ação direta de inconstitucionalidade 5.097/df celso de...

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N o 194.149/2015-AsJConst/SAJ/PGR Ação direta de inconstitucionalidade 5.097/DF Relator: Ministro Celso de Mello Requerente: Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP) Interessados: Presidente da República Congresso Nacional CONSTITUCIONAL E CIVIL. ART. 10, § 5 O , DA LEI 9.263/1996. REGULAMENTAÇÃO DO ART. 226, § 7 O , DA CONSTITUIÇÃO. PLANEJAMENTO FAMILIAR. ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA. VIGÊNCIA DA SOCIEDADE CONJUGAL. NECESSIDADE DE CONSENTIMENTO EXPRESSO DO CÔNJUGE OU COMPANHEIRO(A). ILEGITIMIDADE ATIVA. AUSÊNCIA DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA. MÉRITO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA, AO DIREITO À LIBERDADE E À AUTONOMIA PRIVADA (ARTS. 1 O , III, E 5 O , CAPUT , DA CR). DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR E REPRODUTIVO (ART. 226, § 7 O , DA CR). IMPOSIÇÃO AO ESTADO DE MEDIDAS PROTETIVAS E NÃO RESTRITIVAS DA VONTADE E AUTODETERMINAÇÃO DOS CIDADÃOS. 1. A Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP), que representa defensores públicos ativos e aposentados, não de- tém legitimidade para propor ação direta de inconstitucionali- dade em face de norma que disponha sobre condições e exigências necessárias a esterilização voluntária na vigência de sociedade conjugal. Não há pertinência temática entre seus ob- jetivos institucionais e o objeto da ação. 2. Viola o princípio da dignidade do ser humano e o direito à li- berdade e à autonomia privada a exigência de consentimento de cônjuge ou companheiro(a) como condição para esterilização vo- luntária de pessoa maior e capaz. Documento assinado digitalmente por RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS, em 28/09/2015 17:48. Para verificar a assinatura acesse http://www.transparencia.mpf.mp.br/atuacao-funcional/consulta-judicial-e-extrajudicial informando o código FDCA6440.745E995B.1F1BFE54.338A76D1

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No 194.149/2015-AsJConst/SAJ/PGR

Ação direta de inconstitucionalidade 5.097/DF Relator: Ministro Celso de MelloRequerente: Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP)Interessados: Presidente da República

Congresso Nacional

CONSTITUCIONAL E CIVIL. ART. 10, § 5O , DA LEI9.263/1996. REGULAMENTAÇÃO DO ART. 226, § 7O , DACONSTITUIÇÃO. PLANEJAMENTO FAMILIAR.ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA. VIGÊNCIA DASOCIEDADE CONJUGAL. NECESSIDADE DECONSENTIMENTO EXPRESSO DO CÔNJUGE OUCOMPANHEIRO(A). ILEGITIMIDADE ATIVA. AUSÊNCIADE PERTINÊNCIA TEMÁTICA. MÉRITO. VIOLAÇÃO AOPRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA, AO DIREITO ÀLIBERDADE E À AUTONOMIA PRIVADA (ARTS. 1O , III, E5O , CAPUT, DA CR). DIREITO AO PLANEJAMENTOFAMILIAR E REPRODUTIVO (ART. 226, § 7O , DA CR).IMPOSIÇÃO AO ESTADO DE MEDIDAS PROTETIVAS ENÃO RESTRITIVAS DA VONTADE EAUTODETERMINAÇÃO DOS CIDADÃOS.

1. A Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP),que representa defensores públicos ativos e aposentados, não de-tém legitimidade para propor ação direta de inconstitucionali-dade em face de norma que disponha sobre condições eexigências necessárias a esterilização voluntária na vigência desociedade conjugal. Não há pertinência temática entre seus ob-jetivos institucionais e o objeto da ação.

2. Viola o princípio da dignidade do ser humano e o direito à li-berdade e à autonomia privada a exigência de consentimento decônjuge ou companheiro(a) como condição para esterilização vo-luntária de pessoa maior e capaz.

Documento assinado digitalmente por RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS, em 28/09/2015 17:48. Para verificar a assinatura acesse

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3. O Estado de Direito encontra seu alicerce mais robusto noprincípio da dignidade do ser humano, sustentáculo de todos osdireitos fundamentais. O direito à dignidade fundamenta a prote-ção à família e o planejamento familiar (art. 226, § 7o, da Consti-tuição da República). Esterilização voluntária por decisãoindividual não é incompatível com planejamento familiar.

4. No Estado de Direito não cabe, sob pena de desfigurar-se seucentro de identidade, impor restrições à autodeterminação pes-soal, em seu aspecto mais essencial, que é a liberdade de dispordo próprio corpo.

5. A Constituição impõe ao Estado a promoção de mecanismosque possibilitem êxito das escolhas dos cidadãos, tanto no sen-tido da reprodução, quanto no da esterilização, segundo a partefinal do art. 226, § 7o .

7. Parecer pelo não conhecimento da ação e, no mérito, pelaprocedência do pedido.

I RELATÓRIO

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela

Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP) contra o

artigo 10, § 5o, da Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996, cujo fim é

regulamentar o art. 226, § 7o, da Constituição da República, que

trata do planejamento familiar. O preceito tem a seguinte reda-

ção:

Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas se-guintes situações: I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maio-res de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com doisfilhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessentadias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, períodono qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço deregulação da fecundidade, incluindo aconselhamento porequipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilizaçãoprecoce;

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II – risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto,testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médi-cos.[...]§ 5o Na vigência de sociedade conjugal, a esterilizaçãodepende do consentimento expresso de ambos os côn-juges.[...]

Sustenta a requerente que a lei transgride o direito à liber-

dade, à autonomia do indivíduo e ao planejamento reprodutivo.

Afirma que toda mulher deve exercer o direito ao planejamento

reprodutivo de forma consciente e livre de qualquer interferência,

tanto do Estado como de qualquer outro indivíduo; a escolha so-

bre ter filhos e sobre o número destes deve fazê-la a mulher, como

titular do direito à liberdade de escolha e de disposição sobre o

próprio corpo. Assevera não caber ao Estado estimular ou desesti-

mular condutas relativas ao exercício do direito ao planejamento

reprodutivo. Aduz que ações estatais devem somente proporcionar

aos cidadãos recursos nas áreas de saúde e educação para adequado

exercício desse direito. Acrescenta que condicionar a realização da

cirurgia de esterilização voluntária a anuência de terceiro (no caso,

o cônjuge) constitui atentado à autonomia corporal e ao direito

ao planejamento reprodutivo, assegurado pelo art. 226, § 7o, da

CR. Ressalta a existência de tipo penal trazido pela Lei

9.263/1996, art. 15, nas hipóteses de esterilização voluntária reali-

zada sem prévia anuência do cônjuge.

Em 27 de fevereiro de 2015, o relator, Ministro CELSO DE

MELLO, adotou o rito do art. 12 da Lei 9.868, de 10 de novembro

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de 1999, e solicitou informações à Presidência da República e ao

Congresso Nacional (peça 16 do processo eletrônico).

O relator admitiu a participação do Instituto Brasileiro de

Direito de Família (IBDFAM), na condição de amicus curiæ (peça

17). O instituto destacou inúmeras situações contrapostas no to-

cante a relações familiares. No ordenamento jurídico vigente, ora

o limite protecionista dessas relações seria respeitado, ora seria

ultrapassado para atingir o princípio da autonomia privada. A Lei

9.263/1996 macularia a autonomia privada, sendo, portanto, in-

constitucional exigir consentimento de ambos os cônjuges para

esterilização (peça 13).

Limitou-se a Presidência da República a destacar a regulari-

dade do processo legislativo do qual resultou a Lei 9.263/1996

(peça 25).

