adolescência logo vigoraram como discussão obrigatória, considerando que não se poderia falar de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas sem apreciar as

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abordagens teórico-metodológicas, que porventura esclareceriam o contexto político no qual tais sujeitos estão inseridos na sociedade, sob a ótica da integralidade.

Nesse sentido, este artigo apresenta uma breve discussão analítica sobre as três categorias centrais, que consideramos ampliar as análises sobre as ações e intervenções no âmbito das políticas públicas para a criança e o adolescente a partir da experiência do Curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro.

Uma breve reflexão crítica da análise funcionalista sobre a juventude em conflito com a lei

Estamos imbuídos em esclarecer as consequências da delinquência juvenil, suas dimensões sociais, os meios de enfrentá-la ou meramente controlá-la? Nessa questão, está explícita a preocupação de analisar os posicionamentos teóricos nos quais muitos de nós estamos inseridos sem ao menos nomeá-los; isso porque não existe pensamento neutro, ausente de reflexões anteriores nos quais se formam as bases da análise sobre os fatos sociais. Nesse sentido, há de se considerar certa hegemonia do pensamento funcionalista7 sobre as bases analíticas dos fenômenos relacionados ao crime.

Observa-se ampla tendência de se criminalizar a pobreza e individualizar a ação criminal no âmbito de um discurso, que assinala uma natureza moral para o ato criminoso. As argumentações realizadas no senso comum, construídas pela mídia em geral, pouco contextualizam o problema como um fato social. O que se percebe são panoramas simplistas, que não articulam a conjuntura das questões sociais e as contradições de um sistema econômico e político desigual, que não oferece ao

7 A corrente sociológica funcionalista foi introduzida por Émile Durheim e, posteriormente, por Talcott Parsons no contexto do positivismo.

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indivíduo oportunidades, acesso a políticas públicas no âmbito da promoção do bem-estar necessário para a vida digna em sociedade. Em consequência, o olhar para o crime está sempre voltado para o criminoso considerado naturalmente propenso a ser mal, cruel e que deve ser punido para o resto de sua vida por não estar apto à vida em sociedade.

Mesmo em um contexto de mudanças no campo do judiciário, em que se efetiva a “doutrina da proteção integral”, fundada com a executividade do Estatuto da Criança e do Adolescente, até certo ponto pode-se afirmar que ainda impera a perspectiva simbólica da “doutrina da situação irregular”, de caráter funcionalista. Há todo um sentido ideológico que norteia inúmeras ações e intervenções por parte do Estado contra a criminalidade. Essa análise pode ser exemplificada a partir das ideias que, volta e meia, entram em pauta na mídia e na agenda política, tais como: a redução da maioridade penal para os jovens infratores; a busca de resolutividade em torno do aumento do número de prisões; individualização da problemática do crime como argumentação que pauta certo problema da natureza violenta do criminoso. Tais questões são exemplos do quanto ainda temos uma análise funcional da delinquência acometida por jovens em nossa sociedade, cujo mecanismo interventivo tem como referência a “correção” normativa, certo exercício de vingança da sociedade, a fim de normalizar a engrenagem da máquina social e promover uma limpeza dos “maus elementos”.

A dimensão teórica funcionalista é hegemônica em muitas interpretações dos fenômenos sociais em nossa sociedade, cujas análises criam vieses equivocados, na medida em que sugere esquemas baseados em impulsos biológicos e define as consequências dos atos criminais como patológicas, nas quais certos indivíduos são vistos como portadores de falhas no seu desenvolvimento moral determinado por uma natureza comportamental. Em decorrência disso, a interpretação sobre o crime está reduzida a sua causa, cujas explicações levam a generalizações dos fatos sem estabelecer relações com outras

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variáveis sociais, como classe, etnia, gênero, geração, religião. Assim, uma proposta funcionalista para a socialização do sujeito considerado desviante ou criminoso por seu delito consistiria em impor certo adestramento, em que o indivíduo a ser normalizado é levado a interiorizar regras, valores, habilidades, atitudes e doutrinas implantadas mecanicamente sobre o que se pode entender como sendo uma atitude civilizada e sob a égide da moral burguesa, que prima pela manutenção do seu status quo.

No âmbito do funcionalismo, a hipótese comumente sugerida para as pesquisas sobre a delinquência juvenil consiste em provar que o enfraquecimento do controle social sobre aqueles indivíduos imersos na pobreza e alijados da sociedade de consumo é a verdadeira causa do fenômeno do crime; ou seja, a falta de controle pode se tornar um fator de risco e, nesse sentido, são os jovens mais desprovidos desse controle que se tornam delinquentes (DUBAR, 2007). Ademais, essa análise abre para certa generalização, isso é, a delinquência percebida como um atributo individual, com diferenciação entre dois tipos de jovens: um considerado “normal”, geralmente com característica branca, de camadas médias e bem integrado à sociedade, em detrimento daquele outro, que não quer estudar, trabalhar, que é perigoso, geralmente de aparência negra ou parda, que veste o estigma de delinquente e tira o maior proveito de sua situação delituosa. Ironicamente, não seria este percebido como em “situação irregular” da era do Código de Menores?

Para o olhar funcionalista, não entra em discussão a trajetória de vida da maioria dos indivíduos em nossa sociedade, que envolve a dimensão do trabalho infantil, desemprego, desigualdade econômica, violência simbólica estrutural, desestruturação familiar em meio à exclusão social. Tais aspectos são traços peculiares da relação capital/trabalho e exploração, avanço da carência de oportunidades a todos, frágil conteúdo educacional do ensino público, que não favorece ascensão social (SOARES, 2007).

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Considerando os ensinamentos de Pierre Bourdieu (2003), será preciso ir mais longe e decifrar os conflitos como expressões simbólicas, que não podem ser feitos a partir de padrões ou crivos preestabelecidos e soluções pela ótica do “olho por olho, dente por dente”. Será necessário perceber que os jovens que cometem atos infracionais o fazem atuando em um campo de poder, em que o “mundo do crime” é visto como marca de virilidade. Há de se relativizar o quanto as forças que muitos jovens dispõem em uma sociedade distintiva como a nossa, que impõe buscar a qualquer preço ser aceito e integrado socialmente em cujos ritos de passagens pelas gangues, muitas vezes, passam pela prática do delito (ZALUAR, 2004).

De todo modo, devemos reconhecer o fato de que todo indivíduo impulsiona sua experiência de vida sobre determinadas práticas e são responsáveis por elas. As ações individuais são relacionais e podem ser previsíveis ou inesperadas, mas certamente estão baseadas na trajetória de vida de cada um, em meio a estilos e identidades socialmente construídos. É importante considerar que esse ato infracional, que teve como consequência uma resposta jurídica, desempenha uma função na vida desse jovem e na sua relação com o outro, sendo importante recuperar a análise sobre o seu envolvimento nesse ato, a fim de tornar possível para ele responsabilizar-se por isso. No Brasil, é através do cumprimento da medida socioeducativa que o adolescente é convocado a responder pelo ato cometido. Só assim poderá responsabilizar-se por aquilo que lhe escapa e que aparece realizado em seu desvio com a lei.

O caráter sancionatório e pedagógico das medidas socioeducativas envolve um modelo de atendimento articulado ao sistema de garantia de direitos que visam à promoção da cidadania. A grande questão que se coloca aqui, para um olhar não funcional, será pensar as ações das instituições que desenvolvem programas de medidas socioeducativas privativa e restritiva de liberdade, que priorizam o resgate da cidadania do jovem em conflito com a lei. Busca-se, assim, ir além das estratégias

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coercitivas, punitivas e disciplinadoras muito em voga e que tanto disseminam a violência simbólica. Porém, qual é o objetivo de tais ações? Integrar, normalizar, doutrinar e adequar? Ou empoderar tais sujeitos como agentes de sua história e capazes de buscar em si mesmo novas saídas para o sentido da vida, como sujeitos detentores de capitais culturais, que possibilitam o exercício da civilidade?

Podemos analisar, à luz dos ensinamentos de Sigmund Freud (1930), que a ideia de civilização tem por objetivo moderar e limitar a vontade de gozo, por meio da formação dos ideais. Contudo, não estamos mais em uma época como a de Freud, quando os ideais e as ideologias estavam no zênite do social (MILLER, 2004). Estamos em uma época em que existem impasses; uma época em que as leis simbólicas, que regem os laços sociais, não têm tido consistência para assegurar as relações do sujeito com o outro, em função do declínio dos ideais. Consequentemente, estamos confrontados com certos tipos de comportamentos de jovens que colocam as ações dos educadores em xeque e nos desafiam a novas intervenções.

A sociedade quer punição, quer a retirada de todos aqueles que cometem atos de barbárie, mas o aprisionamento por si só seria suficiente para promover o sentido de civilidade? Entretanto, direcionar para o sentido de civilidade seria o interesse da sociedade? Ou interessaria mais puni-lo, encarcerá-lo e extirpá-lo da convivência como se o curasse um câncer social, como se promovesse uma limpeza, livrando-se de um indivíduo-problema em uma retomada retórica já vista pela “ideologia da situação irregular”?

O que se observa é que são amplas as questões que devem ser relativizadas, a fim de nortear as ações e intervenções com as medidas socioeducativas, mas sem perder de vista a égide da integralidade sobre o jovem em conflito com a lei.

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Infância e adolescência: uma construção social e histórica

Hoje, a ideia de infância e adolescência está amparada a partir de uma análise histórica e social, o que implica afirmar que é o resultado variável de um amplo processo social, político e econômico vivido ao longo de séculos. Nesse sentido, refuta-se qualquer perspectiva de se afirmar ser um fenômeno meramente determinado pela natureza, baseado em princípios hormonais e implicados por relações biocorporais no âmbito de uma faixa etária cronológica.

A análise sobre a infância como questão analítica em ciências sociais ganha visibilidade com a publicação do livro de Philippe Ariés, A história social da criança e da família (1981). Até então, poucos historiadores se manifestaram sobre o tema, aspecto que colocava o debate sobre a criança na sociedade como certa penumbra teórica e analítica ou como preocupação para as políticas públicas fora do cerco assistencialista. O próprio Ariès (1981) salientou que a falta de uma história da infância e o seu registro historiográfico tardio são um indício da incapacidade por parte do adulto de ver a criança em sua perspectiva histórica, para além de suas capacidades “naturais” vinculadas à idade.

Na sociedade brasileira, ao analisarmos o processo de construção social da infância desde o período colonial, é preciso considerar que o Brasil-colônia estava organizado entre casa grande e senzala, senhores e escravos. As crianças eram “crianças rapazes” à força. Gilberto Freyre (1983) fez questão de caracterizar esses homenzinhos obrigados a se comportarem como gente grande, salientando que a educação dos pequenos tinha o propósito de destruir toda a espontaneidade e alegria de quem ainda aprendia a viver em um sistema escravocrata. Esse autor destaca que, até os cinco anos, “os meninos de família andavam nus do mesmo modo que os moleques; mais tarde é que vinham as roupas pesadas e solenes distinguir os filhos-família dos moleques da senzala com as roupas de homem” (FREYRE, 1983, p. 412).

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Em 1808, a chegada e estadia da Família Real Portuguesa no Brasil foram um marco para aquele século. Logo foram inauguradas as Escolas Militares, a Escola de Direito e Medicina, a Biblioteca Real, o Jardim Botânico, a Imprensa. A assistência era feita pela Santa Casa de Misericórdia, onde foram instaladas, nos moldes de Portugal, as Rodas dos Expostos, primeiro modelo de acolhimento de recém-nascidos órfãos ou abandonados, seja por ser pobre seja por ser filho de uma mãe solteira. Pelos códigos morais da época, era impensável uma mulher mãe solteira. A uma gravidez ilegítima, fruto de uma relação fora do casamento, só restava a tentativa de se livrar do filho bastardo.

A Roda dos Expostos consistia em um mecanismo em forma de tambor com uma portinhola giratória, onde o bebê era colocado. Bastava tocar um sino e rodá-la para que alguém a pegasse do outro lado. Tal sistema mantinha o anonimato, uma vez que era construído de tal forma que aquele que colocava a criança não era visto por aquele que a recebia. Foram longos os usos desse dispositivo em nossa História, que datam de 1726 a 1950. Por quase um século e meio, a Roda de Expostos foi praticamente o único mecanismo de assistência à criança abandonada em todo o Brasil.

Em 1822, ocorre a proclamação da Independência e, em 1824, a primeira Constituição brasileira, que foi uma Constituição considerada liberal e moderna para a época. Em 1830, foi sancionado o primeiro Código Criminal no Brasil. O artigo de número 10 determinava que os menores de 14 anos não fossem julgados como criminosos (CARVALHO, 2010). Ademais, a lei do Ventre Livre teve uma importância estruturante para a época. Em seu primeiro artigo, salientava que: “Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre”. Qual é a nossa herança?

No contexto educacional, do Brasil-colônia à República Velha (1889 -1929), nenhuma mudança estrutural ocorreu em uma perspectiva de equidade para a qualidade de ensino entre a elite e as camadas populares. Na assistência, a infância pobre

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era vista como em situação irregular e desprovida de direitos. De todo modo, a década de 1920 foi marcada pelas transformações que consolidaram leis de assistência e proteção aos jovens como tutela e coerção do Estado. No entanto, a infância pobre era caracterizada como delinquente. Em 1927, promulga-se o Código de Menores, momento a partir do qual o Estado passa a se comprometer e intervir com políticas públicas.

A infância se transformava e a criança de pequenos adultos passava a ser um problema social em meio às inúmeras desigualdades sociais vividas, que a expunham em situação social irregular, sendo percebida como vagabunda, desocupada, baderneira, capoeira. Nesse sentido, passou a ser objeto de tutela assistencialista do Estado com vistas a inibir essa constante situação colocando-a fora das ruas e dentro das instituições penais em prol da disciplina, normalização social e controle da ordem.

A dimensão política, que passou a reconhecer as opiniões das crianças e adolescentes, seus desejos e limitações como um tema para o seu bem-estar, veio à tona com a promulgação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança em 1989. A partir de então, temos um marco importante, que acarretou mudanças na definição de infância e fortaleceu no Brasil a tese da doutrina da Proteção Integral.

A criança e o adolescente, reconhecidos como sujeitos na sua condição peculiar de desenvolvimento, passam a ter seus direitos fundamentais respeitados, dentre os quais: vida, saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária, o que lhes garante consentimentos e confidencialidade no mundo dos adultos, tal como determinado pela Constituição Federal de 1988 e normatizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

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Considerações finais

O que podemos alinhavar no âmbito deste debate são as inúmeras contradições políticas nas quais os temas infância, adolescência e família envolvem em nosso cotidiano, quais sejam: trabalho infantil, pobreza, exclusão social, desemprego, desigualdade social, violência estrutural, a arma como símbolo de virilidade, o sentido de transgressão pela criminalidade, acesso a oportunidades, baixa escolaridade, entre outros.

O que buscamos ressaltar, diante desta reflexão, são as contradições marcantes das questões sociais em voga, que culminam com a exclusão social, aspectos que elucidam a base dos indicadores da vulnerabilidade de todos os cidadãos, mas principalmente das crianças, dos adolescentes e das famílias de um modo geral. Em meio à ideia de questão social, há a análise da não naturalização dos problemas sociais. Essa perspectiva se apoia na apreciação política da estrutural desigualdade de direitos por parte de setores inteiros da sociedade (CASTELO, 2012).

A partir destas reflexões, reafirmamos a análise de que a dinâmica das desigualdades são construções e, como tais, requerem ser analisadas a partir de parâmetros metodológicos, éticos, críticos e transformadores, que rumam em direção ao exercício majoritário dos Direitos Humanos como uma prática. Para isso, acreditamos ser preciso que tenhamos senso crítico. Será obrigatório abrir mão de conceitos e preconceitos solidificados, para que possamos olhar para os jovens, principalmente aqueles que estão em cumprimento de medida socioeducativa, considerando-os inseridos nos âmbitos das questões sociais que trazem em suas trajetórias de vida, pois esses jovens não são os atos infracionais que cometeram.

O que entra em discussão neste debate é perceber a criança como sujeito de direito, que necessita de cuidados dos adultos e assistência do Estado. Porém, o adolescente de baixa renda ainda

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continua a ser percebido como um problema social, sob a ótica da doutrina da “situação irregular”, mesmo em meio ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que abre legalmente a perspectiva para sua a análise a partir da doutrina da “proteção integral”.

Enfim, houve um longo percurso histórico das instituições sociais, inclusive jurídicas e acadêmicas, para que os adultos das sociedades ocidentais reconhecessem, à criança, o estatuto de sujeito e a dignidade de pessoa com base no princípio das obrigações por parte da família, da comunidade e do Estado, mas não seremos nós a perder o rumo desta história.

As famílias: novos olhares

Pensar família, hoje, requer uma compreensão de famílias no sentido plural, que interpele novas reflexões para além do modelo “nuclear burguês”. Essa perspectiva possibilita analisar a diversidade de relações e arranjos existentes no âmbito das conjunções familiares contemporâneas. Haja vista que coexistimos com novas configurações familiares, não se pode pensar tal instituição fora do contexto mais amplo, que envolva o reconhecimento de modelos de coabitação diversos. Não se pode negar, nesse sentido, a influência da família na construção das identidades e estilos de vida dos sujeitos. Afirma-se o fato de que a família se transforma e se adéqua às mais diversas formas de influências sociais e culturais do mundo moderno (HINTZ, 2001).

Podemos conceituar a família como uma instituição na qual os membros se unem por vínculos de consanguinidade, afetividade e coabitação, sendo um espaço de proteção e socialização, mas também de coexistência de conflitos e violência. Nesse aspecto, será necessário compreender os mais diversos arranjos, que na atualidade se destacam como diferentes formas de expressão familiar, a saber: um núcleo familiar formado por pai, mãe e filhos, no qual o pai tradicionalmente detém maiores

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poderes simbólicos nas relações de gênero; as famílias extensas formadas por outros membros, como avós, tios e primos; a família monoparental, chefiadas por um pai ou uma mãe; as homoafetivas, formadas por casais homossexuais com ou sem crianças; reconstituídas, formadas por várias pessoas coabitando juntas, sem laços legais, mas com forte compromisso mútuo; entre outros modelos.

De todo modo, havemos de reconhecer que o grupo familiar irá exercer influência fundamental no desenvolvimento individual do sujeito, na constituição de suas identidades, seus gostos e estilos de vida, além de contribuir na formação de sua personalidade, seu comportamento e suas relações sociais estabelecidas fora e dentro do ambiente familiar. Há de se levar em conta, nesse contexto, as mudanças ocorridas na formação da família.

Com as transformações ocorridas a partir da segunda metade do século XX, quando a sociedade passou por grandes transformações, houve mudanças fundamentais no âmbito da vida pública e privada, caracterizadas pela ampla urbanização das cidades, pelos avanços tecnológicos, pela efetiva participação da mulher no mercado de trabalho, pelo aumento no número de separações e divórcios, pelo controle da natalidade como um mecanismo de escolha a partir dos métodos contraceptivos, entre outros.

O Censo de 2010 apontou novo perfil da família brasileira (IBGE 2010). Foi apresentado um declínio das uniões formais para as informais, um crescimento das famílias reconstituídas e das famílias monoparentais, em especial formadas por mulheres provedoras do lar. Na atualidade, o Brasil aumenta ainda mais as desigualdades sociais, acarretando algumas particularidades próprias de um sistema que sofre com a ausência de políticas públicas consistentes.

Como fruto de ampla mobilização popular, a Constituição Federal de 1988 fortalece a instituição familiar e deflagra ampla consolidação de políticas públicas, com os seguintes destaques: o Sistema Único de Assistência Social, que passou a apresentar como

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um de seus pilares norteadores a matricialidade sociofamiliar; e o Estatuto da Criança e do Adolescente – lei 8069/1990, na qual a família passa a vigorar com importância vital na construção da cidadania. Em decorrência, tem-se o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, que apresenta como uma de suas principais diretrizes a centralidade da família, a primazia da responsabilidade do Estado no fomento de políticas integradas de apoio e o reconhecimento das competências familiares na sua organização interna e na superação de dificuldades.

Em se tratando especificamente do adolescente-autor de ato infracional e sua família, o Sistema de Atendimento Socioeducativo – SINASE – reconhece a participação familiar como fundamental no processo socioeducativo, a fim de atingir os objetivos da medida socioeducativa aplicada.

Embora tenha sido descrito um aparato legal como forma de proteção à família, cabe ressaltar que a aprovação de leis e a existência dessas não são o suficiente para se garantir uma proteção real às famílias e a seus membros. As mudanças só ocorrem realmente a partir do momento em que as leis saem do papel e se transformam em políticas públicas em meio à consolidação de uma sociedade mais justa e igualitária.

Considerações finais

O que podemos alinhavar no âmbito deste debate são as inúmeras contradições políticas nas quais os temas infância, adolescência e família envolvem em nosso cotidiano, quais sejam: trabalho infantil, pobreza, exclusão social, desemprego, desigualdade social, violência estrutural, a arma como símbolo de virilidade, o sentido de transgressão pela criminalidade, acesso a oportunidades, baixa escolaridade, entre outros.

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O que buscamos ressaltar, diante desta reflexão, são as contradições marcantes das questões sociais em voga, que culminam com a exclusão social, aspectos que elucidam a base dos indicadores da vulnerabilidade de todos os cidadãos, mas principalmente das crianças, dos adolescentes e das famílias de um modo geral. Em meio à ideia de questão social, há a análise da não naturalização dos problemas sociais. Essa perspectiva se apoia na apreciação política da estrutural desigualdade de direitos por parte de setores inteiros da sociedade (CASTELO, 2012).

A partir destas reflexões, reafirmamos a análise de que a dinâmica das desigualdades são construções e, como tais, requerem ser analisadas a partir de parâmetros metodológicos, éticos, críticos e transformadores, que rumam em direção ao exercício majoritário dos Direitos Humanos como uma prática. Para isso, acreditamos ser preciso que tenhamos senso crítico. Será obrigatório abrir mão de conceitos e preconceitos solidificados, para que possamos olhar para os jovens, principalmente aqueles que estão em cumprimento de medida socioeducativa, considerando-os inseridos nos âmbitos das questões sociais que trazem em suas trajetórias de vida, pois esses jovens não são os atos infracionais que cometeram.

O que entra em discussão neste debate é perceber a criança como sujeito de direito, que necessita de cuidados dos adultos e assistência do Estado. Porém, o adolescente de baixa renda ainda continua a ser percebido como um problema social, sob a ótica da doutrina da “situação irregular”, mesmo em meio ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que abre legalmente a perspectiva para sua a análise a partir da doutrina da “proteção integral”.

Enfim, houve um longo percurso histórico das instituições sociais, inclusive jurídicas e acadêmicas, para que os adultos das sociedades ocidentais reconhecessem, à criança, o estatuto de sujeito e a dignidade de pessoa com base no princípio das obrigações por parte da família, da comunidade e do Estado, mas não seremos nós a perder o rumo desta história.

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Referências bibliográficas

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Infâncias marginalizadas , adolescentes criminalizados?

Virginia Georg Schindhelm8

Resumo: O artigo tem como foco os temas infância e adolescência em diálogo com experiências de vulnerabilidade, invisibilidade e de risco social. Apresentamos infância e adolescência como fenômenos socioculturais, construídos historicamente, e envolvidos nos processos de urbanização, do trabalho e das relações de produção. As crianças, futuros adolescentes, vivem com várias realidades sociais e delas apreendem valores e estratégias de compreensão de mundo e de formação de suas próprias identidades pessoal e sociocultural. Quase sempre mediadas por adultos, no interior de complexos modos de organização e de produção cultural, crianças e adolescentes desenvolvem-se como participantes de comunidades e nelas vivem experiências, muitas vezes configuradas como situações de risco. Nas comunidades com concentração de famílias de baixa renda, é comum atribuir aos sujeitos trajetórias que afirmam e potencializam noções subjetivas e sociais de desqualificação e marginalização. Os jovens emergentes destas comunidades, comumente, são considerados perigosos em potencial, inimigos da sociedade e, por isso, sujeitos que devem ser evitados e excluídos para o melhor desenvolvimento da sociedade. Nesse contexto, configura-se um processo de criminalização que atravessa infâncias e jovens que vivenciam políticas públicas intervencionistas de governo com ações policiais opressoras. Diante dessas questões, desenvolvemos reflexões sobre crianças e jovens configurados por identidades homogêneas, inferiores e desqualificadas e, por isso, atravessados e constituídos por políticas governamentais que os consideram fora de perspectivas de normalidade, de autonomia e mesmo de liberdade.

8 Doutora em Educação Universidade Federal Fluminense –UFF.;E-mail: [email protected] Professora Convidada do Curso de Formação de Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro

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Palavras-chave: crianças, jovens, risco e exclusão social, infração.

Introdução

Este artigo parte da experiência do curso de formação dos profissionais do sistema socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei do Estado do Rio de Janeiro, que procurou introduzir os fundamentos teóricos para a prática socioeducativa sobre os temas infância, adolescência, família e sociedade, em conformidade com as diretrizes legais e normativas nacionais e internacionais no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo SINASE e do PNCFC (Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária).

Nossa proposta é trazer algumas reflexões sobre infâncias e adolescentes, entendidos como sujeitos de direitos que se encontram em processo de desenvolvimento e de construção de uma identidade social, histórica, psíquica e corporal como pessoa humana.

Nosso curso partiu de reflexões acerca de conceitos de infância e adolescência, de modo a entendermos que não são simplesmente fenômenos naturais e biológicos a partir do nascimento, mas caracterizam-se como fenômenos históricos, culturais e sociais.

Para compreendermos a história da infância e da adolescência, indiscutivelmente, precisamos visitar a história da família, dos processos de urbanização, do trabalho e das relações de produção para entendermos que vivemos com uma herança histórica com particularidades latino-americanas construídas a partir de sociedades cindidas em classes com marcas de um passado oriundo de longos processos de colonização e de escravidão e de um presente configurado por sociedades com classes dominantes subordinadas aos grandes centros

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hegemônicos do capital financeiro com a finalidade de auferir lucros, independente da produção. Neste processo surge a ideologia do capital humano referindo-se à importância do sujeito social como mão de obra qualificada para o processo produtivo numa sociedade que valoriza a pedagogia das competências, a empregabilidade e o empreendorismo.

Nesta lógica social com espírito mercantil, onde ficam as crianças que caminham para adolescência num contexto familiar em situação de pobreza, distanciadas desse ideal social e que, muitas vezes, é criada num lugar de conflito e num espaço de violação dos direitos legais que asseguram a sua liberdade, dignidade, integridade física, psíquica e moral, sua educação, saúde, proteção, assistência social à cultura, ao lazer, ao desporto, à habitação, a um meio ambiente de qualidade, dentre outros anunciados pelos documentos institucionais?

Diante desses pressupostos, apresentamos um breve histórico da infância, adolescência e famílias pobres no Brasil na tentativa de situá-los no contexto social nacional.

Contextualizando a infância, a adolescência e famílias pobres no Brasil

A infância e a adolescência não são simplesmente fenômenos naturais e biológicos a partir do nascimento, mas caracterizam-se como fenômenos socioculturais construídos ao longo da História. Referimo-nos à história do Brasil que começou a ser registrada a partir do anos 1500, quando europeus aportaram em nossas terras.

Mesmo assim, até a transferência da família real para o Rio de Janeiro, em 1808, há poucos e esparsos registros da formação histórico-social da sociedade brasileira. Predominavam aqui valores tradicionais, herdados das elites rurais escravagistas, que, na prática, controlavam o poder político local. Existiam crianças e jovens nas tribos indígenas com culturas singulares e diferentes

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daquelas que os colonizadores conheciam. Vemos assim, que a concepção de criança que temos na atualidade ocidental não é a mesma que a História nos conta.

Até o século XVI ainda estava longe de ser delimitada enquanto etapa cronologicamente precisa. Na Idade Média europeia, as crianças misturavam-se aos adultos e participavam de atividades de diversão, de trabalho e também de sexo, pois eram livres para assistir a tudo que os adultos faziam. Durante séculos as crianças foram consideradas como adultos menores, mais frágeis e menos inteligentes, mostradas através da arte, como adultos em miniatura, com vestimentas e atitudes próprias da adultez.

Pouco a pouco, diferentes infâncias instituem-se quando reconhecidas por suas diferentes naturezas: desde a infância angélica e nobilíssima do Príncipe, passando pela infância dos filhos das classes privilegiadas até a infância rude das classes populares, descrevem Varela e Alvarez-Uria (1992, p. 71). Cada uma dessas infâncias recebia programas educativos diferenciados.

A educação para as classes menos abastadas acontecia por meio de uma ampla rede de sociabilidade com aprendizagem gradual dos usos, dos costumes e das técnicas conhecidas pelas comunidades. Tuteladas por um adulto, as crianças tornavam-se aprendizes a partir dos sete anos com responsabilidades que se tornavam progressivamente mais próximas às dos adultos.

Os autores e eclesiásticos, que preocupavam-se com o ensino das letras aos pequenos, acordavam sobre a necessidade de que muito cedo fossem os infantes iniciados na aprendizagem da fé e dos bons costumes, pois conferiam a essa etapa especial da vida características como a maleabilidade, a fragilidade, a rudeza, a fraqueza de juízo e, enfim, a necessidade de civilizar a “natureza em que se assentam os germens dos vícios e das virtudes”, explicitam Varela e Alvarez-Uria (1992, p. 71).

A inocência infantil é uma conquista posterior a esse período, efeito, em grande medida, da aplicação de toda uma ortopedia

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moral sobre o corpo e a alma dos jovens, complementam os autores (ibidem 1992, p. 72).

De acordo com Ariès (1981), o conceito de infância é recente na história da humanidade, foi modificado e determinado pelos interesses sócio-político-econômicos dos movimentos culturais iluministas e religiosos protestantes, que permitiram, nos séculos XVII e XVIII, um olhar diferenciado sobre ela. Fundamentalmente, a partir dessa época, começa a configurar-se o sentimento de infância, tal como hoje o percebemos, todavia não tinha como significado a afeição pelas crianças, mas sim a consciência da particularidade infantil, entendida como uma etapa diferente da idade adulta e dotada de capacidade de desenvolvimento.

Heywood (2004) ressalta, no entanto, que nos séculos XVI e XVII já existia uma consciência de que as percepções de uma criança eram diferentes das dos adultos e que já havia uma infância presente na Idade Média, mesmo que a sociedade não tivesse tempo para a criança. Segundo o autor, nessa época a Igreja já se preocupava com a educação das crianças, colocadas a serviço do monastério e, no século XII, já existiam indícios de um investimento social e psicológico nas crianças. Dessa forma, Heywood considera mais frutífera a busca de diferentes concepções sobre a infância, uma vez que identificou várias descobertas sobre ela em diferentes tempos e lugares.

Ariès (1981) elaborou historicamente o estatuto da infância, relacionou a sua constituição com as classes sociais, com a emergência da família moderna e com uma série de práticas educativas aplicadas especialmente nos colégios. Todavia, relegou a um segundo plano, um tanto longínquo, os métodos empregados no recolhimento e moralização dos meninos pobres. A constituição da infância de qualidade fazia parte de um programa político de dominação: quando rica era governada e submetida à autoridade pedagógica e aos regulamentos, que constituíam passos para assumir mais tarde funções do governo, quando pobre não recebia atenções e tinha nos hospitais, nos

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hospícios e em outros espaços de correção, os primeiros centros-pilotos destinados a modelá-la (VARELA e ALVAREZ-URIA, 1992, p. 75).

A partir dos estudos de Àries e de Heywood podemos inferir que as crianças sempre estiveram presentes nos diferentes meios socioculturais, apesar da impossibilidade de categorizar a uma infância universal, natural, sempre igual, homogênea e de significado óbvio devido à diversidade de aspectos temporais, sociais, culturais e políticos e das especificidades diferenciadas das características adultas que interferiram na sua formação.

Sendo assim, compreender uma história da infância e da adolescência envolve, indiscutivelmente, estudar outras histórias, tais como, as da família, dos processos de urbanização, do trabalho e das relações de produção.

Com a independência do Brasil em 1822 a falta de compromisso do poder público com a educação do povo continuou com menos intensidade. Em 1824 com a primeira Constituição no país, o imperador D. Pedro I determinou a instrução primária gratuita aos cidadãos, todavia um direito negado aos escravos.

Em 1834 um Ato Adicional delegou às províncias (atuais Estados) o direito de elaborar leis e manter o ensino primário e secundário do povo, retirando a responsabilidade do imperador que normatizava esses níveis de ensino apenas na capital e sobre o ensino superior.

Com a proclamação da República em 1889, a primeira Constituição Federal Republicana de 1891, responsabilizou mais a família do que o próprio Estado pela educação. Até o ano anterior, em 1888 com a abolição da escravatura, o Brasil viveu um contexto histórico marcado pela exclusão de milhares de pessoas que sequer eram consideradas cidadãs, como a população negra e a indígena.

Assim, as duas primeiras constituições brasileiras (1824 e 1891) nada mencionam à respeito da infância.

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As primeiras décadas do século XX foram marcadas por lutas de trabalhadores e educadores reformistas para democratizar o ensino público. Com a criação do Ministério da Educação (MEC) em 1934, a Constituição Federal vinculou, pela primeira vez, recursos para a educação.

A Constituição de 1937 menciona que o Estado deveria providenciar cuidados especiais à infância, cabendo ao Estado Novo o cuidado e o amparo, em vez do dever e do direito da criança. Em 1937 essa vinculação de recursos para a educação foi revogada pela ditadura do Estado Novo (1937-1945) e retomada em 1946 por uma Constituição com características mais liberais que ampliaram para 20% o comprometimento dos municípios para a manutenção e o desenvolvimento do ensino (artigo 169). Essa Constituição de 1946, promulgada no clima de pós-guerra mundial, encontram-se termos amparo e assistência à criança.

No caso brasileiro, até a década de 1930 as autoridades ignoraram a infância devido às diferentes sociedades que a formaram: desde a população indígena original passando pelas diferentes migrações, pelo longo período de escravidão e pelo imperialismo imposto pelos países europeus. A criança brasileira só começou a ser atendida com o processo de catequização e de domesticação dos pequenos pelos jesuítas.

Historicamente já existia a Roda dos Expostos, destinada aos abandonados das primeiras idades, pois os filhos dos comerciantes e dos aristocratas eram criados por suas próprias famílias.

As iniciativas de atendimento para o público infantil partiram de higienistas na intenção de diminuir os altos índices de mortalidade, de modo especial entre os nascimentos ilegítimos. A maior parte das crianças que precisavam ser cuidadas eram produtos de uniões ilegais ou de relações entre senhores de engenho e suas escravas. Todavia, enquanto existiam algumas alternativas provenientes de grupos privados formados por médicos ou por associações de damas beneficentes faltava, de maneira geral, o interesse da administração pública pelas

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condições da criança brasileira, principalmente a pobre, esclarece Kramer (2001).

Existem, ainda hoje, realidades brasileiras onde as infâncias, mesmo heterogêneas, compartilham de experiências nas quais os pequenos ficam excluídos de viver e desfrutar dos direitos e prazeres que marcam o tempo de ser criança, como ilustra e denuncia o seguinte trecho da música nativista folclórica riograndense, Piazito Carreteiro de Luis Menezes:

Piazito carreteiroDo cusco amigo e companheiroQue nunca teve infânciaPois não pode ser criançaPorque a vida não deixou...

Hoje a infância já é um campo de estudos e tem a visibilidade de ser constituída por sujeitos historicamente situados e também de ser estudada na sua alteridade e pelo valor que tem em si mesma, compreendida como uma categoria que revela práticas e processos sociais por meio dos quais as crianças agem sobre o mundo e participam da construção de suas vidas e também da sociedade (BORBA, 2005).

Apesar disso “algumas vezes as sociedades esquecem que precisam de suas crianças e que para tê-las há de se respeitar o direito de viver a infância” observa Vasconcellos (2007, p. 7). A autora ressalta ainda que as crianças contemporâneas estão em contato, de forma direta ou indireta, com várias realidades e delas apreendem valores e estratégias de compreensão de mundo e de formação de suas próprias identidades pessoal e social. Vivem experiências e interagem com outras crianças quase sempre mediadas por adultos no interior de complexos modos de organização e de produção cultural, por meio dos quais suas infâncias adquirem contornos e neles e por eles é construída, muitas vezes destruída ou mesmo reinventada (ibidem, p. 9).

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Assim, crianças e adolescentes desenvolvem-se como participantes das comunidades onde foram criados e nelas vivem experiências, muitas vezes configuradas como situações de risco e vulnerabilidade social. A noção de risco é inerente à própria vida, indissociável da experiência humana, gerado em eventuais desequilíbrios criadores e criativos decorrentes das interações indivíduo-meio, na medida em que remete ao que é “desconhecido, indeterminado ou ambíguo, gerador de dúvidas e ativador de inseguranças”, postula Martins (2008, p. 247).

No domínio da infância o risco reflete a intenção de vigilância e normalização das práticas e prestação dos cuidados e dos contextos de vida, de modo a evitar os fatores que dificultam ou impedem o desenvolvimento por inadequação, disfuncionalidade, por déficit ou ausência das possibilidades consideradas normais e necessárias ao desenvolvimento infantil, acrescenta a autora (MARTINS, 2008). Assim, enquanto organizador dos processos de regulação da infância, o risco também participa nos mecanismos de subjetivação infantil.

A cultura e as diferenças culturais têm sido entendidas como um fator de risco ou vulnerabilidade quando se afastam daquela típica dominante da classe média, branca e anglo-saxônica que impôs, historicamente, as suas normas, valores, atitudes e práticas de cuidados das crianças como referências normativas, em especial, no que se refere à parentalidade e ao desenvolvimento infantil. Assim as diferenças relativas a estes padrões dominantes têm sido equacionadas como desviantes (ibidem).

Por outro lado, Martins (2008, p. 260) postula que “em si própria, a cultura não constitui uma fonte de vulnerabilidade ou risco, pelo contrário, pode funcionar como um recurso desenvolvimental”. Dessa forma, é importante considerarmos que não podemos atribuir ao ambiente um imenso poder no desenvolvimento humano, entendendo a criança ou o jovem como um ser extremamente plástico que desenvolve suas características e suas competências em função das condições

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presentes no meio e nos cenários culturais em que se encontram (DAVIS, OLIVEIRA, 2010).

É bastante comum o trabalho infantil de crianças que se desenvolvem em comunidades permeadas por atividades ilícitas, tais como tráfico de armas e de drogas, realizando muitas vezes pequenos serviços para as figuras de autoridade locais.

Nesses contextos culturais os pequenos convivem com armas de fogo, violência doméstica e subempregos de suas famílias no mercado informal, que trazem como consequências infâncias marcadas pelo abandono da escola, pela tolerância aos pequenos delitos e por vivências comunitárias permeadas por condutas que associam a delinquência e a criminalidade como formas para driblar a pobreza e a exclusão social.

A rua, como um ambiente social, na infância destas crianças, apresenta-se como um cenário para brincar e também para realizar pequenas tarefas infracionais para os comandos comunitários locais.

Na adolescência, a rua torna-se um mundo onde grupos são organizados para promover atividades delinquentes, socializados pelo uso da força bruta e da violência e gestados por códigos severos de comportamento e de lealdade (TOKOY, OLIVEIRA, 2008).

Dessa forma, nas comunidades com concentração de famílias de baixa renda, é comum atribuir aos sujeitos trajetórias que afirmam e potencializam noções subjetivas e sociais de desqualificação e marginalização. Os jovens emergentes destas comunidades, frequentemente, são considerados perigosos em potencial, inimigos da sociedade e, por isso, sujeitos que devem ser evitados e excluídos para o melhor desenvolvimento da sociedade. Nesse contexto, configura-se um processo de criminalização que atravessa infâncias e jovens que vivenciam políticas públicas intervencionistas de governo com ações policiais opressoras.

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No entanto, não podemos generalizar e reduzir as crianças e os adolescentes oriundos de comunidades pobres a uma concepção ambientalista do desenvolvimento humano, ou seja, uma corrente de pensamento determinista que atribui um imenso poder ao ambiente no desenvolvimento humano, concebendo o sujeito como extremamente plástico, na medida em que desenvolve suas características em função das condições presentes no meio em que se encontra. Nessa concepção, a criança nasceria como uma tabula rasa, comparável a uma folha em branco com a ausência de qualquer conteúdo e desenvolver-se-iam como criaturas passivas face ao ambiente e, assim, manipuladas e controladas pelas situações em que se encontram.

Dessa forma, as infâncias e adolescências “atravessadas pela semiótica da pobreza e da favela” (CHACEL, 2012), um campo atravessado por estigmas e criminalizações, seriam produzidas no âmbito da marginalização.

Diante isso, questionamo-nos: até que ponto infâncias criadas em ambientes marginalizados, futuros jovens com suas alternativas limitadas, podem construir novas configurações subjetivas, distantes daquelas desqualificadas e serializadas como os modos de ser naturalizados e vivenciados pelos filhos de famílias pobres moradoras de comunidades segregadas e excluídas socialmente?