Suscitou o Congresso Nacional ilegitimidade da ANADEP,

dada a ausência de pertinência temática entre a finalidade da re-

querente e o objeto da ação direta. Afirma que a Defensoria Pú-

blica deveria ajuizar ações defendendo a norma questionada, pois

inúmeras mulheres são submetidas a laqueaduras forçadas ou não

são informadas adequadamente sobre a esterilização e os riscos

dela decorrentes. Sustentou ser a esterilização medida de exceção

e que a sociedade conjugal visa à plena comunhão de vida; por-

tanto, estaria plenamente justificada a exigência de consenti-

mento do cônjuge, em caso de esterilização (peça 28).

Nos termos do art. 12 da Lei 9.868/1999, o relator solicitou

manifestação da Advocacia-Geral da União e da Procurado-

ria-Geral da República (peças 30 e 33).

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A Advocacia-Geral da União, inicialmente, arguiu ilegitimi-

dade ativa da ANADEP, por falta de pertinência temática. No

mérito, posicionou-se por improcedência do pedido e defendeu

que o art. 226, § 7o , da CR, outorga o planejamento familiar ao

casal. Destacou que o casamento estabelece plena comunhão de

vida, de modo que decisão pertinente a esterilização, que interfe-

rirá no direito à paternidade e à maternidade, não deve ser to-

mada unilateralmente, na constância da sociedade conjugal (peça

32).

É o relatório.

II ILEGITIMIDADE DA REQUERENTE: FALTA DE PERTINÊNCIA

TEMÁTICA

Conforme acertadamente observaram o Congresso Nacional

e a Advocacia-Geral da União, o requisito da pertinência temática

não está presente na entidade requerente ante o objeto desta ação,

o que caracteriza ilegitimidade dela. Segundo o estatuto da Asso-

ciação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP), a sociedade

civil, “que congrega Defensores Públicos do País, aposentados ou

não” foi criada para defender as “prerrogativas, direitos e interesses,

pugnando pela independência e prestígio da Defensoria Pública”

(peça 4). Estabelece o art. 2o do estatuto, dentre suas finalidades

institucionais:

Art. 2o São finalidades da Associação Nacional de DefensoresPúblicos – ANADEP:I – representar e promover, por todos os meios, em âmbito na-cional, a defesa das prerrogativas, dos direitos e interesses indi-viduais e coletivos dos seus associados efetivos, em juízo ou

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fora dele, velando pela unidade institucional da Defensoria Pú-blica, nos termos do art. 5o, inciso XXI, da Constituição Fede-ral, após prévia aprovação e autorização assemblear;II – prestar apoio às Associações de Defensores Públicos dosEstados, da União, dos Distrito Federal e dos Territórios;III – promover e incentivar a realização de eventos de Defen-sores Públicos para a discussão de temas jurídicos e doutriná-rios de seu interesse;IV – colaborar com os Poderes Constituídos no aperfeiçoa-mento da ordem jurídica, fazendo representações, indicações,requerimentos ou sugestões à legislação existente ou a a proje-tos em tramitação;V – editar o seu informativo;VI – atuar em proteção e defesa do consumidor, do idoso, dacriança e do adolescente, da mulher, do negro, do preso, do in-dígena, das pessoas com deficiência física e do homossexual,bem como do meio ambiente, do patrimônio artístico, esté-tico, histórico, turístico, paisagístico ou de qualquer outro inte-resse difuso ou coletivo; VII – articular-se com instituições nacionais ou estrangeiras,por filiação, intercâmbio ou convênio, bem como firmar par-cerias e participar de conselhos e organizações identificadoscom os segmentos e atividades descritos no inciso anterior; VIII – promover ação direta de inconstitucionalidade (ADIN),em face de lei ou ato normativo, nos termos do art. 103, IX,da Constituição Federal;IX – ajuizar ação individual ou coletiva, mandados de segu-rança, mandado de injunção e demais ações cuja legitimaçãolhe seja outorgada por lei, objetivando a salvaguarda dos direi-tos, garantias e prerrogativas de seus sócios efetivos;X – pugnar por justa e digna remuneração, condizente com aimportância do cargo de Defensor Público.

Conquanto o art. 2o, VI, do estatuto da ANADEP descreva

grupos específicos em prol dos quais a associação poderia atuar, a

situação não se confunde com a legitimidade própria das entida-

des de classe de âmbito nacional habilitadas a ajuizamento de

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ações de controle concentrado, prevista no art. 103, IX, da Consti-

tuição da República.

O Supremo Tribunal Federal reconhece viabilidade de ações

diretas propostas por entidades de classe de abrangência nacional,

desde que o objeto da ação guarde pertinência com os interesses

próprios da classe representada. Os julgados que se seguem refle-

tem o entendimento:

Agravo regimental no agravo de instrumento. Legitimidadeativa para oferecimento de representação de inconstitucionali-dade. Pertinência temática. Reconhecimento. Inteligência danorma do art. 230, § 2o, da Constituição Federal.1. Esta Corte firmou entendimento no sentido de queas entidades de classe e as confederações sindicais so-mente poderão lançar mão das ações de controle con-centrado quando tiverem em mira normas jurídicasque digam respeito aos interesses típicos da classe querepresentam.2. O acórdão recorrido está em sintonia com a jurisprudênciado Supremo Tribunal Federal, que assegura a gratuidade emtransportes públicos urbanos aos cidadãos que possuem maisde sessenta e cinco anos de idade.3. Agravo regimental não provido.1

I. ADIn: legitimidade ativa: “entidade de classe de âmbito na-cional” (art. 103, IX, CF): Associação Nacional dos Membrosdo Ministério Público – CONAMP [...]II. ADIn: pertinência temática. Presença da relação depertinência temática entre a finalidade institucionaldas duas entidades requerentes e os dispositivos legaisimpugnados: as normas legais questionadas se refletemna distribuição vertical de competência funcional entreos órgãos do Poder Judiciário – e, em consequência,entre os do Ministério Público. [...]

1 Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Agravo regimental no agravode instrumento 704.192/RJ. Relator: Ministro DIAS TOFFOLI. 22/5/2012,unânime. Diário da Justiça eletrônico 121, 20 jun. 2012.

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3. Por outro lado, ao contrário do que sucede com os crimescomuns, a regra é que cessa a imputabilidade por crimes deresponsabilidade com o termo da investidura do dignitárioacusado.2

O art. 10, § 5o, da Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996, não

possui relação com interesses jurídicos típicos de defensores públi-

cos, suas prerrogativas e direitos. O preceito, como dito, exige que

esterilização voluntária de homens ou mulheres, na vigência da so-

ciedade conjugal, conte com anuência do cônjuge ou compa-

nheiro. Trata-se de norma de relevância para a sociedade, porém

estranha aos interesses da ANADEP, não obstante a cláusula aberta

de seu estatuto, que parece lhe dar atribuição de atuar na defesa de

variegados interesses e direitos difusos e coletivos.

É manifesta a ausência de legitimidade da autora para propo-

situra desta ação, por falta de pertinência temática. Embora a

Constituição da República tenha realizado democrática abertura

no rol dos órgãos e entidades aptos a propor ações de controle

concentrado de constitucionalidade, o reconhecimento da legiti-

midade das associações deve obedecer à jurisprudência desenvol-

vida pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo do que ocorre em

outros países, em face das limitações operacionais inerentes ao

controle de constitucionalidade.

III MÉRITO

Caso superada a preliminar, não procede o pedido desta ação

direta.

2 STF. Plenário. Ação direta de inconstitucionalidade 2.797/DF. Rel.: Min.SEPÚLVEDA PERTENCE. 15/9/2005, maioria. DJ, 19 dez. 2006, p. 37.

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Como alega a inicial, o art. 10, § 5o, da Lei 9.263, de 12 de

janeiro de 1996, colide diretamente com os arts. 1o, III, e 5o, caput,

e com a mais apropriada interpretação do art. 226, § 7o, da Consti-

tuição da República.3

III.1 BREVE HISTÓRICO DA ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA

Meios de controle de natalidade e a necessidade de não gerar

descendência ou de programá-la no tempo são preocupações anti-

gas de homens e mulheres. Esterilização voluntária é permitida,

segundo o ordenamento jurídico brasileiro. Admite-se procedi-

mento cirúrgico com o fim de esterilização, em homens e mulhe-

res, em casos eletivos; quanto à mulher, em casos de risco à saúde

dela ou do concepto e ainda em pessoas incapazes, mediante auto-

rização judicial – art. 10 da Lei 9.263/1996.4

3 “Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúveldos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em EstadoDemocrático de Direito e tem como fundamentos: [...]III – a dignidade da pessoa humana; [...]”.“Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviola-bilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprie-dade, nos termos seguintes: [...]”.“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...]§ 7o Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paterni-dade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, compe-tindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para oexercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de ins-tituições oficiais ou privadas”.

4 “Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situ-ações: I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vintee cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde queobservado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da von-

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Acerca da evolução histórica da esterilização, vale consultar

trabalho da Professora CLARISSA BOTTEGA:

A esterilização humana tem uma história recente, posto que aprimeira operação de laqueadura tem seu registro no ano de1881, sendo que a partir de 1910 é que a técnica de ligaduradas trompas foi utilizada com maior sucesso.Já no caso da vasectomia, esse procedimento foi realizado pelaprimeira vez nos idos de 1889, como já citado em linhas ante-riores, pelo Dr. HARRY SHARP que iniciou a técnica em jovensdo Reformatório do Estado de Indiana, EUA.Nos idos de 1971 quase todos os estados norte-americanos játinham adotado leis que permitiam a esterilização por motivoseugênicos, ou punitivos, desde que houvesse autorização judi-cial; entretanto, com as emendas à Constituição dos EUA, denúmeros 8 e 14, essas leis foram tidas como inconstitucionais.

tade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessadaacesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamentopor equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;II – risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemu-nhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.§ 1o É condição para que se realize a esterilização o registro de expressamanifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a infor-mação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificul-dades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.§ 2o É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos departo ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesaria-nas sucessivas anteriores.§ 3o Não será considerada a manifestação de vontade, na forma do § 1o,expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimentopor influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapaci-dade mental temporária ou permanente.§ 4o A esterilização cirúrgica como método contraceptivo somente seráexecutada através da laqueadura tubária, vasectomia ou de outro métodocientificamente aceito, sendo vedada através da histerectomia e ooforecto-mia.§ 5o Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do con-sentimento expresso de ambos os cônjuges.§ 6o A esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes so-mente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada naforma da Lei”.

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Em sede de continente Europeu, a Suíça, Dinamarca e Suéciaforam os primeiros países a legislar acerca da esterilização dosanormais e doentes mentais, no ano de 1929.Entretanto, o exemplo mais drástico e vergonhoso no quetange à esterilização humana eugênica, foi praticado na Alema-nha na busca da pureza da raça ariana, com práticas cruéis edesumanas.Em verdade, a tentativa de controlar a natalidade sempre foiuma preocupação da raça humana, em razão de seu cresci-mento descontrolado; porém, nem sempre as técnicas utilizadaseram eficientes.5

Esterilização voluntária é decisão do indivíduo pertinente à

anulação da capacidade reprodutora, seja por opção, seja por ori-

entação médica. A esse respeito, comenta FÁBIO ULHÔA COELHO:

A esterilização voluntária é uma forma de exercer o direitosobre o corpo. A ordem jurídica reconhece como legítimo ointeresse de a pessoa tratar separadamente, em seu corpo, duasdimensões da função sexual: a reprodução da espécie e o pra-zer; especificamente, o interesse de tratar separadamente essasdimensões com o objetivo de neutralizar a primeira e otimizara outra. Quem deseja usufruir o prazer sexual sem cor-rer o risco de procriar pode submeter-se a procedi-mentos cirúrgicos de esterilização. São admitidas avasectomia, para os homens, e a laqueadura tubária,para as mulheres, bem assim qualquer outro métodoque venha a ser cientificamente desenvolvido. Veda-se, demodo expresso, a extirpação do útero (histerectomia) ou dosovários (ooforectomia).A exemplo das demais normas atinentes ao direito sobre ocorpo, também se restringem legalmente as hipóteses em que aesterilização voluntária está permitida. [...]A vontade de se tornar infértil deve ser manifestada por es-crito, após a pessoa interessada ser devidamente informada a

5 BOTTEGA, Clarissa. Liberdade de não procriar e esterilização humana. Dispo-nível em: < http://zip.net/bvrpkx > ou< http://www.clarissabottega.com/Arquivos/Artigos/Revista_Jur_v_9_n_2_jul_dez_2007_p_43_64.pdf >. Acesso em 23 set. 2015.

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respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, difi-culdades de sua reversão e opções de métodos contraceptivosreversíveis. Ademais, se a pessoa que pretende esterilizar-se forcasada, é obrigatória também a autorização do cônjuge.6

Em vigência encontra-se a Lei 9.263/1996, que trata de pla-

nejamento familiar e, entre outros aspectos, traça os requisitos a

serem atendidos nas hipóteses de esterilização voluntária (art. 10

da Lei 9.263/1996). Arrolada como exigência para esterilização de

pessoas em sociedade conjugal, está a necessidade de consenti-

mento de terceiro – cônjuge ou companheiro. Essa exigência,

contudo, não é compatível com a Constituição da República.

III.2 PLANEJAMENTO FAMILIAR

A família é considerada base da sociedade e tem especial pro-

teção constitucional, consoante o art. 226, caput, da Constituição

da República.7 Planejamento familiar, esteado nos princípios da

dignidade humana e da paternidade responsável, é direito asse-

gurado igualmente pelo art. 226, § 7o , da CR. Estabelece a Lei

Fundamental brasileira:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteçãodo Estado. [...]§ 7o . Fundado nos princípios da dignidade da pessoa hu-mana e da paternidade responsável, o planejamento familiaré livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar re-cursos educacionais e científicos para o exercício desse di-

6 COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Civil. Parte Geral. 5. ed. SãoPaulo: Saraiva, 2012. p. 188. Sem destaque no original.

7 “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.[...]”.

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reito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de institui-ções oficiais ou privadas.

O Congresso Nacional editou a Lei 9.263/1996 para regu-

lamentar o planejamento familiar. O diploma legal dispõe sobre

deveres do Sistema Único de Saúde (SUS), desenvolvimento de

ações de planejamento familiar, esterilização humana e crimina-

lização de condutas relacionadas à matéria.

Consoante o art. 2o da lei, o planejamento familiar é for-

mado pelo “conjunto de ações de regulação da fecundidade que

garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da

prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”. Seu parágrafo

único complementa: “É proibida a utilização das ações a que se

refere o caput para qualquer tipo de controle demográfico”.

Ao analisarem as dimensões que conformam o direito ao

planejamento familiar, PAULO AFFONSO LEME MACHADO, MARIA

REGINA MACHADO PERROTTI e MARCOS ANTÔNIO PERROTTI afir-

mam:

Resumindo o texto legal, podemos conceituar planejamentofamiliar como o conjunto de ações de regulação da fecundi-dade, que possibilite o exercício do direito da constituição, dalimitação ou do aumento da prole. Constituir prole ou tomar aresolução de ter filhos, restringir o número de filhos ou au-mentar o seu número são assuntos elementares do planeja-mento familiar.[...]A regulação da fecundidade, como o seu próprio conceito re-vela, pode evitar a gravidez, mas não tem por finalidade inter-rompê-la. O planejamento familiar, na legislação brasileira, nãotem nenhum objetivo de praticar ou apoiar a prática do

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aborto, mas procura que as vidas concebidas encontrem lares efamílias aptas a desenvolvê-las econômica e espiritualmente.8

O planejamento familiar abrange não apenas técnicas para

evitar gravidez indesejada, mas também para definir o momento

da gravidez (a fim de que a mulher possa conceber em mo-

mento que lhe pareça propício) e para permitir a própria gravi-

dez, no caso de infertilidade involuntária.