Articulações que não concluem, mas convidam a refletir

É notória a percepção de como naturalizamos e, portanto, aceitamos a existência de uma relação indissociável entre pobreza e criminalidade, isto é, a violência acontece onde o pobre está. Por outro lado, também é notória a importância de desvenciliarmo-nos da armadilha de vincular pobreza e violência, com base na divisão da sociedade em classes sociais e no antagonismo e na violência resultantes dessa divisão.

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Também é sabido que, às crianças e jovens moradores de comunidades pré-conceituadas como cenários perigosos, atribui-se identidades homogêneas, inferiores e depreciadas além de futuros envoltos por trajetórias naturalizadas e potencializadas com noções sociais de desqualificação e de marginalização.

Perguntamo-nos sobre a possibilidade de visualizar essas naturalizações como estranhamentos, de modo a provocar outras formas de entender que existem outras produções de subjetividades que podem delinear condições psicossociais diferenciadas das noções de segregação e exclusão vivenciadas pelos jovens moradores de comunidades marginalizadas pela sociedade.

Como psicólogas entendemos que cada sujeito é um ser social, um ser de relações e em permanente movimento para transformação de si, dos outros, do cenário em seu entorno e também da sua história social. Por que não admitir que podem existir bifurcações ou linhas de fuga nas produções subjetivas dessas crianças e jovens considerados como riscos sociais? Por que não investirmos nosso trabalho e nossos saberes em experiências que afirmem um caráter processual, histórico e mutável das formas dessas crianças e desses jovens construírem suas subjetividades expressando outras formas de viver no social?

Acreditamos que essa seria uma maneira de perceber não mais um jovem que transgride as regras sociais, mas sim um sujeito no qual a linha da infração é apenas uma a mais dentre tantas outras que o compõem. Esse é um desafio para os profissionais que trabalham com esses jovens, afirmando a abertura de espaços e de experiências que possam criar outras vias de relação consigo mesmos e também com a vida.

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O adolescente no sistema socioeducativo: uma reflexão a partir da psicanálise

Erimaldo Matias Nicacio9

Resumo: Um dos elementos que compõem o tripé do SINASE, conforme o documento que descreve os princípios dessa nova política (Brasil, 2009, 2ª. edição), é a formação permanente dos agentes envolvidos. Essa diretriz10 parte do entendimento de que a formação continuada é fundamental para o constante aperfeiçoamento do atendimento socioeducativo e, sobretudo, para superar as práticas assistencialistas e repressivas que ainda predominam no sistema. E um dos pontos cruciais desse processo de formação é a reflexão sistemática sobre os sujeitos atingidos por essa política, isto é, os adolescentes. Por isso, o objetivo deste artigo é definir a adolescência a partir dos conceitos da psicanálise e, com isso, desenvolver uma reflexão sobre o atendimento ao adolescente no sistema socioeducativo. Uma questão fundamental é como lidar com o adolescente como um sujeito e não como mero objeto de intervenção.

Palavras chave: Adolescente , sujeito, família e ato infracional

9 Doutor em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, psicanalista membro do Tempo Freudiano – Associação Psicanalítica. Esse ponto reaparece com destaque no item “Diretrizes pedagógicas do atendimento socioeducativo” (Brasil, 2009).

10 Esse ponto reaparece com destaque no item “Diretrizes pedagógicas do aten-dimento socioeducativo” (Brasil, 2009).

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Sujeito, linguagem e desejo

A fim de refletir sobre o ato infracional entre adolescentes, tomemos como ponto de partida a observação de que o sujeito humano, diferentemente dos animais, não nasce com as regras que servem para orientar sua conduta, pois essa não é determinada por um instinto. Ingressar em um mundo propriamente humano significa entrar no sistema da linguagem, isto é, na ordem simbólica. O homem é o único animal dotado de um sistema simbólico, o qual não serve apenas para que nos comuniquemos uns com os outros. Na verdade, ele determina, modela toda a nossa existência. Por conseguinte, a relação do sujeito consigo mesmo, com seu corpo e com os semelhantes é determinada pela linguagem. A ordem simbólica subverte de tal forma nossa existência que podemos dizer que quase nada no sujeito humano é instintivo. As nossas necessidades mais básicas não são fenômenos puramente biológicos, pois se encontram, desde a chegada de uma criança ao mundo, marcadas pela linguagem. Antes de vir ao mundo, a criança já é tomada na ordem simbólica, na medida em que seu pai, sua mãe e outros adultos falam dela e com ela. A criança recebe um nome que já carrega em si a função de dar um lugar para ela na sucessão geracional (ela é filha de fulano, neta de beltrano etc) e na diferença entre os sexos. Essa é uma das marcas que o sujeito sofre ao longo da sua vida. É na família que se dá a transmissão dos elementos de linguagem que deixarão marcas e definirão o que o sujeito vai ser na vida. E é preciso dizer que a relação da criança com seus pais envolve algo mais que a transmissão genética e de valores. Tal relação envolve alguma coisa da ordem da sexualidade. Freud abordou isso por meio do conceito de complexo de Édipo. Esse conceito não se resume a descrever uma fase que todos nós atravessamos na qual desejamos o genitor do sexo oposto e rivalizamos com o genitor do mesmo sexo. Embora isso seja um fato trivial e constatável pela experiência, o conceito quer dizer algo mais profundo que isso.

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Isso quer dizer que a nossa subjetividade se estrutura a partir dessa relação com o pai e a mãe. É no laço libidinal que se estabelece (ou não) entre a criança e seus pais que se constitui o modo como o sujeito vai se posicionar na sua existência. Na origem do sujeito, que será sempre um enigma, existe a marca de um desejo sexual entre um homem e uma mulher. Há também o amor que enlaça a criança ao seu pai e à sua mãe; um amor que é sexual, como Freud não hesitava em afirmar, por mais que isso pudesse causar escândalo. É isso mesmo: Freud descobriu que no inconsciente há um desejo incestuoso, ao qual não temos acesso por estar recalcado, ou seja, afastado da nossa consciência. A mãe fala com a criança, investe nela seu desejo e lhe empresta seu corpo para que ela também possa vir a formar sua imagem corporal, que é a base para a constituição do seu eu. Ao mesmo tempo, a criança se interessa pelo que seria o objeto de desejo da mãe e ela tenta se colocar no lugar desse objeto. A partir de uma articulação muito complexa que não retomaremos aqui, na psicanálise, esse objeto é designado pelo conceito de falo. A criança quer ser o falo da mãe. E aí intervém um elemento fundamental da nossa estruturação psíquica que em psicanálise chama-se o “nome-do-pai”. Esse é um elemento da linguagem que introduz a lei da proibição do incesto. Essa lei não-escrita não se refere tanto à proibição da relação sexual entre parentes consanguíneos, mas designa o fato de que não há acesso possível a um objeto que nos daria uma satisfação garantida e permanente. O nome-do-pai é um significante que no sistema da linguagem introduz a lei e a diferença de lugares. O nome-do-pai intervém, portanto, desalojando a criança desse lugar de falo ao mesmo tempo em que priva a mãe de tê-la como objeto exclusivo. Esse corte permite que o sujeito abra mão de ser o falo e se defronte com a questão de quem tem o falo, isto é, quem tem o que a mãe deseja. Aqui, o pai intervém na sua dimensão de potência, como desejante, dirigido à mãe como

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aquele que tem o falo. É pela via da ameaça de perda do falo que o menino pode tê-lo, isto é, como um título de propriedade. Ele tem o falo, mas só poderá usá-lo no futuro. Já a menina, caindo da dimensão do ser, ao assumir que ela não tem o falo, buscará no pai o falo que a mãe não pode lhe dar. E, a partir da decepção que ela encontra, a menina que ela vai poder assumir uma posição feminina e buscar o falo em outro homem. Portanto, é pela via da castração que tanto o menino quanto a menina entram no campo da identificação sexual e do desejo. É por aí que o sujeito encontra algum acesso ao falo como significante do desejo. Isso mostra que o pai não é interditor do desejo, mas condição para o desejo. Na verdade, ele dirige ao sujeito uma prescrição paradoxal: deseje! E o sujeito só pode ter acesso ao desejo passando pelo outro, pela mediação da linguagem.

O adolescente

A adolescência não é um conceito psicanalítico, mas um termo que, na nossa cultura, designa uma fase de transição na qual as transformações fisiológicas determinam um comportamento conflituoso em relação à sexualidade e à identidade. Um termo jocoso, especialmente empregado para se referir ao adolescente, é “aborrecente”. Ele talvez sirva para indicar não tanto suas alterações de humor, mas o quanto ele nos aborrece. E isso acontece menos por algum suposto defeito do adolescente e mais por nossa dificuldade de lidar com suas questões e seu modo de viver. Um outro modo de nos referirmos aos impasses da nossa relação com ele é, muitas vezes, indicado pela referência aos “hormônios”, o que nos proporciona uma explicação que dá um sentido aos enigmas e inquietações que eles nos trazem, apaziguando nossa angústia. A adolescência é um fato cultural, uma experiência que é própria da cultura ocidental moderna, o que mostra que

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a passagem da infância para a vida adulta não se realiza da mesma forma em todas as sociedades. Segundo Melman (2000), o adolescente é um sujeito que atingiu a maturidade sexual, sem que a família e o meio social reconheçam essa maturidade. Esse fenômeno é recente e surgiu com o desenvolvimento da sociedade burguesa. Até o século XIX, após terem passado pela puberdade, os jovens assumiam responsabilidades na sociedade e no casamento. A sociedade lhes concedia, portanto, um lugar simbólico, inclusive as condições materiais para assumir sua identidade sexual. A pesquisa de Van Gennep (1988) sobre os ritos de iniciação nos dão subsídios para verificar como nas sociedades tribais não existia a adolescência. A saída da infância e a posterior entrada na vida adulta eram mediadas por “ritos de iniciação” nos quais o jovem participava de uma série de práticas rituais que visavam separá-lo do núcleo familiar e agregá-lo ao mundo dos adultos. Nesses rituais, os jovens eram submetidos a mutilações, pinturas, flagelações e, também, a certas restrições-tabu. Encenavam-se a sua morte – marcando, assim, uma ruptura com a etapa anterior de sua vida – e o seu posterior renascimento para a vida adulta. A partir daí, seu status social mudava: deixavam de ser crianças e se tornavam homens e mulheres. No mundo moderno, essa passagem para a vida adulta deixou de se realizar por um ritual localizado no tempo e se tornou uma longa preparação, visando à formação do futuro agente econômico. Essa preparação encontrou uma instituição social específica: a escola (Ariès, 1981). A adolescência como um fato cultural supõe o processo de escolarização, no qual se realiza a formação daquele que, ao final do processo, se tornará um adulto, cidadão e trabalhador. Doravante, a mensagem que se transmite ao adolescente é que a necessidade é primeira em relação ao desejo. Por isso, pede-se que ele recalque suas pulsões sexuais até que ele adquira a formação necessária e, por conseguinte, as condições materiais para exercer a sexualidade no âmbito da união legítima, isto é, o casamento.

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É nesse contexto cultural que se constitui a adolescência como um período em que o sujeito está na “passagem”, na “margem”, no “limiar”. Não é mais uma passagem simbolizada pelo grupo social, ritualizada e institucionalizada. Trata-se de uma passagem demorada, que se caracteriza como uma “fase” de longa duração. Segundo Rasssial (1999, p.58) esse é “um período de indecisão subjetiva e de incerteza social, durante o qual a família e as instituições exigem, segundo as circunstâncias, que o sujeito se reconheça como criança ou como adulto“. O adolescente está confrontado com o dever de tomar posição em relação à identificação sexual e de assumir seu desejo em nome próprio. Ele deve se desprender da criança que ainda o habita, em certa medida, e abrir mão de um tipo de relação com o outro ainda muito marcada pelo lúdico, pelo brincar para poder se engajar em uma relação em que as coisas são “à vera”. O status ambíguo da condição do adolescente torna problemática para ele a questão da responsabilidade. Ele, em tese, está se preparando para assumir determinadas responsabilidades das quais ele ainda está isento; por isso, esse anseio, tão comum entre nós, de ter liberdade sem responsabilidade. Cabe destacar duas consequências importantes dessa crise vivida pelo adolescente. Uma delas se refere à mudança que se opera na relação com seus pais, assim como com o saber desses. A idealização dos pais entra em declínio e o sujeito passa a considerá-los incapazes de ajudá-los nos seus impasses. O saber que o interessa é o saber sobre o sexual, ao qual não temos acesso, na medida em que é inconsciente. Ele quer um saber que lhe permita se exercer como sujeito desejante. O resto não lhe interessa. Por isso, o adolescente tende a desacreditar no saber dos pais e a rebelar-se diante da sua autoridade. O mesmo descrédito recai sobre os professores. O saber transmitido pela escola lhes parece muito distante da sua experiência de vida. Um discurso desencarnado que parece não o instrumentalizar para lidar com as questões fundamentais com as

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quais está confrontado. Decorre disso que todas as tentativas da escola de aproximar seu conteúdo da realidade de vida dos jovens – necessárias e louváveis – esbarram em um limite estrutural. Isso porque o saber transmitido pela escola – o saber científico – implica, por estrutura, a exclusão do sujeito; daí, a dificuldade de fazê-lo se interessar por um saber no qual ele não se reconhece, que é distante da sua experiência e não é acessível pela intuição. Uma segunda consequência é que, para lidar com sua crise, o adolescente tende a procurar amparo nas relações com os seus semelhantes daí, a importância do grupo nessa fase. Os parceiros são aqueles com quem ele pode se identificar por compartilharem alguma coisa em comum. Certas insígnias permitem essa identificação: as roupas, o cabelo, as gírias, o local de moradia etc. Uns se reconhecem nos outros. Uma das expressões dessa relação em espelho é o amor. Como todos nós, o adolescente faz muitas coisas para se sentir aceito, ou seja, amado pelo grupo. E estar mergulhado no grupo lhe dá uma segurança, pois ele será levado a agir em conformidade com o outro e isso o economiza de assumir o seu desejo.

O adolescente e a família

Comecemos este ponto com o relato, apresentado por Vale (2009) em pesquisa realizada no interior de Minas Gerais. Um jovem de 15 anos, que a autora chama de Killer, encontrava-se internado por ter sido apreendido com uma moto roubada. Criado por sua avó materna, o jovem desenvolveu um ódio pela mãe por esta tê-lo abandonado. Ela só voltou a procurá-lo depois do falecimento do pai, que deixou uma pensão disputada desde então pela família materna. Durante a internação, sua mãe o visitava, contra sua vontade, até que, durante uma das visitas, Killer lhe falou, diante de outras pessoas, que ela não o procurasse mais. Logo, em seguida, conforme seu relato ele

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foi gravemente agredido pelos agentes socioeducativos, com o argumento de que o castigo serviria para que ele aprendesse a respeitar sua mãe. Killer foi levado para o pronto-socorro, mas ficou com sequelas motoras graves que comprometeram sua marcha de forma definitiva. Esse episódio ilustra, em primeiro lugar, como, nas instituições correcionais, qualquer desvio em relação a uma norma, prescrição ou um ideal torna-se um delito que deve ser punido. E tal lógica punitiva (a ser abordada mais adiante) sempre prevaleceu nas instituições de internação de adolescentes e ainda está presente em muitas delas. Qualquer conduta fora da norma deve ser punida com rigor, realizando uma micropenalidade que não tem limite. O discurso supostamente pedagógico – segundo o qual o castigo serve para que o jovem aprenda a agir de forma correta – apenas encobre uma moralidade regida pelo puro desejo de punir. Um outro aspecto que está presente na situação descrita é a desconsideração da complexidade da relação desse menino com sua mãe. Esse é um caso extremo, mas ilustra algo que está presente, de forma velada ou não, em muitas instâncias que lidam com o adolescente infrator: a referência a um ideal de família nuclear, estruturada e harmônica. Em alguns casos, como no exemplo acima, o jovem é condenado não apenas por seu ato, mas por ter desrespeitado a família. Ao mesmo tempo, a família do jovem em conflito com a lei tende a ser diagnosticada como desestruturada, violenta, negligente ou ainda incapaz de assumir suas responsabilidades em relação ao adolescente. Assim, há uma tendência a culpabilizar o adolescente e/ou sua família pela situação em que ele se encontra. De fato, quando nos aproximamos da biografia desses jovens, podemos constatar diferentes situações de abandono, violência, miséria, reproduzidas ao longo de sucessivas gerações. Um elemento chama a atenção na história desses jovens: muitos

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chegam ao sistema socioeducativo sem certidão de nascimento. Além de se constituir como um procedimento jurídico, o registro civil de nascimento é também um gesto simbólico, pois ele expressa a função de nomeação do pai que tem o poder de dar um lugar ao sujeito. Em muitas situações, ou não há o registro ou, quando há, muitas vezes não inclui o nome do pai. Esses fatos são significativos e somos levados a levantar a hipótese de que expressa o declínio do nome-do-pai na modernidade. Em todo caso, a experiência mostra como a relação com o pai e a mãe é crucial na história de vida de um sujeito, independentemente dos arranjos familiares e das situações concretas de vida em que ele está situado. Uma educadora11 , referindo-se à sua experiência em um abrigo, relatou como os adolescentes se interessavam em conhecer algo sobre sua família de origem. Eles queriam saber alguma coisa sobre seus pais, avós, irmãos: “já presenciei situações em que, ao ver os nomes dos seus pais nos prontuários, os adolescentes começavam a tremer”. Isso mostra como o sujeito não é indiferente em relação à questão da sua origem. Esse ponto é importante.

O adolescente e o ato infracional

As considerações a seguir são hipóteses a serem verificadas e visam basicamente levantar questões para provocar uma reflexão sobre o ato infracional na adolescência. Embora esteja claramente tipificado no Estatuto da Criança e do Adolescente, o ato infracional na adolescência é um fenômeno complexo e possui múltiplas determinações a serem verificadas em cada caso. No seu Art. 103, ato infracional é definido como toda “conduta descrita como crime ou contravenção penal” praticada por criança ou adolescente (Brasil, 1990).

11 Relato feito em uma das aulas do Módulo I do Curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, em 2013.

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Levando em consideração o levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (Brasil, 2012), com o intuito de traçar um panorama da situação dos adolescentes em conflito com a lei no Brasil, pouco mais da metade dos atos infracionais é cometido contra o patrimônio, dentre os quais predominam o roubo. Chama a atenção, também, que a grande maioria dos jovens que comete atos infracionais é do sexo masculino. O que esses dados podem nos revelar? Segundo Melman (2000a), o que caracteriza o roubo é tentativa de acesso ao objeto pela apreensão, pela violação. Sendo assim, no ato de roubar, o jovem tenta buscar de uma forma violenta, no real, aquilo que não pode ser transmitido pela via simbólica. Na medida em que a instância paterna não oferece condições para que o jovem possa vir a se apossar desse objeto simbólico que é o “falo”, que lhe permitiria assumir as insígnias da virilidade, ele vai buscar esse objeto no real e de forma violenta. Por isso, Melman diz que as condutas do jovem infrator são símbolos da falta de acesso ao falo, de modo que o roubo passa a ser o único acesso possível à virilidade. No entanto, há de se acrescentar que esse acesso à virilidade tende a se dar por uma via imaginária, isto é, pela incorporação de uma imagem idealizada do que é ser homem: ter mulheres, dinheiro, poder. A prevalência dos jovens do sexo masculino, mencionada anteriormente, entre os jovens infratores deve ser objeto de reflexão. Como ilustração, podemos citar o caso de um rapaz de 19 anos, cuja família possuía uma boa situação financeira. Ao relatar em uma sessão como iniciou o uso do crack, enfatizou em seu discurso a maneira pela qual ele foi incluído em um grupo de traficantes que dominava determinada comunidade. Foi um amigo da escola o convidou, pois conhecia todo mundo. Quando começou a frequentar a favela, alguns usuários de drogas e até mesmo os próprios traficantes diziam algo do tipo: “Fala playboy! Se eu fosse um playboy eu ia ficar na pista, sai dessa, cara!”. Mesmo assim, ele continuou frequentando esse local até receber uma arma como símbolo de inclusão no grupo. Ele encontrou

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ali um lugar. O paciente disse “Eu me senti o cara, igual o dono da boca!”; ao ser perguntado sobre o que é “ser o cara”, ele respondeu: “O cara lá têm reconhecimento. Ele chega assim... portando (referindo-se à arma)... Quando tem algum problema, ele pergunta o que tá acontecendo e ninguém fala mais nada. Ele marca lá. Quando eu passei a frequentar a favela, a usar drogas e portar arma, me sentia assim também. As meninas chegam junto. Droga, dinheiro no bolso, arma, elas não resistem. É fácil”. Não se pretende sustentar que essas considerações são válidas para a totalidade dos casos, mas talvez ajudem a perceber a complexidade do que está em questão. Como foi visto anteriormente, a crise psíquica vivenciada pelos adolescentes pode ser considerada uma expressão do modo como nossa cultura os trata. Ela produz uma discordância entre sua maturidade sexual e a ordem simbólica que não reconhece essa maturidade. Diante disso, o adolescente pode realizar ações de diferentes ordens. Melman (1997) distingue o acting out e a passagem ao ato. O acting out é um pedido de ajuda, implica o endereçamento de uma mensagem a um outro. Além disso, envolve um certo mise-en-scène, algo que é uma ordem da encenação. Pode-se dizer que é um certo apelo a um pai ideal que viria remediar o impasse vivido pelo sujeito. Diante disso, podemos pensar que, em alguns casos, o ato infracional pode ser considerado um pedido de ajuda, mesmo que não seja formulado explicitamente como tal. Já na passagem ao ato, não há endereçamento, não há pedido. É uma passagem direta à ação, na qual não se espera nada de ninguém. Melman chama atenção para o fato de que, nesse segundo tipo de ato, é comum que o jovem tenha um apego libidinal às figuras que representam a lei. É como se houvesse um jogo que tornaria necessário se subtrair ao poder da lei para, em seguida, chamar seu exercício. A instância do nome-do-pai é o que faz, como nos lembra Melman (2000a), com que as estruturas sociais se tornem

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simbólicas para cada sujeito e é assim que ele pode legitimar o lugar da autoridade. As estruturas sociais são simbólicas no momento em que elas são constituídas a partir de um pacto no qual o sujeito e o outro estão empenhados e consentem em se submeter espontaneamente a ele. “Espontaneamente” quer dizer sem o uso da força de uma instância real, policial, por exemplo.Segundo Melman,

quando as estruturas sociais se tornam reais, o poder é então figurado na sua representação real e inclusive policial. O objeto mesmo, o objeto que conta cessa de ser simbólico para tornar-se nada mais que um objeto real. O pai vai estar assim privado de todas as suas incidências simbólicas para valer somente em sua realidade. Portanto, vai se encontrar desfigurado por representações que são asseguradas pelas instâncias educativas, correcionais, policiais ou judiciárias. (2000a, p.47)

Por isso, na falta de um enquadramento simbólico que lhes dê proteção e um rumo, é comum que alguns jovens se façam gerir jurídica e institucionalmente, oscilando entre o abrigo, a prisão e o hospital. Os muros dessas instituições acabam proporcionando para eles um enquadramento real, na falta de um enquadramento simbólico (Czermack, 2004). Em uma conjuntura em que a referência paterna se encontra privada de sua incidência simbólica, sua autoridade só terá valor manifestando-se como um poder real. O pacto simbólico se sustenta pela palavra endereçada pelo sujeito ao outro. Se a palavra perde o valor, o laço social se torna frágil. Esse ponto talvez nos permita abordar uma dificuldade no trabalho dos diferentes agentes do sistema de garantia de direitos junto com os jovens infratores, que é a dificuldade de se estabelecerem pactos em torno de projetos, encaminhamentos e decisões. É comum que os profissionais relatem como é difícil que o jovem cumpra certas combinações e faça valer as pactuações realizadas, a fim de viabilizar medidas de proteção e inclusão social. Se o laço social perde sua incidência simbólica, a função da palavra perde o sue valor e o sujeito passa a depender mais da

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sanção jurídica ou até mesmo da força. E, então, um dos desafios para os referidos profissionais é, no seu trabalho, tentar reabilitar a função da palavra e fazer uma aposta no pacto simbólico, sem garantias de sucesso.

O adolescente como sujeito

O que seria lidar com o adolescente como um sujeito? Alguns operadores do sistema socioeducativo questionam que só se fala dos direitos desses jovens, mas não se fala dos deveres. De fato, com a promulgação do ECA o adolescente passou a ser definido como um sujeito de direitos, no plural. Essa ênfase nos direitos tem a sua razão de ser derivada de toda uma mobilização social diante das graves violações de direitos das crianças e dos adolescentes, ainda mais em um contexto social como o brasileiro, marcado por acentuada desigualdade social, em que as crianças e os adolescentes pobres foram historicamente excluídos de uma série de bens, serviços e direitos básicos de cidadania. O discurso dos direitos pretende superar a perspectiva punitiva e objetivante que predominava nas instituições de “menores”, muito marcadas pela ideia de que “o menino não tem que ter direitos, pois ele é um infrator”. Tal fixação do sujeito em uma identidade, atribuindo-lhe uma essência, tende a ser incorporada pelo próprio adolescente, quando ele diz, por exemplo: “Eu sou fulano de tal, menor infrator” ou “eu vou continuar sendo bandido”. Ao ser fixado nesse lugar, ele se torna um mero objeto de intervenção, sobretudo do exercício do poder e do castigo físico. Uma das dificuldades apontadas por alguns operadores do sistema socioeducativo é a de conseguir implicar o adolescente no ato infracional, isto é, fazer com que ele extraia consequências do fato de estar sofrendo uma medida socioeducativa e se responsabilizar pela infração que ele cometeu. Percebem uma

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apatia, desinteresse pelas atividades, projetos e iniciativas de promover a educação e inclusão social. Na teoria do direito civil, um sujeito de direito (no singular) é o ente suscetível de adquirir direitos e contrair obrigações. Portanto, os deveres não estão excluídos e isso nos coloca diante das questões da responsabilidade e da sanção. Alguns autores do campo da psicanálise têm se interrogado sobre as consequências de uma lei que se concentra na garantia de direitos. Em que medida a lei corre o risco de se colocar a serviço da satisfação completa dos sujeitos? (Dzu, 2007). Multiplicando normas destinadas a garantir o bem-estar como possibilitar que o jovem assuma responsabilidade por seu ato (Silva, 2007)? Uma outra questão que se impõe para os operadores do sistema de garantia de direitos é como promover o acesso a direitos que são de caráter universal e, ao mesmo tempo, levar em consideração a singularidade de cada caso. Isso porque, se o direito é universal, o sujeito não é universalizável.

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Referências bibliográficas

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Violência doméstica e direitos humanos de crianças e adolescentes na contemporaneidade: um processo de

judicialização da questão social?

Paula da Silva Caldas12

Resumo: O presente artigo traz a discussão acerca do fenômeno da violência doméstica de crianças e adolescente, relacionada ao atual tratamento dado pelas diversas autoridades À questão social, no sentido de criminalizar seus sujeitos, sem levar em conta os diversos mecanismos de defesa dos direitos humanos deste segmento, implementados com o advento da Constituição de 1988.

Palavras-chave: direitos humanos, violência doméstica, infância e juventude.

Iniciando o debate: a constituição dos direitos humanos no Brasil

O tema Direitos Humanos no Brasil tem sido central na agenda de discussões políticas nos dias atuais, tendo em vista a vertiginosa onda de violência que assola a nossa sociedade contemporânea. Tal fato toma real destaque quando se trata da violação de direitos de crianças e adolescentes, em específico a questão da violência doméstica perpetrada nesse público. Sabemos que no Brasil a luta pelo reconhecimento dos direitos humanos, no decorrer de sua história, deu-se de forma bastante peculiar, remontando desde o nosso descobrimento e ocupação europeia, as lutas e resistências dos nossos primeiros habitantes indígenas e, mais tarde, pelos negros africanos escravizados e demais imigrantes europeus (tais como os

12 Assistente Social; Mestre em Serviço Social ( PUC - Rio); Doutoranda em Políticas Sociais (UFF)

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italianos, entre outros). Posteriormente, a conformação de nossos primeiros direitos e, especificamente, do Estado de Direito no país dá-se com a promulgação da Constituição Federal em 1824 e, a partir de então, a construção do processo de geração dos diretos que se faz no âmbito da articulação no cenário internacional e na construção das diversas convenções internacionais, conformando, assim, as diferentes gerações de direitos, desde os direitos civis, reconhecidos no século XVIII, passando pelos direitos políticos, instituídos no século XIX, pelos direitos econômicos e sociais, datados do início do século XX e culminando com os direitos de solidariedade, que surgem no final da primeira metade do século XX. (AGUINSKY e ALENCASTRO, 2006) No entanto, é notadamente nos anos 80, com o fim do período ditatorial no Brasil e com o protagonismo dos movimentos sociais em defesa e pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária, no que concerne ao reconhecimento dos direitos de cidadania da população, que é promulgada a Constituição Federal de 1988. Ela é reconhecida como marco legal na constituição dos direitos humanos no país e pelos avanços que trouxe em suas concepções e forma de construção, imprimindo, pela primeira vez no cenário nacional, o viés democrático. Vale ressaltar que, apesar dos avanços e conquistas que se obtiveram com a promulgação da Constituição de 1988 nos diversos setores da sociedade, não podemos esquecer que, após dois anos de sua vigência, temos atrelado a esse processo de construção de uma nova sociedade, pautada pelo viés da democracia e cidadania, o advento do Neoliberalismo, em 1990, com a eleição do presidente Fernando Collor de Mello. Esse traz, nas suas plataformas de governo, uma série de diretrizes elencadas através de um pacto com o grande capital financeiro e internacional, realizado entre os organismos multilaterais, tais como o Fundo Monetário Internacional-FMI, Organização Mundial do Comércio e Banco Mundial, através do Consenso de

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Washington nos EUA, no qual se priorizava uma Reforma Estatal com ênfase para o enxugamento nos gastos com as políticas sociais (focalização nos gastos sociais), privatização das políticas públicas, descentralização político-administrativa, incentivo às ações e empreendimentos do mercado e da sociedade civil, entre outras ações que visavam demonstrar a ineficácia do Estado no trato com as diferentes expressões da questão social13 . Em detrimento disso, percebemos que esse processo neoliberal vem se aprofundando ao longo das décadas, orquestrado pelos demais presidentes como Fernando Henrique Cardoso, que pautou seus dois mandatos em ações que enfatizavam as transações de mercado privado, os altos investimentos no capital financeiro internacional, as ações flexibilizadas e globalizadas, relacionadas ao mercado de trabalho e suas desregulamentações trabalhistas. Promoveu, assim, o crescimento do desemprego e o trabalho precário no país, a desproteção social, o aumento desordenado da pobreza e o alto índice de segmentos populacionais excluídos dos direitos sociais e do exercício de sua cidadania. No governo de Luis Inácio Lula da Silva, considerado um ícone na defesa dos direitos dos trabalhadores da sociedade brasileira, também foram demandados muitos desafios a serem superados diante do quadro complexo no qual o país se encontrava: alto índice de desemprego, pobreza extrema, aumento da violência estrutural. Contudo, pouco se viu de alterações nesse cenário de mundialização do capital e de meta

13 A questão social, segundo Marilda Iamamoto, é entendida como: “[...] con-junto das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impen-sáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produ-ção contraposto a apropriação privada da própria atividade humana- o trabalho-, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos. É indissociável da emergência do ‘trabalhador livre’, que depende da venda de sua força de trabalho com meio de satisfação de suas necessidades vitais. A questão social expressa, por-tanto, disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade cível e o poder estatal”. (IAMAMOTO, 1999, pp. 16-17).

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de “tornar o Brasil um país de primeiro mundo”, tal como a constituição de um Sistema Único de Assistência Social. Trouxe, com isso, o reconhecimento da Assistência Social como uma política pública de Seguridade Social e de direito do cidadão, mas que diante de um cenário neoliberal precisa aprimorar suas bases de implementação que ainda permanecem pautadas nas ações do seu carro chefe de campanha – o Programa Bolsa Família, o qual se apresenta com diretrizes fragmentadas e focalizadas na pobreza extrema e em critérios de elegibilidade que ainda promovem a exclusão de importantes segmentos populacionais. Nesse mesmo cenário, tem sido trazida à tona, pelos diversos segmentos da sociedade civil organizada, a discussão em torno da violência doméstica e da afirmação dos Direitos Humanos no país (com ênfase para os diretos da criança e do adolescente) como questão central, tendo em vista que o Brasil é um dos países signatários da Organização das Nações Unidas-ONU para a implementação de políticas públicas que promovam uma sociedade livre de práticas de violações de direitos. Todavia, dentro de uma sociedade globalizada e neoliberal, vem tomando contornos difusos, no que se refere à retração do papel do Estado no trato com as expressões da questão social e na reedição de práticas já refutadas de voluntariado e solidariedades que vêm delegando à sociedade civil organizada e à família o papel de protagonistas desse processo. Entretanto, sem uma efetiva política de proteção social no país, o fracasso dessa família e da sociedade civil em prover as necessidades básicas de seus entes tem sido uma tônica e tem levado esse mesmo Estado a perpetrar ações que culpabilizam esses atores e “judicializam a questão social”14 , ou seja, levam para o plano jurídico questões que deveriam ser solucionadas pelos poderes legislativos e executivos com a formulação,

14 Para maior compreensão sobre a judicialização da questão social, ver: AGUINSKY, Beatriz G. e ALENCASTRO, Ecleria H. Judicialização da questão social: rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no poder judiciário. In: Revista Katálysis, Florianópolis – Santa Catarina: 2006 – V. 9 N.1 jan/jun.

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investimentos e implementação de políticas sociais públicas pelo Estado, real provedor social de direitos. Esses novos reordenamentos legais têm sido usados como subterfúgios para solucionar os problemas ligados à violência doméstica de crianças e adolescentes (principalmente os segmentos mais empobrecidos e vulnerabilizados), culpabilizando as famílias por suas práticas e supostos “fracassos”, sem levar em conta o contexto social e de violência estrutural no qual a grande maioria se encontra inserida, ou seja, tem sido recorrente associar a violência doméstica às classes mais pobres de nossa sociedade. É diante de tal contexto que propomos, neste texto, discutir a questão da violência doméstica, a constituição dos Direitos Humanos no Brasil na contemporaneidade e o apelo que tem sido feito às práticas jurídicas para a solução de problemas no âmbito da questão social, apontando para uma atuação que esteja pautada nos programas de enfrentamento à violência doméstica de crianças e de adolescentes de cunho Estatal, enfatizando o protagonismo desses atores no bojo de suas ações.

A violência doméstica contra crianças e adolescentes na contemporaneidade: um tema em debate

A questão da criminalidade e violência vem sendo muito explorada na atualidade, contudo pouco enfoque tem se dado a discussões que incorrem a violência no ambiente familiar, diante de sua importância e impacto social, em detrimento daquelas pesquisas que exploram situações de vitimização decorrentes de roubos, furtos, agressão física e sexual, invasão/roubo de domicílio, como no artigo de Beato et ali “Crime, oportunidade e vitimização”, 2004. O tema da violência tem sido constante em nossas agendas contemporâneas de discussões políticas, porém tem sido tratado de maneira diversa, uma vez que, através de um discurso teórico

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globalizado, temos visto algo em torno daquilo que Santos (2004) chama da “perda do monopólio da violência” pelo Estado (uma característica que, segundo o autor, foi mantida durante dois séculos para dar conta da resolução dos problemas sociais), mas que hoje tem sido substituído diante dos novos limites impostos pela formação de uma “modernidade tardia”, caracterizada pelos atos violentos difusos da sociedade, que se legitimam em processos de fragmentação social, individualizam as práticas sociais e, assim, inviabilizam os processos de construção dos direitos sociais e de cidadania, uma vez que a ordem do dia está pautada na incerteza, ou seja, naquilo que é insolúvel, que é fluído, como nos diz Bauman (1998, p. 32): “o mundo pós-moderno está se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível”. Nesse ínterim, o que se percebe é que estamos diante de um processo que se fundamenta em problemas oriundos da questão social de natureza global, ou seja, em fenômenos que se expressam através de uma violência que é difusa, tal como a fome, a exclusão social, a violência ecológica, a violência de gênero, a violência na escola (bullying), os diversos tipos de racismos, discriminações e segregacionismos, desconstruindo, assim, os elos da cidadania; isso é, aquilo que Michel Foucault (1994) chamou de Microfísica do Poder (em uma outra conjuntura histórica e política), entendendo-a como uma rede de articulação de poderes, que atravessa as relações sociais e as interações entre os grupos e as classes. Hoje, Tavares dos Santos (2002) conceitua como “microfísica da violência”, visando assim classificar esses episódios da vida cotidiana que se colocam na atualidade e que não apresentam uma solução por parte dos organismos estatais ou, quando esses se manifestam, apontam para práticas que associam a criminalidade à pobreza e exclusão social, como no caso do Rio de Janeiro, que tem realizado investimentos maciços nas Unidades de Polícia Pacificadora-UPP como política de segurança pública, nas áreas de favela da região metropolitana, promovendo, assim, a associação entre violência versus pobreza versus criminalidade, algo já refutado por vários pesquisadores da área.

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É das mais perversas a associação de pobreza com violência. As noções das violências como derivadas diretamente da população pobre são amplamente divulgadas em nossa sociedade, em um processo que constitui uma dupla violência: já punidas pelas violências geradas pela própria pobreza, as camadas pobres de nossa sociedade sofrem por serem consideradas “classes perigosas”. Soares (2004) acredita ser preciso reconhecer que há laços prováveis entre determinadas realidades que, “conseqüentemente, tendem a conviver (ou seja, quando encontrarmos uma delas, será mais provável que encontremos as demais)” (BARROS, 2005, p. 24). É partindo dessa análise que se insere a discussão sobre a questão da violência doméstica no contexto do Brasil contemporâneo, ressaltando que, no estudo de tal temática, torna-se relevante sobressaltarmos a questão de gênero, destacando que as análises sobre a violência doméstica perpetrada em mulheres têm sido realizadas, na literatura, de maneira difusa e, em alguns contextos, até de forma contraditória, não se levando em conta as questões acerca da violência de gênero ocorrida, como os discursos sexistas, a dominação masculina, as humilhações que buscam ajustar “os comportamentos anormais”, o assédio sexual, entre outros (OSÓRIO, 2005). Saffioti (2004) coloca que existe uma determinada omissão, que ocorre em relação à violência no ambiente doméstico e se dá por dois motivos: a vergonha sentida pela vítima da violência e o “pacto de silêncio”, ou “muro do silêncio”, que a sociedade criou para tratar das questões pertinentes a comportamentos e problemas dentro da família, tornando o problema privado, ou seja, particular. Essas práticas demonstram que ainda permanece em nossa sociedade muito presente a concepção de “família” influenciada por questões tradicionais e místicas: envolta como uma instituição “sagrada”, pela superioridade masculina (destacando o papel do homem como provedor/chefe de família) sobre a feminina (cujo papel é o de mãe/cuidadora da família). Percebe-se, nesse caso,

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uma postura de preservação da instituição familiar através da dominação patriarcal e nas relações de desigualdades de gênero (muito presentes nas diferenças salariais, na divisão das tarefas entre os sexos etc), reforçando a dominação do homem perante a mulher, ou seja, o patriarcalismo (ANDRADE, 2005). Nesse caso, nota-se uma grande variação das Representações Sociais15 no que concerne à questão da violência doméstica, bem como relacionada à idade e ao sexo desses sujeitos, o que denota uma apropriação difusa e por vezes oscilante desta temática, necessitando, dessa forma, de uma (re)construção de significados e de valores inerentes a essas práticas, para que se sobrepujem alguns conceitos como o de patriarcado e dominação masculina, ainda vigentes em nossa sociedade. No que tange à violência doméstica contra crianças e adolescentes, sabemos que é um fenômeno social que vem crescendo a cada dia e apresenta caráter democrático, acometendo todas as classes sociais. Ela é concebida, segundo Azevedo e Guerra, (1998, p. 34) como

todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra a criança e adolescente que, sendo capaz de causar, à vítima dor ou dano de natureza física, sexual e/ou psicológica, implica, de um lado uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto. De outro, leva a coisificação da infância, isto é, a uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

Ela se expressa no âmbito das relações domésticas, ou seja, é mais abrangente que a violência intrafamiliar (aquela

15 As Representações Sociais nas Ciências Sociais são definidas como catego-rias de tripla natureza: pensamento, ação e sentimento. Estas reproduzem a realidade através de explicação, justificativa ou questionamento. Sua maior importância está na característica de mostrar-se presente nas mais diversificadas correntes ideológicas so-bre o social ao longo da história e também por abranger elementos cognitivos, afetivos e sociais. Para obter maiores esclarecimentos, ver: SPINK, Mary J. Desvendando as Teorias Implícitas: uma metodologia de análise das representações Sociais. In: Textos em Representações Sociais. Pedrinho A. Guareschi e Sandra Jovchelovitch. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1995.

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que ocorre apenas dentro das relações familiares) e ainda pode ser agrupada em cinco tipos de violência, de forma geral: a Negligência, o Abandono, a Violência Psicológica, a Violência Física e a Violência Sexual (envolvendo o Abuso Sexual e a Exploração Sexual Comercial)16 .