Abortos podem compor o planejamento familiar, em cer-

tos sistemas jurídicos. Em virtude de adequado planejamento

familiar, contudo, na verdade evitam-se abortamentos, em lugar

de os estimular. De acordo com levantamento da Organização

Mundial da Saúde (OMS), métodos de contracepção apresen-

tam claros benefícios à saúde, uma vez que a prevenção de gra-

videzes indesejadas resulta na diminuição de mortalidade e

morbidade materna e infantil.

Na estimativa da OMS, fornecer acesso desses métodos a

mulheres em países em desenvolvimento – como o Brasil – que

atualmente deles não dispõem poderia prevenir cerca de 54 mi-

lhões de gravidezes indesejadas, 26 milhões de abortos (dos

quais 16 milhões de abortos inseguros) e 7 milhões de abortos

espontâneos. Também preveniria cerca de 79 mil mortes mater -

nas e 1,1 milhão de mortes infantis ao ano. Os benefícios se-

riam principalmente para adolescentes do sexo feminino, que se

expõem a risco de complicações médicas associadas à gravidez e

que são frequentemente forçadas a comprometer sua educação e

8 MACHADO, Paulo Affonso Leme; PERROTTI, Maria Regina Machado;PERROTTI, Marcos Antônio. Direito do Planejamento Familiar. Revistados tribunais. Vol. 749, p. 46, mar. 1998.

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vida profissional, o que pode gerar empobrecimento e desenvol-

vimento educacional deficiente.9

Embora exista definição legal que remonta a 1996 acerca

do que venha a ser planejamento familiar, é imprescindível con-

siderar outros aspectos jurídicos que envolvem a temática, como

o direito de reprodução e o direito à saúde (particularmente na

esfera sexual), este abrangendo ações e técnicas como insemina-

ção artificial e métodos contraceptivos.

A noção de planejamento familiar, todavia, excede os con-

tornos do art. 2o da Lei 9.263/1996. Abrange o direito à saúde

(tanto da mulher quanto do concepto), em sentido amplo, que

inclui os direitos reprodutivos, e envolve a livre determinação

dos indivíduos. O conceito de planejamento familiar pode

ocupar-se de aspectos éticos, educacionais, econômicos, religi-

osos etc. Exige não só relativa abstenção do Estado, a fim de

evitar ingerências indevidas, mas também sua intervenção posi-

tiva, por meio de políticas públicas voltadas à sua adequada con-

9 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Ensuring human rights in theprovision of contraceptive information and services: guidance and recommendations. ,p. 4-5. Disponível em: < http://zip.net/bbr10Z > ou< http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/102539/1/9789241506748_eng.pdf >; acesso em 18 set. 2015. No original: “Contraception has clearhealth benefits, since the prevention of unintended pregnancies results in asubsequent decrease in maternal and infant mortality and morbidity. Providingaccess to all women in developing countries who currently have an unmet need formodern methods of contraception would prevent 54 million unintended pregnancies,26 million abortions (of which 16 million would be unsafe) and 7 millionmiscarriages; this would also prevent 79 000 maternal deaths and 1.1 millioninfant deaths. This situation would particularly benefit adolescent girls, who are atincreased risk for medical complications associated with pregnancy and who areoften forced to make compromises in education and employment that may lead topoverty and lower educational attainment.”

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cretização, como educação sexual e fornecimento de orientação

e atendimento médico, especialmente obstétrico.

Ao examinarem o art. 226, § 7o, da Constituição, do Brasil

MARIA CELINA BODIN DE MORAES e ANA CAROLINA BROCHADO

TEIXEIRA observam:

O direito ao planejamento familiar, assim, é um direito a serlivremente exercido, mas apenas no sentido de não admitirqualquer ingerência de outrem, estatal ou privada, com vis-tas a restringi-lo ou condicioná-lo, uma vez que a decisãosobre ter ou não prole, seu aumento ou redução vincula-se àprivacidade e à intimidade do projeto de vida individual eparental dos envolvidos. O papel do Estado aqui, emboraativo, limita-se à função promocional de “propiciar recursoseducacionais e científicos” para seu exercício, de modo aque todos estejam suficientemente informados e conscientesdas maneiras pelas quais podem exercê-lo, respeitados os li-mites legais.10

O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a constitucionali-

dade do art. 5o da Lei de Biossegurança (Lei 11.105, de 24 de

março de 2005), que rege a pesquisa com células-tronco, assentou

que o planejamento familiar se alicerça na dignidade humana e na

paternidade responsável e é fruto de livre decisão do casal. Eis tre-

cho da ementa que espelha o entendimento:11

[...] V – OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AUTONO-MIA DA VONTADE, AO PLANEJAMENTO FAMILIAR EÀ MATERNIDADE. A decisão por uma descendência ou fili-

10 MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado.Comentário ao art. 226. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gil-mar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários àConstituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2.122.

11 STF. ADI 3.510/DF. Rel.: Min. AYRES BRITTO. 29 maio 2008. DJe 96, 28maio 2010; Revista trimestral de jurisprudência, vol. 214, p. 43.

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ação exprime um tipo de autonomia de vontade individualque a própria Constituição rotula como “direito ao planeja-mento familiar”, fundamentado este nos princípios igualmenteconstitucionais da “dignidade da pessoa humana” e da “pater-nidade responsável”. A conjugação constitucional da laicidadedo Estado e do primado da autonomia da vontade privada, naspalavras do Ministro JOAQUIM BARBOSA. A opção do casal porum processo in vitro de fecundação artificial de óvulos é implí-cito direito de idêntica matriz constitucional, sem acarretarpara esse casal o dever jurídico do aproveitamento reprodutivode todos os embriões eventualmente formados e que se reve-lem geneticamente viáveis. O princípio fundamental da digni-dade da pessoa humana opera por modo binário, o quepropicia a base constitucional para um casal de adultos recor-rer a técnicas de reprodução assistida que incluam a fertilizaçãoartificial ou in vitro. De uma parte, para aquinhoar o casal como direito público subjetivo à “liberdade” (preâmbulo da Cons-tituição e seu art. 5o), aqui entendida como autonomia de von-tade. De outra banda, para contemplar os porvindouroscomponentes da unidade familiar, se por eles optar o casal,com planejadas condições de bem-estar e assistência físico-afe-tiva (art. 226 da CF). Mais exatamente, planejamento familiarque, “fruto da livre decisão do casal”, é “fundado nos princí-pios da dignidade da pessoa humana e da paternidade respon-sável” (§ 7o desse emblemático artigo constitucional de no

226). O recurso a processos de fertilização artificial não im-plica o dever da tentativa de nidação no corpo da mulher detodos os óvulos afinal fecundados. Não existe tal dever (incisoII do art. 5o da CF), porque incompatível com o próprio insti-tuto do “planejamento familiar” na citada perspectiva da “pa-ternidade responsável”. Imposição, além do mais, queimplicaria tratar o gênero feminino por modo desumano oudegradante, em contrapasso ao direito fundamental que se lêno inciso II do art. 5o da Constituição. Para que ao embrião invitro fosse reconhecido o pleno direito à vida, necessário seriareconhecer a ele o direito a um útero. Proposição não autori-zada pela Constituição. [...].

Certo é que o STF, em contexto específico, diferente do tra-

çado nesta ação, fixou, tal qual prevê a Constituição de 1988, ser o

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planejamento familiar decisão daqueles que se unem em socie-

dade familiar.

Todavia, os conceitos de planejamento familiar e planeja-

mento reprodutivo são distintos. Na verdade, o primeiro envolve o

segundo, como uma de suas facetas, mas, como dito, vai além.

A acepção de planejamento familiar não se restringe à pro-

criação. Planejar os aspectos referentes à família envolve resoluções

como a decisão por uma descendência, ter ou não filhos, quantos

gerar, definir a diferença de idade entre eles, a programação eco-

nômica relacionada à criação e à educação deles etc. É clara a di-

ferenciação entre as acepções de planejamento familiar e a

capacidade reprodutiva ou a intenção de procriação.

Dispensa explicações que o direito ao planejamento familiar

deve ser livremente exercido por indivíduos maiores e capazes,

no sentido de não se admitir interferências de outrem, seja de

outro indivíduo, entidade ou do Estado. É a determinação con-

tida na parte final do art. 226, § 7o , da CR: “[...] o planejamento

familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado pro-

piciar recursos educacionais e científicos para o exercí-

cio desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por

parte de instituições oficiais ou privadas”.

Existem importantes discussões jurídicas e filosóficas

acerca da esterilização de pessoas incapazes, mas elas não estão

em causa neste processo.

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Decisões referentes a gerar prole ou não, inseridas no di-

reito ao planejamento familiar, e este próprio, deverão ser exer-

cidas sem restrições ou condicionantes incompatíveis com as

garantias constitucionais, por estarem estritamente ligadas à pri-

vacidade e à intimidade do projeto de vida individual e parental

dos envolvidos, além de à autonomia de sua vontade e ao di-

reito à saúde.

Planejamento familiar existirá também nos casos em que a

família optar por não ter filhos biológicos. Mesmo após esteriliza-

ção voluntária ou ante incapacidade para reprodução, podem os

membros da família optar por filhos, por meio de adoção. Esterili-

zação voluntária não inviabiliza planejamento familiar. É tão legí-

tima quanto qualquer outra a decisão de não gerar descendência

biológica, mas adotar crianças para constituir o ente familiar.

Por conseguinte, esterilização voluntária realizada por von-

tade única daquele que se submeterá ao procedimento cirúrgico,

ou seja, sem consentimento do cônjuge ou companheiro(a), não

se incompatibiliza com o planejamento familiar, tutelado pelo art.

226, § 7o, da CR.

A ingerência estatal pretendida pela Lei 9.263/1996 sofre sé-

rias críticas doutrinárias quanto ao que deveria ser função do Es-

tado – promover mecanismos para assegurar a livre escolha

pertinente à filiação – e tornou-se usurpação ao direito de dispo-

sição do próprio corpo, consubstanciada na exigência de consenti-

mento de cônjuge ou companheiro(a) para realizar esterilização

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voluntária. MARIA CELINA BODIN DE MORAES e ANA CAROLINA

BROCHADO TEIXEIRA advertem:

Entretanto, a Lei 9.263/96, criada com o objetivo de regular oplanejamento familiar, parece ter ido além do papel destinadoao Estado na circunstância. A lei tem o grave defeito daexcessiva ingerência na vida pessoal, ao criar parâme-tros para o exercício do direito planejamento familiarque em muito ultrapassam o papel ativo do Estado,como estabelecido pelo § 7o do art. 226 da Constitui-ção. Exemplo disto é a exigência de consentimento ex-presso do cônjuge para que haja esterilização dooutro, caso se dê na constância do casamento, segundodispõe o § 5o do art. 10 da referida lei, em flagrante li-mitação ao direito de disposição do próprio corpo. Na garantia do direito fundamental ao livre planejamento fa-miliar, mais uma vez pode-se comprovar o quanto a concep-ção sócio-jurídica de família mudou. E mudou seja do pontode vista de seus objetivos, não mais exclusiva ou essencial-mente de procriação, seja do ponto de vista da proteção quelhe é atribuída: a tutela jurídica não mais é concedida à famíliaem si mesma, como se fora portadora de um interesse superiorou supraindividual, mas à família como um grupo social, comopessoas que conjuntamente constroem um ambiente no qualpossam, individualmente, cada uma, melhor se desenvolver (CF,art. 226, § 8o, a contrario senso).12

A ordem constitucional impõe ao Estado o dever de desen-

volver instrumentos que priorizem as manifestações de vontade

daqueles que formem núcleo familiar. Nesse campo, não lhe cabe

tolher ou rechaçar escolhas legítimas feitas pelos indivíduos capa-

zes, como seres autodeterminantes que são, sob propósito de res-

12 MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado.Comentário ao art. 226. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gil-mar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários àConstituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2.122. Semdestaque no original.

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guardar a família (até porque o próprio art. 2o, parágrafo único, da

lei prevê as ações ali previstas não podem ser empregadas para

controle demográfico). Incumbe-lhe promover mecanismos que

possibilitem o êxito das escolhas dos cidadãos, tanto no sentido da

reprodução, quanto no da esterilização, consoante a parte final do

art. 226, § 7o , da CR.

MARCELO DE OLIVEIRA MILAGRES ressalta caber ao Estado atuar

de forma protetiva e não restritiva quanto às expressões de von-

tade dos indivíduos, nessa matéria:

O Estado reconhece a liberdade de escolha do modelo familiare, em homenagem a essa escolha, disciplina e determina seusefeitos. Essa regulação é mais protetiva que restritiva.Não se trata de substituir-se às pessoas e à sua liber-dade, mas sim de reconhecer efeitos válidos a ex-pressões sérias e refletidas de vontade. Nesse âmbito,reconhece-se a pluralidade do casamento, da união estável, dafamília monoparental, anaparental, unipessoal, da união homo-afetiva. 13

Os bens jurídicos protegidos nas relações jurídicas familiares

estão diretamente ligados à dignidade de cada membro. Pais con-

cebem filhos pela liberdade do planejamento familiar. A tutela ju-

rídica não é concedida à família em si, que não possui interesse

específico, mas aos indivíduos que a compõem, como forma de

proteção à dignidade do ser humano.

13 MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Família e liberdade: direito pessoal edireito patrimonial de família. Revista de Direito Privado. Vol. 56, p. 297, out.2013. Sem destaque no original.

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No tocante à evolução das relações existentes entre os cônju-

ges e companheiros e as repercussões sociais decorrentes do grupo

familiar, são pertinentes as observações de SÉRGIO GISHKOW

PEREIRA:

Na medida em que as relações entre os cônjuges se funda-mentarem no diálogo racional, no convencimento argu-mentativo, no debate dialético das ideias, na exposiçãosincera das emoções, na comunicação livre de coercitivi-dade, no agir fundamentado e não arbitrário, a famíliaterá real solidez e – o que é muito importante – produziráou reproduzirá, em seu interior, as condições únicas parauma estruturação social mais igualitária, mais justa e demaior acatamento à dignidade humana. A prepotência, quenão cabe ao Direito legitimar, acarreta o descaso pelas necessidadese problemas do próximo, a saída fácil e irresponsável da palavra au-toritária definitiva, a opressão que fermenta a violência, o desres-peito às idiossincrasias alheias, o egocentrismo e a patologiapsíquica. A relação autoritária destrói os vínculos de afeição, desdelogo contaminando os filhos, com a vivência de situações mórbi-das; através dela até subsiste, muitas vezes, a convivência, mas pelamaneira artificial, forçada, inautêntica e doentia. A guerra familiarrepete e fomenta as guerras entre os povos e coletividades. Quemnão respeita o próximo na relação familiar atuará da mesma formana relação social em geral.