Sabemos que os prejuízos causados àquelas pessoas vítimas de violência doméstica são incomensuráveis. Contudo, para título deste estudo, não nos aprofundaremos nas descrições dos diversos tipos de violência, mas nos novos contornos políticos que têm sido dados a essa questão.

Por se tratar de um tema delicado, complexo e que permeia o imaginário social das pessoas, uma vez que a violência doméstica, principalmente a sexual, implica a violação dos direitos de crianças e adolescentes (na construção de sua sexualidade, na aniquilação da pessoa como sujeito) através de tabus sociais como o incesto e o assédio sexual, essa discussão causa grande desconforto na família e entre os próprios profissionais e autoridades envolvidas nessas questões, os quais muitas vezes corroboram discursos e práticas voltadas à estigmatização e simbolismos sobre o controle do corpo sexual feminino, como no caso da menstruação, da maternidade e de outras funções ditas femininas, sem falar da afirmação de práticas que reforçam modelos pautados na figura masculina, sem levar em conta os novos contextos sociais que se instalaram na dinâmica familiar.

Conforme vários estudos e pesquisas realizados em torno da temática, verifica-se que a maioria dos indivíduos que praticam atos de violência doméstica contra crianças e adolescentes são familiares, amigos íntimos da família ou pessoas conhecidas nas quais esses sujeitos confiam (ABRAPIA, 2002). Tal posição de confiança na qual esses agressores se encontram, bem como a posição indefesa das crianças e adolescentes em seu seio familiar, aliada, em algumas situações, aos processos de dominação

16 Para maior detalhamento das ações, ver: ABRAPIA. Maus-tratos contra crian-ça e adolescentes – proteção e prevenção: guia de orientação para profissionais da saúde. 2ª. Edição. Petrópolis, RJ: Autores & Agentes & Associados, 2002.

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exercidos sobre a utilização do corpo feminino como objeto sexual (práticas ainda muito permissíveis em nossa sociedade) torna mais fácil o crime ser encoberto ou a criança ou o adolescente ser persuadido(a) a manter-se calado(a).

Dessa feita, para o desvelamento de questões que encobrem a violência doméstica contra crianças e adolescentes, torna-se necessário um conjunto de políticas públicas voltadas para o reconhecimento dos direitos dessa parcela da população, ou seja, desse público que se encontra em pleno desenvolvimento. Do mesmo modo, é necessária a formação de uma equipe multidisciplinar especializada que compreenda os diferentes fenômenos que encobrem a violência doméstica perpetrada, as questões de gênero suscitadas, favorecendo a superação da situação da violação de direitos, a reparação da violência vivida, o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, a construção de rede de proteção social para a família, a potencialização da autonomia e o resgate da dignidade, assim como a construção de uma sexualidade “natural” para crianças e adolescentes, visando, assim, à implementação de políticas sociais, preconizadas pelo Estado e capazes de atender às demandas postas e ao cumprimento da lei.

A Constituição dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes no Brasil

Como já explicitado, a discussão acerca do reconhecimento dos direitos humanos de crianças e adolescentes é recente e toma relevância com a articulação da sociedade civil organizada, os movimentos sociais na década de 1980, com o surgimento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente-CONANDA e a entrada da questão social e seus determinantes voltados ao público infanto-juvenil na agenda de problemas públicos, principalmente preconizados pela Constituição Federal

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de 1988, pela Convenção Internacional de Direitos Humanos (1989) e pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA – Lei 8069/90).

Segundo Rodrigues e Lima (2007), o significado que a infância adquire ao longo da história aponta para uma ambivalência de uma classe rica e outra pobre, em que a primeira estava protegida no aconchego de seu lar, enquanto à outra cabiam a vigilância, a liberdade e os perigos da rua. À criança rica era dada a educação; à criança pobre, o trabalho e a formação profissional. Assim, o modelo de família burguês e sua concepção de infância, com o apoio da Psicologia, médicos higienistas e dos filantropos, tornam-se hegemônicos na sociedade durante longos períodos.

A Organização das Nações Unidas-ONU foi um ator importante na construção dessa nova “consciência” de infância, porém é somente com a aprovação, em 1959, da Declaração dos Direitos da Criança (Resolução nº. 1386) que as crianças deixam de ser “meros recipientes passivos”, para serem reconhecidos como sujeitos de direito internacional.

Assim, no Brasil, desde a gênese dos Códigos de Menores de 1927 e 1979, pela criação do Sistema de Atenção ao Menor-SAM (1941), que originou a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor-FUNABEM e as Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor-FEBEM’s, notadamente instaurou-se, até a década de 80, uma política de atenção à infância e juventude direcionada à criminalização da pobreza referente a esse segmento. Da mesma maneira, suas vulnerabilidades sociais eram enfrentadas como “casos de polícia”, em uma ótica repressora, sem qualquer atenção aos seus direitos enquanto sujeitos em desenvolvimento.

Nos anos 80, surge no cenário nacional uma série de movimentos sociais, dentre eles o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua-MNMMR e, em destaque, a Pastorada Criança17 , visando mudar o paradigma assistencialista

17 A Pastoral da Criança foi lançada em maio de 1982, por Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo, e pelo Mr. James Grant, então Diretor Executivo do UNICEF, em Genebra, durante debate sobre os problemas da pobreza e a paz no Mundo. No ano seguinte, a CNBB confiava a tarefa de criação e desenvolvimento da

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de atenção ao “menor”, o qual privilegiava apenas o discurso de “enquadramento social” de crianças e adolescentes que manifestavam vários problemas ligados aos determinantes da questão social, tais como a pobreza, a fome, a dependência química, a violência doméstica, a prática de pequenos furtos, dentre outros.

Entretanto, é pela Constituição Federal de 1988 que a infância passa a ser protegida por lei, fazendo com que a criança e o adolescente tornem-se cidadãos com suas próprias necessidades, conforme nos mostra o artigo 227:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988, p. 148)

Como continuidade da proposta de atenção integral à criança e ao adolescente, após a pressão dos movimentos sociais, cria-se o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8.069/90), atentando para o aspecto de que esses agora são sujeitos de direitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, sendo o Estado, a família, a comunidade e a sociedade os responsáveis por provê-los em suas demandas.

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária (Brasil, 1991, Art. 4, § 2).

Pastoral da Criança a Dom Geraldo Magella Agnelo, então Arcebispo de Londrina - PR e à médica pediatra e sanitarista Dra. Zilda Arns Neumann. Em setembro de 1983, a Pastoral da Criança iniciava suas atividades no Município de Florestópolis, no Paraná. Hoje, a organização está presente em todo o Brasil, com uma metodologia própria de atenção à criança e sua família, envolvendo fé e vida, tendo como centro a criança dentro do contexto familiar e comunitário. Retirado do site: www.pastoraldacrianca.org.br

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É importante ressaltar o grande salto que o ECA significa no que tange às representações sobre a infância em nossa sociedade. Contudo, não podemos esquecer que a maior parte de suas atribuições continua restrita ao domínio legal, não tendo sido definitivamente implantada na sociedade em forma de ações concretas. A qualificação dos serviços e programas voltados para os direitos da criança e do adolescente começou a se explicitar mais claramente nos últimos anos, tornando-se necessário que sejam realizadas medidas estratégicas que garantam a potencialização dos usuários, a qualificação e melhora dos serviços e programas oferecidos, principalmente aqueles voltados à violação de direitos, como a violência sexual.

Contudo, hoje, quando se fala em direitos de crianças e adolescentes, coloca-se em discussão que os mesmos são de resposabilidade da família, do Estado e do poder público de forma geral, fazendo com que tais ações sejam desenvolvidas por um sistema interligado e trazendo à tona o conhecido Sistema de Garantia de Direitos-SGD.

De acordo com Neto (2005), o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente-SGD constitui-se na articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle social para a efetivação dos direitos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal, envolvendo, de forma articulada, dieferentes atores: Conselho Tutelar, Ministério Público, Defensoria Pública, Delegacias Especializadas, Vara da Infância, Juventude, a Família, o Tribunal de Contas, as Prefeituras, entre outros.

No entanto, após quase 18 anos de implantação do ECA, esse sistema, na prática, não está integralmente institucionalizado e vem trabalhando de forma desarticulada, com problemas na qualificação de seus operadores, e isso causa prejuízo na implementação de políticas públicas que garantam os direitos

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assegurados pela legislação em vigor.Todavia, novos dispositivos legais vêm sendo criados para

dar conta de um Estado que, ao longo dos tempos, não tem logrado êxito em relação à proteção social destinada à sociedade, tais como as novas legislações voltadas ao fortalecimento e cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Entre elas, destacam-se o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária-PNCFC, de 2006, que enfatiza a importância da convivência familiar e comunitária de crianças e adolescente como um direito fundamental, reforçando o papel da família como rede primária de socialização e tentando minimizar o problema das mais de 20 milhões de crianças em situação de acolhimento institucional no país; e a Lei 12.010 de 03 de agosto de 2009, conhecida como a “Nova Lei da Adoção”, que altera diversos artigos do ECA e ainda destaca a premência na celeridade nos processos de adoção (institui o prazo máximo de acolhimento institucional de crianças e adolescentes, que agora não deve ultrapassar 2 anos), entre outras alterações que se fazem necessárias para resguardar a esses sujeitos o direito de serem criados em suas famílias ou, na impossibilidade dessas, em uma família substituta.

De forma mais recente, foi sancionado, em 14 de dezembro de 2011, o Projeto de Lei-PL 7672/10, que prevê a punição de pessoas que praticarem agressões físicas contra crianças e adolescentes, referendando a determinação do ECA de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e devem ser privados de qualquer ato violento. A lei ficou conhecida como a “Lei da Palmada” e gerou grandes questionamentos em diversos setores da sociedade civil organizada ao retomar discussões de temas recorrentes, como a “intromissão do Estado na vida das famílias”, “o policiamento da educação da classe popular”, a criação de leis para destacar a ausência do Estado no investimento de políticas sociais, a “judicialização da vida”18 , a “judicialização

18 A expressão “judicialização da vida” pode ser mais bem aprofundada em: FOCAULT, 1999, e PASSET, 1999 e 2006.

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da questão social19 e, especialmente, a “penalização da pobreza”, entre outros temas que já estiveram presentes em nosso processo histórico e que hoje revisitam as práticas assistenciais com uma nova roupagem.

As representações sociais da população pobre enquanto “classe perigosa” expressam a singularidade dos espaços sociais no processo de reprodução social, espaço em que a miséria e a ausência das garantias de cidadania são peculiares, acrescidas da negação dos padrões próprios culturais e das estratégias de sobrevivência desenvolvidas. A demonização da família enquanto espaço restrito da violência contra crianças e adolescentes recai sobre as famílias pobres da sociedade, que passam a ser destacadas como principais focos de violência doméstica, ocasionando a punição dos pobres como “nova tecnologia de gestão da miséria nas sociedades desenvolvidas” (WACQUANT, 2001, p. 6) e ganhando expressão também nas sociedades menos desenvolvidas. (BARROS, 2005 p. 25)

Como se pode observar, apesar dos significativos progressos proporcionados pelo advento do ECA, no sentido da garantia de direitos de crianças e adolescentes, percebemos que tem sido uma questão bastante incisiva deste século XXI a sobrevalorização da responsabilidade da família no que tange à provisão dos seus bens, uma vez que temos visto uma progressiva retirada das funções do Estado como provedor de políticas sociais e uma postura de punibilidade dessas famílias diante de seus “fracassos”, associando a violência doméstica a sua condição social, como se a pobreza estivesse condicionada à criminalidade e violência.

Como vimos, é a recorrência de tal processo que tem sido chamada de “judicialialização da questão social”, ou seja, repassam-se para o plano jurídico, como forma de punição dessas famílias

19 Para maior compreensão sobre a judicialização da questão social, ver: AGUINSKY, Beatriz G. e ALENCASTRO, Ecleria H. Judicialização da questão social: rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no poder judiciário. In: Revista Katálysis, Florianópolis – Santa Catarina:2006 – V. 9 N.1 jan/jun.

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pobres, questões (como no caso da violência doméstica contra crianças e adolescentes) que poderiam ser solucionadas no plano legislativo, com a formulação de projetos de leis que atendessem às demandas efetivas da população, e no plano executivo, através da implementação de programas e projetos sociais.

Finalizando o debate: a consolidação de uma política de direitos humanos para crianças e adolescentes no Brasil

O ECA, diante dos seus 20 anos de implementação, apresentou significativos avanços em nossa sociedade, principalmente no que concerne à mudança de paradigma relacionado à infância e juventude, não entendendo essas pessoas como objeto de ação do Estado, ou seja, pelo viés da “questão social/pobreza como caso de polícia”, mas vinculando a sua condição de sujeitos de direitos, pessoas em condição de desenvolvimento de suas potencialidades.

Contudo, sabemos que a efetiva materialidade do ECA ainda se encontra em um processo de construção e atrelada às demais conquistas no campo das mobilizações sociais acerca da questão da criança e do adolescente que também enfrentam alguns obstáculos para a efetivação diante das políticas sociais de corte neoliberal, que surgem em seu bojo, subjulgadas a um Estado reduzido em suas funções como provedor público e que implementa políticas focalizadas, clientelistas, assistencialistas, visando apenas tratar de forma paliativa e privatista a questão social.

Assim, no caso da violência doméstica, surgem alguns desafios que são impostos ao trabalho com crianças e adolescentes. Dentre eles, destaca-se o trabalho com famílias em situação de vulnerabilidade social20 e que, de acordo com Draibe (2004),

20 Cabe aos profissionais o entendimento de que hoje não se pode mais falar de um modelo único de família como no passado (patriarcal, nuclear burguesa), mas de modelos de “famílias”, já que a família hoje deixou de ser uma unidade de produção para ser uma unidade de consumo e não mais se caracteriza por laços de consanguini-dade, mas principalmente por laços de afinidade.

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tem como um dos grandes objetivos a utilização dos Programas de Renda Mínima como um reforço complementar à renda dessa clientela, no sentido de garantir alimentação e o acesso a equipamentos sociais básicos. Amplia, assim, a capacidade das mesmas de suprir suas necessidades sociais básicas, que devem ser providas por políticas públicas relacionadas a esse segmento.

Nessa perspectiva, faz-se necessário que o Estado invista em uma política social de qualidade e com sólidos objetivos de erradicação da miséria, fome, violência, violações de direitos e vulnerabilidade social, viabilizando Educação, Saúde, Habitação, Programas de Geração de Emprego e Renda, Rede de Serviços Comunitários de Apoio Psicológico, Social e Cultural às Famílias, visando atender às demandas reais dessa população que se encontra em contextos sociais diversos e está arregimentada nas legislações sociais vigentes em nosso país. Só dessa maneira poderemos ver o Estatuto da Criança e do Adolescente e o ECA em sua materialidade.

Valeoaindaoressaltaroqueoéorompendoocomopráticas assistencialistas, moralistas, centralizadas e impregnadas de um discurso que ainda promove a desigualdade nas relações de gênero (quando se utiliza da dominação masculina para propagar o uso do corpo feminino na infância e adolescência ainda como moeda de troca e, a partir de então, permitir a propagação das diversas violações sexuais, como a exploração sexual comercial e os casamentos prematuros) e de classe (quando se dá um tratamento desigual às classes mais empobrecidas, em que suas demandas por direitos humanos são repassadas ao plano jurídico para serem legitimadas, seja através das ações públicas seja nos Juizados Especiais) que estaremos refutando esses novos fenômenos como a “judicialização dos conflitos sociais”.

Segundo Esteves (2005), utilizando-se das ideias de Garapon (1999, pp. 227-228), a sociedade vem passando por uma evolução em que se consolida a ideia que “se no século XIX, da ordem liberal, houvera uma preponderância do legislativo, e no século XX, sob a égide da providência, foi a vez do executivo, o século XXI caminha para ser o da supremacia do judiciário”. Ele ainda destaca:

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Enfraquecidas as formas de reivindicação social através do diálogo parlamentar possibilitado pela cidadania política, através do qual se reconheceram direitos que foram positivados, mas não adquiriram eficácia, e da constatação de que, muitas das vezes, é a própria atividade governamental realizada pelo executivo que impede a consolidação dos direitos sociais, a sociedade passa a incumbir o judiciário na tarefa de possibilitar a efetividade dos direitos sociais e realização da cidadania social. (ESTEVES, 2005, p.16)

Nesse ponto, não estamos suprimindo a importância que o poder judiciário detém em nossa sociedade no sentido de manter a chama da justiça acesa e reparar as ações voltadas para práticas de violações de direitos humanos no país, conforme preconiza a Declaração de Viena de 1993, Art. 27:

Qualquer Estado deverá dispor de um quadro efetivo de soluções para reparar injustiças ou violações dos direitos humanos. A administração da justiça, incluindo departamentos policiais e de promoção penal e, nomeadamente, a independência do poder judicial e estatuto das profissões forenses em total conformidade com as normas aplicáveis contidas em instrumentos internacionais de direitos humanos, são essenciais para a concretização plena e não discriminatória dos direitos do homem [...].

O que ressaltamos e em que acreditamos é que o judiciário deve ser apenas uma das ferramentas a ser utilizada pela sociedade no caso de reparação das violações de direitos humanos, dentre elas a questão da pobreza, da violência doméstica contra a mulher, a criança e o adolescente, mas não pode ser utilizada como a principal, na aquisição de direitos humanos, uma vez que, conforme Lima Junior,

(...) o caminho legal não esgota as possibilidades de realização de direitos e há outra forma que se impõe à efetivação dos direitos humanos, que é dada pelas políticas públicas. E falar em políticas públicas é falar em um movimento maior àquele operado pelos três poderes que compõem o Estado. Pressupõe falar em sociedade civil organizada, em atores sociopolíticos, que, na condição de sujeitos históricos, buscam, através

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de um processo de luta, a construção de uma nova história, de uma nova sociedade, com justiça. (2002, p. 663)

Destarte, conforme ressalta o autor supracitado, a condição de promoção de uma efetiva política de direitos humanos que dê conta da superação dos determinantes da questão social no país só será possível quando houver o entendimento (a vontade política de nossos governantes) de que será necessário capitalizar esforços do Estado na implementação de políticas sociais nas três esferas de governo: União, Estados e Municípios, de forma pactuada com uma sociedade civil organizada e consciente de seu papel complementar na execução dessas políticas e de protagonista na defesa de seus direitos. Há também a importância da atuação das atribuições dos três poderes de forma conjunta, sendo o Legislativo, o Executivo e o Judiciário parceiros em suas ações, entendendo-se que já se vão 21 anos de promulgação de uma política que referencia crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, a qual necessita ser respeitada e consolidada (o ECA), atendendo a todos os seus preceitos legais na busca para uma sociedade menos violenta, desigual e mais cidadã, sem qualquer tipo de revitimização daqueles que já possuem seus direitos extremamente violados, como é o caso das classes mais empobrecidas de nossa sociedade.

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Adolescentes e medida socioeducativa: discursos em questão

Andreia Gomes da Cruz21

Janaína de Fátima Silva Abdalla22

Sharon Varjão Will23

Resumo: Este trabalho surgiu como um dispositivo de análise das nossas experiências como professoras do curso de formação continuada realizado pela Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, do DEGASE, envolvendo cerca de duzentos operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, e teve como objetivo analisar alguns discursos construídos a respeito dos adolescentes internados em medida socioeducativa de privação de liberdade, recorrendo às falas dos sócio-educadores agentes e técnicos, participantes desse curso. Tais discursos contribuem para o processo de subjetivação dos jovens e constituem a própria instituição e seus operadores sociais.

Palavras chaves: adolescentes, discursos, sociopedagógico e privação de liberdade

21 Doutoranda em Educação e Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).22 Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Diretora da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, do Departamento Geral de Medidas Socioeducativas – DEGASE23 Psicóloga, Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Introdução

Na ocasião trabalhamos ministrando aulas e promovendo o debate sobre a prática socioeducativa. Em nossa proposta de trabalho, dedicamo-nos a desconstruir/construir conceitos sobre o sentido de infância e de adolescência; os diversos conceitos de família; as questões referentes ao uso de drogas e à criminalização; o conceito de instituição fechada e a medida de internação; a contextualização sócio-histórica dos diversos processos de punição e como se constrói o que temos hoje, como medida socioeducativa, definida pelo ECA, dentre muitos outros atravessamentos sobre a prática de trabalho direta com os adolescentes.

Um dos aspectos interessantes deste trabalho foi a oportunidade de visitarmos alguns institutos, conversarmos com os socioeducadores e observarmos a estrutura e o modo de funcionamento um pouco mais de perto, já que para entrar nestas instituições é necessário autorização da direção e, muitas vezes, até mesmo autorização judicial.

O presente trabalho foi escrito, então, a partir das experiências como professoras no referido curso, em que participamos de debates e, também, a partir da análise dos textos escritos pelos alunos para sua avaliação do curso, em que se discutiu a temática socioeducacional e, principalmente, desenvolveram-se pensamentos sobre a prática de cada um.

Política pública , Socioeducação e adolescentes

Diante de uma conjuntura extremamente complexa, nota-se que o adolescente tem uma participação “chave” nos vários segmentos que o envolve, ou seja, a política governamental, a mídia, o ministério público, as empresas de modo geral, entre outros. O assunto adolescente pobre e/ou em conflito com a lei

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atravessa esses setores das mais variadas formas, promovendo e produzindo subjetividades, isso é, modos de perceber e encarar a realidade, alcançando uma maioria, como sendo o ideal de vida, uma gradativa escala que promove um bem-estar social padrão.

Coimbra e Nascimento nos alertam que o que se pensa e espera da realidade não existem em si; são constantemente fabricados.

Assim, as diferentes subjetividades se presentificam e se espalham por todo o tecido social. Engendram, por meio de nossas práticas, diferentes dispositivos de poder, diferentes máquinas sociais que, em seu funcionamento, fortalecem certas modalidades de vida e de existência. Ao entender e problematizar as forças que estão no mundo e os modos como elas nos atravessam e nos constituem, podemos pensar como se dá, hoje, a gestão das vidas, em especial as dos jovens. Que subjetividades vêm sendo produzidas hegemonicamente como técnicas de governo, de tutela sobre as vidas? Quais tem sido construídas para determinados segmentos como os marginalizados, os desqualificados, os inferiores? (COIMBRA e NASCIMENTO, 2009, p.42)

Nota-se que, em virtude da ação esmagadora de diversas forças de influência e determinação de um ideal de sociabilidade, o jovem vem sendo enquadrado na categoria de ser em formação e lhe é atribuída uma natureza, uma essência. Suas características são generalizadas e enquadradas em rótulos. Ao adolescente, são atribuídas características como vigor, entusiasmo, impulsividade, questionamento, rebeldia, utopia, agressividade – combustíveis históricos para as grandes transformações. Assim, as resistências e lutas que se fazem cotidianamente são percebidas como perigosas.

Atribui-se a essas subjetividades características próprias de certas classes. Assim, os jovens das elites seriam naturalmente alegres e entusiasmados e os das classes pobres, violentos, agressivos, perigosos e criminosos em potencial. Desse modo, o poder responde a esses movimentos de resistência, cria normas, medidas e identidades, no caso dos adolescentes, o poder captura aquilo que pode se tornar perigoso.

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Desse modo, certos pontos-chave encontram-se suprimidos e diretamente ligados a processos de exclusão dos adolescentes, ou seja: a família, a escola, o mercado de trabalho etc. Meninos e meninas pobres e/ou em conflito com a lei são construídos a partir de um modelo que representa a situação de vida de uma minoria. Tenta-se inseri-los em uma realidade que não é aquela com que se defrontam.

Energia fundamental na constituição do mercado de mão-de-obra, os adolescentes acabam sendo, ao longo da história, objeto permanente do poder punitivo e do encarceramento. Mostra-nos Malaguti Batista que

entre os séculos XVI e XVII, a constituição de uma sociedade de classes impões novas necessidades de ordenação. O Estado reprime a vadiagem e gera leis de expropriação de terras comuns, que concentrarão os pobres na cidade. Nesse contexto, surge na Inglaterra a lei dos pobres, de 1601. Em tal conjuntura, o rei Henrique VIII determinou a execução de 72 mil ladrões, a maioria dos quais “ladrõezinhos”, como as crianças e os jovens miseráveis descritos nos romances de Charles Dickens. (BATISTA, apud BOCAYUVA, 2009, p.93)

A partir dos séculos XVII e XVIII, com a constituição da prisão como pena, descrita por Foucault em Vigiar e Punir 24, o crime passa a ser tratado pela lógica penal e um grande contingente de crianças e adolescentes passa a ser internado – seja em reformatórios, em colégio internos, seminários católicos ou mesmo na prisão. A internação, o controle e a exclusão social vão se construindo desde então.

A partir do ECA se modificam, na lei, os direitos da população infanto¬-juvenil brasileira. Nele se afirma o valor intrínseco da criança e do adolescente como ser humano, a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento, o valor prospectivo da infância e adolescência como portadora de continuidade do seu povo e o reconhecimento da sua situação de vulnerabilidade. Isso torna as crianças e

24 FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 19. ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda., 1999.

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adolescentes merecedoras de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado. devendo esse atuar mediante políticas públicas e sociais na promoção e defesa de seus direitos.

A adoção dessa doutrina em substituição ao velho paradigma da situação irregular (Código de Menores – Lei n° 6.697, de 10 de outubro de 1979), com seu caráter discriminatório que associava pobreza à “delinquência”, omitindo, assim, as reais causas da exclusão, acarretou mudanças de referenciais e paradigmas com reflexos inclusive no trato da questão infracional. No plano legal, essa substituição representou uma opção pela inclusão social do adolescente em conflito com a lei e não mais um mero objeto de intervenção, como era no passado. Essa concepção cedeu espaço, assim, à garantia de direitos. Nesse sentido, com o ECA as crianças e adolescentes tornaram-se sujeitos de direitos, inclusive os jovens em conflito com a lei.

Visando concretizar os avanços contidos na legislação e contribuir para a efetiva cidadania dos adolescentes em conflito com a lei, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)25 , responsável por deliberar sobre a política de atenção à infância e adolescência – pautado no princípio da democracia participativa –, tem buscado cumprir seu papel normatizador e articulador, ampliando os debates e sua agenda com os demais atores do Sistema de Garantia dos Direitos (SGD).

Dois anos depois da criação do CONANDA, no estado do Rio de Janeiro, o DEGASE26 passa a ser responsável pela execução das medidas socieducativas.

Assim, aos adolescentes que praticam atos infracionais recorre-se ao Estatuto da Criança e Adolescente (1990), que dispõe sobre o cumprimento de medidas socioeducativas.

25 O CONANDA. foi criado por Lei Federal no 8.242. de 12 de outubro de 1991.26 Decreto 18.403 de 26/01/93, por publicação no D.O.E.R.J de 27/01/1993, es-trutura básica da Secretaria de Estado de Justiça.

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O ECA tem como finalidade assegurar a esses adolescentes a possibilidade de superar a sua condição de exclusão, nesse sentido, as medidas socioeducativas englobam desde advertência; obrigação de reparar dano; prestação de serviço à comunidade; liberdade assistida; até a inserção em regime de semiliberdade ou a internação em estabelecimento educacional. (Art.112, I a VI)

Silva aponta que as medidas socioeducativas seguem o princípio da brevidade e da excepcionalidade, levando-se em conta sempre a condição peculiar do adolescente em conflito com a lei; além disso, a autora expõe também que a execução de medidas socioeducativas está amparada tanto no ECA (Lei nº 8069/1990) e na Lei 12.594/2012, bem como nas legislações internacionais. Nesse sentido,

a política de sócio educação é, portanto, responsável por proporcionar o atendimento socioeducativo aos adolescentes e jovens em conflito com a lei. Durante o processo socioeducativo, busca-se desenvolver ações de promoção pessoal e social, trabalho de orientação, educação formal, atividades pedagógicas, de lazer, esportivas, de profissionalização, bem como demais questões inerentes ao desenvolvimento do sujeito frente aos desafios da vida em liberdade. (SILVA, 2009, p.107)

Assim, no Estatuto da Criança e Adolescente, a doutrina de proteção integral à criança e ao adolescente torna-se de fundamental importância para o desenvolvimento de políticas e ações voltadas a esses jovens, além de ser o lastro de sustentação para medidas socioeducativas em nosso país. Destacamos, também, que as bases legais das políticas de socioeducação não se restringem apenas ao ECA e ao SINASE (2012), estando assentadas em legislações internacionais27 , nas quais o Brasil é signatário.

Compreendemos que a socioeducação é uma política pública resultante da participação e construção coletiva que englobam o

27 Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Declaração dos Direitos da Criança e do Adolescente (1959), Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), Regras de Beijin e Regras Mínimas das Nações Unidas para proteção dos menores privados de liberdade (1990).

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Estado e a Sociedade Civil, objetivando a proteção, a promoção pessoal, social, educacional, cultural etc; dos adolescentes que cometem atos infracionais e, consequentemente, encontram-se em conflito com a lei. Nesse sentido, compreendemos que a socioeducação se constitui como uma política jurídica-sancionatória de cunho sociopedagógico.

Cabe, assim, ao adolescente em processo socioeducativo receber atendimento multidisciplinar, ou seja, oportunidade de acesso à educação, à profissionalização e, principalmente, de estímulo ao vínculo familiar e comunitário. Dessa forma, a socioeducação precisa desempenhar um papel importante de mediadora entre os adolescentes em conflito com a lei e a sociedade, contribuindo, assim, para sua ressocialização, para que não voltem a cometer novos atos infracionais.

A sócio educação visa construir junto dos adolescentes e jovens novos e apropriados conceitos de vida, pela reflexão sobre valores, o fortalecimento dos princípios éticos da vida social e ainda o acesso destes aos bens e serviços socialmente construídos, de tal forma que os adolescentes e jovens privados de liberdade possam retornar ao convívio em sociedade, ressignificando o lugar que ocupam na sociedade enquanto sujeitos livres e cidadãos autônomos no âmbito das esferas social, cultural e política. (SILVA, 2012, p.107).

O adolescente e o discurso que se constrói sobre ele

Tomando o discurso como própria prática, a partir do referencial de Michel Foucault, tomaremos a seguir como documento de análise algumas descrições sobre o perfil do adolescente e sobre a medida socioeducativa, a partir da construção dos agentes disciplinares, dos professores, dos técnicos, dos gestores e diretores do DEGASE, ou seja, daqueles que vivem o processo na prática.

Observamos que na construção deste perfil se atravessam diversos discursos; seguem algumas falas:

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Quando o menor infrator entra para o cumprimento da sua medida socioeducativa ele se depara com regras e deveres aos quais não estão habituados no seu dia-a-dia. Desta forma tornando sua ressocialização mais difícil......o menor infrator hoje não vê a vida de seu semelhante como algo importante para outrem, eles não possuem padrões de respeito, dignidade e afeição. A vida de outrem é somente uma vida, a dele será sempre a mais importante e a forma que busca para aliviar um sofrimento, uma angústia ou mesmo desprezo que recebe de sua família ou comunidade.

Assim, o termo “menor”, como vimos nas falas acima, ainda é muito usado, apesar de o ECA aboli-lo. Vemos que muitas vezes ele diferencia o adolescente por sua classe social. Afinal, dificilmente um jovem de classe média recebe medida socioeducativa de internação.

Essa situação se mostra pela análise do perfil dos atendidos, nas falas daqueles que trabalham diretamente com eles:

Nós temos políticas diferenciadas para pobres e ricos, isso caracteriza preconceito, é o sistema de dois pesos e duas medidas, o rico dificilmente chega a responder o processo em regime fechado, o pobre sempre é encaminhado aos educandários, de onde sabemos que não sai muito diferente do que entrou.

Podemos ver na fala de dois diretores de unidades diferentes que, apesar de terem opiniões completamente opostas sobre a necessidade de internação e o tempo de permanência dos adolescentes internados, no que se refere à crítica à arbitrariedade e à política de diferenciação dos juízes, seus discursos se encontram.

O juiz pega o adolescente e joga aqui dentro, o garoto que foi pego pela primeira vez com droga, que nem está tão envolvido assim... Aí que ele entra no crime mesmo. E pelo estatuto (ECA), quem é pego pela primeira vez nem têm que ser internado, mas quem bate o martelo é o juiz. Aí aqui fica superlotado. O juiz não quer saber, pega e joga eles aqui.O adolescente é pego com droga e o juiz solta. Porque pelo ECA, quem é pego pela primeira vez não pode ficar internado. Isso faz os adolescentes se sentirem inatingíveis, porque eles sabem que não vão

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ficar aqui. E os que ficam sabem que vão sair logo. O garoto entra e quando a gente tá começando a fazer um trabalho com ele o juiz solta.

Nesta última fala, podemos ver um discurso muito comum, inclusive usado pelos defensores da diminuição da maioridade penal – o de que as medidas socioeducativas, da forma como são propostas, tornam-se um instrumento para a impunidade. Vemos outro exemplo na fala de um socioeducador agente:

O modelo de internação juvenil que hoje se apresenta é totalmente ineficaz, primeiro porque o menor já sabe que vai pra lá, o crime organizado já avisa “você vai ficar lá só até os 18 ou 21 anos depois você tá livre.” Já com isso em mente o jovem infrator se recusa a participar de qualquer programa ou projeto de ressocialização.

Essa diferenciação pela origem social e pela cor se agrava com a premissa da cultura da violência na favela que produz uma imagem negativa do seu morador. Ou seja, a ideia de que a sociabilidade da favela, fortalecida pelos efeitos da presença do tráfico, produziria efeitos negativos sobre os jovens, caracterizando-os como agressivos, inquietos, bárbaros e perigosos, ou em situação de risco, de vulnerabilidade social.

Crianças crescem ouvindo o tempo todo que o policial é o homem mau que sobe o morro e que o traficante da favela muitas das vezes é quase um herói para a maioria das crianças e adolescentes, que passam a sonhar em ter um fuzil tão grande e potente quanto os que eles veem todos os dias passando pela sua porta. E a primeira oferta de emprego que ele tem com chances de ganhar algum dinheiro (que não é pouco mediante o que se paga de salário mínimo) é no tráfico, lugar onde a maioria deles viram a vida toda irmãos, vizinhos e primos quando não pai e mãe vivendo nesta atividade por diversos motivos, inclusive por ter neste meio uma fonte de renda na comunidade. Esses adolescentes chegam no DEGASE vendo o agente como inimigo e o sistema em geral como um lugar que impõe regras e normas até então nunca experimentadas por eles...Outra problemática advinda das questões das drogas é a efetiva divisão dos internos em grupos diferentes devido à localidade onde moram. A rivalidade nas comunidades pobres e a disputa do tráfico e drogas

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por território de venda se reflete dentro do sistema. São colocados juntos adolescentes de comunidades diferentes, rivais ou que tiveram algum embate violento entre si no mesmo espaço interno da instituição. O resultado não poderia ser pior: separação de grupos por facção, agressões mútuas entre adolescentes cumprindo medida socioeducativa.

Ou seja, prevalece a premissa de que o morador da favela, por natureza (social, cultural, genética ou qualquer outra explicação), é bandido ou um potencial bandido. É o que chamamos de criminalização da pobreza. Como explica Paiva (PAIVA apud BURGOS, 2009, p.25),

Este “outro”, habitante dos espaços pobres segregados, é visto como ameaçador e é sujeito a toda uma espécie de preconceitos, discriminação, estigmas e violência física, que o transforma em um outro sempre suspeito, para o qual o remédio usualmente pensado é o maior incremento nas políticas punitivas de segurança e a possibilidade de encarceramento para que o “nosso” possa seguir vivendo sua esquizofrenia social.

Coimbra, em seu texto Direitos Humanos e Criminalização da Pobreza, mostra como,

[...] desde o final do século XIX, já se encontravam presentes nas elites brasileiras as subjetividades que constituem o dispositivo da periculosidade. Dispositivo este, apontado por Foucault (1996), que emerge com a sociedade disciplinar, em meados do século XIX. Presente entre nós até os dias de hoje, esse dispositivo vai afirmar que tão importante quanto o que um indivíduo fez, é o que ele poderá vir a fazer. É o controle das virtualidades; importante e eficaz instrumento de desqualificação e menorização que institui certas essências, certas identidades. Afirma-se, então, que dependendo de uma certa natureza (pobre, negro, semi-alfabetizado, morador de periferia, etc etc etc) poder-se-á vir a cometer atos perigosos, poder-se-à entrar para o caminho da criminalidade (PAIVA apud BURGOS, 2009, p.25).

Visitando algumas escolas dentro das unidades de internação e também a partir de conversas com diretoras e professoras dessas escolas, percebemos o quanto é valorizado o estudo como grande intervenção na vida dos jovens. Porém, todos

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com que conversamos, ao descreverem a escola e os atendidos, tinham um discurso unanime: que a escola era muito fraca, que os meninos tinham dificuldade de aprendizagem, eram muito atrasados, que muitos iam só porque eram obrigados e não faziam as atividades. Vejamos a fala de uma socioeducadora técnica:

Os adolescentes, mesmo sabendo que as atividades pedagógicas são obrigatórias e que é direito dele receber escolarização e profissionalização, costumam rejeitar tais práticas. Por isso, esclarecemos constantemente que a reavaliação da medida é realizada a cada seis meses através de um relatório em concordância com o PIA que apresenta pareceres de cada membro da equipe técnica em colaboração com os demais agentes educacionais que estão em contato mais direto com os mesmos.

Essa fala sobre a obrigatoriedade da escola nos alarma, mas nos mostra também que nem sempre o poder e o controle se exercem na forma da violência física. Quando falamos de direito a estudar, também precisamos pensar em seus aspectos de controle, afinal não há nada mais disciplinador do que uma escola. Um direito que na prática se torna mais um aspecto da medida, pois, se não for para escola, não é avaliado positivamente, e isso influencia no tempo em que vai ficar internado. Como a medida sócio educativa não determina um tempo (como a sentença no sistema prisional), mas se fundamenta em avaliações semestrais, o adolescente acaba indo para a escola obrigatoriamente. Nesse ponto, cabe questionar: a escola não poderia ser atrativa? O adolescente consegue compreender a importância da escolarização em sua vida? Por que eles preferem ficar trancados nos alojamentos em vez de ir pra escola?

Na prática, a medida socioeducativa se resume a ficar fora do convívio familiar e social, recebe do Estado o mínimo em educação, saúde, habitação, trabalho e lazer dentro do espaço institucional e, ao deixá-lo, não encontra nem esse mínimo; como não voltar às práticas infracionais mais comuns nos dias de hoje, sendo elas estratégia de sobrevivência?

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Considerações Finais

Muito embora o ECA e os órgãos normatizadores como o CONANDA apresentem significativas mudanças e conquistas em relação ao conteúdo, ao método e à gestão, essas ainda estão no plano jurídico, político-conceitual e administrativo, não chegando efetivamente aos seus destinatários: os adolescentes em conflito com a lei. Como vimos nas falas acima, a medida de internação ainda está muito longe de atender às exigências do ECA e do SINASE.

A esses adolescentes, a sociedade busca controlar recolhendo-os das ruas e reservando-lhes espaços próprios, fechados, longe dos “olhos” da classe média e elites. A exclusão engaja sempre uma organização específica das relações interpessoais ou intergrupais, de uma forma material ou simbólica, através da qual ela se traduz. Nesse caso, é a exclusão por meio de um afastamento, da manutenção de uma distância topológica, mais especificamente, a segregação, o asilo. Dessa forma, fica afastado da sociedade tudo que pode significar um mal ou uma ameaça; limpa-se da família e do corpo social tudo que pode contrariar os interesses de uma elite social e economicamente privilegiada.

O que temos é toda mídia e outros dispositivos sociais produzindo uma forma de encarar as crianças pobres de modo que a solução está sempre na segregação, no asilo, na internação – ou estão enquadrados como “infratores” vistos como monstros, bandidos e a esses só restam a vigilância e a privação da liberdade nos chamados pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), art. 122 – VI, “estabelecimentos educacionais”; ou quando não foram pegos cometendo ato infracional; ou os menores de 12 anos de idade, que são vistos como carentes, abandonados, coitados, e o asilo se justifica como “programa de proteção”.

Esse último deveria servir para salvaguardar os direitos previstos no ECA, inclusive os artigos 3, 4, 15, 16, entre outros,

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que se referem ao direito de liberdade. De fato, o que vemos é a privação desse direito, a partir do momento em que não se cumprem, com algumas exceções, o que está previsto no art. 92. Esse artigo define alguns princípios de funcionamento dos abrigos, como, por exemplo, o inc. VII – “Participação na vida da comunidade local”. Muitas vezes, justificando determinadas práticas pela falta de recursos e de segurança, vemos se mascarar a exclusão.

A medida de internação está prevista no ECA, no art. 112-VI, e o artigo 121 a descreve: “a internação constitui medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”. Para que possamos pensá-la, a partir de um enfoque histórico e genealógico, é preciso refletir como essa medida foi se constituindo através dos diversos jogos de verdade que foram sendo estabelecidos. O sentimento e os afetos com relação à criança foram se transformando ao longo dos séculos e com eles se institucionalizam as diferentes práticas de atendimento; práticas essas que produzem os objetos em cada momento da história, isto é, eles criam funções diferentes segundo épocas e práticas diferentes.

Entendemos, então, que durante séculos foram sendo produzidos práticas de atendimento às crianças e aos adolescentes, sempre legitimadas pelas referências dominantes da época, e a contextualização histórica nos permite ultrapassar a visão simplista da internação de adolescentes e crianças como prática isolada. Precisamos pensar quais são as práticas segundo as quais se constroem a criança, o adolescente ou menor infrator; precisamos atravessar as práticas disciplinares, de poder e produção de verdades, que estabilizam as objetividades na história.

Todos nós atuamos de alguma maneira na produção de subjetividade. Sendo assim, encontramo-nos em uma encruzilhada fundamental: ou vamos trabalhar na reprodução de modelos, ou vamos trabalhar agenciando novos modos e permitindo saídas para esse processo de produção de modos e sentidos de vida.

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Colocar em análise as práticas educativas é pensar o lugar e o poder que ocupamos: agentes, pedagogos, professores, psicólogos, assistentes sociais, médicos etc. Até que ponto nossa prática reproduz a neutralidade, o assistencialismo, a verdade e outras instituições, relações de forças que se estabelecem, tornando-se cristalizadas, naturalizadas, na forma de um saber que se apodera do outro?

Desimplicar-se das discussões acerca de nossa prática é desimplicar-se dos efeitos que ela produz. Acreditamos que uma proposta de política não soluciona/transforma em si os problemas nos quais estão circunscritos todo o sistema socioeducativo, que uma transformação não pode ser promovida apenas no patamar dos decretos institucionais, se não acontecer também nas aspirações daqueles que afinal vão efetuá-la.

Sendo assim, acreditamos que as práticas socioeducativas, assim construídas devem ser problematizadas, visto que as entendemos como produções históricas. Entender a situação presente exige uma análise do campo de força, do modo de funcionamento dos discursos e práticas construídos ao longo dos tempos.

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Parte II “Políticas e Socioeducação”

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O sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente e o Departamento Geral de Ações Socioeducativas

do Estado do Rio de Janeiro

Saturnina Silva28

Equipe Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso-AMSEG29

Resumo: O presente artigo apresenta o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente e sua articulação com o Sistema Socioeducativo.

Palavras-chave: adolescente, direitos, incompletude institucional, SINASE.

A estruturação do sistema de garantia dos direitos

A ideia de estruturação de um sistema de garantia dos direitos, na área da criança e do adolescente, foi evocada pela primeira vez por Wanderlino Nogueira no III Encontro Nacional da Rede de Centros de Defesa, realizado em Recife em outubro de 1992.

Para Nogueira, a estruturação desse sistema objetivava acentuar a especificidade da política de garantia dos direitos de crianças e adolescentes dentro do campo geral das políticas de Estado, reforçando seu papel no conjunto de ações estratégicas de “advocacia de interesses de grupos vulnerabilizados”.

Essa estruturação não contemplaria uma política setorial apartada, mas iria ressaltar a perspectiva de integralidade da ação, que deveria cortar transversal e intersetorialmente todas as

28 Assessora –AMSEG;29 Dulcinéia Seabra de Oliveira; Fatima Dias Alves Tremura; Maria Stela de Araujo; Hilton Luiz Machado Serra e Vera Lúcia da Silva Durão

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políticas públicas, incluindo nesse sistema o campo da “administração da justiça”, ao lado do campo das “políticas de atendimento”.

Para a implementação do sistema, evidenciava-se a necessidade de repensar as ações e as inter-relações institucionais relacionadas às diversas situações em que crianças e adolescentes necessitam de proteção, de forma a garantir direitos, definindo mais claramente os papéis dos diversos atores sociais responsáveis pela operacionalização do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, situando-os em eixos estratégicos e inter-relacionados. Evidenciava-se também a necessidade de fortalecer o controle externo e difuso da sociedade civil sobre todo esse sistema.

Nessa mesma perspectiva, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente-CONANDA, em deliberação conjunta, assinaram, em abril de 2006, a Resolução de nº 113, que dispõe sobre parâmetros para a institucionalização e o fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, com a competência de promover, defender e controlar a efetivação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, coletivos e difusos, em sua integralidade, em favor de todas as crianças e os adolescentes, de modo que sejam reconhecidos e respeitados como sujeitos de direitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, colocando-os a salvo de ameaças e violações a quaisquer de seus direitos e garantindo a apuração e reparação dessas ameaças e violações.

Nessa Resolução, a configuração do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente se estrutura a partir da articulação e integração em rede das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, a partir de três eixos estratégicos de ação na área dos direitos humanos: I) da defesa; II)da promoção; e III) do controle de sua efetivação.

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O eixo da defesa do direito

Art. 6º: O eixo da defesa dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes caracteriza-se pela garantia do acesso à justiça, ou seja, pelo recurso a instâncias públicas e mecanismos jurídicos de proteção integral dos direitos humanos, gerais e especiais, da infância e da adolescência, para assegurar a impositividade deles e sua exigibilidade, em concreto. (Resolução nº113, CONANDA, 2006)

Este eixo tem por finalidade o enfrentamento das ameaças e violações dos direitos de crianças e adolescentes a partir das ações e programas implementados pelas políticas públicas e órgãos incumbidos pela defesa dos direitos através de ações judiciais; apuração de irregularidades em instituições de atendimento a esse público; fiscalização das mesmas; mobilização social, entre outras mecanismos. Aqui, encontram-se as Varas da Infância e da Juventude, Promotorias públicas, Conselhos Tutelares, Secretarias Estaduais de Segurança pública, Delegacias Especializadas, entre outros. Incluem-se também os órgãos de defesa da Cidadania, como os Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECAS). Todos são responsáveis por prestar atendimento jurídico-social.

O eixo da promoção do direito

Art. 14º: O eixo estratégico da Promoção dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes operacionaliza-se através do desenvolvimento de ‘políticas de atendimento dos direitos da Criança e do Adolescente’, previstas no artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que integra o âmbito maior da política de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos. (Resolução 113, CONANDA, 2006)

A política de atendimento descrita no ECA em seu artigo 86 estabelece que sua operacionalização seja realizada “(...) através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios”.

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Ainda especifica, respectivamente em seus artigos 87 e 88, as linhas de ação e as diretrizes da política de atendimento com o objetivo de criar uma estrutura básica para que ocorram a promoção e a universalização dos direitos assegurados pelo estatuto. Entre as 7 (sete) linhas, estão: políticas sociais básicas; proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente; serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão. E, entre as 7 (sete) diretrizes, estão: municipalização do atendimento; criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federais, estaduais e municipais.

O eixo da promoção tem por finalidade promover os Direitos Humanos no sentido de propiciar através das políticas públicas a construção de espaços, programas e demais ações afins, que garantam a proteção integral à criança e ao adolescente e proporcionem o pleno desenvolvimento dos mesmos, fomentando a educação, a cultura, o esporte, o lazer, a saúde, a profissionalização, o atendimento de proteção especial, entre outros.

O eixo do controle do direito

Art. 21º: O controle das ações públicas de promoção e defesa dos Direitos Humanos da criança e do adolescente se fará através de instâncias públicas colegiadas próprias, onde se assegure a paridade da participação de órgãos governamentais e de entidades sociais, tais como: I – Conselhos dos direitos de crianças e adolescentes; II – Conselhos setoriais de formulação e controle de políticas públicas; e III – os órgãos e os poderes de controle interno e externo definidos nos artigos 70, 71, 72, 73, 74 e 75 da Constituição Federal. O controle social é exercido soberanamente pela sociedade civil, através das suas organizações e articulações representativas. (Resolução nº 113, CONANDA, 2006)

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Refere-se ao controle da efetivação dos direitos da criança e do adolescente, às ações de monitoramento da efetivação dos direitos desempenhado principalmente pelos Conselhos de Direitos, municipais, estaduais e nacionais, em conjunto com a sociedade civil organizada no sentido de acompanhar, propor, avaliar de uma forma geral os serviços prestados pelos órgãos e pelas entidades incumbidos de executá-los. Destacam-se os grupos religiosos, sindicatos, centros de pesquisas, fóruns, entre outros. Esses podem atuar de forma a acompanhar o funcionamento do SGD, apresentando demandas da sociedade e propostas na formulação das políticas.

O controle social do direito é campo preferencial e peculiar das organizações representativas da população, isto é, da sociedade civil organizada para o exercício desse controle, principalmente por meio de instâncias não institucionais de articulação (fóruns, frentes, pactos etc) e de construção de alianças entre organizações sociais.

Além das organizações da sociedade civil, esse eixo opera também a partir de instâncias públicas colegiadas próprias, em que, na maior parte das vezes, é assegurada a paridade da participação de órgãos governamentais e de entidades sociais, tais como os conselhos de direitos, os conselhos setoriais de formulação e controle de políticas públicas, os órgãos e poderes de controle interno e externo de fiscalização contábil, financeira e orçamentária.

Para acompanhar as formas de gestão, as avaliações e os encaminhamentos relacionados ao Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, é preciso estar atento às seguintes instâncias:

1) Secretaria de Direitos Humanos-SDH: órgão da Presidência da República que trata da articulação e implementação de políticas públicas voltadas para a promoção e proteção dos direitos humanos.

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2) Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente: instância colegiada de caráter deliberativo, formulador e normatizador de políticas públicas, controlador das ações e articulador das iniciativas de proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente. Os Conselhos constituem uma das formas de participação popular na gestão das políticas públicas e contemplam a seguinte organização política do país:

a) Nacional: CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

b) Estadual: CEDECA – Cada Estado organiza o seu Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente.

c) Municipal: CMDCA – Cada município organiza o seu Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

3) Conselho Tutelar: órgão público permanente e autônomo que deve zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente em conjunto com a rede de políticas públicas e da sociedade civil de cada município. As atribuições do Conselho Tutelar estão descritas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Em cada Município e em cada Região Administrativa do Distrito Federal haverá, no mínimo 1 (um) Conselho Tutelar como órgão integrante da administração pública local, composto de 5 (cinco) membros, escolhidos pela população local para mandato de 4 (quatro) anos.

4) Iniciativas da sociedade civil com práticas que buscam a defesa dos direitos da Criança e do Adolescente e complementam o atendimento oferecido pelo Poder Executivo.

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Atribuições e Competências de alguns dos Órgãos e demais atores que integram o Sistema de Garantia dos Direitos, responsáveis por assegurar efetivar a Proteção Integral.

1) Família: a primeira a ser responsável pela atenção à criança a ao adolescente, por proteger e zelar pelo os seus direitos, cabendo ao Estado oferecer à mesma condições para tal. A entrada do adolescente no Sistema Socioeducativo busca uma aproximação com a família, sendo essa chamada para uma ação em conjunta.

2) Os Conselhos de Direitos e Setoriais: são responsáveis pelo controle social e visam zelar pelos preceitos legais, pelas políticas públicas, e abertos à participação popular, como os conselhos do Direito da Criança e do Adolescente municipal (CMDCA), estadual (CEDCA) e nacional (CONANDA).

3) As ONG’s: responsáveis por complementar o atendimento através de projetos, programas nas diversas áreas e acesso às políticas públicas; sociedade civil organizada – participação popular a partir de representações e práticas nos espaços democráticos voltados para decisões relativas à população infanto-juvenil, nos fóruns, conferências, pactos, parlamento, auditoria, Conselhos; como exemplo, no processo de elaboração das propostas de leis orçamentárias pelo Executivo, nas discussões e aprovações pelo legislativo; participação essa prevista na Lei Complementar nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e Lei nº 10.257/00 (Estatuto das Cidades); os Conselhos, que possuem dentre outras funções: “(...) formular, deliberar e fiscalizar a política de atendimento e normatizar, disciplinar, acompanhar e avaliar os serviços prestados pelos órgãos e entidades encarregados de sua execução” (CONANDA, 2010, p. 68).

4) Conselho Tutelar: conforme Art. 131 do ECA, este órgão é permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Dentre as ações de sua competência, estão: representação,

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encaminhamento ao Ministério Público (MP), aplicação de medida de proteção adequada, atendimento e aconselhamento, aplicação de medida de responsabilidade, entre outras ações.

5) Ministério Público: órgão constitucional autônomo, incumbido de zelar pela defesa da ordem jurídica, dos interesses sociais e individuais indisponíveis e do próprio regime democrático.

6) Defensoria Pública: é um órgão público que garante às pessoas o acesso à justiça, ou seja, que permite às pessoas que não podem pagar ter um advogado especializado para orientá-las e defender seus direitos na Justiça.

7) Juizado da Infância e da Juventude: correspondentes às Varas da Infância e Juventude, são responsáveis por acompanhar o cumprimento das leis e das medidas de proteção, assim como das medidas socioeducativas e sua aplicação. Têm o dever de promover a interligação dos serviços entre o Conselho Tutelar, o Poder Executivo e a sociedade civil.

8) Delegacias de polícia especializadas: a Delegacia de proteção à Criança e ao Adolescente-DPCA é responsável pela repartição policial especializada para atendimento ao adolescente.

9) Poder Legislativo: responsável por promover a revisão das leis, monitorando e zelando para que o orçamento público, por ele apreciado e votado, contemple os recursos necessários à implementação das políticas públicas deliberadas pelos conselhos de Direitos e Setoriais e ao respeito ao principio constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente.

10) O Poder Executivo: responsável pela execução das políticas públicas, suas ações são executadas intersetorialmente a fim de garantir o acesso e a participação dos usuários. Insere-se aqui o DEGASE – Departamento de Ações Socioeducativas, enquanto órgão executor das medidas socioeducativas de semiliberdade e internação.

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Departamento Geral de Ações Socioeducativas – Novo DEGASE

“...O maior desafio do trabalho socioeducativo é o desenvolvimento nos adolescentes autores de atos infracionais de novas competências pessoais e relacionais: aprender a ser e conviver”Antonio Carlo Gomes da Silva,Desenvolvimento Social e Ação Educativa, 2004

Instituição integrante do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, fazendo parte do eixo de promoção, tem suas ações pautadas nas Normativas Internacionais, na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e nas diretrizes do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, agregando todas as mudanças estruturais apontadas no PASE-RJ (Plano de Atendimento Socioeducativo do Governo do Estado do Rio de Janeiro) e no PPI (Projeto Pedagógico Institucional).

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O Novo DEGASE – Departamento Geral de Ações Socioeducativas –, órgão vinculado à Secretaria de Estado de Educação, tem como missão promover socioeducação no Estado do Rio de Janeiro, favorecendo a formação de pessoas autônomas, cidadãos solidários e profissionais competentes e possibilitando a construção de projetos de vida e a convivência familiar e comunitária.

Criado pelo Decreto nº 18.493, de 26 de janeiro de 1993, o Departamento Geral de Ações Socioeducativas é um órgão do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro, responsável pela execução das medidas socioeducativas de privação e restrição de liberdade, preconizadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e aplicadas pelo Poder Judiciário aos jovens autores de atos infracionais.

Na sua implantação, foram formuladas as “Linhas Programáticas e Diretrizes Gerais para Estruturação do Sistema de Ação Socioeducativa”, destacando e reconhecendo a condição da criança e do adolescente de sujeito de direitos:

Assumir os paradigmas da Lei 8069/90 quando considera crianças e adolescentes: sujeito de direitos, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, prioridade absoluta. Promover ações de prevenção geral: na articulação com as políticas sociais básicas [...]. (Diretrizes Gerais, p.08)

As políticas sociais básicas citadas são as existentes na Constituição Federal de 1988, no artigo 227, que devem garantir o direito de forma universal, visando prevenir o ingresso de crianças e adolescentes no sistema jurídico-criminal, que dispõe:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar a criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito a vida, a saúde, a alimentação, a educação, ao lazer, a profissionalização, a cultura, a dignidade, ao respeito, a liberdade e a convivência familiar e comunitária, alem de colocá-los a salvo de toda forma de negligencia, discrição, exploração, violência, crueldade e opressão.

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Com o objetivo de alcançar a eficiência no cumprimento de ações socioeducativas sustentadas nos princípios dos direitos humanos, entendendo as medidas como responsabilizadoras, de natureza sancionatória e de conteúdo socioeducativo, essas ações devem sempre envolver o contexto social em que se insere o adolescente e a sua família e a integração operacional dos órgãos que integram o Sistema de Administração da Justiça Juvenil – Subsistema de Segurança Pública; o Subsistema Jurídico; e o Subsistema Executivo – todos necessariamente comprometidos com a inclusão desse adolescente e integrante do Sistema de Garantia dos Direitos.

Dessa forma, o DEGASE está em processo de reordenamento institucional participativo interno e externo, no âmbito de conteúdo, método e gestão sob a perspectiva e a necessidade da articulação dos três níveis de Governo e da corresponsablidade da família, da sociedade e do Estado, conforme diretrizes do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo-SINASE e do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária-PNCFC.

A perspectiva de garantia de direitos e as medidas socioeducativas para adolescentes

O Sistema de Garantia dos Direitos-SGD é constituído na articulação de políticas e de instâncias públicas que envolvem a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e de instâncias da sociedade civil que asseguram ações de Promoção, Defesa e Controle Social dos direitos e da política de atenção da criança e do adolescente.

O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo-SINASE faz parte das ações do SGD e apresenta referências detalhadas para execução da política nacional de atendimento aos adolescentes autores de atos infracionais. O SINASE é a lei que sistematiza um conjunto ordenado de princípios, regras e

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critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, envolvendo desde o processo de apuração de ato infracional e a execução da medida socioeducativa até os modos de gestão, avaliação e controle social.

Para assegurar o conjunto de ações que envolvem o Sistema de Garantia de Direitos no acompanhamento aos adolescentes em medidas socioeducativas, é necessária uma prática intersetorial na rede de políticas públicas, entre as quais destacamos:

1) O Sistema de Justiça, que envolve desde a apuração do ato infracional até a aplicação da medida socioeducativa, além do acompanhamento de seu cumprimento com instâncias que envolvem o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Poder Judiciário. A Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude indica, em estudo realizado em 2008, os Desafios do Sistema de Justiça da Infância e da Juventude para cumprir os papéis propostos pelo ECA.

2) O Sistema Único da Assistência Social-SUAS, que desenvolve um conjunto de ações socioassistenciais e tem como definição, entre seus usuários de serviços de média complexidade, o atendimento ao adolescente em cumprimento de medida socioeducativa em Liberdade Assistida e/ou Prestação de Serviço à Comunidade.

3) O Sistema Único de Saúde-SUS, que considera o atendimento em saúde conforme os princípios da universalidade e integralidade no acesso aos serviços em todos os níveis de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, exigidos para cada caso e em todos os níveis de complexidade do sistema.

4) A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional-LDB, que assegura o acesso à educação como dever da família e do Estado, com a finalidade do pleno desenvolvimento do educando, envolvendo seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

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Conclusão

Pode-se concluir que, no Sistema de Garantia dos Direitos, a organização das práticas de atendimento, a relação com o usuário e a gestão dos serviços devem estar pautadas no princípio da integralidade, entendido como um princípio de ação e não meramente como um conceito, levando a pensar em um atendimento em que haja integração tanto interdisciplinar quanto intersetorial.

Quer tomemos a integralidade como princípio orientador das práticas, quer como princípio organizador do trabalho, quer da organização das políticas públicas, integralidade implica numa recusa a objetivação dos sujeitos e talvez uma afirmação da abertura para o diálogo. (MATTOS, 2001)

É interdisciplinar, porque exige da relação dos gestores com os demais profissionais uma atuação em que haja a interligação dos conhecimentos, a fim de desenvolver um trabalho comprometido com um acolhimento de respeito e uma qualidade no atendimento, escapando de práticas reducionistas em que ocorre um trabalho fragmentado. Nessa perspectiva, há de se considerar os diferentes aspectos da vida, não somente dos adolescentes do sistema socioeducativo, mas de toda criança e adolescente enquanto sujeitos que possuem necessidades objetivas e subjetivas, ou seja, sociais, emocionais, biológicas, espirituais, entre outras.

É intersetorial, porque as instituições de atendimento não são completas em si mesmas, ou seja, necessitam da articulação e integração entre as diversas políticas públicas e sociais, abordada pelo SINASE (2006) como o princípio da incompletude institucional, ao se referir aos programas socioeducativos e da rede de serviços:

(...) a incompletude institucional é um princípio fundamental norteador de todo o direito da adolescência que deve permear a prática dos programas socioeducativos e da rede de serviços. Demanda a efetiva

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participação dos sistemas e políticas de educação, saúde, trabalho, previdência social, assistência social, cultura, esporte, lazer, segurança pública, entre outras, para a efetivação da proteção integral de que são destinatários todos adolescentes.

Segundo o SINASE, os parâmetros norteadores da ação e gestão pedagógicas para as entidades e/ou programas de atendimento as medidas socioeducativas devem propiciar aos adolescentes o acesso a direitos e às oportunidades de superação de sua situação de exclusão social. O atendimento deve estar pautado na incompletude institucional. Assim, a inclusão dos adolescentes pressupõe a articulação com todos os sistemas que compõem o Sistema de Garantia dos Direitos.

Os direitos sociais devem ser providos através da articulação e integração entre as diversas políticas públicas, inclusive buscando o fortalecimento da rede de atendimento para que ocorra efetivamente a proteção integral.

No entanto, para a efetivação do SGD é importante deter as condições necessárias para operar atividades de formação continuada, tendo em vista a construção de uma cultura de cidadania, na qual a exigibilidade e o respeito aos direitos humanos sejam princípios fundamentais.

A inclusão dessa discussão poderá constituir-se como uma estratégia primordial, por um lado, para difundir uma cultura de promoção, defesa e garantia dos direitos e, por outro, para mobilizar a sociedade em favor da efetivação desses direitos em parceria com os demais eixos do sistema, de modo articulado, integral e integrado.

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Referências bibliográficas

FREITAS, Taís. Serviço Social e Medidas Socioeducativas: O Trabalho na Perspectiva da Garantia de Direitos. Serv. Soc. Nº.105 São Paulo Jan./Mar. 2011BAPTISTA, Myrian. Algumas Reflexões sobre o Sistema de Garantia de Direitos Serv. Soc. Nº.109 São Paulo Jan./Mar. 2012SADER, Emir. Contexto Histórico e Educação em Direitos Humanos no Brasil: Da Ditadura à Atualidade. In: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy et al. Educação em Direitos Humanos: Fundamentos Teórico-Metodológico. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2007. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/fundamentos/index.htmEstatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990.BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.BRASIL. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo-SINASE. Secretaria Especial dos Direitos Humanos – Brasília-DF: CONANDA, 2006.CALASANS, Ingrid Catarina Soledade; BOHRER, Aryadne Martins Soares. Os Atores do Sistema de Garantia aos Direitos da Criança e do Adolecente e o Significado do Controle Social.

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O adolescente, a sociedade dos direitos e o trabalhador social: aonde vai dar tudo isso?

Heloisa Mesquita30 Anália Barbosa31

Resumo: Considerando as legislações vigentes e o debate atual referente ao adolescente autor de ato infracional, o presente trabalho se propõe a fazer uma reflexão acerca da metodologia das equipes multidisciplinares no trabalho desenvolvido com os adolescentes em conflito com a lei. Nesse sentido, apontamos as competências, responsabilidades e a importância de uma equipe qualificada, comprometida e proativa, possibilitando aos adolescentes e a suas famílias que o cumprimento da medida socioeducativa seja um momento potencializador e estratégico na construção de uma nova perspectiva de vida.

Palavras-chave: adolescente autor de ato infracional, equipe multidisciplinar, medida socioeducativa.

IntroduçãoTratar dos direitos de crianças e adolescentes nos remete

ao histórico das conquistas de tais direitos. Não será possível ir à linha do tempo em longínquo processo, mas é possível destacar marcos legais que passam pela Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), pela Convenção sobre os Direitos da Criança

30 Doutoranda em Política Social pela Escola de Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense. Superintendente da Proteção Social Básica da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos – SPSB – SEASDH.31 Mestranda em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Assessora Técnica da Coordenadoria Geral de Gestão do Sistema Municipal de Assistência Social – SIMAS da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – RJ.

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– resolução da ONU em 1989, ratificada pelo Brasil em 1990, e chegar ao processo mais recente dessa história no Brasil, quando o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) –, o PNCFCN – Plano Nacional de Convivência Comunitária (2005) –, o SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, ratificado pela Lei nº 12.594, de 18 de Janeiro de 2012, merecem destaque.

O reconhecimento do direito tem um longo caminho para se constituir como tal e envolve diferentes atores e agentes, isto é, um sistema que tem o eixo condutor como garantia e nele estão envolvidos, entre outros, o Judiciário e também o Executivo por meio de diversas políticas públicas e profissionais de diferentes formações.

É pertinente lembrar que, nesse contexto, a sociedade civil tem papel importante e que os movimentos em favor da criança e do adolescente são partes responsáveis por importantes conquistas que se expressam no rompimento com práticas assistencialistas e institucionalizantes; implica, também, novos olhares, posturas e práticas.

Esse movimento abrange uma cultura civilizatória na qual os profissionais, trabalhadores do campo social, merecem destaque na luta por marcos democráticos na afirmação de direitos. É necessário reconhecer que esse debate vem ganhando a adesão de outros profissionais.

A luta por uma sociedade justa e democrática tem no reconhecimento do direito importante ponto de convergência, que se expressa em questões específicas da classe trabalhadora por melhores condições de trabalho, por exemplo, mas também no projeto ético-político que traz o reconhecimento do outro e a aliança com ele na luta pela justiça social. Dessa pauta, faz parte o adolescente em cumprimento de medida socioeducativa que vive a contradição de infringir o direito e por ele ser responsabilizado, assim como ter historicamente ao longo de sua trajetória de vida tantos outros direitos violados, na medida em que, em geral, vê-se excluído de oportunidades e de condições dignas de sobrevivência. Há, portanto, um desafio para o profissional: desenvolver seu trabalho em articulação com os demais atores, potencializando as oportunidades visando reverter na vida do adolescente o histórico de exclusão.

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O direito como referência

A história de direitos tem importante bibliografia. Como um dos importantes teóricos, citamos Bobbio, para quem o direito é uma entidade complexa, não sendo exclusivamente racional ou lógica, mas também um fato, uma realidade empírica e, dessa forma, contextualizada historicamente. Ele afirma que as constituições modernas se baseiam na proteção dos direitos do homem, o que tem relação com a paz e a democracia com as quais forma uma interdependência, em que um é pressuposto do outro.

Essa afirmação trata da questão presente no Estado Moderno e trouxe uma mudança no modo de encarar a relação política, ao considerar o cidadão e seus direitos, o que ganha espaço em âmbito internacional, como na Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela ONU em dezembro de 1948 32.

A questão do direito não pode ser desvinculada do modelo de sociedade em que está inserida. No caso brasileiro, que tem sua história assinalada por períodos não democráticos33 , a matéria tem sido marcada por profundas desigualdades sociais, de injustiças, que provocaram mudanças não só no olhar, mas também no fazer, e acompanhada de proposições igualitárias, tendo como pauta o direito à cidadania. Essa questão, para o trabalhador social, envolve a proposição de nova cultura profissional calcada em um projeto ético-político hegemônico 34.

32 Fixou princípios importantes de proteção à família e a seus membros, declaran-do: “a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social”33 O Brasil viveu períodos de ditadura, merecendo destaque a longa gestão de Getúlio Vargas e governo Militar.34 Bobbio acredita serem os direitos oriundos de uma evolução histórica, uma vez que não nascem de uma única vez. Classificou os direitos em direitos de primeira geração (representados pelos direitos civis; as primeiras liberdades exercidas contra o Estado); segunda geração (representados pelos direitos políticos/sociais bem como seu perdão em razão do indultos; direitos de participar do Estado); terceira geração (econômicos, sociais e culturais; cujo mais importante seria o representado pelos mo-vimentos ecológicos) e quarta geração (exemplificados pela pesquisa biológica, defesa

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No Brasil, a Constituição define o tripé da seguridade social: assistência, saúde e previdência, visão que demarca uma nova relação com a cidadania dos sujeitos, em particular no que se refere à assistência social regulamentada em 1993, pela LOAS- Lei Orgânica da Assistência Social, complementada pela Lei 12.435/2011. Assim, o caráter de política pública não contributiva é afirmado, como também seu papel junto ao adolescente em cumprimento de Medida Socioeducativa, como poderá ser visto adiante. Outro marco legal presente e que traz importantes avanços para a política é o ECA (1990), que reconhece a criança e o adolescente como sujeitos de direito, tratados como foco prioritário na efetivação de políticas públicas. O Estatuto, dentre outras normas, afirma que a política de atendimento à infância e à juventude deve ser executada mediante uma articulação entre ações governamentais e não governamentais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, envolvendo as políticas sociais setoriais e diferentes formações profissionais.

O adolescente e seus direitos

Na perspectiva da responsabilização/proteção integral de adolescentes frente ao ato infracional, Garrido de Paula considera que:

A criminalidade infanto-juvernil brota, na maior parte das vezes, da ausência do Estado Social, ao mesmo tempo em que atenta gravemente contra a cidadania. Evidencia-se um procedimento de retroalimentação a incivilidade, de modo que causa e efeito se confundem, misturam-se num cipoal onde a barbárie revela-se sob a face da inevitabilidade. Estado de Desvalor Social, como um dos resultados e fonte principal da criminalidade infanto-juvenil. (DE PAULA, 2006, p. 27)

do patrimônio genético etc). Dessa classificação, podemos apreender que os direitos surgem de acordo com o progresso técnico da sociedade, isto é, as fases ou gerações refletem as evoluções tecnológicas da sociedade, que cria novas necessidades para os indivíduos. Essas ganham prioridade e hegemonia.

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Portanto, é necessário enfatizar a questão do direito da criança e do adolescente, reafirmando o dever do Estado de garanti-los por meio de políticas públicas que devem reduzir os fatores que possibilitam a aproximação do adolescente com o crime e da responsabilização frente a atos infracionais. Nesse sentido, envolve estabelecer medidas jurídicas que podem ser de proteção, como definido no ECA em seu capítulo II, merecendo destaque o artigo 101, em que as seguintes medidas são previstas: I) encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II) orientação, apoio e acompanhamento temporários; III) matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV) inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V) requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI) inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoolatras e toxicômanos; VII) acolhimento institucional; VIII) inclusão em programa de acolhimento familiar; IX) colocação em família substituta 35.

Cabe também estabelecer medidas socioeducativas e, nesse sentido, merece destaque o artigo 112 do ECA, segundo o qual, verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I) advertência; II) obrigação de reparar o dano; III) prestação de serviços à comunidade; IV) liberdade assistida; V) inserção em regime de semiliberdade; VI) internação em estabelecimento educacional; VII) qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.

Destaca-se ainda que a medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração; descarta qualquer possibilidade de trabalho forçado e, reconhecendo os possíveis limites, enfoca que os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.

35 Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009.

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Garrido de Paula (2006) sintetiza sua análise sobre o reconhecimento à responsabilização sem perder de vista a proteção integral:

Pretendendo sair da retórica da promoção dos direitos, disciplinou com exaustão a atividade de fiscalização dos estabelecimentos de internação coletiva, adotando a idéia da co-legitimação (Judiciário, Ministério Público e Conselho Tutelar), regulamentando punições administrativas, entre as quais o afastamento do dirigente de entidades. (DE PAULA, 2006, p. 38)

Reconhece, portanto, agentes estratégicos aos quais ouso agregar profissionais como o assistente social e outros trabalhadores sociais que atuam nas instituições e têm a obrigação de atentar para o cumprimento das medidas de forma saudável, com garantia de integridade e na perspectiva da integralidade.

O respeito à doutrina da proteção integral e à garantia de direitos envolve conhecer as bases legais e também desenvolver capacidade crítica. Assim, mais uma vez Garrido de Paula merece destaque:

O sistema de responsabilização, portanto, integra ramo autônomo do Direito, tendo base normativa internacional e regras constitucionais, sendo distinguido por princípios próprios, contando com diploma legal específico (ECA) que o separa das demais subdivisões. Além disso, o Direito da Criança e do Adolescente encerra disciplina própria, cuja didática particular determina o aprendizado de suas diferenças. (DE PAULA, 2006, p. 39)

A análise das normas vigentes que embasam o trabalho dos profissionais na execução da medida socioeducativa destinada aos adolescentes que praticaram ato infracional leva a observar a existência de um sistema formado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº8.069, de 13 de Julho de 1990, e a atual Lei que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, Lei nº 12.594, de 18 de Janeiro de 2012, como já citado, e desafia a conhecer processualmente seus trâmites para melhor orientar e garantir direitos.

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O SINASE traz como novidade a elaboração do Plano Individual de Atendimento, no qual deve conter o acompanhamento realizado pela equipe técnica e os procedimentos realizados com o adolescente em conflito com a lei para a superação da situação atual. Segundo a Lei, no seu artigo 52, parágrafo único, o cumprimento das medidas socioeducativas, em regime de prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade ou internação, dependerá de Plano Individual de Atendimento (PIA), instrumento de previsão, registro e gestão das atividades a serem desenvolvidas com o adolescente, e deverá contemplar a participação dos pais ou responsáveis, os quais têm o dever de contribuir com o processo ressocializador do adolescente, sendo passíveis de responsabilização administrativa, conforme previsto no ECA em seu art. 249.

A atuação profissional na garantia de direitos – participação da equipe técnica

O PIA é um instrumento que leva o profissional a atuar mediante um plano pactuado principalmente com o adolescente, envolvendo também sua família ou responsáveis.

A atuação profissional é também reconhecida no artigo 39, que determina como uma das peças, que deve conter os autos do processo, os estudos técnicos, como sinalizado abaixo.

Para aplicação das medidas socioeducativas de prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade ou internação, será constituído processo de execução para cada adolescente, respeitado o disposto nos arts. 143 e 144 da Lei nº8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e com autuação das seguintes peças:

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I) documentos de caráter pessoal do adolescente existentes no processo de conhecimento, especialmente os que comprovem sua idade; II) as indicadas pela autoridade judiciária, sempre que houver necessidade e, obrigatoriamente: a) cópia da representação; b) cópia da certidão de antecedentes; c) cópia da sentença ou acórdão; e d) cópia de estudos técnicos realizados durante a fase de conhecimento

Conforme disposto no artigo 42 do mesmo diploma, no que se refere à reavaliação da medida, o documento que instrui a audiência e que dá subsídio à autoridade judiciária diz respeito ao relatório da equipe técnica; portanto, é importante que o técnico esteja bem ciente de sua responsabilidade face aos procedimentos que definirão a medida socioeducativa aplicada. Após revisão, o parágrafo único do artigo citado deixa a questão bem evidente: “A audiência será instruída como relatório da equipe técnica do programa de atendimento sobre a evolução do plano de que trata o art. 52 desta Lei e com qualquer outro parecer técnico requerido pelas partes e deferido pela autoridade judiciária”.

Mais uma vez, cabe reiterar a importância de o profissional ter o domínio do trâmite processual e também destacar a necessária apropriação técnica e metodológica no trato da questão, norteada pelo seu compromisso ético-político e legal sob pena de inviabilizar/postergar acesso a direitos.

O cometimento de ato infracional não está desvinculado de um processo histórico que, em geral, revela direitos negados. É importante que se tenha a preocupação de compreender as circunstâncias jurídicas da situação em questão, em especial quanto à pertinência da medida socioeducativa aplicada. Nesse sentido, cabe à equipe e em especial ao advogado que a compõe buscar informações sobre o processo judicial do qual o adolescente é parte.

Um dos avanços do reconhecimento do direito se manifesta nas políticas públicas em particular, na assistência social, quando

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lhe atribui a responsabilidade de atuar no acompanhamento do adolescente nas Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, seja na Prestação e Serviços à Comunidade seja na Liberdade Assistida.

Trazendo a ótica da relação familiar e comunitária que a assistência social tem como matriz de trabalho, essa nova forma de ver o cumprimento das medidas socioeducativas, sob um novo paradigma, representa para profissionais que atuam na área o desafio de desenvolver a visão interdisciplinar e intersetorial e, mais do que isso, o desafio de “conquistar” o adolescente e orientá-lo para novas pactuações em sua vida, sendo esse adolescente protagonista de tal processo. Isso implica desenvolver formas de trabalho que comecem desde a acolhida – a partir da qual se espera que o adolescente e sua família sintam-se bem no espaço de atendimento e reconheçam na equipe de trabalho pessoas confiáveis – até o momento do cumprimento da medida, o que exige esforços conjuntos dos diferentes profissionais e atores, compreendendo as peculiaridades envolvidas e o momento único em que o cumprimento da medida pode significar o desenvolvimento de potencialidades e a mudança na trajetória de vida desse adolescente e de sua família. Assim, a continuidade do trabalho será facilitada.

Certamente que a demanda, quer do adolescente, quer de sua família, envolve questões que estão para além da assistência social, o que impõe ao profissional e à coordenação da unidade onde o serviço é prestado a necessidade de desenvolver seu trabalho em articulação junto à rede de atendimento, bem como a identificação do déficit dessa rede, apontando para a gestão municipal as necessidades, as demandas, e as possibilidades para resolução e adequação.

O fortalecimento do vínculo, da confiança entre profissional e usuário, não se reduz a respostas externas que a rede pode oferecer; remete, sim, a estudo criterioso do processo de cada indivíduo e família e, portanto, de planejamento sistemático, discutido em equipe, mas, acima de tudo, discutido também

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com muita honestidade e tranquilidade com o adolescente e sua família, de acordo com a forma pactuada com esses, tornando-os protagonistas no processo.

Os espaços institucionalizados de atendimento

Os espaços institucionalizados de atendimento precisam levar em conta diferentes dimensões, sem perder de vista que, com a Constituição de 1988, alargaram-se as possibilidades de consolidação de direitos, refletindo no espaço ocupacional do assistente social, com direcionamento do trabalho para a viabilização e acesso aos direitos sociais.

Sabe-se que, apesar de as leis apontarem para a direção dos direitos, elas não são suficientes para a efetivação de políticas públicas e para a garantia da proteção integral a crianças e adolescentes. É nesse cenário tenso e tênue que o assistente social se insere no acompanhamento qualificado e propositivo aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, em espaços que possibilitem a construção de novos caminhos e alternativas, em um atendimento dialógico, reflexivo e propositivo, respeitando seus valores, crenças, anseios e aspirações; na elaboração de instrumentos que ofereçam subsídios norteadores para a decisão do judiciário e, mais do que isso, de instrumentos que demonstrem o trabalho desenvolvido e estratégias alcançadas para a superação do risco tanto do adolescente quanto de sua família.

Esse não é um trabalho fácil, pois demanda tempo, esforço, qualificação, acionamento da rede para oferta de um leque de opções ao adolescente, entre outras. Trata-se de um desafio que leva o profissional a refletir quanto à oportunidade de ser “voz” no processo de acompanhamento dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e, assim, intervir nas decisões das medidas a eles designadas, mas leva também

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à construção com o adolescente de sua própria “voz”, no desenvolvimento do protagonismo necessário a sua vida.

A perspectiva ético-política deve nortear as diferentes profissões e no trabalho social desafia as diferentes formações e a busca conjunta de caminhos de acesso ao direito. Nesse sentido, cabe destacar Alchorne e Maciel (2012), as quais, referendadas em autores como Iamamoto (2009), Nogueira (2001) e Coutinho (2000), enfatizam dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas para ação profissional no mundo contemporâneo e destacam o contexto socio-histórico que vem exigindo a construção de uma nova forma de fazer política. Essa questão impõe muitos desafios, dentre os quais a visão da questão social e a

necessidade de acumular forças na construção de novas relações entre Estado e sociedade civil, de forma a reduzir o distanciamento entre desenvolvimento econômico e social, apontando para uma cidadania que considere a capacidade de todos os indivíduos se apropriarem dos bens socialmente produzidos e para uma democracia que caminhe na direção emancipadora. (MACIEL, 2012, p.07)

Assim, fica evidenciado que o trabalho social como garantidor de direitos exige mecanismos éticos e perspectiva interdisciplinar, em que os saberes específicos de cada formação profissional, juntamente com as bases legais de cada política, possibilitem uma atuação que considere o intersetorial, o interinstitucional e o interdisciplinar para garantir direitos.

Considerações finais

O processo histórico que reconhece direitos tem base legais que cristalizam o reconhecimento das diferenças entre adolescentes e adultos diante de um ato infracional e, ainda que sejam encontradas resistências, estamos diante de uma nova cultura que desafia a sociedade e o Estado a superarem

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suas crises, conforme destaca Mundez (2006). Há uma crise de implementação, reconhecida na impossibilidade de acesso por parte de muitas crianças e adolescentes a direitos básicos como saúde e educação, e outra de interpretação, que deve consolidar a doutrina da proteção integral, reafirmando que adolescentes devem ser responsabilizados, sim, mas, ao mesmo tempo, oportunizados, tendo por base o reconhecimento de seus limites que passam pelo reconhecimento a diferenças, aos diferentes, mas também às suas potencialidades. Trata-se de um novo padrão civilizatório para o qual o conjunto de profissionais tem a responsabilidade de contribuir para o patamar de sociedade, que reconhece e garante direitos em especial de crianças e adolescentes.