MARIA BERENICE DIAS, ao tratar do novo modelo de família e

das famílias plurais, anota:

O novo modelo de família funda-se sobre os pilares da reper-sonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo,impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família.Agora, a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens oucoisas que guarnecem a relação familiar. A família-institui-ção foi substituída pela família-instrumento, ou seja,ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento dapersonalidade de seus integrantes como para o cresci-

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mento e formação da própria sociedade, justificando,com isso, a sua proteção pelo Estado.14

A proteção contida na ordem constitucional à família, às de-

cisões do grupo familiar e ao planejamento familiar consubstan-

ciam, em verdade, formas de tutelar a própria dignidade do ser

humano.

III.3 AUTODETERMINAÇÃO COMO EXPRESSÃO DA DIGNIDADE HUMANA.

PLANEJAMENTO FAMILIAR E LIBERDADE INDIVIDUAL

A dignidade do ser humano, consagrada pelo art. 1o, III, da

Constituição da República,15 revela-se, entre outras perspectivas,

na capacidade de autodeterminação da vontade, a qual, por sua

vez, é componente da liberdade humana. Materializada estará a

dignidade humana na medida em que se garanta ao indivíduo

conduzir-se segundo o próprio entendimento.

Para muitos autores, dignidade do ser humano é princípio

que contém fim em si mesmo, considerado até metanorma:

A dignidade humana é o próprio fundamento ético dodireito. A pessoa humana é, em si mesma, um valor do qualdecorrem outros atributos atinentes à pessoa, individual ou co-letivamente, como os primados da liberdade e da isonomia, aosquais se agregam outras conquistas históricas definidas como odireito à vida, à intimidade e à honra. A dignidade humana,

14 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6. ed. São Paulo: Re-vista dos Tribunais, 2010. p. 43. Sem destaque no original.

15“Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúveldos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em EstadoDemocrático de Direito e tem como fundamentos: [...]III – a dignidade da pessoa humana; [...]”.

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como valor máximo do sistema jurídico, permite a re-alização plena da pessoa, nos diversos espaços existen-ciais (como na família, na empresa, no sindicato, nauniversidade ou em quaisquer microcosmos contratu-ais), de forma isonômica, respeitando-se a ótica da solidarie-dade constitucional, tanto nas relações de Direito Públicoquanto nas de Direito Privado. Afinal, a finalidade do Estado étornar os homens felizes, isto é, virtuosos e, para a consecuçãodesse objetivo, o principal instrumento são as normas jurídicas.16

Ao consagrar a dignidade da pessoa humana como um dosfundamentos do Estado Democrático (e social) de Direito (art.1o, III), a CF de 1988, além de ter tomado uma decisão funda-mental a respeito do sentido, finalidade e da justificação dopróprio Estado e do exercício do poder estatal, reconheceu ca-tegoricamente que o Estado existe em função da pessoa hu-mana, e não o contrário. Da mesma forma, não foi poracidente que a dignidade não constou do rol dos direitos e ga-rantias fundamentais, tendo sido consagrada em primeira linhacomo princípio (e valor) fundamental, que, como tal, deve ser-vir de norte ao intérprete, ao qual incumbe a missão de asse-gurar-lhe a necessária força normativa.[...]Importa considerar, neste contexto, que a dignidade dapessoa humana desempenha papel de valor-guia nãoapenas dos direitos fundamentais, mas de toda a or-dem jurídica (constitucional e infraconstitucional), ra-zão pela qual, para muitos, se justifica a caracterizaçãoda dignidade como princípio constitucional de maiorhierarquia axiológica.17

Com relação à universalidade dos direitos humanos, atenta-seque a Constituição de 1988, ao eleger o valor da dignidadehumana como princípio fundamental da ordem constitucional,compartilha da visão de que a dignidade é inerente à condição

16 CAMBI, Eduardo. Direito Civil Constitucional. Revista de Direito Privado.Vol. 61/2015, p. 13-35, jan.-mar. 2015.

17 SARLET, Ingo Wolfgang. Comentários ao art. 1o, III. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F; SARLET, _______, Lenio L. (coords.)Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p.124 e 125. Sem destaque no original.

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de pessoa, ficando proibida qualquer discriminação. O textoenfatiza que todos são essencialmente iguais e assegura a invio-labilidade dos direitos e garantias fundamentais.18

O reconhecimento da dignidade da pessoa humana é o pilarde interpretação de todo o ordenamento jurídico e toda aConstituição Federativa do Brasil. O princípio da digni-dade humana é o fundamento filosófico e jurídico dosdireitos humanos e se expressa nestes direitos, funcionatambém como metanorma, indicando como devemser interpretadas e aplicadas as outras normas e princí-pios, em especial as normas definidoras de direitosfundamentais, ampliando o seu sentido, reduzindo-osou auxiliando em conflitos entre direitos fundamentais.A dignidade da pessoa humana é a chave de interpre-tação material das demais normas jurídicas.19

A dignidade humana fundamenta o sistema positivo de nor-

mas e, portanto, serve de vetor de interpretação para os demais

preceitos contidos na Constituição da República. Uma das di-

mensões fundamentais da dignidade é o direito à liberdade, que se

manifesta pela autodeterminação.

Nessa linha de raciocínio, faz-se necessário revisitar o art.

226, § 7o, da CR, nos termos do qual, “fundado nos princípios da

dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o pla-

nejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado

propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse

18 PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos humanos no sistema constitu-cional brasileiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Vol. 45. p.216, out. 2003. Sem destaque no original.

19 MAGALHÃES, Leslei Lester dos Anjos. O princípio da dignidade da pessoahumana e o direito à vida. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 107. Sem destaque nooriginal.

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direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições

oficiais ou privadas”.

Planejamento familiar é, sem dúvida, decisão autônoma das

famílias, mas, em passo antecedente, se funda nos princípios da

dignidade humana e da paternidade responsável. O planejamento

familiar extrai-se da dignidade do ser humano e de direitos funda-

mentais essenciais, como o direito à intimidade e à saúde, em suas

várias dimensões (física, mental, sexual etc.). Por isso, o exercício

do direito ao planejamento familiar não pode ser interpretado de

modo a limitar o direito que lhe dá suporte de validade, que tem

por facetas a disposição do próprio corpo e a liberdade de repro-

dução.

INGO SARLET, ao analisar o conteúdo e o alcance jurí-

dico-normativo do princípio da dignidade humana, no aspecto

pertinente à autodeterminação, ou seja, à possibilidade de a pessoa

determinar-se conforme sua vontade, na compreensão do Su-

premo Tribunal Federal, observa:

Para além das dimensões já apresentadas e em diálogo com asmesmas, [é] indispensável compreender – até mesmo pela re-levância de tal aspecto para os direitos e deveres humanos efundamentais – que a dignidade possui uma dimensão dúplice,que se manifesta por estar em causa simultaneamente a expres-são da autonomia da pessoa humana (vinculada à ideia de au-todeterminação no que diz com as decisões essenciais arespeito da própria existência), bem como da necessidade desua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Es-

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tado, especialmente – quando ausente a capacidade de autode-terminação.20

A dignidade do ser humano, sob o ângulo da autodetermina-

ção, aparentemente encontraria relativizações no art. 13 do Có-

digo Civil (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002), que dispõe:

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposi-ção do próprio corpo, quando importar diminuição perma-nente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido parafins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

A redação do art. 13 do CC, todavia, sofre duras críticas dou-

trinárias, ante a contingência de comportamentos próprios da vida

cotidiana (práticas desportivas potencialmente lesivas, submissão a

cirurgias estéticas eletivas etc.) e a necessidade de exigência mé-

dica, para fins de disposição do próprio corpo, quando tais condu-

tas possam resultar em diminuição permanente da integridade

física. Relativamente ao art. 13, advertem CRISTIANO CHAVES e

NELSON ROSENVALD:

Dispõe, expressamente, o art. 13 do Codex que “salvo por exi-gência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo,quando importar diminuição permanente da integridade física,ou contrariar os bons costumes”. Cuida-se de visível proteçãoao corpo vivo, reconhecendo a possibilidade (ampla) do titulardele dispor, desde que não cause diminuição permanente daintegridade física e não gere ofensa aos bons costumes. [...]

20 SARLET, Ingo Wolfgang. Notas sobre a dignidade da pessoa humana najurisprudência do Supremo Tribunal Federa. In: SARMENTO, Daniel;______ (Coords.). Direitos fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balançoe crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2011, p. 46.

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Críticas justificadas são disparadas contra o dispositivo legal re-ferido. De um lado, a expressão bons costumes é um conceitovago, impreciso, não sendo crível que sirva de elemento mode-rador da disposição do próprio corpo. A outro giro, não parecerazoável que o titular somente possa diminuir permanente-mente a sua integridade física quando houver autorização mé-dica. Vale, aqui, a lembrança de que a pessoa que se dedica aosesportes marciais, como MMA, enfrentando golpes certeirosem seu corpo pode sofrer (e, ordinariamente sofre!) diminui-ção permanente da integridade física, sem qualquer exigênciamédica. Noutro exemplo, a pessoa que se submete a uma ci-rurgia plástica estética, retirando uma costela, para fins exclusi-vamente de embelezamento, também diminui a suaintegridade física sem necessidade terapêutica.[...]Em sendo assim, demonstra-se a impropriedade do dispositivolegal em referência, ao impor a exigência médica como um fa-tor necessário para o ato de disposição permanente da integri-dade física. Efetivamente, não parece existir interesse público no controlede atos (genéricos) de disposição de integridade física. A regrahá de ser a autonomia privada, com um controle estatalquando houver uma periclitação da dignidade do titular.21

Dignidade humana é inconcebível, se apartada de autodeter-

minação, conforme acertadamente explicita FABIO ULHÔA COELHO:

A declaração de direitos fundamentais da Constituição abrangediversos direitos que radicam diretamente no princípio da dig-nidade do homem – princípio que o art. 1o, III, da Constitui-ção federal toma como estruturante do Estado democrático debrasileiro. A discussão sobe de ponto quando consideramos que o princí-pio da autonomia da vontade, mesmo que não conste literal-mente na Constituição, acha no Texto Magno proteção paraseus aspectos essenciais. A Carta de 1988 assegura uma li-berdade geral no caput do seu art. 5o e reconhece o va-

21 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de DireitoCivil. Parte Geral e LINDB. 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2013, vol. 1, p.210-212.

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lor da dignidade humana como fundamento do Estadobrasileiro (art. 1o, III, da CF) – dignidade que não seconcebe sem referência ao poder de autodeterminação.Tudo isso confirma o status constitucional do princípio da au-tonomia do individuo.22

A dignidade da pessoa vincula-se à potencialidade de ela au-

todeterminar-se livremente. Ao Estado incumbe a instituição de

mecanismos jurídicos capazes de resguardar manifestações de von-

tade decorrentes da autodeterminação, dentro de certos limites,

pois, em qualquer agrupamento humano, ninguém possui liber-

dade absoluta.

J. J. CANOTILHO, com precisão, repisa que o Estado de Direito

é aquele que preserva a autodeterminação da pessoa como ali-

cerce:

A expressão Estado de direito é considerada uma fórmulaalemã (Rechtsstaat). Ela aponta para algumas das ideias funda-mentais já agitadas na Inglaterra, Estados Unidos e França.Acrescenta-lhes, porém, outras dimensões. O Estado domes-ticado pelo direito é um Estado juridicamente vincu-lado em nome da autonomia individual ou, se sepreferir, em nome da autodeterminação da pessoa. É aautonomia individual que explica alguns dos postula-dos nucleares do Estado de direito de inspiraçãogermânica. Desde logo, o Estado de direito, para o ser verda-deiramente, tem de assumir-se como um Estado liberal de di-reito. Contra a ideia de um Estado de polícia que tudo regulaa ponto de assumir como tarefa própria a felicidade dos súbdi-tos, o Estado de direito perfila-se como um Estado de limites,restringindo a sua acção à defesa da ordem e segurança públi-cas.23

22BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso avançado de direito constitucional.Poder constituinte e direito fundamentais. IDPonline, 2009. p. 42 e 45. Semdestaque no original.

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Nessa correta linha de raciocínio, ao Estado de Direito não

cabe, sob pena de afastar-se de seu centro de identidade, impor

restrições à autodeterminação da pessoa em seu aspecto mais es-

sencial, qual seja, a liberdade de dispor do próprio corpo.

Não pode o exercício de direito constitucionalmente garan-

tido, como o direito ao planejamento familiar, relativizar de forma

severa o núcleo essencial que caracteriza a pessoa humana no Es-

tado de Direito, que é sua dignidade. A autodeterminação do indi-

víduo inserido em organização familiar de qualquer espécie não

pode pender de aprovação de cônjuge ou parceiro(a). A Constitui-

ção do Brasil não autoriza, muito menos exige, essa verdadeira ali-

enação da autodeterminação.

Persiste impropriedade no ordenamento jurídico na crimina-

lização da esterilização voluntária. O art. 15 da Lei 9.263/1996,

cuja redação não se reveste de clareza quanto aos possíveis sujeitos

ativos da conduta criminosa, prevê pena de reclusão, de dois a oito

anos, no caso de esterilização cirúrgica em desacordo com o art.

10, inclusive a esterilização voluntária sem consentimento do côn-

juge ou companheiro.24

23 CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado de Direito. Disponível em:< http://www.libertarianismo.org/livros/jjgcoedd.pdf >. Acesso em 3jun. 2015.

24 “Art. 15. Realizar esterilização cirúrgica em desacordo com o estabelecidono art. 10 desta Lei. Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, se a prática não constituicrime mais grave.Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço se a esterilização forpraticada:

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A conformação do ordenamento jurídico impõe à mulher

dupla vedação à autodeterminação física. Não há pretensão de dis-

cutir neste processo a constitucionalidade da interrupção da gesta-

ção, mas tal proibição, assim como a redação da Lei 9.263/1996

no dispositivo impugnado e no art. 15, tolhe tanto a mulher

quanto o homem na disposição do próprio corpo.

Considerando as históricas e multifacetadas discriminações

contra a mulher nos mais diversos setores sociais, parece certo

concluir que será ela também a mais cerceada em sua autodeter-

minação e na capacidade de exercer o direito constitucional ao

planejamento familiar, caso prevaleça a interpretação de que só

poderia realizar esterilização com anuência do parceiro. Conse-

quência disso serão centenas de milhares de gravidezes indesejadas,

com todos os seus efeitos nefastos, inclusive do ponto de vista sa-

nitário.

Trabalho publicado em conceituada revista científica aponta

que gravidezes indesejadas levadas a termo têm maior probabili-

dade de receber cuidados pré-natais inadequados ou tardios e de

gerar piores consequências para a saúde, como baixo peso do re-

I – durante os períodos de parto ou aborto, salvo o disposto no inciso IIdo art. 10 desta Lei.II – com manifestação da vontade do esterilizado expressa durante a ocor-rência de alterações na capacidade de discernimento por influência de ál-cool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mentaltemporária ou permanente;III – através de histerectomia e ooforectomia;IV – em pessoa absolutamente incapaz, sem autorização judicial;V – através de cesária indicada para fim exclusivo de esterilização”.