O objetivo na requisição de um especialista deve, então, ser visto na perspectiva de garantia de direitos, portanto, o fato de serem oferecidos subsídios técnico-científicos deve ser visto como forma de possibilitar ao juiz a aplicação da lei com maior segurança, reduzindo-se a possibilidade da prática de erros e/ou injustiças.

O trabalho realizado e a atuação profissional estão carregados pelo acúmulo do profissional que o dia a dia proporciona e pelo projeto de classe. Assim, em seu processo de trabalho, o profissional precisa constituir a articulação dos objetos, dos meios de trabalho, das atividades e das finalidades, tendo clareza da construção histórico-social, que exige, para sua constituição, uma competência teórico-técnica, política e ideológica que precisa estar interligada e articulada a outras formações profissionais.

Além do anteriormente mencionado, considera-se que o SINASE é um sistema que precisa manter a interlocução com outros sistemas pelos quais as políticas públicas vêm se organizando. Nesse sentido, o SUS – Sistema Único de Saúde – tem responsabilidades no acompanhamento físico e emocional dos adolescentes que cometerem ato infracional; o sistema educacional tem a responsabilidade de garantir sua inclusão na educação, adequando o projeto pedagógico à realidade em

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que o adolescente se encontra e garantindo a continuidade da proposta educacional posteriormente ao cumprimento da medida. No SUAS – Sistema Único de Assistência Social, por sua vez, esse diálogo tem uma relação intrínseca e permanente, isto é, antes, durante e posteriormente ao cumprimento da medida, cabe às equipes técnicas do CRAS – Centro de Referência da Assistência Social – e do CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social – tornarem-se referência para o adolescente e seus familiares, quer no território, quer na rede, que precisa se mobilizar no enfrentamento das questões que envolvem o adolescente e seus familiares, possibilitando, assim, o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários e a visibilidade de novas perspectivas. Para tanto, é necessária, para além de um esforço profissional, uma rede que se mantenha fortalecida e articulada, e que compreenda que é parte integrante no processo do cumprimento da medida socioeducativa. Ainda é importante destacar a relação com o meio fechado, reafirmando que o acompanhamento da família do adolescente em seu território, concomitante ao cumprimento da medida, é fundamental para que o seu retorno à casa possa emblematicamente estar permeado de novas pactuações.

Iniciamos a presente reflexão com uma indagação: o adolescente, a sociedade dos direitos e o trabalhador social: aonde vai dar tudo isso?

Entendemos que o “aonde vai dar” depende do conjunto de atores e do que eles constroem no dia a dia de acordo com seu papel. Os caminhos não podem perder de vista a justiça social, a responsabilidade de cada um na construção de um mundo decente para os adolescentes de hoje, os adultos de amanhã.

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Panorama histórico da atenção à criança no Brasil

João Carlos de Paula 36

Resumo: Este artigo resulta de um publicado em 2005 nos Anais do XIII Seminário de Formação Profissional e Movimento Estudantil em Serviço Social, promovido pela Pontífice Universidade Católica de Belo Horizonte sob o título “Crianças e Adolescentes do Brasil: uma História de Desvalor”. Retrata a atenção dirigida à criança e ao adolescente ao longo da história, revelando o desvalor com que sempre foram tratados. Esse fenômeno vem sendo (re)produzido pelo desrespeito da sociedade em relação aos seus membros, em especial a essa parcela populacional. Desse modo, nossa história prossegue carregando o peso da consequência dos atos praticados e implantados na sua origem, cristalizando posturas e comportamentos que influenciam o modo de pensar e agir ao lidar com a essa problemática.

Palavras-chave: criança, adolescente, história, políticas sociais.

Introdução

O objetivo maior deste trabalho consiste em despertar o interesse do leitor pelo assunto. Trata-se, pois, de um trabalho de informação propedêutica sem maior preocupação analítica. Busquei discorrer de forma cronológica e linear sobre a atenção dispensada aos infantes através do tempo. O recorte temporal abarca da colonização ao advento do Estatuto da Criança e do Adolescente; as recentes transformações foram suprimidas por entender que

36 Bacharel em Serviço Social pelo Centro Universitário de Volta Redonda; Especialista em Docência e Educação para o Pensar pela Universidade Gama Filho; Coordenador do CREAS/SMASDHH/PMI.

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merecem um trabalho à parte. Observa-se a coexistência do paradigma punitivo-corretivo, autoritário e perverso, ainda hoje presente em nossa sociedade; são reflexos da introjeção secular de ações moralistas e apolíticas em “defesa do menor”37 . Considerar fatos passados para compreender a forma como o fenômeno se apresenta atualmente significa perceber a existência de relações e conexões entre os diversos momentos e acontecimentos históricos.

Colonização e assistência ao menor

Em 21 de abril de 1500, os portugueses que aqui chegaram não faziam uma incursão turística, mas objetivavam conquistar novos mercados. Desse modo, ao aportarem, começava o processo de aculturação dos aborígines; importava subjugar os nativos para que pudessem ser mais controlados e submetidos ao trabalho escravo.

As ações praticadas pelos jesuítas na terra recém-descoberta estavam radicalmente distantes da cultura indígena. Os jesuítas visavam ordenar e adestrar as almas indígenas para receber a semeadura da palavra de Deus, transformando os nativos em cristãos (Assis, 1995, p. 27).

Todavia, a resistência dos índios ao trabalho forçado levou os colonizadores a importarem mão-de-obra dos negros africanos, que eram comprados como mercadorias pelos novos donos das terras e submetidos às mesmas atrocidades que os índios. Além do uso da força de trabalho, as mulheres, negras ou índias, foram objetos de prazer dos senhores brancos. Desses relacionamentos, surgem os primeiros brasileiros. “Somos filhos da violência e do estupro (...) usados como combustível nos engenhos”. (MORAES et al., 1991, p. 515). Muitas também eram as crianças que morriam ainda no ventre materno

37 O termo menor foi usado segundo o conceito das obras pesquisadas, não correspondendo necessariamente ao meu entendimento

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pelos maus tratos a que se submetiam suas mães. Muitos abortos ou perdas eram por vezes bem recebidos como demonstração da revolta sentida por não poderem gerar filhos a partir de uma relação desejada, querida e, ainda, como forma de impedir um futuro sombrio que sabiam aguardar seus filhos. Os donos de escravos utilizavam uma saída estratégica para se livrarem do ônus da criação dos filhos de suas cativas, abandonando-os e alugando suas mães como amas-de-leite, o que proporcionava maiores lucros com maior rapidez. No Brasil, desde o “descobrimento” pelos portugueses e do surgimento dos primeiros brasileiros, “a criança escrava não era objeto de proteção por parte da sociedade. Sua sina estava traçada como propriedade individual do senhor seu dono, como patrimônio e mão-de-obra” (FALEIROS, 1995, p. 224). Como nesse processo de vida ou de morte, o que importava era o lucro; esperar sete ou oito anos significava prejuízo financeiro, daí surgem as primeiras formas de abandono. O trabalho educacional ou de catequização realizado pelos jesuítas pode ser considerado uma das primeiras formas de atenção com as crianças índias, órfãs e enjeitadas no Brasil: “pode-se dizer que, durante três séculos e meio, as iniciativas em relação à infância pobre no Brasil foram quase todas de caráter religioso” (ABRANTES, 1995, p. 194). Além desse tipo de assistência, surge em 1726, na Bahia, uma forma alternativa denominada roda dos expostos, modelo europeu que consistia em um equipamento cilíndrico que girava através de uma parede e onde se colocava a criança enjeitada ou exposta, que era recebida por alguém do outro lado, sem que se pudesse ver quem a colocava nem quem a recebia. Algumas dessas crianças “permaneciam de um a dois meses na casa da roda”, quando eram destinadas a famílias que obtinham pequena remuneração pelos cuidados. Outras ficavam na casa dos expostos até os sete anos, idade em que se colocavam à disposição do juiz, que as entregaria a alguma família que

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desejasse sustentá-las, ou encaminhavam-se os meninos para a marinha e as meninas para o recolhimento das órfãs, onde deveriam trabalhar gratuitamente durante sete anos, servindo ao Estado e recebendo apenas teto e alimentação; “a vida das crianças abandonadas ou cedidas ao Estado pelos senhores se configurava noutra forma de escravidão” (ASSIS, 1995, p. 37). O sistema de roda, embora deficitário, representou um instrumento importante na história da construção de políticas públicas de assistência à criança. A partir dela, podem-se observar a participação da opinião pública, a interferência dos profissionais de saúde e a reflexão sobre a proposta de atendimento à criança como ser humano. “As iniciativas do Estado nesse setor só ganharam relevância a partir do inicio do século XX, pressionado, entre outros fatores, pelo movimento médico higienista que se propagou por todos os cantos do Brasil (...)” (ABRANTES, 1995, p.195).

Em 1903, o sistema de colônias correcionais nos estados da Bahia e do Rio de Janeiro desde suas origens foram fadadas ao insucesso, em virtude da característica de ação correcional-punitiva que prevaleceu sobre a educação da criança e do adolescente.

Somente vinte anos mais tarde surgiram as primeiras tentativas de elaborar um regulamento para a casa de correção. A idéia era criar um estabelecimento com previsão de alas separadas - uma de veio correcional para menores delinqüentes, mendigos e vadios ‘condenados à prisão com trabalho’ e outra para os demais presos destinados à divisão criminal (RIZZINI, 1995, p.105). Entende-se que, até então, não se preconizava a necessidade de um tratamento singular para cada caso. Meninos de diferentes níveis de experiências eram expostos juntos a uma assistência precária. Sendo assim, em mais uma tentativa de mudança do modelo vigente, foi criado, em 1921, o “Serviço de assistência e proteção à infância abandonada e ao delinquente”. Em 1923, instituiu-se o código de menores, que só foi aprovado

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em forma de decreto em 1927. A partir de então, inicia-se uma nova concepção de assistência, a começar pela extinção formal da casa dos expostos e a asseguração de alguns direitos.

(...) o menor de quatorze anos não será submetido a processo penal de espécie alguma o que tiver idade superior a quatorze e inferior a dezoito terá processo especial, instituindo-se também a liberdade vigiada. O trabalho fica proibido aos menores de doze e aos menores de quatorze que não tem cumprido instrução primária. O trabalho noturno e aquele considerado perigoso à vida, a saúde e a moral são vedadas aos menores de dezoito anos. O olhar do juiz deve ser de total vigilância e seu poder é indiscutido. ( FALEIROS, 1995, p.63).

A referida lei causou contestação por parte de empresários da indústria, que exploravam a mão de obra infantil. Contra-argumentavam que o trabalho era o caminho mais adequado para tirar os meninos da rua e desenvolver neles o lado profissional e o senso de responsabilidade. Evidentemente, tal medida incorria em aumento de custo com seus empregados, uma vez que o trabalho infantil admitia salário baixo, assim como o baixo nível de exigência da criança – todos os ingredientes necessários para a produção da mais-valia.

Industrialização: criação e transformação da Política de Assistência ao Menor

Na década de 30, o clima de tensão se intensificou no país e o então governo de Getúlio Vargas, na tentativa de manter a “ordem social”, dispôs-se a fazer algumas concessões aos trabalhadores, incluindo, entre outros, a criação de creches e a implantação do serviço de assistência a menores (SAM), em 1941. Não demorou muito e já estava o SAM reprovado por sua atuação marcada pela corrupção e pelos maus tratos aos menores, o que lhe rendeu vulgos do tipo “universidade do crime”.

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Em 1964, no auge da Ditadura Militar, em substituição ao SAM foi instituída a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), que objetivava implantar a política nacional do bem-estar do menor, mediante o estudo do problema, o planejamento das soluções, a orientação, coordenação e fiscalização das entidades que executavam essa política. A FUNABEM, quando criada, possuía autonomia financeira, técnica e administrativa, além de ser representada nos estados pela FEBEM. Entretanto, a partir de 1974, essa autonomia foi se perdendo, quando, com base na justificativa de que a questão do menor deveria ser tratada no conjunto das ações sociais, ela passou a ser subordinada ao Ministério de Previdência e Assistência Social, passando, então, a transitar desorganizadamente entre os ministérios. Desse modo, a FUNABEM, que foi criada para executar uma política de assistência contrária à do antigo SAM, acabou por reproduzir esse modelo carcerário-punitivo pernicioso ao desenvolvimento da criança e do adolescente. “(...) A assistência caminhou no sentido de ajustamento do desviante ao meio, produzindo a ‘inadaptação’, onde o individuo é responsabilizado por não se ajustar ao processo produtivo e às normas sociais dominantes” (RIZZINI, 1993, p.98). No ano de 1979, aprovou-se o código de menores, basicamente uma revisão do anterior. A urgência em que se colocava a necessidade de avaliação do antigo código de menores perpassava aspectos como a contemplação da criança como sujeito de direito e a humanização da atenção a ela dirigida. À parte as discussões que geraram tal perspectiva, o novo código de menores traz como inovações a eliminação da denominação “menor abandonado e delinquente” e a manutenção da responsabilidade penal aos 18 anos e amplia os poderes do juiz de menores. Algumas das críticas em torno desse dispositivo atentavam para o fato de que, a partir da nova lei, menores infratores podiam ser submetidos a medidas penais sem a necessidade de constituírem-se provas ao suspeito. Para prova ao contrário, o acusado é que deveria apresentar advogado de

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defesa e abrir processo, o que seria praticamente inviável para os pobres. Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi um marco, sancionado a partir da Lei nº8069/90 (Brasil, 1991), fruto de diversos movimentos sociais organizados em todo o país. Esses movimentos tinham por objetivo explicitar a falência do modelo de internato aplicado e baseado na correção e repressão; denunciava, entre outros, a exploração dos menores por adultos e, ainda, a utilização para roubos e tráfico de droga; e reclamava uma sociedade mais igualitária e menos excludente. A partir das diretrizes preconizadas no ECA, pressupõe-se um redirecionamento da assistência à criança e ao adolescente no país, considerando-se a humanização dos procedimentos, a capacitação dos agentes, a modernização das estratégias, a maior alocação de recursos, a compreensão da infância e da adolescência como momentos singulares no desenvolvimento desses sujeitos e a proteção necessária à construção da cidadania. Os instrumentos de operacionalização do Estatuto são os Conselhos Municipais de Direitos da Criança e o Conselho Tutelar. No município, implantar o estatuto inicialmente requer a instalação do Conselho Municipal, que é constituído paritariamente por representantes da sociedade cível organizada e do governo municipal. Para que o Conselho Municipal possa atingir sua competência, necessita-se de algumas condições, dentre elas, está a financeira. Dessa forma, atrelada ao Conselho está a criação do Fundo Municipal, cujos recursos são utilizado a partir de critérios estabelecidos pelo referido Conselho. Na composição desse Conselho, deve-se atentar, entre outros critérios, para o da competência técnica, visto que terá de lidar com as mais variadas situações, e, ainda, para o critério político que deverá permear todas as ações. A tríade compreendida pelo Conselho Municipal, pelo Conselho Tutelar e pelo Fundo Municipal representa uma condição indispensável para que o Estatuto se torne uma realidade e avance rumo à cidadania das crianças e dos adolescentes.

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Todavia, não é só com boa intenção e adoção de dispositivos legais que se constrói uma política pública, principalmente quando essa prática impõe mudanças de atitudes, valores e compartilhamento de poder. Esse último acaba sendo o maior dos entraves. Implantar Conselhos e Fundo implica negociar a hegemonia do poder estabelecido, significa redistribuir o poder. E a quem vai interessar isso? Justo quem deverá abrir mão dele?

Considerações Finais

Conforme observamos, o fenômeno da exclusão de crianças e adolescentes pode ser considerado tão antigo quanto o “descobrimento” desse país. O nascimento dos primeiros brasileiros evidencia isto: não eram nem brancos nem negros, mas o fruto da expropriação dos corpos das mulheres escravas. As crianças enjeitadas e desassistidas começaram a aparecer progressivamente. Mais tarde, a abolição da escravatura fez engrossar a fila dos desprotegidos, uma vez que aos negros não foram oferecidas condições de adaptação ao mundo do trabalho assalariado e nenhuma qualificação que lhes permitisse concorrer em igualdade de condições com a mão-de-obra imigrante. Surgem, desse modo, as favelas e aumentam os marginalizados. Somando-se a esses elementos, o Brasil industrializado representou um período de intensificação da pobreza, com alta taxa de inflação, desemprego, centralização de renda e quase ausência de políticas sociais. Essa pobreza estabelecida no país mexeu com os papéis desenvolvidos pelos membros da família. Dessa forma, os pais, impossibilitados de prover o sustento da família, acabam por utilizar a mão-de-obra infantil para contribuir no orçamento. A revelação desse momento evidencia as razões político-econômicas como matrizes da desigualdade, que levou a família, cuja função cultural é a reprodução das relações primárias – a

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proteção, o cuidado, o amor –, a impelir seus filhos para a rua como lugar de luta pela sobrevivência, trabalho e, até, moradia. Certamente, essa causa primordial é consolidada pela persistente falta de medidas governamentais mínimas. Esses acontecimentos reforçaram essa nova e aviltante forma de viver, que acelerou o desmantelamento da família nuclear, a partir da exposição dessas a valores morais e sociais contraditórios. Ocorrem, nesses momentos, grandes mudanças, que, em geral, são acompanhadas de perdas, as quais possuem um poder de desarmonia intensa que atinge o ser em sua totalidade. Vivenciando esse cenário adverso, estão a crianças e o adolescente que experimentam um momento de transição com conflitos biopsicossociais próprios; constitui-se, assim, um frágil elo da cadeia familiar exposto aos apelos da sociedade de consumo e à “liberdade das ruas”. A rua caracteriza-se pela ausência de normas, como lugar que tem a marca do desprestígio e abandono e que, por sua vez, legitima a violência e estabelece a não cidadania. Na rua, são oferecidos todos os tipos de riscos travestidos de aventura e liberdade e, nela, os adolescentes ficam completamente vulneráveis a pessoas inescrupulosas, desenvolvendo, sob esse referencial, uma identidade e um estilo de vida, pernicioso a si e à sociedade. A persistência desse estado de não cidadania e ignorância é terreno fértil para o crescimento de uma personalidade violenta, que nada mais é que fruto dessa mesma violência que lhe é imposta, deixando claro que se tornar uma criança ou adolescente em situação de rua, um delinquente ou mesmo assassino, como no caso de muitos, não é e não foi uma opção consciente, mas um legado histórico de uma nação omissa, que não valoriza a vida e não soube prever consequências nefastas para si mesma, ao negligenciar essa situação.

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Referências bibliográficas

ARANTES, E.M. de M. Rostos de Crianças no Brasil. IN: PILLOT, F., (Org.). A arte de governar crianças: A história das políticas sociais, da legislação e da assistência a infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula, 1995.ASSIS, S.G. de. Trajetória sócio-epidemiológica da violência contra crianças e adolescentes: metas de prevenção e promoção. Rio de Janeiro, 1995. Brasil. Ministério da Criança. Projeto Minha Gente. Lei 8069, de 13/06/1990. Estatuto da criança e do adolescente. Brasília, 1991.FALEIROS, V. de P. Infância e processo político no Brasil. IN: PILOTT, F., Rizzini, I.(Org.). Arte de governar crianças: A história das políticas e da legislação e da assistência a infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula, 1995.MORAES, A.F. ett al. Meninas do rio meninas da rua. Rio de janeiro: Vozes, 1991.

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Notas criminológicas sobre juventude e controle social

Roberta Duboc Pedrinha38

Resumo: O artigo retrata as formas de controle social exercidas sobre a juventude, desde a constituição da modernidade, através das casas de correção, às atuais, pelas medidas socioeducativas. Critica a internação e estabelece suas similitudes com a instituição prisional.

Palavras-Chave: teorias sociológicas, controle social, medidas socioeducativas, jovens.

Noções introdutórias

O florescimento da vida se dá na fase da juventude. Com ela, despertam-se as grandes paixões, as emoções desenfreadas e os impulsos súbitos. No transcorrer dos tempos, em vários momentos a confluência dos sentimentos, das sensações, dos

38 Advogada. Doutoranda em Sociologia Criminal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA-Argentina). Mestra em Criminologia e Direito Penal pela Universidade Candido Mendes (UCAM). Pós-graduada em Criminologia pela Universidade de Havana (UH-Cuba). Graduada em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-RIO). Professora e Coordenadora da Pós-graduação em Criminologia, Direito e Processo Penal da Universidade Candido Mendes (UCAM). Professora Convidada de Direito Penal da Pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Professora Convidada de Direito Penal das Pós-graduações de Saúde e Gênero da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Professora Concursada de Criminologia do Ministério de Justiça (MJ). Professora Convidada de Sociologia Criminal dos Cursos de Formação da Academia Nacional de Polícia do Departamento da Polícia Federal (ANP-DPF-Brasília). Professora Convidada de Criminologia da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Professora Concursada de Criminologia da Academia de Polícia do Estado do Rio de Janeiro (ACADEPOL). Professora Convidada do Curso de Operadores do Sistema Sócio-educativo do Estado. Ex-Avaliadora da Banca Examinadora de Direito e Processo Penal da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Rio de Janeiro (OAB-RJ).

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comportamentos e das ações exasperadas dos jovens foi mal compreendida, particularmente a dos mais pobres. Desde o fim do século XVII e ao longo do século XIX, muitos desses jovens foram submetidos a formas de controle social. Trata-se do controle social de viés institucionalizado, pelo Estado, através do sistema penal (ZAFFARONI & PIERANGELI, 1997). A atuação do sistema penal se iniciava com a criminalização de condutas e se encerrava com o confinamento em estabelecimentos específicos. Esses eram chamados de Casas Correcionais e funcionavam como instrumento de reclusão, para moldar os corpos jovens ao trabalho, inculcando-lhes disciplina. A respeito da disciplina, pode-se afirmar que

produz, a partir dos corpos que controla quatro tipos de individualidades, ou antes, uma individualidade dotada de quatro características: é celular pela repartição no espaço, é orgânica pela codificação das atividades, é genética pela acumulação do tempo, é combinatória pela composição de forças. (FOUCAULT, 1996, p. 150)

A institucionalização da disciplina deu-se através de técnicas de adestramento dos indivíduos, loucos, adultos, idosos, jovens; ninguém escapava. As Casas de Correção de jovens consistiam em instituições absolutizantes, intituladas por Erving Goffman de instituições totais (GOFFMAN, 1961), que suprimiam as singularidades dos internos, seus gostos, traços característicos, peculiaridades, comprimidos pelos rígidos comandos, que aniquilavam suas identidades. As instituições totais espraiavam-se homogêneas e englobavam prisões, manicômios, conventos, que se assemelhavam às fábricas, às escolas, ao exército. Nessa linha, Melossi investigou na Europa as Casas de Correção, Bridewells e Workhouses na Inglaterra e Rasphuis na Holanda, desde o século XVII. Pavarini dedicou-se ao sistema penal dos EUA, dos séculos XVIII e XIX, à prisão de Walnut Street em Filadélfia (1790), do modelo do isolamento absoluto, para a

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prisão de Auburn em Nova York (1818), com a transição para o modelo do trabalho diurno e do isolamento noturno, para incutir, paulatinamente, a disciplina. Demonstraram a atuação do cárcere como fábrica de homem, na relação entre o cárcere e a fábrica, da ótica punitiva com a produtiva (MELOSSI & PAVARINI, 2006). Os autores mencionados acima verificaram que trabalhadores marginalizados eram capturados pelo sistema penal, para que, através do trabalho forçado imposto nos cárceres, introjetassem a disciplina necessária ao adestramento nas fábricas. Os jovens pobres desempregados consistiam em alvo, pois concederiam o vigor de sua força física, que deveria ser aproveitado. Logo, o cárcere se constitui enquanto fábrica não só do velho como do jovem proletariado. Trata-se de uma relação simbiótica entre cárcere-fábrica, a qual caminha para fábrica-cárcere. Então, os detidos deveriam ser trabalhadores e os trabalhadores deveriam ser detidos. Logo, os jovens deveriam ser trabalhadores-detidos (MELOSSI & PAVARINI, 2006). Todavia, a internação dos jovens nas Casas de Correção conduziu a um processo de estigmatização, na medida em que toda a ampla dimensão da grandeza do ser humano deveria se restringir apenas ao estigma de apenado. O estigma desqualifica o seu portador. “A manipulação do estigma é uma ramificação de algo básico na sociedade, ou seja, a estereotipia ou o ‘perfil’ de nossas expectativas normativas em relação à conduta e ao caráter.” (GOFFMAN, 1988, p. 61) Dessa maneira, toda a complexidade afetiva, valorativa, inteligível do jovem era reduzida à noção de delinquência, que o marcaria por toda a vida. Afinal, sabe-se que, mesmo após cumprir a pena, o estigma de ex-detento acompanhará o jovem, obstará sua inserção social, impossibilitará sua subsistência e seu ingresso no mercado de trabalho. Trata-se de uma neutralização (PEDRINHA, 2009) que o encaminhará para reincidir. Nessa linha, constata-se a importância de se evitar a internação dos indivíduos em instituições totais, e especialmente

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a dos jovens, o que macularia suas formas de socialização. Todavia, durante muito tempo, buscou-se apresentar justificativas para o seu confinamento nas Casas de Correção e comportamento desviante, desde fins do século XVIII e ao longo do século XIX, com o Positivismo Criminológico. Porém, foi apenas no início do século XX que, paulatinamente, algumas teorias sociológicas e novos aportes criminológicos foram traçando um novo paradigma diante da questão da juventude. Teorias sociológicas e aportes criminológicos no estudo da juventude

No limiar do século XX, vários estudos se destacaram a respeito do comportamento dos jovens, para deslindar a ocorrência de desvios. Partiam de uma concepção etiológica, pautada na análise causal explicativa do fenômeno delitivo. Vale conferir os ensaios das bases sociológicas das Ciências Sociais Americanas, a respeito da “delinquência juvenil”. Assim, sublinham-se as análises da Escola de Chicago, em sua primeira fase, de 1915 a 1940, com a colaboração de Robert Park, em 1934. Atribuíam o desvio à desordem urbana, ao caos social, à desorganização da sociedade, diante do exponencial aumento da população, com a chegada de imigrantes estrangeiros, bem como judeus sem pátria e negros vindos do sul dos EUA. Nesse diapasão, foram salientadas a posição de externalidade dos grupos internacionais e a dificuldade de adaptação dos diferentes grupos étnicos e culturais, especialmente quando referente aos jovens, muitas vezes sem identidade (MANNHEIM, s/d). Em seguida, autores como Cohen, Cloward, Ohlin e Thrasher apresentaram pesquisas acerca das gangues de adolescentes e adultos jovens, cujas idades relatadas variavam de 14 a 30 anos. Nessa gama, estabeleceram os fatores criminógenos de grupos etários jovens, do sexo masculino. Thrasher enfatizou os desvios oriundos de uma juventude desprivilegiada, localizada

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nas grandes cidades, em ambientes desfavoráveis, cuja linguagem da brutalidade com recurso à violência estava em evidência. Para Cloward e Ohlin, uma gangue de jovens correspondia a um tipo específico de aprendizagem para o subsequente desenvolvimento e a sedimentação da carreira criminosa. As gangues consubstanciavam-se em grupos sociais não coesos, que na sua organização encontravam o apoio de que necessitavam e a lealdade de que precisavam entre seus membros (MANNHEIM, s/d). A Escola Sociológica Francesa também ofereceu sua contribuição para pensar a delinquência juvenil. A Teoria Estrutural Funcionalista da Anomia, de Émile Durkheim, revelou o declínio da solidariedade social, a ausência de pauta normativa, o excesso de normas ou, ainda, o excesso de crimes. Nesse ínterim, a pena inferia uma reação da coletividade. Contudo, um pequeno grau de crime era considerado normal em uma dada sociedade. Em seguida, Robert Merton estabeleceu a diferença entre os padrões culturais almejados e os meios sociais institucionalizados, em que os indivíduos, ainda que de modo transverso, para atingir aos fins culturais, na impossibilidade de acesso pela estrutura social, através da inovação desviavam (FALBO e NICODEMOS, 2009). Nessa diretriz também se incluíam os jovens, que se fascinavam pelo padrão cultural difundido. Já mais recentemente, na segunda metade do século XX, nota-se de grande relevância a contribuição, mais precisamente na década de 60, dos trabalhos de Howard Becker, a respeito do fenômeno da rotulação na construção do desvio. Esse informa que o desvio, que consiste na dificuldade de obedecer às regras, não é qualidade do ato. É ato qualificado como criminoso, através de rótulos, ou seja, de etiquetas que são atribuídas a alguém. Desse modo, os jovens dos segmentos sociais mais pobres são os que se revelam mais vulneráveis, logo, aptos a receber tais rótulos de desviantes. Por conseguinte, o caráter criminoso do comportamento não é uma característica da ação, mas uma qualidade conferida ao comportamento pelo controle social. Portanto, trata-se de reação da sociedade e do Estado.

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Nessa esteira, como bem lembra Sack, há uma filtragem da população criminosa, sendo pinçada pelo sistema penal apenas a integrante do estrato social mais baixo, posto que existe aquilo que Sutherland chamou de cifra dourada da criminalidade, dos desvios dos ricos, que permanecem despercebidos. Nesse viés, a Teoria da Meta-Regra alerta que não é pelo desvio ao tipo penal que se determina a criminalização de uma conduta, ou seja, apenas pela violação à regra, e sim pela Meta-Regra, que é mecanismo no psiquismo do operador, que aposta na posição social do autor para criminalizá-lo (ANITUA, 2008). Finalmente, para a Criminologia Crítica, oriunda dos fins da década de 60 e início da década de 70, o comportamento desviante do jovem é considerado normal, só merece atenção nos casos de elevado grau de violência. Por conseguinte, afirma que os jovens cometem ao menos um ato infracional, mas fica camuflado na cifra oculta da criminalidade. Conforme a Criminologia Crítica informa, o comportamento antissocial também pode ser necessário ao desenvolvimento humano; portanto, assevera a teoria da normalidade do desvio na adolescência. Na mesma linha, tece crítica ao controle social, que se exerce através das medidas socioeducativas rígidas, como a internação, pois é inútil no que diz respeito à prevenção e danosa no que tange à retribuição.

Aspectos relevantes do controle social nas legislações nacionais

Após uma singela retomada das teorias sociológicas e aportes criminológicos referentes à juventude e ao desvio, vale a pena realizarmos uma breve digressão para a reconstrução do processo histórico das legislações republicanas brasileiras ao longo do século XX, que passaram a incluir as crianças e os jovens em diferentes formas de controle social. Inicialmente, a Justiça de Crianças deu-se através da Vara de Órfãos, de 1907 a 1914, que funcionava abrangendo, em sua maioria, meninas,

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através de uma agência de serviços domésticos. Foi em 1923 que surgiu a Justiça de Menores, a qual criou o Juizado de Menores, que atuava através de seus Comissários da Vigilância. É dessa época que remonta o Código de Menores. Cumpre assinalar que o termo “menor” foi definitivamente associado à criança e à juventude pobre (BATISTA, 1998, p. 60). No Brasil, no século XX, os jovens passaram a ser chamados pejorativamente de “menores”. Acompanhou-se um processo de transformação do “menor” carente em “menor” infrator, apto à incidência do controle social. No período do Estado Novo, de 1930 a 1945, foi criado por Getúlio Vargas o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), instrumento de política social com uma infraestrutura planejada, junto à implantação de vários programas como LBA, Fundação Darcy Vargas, Casa do Pequeno Jornaleiro, Casa do Pequeno Lavrador e a Casa das Meninas. O declínio do SAM deu-se com o aumento da repressão; de 1945 a 1964, com internação por tempo necessário à reeducação, funcionou como uma instituição total, com maus tratos e torturas (BATISTA, 1998). Com o Golpe Militar de 1964, adveio a Lei 4.513 de 1964, que delineou a Política Nacional de Bem Estar do Menor e o novo Código de Menores, através da Lei 6.697 de 1979, dirigido aos menores em situação irregular. Em detalhada pesquisa realizada, referente a esse período da ditadura militar brasileira, de 1964 a 1979, Gutemberg Alexandrino Rodrigues (2001) demonstrou a face oculta da menoridade e retratou o controle social incidente através das formas de institucionalização pela Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM) e Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM), previstas no Código de Menores. O autor discutiu os excessos da institucionalização com maior rigor repressivo, que não apontava direito algum à criança e nem mesmo à presença de advogado ou defensor, semelhante a um processo inquisitorial.

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De acordo com Maria de Fátima Migliari (MIGLIARI, 1993, p. 67), há conexão entre a criação dos órgãos executores nacionais e a doutrina de segurança nacional, difundida pela Escola Superior de Guerra (ESG), em que a juventude pobre era relevante para a defesa do Estado. Assim, a FUNABEM deveria propagandear a ideologia de defesa nacional, difundindo-a para disciplinar e punir os menores. Vera Malaguti Batista, em sua original pesquisa, retratou o olhar seletivo incidente sobre a juventude pobre. Narrou casos de delações, de denúncias anônimas e de detenções em blitzen, que ilustravam a prática do autoritarismo em face dos jovens. Enfatizou a intitulada “atitude suspeita”, que carregava forte conteúdo de estigmatização. Cunhada pelo controle social, que variava suas nuances até atingir as formas mais repressivas, como as internações no Instituto Padre Severino ou em Sanatórios, com sessões de sonoterapia e eletrochoques. A autora averiguou processos do Juizado de Menores, de 1968 a 1988. Neles, constatou a crescente criminalização da juventude pobre, inicialmente por violação ao patrimônio e depois por drogas, em razão da Lei 5.726 de 1971 e, depois, da Lei 6.368 de 1973. Observou que em 1968 cerca de 7% dos adolescentes estavam envolvidos em atos infracionais, por tráfico e consumo de drogas, e que em 1988 16%, sendo em ambos os intervalos de tempo, em sua maioria, jovens do sexo masculino, pretos e pardos, com escolaridade concentrada entre analfabeta e primária; sendo a moradia em favela a categoria que duplicou no mesmo intervalo de 20 anos da pesquisa. Contudo, constatou não haver casos de sentenças pesadas para adolescentes de classe média (BATISTA, 1998, p. 105 e 124 a 134). Hoje, sabe-se que aproximadamente mais da metade dos atos infracionais decorrem das drogas39 .

39 http://coletivodar.org/2011/07/trafico-de-drogas-ja-e-o-crime-mais-come-tido-por-adolescentes/

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Vera Malaguti, além dos processos dos operadores jurídicos, mapeou os diagnósticos, relatórios e pareceres, repletos de conteúdo moral dos operadores sociais, que traziam descrições de duvidosa cientificidade, como sintomatologia depressiva neurótica, personalidade mal plasmada e inadaptabilidade social, para descrever e explicar os comportamentos desviantes e afirmar as punições com funções correcionais (BATISTA, 1998, p. 118 e 119). A seletividade imperava na atribuição de carga negativa atribuída às famílias pobres, que não se amoldavam à família padrão, bem constituída, de classe média alta, branca e proprietária, sendo as demais rotuladas como família desestruturada, família ilegalmente constituída e estrutura de família irregular. A seletividade se difundia por todo o sistema penal, reproduzindo as desigualdades do sistema social. Nesse aspecto, estriba-se uma permanência da categoria seletividade, na contemporaneidade.

Juventude e controle social na atualidade brasileira

No interregno do século XX, das diversas legislações pátrias às atuais, há algumas permanências. Contudo, brotam relevantes rupturas. A Constituição da República Federativa Brasileira de 1988 retirou o termo “menor”, bem como sua percepção pejorativa. Ademais, junto ao Estatuto da Infância e da Adolescência, a Lei 8.069 de 1990 imprimiu nova concepção ao caracterizar a Justiça da Infância e da Juventude, bem como a Vara da Infância e da Juventude. Logo, atualmente, tem-se o jovem em conflito com a lei, não se fazendo mais uso da acepção “delinquente juvenil”. Cumpre rememorar que o conceito de “delinquência juvenil” adveio da expressão usada na Inglaterra, de tempos idos, desde 1815, a partir de um caso que julgou cinco meninos de 12 anos de idade. Então, essa noção de “delinquência juvenil” expandiu-se pelo mundo (LEAL, 1983). Inseridos na perspectiva

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etiológica, alguns autores brasileiros apontam e explicam a “delinquência juvenil” a partir dos fatores exógenos e descrevem seus elementos característicos. Nessa esteira, merece destaque: pobreza, ruptura dos laços de família, maus tratos, abandono moral, privação material, ausência de figura paterna, falta de escolaridade. Certos autores mencionam ainda a presença dos fatores biopsicossociais do jovem, que muitas vezes o conduzem aos atos antissociais, cujos mais comuns colocam-se contra o patrimônio, como furto e roubo, além do uso e tráfico de drogas (LEAL, 1983). Além desses tipos de desvios, entre os jovens reprimidos pelo controle social, encontram-se casos de: permanência na rua, absenteísmo escolar, emprego de linguagem obscena, mendicância, vadiagem, rebeldia, não sujeição aos pais e inadaptação, taxados como delinquência juvenil. Todavia, o renomado professor titular da Universidade Federal do Paraná, Juarez Cirino dos Santos (SANTOS, 2000), adverte acerca do emprego dessa terminologia, bem como a de “adolescente infrator”, comumente empregada. Afirma que a má qualidade dirigida ao sujeito apresenta traço ou característica pessoal negativa, que contrasta o jovem desviante do comum, quando a infração é ação comum. O autor refuta o modelo meramente causal-explicativo dirigido à juventude. Tece críticas à criminalização da juventude por condições sociais adversas, entendendo o comportamento antissocial como normal e, muitas vezes, necessário. Ratifica que se deve levar em conta que a qualidade de infrator não é intrínseca aos adolescentes. Trata-se de um rótulo atribuído pelo controle social, em razão da posição social desfavorável, decorrente da desigualdade estrutural em que estamos imersos (SANTOS, 2000). Hoje, a Constituição Republicana Federativa Brasileira em seus artigos 227 e 228, bem como o Estatuto da Criança e do Adolescente previsto na Lei 8.069 de 1990 são diplomas que priorizam as crianças e jovens. Logo, assiste-se a um

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grande desajuste entre o previsto nas legislações apontadas e os mecanismos perpetrados pelo controle social. Ou seja, o Estatuto propugna uma política de proteção integral à criança e ao adolescente, absoluta e irrestrita. O critério infanto-juvenil necessita de uma abordagem especial, já que se trata de um ser em formação, em estado de desenvolvimento. Portanto, o jovem e a criança devem ser percebidos como sujeitos de direitos. Entretanto, ocorre uma negação dos direitos, por variáveis intervenientes e em face da condição de classe do sujeito, variável independente (FALBO e NICODEMOS, 2009). Registra-se que cabe à União, aos Estados e aos Municípios o atendimento aos direitos dos jovens, em consonância com o artigo 86 do Estatuto; daí a necessária implantação de ações governamentais, conjuntamente articuladas às ações não-governamentais. Cumpre ressaltar que os jovens não são autores de crimes; podem cometer um ato infracional. Esse consubstancia-se em uma nova categoria jurídica, produzida por jovem, quando ocorre ameaça ou lesão a um bem jurídico, mas que difere do termo crime. Trata-se de um ato análogo ao descrito como delito, mas configura-se enquanto ato infracional, como prescreve o artigo 103 do Estatuto. Nesse diapasão, esses comportamentos não têm o condão jurídico da aplicação da pena, pois a inimputabilidade do jovem, pela ausência de maturidade, exclui a reprovação de sua conduta, elimina a culpabilidade e, por sequência, o próprio crime. Logo, os atos infracionais apresentam consequências jurídicas que diferem da pena. Configuram-se nas chamadas medidas protetivas e nas medidas socioeducativas. As primeiras destinam-se às crianças (com idade de zero a doze anos incompletos) e aos adolescentes (com idade de doze anos completos a dezoito incompletos), cumulativamente, previstas no artigo 101 do Estatuto. São medidas protetivas: encaminhamento aos pais mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporário por equipe interdisciplinar, matrícula e frequência obrigatória em estabelecimento de Ensino

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Fundamental; inclusão em programa comunitário de auxílio à família, criança e adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa de auxílio, orientação e tratamento a alcoolatras e toxicômanos; colocação em abrigo temporário; e colocação em família substituta (FRANCO & FELTIN, 2002). As segundas destinam-se apenas aos adolescentes e estão descritas no artigo 112 do Estatuto. São medidas socioeducativas: a advertência ou admoestação verbal reduzida a termo, como disparado pelo artigo 115; a reparação de danos, com fulcro no artigo 116, em que os pais deverão restituir a coisa; a prestação de serviços à comunidade, por até seis meses, em entidades assistenciais, com no máximo 8 (oito) horas semanais, consoante às aptidões dos adolescentes, elencada no artigo 117, cuja falta de programas recebe largas críticas; a liberdade assistida, com determinação no artigo 118, cuja ausência de orientadores capacitados, designados pela autoridade para acompanhar o caso, coloca-se como grande problema contemporâneo; a semiliberdade descrita no artigo 120, como forma de início de cumprimento medida ou ainda como transição para o meio aberto, com escolarização e profissionalização, sem tempo determinado. A questão é que, em geral, faltam vagas e as entidades localizam-se muito distantes das casas de origem dos jovens; e, por fim, a internação, medida extrema de restrição da liberdade, em caso de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência, ou reiteração de infração grave, ou descumprimento reiterado e injustificável de medida imposta, com lastro no artigo 121 do mesmo diploma legal (TAVARES, 1997). A internação deve ter a natureza de excepcionalidade e ser aplicada com brevidade, somente para jovens com idade dos 12 anos completos aos 18 anos incompletos, sendo prevista em seu prazo máximo pelo período de três anos ou compulsoriamente, quando o jovem completar 21 anos. Cabe notar a discrepância diante do modelo alemão, que se dirige à aplicação de tais medidas apenas aos jovens com idade superior aos 14 anos

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completos até os 18 anos incompletos. Há a previsão da internação provisória, pelo período máximo de 45 dias. A internação é uma solução apresentada pelo Estado que se dá através do controle social institucionalizado punitivo, mas na prática simboliza uma escolarização às avessas, pois se coloca como punição, assemelha-se em tudo à prisão. Entre as críticas à prisão (BITENCOURT, 1993, p. 63) destacam-se: insalubridade; propensão a doenças (respiratórias, sexuais, alérgicas, dermatológicas, mentais e emocionais); problemas psicossociais (autoafirmação agressiva, comportamento subalterno de assujeitamento, rebaixamento da autoestima, depressão, estado permanente de ansiedade, sensação de desespero, alteração ou mesmo anormalidade da linguagem, tendência ao alcoolismo, tabagismo e uso de outras drogas ilícitas, perda de expectativa em face do futuro, perda do sentido de responsabilidade, afastamento do meio social, distanciamento ou mesmo perda da convivência familiar e do vínculo com amigos, alterações ou até redução da afetividade, restrição ou privação da sexualidade, perda do gerenciamento da própria vida); ociosidade (pois não há atividades a desenvolver); estigmatização social; subcultura carcerária; impotência diante dos excessos cometidos com os familiares, quando da “revista”; isso sem considerar os frequentes castigos impostos pela administração dos presídios e espancamentos, que se caracterizam em torturas físicas e psicológicas, que geralmente não aparecem nas estatísticas. Se a prisão destinada aos adultos conserva características que lhe impõe várias formas de sofrimento físico e mental, a internação destinada aos jovens revela as mesmas incompatibilidades, frente à natureza de reclusão, ao impossibilitar a concretização das garantias referentes à dignidade da pessoa humana, particularmente daquelas ainda em formação e desenvolvimento. Logo, destaca-se a função de retribuição (em consonância à teoria absoluta), pelo intuito de impingir dor, sofrimento ao interno. Ignora-se a função de prevenção especial ou individual positiva (correspondente à teoria relativa), de ressocialização e reintegração do interno,

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conflitiva com o confinamento pelo afastamento da sociedade. Porém, reforçam-se metas ou funções informais, como disciplina e segurança (THONPSON, 1980). Assiste-se à maximização da vigilância, ao gerenciamento absolutizante da vida e à aniquilação da personalidade (PEDRINHA, 2010). Logo, como na prisão, na internação os jovens desaprendem os valores da vida social e da condição humana. Por conseguinte, a internação deveria chamar-se medida de dessocialização. Vale notarmos, em abordagem filosófica e criminológica, a perspectiva do tempo na internação. O prazo máximo de duração é de três anos. Embora apontado como lapso curto, caracteriza-se, verdadeiramente, como longo período, pois trata-se de outra dimensão de atuação, na escala proporcional à juventude. Logo, a conjugação do elemento temporal tem um peso diferenciado. Na vida em sociedade, extramuros, o tempo é valorizado, percebido de modo acelerado. Predomina a máxima “time is money”. Em contraposição, na vida confinada imperam a imobilidade, o ócio; o tempo não passa; reverbera a morosidade das instituições jurídicas. Há estagnação, como se os relógios travassem no instante do desvio, como se o futuro não tivesse perspectiva (PEDRINHA, 2011). O tempo é incorporado à pena como antivalor, como tempo morto (GOIFMAN, 1998, pp. 14-16). A instituição captura o tempo no passado e o indivíduo vive a sua rememorização (MESSUTI, 2003), principalmente quando se tem o frescor e vigor da juventude, o auge do esplendor físico, a intensidade dos desejos. Trata-se de um tempo mágico que jamais voltará. Esse reverbera a ansiedade, o desejo de liberdade e de vida do jovem. Logo, se o tempo integra-se à medida-castigo, para o jovem a amplia, alterando-a qualitativa e até quantitativamente, prolongando-a bem mais, na constituição de sua maior severidade. Assim, modela-se como um sofrimento no “presente-perpétuo”, pois, se para quem está no inferno um minuto é lento, para quem nele está jovem cada segundo é a eternidade.

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Considerações Finais

Contemporaneamente, assiste-se ao flagrante desrespeito à Constituição Republicana Brasileira e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, no exercício do controle social, em que, frente às desigualdades da estrutura socioeconômica, milhares de jovens pobres são etiquetados e rotulados de infratores e superlotam os estabelecimentos de internação. Vale destacar que cerca de mais de 2/3 (dois terços) dos atos infracionais são de delitos de bagatela, como furto, dano e lesão corporal leve. Cerca de menos de 1/3 (um terço) dos atos infracionais apresentam mais agressividade, como roubo e lesão corporal grave. Raramente aparece o homicídio, pois só 3% dos atos infracionais são hediondos40 . Cabe uma crítica contundente ao Poder Judiciário, que não aplica as medidas socioeducativas, as múltiplas medidas não privativas de liberdade, uma vez que, reiteradamente, fixa-se na internação. Na prática, não se pode distinguir a medida socioeducativa de internação da própria prisão, aplicável aos adultos imputáveis, autores de crimes, por ambas terem natureza segregadora, estigmatizante e de confinamento. Além dos excessos cometidos pelas medidas socioeducativas, que por eufemismo intitulam de internação a prisão, travestindo de medida uma sanção, assiste-se ainda à profusão de campanhas de redução da maioridade penal em que se estima uma elevação para mais de 30 mil internações, mesmo frente às críticas dos penalistas e defensores de direitos humanos (LINS E SILVA, 2007); buscam ainda no Congresso Nacional ampliar o prazo de internação. Notadamente, ocorre a ausência da chamada prevenção primária, com incidência lenta, de longo prazo, por políticas

40 http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1371530&tit=Apenas-3-dos-delitos-cometidos-por-jovens-sao-graves.

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públicas sociais, através da educação, da saúde, do lazer, da cultura e dos esportes. Sabe-se que essa verdadeira prevenção já encontra guarida na execução do projeto constitucional que prevê a consolidação de uma sociedade mais justa e igualitária. Contudo, não é por essa razão que a internação como forma de controle social institucionalizado se exerce, mas, sobretudo, para seletivamente criminalizar e punir, ainda que por ato infracional e medida socioeducativa de internação, a juventude pobre.

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A mediação e o sistema socioeducativo

Flávia Gallo 41

Glória Mosquéra42

Resumo: Este trabalho busca apresentar o papel da mediação como possibilidade de nova significação das relações sociais, valorizando e encorajando a cooperação através da facilitação da comunicação. Dessa forma, assinalamos a importância da introdução dos procedimentos da Mediação nos Departamentos Socioeducativos. Apresentamos os princípios fundamentais da Mediação, nossa experiência como mediadoras e nossa visão sobre a eficácia desse procedimento. A ideia não é ser pontual e adotar uma atitude assistencialista ou autoritária, mas propor considerações sobre ações e suas consequências, com base em princípios de autonomia e equidade. A reflexão possibilita a mudança da lógica determinista, promovendo abertura para discussões capazes de desestabilizar as posições defendidas e possibilitando o surgimento de outras histórias.

Palavras-chave: Mediação de conflito, autonomia e socioeducação

41 Especialista em Psicologia Jurídica UERJ; Psicóloga SEAP desde 1998; Mediadora do TJRJ; Integrante do Espaço Rio Mediação. Formação em Psicanálise pela Escola Brasileira de Psicanálise MF. Psicóloga UFMG. [email protected],br42 Psicóloga, Terapeuta de Família, Mediadora, Docente da Pós-graduação em Mediação na Faculdade Candido Mendes, Instrutora de Mediação formada pelo CNJ, integrante da Comissão de Mediação da OAB RJ e Integrante do painel de Mediadores do TJ RJ. [email protected]

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Introdução

Reforçar e desenvolver novos métodos de resolução pacífica de conflitos demonstra ser um potente caminho para ampliar a cultura de paz, tornando-a mais abrangente. Diversas pesquisas ressaltam que um dos obstáculos para atingirmos o ideal de pacificação das relações sociais é a forma como vemos e lidamos com o conflito e seus desdobramentos. Pensadores contemporâneos têm se ocupado dessas questões de forma intensa e constante, pois o conflito é uma realidade presente na vida de relações e faz parte da nossa natureza; por isso, precisamos entendê-lo melhor. Os estudos sobre cooperação são imprescindíveis na contextualização desses conceitos, na medida em que demonstram que o conflito está presente em nossa sociedade pelas dificuldades de comunicação e pelo desinteresse na cooperação (SENNET 2012). Compreendemos a realidade conflituosa da sociedade contemporânea quando consideramos o ponto de vista histórico, visto que ficamos centenas de anos tendo nossa individualidade negada em prol de uma total dedicação a um ser maior ou à vida que estaria por vir; destarte, entramos no mundo moderno sentindo urgência em viver o individualismo. Como consequência, na atualidade, vivemos em uma sociedade que “desabilita” as pessoas da prática da cooperação. Para cooperar, necessitamos desenvolver habilidades e capacidades, a fim de entender e mostrar-nos receptivos ao outro e, assim, agir em conjunto. Para tal, faz-se necessário focar nossa atenção fora de nós mesmos, no outro. Quando tentamos reunir pessoas de interesses diferentes ou conflitantes, que não se sentem bem em relação umas às outras, que são desiguais e que têm como desafio final reagir nos termos do outro, teremos aí, em linhas gerais, a maior tarefa da gestão de conflito. Ou seja, é preciso “trabalho” para desenvolver a capacidade de foco no outro. Averiguamos como resultados desse processo, quando conseguimos a cooperação

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entre os diferentes, a sustentação das relações nos momentos de infortúnios e nas reviravoltas da vida e a responsabilização dos indivíduos e dos grupos por suas ações; para tal, faz-se necessária a elaboração de nossos atos. A compreensão de nós mesmos é o que conseguimos com tipos mais exigentes de cooperação. Lidar com o conflito de maneira produtiva consiste em reagir aos outros nos termos elencados por eles próprios. Essa capacidade de ser receptivo ao outro, mesmo na diferença, é considerada como disposição ética, um estado de espírito que trazemos em nós como indivíduos. No entanto, essa habilidade surge da atividade prática e não é, em absoluto, inerente à condição humana. A difícil tarefa de cooperar com aqueles que diferem sempre foi algo raro. A metodologia da Mediação de Conflitos, enquanto técnica inserida nesse contexto, terá como objetivo básico facilitar a comunicação entre as pessoas e, consequentemente, possibilitar o desenvolvimento da capacidade de cooperação. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), em seu artigo 35, versa que seja dada prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas, favorecendo meios de autocomposição de conflitos. Dessa forma, o SINASE reforça a proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – que tem, dentre seus objetivos, o de regular a medida socioeducativa, traçando diretrizes para que ações públicas se tornem um conjunto articulado de ações globais, incluindo o jovem em conflito com a lei na sociedade de maneira produtiva e ampla. Esses serviços e programas deverão ser inovadores, cujo objetivo primordial deverá estar pautado no atendimento de excelência a essa população. Sabemos que os projetos pontuais e as emergências, em geral, interrompem o processo de construção de um estado Democrático de Direito; assim, faz-se necessário que novos mecanismos sejam implantados e tenham continuidade.

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Nova possibilidade

Acreditamos que a Mediação de Conflitos será uma ferramenta crucial que contribuirá para a garantia de direitos do jovem em conflito com a lei e sua rede de pertinência. Apostar na potencialidade desses atores é construir, junto a eles, as políticas públicas necessárias à garantia de seus direitos, considerando seus anseios, desejos e necessidades. Edificando processos coletivos de funcionamento e problematizando as situações rotineiras, iremos avançar. Para tal, faz-se necessário localizar iniciativas e incentivar outras ações, visando a um atendimento integrado que possibilite a Construção de processos coletivos de funcionamento. O trabalho realizado pela Mediação deverá incluir os diversos atores envolvidos nessa seara, promovendo a interação do servidor, adolescente, família e comunidade. Dessa forma, estaremos ampliando os serviços da rede como um todo, estimulando parcerias e movimentos, articulando outras possibilidades transformadoras. A inauguração dessa nova modalidade de integração, proposta pela Mediação, traça outra diretriz, diferente daquela de outrora em que a medida de internação, imposta ao adolescente em conflito com a lei, assemelhava-se à pena de suplício. Percebemos que essa medida socioeducativa é eficaz quando se trata de excluir e segregar, mas falha quando visa à transformação, inclusão e garantia dos direitos dos adolescentes em conflito com a lei. Constatamos a deficiência no sistema Socioeducativo quanto à inclusão social para além dos muros da instituição. A medida é inoperante quando se trata de incluir e educar. Novos dispositivos que provoquem rupturas à exclusão desses jovens deverão estar aliados às práticas coletivas, sendo constantemente reafirmados. O respeito à diferença deverá ser valorizado por ser alicerce na construção do diálogo. A qualidade do serviço prestado deverá ser responsabilidade de todos – servidores, adolescentes, familiares, acadêmicos, enfim, da sociedade em geral.

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Sobre a técnica

A mediação é um processo pelo qual um terceiro imparcial facilita a comunicação entre pessoas em conflito, habilitando-as a assumir controle de suas vidas e a encontrar soluções que sejam compatíveis aos seus interesses e necessidades. A mediação é um processo voluntário, informal, no qual o mediador, ou mediadores, fortalece as partes, motivando-as a solucionar a lide. A participação no processo é voluntária e sigilosa. O terceiro imparcial deverá ser especialmente treinado, tendo como objetivo fundamental facilitar a comunicação entre as pessoas que se encontram em conflito e possibilitando o restabelecimento do diálogo. Como procedimento técnico, a Mediação deverá ocorrer em local reservado, podendo ocorrer em diversos encontros. Na primeira sessão, deveremos apresentar o método, explicando os procedimentos e assegurando de que as pessoas estão presentes por livre e espontânea vontade, pois a Mediação implica a voluntariedade. O Mediador jamais deverá impor uma decisão, a autoria da solução será sempre das partes em conflito. Sendo esse processo confidencial, os atores envolvidos não poderão servir de testemunha em processos jurídicos. O procedimento é informal (não há produção de provas); as partes deverão observar as regras fundamentais para participarem do processo. Cada um falará apenas na sua vez e o mediador deverá controlar o tempo da fala com precisão, dando oportunidade para que todos falem com a mesma medida de tempo. A mediação será desenvolvida em conjunto, com a escuta atenta, sem interrupções, e o uso de uma linguagem sempre neutra e não agressiva. Nesse processo, visando à cooperação entre as partes, faz-se necessário certo manejo para que os medianos se sintam acolhidos. Esses deverão estar à vontade e o mediador deverá acreditar no procedimento e buscar auferir a confiança das

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partes para que essas possam expressar seus pensamentos, sentimentos, medos e expectativas sem receio. Na acolhida, deverão ser desenvolvidos o reconhecimento e a valorização dos sentimentos, possibilitando aos participantes a avaliação da circunstância e a busca de alternativas para resolução.

Consideramos que a procura do efeito emancipador na Mediação permitiria ao adolescente em conflito com a lei poder transformar a expressão de violência do ato infracional na compreensão do pedido de auxílio envolvido nela, ao verbalizar, num diálogo respeitoso e cooperativo, suas necessidades e pressões e, assim, remanejar seus relacionamentos estruturais. Neste trabalho, o adolescente poderia tomar consciência de si, de sua identidade, de sua inserção social e de seus direitos, aceitando a sua contrapartida: as obrigações para com os outros. (VEZULLA, 2004 p. 82)

Percebemos que a possibilidade de o sujeito ser escutado com atenção, ao falar sobre si mesmo e sobre sua situação, faz com que se sinta respeitado e acolhido, e isso o encoraja a procurar falar sobre as motivações e situações que envolvem sua realidade. No caso do adolescente em conflito com a lei, essa escuta poderá possibilitar uma ressignificação de sua conduta do ato infracional cometido.

Em alguns casos, os maus-tratos sofridos na infância, que, como descreve Veronese, se encontram associados à imposição de um modelo de violência e à autoria de ato infracional, o que aumenta a desconfiança do adolescente. A mesma pressão sentida pode ser produzida, também, pela situação que está vivendo, que faz com que o adolescente não consiga expressar verbalmente sua história, suas emoções. Nestes casos, o mediador deverá recorrer a uma comunicação não verbal pelo lúdico, propondo um jogo que inicialmente se pede para ser escolhido pelo adolescente. O jogo do enforcado, onde um enigma (palavra) deve ser decifrado; o jogo da garrafa, que autoriza a quem toca em sorte fazer uma pergunta a quem escolher, são jogos que facilitam a comunicação e a expressão. Muitos adolescentes desenham seu próprio nome como forma de construir uma unidade identificatória mínima a partir da qual se constituir. É fundamental compreender o trabalho de elaboração da própria identidade que se produz ao poder o adolescente dar conta de si, expressar verbalmente sua realidade e fortalecer assim seu ser sujeito. (VEZULLA 2004, p. 48)

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Ao possibilitar a entrada no simbólico, ao postar em forma de palavras seus sentimento e emoções, constatamos que a energia antes dispersa passa a ter um endereço. Para Vezulla (2004), facilitando a expressão e o acesso ao simbólico, a mediação poderá atuar reforçando a função paterna. Lacan (1985)43 reinscreveu o mito de Freud como uma operação designada de metáfora paterna ou função paterna, como nos diz Vezulla (2004). Essa operação demonstra que o desejo (da mãe, união simbiótica para com o filho) é barrado pelo Nome do Pai, sendo que esse tem efeito de corte. Para Lacan, a primeira relação entre a criança e sua mãe diz respeito ao desejo da mãe, cujo objeto é o filho. A metáfora paterna substitui o desejo da mãe, que toma seu filho como objeto (sendo si mesma em outro) pelo significante – Nome do Pai. Esse substituto produz ruptura, abrindo outras possibilidades ao desejo; desvinculando o filho-objeto do desejo da mãe, ocorre uma interdição e se estabelece a lei, que permite novas possibilidades ao desejo e abre vias para o reconhecimento.

Sobre o reconhecimento

O reconhecimento é recíproco na medida em que um sujeito se vê reconhecido por outro em suas propriedades e capacidades, considerando suas singularidades e se contrapondo como sujeito particular de um todo social; assim, o processo de socialização ocorre entre os vínculos estabelecidos na comunidade com base nas formas elementares de convívio intersubjetivos; porém, a demanda por reconhecimento desencadeada através do conflito surge a partir de experiência(s) de desrespeito(s) ainda na infância. O conceito de reconhecimento recíproco desenvolvido por Hegel (1770-1831) esclarece que a motivação dos sujeitos, em busca de outras relações éticas e o abandono daquelas em que se encontravam, será fixada pelo não reconhecimento pleno de suas

43 LACAN, J. O Seminário. Livro III: As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

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identidades. Portanto, não será a punição que irá apaziguar essa busca por relações éticas, e sim o reconhecimento do sujeito.

Relações desse tipo podem ser chamadas solidárias, pois desperta a tolerância para com as particularidades individual da outra pessoa, como também o interesse afetivo por essa particularidade: só na medida em que eu cuido ativamente de que suas propriedades, estranhas a mim, possam se desdobrar, os objetivos que nos são comuns passam a ser realizáveis. (HONNETH, 2003, p. 211)

Na ausência de possibilidade de reconhecimento social, o adolescente estará condenado a criminar para se fazer existir enquanto sujeito de direito. Reforçando o reconhecimento imposto a esses pela sociedade e pelos grupos organizados, a medida de internação servirá apenas para circunscrever o espaço a ser destinado às classes perigosas. Dessa forma, aquele que cumpre medida nesse sistema será sempre um delinquente a ser excluído da sociedade, e a “inserção social” só poderá ser vislumbrada como possibilidade de inserir o egresso em seu próprio meio social, nos guetos destinados as essas “supostas classes”, em que poderão ser reconhecidos, legitimados e estimados por seus pares. Lima (2010)44 esclarece que em uma sociedade existem diversas formas de reconhecimento que se diferenciam umas das outras segundo o grau de autonomia do sujeito. Honneth (2003) ressalta que o reconhecimento dessa autonomia por todos poderia vir a substituir categorias imutáveis ou com pouca mobilidade social por outras forjadas através do vínculo social de reconhecimento solidário.

O discernimento temperante de que toda organização futura da sociedade depende de uma esfera de produção e distribuição de bens mediada pelo mercado, na qual os sujeitos devem estar incluídos pela liberdade negativa do Direito formal (...) onde as atividades mediadas pelo mercado e os interesses dos indivíduos particulares seriam uma zona constitutiva do todo ético. (...) a formação de uma organização social com coesão ética no reconhecimento solidário da liberdade

44 LIMA, A. F. Psicologia Social Crítica Paralaxes do Contemporâneo. Porto Alegre: Sulina, 2012.

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individual de todos os cidadãos, propõe substituir as categorias atomísticas, por outras forjadas através do vínculo social entre os sujeitos. (HONNETH, 2003, p. 42)

A questão da responsabilidade está associada ao modo de avaliar desejos. Dessa forma, responsabilidade se articula à noção de desejo, sendo esse entendido como uma escolha – uma aposta. Se podemos nos considerar como sujeitos responsáveis por nossos atos e pela escolha de nossa vida, isso se deve a nossa capacidade de articular e avaliar desejos. “Somos nós que criamos os nossos valores e estes dependem de nossa própria ação.” (TAYLOR, 2011, p. 36)

Portanto, o conceito de identidade poderá ser definido por avaliações fundamentais, só possíveis com base em uma lista de propriedades, tais como: descrição física, procedência, origem, habilidades; mas essas propriedades só poderão constituir uma dada identidade se for algo essencial e o sujeito em questão tiver orgulho disso e conceber esse pertencimento como alguma coisa que o inclui em uma classe de pessoas, cujas qualidades sejam valorizadas em sua condição de agente. A noção de identidade traz como referências avaliações que são essenciais, pois essas definem o horizonte a partir do qual nos tornamos pessoas que refletem e avaliam. Não ter ou não encontrar esse horizonte é uma experiência de perda e desagregação.

No entanto, o sujeito tem capacidade de se reinventar, se autointerpretar. A identidade não é fixa, não é uma escolha radical, uma vez que essa pressupõe uma aposta, na medida em que são articulações do que consideramos como valioso. Nossas escolhas são interpretações dos nossos desejos. Nossas avaliações são articulações do que sentimos como valoroso, mais altivo, mais íntegro, mais realizador. Como articulações, elas nos oferecem outro ponto de apoio para o conceito de responsabilidade.

Para Taylor (2011), grande parte de nossas motivações é formulada em palavras. A relação de nosso desejo e nossas aspirações está atravessada por pulsões psíquicas articuladas.

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Essas articulações seriam ensaios para reformular o que está incompleto e confuso.

Fornecer uma determinada articulação é moldar o sentido do que nós desejamos ou do que consideramos importante – o que chamamos neste trabalho de (re)significação. As articulações, que modelam os objetos, implicam responsabilidade de um modo que não ocorre como meras descrições ou podem ser postas em categorias a serem mensuradas, mas são limitadas pela nossa experiência.

A capacidade de avaliar desejos é um traço do humano. Sendo a avaliação qualitativa uma característica essencial da pessoa, isso esclarece o sentido que atribuímos à reflexão, à vontade e à responsabilidade; transformar o sujeito em mero objeto a ser quantificado, medido, classificado equivale a retirar do homem o que ele tem de humano. Afinal, na experiência do amor está inserida a possibilidade da autoconfiança; na experiência do reconhecimento jurídico, a possibilidade do autorrespeito; na experiência da solidariedade, a possibilidade da autoestima; e na experiência da análise do desejo, a possibilidade de autointerpretação. São essas as experiências que nos tornam humanos.

Ainda a considerar

Valorizar os vínculos sociais construtivos, possibilitar o acesso dessa população fragilizada aos setores de educação, saúde, justiça e cidadania é o mínimo a ser pensado para o desenvolvimento social. Quando o sujeito tem a oportunidade de contribuir para o corpo social, independentemente de seu status e de seu grupo social, pode-se chegar a um reconhecimento recíproco de seus atores. As relações solidárias tecem nesse corpo social novas possibilidades que podem neutralizar as desigualdades. Outras experiências de reconhecimento, mais significativas, poderão propiciar um desenvolvimento saudável desses atores. Conforme

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apreendemos com Honneth (2003), na experiência do amor está inserida a possibilidade da autoconfiança; na experiência do reconhecimento jurídico, a possibilidade do auto respeito; e na experiência da solidariedade, a possibilidade da autoestima. Dessa forma, acreditamos que a mediação desenvolvida no sistema socioeducativo contribuíra para a construção da história do adolescente e para a ponderação sobre si e sobre seus relacionamentos com sua família, escola, comunidade e outros grupos, garantindo-lhe o sigilo sobre o que for dito, não incluindo o falado e nem apresentando as sessões de mediação, pois a mediação é um procedimento informal. Acreditar na potencialidade desses adolescentes é construir, junto com eles, as políticas públicas necessárias à garantia de seus direitos, considerando seus anseios, desejos e necessidades. Edificando processos coletivos de funcionamento e problematizando as situações rotineiras, iremos avançar. Apostar em instituições permeáveis, com ampla participação da comunidade e dos familiares, é uma saída possível. Fragilizada tanto no plano econômico como no cultural, essa população carece de assistência e de referência que lhes permitam saber dos seus desejos. Assim, parafraseando Vezzula, pensamos ser imprescindível o trabalho do núcleo de Mediação no Sistema Socioeducativo. Como ele nos diz,

Por meio da mediação, estas pessoas podem exercer seus direitos ao estar em condições de entender, elaborar e resolver os próprios conflitos, sendo possível comparar o trabalho do mediador com o do fruticultor que, para poder obter as melhores frutas, não se preocupa por elas, mas sim pelas árvores e plantas que as produzem. Igualmente, o mediador preocupa-se pelos mediados e suas necessidades subjetivas e objetivas, para que, logo que atendidas, os próprios mediados possam estar em condições de produzir os melhores acordos, de encontrar as melhores soluções que atendam às necessidades expressadas nos seus conflitos; de produzir seus frutos.(VEZZULA, 2004, p. 86)

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Parte III - Ações Socioeducativos: práxis

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Violência, Drogas, Educação e Instituição Socioeducativa a adolescentes em conflito com a lei: Uma experiência em construção

Janaina de Fátima Silva Abdalla45

Soraya Sampaio Vergilio 46

Resumo: O avanço nas garantias de direitos dos jovens, sobretudo os debates e aumento de visibilidade acerca dos que se encontram em situação de vulnerabilidade e risco, pode também ser atribuído às normativas legais e legislações nacionais e internacionais- Regras de Beijing(1985), Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA/1990), Constituição Federal(1988) dentre outros. O ECA estabeleceu um marco histórico com as doutrinas da proteção integral e da prioridade absoluta fazendo com que crianças e adolescentes deixassem para trás a concepção de “menores” para passarem a ser sujeitos de direitos. O ECA elenca as medidas protetivas destinadas àqueles que tiveram os direitos ameaçados ou violados. A imposição de um tipo de proteção pode acontecer simultaneamente durante o procedimento de apuração de autoria de ato infracional ou à determinação de medidas socioeducativas a adolescentes em conflito com a lei. O art. 101 (ECA) assegura “inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos” será com este público, os “usuários” de drogas, o desdobramento do trabalho sobre uma nova perspectiva no tratamento: políticas públicas assegurando direitos em substituição à lógica penal. Esta pesquisa propõe o estudo do atendimento aos adolescentes em conflito com a lei e usuário de drogas na interface educacional de medida de proteção/tratamento e medida segurança /socioeducação que se encontram no Centro Integrado de Tratamento de Uso e Abuso

45 Doutora em Educação UFF, DEGASE e FGS;diretora da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire –DEGASE , Prof Faculdade Gama e Souza 46 Mestre em Educação UFRJ , Pesquisadora UERJ e DEGASE

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de Drogas, unidade do Novo DEGASE-executor de medidas socioeducativas e protetiva no Estado do Rio de Janeiro.

Palavras chaves: violência , drogas , legislação , educação e socioeducação

Introdução

O tema da violência urbana vem mobilizando vários setores da sociedade brasileira nas últimas décadas. O comércio ilegal de entorpecentes e o avassalador envolvimento e uso de drogas pelos jovens tem suscitado um panorama de medo e insegurança especialmente aos habitantes das grandes cidades. A demarcação espacial em áreas de risco, sobretudo as favelas e demais áreas diretamente afetadas pela criminalidade e ocupação dos grupos usuários de drogas repercutiu no binômio pobreza-violência associando aos moradores de comunidades pobres à noção de “classes perigosas”.

A construção de significados e a representação social da população pobre enquanto “classe perigosa” reforçam os nexos simbólicos de territorialização da pobreza e da violência no processo de reprodução social, espaço onde a miséria e a ausência das garantias de cidadania são peculiares, acrescidas da negação dos padrões próprios culturais e das estratégias de sobrevivência desenvolvidas (BARROS e FREITAS, 2009). E no desdobramento, a tendência da tradicional sociedade brasileira de associar diretamente a miséria como causa da criminalidade e da violência: a criminalização da pobreza.

Soares (2004) indica elementos da realidade social das populações pobres que tendem a produzir efeitos sobre os sujeitos gerando ciclos de violências contra crianças e jovens. Essas consonâncias são mais facilmente evidenciadas em situações de:

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(a)pobreza; (b) menor escolaridade; (c) menor acesso a oportunidades de trabalho; (d) maior chance de sofrer o desemprego e o desamparo econômico e social; (e) angústia e insegurança; (f) depressão da autoestima; (g) alcoolismo; (h) violência doméstica; (i) geração de ambiente propício ao absenteísmo, à desatenção e à rejeição dos filhos; (j) vivência da rejeição na infância, o que fragiliza o desenvolvimento psicológico, emocional e cognitivo, rebaixa a autoestima, estilhaça as imagens familiares que serviriam de referência positiva na construção da identidade e na absorção de valores positivos da sociedade; (l) crianças e adolescentes com esse histórico tendem a apresentar maior propensão a experimentar deficiências de aprendizado (tanto por razões psicológicas quanto pelo fato de que as limitações econômicas dos pais impedem a oferta de acesso a escolas mais qualificadas, inclusive para lidar com essas deficiências e para estimular os alunos, valorizando-os); (m) dificuldades na família, na escola e pressão para o ingresso precoce no mercado de trabalho (mesmo que seja por uma participação intermitente e informal) tendem a precipitar o abandono da escola, sobretudo no contexto de desconforto e inadaptação, e de falta de motivação; (n) a saída da escola reduz as chances de acesso a empregos e amplia a probabilidade de que o círculo da pobreza se reproduza por mais uma geração; (o) configurando-se este quadro, aumentam as probabilidades de que o adolescente experimente a degradação da autoestima, especialmente se considerarmos o contexto social e cultural em que prosperam os preconceitos, o padrão da dupla-mensagem e as artimanhas da invisibilização. (SOARES, 2004: 139)

Outro aspecto da violência é o significativo número de jovens oriundos das classes pobres envolvidos em atos ilícitos, no uso abusivo de drogas e vitimados por homicídios, tornando a realidade ainda mais contundente: pobreza, delinquência e violência (ABDALLA, 2011).

Segundo Marcia Leite (2000) há duas posturas perante a questão da violência: “a disciplinarização das classes perigosas” em nome de uma pretensa ordem e segurança, nem que para isso se rompa com as garantias constitucionais de direito e outra atenta para a formulação e aplicação de uma política de cidadania, sobretudo para os jovens, em busca de alternativas no campo da segurança .

Vivemos entre os movimentos de direitos humanos para a juventude, as inúmeras conquistas no plano da legislação na

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expansão aos direitos de cidadania e um sistema paralelo de violência e exclusão contra o jovem, principalmente para aqueles das populações pobres. Esse paradoxo faz parte do cotidiano brasileiro e mapeia, de forma contundente, o cenário nacional. Os jovens envolvidos em situação de violência, ora são descritos como vítimas, ora como causadores da violência urbana.

Segundo Adorno (2003), fala-se com frequência de crianças e adolescentes como responsáveis pelo crescimento da violência nas grandes cidades brasileiras, em especial dos crimes violentos como homicídios. Na mídia impressa e eletrônica, cotidianamente, veiculam-se imagens que mostram indivíduos, nesses grupos etários, cometendo audaciosas ações, cada vez mais precocemente e principalmente a devastadora imagem do envolvimento com o uso de drogas como o crack.

A política e legislação no Brasil e os adolescentes em conflito com a lei

Estudos voltados para a relação que o adolescente estabelece com as drogas e o ato infracional (ZEITOUNE, 2008,2009 e 2010; CARVALHO,1996; CONTE, et al.2008) indicam a necessidade de considerar criticamente diferentes fatores: no campo o jurídico-político (estereótipo da criminalidade), o imaginário social em torno do usuário e das drogas, as políticas públicas e as concepções terapêuticas que permeiam os discursos médico-sanitarista (estereótipo da dependência) e os processos de subjetivação do adolescente, as transformações psico-fisiológicas ligadas à maturidade sexual ( ZEITOUNE, 2010 ).

O estereótipo da dependência entende que existe um vínculo necessário entre consumo, irreversibilidade da dependência e formação de carreira criminal. Esse estereótipo se estende para a categoria do inimigo interno, visualizado na droga e no traficante, assim como no inimigo externo, localizado nos países

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terceiro-mundistas, produtores e exportadores de drogas. Impõe-se, assim, ao senso comum a ideia de que esse inimigo deve ser de qualquer forma eliminado através de ação conjunta, pois representa perigo social a toda comunidade internacional. O estereótipo da criminalidade se funda na ideia de uma realidade intrínseca do comportamento que é desviante em si e preexiste ao controle social e penal ( CARVALHO 1996, apud CONTE et al , 2008 p.606)

Historicamente no Brasil, as políticas públicas voltadas para o atendimento aos adolescentes autores de atos infracionais e usuários de drogas a visão jurídico-político marcada pelo estereótipo da criminalidade ( os delinquentes ) se sobrepuseram a visão do estereótipo da dependência. Entendemos que esta visão pendular e simplista não nos possibilita uma abordagem critica da realidade, tampouco aos processos de subjetivação destes jovens na construção de sua identidade e de seu projeto de vida saudável e cidadã.

Desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA -Lei nº 8.069), de 13 de julho de 1990, as crianças e adolescentes passam a ser considerados como sujeitos de direito sendo adotado a doutrina da proteção integral expressa na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito da Criança.

Em relação às drogas, o ECA (artigo 81) proíbe a venda à criança e ao adolescente, tanto de bebidas alcoólicas, quanto de produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica.

O ECA estabelece medidas específicas de proteção47 e medidas socioeducativas48 , em quaisquer das hipóteses é 47 Art. 101. ECA Medidas Protetivas :I - encaminhamento aos pais ou respon-sável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - abrigo em entidade;VIII - colocação em família substituta.48 A Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas sócio-educativas: I - advertência;II

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direito dos adolescentes matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino. A educação é um direito subjetivo e dever do estado49 .

No que se diz respeito ao uso de drogas está prevista a aplicação de medidas de proteção especificadas no artigo 100. Elas poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com o caso. Essas medidas visam garantir o acesso a programas oficiais ou comunitários de auxílio e tratamento a alcoolistas e toxicômanos, com o apoio à família.

Contudo, verificada prática de ato infracional por adolescentes, aplicam-se as medidas socioeducativas previstas no artigo 112, bem como as protetivas previstas nos artigos 99 e 100. As medidas socioeducativas vão da advertência à internação, como medida privativa de liberdade.

A consequência da prática do ato infracional (conduta descrita nas leis penais), por meio da medida socioeducativa, constitui a responsabilização do adolescente. Sendo incontestável que o jovem é responsável frente à legislação especial, o ECA, e reconhecida a natureza das medidas socioeducativas: sancionatória embora predominantemente educativa.

A internação – sem eufemismos – é a privação da liberdade, isto é, a suspensão do direito de ir e vir, porém, a suspensão deste direito não se caracteriza pelo enfoque repressivo clássico que tinha por base a teoria da incapacitação, ou seja, a criminalização da juventude pobre. Na perspectiva da Proteção Integral, a medida de internação prevê a garantia de direitos, as condições de atendimento e o impacto dessas ações sobre o jovem. Segundo Costa :

- obrigação de reparar o dano;III - prestação de serviços à comunidade;IV - liberdade assistida;V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimen-to educacional;VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.49 Art.54.Educação dever do estado:§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gra-tuito é direito público subjetivo.§ 2º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público ou sua oferta irregular importa responsabilidade da autoridade compe-tente. § 3º Compete ao poder público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsável, pela frequência à escola.

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Toda internação é uma forma consciente de segregação, quanto mais completa for a estrutura de um internato, levando-o a não ter que recorrer a recursos institucionais e serviços externos, maior a sua capacidade de segregar. E quanto maior for a capacidade de o internato segregar, maior será a sua capacidade de exercer violência e arbitrariedade sobre os internos. Por isso, nenhum serviço que possa ser realizado por outro órgão deve ser exercido pela instituição responsável pela aplicação das medidas socioeducativas de internação (COSTA, 2006, p.60 )

Tal visão distorcida dos princípios propostos pela legislação em vigor tornam invisíveis as políticas materializadas em práticas institucionais de grupos que lutam cotidianamente na garantia dos direitos humanos dos adolescentes infratores nos sistemas socioeducativos no Brasil.

Destacamos que as políticas precisam estar sempre associadas ao diálogo com os interlocutores/autores das práticas cotidianas na busca de formas de articulação, superando as produções fragmentadas e positivistas.

DEGASE e CITUAD

No Rio de Janeiro a responsabilidade pelo atendimento ao adolescente em conflito a lei – sob suspeita de cometimento de ato infracional e o adolescente infrator é do Departamento Geral de Ações Socioeducativas - DEGASE, órgão do governo estadual e parte da Secretaria de Estado de Educação.

Desde 2007, o Novo DEGASE, vem produzindo inúmeros documentos que indicam uma mudança significativa na política de atendimento ao adolescente em conflito com a lei no Estado do Rio de Janeiro.

Medidas concretas como o investimento na formação dos profissionais; reformas nas unidades socioeducativas; construções de unidades descentralizadas; diminuição do percentual de internação; normatização dos procedimentos

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e abertura para a realização de pesquisas acadêmicas nas unidades; convênios com instituições públicas, privadas e do terceiro setor; e o processo de municipalização das medidas em meio aberto (ABDALLA, 2010b), são apresentas e registradas nos documentos institucionais. Órgãos de controle do sistema da sociedade civil e do sistema jurídico e do sistema de garantia de direitos veem acompanhando estas mudanças

O presente trabalho é um recorte da pesquisa em desenvolvimento sobre o acesso a Educação Formal para jovens do Centro Integrado de Tratamento de Uso e Abuso de Drogas (CITUAD), unidade do Novo DEGASE para tratamento de adolescentes em medida protetiva e que fazem uso e abuso de drogas. O CITUAD busca promover, junto aos adolescentes e suas famílias, ações motivacionais voltadas para o desenvolvimento da saúde integral e redução de danos, inclusive sociais, provocada pela utilização de substâncias psicoativas.

Em 1999 foi inaugurado o Projeto Nossa Casa, unidade ambulatorial de tratamento. No ano seguinte, foi fundado o Centro de Tratamento de Dependência Química (CTDQ), unidade de internação e execução de medida protetiva. Em 2003, o DEGASE resolve unificar as duas unidades - Nossa Casa e CTDQ – criando o CITUAD com a perspectiva de tratamento ambulatorial e internação concomitantemente.

No ano de 2009, após o término da municipalização da medida de Liberdade Assistida no Estado do Rio de Janeiro e a descentralização do tratamento ambulatorial para todas as unidades de internação e internação provisória, nasce a atual proposta de atendimento para o CITUAD: “alternativa terapêutica multidisciplinar, voltada para desenvolvimento e implantação de programas de tratamento, visando contribuir para a elevação da qualidade do estado de saúde dos adolescentes e seus familiares”.

Ao mesmo tempo em que se consolidava o modelo e proposta de atendimento do CITUAD agregavam-se diferentes atividades. Uma delas, foco da nossa pesquisa, a escolarização.

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Educação e CITUAD – Uma experiência em construção

No fim de 2002, foi publicada em Diário Oficial a implementação de uma sala multisseriada para atendimento aos jovens internados no CTDQ. A classe é uma extensão do Colégio Estadual Padre Carlos Leôncio da Silva, unidade escolar da Secretaria de Estado da Educação responsável pelo atendimento dos jovens em internação provisória no Instituto Padre Severino.

Apesar da internação provisória não ser, de fato, uma medida socioeducativa, e sim uma medida processual de natureza cautelar, alguns aspectos referentes a ela precisam ser esclarecidos. Segundo ABDALLA:

Internação provisória aproxima-se bastante da medida de internação, ainda que tenha finalidade totalmente diversa: enquanto esta tem caráter sancionatório e implica o reconhecimento de que o adolescente cometeu um ato ilícito, aquela tem o escopo de garantir a aplicação da lei e está ligada aos fins do processo judicial. Ambas as medidas, entretanto, retiram do jovem o direito de ir e vir e, portanto, devem ser aplicadas em último caso, isto é, somente quando imprescindíveis para se atingir a finalidade pretendida: a proteção integral . (ABDALLA, 2012)

A classe multisseriada no CTDQ inicialmente atendia apenas aos jovens do 2º segmento (6º ao 9º ano) do Ensino Fundamental, mas logo se entendeu a necessidade de ampliar o atendimento também para os jovens dos anos iniciais (1º ao 5º ano).

Por se tratar de uma extensão, o anexo funcionava nas dependências do então CTDQ. Os problemas eram inúmeros. Desde a dificuldade de o aluno entender que a sala de aula era um “espaço” diferenciado até a incompreensão dos servidores da importância do trabalho proposto.

Os relatos de professores que ensinavam neste contexto de atendimento apontavam que não eram poucas as vezes que não conseguiam realizar as atividades propostas. Alguns outros funcionários muitas vezes em seus discursos, inclusive na

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frente dos adolescentes, desconstruíam a relevância do acesso a Educação e na prática retiravam os jovens durante as aulas para outras atividades e tratamento. Os alunos saiam do quarto e na porta ao lado já estava a sala de aula. Os docentes relatavam que visivelmente eles não conseguiam enxergar-se como alunos, para além de jovens internados para tratamento. O movimento que normalmente os jovens fazem na saída de suas residências para a escola, os adolescentes internados não faziam. Goffman (2005) aponta que algumas instituições ao criarem barreiras com o mundo exterior corroboram para a mortificação/multilação do eu.

Uma disposição básica da sociedade moderna é que o indivíduo tende a dormir, brincar e trabalhar em diferentes lugares, com diferentes co-participantes, sob diferentes autoridades e sem um plano racional geral. O aspecto central das instituições totais pode ser descrito com a ruptura das barreiras que comumente separam essas três esferas da vida. (GOFFMAN, 2005. p.17)

No final de 2010 em uma ação articulada pelos docentes, direção do Colégio e gestor do CITUAD propôs-se a mudança das aulas dos alunos para dentro das dependências da escola.

A transferência de espaço logo mostrou-se exitosa. Os jovens passaram a ter a possibilidade de sair do Centro. Tal movimentação implicava diariamente na destituição do papel de “internados” para a de alunos. Ao transitar pelas ruas e no caminho até a escola passaram a ter a chance de interagir, mesmo que sob supervisão dos socioeducadores , com a sociedade.

Atualmente, dentro das dependências do Colégio, não são mais agrupados em turmas multisseriadas, mas sim, obedecendo a ano/fase ao qual pertencem. Oportunizando a convivência com outros pares. O critério que antes era “internados” anos inicias ou anos finais passa a significar “serem alunos” do 1º ano, 2º ano e assim em diante. O número de professores que os atuavam junto a estes jovens aumentou significativamente. Os jovens participam de todas as atividades programadas pela escola.

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Houve também a necessidade de adequar todos os procedimentos do Colégio a estes “novos velhos” alunos, uma vez que não estariam mais agrupados em duas turmas anexas, mas distribuídos por todas da “escola”. Atividades pedagógicas individualizadas, seguindo o interesse e mobilização do próprio aluno, foram realizadas como o “para casa”. De acordo com o tempo de permanência na escola, progressão de ano de escolaridade. A interface educação e tratamento também foi revista. A escola passou a ir além “do passar conteúdo”, mas incentivar estes alunos para que não evadam do tratamento através das ações cotidianas de valorização dos mesmos.

Considerações finais

Os estudos sobre adolescentes em conflito com a lei e o seu envolvimento no uso abusivo de drogas e a interface com o sistema de atendimento socioeducativo ainda é insipiente. Atrelar estes estudos a um modelo pioneiro de educação/escolarização - tratamento ao uso de drogas e instituição privativa de liberdade/socioeducação e proteção – internação provisória nos desafia e estudar pesquisar diferentes campos de saberes e a produzir novos saberes. Este é um desafio que se inicia para nós pesquisadoras, mas que está sendo produzido na prática pelos professores, gestores , técnicos e operadores do sistema de garantia de direito – O Novo DEGASE.

A possibilidade em apresentar este modelo dual de atendimento pioneiro no Brasil – tratamento e educação - subsidia a necessidade de ampliarmos discussão sobre direitos para jovens em medidas protetivas.

O recorte na mudança de espaço de escolarização dentro da trajetória do CITUAD e de seus jovens mostra-nos que não bastou apenas assegurar o acesso a escola formal, mas sim a permanência e, sobretudo o sucesso destes alunos.

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A garantia aos direitos públicos é para todos e, portanto a história da escolarização destes jovens aponta a necessidade de repensarmos a implementação de políticas que se adequem as especificidades dos sujeitos.

Neste artigo elencamos alguns temas que nos desafiaram a iniciar esta pesquisa, certamente outros surgirão no decorrer dos estudos e nas vozes dos jovens e educadores-socioeducadores que transformam em realidade cotidiana os sujeitos de direitos (e deveres) os adolescentes-alunos-cidadãos brasileiros.

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Papo aberto: uma proposta e experiência de intervenção

Cláudia da Silva Rodrigues 50

Juana dos Anjos Cunha Louzada51

Resumo: O presente artigo, em consonância à perspectiva da socioeducação, visa publicizar a experiência de atendimento em grupo realizado no CREAS Niterói, partindo do pressuposto de que o desenvolvimento integral do adolescente perpassa a dimensão do ser social em processo de constituição, apreendido na sua relação com o outro. Seu pensar e agir tornam-se reflexo tanto dessa dinâmica interrelacional quanto de condicionantes históricos, sociais, econômicos, subjetivos e culturais, que marcam sua tenra história, muitas vezes pela reiterada violação de direitos. O olhar que aqui se lança sobre o adolescente em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto não descarta esses condicionantes, até porque tal postura seria no mínimo ingênua, mas defende que esses não são determinantes, conforme apregoa Freire. O trabalho em grupo, complementar ao atendimento individual, propicia a percepção do adolescente enquanto partícipe de grupos sociais, aos quais vincula-se pelos laços da identidade e da construção história e dos quais emanam as características e percepções de si e do mundo, mediante a oferta de um espaço de reflexão, socialização, reforço de vínculos e descoberta de potencialidades, por vezes camufladas pelo ato infracional cometido, despertando no adolescente sua condição de constructor social e potencializando seu protagonismo juvenil.

50 Pós-Graduada em Terapia de Família pela UCAM/IAVM, Assistente Social do CREAS/Niterói. E-mail: [email protected] Pós-Graduanda do Curso de Especialização em Serviço Social e Saúde pela UERJ, Assistente Social do CREAS/Niterói e Assistente Social do Quadro de Oficiais de Saúde da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Palavras-chave: representação social, socioeducação, educação problematizadora, reflexão.

Introdução É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.Fernando Pessoa

Torna-se cada vez mais frequente no cenário brasileiro e além fronteiras a participação de adolescentes e jovens como protagonistas de violências e atos infracionais, de modo que a sociedade, amedrontada com tais práticas e intencionalmente instigada pelas mídias sociais que endossam essa realidade, impõe a esses adolescentes, ainda que de forma inconsciente, uma identidade funesta. A representação social do adolescente em conflito com a lei se configura como uma construção histórica marcada pelo preconceito e pela exclusão social, que deixam marcas negativas e profundas na existência daqueles considerados pela lei como pessoas em desenvolvimento.

As Representações Sociais enquanto ideias, imagens, concepções, senso comum e visão de mundo, que os atores sociais possuem sobre a realidade, colocam-se como material importante a ser considerado e decifrado no âmbito do atendimento ao adolescente que cometeu um ato infracional. Tais representações desdobram-se em condutas, podendo chegar a serem institucionalizadas. Assim, conforme aponta Minayo, podem e devem ser analisadas a partir da compreensão dos comportamentos e das estruturas sociais.

As representações sociais possuem núcleos positivos de transformação e de resistência na forma de conceber a realidade. Portanto, devem ser analisadas criticamente, uma vez que correspondem às situações reais de vida. Nesse sentido, a visão de mundo dos diferentes grupos expressa as contradições e conflitos presentes nas condições em que foram engendradas. (MINAYO, 1994, p 173)

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Ao tentarmos romper com essa representação simbólica pejorativa e estigmatizada – movimento de ruptura esse apreendido como sendo um dever-ser dos papéis desempenhados pelos profissionais que atuam na execução de medidas –, deparamo-nos não somente com os obstáculos simbólicos, mas também com a concretude das complexas realidades que envolvem o universo desses adolescentes. Muitas delas transcendem o contexto unicamente familiar, sendo agravadas pelas limitações das instâncias de saúde, educação, trabalho e renda, apontando para a transversalidade das políticas públicas como um dos caminhos para a sua inclusão social ou se desdobrando, na ausência de sua efetividade, na exclusão social.

Essa proposta de intervenção denominada “Papo Aberto” foi gestada em meio às inquietações e aos desafios oriundos dessa realidade e do processo de acompanhamento individual a adolescentes em conflito com a lei, encaminhados ao CREAS pela Vara da Infância, Juventude e Idoso da Comarca de Niterói, visando dar direcionamento a algumas das inúmeras questões que o trabalho nos impõe, sem, no entanto, ter a pretensão de esgotá-las. Tal proposta almeja contribuir positivamente para a construção de um espaço de reflexão, socialização, reforço de vínculos e descoberta de potencialidades, por vezes camufladas pelo ato infracional cometido, em consonância com a proposta da socioeducação.

Partimos do entendimento de que a atuação dos profissionais que se voltam ao atendimento dos adolescentes em conflito com a lei precisa considerar a análise de Abramo (1997, p.33), segundo a qual, na medida em que os jovens são vistos como “a encarnação de impossibilidades, eles nunca podem ser vistos, ouvidos, e entendidos, como sujeitos que apresentam suas próprias questões, para além dos medos e das esperanças dos outros”. A atitude de debruçar-se sobre as realidades explícitas e sobre as mais implícitas dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, para além das aparências e dos discursos pré-elaborados, revela-se um dos grandes desafios desse acompanhamento.

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Apresentação

Antepondo-nos ao aprofundamento acerca do trabalho em grupo enquanto proposta e experiência de intervenção, urge trazer à luz a definição referenciada na PNAS (1994) sobre as ações socioeducativas, em que sócio pressupõe a interação entre sujeitos e o meio (conjuntura econômica, cultural, social e histórica) e educativa pressupõe um processo que possibilita ao sujeito se perceber como ser humano com potencialidades e possibilidades de desenvolvê-las, mediante apropriação de informações e conhecimentos para intervenção na realidade.

O termo socioeducação designa, portanto, um campo de aprendizagens voltadas a assegurar proteção social e oportunizar o desenvolvimento de interesses e talentos múltiplos. As ações socioeducativas não têm objetos de conhecimento pré-definidos; elas são construídas a partir das especificidades dos sujeitos envolvidos e da sua realidade sócio- histórica.

Dessa forma, a realidade do adolescente em cumprimento de medidas socioeducativas e a intervenção junto a esse público específico vão sendo paulatinamente desveladas se construídas durante o acompanhamento, desconsiderando-se possíveis pré-determinações, a fim de fundamentar a prática profissional naquilo que Freire (2005) define como educação (ou ação cultural) problematizadora, libertária, oposta à concepção da educação enquanto transmissão do saber unicamente pelo educador.

Para Freire (2005), a educação problematizadora propõe um refazer o mundo, ou seja, ver sob vários ângulos as razões de como os atores sociais estão sendo no mundo, enquanto a educação, que se pretende transmissora, assistencializa. Segundo o autor, a razão de ser da educação libertadora implica a superação da contradição educador-educandos, de forma que se tornem ambos, simultaneamente, educadores e educandos. O educador intitula como pedagogia do oprimido aquela que:

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tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará (FREIRE, 2005, p. 34).

Em consonância, partindo-se do pressuposto que o adolescente não é um ser isolado, mas partícipe de grupos sociais, aos quais vincula-se pelos laços da identidade e da construção história e dos quais emanam as características e percepções de si e do mundo, Aguiar (2001,.) diz que: “o indivíduo e a sociedade não mantêm uma relação isomórfica entre si, mas uma relação de mediação, na qual um constitui o outro, sem que com isto cada um dos elementos perca sua identidade”. Assim sendo,

O jovem não é algo por natureza. Como parceiro social, está ali, com suas características, que são interpretadas nessas relações; tem, então, o modelo para sua construção pessoal. Construídas as significações sociais, os jovens tem a referência para a construção de sua identidade e os elementos para a conversão do social em individual. (AGUIAR; BOCK; OZELLA, 2001, p.168).

A partir desses pressupostos, torna-se de suma relevância, a quem aplica seu trabalho ao acompanhamento de adolescentes em conflito com a lei, pensar acerca de qual identidade tem sido imperiosamente imputada a esses adolescentes e jovens e de que maneira a família, o Estado e a sociedade têm corroborado, ao longo dos anos, com o preconceito, o descrédito, a exclusão e a violação de direitos, impedindo-os de construir uma nova identidade e uma diferente trajetória pessoal e social. Desse modo, “não estamos nos referindo, portanto, a condições sociais que facilitam, contribuem ou dificultam o desenvolvimento de determinadas características do jovem; estamos falando de condições sociais que constroem uma determinada adolescência” (AGUIAR; BOCK; OZELLA, 2001, p.169).

No que diz respeito ao adolescente em cumprimento de medidas socioeducativas, essa “determinada adolescência” está

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sujeita também a concepções equivocadas do senso comum e, ainda, ao enquadramento em perfis que deixam escapar a subjetividade e especificidade de cada caso. Nesse sentido, Selosse (1997) ratifica essa concepção, na medida em que considera o jovem não apenas sujeito à lei, mas também visto como sujeito psicológico com sua história, sua palavra e sua verdade. O ato infracional é tido como resultado de múltiplas determinações de caráter social e psicológico, em que o jovem é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, agente e paciente de seu processo de socialização.

Nesse sentido, o trabalho em grupo vem reiterar e transcender o atendimento individual, na medida em que é uma estratégia de intervenção que nos permite apreender o adolescente na sua correlação com o outro, conforme a conceituação de grupo de Gomes (1996, p. 33): “resultado da intersecção da história dos grupos com a história dos seus indivíduos e seus mundos internos, suas projeções e transferências na sociedade em que estão inseridos”.

Referenciando Pichón- Rivière em sua teoria dos grupos operativos, o trabalho em grupo consiste em buscar a coerência entre o pensar, o sentir e o agir, de modo que, a partir do que o grupo traz explicitamente, poderemos chegar às demandas implícitas. Segundo a interpretação de Berstein (1989) sobre a proposta de Pichón-Rivière, é no grupo que se dão dois níveis de articulação: a verticalidade e a horizontalidade. A verticalidade está relacionada à história individual de cada integrante, que permite assumir certos papéis que foram atribuídos pelos demais. A horizontalidade é compartilhada pelo grupo e se constitui o denominador comum que os unifica, que pode ser de natureza consciente ou inconsciente.

Nessa mesma direção, na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistencias é assegurado ao adolescente o acesso a experiências para se relacionar e conviver em grupo, administrar conflitos por meio do diálogo, compartilhando modos de pensar, agir e atuar coletivamente, assim como experiências que possibilitem lidar de forma construtiva com potencialidades e limites.

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Dessa forma, o atendimento em grupo se constitui como uma estratégia de intervenção na qual o adolescente depara-se com um ambiente propício para colocar-se em relação com o outro, sendo levado a refletir e levando os demais participantes a refletir acerca de sua condição enquanto sujeito social, que promove uma intervenção no mundo, ampliando, assim, suas possibilidades/potencialidades de intervenção consciente nos rumos de sua própria história. Nesse sentido, reitera-se a concepção de Leonardo Barbosa (2002, p. 10), quando defende que “o processo de desenvolvimento do adolescente passa pela aprendizagem de um posicionamento crítico e responsável em relação às suas condutas”.

Em conformidade com o SINASE, a intervenção em grupo assume a condição de prática transformadora, na medida em que encarna a ação educativo-crítica apregoada por Freire (2007, p. 23), quando propõe que o pensador parte do pressuposto de que não existe educador sem educando e de que os dois, apesar das diferenças, não se reduzem à condição de objeto um do outro, já que “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender... Quem forma se forma e re-forma (sic) ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado”.

Com essa assertiva, Freire propõe uma ação pedagógica segundo a qual os envolvidos no processo são vistos como atores e sujeitos do processo educativo em constante diálogo, dispostos a se posicionarem contra e a superarem as diversas situações de opressão e exclusão social a que são submetidos e se submetem.

Em sua pequena trajetória, a proposta de intervenção “Papo Aberto” tem se esmerado por consolidar-se enquanto espaço de reflexão e socialização, encontrando, em seu transcurso, desafios – alguns declarados, outros velados –, mas também alternativas de superação. Um dos desafios a serem enfrentados situa-se no âmbito do grupo propriamente dito.

Os adolescentes, ao serem individualmente convidados a participar do trabalho em grupo e, cabe ressaltar, escolhidos e

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separados segundo alguns critérios básicos, entre outros, como identificação prévia das facções e territórios de pertencimento, mostram-se solícitos. Porém, a realidade de colocar-se em grupo desperta, preliminarmente, insegurança, fato superado à medida que a proposta de trabalho é apresentada e os vínculos, garantidores da confiança, estabelecidos.

A partir dessa primeira conquista, o uso da liberdade de expressão, por meio da fala e da linguagem corporal, sinaliza o início de uma nova fase, na qual o grupo ruma pelas veredas da conquista de alguns dos objetivos específicos propostos: a socialização das experiências, o fortalecimento dos vínculos sociais, o desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo, o reconhecimento de suas habilidades e limites, dentre outros.

Observamos que a dinamicidade característica desse trabalho, a princípio, provoca certo espanto, por se verem envolvidos em um outro contexto que reforça a proposta da socioeducação no que tange ao protagonismo de sua história.

Um outro desafio, mais difícil de ser suplantado, refere-se à aderência à proposta por parte de todos os executores de medidas atuantes no equipamento, não por descrédito na aplicabilidade da mesma, mas pelo aumento progressivo das atribuições técnico-burocráticas. Diante do acúmulo e da sobrecarga de trabalho, já tão intenso, notamos resistências e dificuldades dos atores em assumir o compromisso com um novo investimento a ser inscrito no plano de atendimento.

Quanto aos entraves sob o ponto de vista dos recursos para o trabalho, preferimos não os elencar, por acreditarmos que nossos discursos e nossas práticas têm sido sorrateiramente impregnados pelo que ousamos chamar de “cultura da lamentação”, que vem descartando o caráter propositivo que a queixa pressupõe. Não queremos, com isso, desconsiderar o papel simbólico da queixa, haja vista seu aspecto minimizador do sofrimento e da frustração que as precárias condições de trabalho nos causam, mas ressaltar que a contestação desprovida de possibilidades perde seu sentido por excelência.

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Considerações finais

Trabalhar com adolescentes e jovens é um enorme desafio que exige formação continuada, técnica, escuta qualificada, criatividade e, principalmente, atitudes acolhedoras que possam reforçar a autoestima, transparecendo a confiança que devemos depositar em sua capacidade de ressignificação frente à vida e a possibilidade de novas escolhas. A proposta de intervenção em grupo, ultrapassando seu aspecto mais imediato de propiciar a reflexão conectada ao protagonismo juvenil, visa contribuir, a longo prazo, com a mudança de paradigmas culturais presentes em nossa sociedade.

Segundo Gramsci (apud ABREU, 2008), a criação de uma nova cultura não significa somente fazer descobertas ditas originais; significa, também e sobretudo, difundir com criticidade as verdades já descobertas, socializando-as, transformando-as em bases de ação vitais, em elemento de coordenação e de ordenação intelectual e moral. Para o autor, a cultura está enraizada na relação orgânica entre a estrutura e a superestrutura, corporificando nexos entre os interesses econômicos, políticos e ideológicos.

A experiência advinda do acompanhamento das medidas socioeducativas, em meio aberto, aponta para o ato infracional como um subterfúgio de vulnerabilidades muito mais profundas e conflitantes a permear o cotidiano desses adolescentes, exigindo, da equipe técnica, uma postura que ultrapasse os dados explícitos ou do senso comum, revestindo-se do que Freire (2005, p. 21) propõe: “a história é tempo de possibilidades e não de determinismo, que o futuro, permita-me reiterar, é problemático e não inexorável”. Ou seja, somos seres condicionados, mas não determinados.

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Referências bibliográficas

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Famílias e Escola como dimensões possíveis na (re)construção da cidadania do adolescente/jovem em conflito com a lei

Ana Maria Vasconcelos Moreira52

Fabiana Ferreira Braga53

Resumo: Este artigo propõe alguns pontos para reflexão acerca das questões relacionadas ao adolescente/jovem em conflito com a lei, no Brasil, a partir de duas esferas imprescindíveis para o desenvolvimento e a formação da pessoa humana, que são a família e a escola, e as condições determinadas e determinantes de uma identidade cidadã.

Palavras-chaves: adolescência, educação, família, cidadania Introdução

Este artigo é produto de debates e reflexões coletivas iniciadas a partir dos encontros sistemáticos promovidos pelo Curso de Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, convênio firmado entre o governo do Estado do Rio de Janeiro, DEGASE, e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, sob a coordenação pedagógica da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire e da Assessoria de Medidas em Meio Aberto e ao Egresso, AMSEG, com o grupo de trabalho interdisciplinar do Centro de Atividades Intensivas, CAI-Belford Roxo.

52 Assistente social do Departamento Geral de Ações Socioeducativas, desde 1998, e trabalha no Centro de Atividade Intensiva - CAI-Belford Roxo, Unidade de internação, com adolescentes do sexo masculino53 Professora de Língua Portuguesa e Literaturas da Diretoria Especial de Escolas Prisionais e Socioeducativas- SEEDUC, desde 2010, e trabalha no Colégio Estadual Jornalista Barbosa Sobrinho, anexo ao Centro de Atividade Intensiva - CAI-Belford Roxo, com adolescentes masculinos, em privação de liberdade

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Está sob o título “Famílias e Escola como dimensões possíveis na (re)construção da cidadania do jovem/adolescente em conflito com a lei”, porém o tema central do texto não são as famílias, nem a escola e nem o adolescente, mas a cidadania e a problematização de sua dimensão complexa de construção e reconstrução em um país demarcado por profundas desigualdades, ainda mais quando se trata da condição de privação de liberdade.Marshall atribui à conquista da cidadania:

A universalização progressiva de três tipos de direitos: os direitos civis (todos são cidadãos livres), os direitos políticos (todos devem eleger quem os representa no governo e parlamento) e os direitos sociais (acesso a um conjunto básico de políticas sociais), sendo que esses direitos se configuraram em diferentes momentos da história da humanidade e foi a partir do século XX que as três dimensões se juntaram para a constituição da cidadania integral ou plena. (PEREIRA, 2008, .)

Essa dimensão da cidadania ainda não se configurou no Brasil, principalmente entre as classes de menor poder aquisitivo, como as famílias dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação, em decorrência de o país apresentar um quadro de desigualdade econômica e social entre as classes sociais. O artigo é um produto oriundo de reflexões e debates a partir de nossas práticas de trabalho nos espaços sócio-ocupacionais das instituições CAI-Belford Roxo e Colégio Estadual Jornalista Barbosa Lima Sobrinho, onde transitam as equipes de trabalho interdisciplinares (direções, equipe técnica, administrativos, agentes educacionais e disciplinares, professores, instrutores) e os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação54 . O nosso objeto de estudo é a cidadania enquanto uma questão política e a sua dimensão no âmbito do espaço privativo das famílias e no espaço público da escola.

54 A internação é uma medida privativa de liberdade prevista no art. 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), está sujeita aos princípios da excepcio-nalidade, brevidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e constitui a mais rigorosa das medidas.

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Foram selecionados as famílias, no plural em decorrência de seus múltiplos arranjos, e a escola, por ser o lócus privilegiado de mediação e aquisição não apenas do saber, mas de interação, socialização, reciprocidade e troca – entretanto, no interior dessas instituições educadoras e formadoras, há contradições e conflitos – e, por fim, os adolescentes em conflito com a lei, em cumprimento de medida de internação no CAI-Belford Roxo, por serem os principais usuários de nossas intervenções de trabalho. Entendemos que “toda a vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que desviam a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática” (MARX, 1845.). Os nossos objetivos, ao levantarmos essa temática relacionada à adolescência em situação de institucionalização, à família e à escola enquanto espaços instituídos e relevantes para o exercício da cidadania, são:1 Suscitar o debate e a reflexão em torno de duas instituições vitais, Família e Escola, para o desenvolvimento da pessoa e a convivência em sociedade;2 Compreender a educação (formal e informal) como um ato político, cultural e social, a fim de que haja transformação efetiva de seus participantes; 3 E identificar os elementos constitutivos para a (re)construção da “cidadania” do jovem/adolescente em privação de liberdade.

A motivação para a construção deste trabalho partiu de nossas inquietações no exercício da prática profissional e da necessidade de refletirmos acerca da base de sustentação para o desenvolvimento do adolescente autor de ato infracional55 , visando às mudanças objetivas e subjetivas para o rompimento com as práticas criminosas. 55 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Art. 103. Considera-se Ato Infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.

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Família e Escola como espaços de formação e educação Cidadã

As famílias referenciadas neste artigo apresentam características monoparentais e extensivas, isto é, são formadas por apenas uma das partes, representadas ora pelo pai, ora pela mãe, que, na sua maioria, constituíram novos arranjos familiares, por meio de relacionamentos com outros parceiros. O conceito de família monoparental brasileira, que a princípio era restrito ao campo do Direito Constitucional, a partir da Constituição Federal de 1988, com o novo Código Civil56 , ganhou reconhecimento por meio do “direito de família”, como “a família é formada pelo casamento civil ou religioso, pela união estável ou comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes; e as mães solteiras formam família com seus filhos”. As famílias que têm seus filhos no CAI-Belford Roxo quase em sua totalidade têm no poder familiar as mulheres como as chefas de família, com dupla ou tripla jornada de trabalho – trabalhando dentro e fora de casa para o sustento da família e, dentre outros motivos, acabando por ter que assumir o papel de “pãe”57.

É preciso não esquecer que as mulheres chefes de família costumam ser também “mães-de-família”: acumulam uma dupla responsabilidade, ao assumir o cuidado da casa e das crianças juntamente com o sustento material de seus dependentes. Essa dupla jornada de trabalho geralmente vem acompanhada de uma dupla carga de culpa por suas insuficiências tanto no cuidado das crianças quanto na sua manutenção econômica. É verdade que essas insuficiências existem também em outras famílias, e igualmente é verdade que ambas têm suas raízes nas condições geradas pela sociedade. Porém, esses fatores sociais são ocultados pela ideologia que coloca a culpa na vítima, e o problema se torna mais agudo quando as duas vítimas são encarnadas por uma só pessoa. (BARROSO & BRUSCHINI, 1981, p.40)

56 Código Civil Brasileiro - LEI No 10.406, De 10 de Janeiro de 2002; entrou em vigor em 03 de janeiro de 2003.57 Pãe – Neologismo criado para designar o sujeito que ocupa simultaneamente os papéis de pai e mãe.

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Outro aspecto observado é que as famílias responsáveis pelos adolescentes institucionalizados, quase majoritariamente, apresentam baixo nível de escolaridade, inserem-se no mercado de trabalho informal e a dimensão política vivenciada é a da cidadania invertida.

Sonia Fleury conceituou cidadania invertida como

Quando o indivíduo entra em relação com o Estado no momento em que se reconhece como não-cidadão. Tem como atributos jurídicos e institucionais, respectivamente, a ausência de relação formalizada de direito ao benefício, o que se reflete na instabilidade das políticas assistenciais, além de uma base que reproduz um modelo de voluntariado das organizações de caridade, mesmo quando exercidas em instituições estatais. (FLEURY, 2003, p.76)

O termo “cidadania” no Brasil se difundiu no decorrer dos movimentos sociais a partir dos meados dos anos 70 do século XX, com o processo de redemocratização, e teve a sua condensação por meio dos direitos sociais previstos na Constituição de 1988, expressão de conquista da sociedade civil organizada. Entretanto, percebe-se que os direitos sociais, apenas pela letra da lei, não são suficientes para assegurar o acesso às políticas sociais.

O Bolsa Família, por exemplo – um programa de transferência de renda com condicionalidades, para beneficiar famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, previsto na Lei Orgânica de Assistência Social58 (LOAS), sendo um dos critérios a presença de crianças e adolescentes na composição do grupo familiar –, deveria contemplar a maioria das famílias dos adolescentes tratados neste artigo, entretanto são poucas as que estão inseridas nessa política socioassistencial.

Nas atuais políticas de Assistência Social no Brasil, estão previstos os serviços e atendimentos básicos e, ainda, os de

58 LOAS Lei 8742, de 07.12.1993 - Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que prove os míni-mos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.

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média e alta complexidade a serem executados pelos aparelhos de assistência social pela esfera municipal, através do Centro de Referência e Assistência Social-CRAS e do Centro de Referência Especializado em Assistência Social-CREAS, cujas ações são direcionadas principalmente para o provimento e a sustentação das necessidades das famílias. Tais políticas de proteção social significam um grande avanço e são resultados de lutas sociais. Entretanto, observam-se práticas de cunho moralista no atendimento aos usuários desses equipamentos de referência. Além disso, os serviços ofertados ainda não fornecem cobertura para a totalidade da população que dele necessita, pois não há alcance em todas as regiões do Brasil.

Em nosso entendimento, o grupo familiar é (ou deveria ser) o primeiro espaço de socialização. Nas relações sociofamiliares, estão presentes múltiplas possibilidades de vida, tanto na esfera da produção quanto na da reprodução biológica e social, porém não podemos esquecer que os setores econômicos, políticos e comunitários também influenciam nos aspectos ideoculturais da comunidade familiar.

Dessa forma, ao habitar em determinados espaços geográficos, denominados como cidade, bairro, favela, comunidade, independentemente da representação concebida acerca do solo urbano, a questão relevante está na ocupação dominadora do narcotráfico nos territórios onde os sujeitos habitam.

Nesses locais, habitam, majoritariamente, as famílias dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, que se tornam vítimas e/ou autores da cultura da violência. Os condicionamentos ideoculturais da violência criam seus próprios códigos de condutas e rivalidades entre as populações habitantes de qualquer um dos diversos domínios faccioso-criminosos, e os reflexos das rixas e discórdias irão aparecer no cotidiano das localidades e, posteriormente, na escola onde estão inseridos os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação em questão.

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Entendemos que a escola localizada no espaço institucional do CAI-Belford Roxo é o local onde os jovens/adolescentes em conflito com a lei e, também, alunos podem “livremente” despertar as suas potencialidades nas relações sociais de construção do saber, de troca dos saberes e, também, por ser reconhecida como espaço para relações afetivas, possibilitando comportamentos sociais revertidos, construídos e reconstruídos, por meio da compreensão da identidade estudantil dos jovens estudantes.

Segundo Paulo Freire, “a conscientização é um compromisso histórico [...], implica que os homens assumam seu papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece [...], está baseada na relação consciência-mundo”.

A base dessa pedagogia pela prática de liberdade é o diálogo, visto, principalmente pela educação em espaços de privação de liberdade, como o mais importante instrumento para a educação como prática emancipatória.

O diálogo é essencial para quem exerce o papel de educador-libertador. O verdadeiro diálogo ocorre quando os agentes envolvidos na relação educacional se comprometem com o pensamento crítico, que só se concretiza quando há humildade e esperança, possuindo a função emancipadora e visando à construção da autonomia do educando.

Para Paulo Freire, o princípio da proteção integral perpassa pela educação enquanto instrumento de realização do humano, particularmente na oportunidade aos que estão em pleno desenvolvimento físico e mental. Nessa perspectiva, há uma superação do modelo de educação opressora para a educação transformadora, enquanto prática de liberdade.

Somente uma educação que privilegie o sujeito enquanto construtor da própria história poderá gerar transformação. Privilegiar os sujeitos, mas não os excluir de responsabilizações pela autoria infracional é um dos principais desafios da escola,

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assim como, também, o de lhes oferecer cidadania e mostrar “o direito de ter direitos” enquanto adolescentes atendidos pelo sistema socioeducativo de medida de privação de liberdade.

É observado que alguns adolescentes, ao chegarem à unidade escolar situada no interior do CAI-Belford Roxo, parecem seres em sua natureza primária: brutalizados, sem referências, sem a apropriação de sua cidadania, sem a concepção dos seus direitos e deveres como cidadãos, uma vez que tiveram os seus direitos violados ou, até mesmo, não se reconhecem como portadores de direitos, por terem vivenciado somente a subcidadania.

Logo, o primeiro papel da escola deve ser o de trabalhar, junto aos alunos institucionalizados no CAI-Belford Roxo, a noção de cidadania e os fundamentos dos direitos humanos, a fim de que se reconheçam como cidadãos e, então, partícipes da sociedade.

No que se refere à metodologia de ensino para os alunos que também são autores do ato infracional e estão em cumprimento de medida socioeducativa de internação, temos que refletir sobre algumas questões:

1 Estamos educando para uma mera transmissão de conhecimentos e reprodução de saberes ou para o reconhecimento da cidadania?

2 Qual escola se deseja na socioeducação?3 Qual é o propósito do adolescente em conflito com a lei,

ao ser inserido na escola?

Essas indagações devem ser compartilhadas com toda a comunidade escolar, tais como os professores versus os alunos versus o pessoal de apoio, e se estender para as equipes interdisciplinares da Unidade de Execução de Medida Socioeducativa.

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Elementos Constitutivos da Cidadania na Privação da Liberdade

Uma nova compreensão e um novo olhar para a criança e o adolescente surgem com a promulgação da Carta Magna de 1988, que registra uma revolução constitucional na defesa e na garantia dos direitos da criança e do adolescente, quando passam a ser compreendidos como sujeitos de direito, adotando a doutrina de “Proteção Integral”, tendo por base as Convenções e Leis Internacionais dos Direitos das Crianças59 , dos quais o Brasil faz parte como Estado Membro.

Os marcos legais acima mencionados são considerados elementos constitutivos de cidadania, acrescidos dos “direitos de família”, com o atual Código Civil, que irá descaracterizar o termo de família desestruturada, quando reconhece a família monoparental. Entretanto, o acesso aos direitos socais ainda está na letra da lei e se observa a discriminação e o estigma, principalmente, ao adolescente pobre e negro, sendo esse em maior numero no cumprimento de medida socioeducativa de internação.

Deve-se atentar para o ECA, especialmente nos artigos 103 e 111, que se referem às medidas socioeducativas aplicáveis a adolescentes autores de atos infracionais, ou seja, quando passam à condição de vitimizadores; mas, em muitos casos, antes de chegarem a essa condição, os adolescente foram vítimas da exclusão social, da omissão do Estado ou vieram de famílias negligenciadas.

No Rio de Janeiro, as medidas socioeducativas de privação total e parcial de liberdade (internação e semiliberdade) são de competência do poder executivo do Estado, e as medidas de meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade) são de competência do poder executivo municipal, conforme orientação do SINASE – Sistema Nacional Socioeducativo.

59 Leis internacionais que se referem aos direitos das crianças e dos adolescen-tes, como a Declaração dos Direitos da Criança (Resolução 1.386 da ONU - 20 de no-vembro de 1959); as regras mínimas das Nações Unidas para administração da Justiça da Infância e da Juventude - Regras de Beijing (Resolução 40/33 - ONU - 29 de no-vembro de 1985); e as Diretrizes das Nações Unidas para prevenção da Delinqüência Juvenil - diretrizes de Riad (ONU - 1º de março de 1988 - RIAD)

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O DEGASE – Departamento Geral de Ações Socioeducativas – é o gestor normativo, administrativo e executivo das medidas socioeducativas de internação e semiliberdade, e o CAI-Belford Roxo é uma delas.

O CAI-Belford Roxo tem uma unidade executiva de internação provisória, com capacidade de atendimento para 19 adolescentes, sendo 1 (uma) vaga destinada a adolescente portador de necessidade especial, em anexo à unidade de medida socioeducativa de internação, com capacidade de atendimento de 124 adolescentes, destinada exclusivamente para o sexo masculino, na faixa etária de 12 a 18 anos, podendo se estender até os 21 anos. Porém, ainda se aguarda pela adequação dos parâmetros arquitetônico, pessoal, etc, que atenda às exigências do SINASE.

Conforme consta no ECA, Artigo 121, “A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”; logo, o direito de ir e vir está cerceado, mas outros direitos estão previstos, tais como ser tratado com respeito e dignidade; receber escolarização e profissionalização; realizar atividades culturais, esportivas e de lazer; ter acesso aos meios de comunicação social; em nenhum caso, haverá incomunicabilidade, dentre outros.

A Escola Estadual Jornalista Barbosa Lima Sobrinho assiste o direito de escolarização previsto no ECA e funciona junto ao CAI-Belford Roxo, atendendo ao Ensino Fundamental na modalidade regular anual, e ao Ensino Médio pelo Projeto Autonomia60. Já a internação provisória é assistida pela Educação Multiseriada.

Contudo, a dimensão política da educação, seja por meio da transmissão da rede oficial de ensino, seja pela informalidade da “educação” sociofamiliar, necessita contemplar a totalidade humana nos aspectos éticos da cidadania e dos direitos humanos.

60 Projeto Autonomia é uma parceria entre a Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC) e a Fundação Roberto Marinho, visando À diminuição da distorção ida-de-série dos alunos da Educação Básica com idade mínima de 15 anos no Ensino Fundamental e de 17 anos no Ensino Médio.

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A “cidadania” deve ser a mediação entre os aspectos sancionatório e o pedagógico, pois o respeito e a dignidade são vias de mão dupla, pautadas na responsabilização tanto dos adolescentes quanto dos que lhes garantem a custódia.

Considerações Finais

Ao nos debruçarmos sobre este trabalho, foi-nos possível perceber o quanto o nosso fazer profissional nos mobiliza e nos impulsiona para a reflexão, para o debate e para a exposição do pensar e do fazer.

Nosso propósito, ao realizarmos um artigo sobre “Família e Escola como dimensões possíveis na (re)construção da cidadania do jovem/adolescente em conflito com a lei”, foi, também, o de refletir sobre o tipo de cidadania que nós temos.

Pudemos perceber que muito avançamos, mas ainda temos muito a conquistar, pois a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil atual são expressões de conquistas da sociedade civil organizada.

O estigma deixado pelo Código de Menores ainda se faz presente na visão elitista, ao tratar a delinquência juvenil como “coisa” à parte da sociedade, e não pertencente à própria sociedade.

O nosso compromisso profissional é, também, o de expor nossas inquietações.

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Referências bibliográficas

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Os desafios para a efetivação do SINASE no Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS

Maurizete da Silva Arruda61

Janine Duarte Fernandes62

Renaud Brazileiro Nogueira da Silva63

Resumo: Este artigo versa sobre uma abordagem reflexiva conceitual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e tem por objetivo identificar e explicitar os desafios atinentes à efetivação do SINASE na realidade microssocial do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) Padre Guilherme Decaminada, que é um dispositivo de Média Complexidade, vinculado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. O referencial teórico pauta-se no paradigma de teoria crítica e, nesse sentido, explicita discussões sobre descentralização, participação e medidas socioeducativas. Trata-se de um estudo qualitativo no qual se adotou como instrumentos de coleta de dados: a) pesquisa exploratória referente ao tema em questão; e b) entrevista semiestruturada com a equipe técnica do CREAS envolta no acompanhamento dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto. Os resultados do estudo mostraram que o SINASE constitui um avanço no tocante ao tratamento para com adolescentes em conflito com a lei, pois regulamenta questões previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas necessariamente não se constitui a garantia para a efetivação da intersetorialidade, mas uma possibilidade. Verificou-se, também, que, apesar da lei do SINASE, ainda existem desafios a serem superados que requerem dos atores

61 Assistente Social, mestre em Educação e diretora do CREAS Padre Guilherme Decaminada da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social da cidade do Rio de Janeiro.62 Assistente Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.63 Psicólogo do CREAS Padre Guilherme Decaminada

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sociais envolvidos nesse processo empenho, compromisso e amadurecimento na formação de cultura política, construção de estratégias, desconstrução de estigmas, de forma a contribuir para a efetivação do SINASE e consolidação de que os adolescentes, mesmo em conflito com a lei, são sujeitos de direitos.

Palavras Chaves: Descentralização, participação e medidas socioeducativas.

Introdução

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) surge da necessidade de um reordenamento jurídico no Brasil, uma vez que o Código de Menores tornou-se incompatível com os princípios da Constituição Federal, de 1988, e da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989, da qual o país é signatário.

Em um cenário marcado por vulnerabilidades de toda ordem, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) vem como estratégia para reverter a situação. O desafio versa garantir prioridade do poder público nos investimentos em medidas socioeducativas, mudando a lógica, até então predominante, de repressão e punição dos adolescentes autores de ato infracional, garantindo-lhes os direitos preconizados pelo ECA. Assim, obriga a garantia da educação para os adolescentes, por meio da aplicação das medidas socioeducativas, estabelecendo uma maior coordenação entre União, Estados e Municípios e instituindo práticas de controle social nas políticas e na execução das medidas de recuperação.

Segundo Souza (2008), as medidas socioeducativas podem ser consideradas uma resposta dada pelo Estado à prática do ato infracional, cuja finalidade visa favorecer a emancipação e o protagonismo do adolescente. Nessa perspectiva, as medidas

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socioeducativas “não podem ser vistas como uma forma de “punição” dirigida às condutas consideradas desviantes em relação à norma penal, entretanto devem ser eficazes a ponto de interromper o ciclo de envolvimento do adolescente com o ato infracional” (SOUZA, 2008, pp. 27-28).

A Liberdade Assistida e a Prestação de Serviços a Comunidade legitimam-se como Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); todavia, somente com a Lei do SINASE (Lei n 12.594) em 2012, as medidas socioeducativas ganham uma legislação detalhada, que ordena desde a parte conceitual até o financiamento do Sistema Socioeducativo, definindo papéis e responsabilidades.

No tocante à Liberdade Assistida, essa tem como uma de suas potencialidades a aproximação com a realidade dos adolescentes autores de atos infracionais. É uma medida que, pela sua natureza, implica a permanência do sujeito em seu local de origem, pois exige o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Outro ponto relevante da Liberdade Assistida é a importância que se dá ao acesso à cidadania. Assim, com a lei do SINASE o meio aberto possui prioridade na socioeducação e ressocialização dos adolescentes autores de ato infracional.

O SINASE pressupõe a incompletude institucional em que se faz necessário o entrosamento, uma articulação mais efetiva entre os diferentes atores sociais do Sistema de Garantia de Direitos, no sentido de possibilitar a inserção, o atendimento do adolescente em conflito com a lei, de modo a contribuir para o empoderamento do mesmo com vistas à criação e ao fortalecimento dos vínculos sociocomunitários e familiares, implicando necessariamente processos de descentralização e participação.

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Apresentação da temática

Os aspectos acima mencionados constituem o objeto deste artigo, que, nesse sentido, consiste em explicitar os desafios afetos à efetivação do SINASE na realidade microssocial do CREAS Padre Guilherme Decaminada no processo de acompanhamento dos adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas.

O procedimento metodológico percorrido no sentido de explicitar os desafios para a efetivação do SINASE no CREAS envolveu o aprofundamento teórico conceitual de categorias como descentralização, participação e medidas socioeducativas, assim como a realização de entrevistas com a equipe técnica do CREAS que acompanha os adolescentes e jovens em cumprimento das medidas socioeducativas de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) e Liberdade Assistida (LA).

Em que pese à categoria descentralização, neste artigo privilegiamos a perspectiva dialética, sobre a qual Nogueira (1997) afirma que se estabeleceu certa confusão entre descentralização, democratização e participação, como se a descentralização contivesse em si mesma o impulso necessário para democratizar a sociedade e ampliar a participação dos cidadãos. É que a descentralização, como valor e como proposição operacional, acabou sendo historicamente determinada pela luta em favor da democratização, tendendo a ser vista como instrumento dela, ou seja, como sendo sinônimo incontestável de democracia, fator que levaria por si só à maior equidade na distribuição de bens e serviços e maior eficiência na operação do aparato estatal.

Nogueira (1997) destaca ainda que a descentralização e participação não são termos, e muito menos operações, necessariamente complementares. Nem toda descentralização leva automaticamente à maior participação. A descentralização pode ser “imposta” por força de lei, estabelecida, mas a participação não, pois essa depende de fatores sócio-históricos

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e de graus de amadurecimento político-ideológico e organizacional que, muitas vezes, aparecem após um longo período de tempo. Ela existe ou não no processo, não cabendo ao órgão central concedê-la ou delegá-la (NOGUEIRA, 1997). O que a descentralização permite:

(...) é uma melhor canalização ou vocalização das demandas da população, mas isso só ocorre em comunidades que estão mobilizadas na defesa de seus interesses. Assim a descentralização pode ser instrumento de poder das comunidades organizadas, mas também pode ser um instrumento de opressão das comunidades com baixo grau de consciência e organização. (MÉDICI, 1995:96 apud NOGUEIRA, 1997)

Apoiado em Nogueira (1997), é possível desconfiar que a descentralização não seja necessariamente a solução para as mazelas das políticas sociais, pois democracia e participação dependem das relações sociais, e não em si só da descentralização. Nesse sentido, a abordagem explicitada pelo autor corrobora com a fundamentação teórica que se pretende adotar a respeito da descentralização.

Nessa perspectiva, a descentralização deve ser pensada dialeticamente, considerando a historicidade e as contradições das relações sociais e podendo ser concebida como o processo que possibilita a gestão descentralizada e participativa que está longe de ser uma operação simples, que dependa exclusivamente de boas doutrinas, de tecnologias gerenciais refinadas, recursos metodológicos modernos ou mesmo de uma impetuosa vontade política, pois diz respeito tanto ao envolvimento de instâncias sob controle do Estado, quanto ao envolvimento de entidades, movimentos e dinâmicas societais que fogem do aparelho estatal. E, nesse caso, o êxito da gestão descentralizada e participativa necessariamente dependerá mais das relações estabelecidas entre os atores envolvidos do que dos ditames do arcabouço jurídico constitucionais.

Ao contextualizar a discussão teórica com a realidade microssocial do CREAS Padre Guilherme Decaminada, afirma-

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se que o êxito do processo que implica descentralização e participação refere-se à possibilidade de as relações no âmbito local estarem efetivamente pautadas no compromisso dos diferentes atores sociais do Sistema de Garantia de Direitos no tocante ao cumprimento de suas responsabilidades e competências. Outra questão é que, como se refere ao acompanhamento de adolescentes e jovens em conflito com a lei, esses devem ser concebidos como pessoas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos.

Apesar de o arcabouço teórico e o marco legal existentes – como a Constituição Federal de 1988, o ECA e o SINASE – explicitarem, no tocante à participação e responsabilidade, que é dever do Estado, da família e da sociedade zelar e primar, a fim de assegurar a proteção e as garantias previstas nas referidas leis, não é o que se constata no cotidiano dos profissionais que acompanham os adolescentes e jovens em cumprimento das medidas socioeducativas no CREAS Padre Guilherme Decaminada – não que esses negligenciem as prerrogativas, mas pelo fato de as competências e os compromissos ficarem muito no âmbito da política de assistência social.

Segundo o universo dos 8 técnicos entrevistados do CREAS – a saber: 3 (três) assistentes sociais, 2 (dois) psicólogos, 2 (dois) pedagogos e 1 (um advogado) – sobre a participação e o envolvimento dos atores sociais do sistema de garantias de direitos no sentido de contribuir para a efetivação e consolidação do SINASE, todos foram unânimes ao responderem a respeito da dificuldade de viabilizar uma instituição, a fim de inserir um adolescente para a Prestação de Serviço à Comunidade, pois na maioria das vezes, por parte de muitos dirigentes de instituições, alega-se o receio de o jovem “aprontar alguma coisa no equipamento” ou mesmo pelo fato de rotular o adolescente vendo-o como uma ameaça à ordem vigente.

Contrapondo a realidade na operacionalização do sistema socioeducativo com o que é previsto no ECA e SINASE, pode-

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se afirmar que esses se propõem a garantir os direitos a todas as crianças e adolescentes, não excluindo os que cometeram ato infracional. Isso significa dizer que o cometimento de infração não faz cessar o direito, o qual deve ser assegurado, inclusive, durante a vigência da medida socioeducativa, embora ainda seja desafiador, segundo os técnicos entrevistados, no sentido de se deparar com preconceitos, estigmas e afins.

Oportuniza-nos mencionar que as medidas socioeducativas entre outros têm o caráter de responsabilizar o adolescente em conflito com a lei, mas simultaneamente o protege. Tal afirmativa está em consonância com o que Gonçalves (2005) aborda ao mencionar que “a associação entre as medidas socioeducativas e protetoras quer minimizar os efeitos de uma cultura jurídica que cerceava a liberdade sem acusação nem processo e acreditava que a internação pudesse, de per si, restaurar a ordem social” (GONÇALVES, 2005, p. 50).

Com base no que se foi apurado se faz necessário afirmar que não se deve ignorar o peso da exclusão social, miséria e violação de direitos na produção da violência no Brasil. O constante convívio de toda a sociedade com o crime, não apenas os mais jovens e pobres, parece indicar que essa é também uma forma de inserção no mundo do consumo. Há de relacionar a análise das reproduções sociais, saindo do campo do individual, e das particularidades da família, como se essa por si fosse responsável pelas situações das violações.

Outro desafio, segundo a equipe técnica, versa sobre a necessidade de sensibilização dos demais atores sociais que compõem o sistema de garantia de direitos, no sentido de desconstruir estigmas enraizados na sociedade, que só reforçam a exclusão social e segregam os jovens. Tal procedimento deve ser processual e continuado, de modo a contribuir para a formação de cultura, desconstrução de estigmas e propiciar o fortalecimento dos vínculos sociocomunitários e familiares.

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Faz-se necessário também rever as formas de contratação da equipe, os vínculos e as relações trabalhistas com vistas a propiciar a continuidade e maior permanência da equipe envolvida no acompanhamento dos adolescentes em decorrência dos vínculos estabelecidos, assim como para evitar a descontinuidade das ações.

Outra questão apontada pela equipe do CREAS é que se deve também primar pela capacitação dos envolvidos no processo, não apenas da equipe do CREAS, pois o SINASE pressupõe a incompletude institucional, devendo necessariamente haver articulação e fortalecimento da rede socioassistencial. Assim, as capacitações devem envolver todos os atores do Sistema de Garantia de Direitos (Educação, Trabalho e Renda, Esporte e Lazer, Saúde, Habitação e afins).

Considerações finais

O conceito central da cidadania é a emancipação, no sentido da construção de sujeitos. A condição de sujeito só ocorre na relação com o outro, não mais feito objeto, mas também sujeito, uma relação dialógica entre sujeitos emancipados. Não há cidadania no isolamento, sem o referencial do outro. Vivemos hoje imersos no social. O que penso, o que sei, aquilo em que acredito são construções pessoais nutridas na relação com o outro; o outro enquanto também sujeito autônomo, diferente ao mesmo tempo em que igual, diferença, portanto, não hierarquizável (BORDIGNON, 1993).

A descentralização implica gestão democrática que, para ser viável, precisa romper a cultura da não participação ou da participação que se efetiva apenas no sentido de aprovar o que já veio decidido por outras instâncias, e os atores envolvidos devem responder às novas demandas que emergem, abrindo novos caminhos de mudanças. Bedin (2007) destaca que sua construção e efetivação passam pelo compromisso e o envolvimento mútuo

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dos atores sociais envolvidos, sem os quais o ideário proclamado de democracia não se concretizará, podendo seu vigor ficar reduzido a aspectos formais e aparentes.

Para concluir, busca-se um novo modelo, fundado na emancipação de uma nova cidadania. Trata-se da elevação da categoria sociológica do poder local, aliando a descentralização com a participação popular no exercício do poder político e inaugurando uma forma mais democrática de gestão pública aliada aos principais objetivos da Constituição Federal e do Estado Democrático de Direito.

Com base nas discussões apresentadas, busca-se ressignificar a participação, vencer as resistências pessoais e hábitos profundamente arraigados, passando a acreditar nas possibilidades de construir outra realidade na busca de um bem coletivo comum, através das relações construídas dialeticamente.

Nessa perspectiva, é possível afirmar que um dos principais desafios para a efetivação do SINASE é o de incrementar o acesso à informação no sentido de sensibilizar, instruir e potencializar os atores envolvidos no processo. Implica, também, a desconstrução de estigmas e preconceitos e a formação de cultura política que efetivamente conceba o adolescente em conflito com a lei como pessoa em processo de desenvolvimento e sujeito de direitos. Entendemos que, nesse sentido, as capacitações continuadas dos atores sociais envolvidos possibilitariam contribuições significativas (GOHN, 2001).

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O Sancionatório e o Pedagógico nas Medidas Socioeducativas: reflexões à luz do pensamento de Erving Goffman e Michel

Foucault

Leonardo Possidonio Domingos64

Pedro de Oliveira Ramos Junior65

Resumo: Este artigo objetiva, por meio das contribuições de Goffman e Foucault, uma reflexão sobre o sistema socioeducativo no que se refere à tênue linha que separa o punitivo do pedagógico, pensando um trabalho socioeducativo que se afaste cada vez mais da lógica prisional que ainda permeia as instituições, dentro de um contexto sócio-histórico.

Palavras Chaves: Adolescente; conflito com a lei; Instituições totais; panótico; socioeducação.

Introdução

Nem sempre é tarefa fácil discorrer sobre um tema como este: o sancionatório e o pedagógico nas medidas socioeducativas. Conhecer o funcionamento dessas Instituições não é salvo-conduto para entendê-las. A experiência adquirida no trato com os adolescentes em conflito com a lei e o trabalho com os socioeducadores66 ajudam-nos a refletir sobre a realidade com

64 Assistente Social da Equipe Técnica Interdisciplinar Cível - 9º NUR - Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, E-mail: [email protected] Psicólogo do Departamento Geral de Ações Socioeducativas - DEGASE, lota-do no CRIAAD Teresópolis, E-mail: [email protected] Consideramos que todos os que trabalham nas unidades socieducativas são socioeducadores, do auxilar de serviços gerais aos gestores. Dessa forma, não reduzir-mos o termo para designar especificamente os agentes de disciplina.

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maior discernimento, gerando saberes e teorias explicativas sobre as instituições socieducativas e os sujeitos: adolescentes e operadores do sistema.

Embora sejam valorosos os recortes teóricos e a importância de sermos conhecedores das legislações que se referem ao adolescente, é mister a interlocução entre a teoria e a prática. E é sobre essa prática que falaremos neste trabalho, em seu entrelaçamento com o tema proposto.

O sistema socioeducativo vem sofrendo grandes transformações, alinhadas com as normativas internacionais e nacionais. A mudança de paradigmas nos faz crescer e repensar a nossa prática institucional, pois aponta o novo direcionamento no atendimento ao adolescente em conflito com a lei.

Mesmo estando em consonância com essas mudanças, devemos ter o cuidado de não nos cegarmos diante dos desafios que temos e ainda teremos pela frente.

A questão do sancionatório e do pedagógico remontam ações que são anteriores a um código menorista. Após um processo de lutas e conquistas, vemos uma legislação para o adolescente que visa à garantia de seus direitos.

Diante do quadro atual, são importantes o conhecimento das leis, as mudanças arquitetônicas nas unidades socioeducativas no Estado do Rio de Janeiro e a capacitação profissional continuada. Igualmente importante é a discussão ético-política nas unidades sobre o trabalho na socioeducação, pois essa é uma das estratégias para continuarmos mobilizados e avançando nas questões do adolescente em conflito com a lei em nosso Estado.

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Do código de menores ao SINASE: desafios e reflexões importantes para a contemporaneidade

A substituição do Código de Menores (1979) pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8069/90) gerou uma mudança no trato desses, em que passa a vigorar a doutrina da proteção integral, substituindo a doutrina da situação irregular. O “menor”, termo muitas vezes usado pejorativamente, dá lugar ao termo “adolescente”. O menor infrator passa a ser reconhecido como um adolescente que cometeu ato infracional, mas detentor de direitos. Essa mudança, muito mais significativa do que uma mera mudança gramatical, está embasada nas normativas nacionais e internacionais das quais o Brasil é signatário.

O novo entendimento do ECA traz, na sua essência, não apenas o adolescente como um ser em desenvolvimento, mas um sujeito de direitos fundamentais e inerente à pessoa humana, como sinaliza o estatuto, e sob a égide da proteção integral. Os direitos dos adolescentes devem ser assegurados por todos – família, sociedade civil e Estado.

Evidentemente, estamos falando de uma mudança legal (jurídica), que está permeada por contradições e disputas. Nesse sentido, a conversão proposta pelas entidades e movimentos da infância e adolescência teve como gênese o ECA e outras leis e aparatos de políticas públicas, mas não necessariamente rompe com o modo de pensar que estigmatizava o adolescente.

Na história de nossa sociedade, veremos a hegemonia de um pensamento e política higienista, assistencialista e repressor que culminou em uma série de medidas que constituíam um aparato médico-jurídico-assistencial do Estado brasileiro, tais como a “Roda dos expostos”, Código Criminal do Império, Código Penal de 1980, Código de Menores de 1927, FUNABEM e FEBEM. O advento do ECA, infelizmente, não representa, de fato, uma mudança de hegemonia em direção ao respeito do

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ser humano (igualidade e a ampliação e efetivação dos direitos humanos); pelo contrário, estamos diante da perpetuação de um processo histórico de marginalização da população pobre.

Ter essa clareza política é importante para a disputa e implementação de projetos ético-profissionais com uma direção social humanitária no seio das relações de forças existentes nos espaços institucionais e na sociedade, além de nos prevenir de possíveis ilusões no que toca a um suposto progresso no reconhecimento dos direitos humanos – em especial, no caso de adolescentes que cometeram ato infracional.

É importante frisar que o pensamento hegemônico, que também norteia as medidas socioeducativas e as políticas públicas do Estado brasileiro, tem como origem e/ou referência a nossa (perversa) experiência colonial e ditadorial, que gera um pensamento conservador, patriarcal, opressor e medieval. Sendo assim, a promulgação do ECA ora é expressão de uma vitória diante de tais correlações de força, ora é uma contradição de um Estado omisso e punidor.

Os movimentos de reabertura democrática no Brasil, na segunda metade do século passado, pautavam não só a doutrina da proteção integral resumida a uma única lei, mas a um conjunto de medidas (leis, políticas públicas, reconhecimento histórico de erros do estado etc) que se entrelaçam com os direitos da criança e do adolescente. Concretamente, podemos citar como exemplos de tais medidas: a Constituição Federal/1988; a adesão à Convenção Internacional dos Direitos da Criança – ONU/1989; a constituição da secretaria nacional de direitos humanos/1997; o Plano Nacional de Direitos Humanos (1996, 2002 e 2010); a Lei Orgânica da Saúde/1990; a Lei Orgânica da Assistência Social/1993; o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil/2000; o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes à Convivência Familar e Comunitária-PNCFC/2006; o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo-SINASE /2006; etc.

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Ainda que se possa considerar que houve avanços importantes no reconhecimento e trato da infância e adolescência, há outros desafios e questões fundamentais postos neste debate. Estão no bojo dessa angústia: a vulnerabilidade social, a que crianças e adolescentes (pobres) estão submetidos e/ou expostos ao aliciamento para o trabalho no tráfico de drogas e/ou grupos criminosos de roubos e furtos, somado à debilidade e fragilidade da política educacional brasileira; a “questão urbana”, com sério déficit habitacional e desestrutura das periferias brasileiras de equipamentos de saúde, assistência, segurança-pública, geração de emprego, educação e lazer – com o devido respeito ao ser humano e ao direito de ir e vir; e o reconhecimento do Estado da necessidade de se debruçar sobre temas recorrentes na política de saúde, nesse caso a legalização do aborto e das drogas “culturais”.

No que tange especificamente aos adolescentes em instituições socieducativas privativas e restritivas de liberdade,, que são os que cometeram algum tipo de ato infracional, ainda vemos práticas de muitos profissionais da comunidade socioeducativa que em nada se assemelham ao novos paradigmas da proteção integral.

Entramos, pois, no século XXI ainda com resquícios do código de menores e com unidades socieducativas, sejam de internação, internação provisória ou semiliberdade, que ainda perpetuam a lógica prisional sob o manto da disciplinarização – ou dos corpos no modelo foucaultiano, ou com a anulação da personalidade do sujeito, como caracteriza Goffman.

Embora com muitos avanços, ainda observamos momentos em que a punição, mascarada de lei/ordem, sobrepõe-se à educação – o pedagógico. Atravessando essas questões, alguns profissionais, ainda impregnados com o Código de Menores (79), entendem erroneamente o ECA como apenas punitivo ou, então, consideram-no como um “mini código penal para inimputáveis”.

O trabalho diário com os adolescentes em conflito com a lei é difícil e árduo. E a questão que surge é: como garantir direitos a um sujeito adolescente?

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Nas unidades socioeducativas, a questão da cidadania salta aos olhos: sem Certidão de Nascimento, Identidade, alguns sem referência familiar. Onde foi parar sua cidadania? Ele já se sentiu um cidadão? Sente ou sabe que tem direitos básicos? Sabe que tem deveres?

Dentro das unidades, todos parecem um só. Histórias semelhantes, direitos aviltados, deveres que não respeitam, uniformizados, estigmatizados, sem nome etc. No lugar da sua história individual, eles parecem substituí-la por uma história da Instituição. Afinal, boa parte da adolescência é passada em um outro lugar (Instituição/vias públicas) que não a sua casa, com sua família.

Tanto o PNCFC quanto o SINASE apontam ações que minimizam os efeitos da Institucionalização.

O PNCFC cita autores como Winnicott e Dolto, que falam dos efeitos nefastos para crianças e adolescentes que são separadas da família e institucionalizadas. Efeitos esses que podem ser minimizados se a criança ou o adolescente conseguem receber cuidados e estabelecer um relacionamento estável e confiável com um adulto, na instituição, até o retorno ao seio familiar.

O SINASE direciona para a prevalência da ação socioeducativa sobre os aspectos meramente sancionatórios, uma vez que as medidas socioeducativas possuem uma dimensão jurídico-sancionatória e uma dimensão substancial ético-pedagógica. O SINASE inscreve sua operacionalização na perspectiva ético-pedagógica, na medida em que sua execução está condicionada à garantia de direitos e ao desenvolvimento de ações educativas que visem à formação da cidadania.

Dessa forma, os operadores socioeducativos, no exercício de suas atividades, devem estar em consonância com o que preconizam as normativas nacionais no que se refere ao atendimento ao adolescente, procurando prevalecer o pedagógico sobre o sancionatório na atuação dentro do sistema socioeducativo e, fundamentalmente, garantindo os direitos do adolescente estabelecidos pelas leis vigentes.

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A nova roupagem do conservadorismo e da opressão no sistema socioeducativo na sociedade brasileira pós-ditadura militar

A reabertura à democracia burguesa no final da década de 80 permitiu à sociedade entender e reconhecer uma série de violações e omissões em relação a direitos (humanos, civis, sociais, políticos etc.), da qual o Estado brasileiro era protagonista; ações essas praticadas por diversos atores sociais do Estado (militares; parlamentares; chefes, ministros e secretários do poder executivo; agentes do judiciário, do poder executivo etc).

A derrubada da ditadura significava, em tese, o reconhecimento desses direitos de todos os seres humanos e, consequentemente, o atendimento pelo Estado. Porém, a história dessa sociedade permeada por constantes lutas de classes (antagônicas), relações de forças e a constituição de um pensamento dominante revela-nos que acreditar que essa mudança geraria um processo de osmose súbita na consciência dos atores sociais do Estado seria, no mínimo, uma atitude ingênua, quando não burra.

Se, durante o período da constituição da república federativa brasileira até o regime ditatorial, o Estado e seus atores sociais podiam agir de forma explicitamente violenta – em conformidade com o pensamento conservador – sem serem repreendidos, seja pela “legitimidade” existente à época, seja pela não compreensão dessa noção de direitos que temos hoje – é importante mencionar isso para não cairmos na tentação do anacronismo), após a reabertura à democracia burguesa, isso já não era facilmente possível sem ser alvo de crítica e reação da sociedade civil. Contudo, superada a ditadura, mas não o Estado capitalista, veremos novamente a ação violenta e repressora e a omissão do Estado. Podemos citar como exemplo marcante de uso da violência para não atender a direitos o uso da força militar em conflitos agrários no Norte do Brasil em meados da década de 90, com dezenas de camponeses mortos, feridos, presos e

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torturados. Portanto, até aqui não há nenhuma novidade no que toca aos direitos humanos e às violações.

É importante ressaltar que, em paralelo, há o surgimento e fortalecimento de organismos, instituições e organizações nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos. Esse fator é importante para prevenir e punir possíveis violações. Ainda que o pensamento burguês e sua essência revolucionária apresentam novas formas e métodos para reproduzir a dominação sobre uma determinada classe, nesse caso estamos nos referindo a adolescentes pobres e/ou negros. Essa nova roupagem permite ao Estado e a seus atores sociais uma ação de forma violenta, discriminatória, higienista, assistencialista e repressora, sem atrair grande atenção (retaliação) da sociedade civil e constituindo-se em uma forma extremamente peculiar que dificulta a denúncia por parte dos organismos e organizações de defesa dos direitos humanos.

No sistema socioeducativo, podemos, resumidamente, notar essa nova roupagem desde a leitura conservadora e opressora de determinado adolescente em conflito com a lei por parte de atores sociais do Estado. Leitura essa que desconsidera o histórico daquele adolescente; a omissão do Estado, família e sociedade civil ao longo da infância e/ou adolescência desse; a sociabilidade desse ser humano; a formação da consciência, valores e conhecimento do adolescente; a falta de referências pessoais (família e amigos) e/ou públicas (atores sociais e Estado corrompidos) etc. Passa-se pela apuração do ato infracional (delegacia policial, ministério público, juizado), que pode apresentar como gênese uma ação disciplinadora (enquadramento) do comportamento do adolescente, além disso, pode ocorrer ações (ou omissões) alvitadoras dos direitos de defesa e auxílio jurídico, por vezes carregada de visões estigmatizadoras (adolescentes “considerados” problemáticos, adolescentes em recorrência de ato infracional etc) e, finalmente, a decisão de aplicar determinada medida socioeducativa (MSE) sem ter como norte a isonomia e a equidade – em que

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esse adolescente ainda passará pela execução de sua MSE em determinado equipamento do poder executivo.

Portanto, se antes essas ações do Estado e seus atores sociais podiam ser notados facilmente, hoje podem se dar por meio da violência e/ou violação moral, física e psicológica ou, até mesmo, pela omissão. O conservadorismo e a opressão assumem uma nova roupagem pós-ditadura militar.

Intituições socieducativas como Instituição Total

O sociólogo canadense Erving Goffman nos ensina que uma instituição total é organizada para anular a personalidade do interno67 . Essas instituições levam à fragmentação do sujeito, à perda de identidade social e à anulação da personalidade. Essa anulação começa com a identificação automática a que os internos estão sujeito nessas Instituições, ou seja: o detento, identificado automaticamente como criminoso; o cliente psiquiátrico, como doente/insano; o adolescente em conflito com a lei, como a semente do mal; e assim sucessivamente.

O autor fala de elementos que provocam um eclipse da identidade, uma mortificação do eu; entre eles, a impossibilidade de administrar a própria imagem, a eliminação das roupas, símbolos e materiais necessários para compor a própria identidade. No momento da entrada nessas Instituições, tais características são eliminadas e substituídas pela roupa grosseira ou, poderíamos também dizer, padronizadas dessas Instituições.

Apesar de estarmos sempre buscando as melhores soluções para lidarmos com a rotina Institucional, sabemos que ainda encontramos muitos entraves, pois lidamos com a perversão institucional dentro de uma Instituição total. Perversão essa que não se restringe ao sadismo de um socioeducador ou ao masoquismo de um jovem.67 O termo usado por Goffman servirá para identificar, neste trabalho, tanto o adolescente em internação quanto em semiliberdade.

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Nós, técnicos, por exemplo, não estamos a salvo de reproduzirmos esse movimento perverso, posto nas Instituições, de privação ou restrição de liberdade. Não estamos livres de sermos envolvidos pela teia da perversão, simplesmente porque sabemos que ela existe. Corroborando com o nosso pensamento, citamos a psicóloga Leila Torraca, que pontua que, em alguns projetos, os conhecimentos da Psicologia são evocados não para ultrapassar a lógica da punição, mas para legitimá-la68 .

No que tange às Unidades de Internação, não é novidade para ninguém, no contexto brasileiro, que as Instituições onde esses adolescentes são ressocializados, muitas vezes, caracterizam-se por serem espaços com a cultura da coerção e violência. Essas ações tendem a reforçar a exclusão social dos adolescentes e a potencializar as tendências antissociais, agravando a situação de marginalização dos jovens em conflito com a lei. Marginalização essa que se coloca também sobre os socioeducadores da Instituição.

As notícias que saem na imprensa, por seus vários canais, amiúde são tendenciosas em relação ao que acontece nas unidades e ao adolescente em conflito com a lei. São os agentes rotulados sempre como violentos ou técnicos que não fazem nada em um sistema que não ressocializa ninguém. Ou seja, os funcionários, de certa forma, também se encontram na identificação automática caracterizada por Goffman. O agente é identificado automaticamente como torturador e o técnico, como descomprometido com o trabalho.

Essas questões têm relação direta, entre outras, com a superlotação nas Unidades de internação e o número insuficiente de funcionários, sem desconsiderar os aspectos das facções dentro das unidades, o despreparo de alguns socioeducadores e as internações, por vezes, desnecessárias e excessivamente prolongadas, em desacordo com o sinalizado nos artigos 121 e 122 do ECA.

68 Diálogos. Psicologia Jurídica. Psicologia Ciência e Profissão. Ano 9, nº8. Outubro, 2008

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Sobre as unidades de restrição de liberdade, também podem ser espaços de coerção e violência, sobretudo a psicológica, vilipendiando direitos garantidos por lei, como a visita de final de semana, que ainda é usada como barganha e como um método torpe de controle, disciplina e adestramento do adolescente. Essa atitude faz com os adolescentes se utilizem de “táticas de adaptação”, para a garantia de seus direitos pelo bom comportamento. Goffman fala sobre essas táticas como sendo a maneira pela qual o sujeito responde às regras estabelecidas e que os ajustes que são necessários para essa adaptação estão intrinsecamente ligados com os mecanismo de mortificação do eu.

Encontramos, ainda, operadores do sistema de medidas de restrição de liberdade (semiliberdade) que consideram a saída de final de semana uma benesse da instituição (e não um direito do adolescente) ou interpretam o ECA como punitivo (e não dentro de um sistema de garantia de direitos), olvidando que o estatuto, diferentemente do SINASE, é para todos os adolescentes, e não somente para os que estão em cumprimento de medida socioeducativa. Neste aspecto, ainda há em alguns estados brasileiros a falta de investimento em unidades de semiliberdade, privilegiando o sistema de internação.

Esse tipo de “profissional” são os que promovem conflitos em vez de mediá-los, que estimulam a autoridade escalonada (autoridade em que qualquer pessoa da classe dirigente está apta a impor disciplinação/sanção à classe de interno, o que aumenta visivelmente a possibilidade de sanção e a angústia neles; em alguns casos na semiliberdade, só o autor da sanção aplicada ao adolescente tem o poder de retirá-la), que abusam da autoridade não só em relação aos adolescentes, mas também em relação aos funcionários, que incitam o bullying, o assédio moral e situações que poderíamos caracterizar como violência psicológica no trabalho e, em alguns casos, com a conivência, seja ativa seja passiva, de outros membros da equipe, que acabam também se sentindo ameçados em meio a esse círculo perverso.

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Tal postura anteriormente mencionada leva, em alguns casos, à impossibilidade da construção e manutenção da rede de assistência externa e da rede interna. Na medida em que há conflitos de interesses entre socioeducadores, operadores do judiciário e potenciais parceiros, o resultado é ter o trabalho socioeducativo obliterado. Somam-se a isso os socioeducadores, que se equivocam diante de conceitos indispensáveis em nosso trabalho, tais como a incompletude institucional e a instituição total, que são conceitos distintos, entretanto não excludentes.

Sob essa ótica, é fundamental que as unidades socioeducativas, sejam elas de internação, internação provisória ou semiliberdade, despertem em nós a consciência de que ela pode ser visualizada como uma instituição total nos moldes analisados por Goffman, principalmente nos conceitos de mortificação do eu e da autoridade escalonada.

Essa consciência irá nos fazer pensar em um novo ordenamento institucional, ou seja, ter o pensamento focado no aparelhamento da unidade em seus recursos humanos e físicos. A percepção nas unidades tanto de internação quanto de restrição de liberdade do modelo de Goffman pode nos ajudar a minimizar os impactos de um novo ordenamento que surge, pois a cultura policialesca, repressiva e panótica nunca desaparece por completo.

Contudo, de maneira nenhuma esse conhecimento significa que devemos retroceder ao modelo assistencial-repressivo, no atendimento socioeducativo; muito pelo contrário, é uma forma de avançarmos tendo como referência o que é feito e o que poderemos mudar, como transpormos obstáculos e nos referenciarmos pelos novos paradigmas. Só assim abriremos a possibilidade de reflexão e reformulação do trabalho socioeducativo, sempre em consonância à proposta da garantia de direitos e da proteção integral ao adolescente.

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O panótico e as relações de poder

O panótico não é uma teorização foucaultina, e sim um dispositivo de poder disciplinar idealizado pelo jurista inglês Jeremy Bentham, cuja arquitetura permitiria uma vigilância em que os submetidos a ela não observariam diretamente a vigilância exercida. Sob essa ótica, a máxima da arquitetura panótica seria: “O saber da existência da vigilância faz com que não se precise vigiar objetivamente” e, dessa forma, assegura-se o funcionamento automático do poder.

No que se refere às Unidades de Internação, identificamos similaridades com o modelo panótico. Existem, nessas unidades, os postos de observação chamados “águia”, locais bastante altos de onde se tem uma visão de todo o perímetro da Instituição; é onde se pode ver sem ser visto. Algumas unidades ainda contam com os recursos das câmeras, visando a um melhor controle e segurança.

As unidades de restrição de liberdade também são referências a um modelo panótico. Eles revelam uma arquitetura que facilita o controle dos adolescentes, quando se posicionando no vão central. Estando no centro do pátio ou ao passar por ele, tem-se uma visão ampla. Na semiliberdade, também há os recursos das câmeras de vigilância 24 horas por dia, também visando ao controle, à segurança e à disciplina.

Segundo Foucault, o corpo está intrinsecamente ligado ao campo político, visto que podemos estabelecer que as relações de poder marcam esse corpo, controlam-no e tornam-no dócil e submisso. Para o autor, há um entrelaçamento entre o poder e saber, e não uma relação de causa e efeito de um sobre o outro. Nesse prisma, constituir-se-á a sociedade disciplinar.

Assim, o conceito de disciplina em Foucault está a serviço do controle e sujeição do corpo. Essa compreensão pode nos levar a uma reflexão e um entendimento sobre as sanções empregadas, as relações de poder e a própria rotina que

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encontramos nas Instituições. Temos, como exemplo máximo da rotina institucional das unidades de internação e internação provisória, a clássica postura de cabeça baixa e mãos para trás como forma de manter a ordem, mostrar o poder, o controle e a disciplina. Seria, ainda hoje, aceitável esse tipo de postura em um momento em que preconizamos um tratamento mais humanizado aos adolescentes?

A relação entre a disciplina e as punições é complexa. Os temas são próximos, mas não necessariamente nos remetem a uma ligação direta ou de causa e efeito. Entretanto, como pensar a disciplina desmembrada da punição? Vislumbrando uma alternativa que pode ser possível em nossa relação com os adolescentes que cumprem medida socioeducativa nas instituições degaseanas, Foucault nos orienta:

O professor deve evitar, tanto quanto possível, usar castigos; ao contrário, deve procurar tornar as recompensas mais freqüentes que as penas, sendo os preguiçosos mais incitados pelo desejo de ser recompensados como os diligentes que pelo receio dos castigos; por isso será muito proveitoso, quando o mestre for obrigado a usar de castigo, que ele ganhe, se puder, o coração da criança, antes de aplicar-lhe o castigo. (FOUCAULT, 1992. )

Dessa forma, o que devemos avaliar é se nós, socioeducadores, realmente queremos uma mudança e se estamos verdadeiramente afinados com os novos paradigmas da socioeducação. Nós estamos trilhando o caminho profícuo, porém trabalhoso do pedagógico, ou buscamos, mesmo que inconscientemente, o caminho mais fácil, que é o do sancionatório? Até porque calar o adolescente, estigmatizá-lo, domesticá-lo com o uso da imposição e do autoritarismo realmente é mais simples, embora ineficaz.

Deixemos, pois, uma questão para ser respondida por aqueles que se debruçaram sobre estas linhas e que, ao mesmo tempo, possibilitará uma reflexão a cada um de nós que trabalhamos com a socioeducação: afinal, qual caminho realmente

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estamos percorrendo em nosso trabalho com os adolescentes em conflito com a lei?

Considerações Finais

Este trabalho não teve como propósito uma critica pela crítica, como se em todos esses anos não tivessem ocorrido avanços significativos no atendimento aos adolescentes. A história das instituições socieducativas, no Brasil e em especial no Rio de Janeiro, hoje DEGASE, nos mostra o quanto evoluiu, principalmente no que tange à capacitação dos funcionários, às instalações físicas e às diversas atividades culturais, desportivas e profissionalizantes para os adolescentes, procurando a cada ano garantir seus direitos nas unidades socioeducativas em nosso estado.

A crítica, contudo, é direcionada àqueles operadores do sistema socioeducativo que não refletem sobre a sua prática profissional; àqueles que mantêm o mesmo pensamento inerte através dos tempos, que não se qualificam, que maculam a imagem da Instituição e de colegas com suas ações, que não se comprometem com os novos paradigmas do sistema socioeducativo nacional e que, em alguns casos, contaminam toda uma unidade com ideias e ações incongruentes com a socioeducação.

Os gestores das Unidades socioeducativas têm um papel de grande relevância para a garantia dos direitos dos adolescentes. Eles devem ser qualificados, estar abertos ao diálogo e às críticas, sendo inviável um trabalho socioeducativo se sua gestão não estiver alinhada às novas diretrizes preconizadas, por exemplo, pelo ECA, SINASE e pelo Plano Nacional.

A qualificação profissional não é simplesmente estar em sala de aula para cursos de capacitação. É preciso que o socioeducador leve para a prática institucional as leis, diretrizes e códigos que regem o trabalho da socioeducação em nosso país.

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Ao descrever um modelo panótico das instituições socieducativas de privação e restrição de liberdade, ainda existente, buscamos fomentar um debate sobre socioeducação e segurança, para além de um versus outro. Acreditamos que esses temas não são excludentes. Entretanto, já passou da hora daqueles que regem as politicas públicas dos sistemas socieductivos entenderem que a socioeducação não é uma dicotomia segurança ou educação, mas, sim, uma questão de segurança, educação, saúde, assistência social, direitos humanos etc. Acreditamos que, os operadores socioeducativos do Estado do Rio de Janeiro deveriam visualizar a importância de uma secretaria de ações socioeducativas que englobasse todas essas questões ligadas ao adolescente em conflito com a lei.

Basear o trabalho no conhecimento das teorias de Goffman e Foucault nos serve como alerta, pois as obras desses autores fomentam uma reflexão sobre o nosso trabalho, não esquecendo, portanto, que, em uma Instituição total, convivemos e, muitas vezes, reproduzimos a perversão e as mazelas institucionais.

O entendimento do limite tênue entre o sancionatório e o pedagógico é fundamental no dia a dia institucional. Os adolescentes têm não só direitos, mas também deveres. A aplicação das sanções é importante, contudo só serão significativas à medida que os jovens entendam o porquê delas. Só dessa forma estaremos contribuindo para que o adolescente entenda as regras e os limites para viver em sociedade, que entenda a medida socioeducativa imposta, reflita e entenda sua responsabilidade no ato infracional praticado. É uma questão essencial a responsabilização, e não a culpabilização do jovem e suas famílias.

No trabalho socioeducativo, é fundamental não dessubjetivar o sujeito adolescente. Ele deve ser mais que uma matrícula, um número, um infrator, um drogado. Temos que trabalhar de modo que o “ser adolescente infrator” não engula o sujeito e não transforme sua fala em um discurso vazio, dessubjetivando-o. Não devemos esquecer que esse jovem tem

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uma história de vida que não pode e não deve ser relegada. O punir por punir será contraproducente, pois apenas

afastará o adolescente da equipe socioeducativa. Em nossa atuação, precisamos de um mínimo de proximidade, se realmente pensamos em ajudá-lo em suas dificuldades ou ajudá-lo no desenvolvimento de suas potencialidades.

Aos que são afinados com as diretrizes propostas nacionalmente, o texto tem a ousadia de servir como um alerta para que não nos deixemos abater com as dificuldades e que não esqueçamos que somos socioeducadores, portanto temos que garantir (e não restringir ou retirar) os direitos dos adolescentes que atendemos.

Propomos, ainda, uma reflexão sobre a tênue linha entre o sancionatório e o pedagógico e sobre a nossa prática profissional. Acreditamos que ter a consciência destas questões aqui colocadas é fundamental para que nós, socioeducadores, busquemos alternativas para melhorar nossa atuação profissional no sentido de garantir, cada vez mais, os direitos desses adolescentes que atendemos no sistema socioeducativo. Adolescente esse sujeito de direitos, deveres e, também, desejos.

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Referências Bibliográficas

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