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cém-nascido e maior mortalidade e morbidade infantil e materna,

em comparação com a gravidez planejada.25

Diante desse notório e inegável fato social – não parece ne-

cessário demonstrar as discriminações de que mulheres são vítimas

diárias no Brasil –, o qual subjaz à aplicação do art. 10, § 5o, da Lei

9.263/1996, o requisito de autorização do parceiro para que mu-

lheres possam realizar esterilização choca-se também com o prin-

cípio constitucional da igualdade (art. 5o, caput) e com os objetivos

da República de construir sociedade justa e solidária, de reduzir

desigualdades sociais e de promover o bem de todos, sem precon-

ceitos de sexo e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3o,

I, III e IV).

Criminalizar esterilização voluntária realizada sem consenti-

mento do cônjuge ou companheiro impõe à mulher situação de

restrição extrema. Com isso, ela se vê sob a dupla ameaça da cri-

minalização do aborto e da esterilização sem consentimento do

cônjuge, na constância da sociedade conjugal. A situação consubs-

tancia grave violência sociojurídica e até psicológica, inaceitável

anacronismo jurídico, porquanto o Estado, ao criminalizar ambas

25 RODRÍGUEZ, María; SAY, Lale; TEMMERMAN, Marleen. Familyplanning versus contraception: what’s in a name? In: The Lancet GlobalHealth, vol. 2, n. 3, e131-e132, March 2014. No original: “Women withunintended pregnancies that are continued to term are more likely to receiveinadequate or delayed prenatal care and have poorer health outcomes, such as lowinfant birthweight, infant mortality, and maternal mortality and morbidity, thanhave those with planned pregnancies.” Disponível em< http://zip.net/bpr4jv > ou< http://www.thelancet.com/journals/langlo/article/PIIS2214-109X%2813%2970177-3/fulltext >. Acesso em 23 set. 2015.

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as condutas – o aborto e a esterilização voluntária realizada sem

consentimento de terceiro –, impõe reprodução não planejada aos

casais e colide frontalmente com o direito constitucional a plane-

jamento familiar.

Com efeito, impor procriação não se coaduna com o art.

226, § 7o, que repele interferência, pública ou privada, quanto ao

planejamento familiar, o qual, como visto, envolve a programação

reprodutiva.

Poder-se-ia objetar que, na constância de união familiar, o

planejamento da descendência depende de comunhão de entendi-

mento, pois decisão unilateral de um dos componentes da família

de praticar esterilização pode frustrar expectativas legítimas do(a)

outro(a).

Bem analisada, todavia, a objeção nada prova, pois serve

igualmente à hipótese oposta: nenhum dos componentes da estru-

tura familiar pode ser obrigado a procriar contra a vontade. É pre-

ciso que ambos desejem gerar prole, até porque a empresa de

criá-lo(s) e educá-lo(s) demanda forte comprometimento físico,

emocional e econômico. Se é certo que pode frustrar um deles a

decisão do outro de fazer-se esterilizar, será possivelmente muito

mais negativa nas consequências a imposição de gravidez indese-

jada, tanto para o pai ou mãe quanto, em muitos casos, sobretudo,

para a criança.

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Ademais, esterilização é, em muitos casos, decisão reversível,

ainda que custosa e sem garantia de sucesso. Ainda que irreversível

a esterilização, subsiste a possibilidade de adotar. Gravidez que

gere pessoa viva, contudo, é legalmente irreversível, porquanto não

se pode cogitar de eliminar filho nascido vivo por arrependi-

mento de um dos pais.

Na hipótese de discordância insuperável de um dos cônjuges

ou companheiros frente à decisão do(a) outro(a) de realizar esteri-

lização, a solução menos grave e a única compatível com as garan-

tias constitucionais de dignidade e liberdade é a de que eles

ponham fim à relação familiar, não a de impor gravidez ao outro,

por decisão de apenas um. Na Bélgica, por exemplo, LELEU e

GENICOT comentam acórdão da Corte de Cassação daquele país e

anotam que o direito à vida e à integridade física, como direitos

da personalidade, levam a que o consentimento da pessoa interes-

sada seja necessário para validar esterilização contraceptiva e a que,

de outra parte, somente ela seja chamada a dar esse consenti-

mento; o direito ao domínio sobre o próprio corpo está consa-

grado em matéria de esterilização voluntária, conquanto isso possa

ter repercussões sobre o casamento.26

26 LELEU, Yves-Henri; GENICOT, Gilles. Autonomie corporelle de lapersonne et responsabilité médicale. Revue de jurisprudence de Liège, Mons etBruxelles. 2002/13, 29 mar. 2002, p. 537 e . Disponível em< http://zip.net/bfr3Jv > ou< http://orbi.ulg.ac.be//bitstream/2268/67857/1/2002.pdf >. Acesso em23 set. 2015. No original: “[...] la Cour de cassation, ramenant le débat dansles frontières du droit national, estime que le droit à la vie et à l’intégrité physique,en tant que droits de la personnalité, suffisent à fonder juridiquement les principesselon lesquels, d’une part, le consentement de la personne est nécessaire pour valider

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Em pesquisa sobre o tema no panorama internacional, abran-

gendo dezenas de países, já em 1977 JEAN-PAUL SARDON verificou

que muito poucos exigiam consentimento do cônjuge para esteri-

lização voluntária (na época, apenas Dinamarca e Japão) e que a

tendência já era de abandono dessa condição. Citou decisão da

Corte Suprema de Oklahoma, nos EUA, segundo a qual “toda

mulher casada tinha o direito fundamental à saúde e, por conse-

quência, o consentimento do marido não era mais necessário em

caso de esterilização voluntária” e, mais, que a ausência de fertili-

dade da mulher não poderia bastar para romper o vínculo do ca-

samento.27 E completa o autor:

[...] É o que propõe também a Federação Internacional para oPlanejamento Familiar como base de revisão das legislações ouregulamentações existentes: “toda pessoa tem o direito defazer-se esterilizar sem o consentimento prévio de seu côn-

sa stérilisation contraceptive et, d’autre part, elle seule est appelée à donner ceconsentement.” “Si le droit du patient à la maîtrise de son corps est consacré enmatière de stérilisation volontaire, les répercussions éventuelles de son initiative surcertains de ses proches n’échappent pas à toute sanction juridique. Ainsi, comme lerappelle opportunément la Cour de cassation dans l’arrêt commenté, si le patientest marié, sa stérilisation volontaire peut ‘constituer un manquement aux devoirsrespectifs des époux, voire une cause de divorce’.”

27 SARDON, Jean-Paul. La stérilisation dans le monde. I. Aperçus médicauxet législatifs. Revue et synthèse. In: Population, 32e année, n. 2, 1977, p.411-437. Disponível em < http://zip.net/bkr3SM > ou< http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/pop_0032-4663_1977_num_32_2_16527 >. Acesso em 24 set. 2015. No original: “Ilsemble que nous assistions aujourd’hui à l’abandon de cette dernière clause. Déjàla Cour Suprême d’Oklahoma a décidé que le consentement du mari n’était plusrequis en cas de stérilisation de la femme; déclarant que « toute femme mariée avaitle droit fondamental à la santé et que par conséquent le consentement du marin’était plus nécessaire en cas de stérilisation volontaire », elle reconnaissait quel’absence de fertilité d’une femme ne pouvait suffire à rompre le lien du mariage.[...]”.

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juge, de acordo com o princípio da liberdade de escolha ga-rantido pela maioria das constituições”.28

Entendimento de que a decisão de esterilização deve partir

de ato voluntário, informado e autônomo é também a posição das

agências do sistema das Nações Unidas que lidam com o tema,

como se vê de declaração conjunta divulgada em 2014.29 Nela,

entre os princípios para o fornecimento de serviços médicos de

esterilização, se defende o seguinte:

Autonomia na decisão

Respeito à dignidade e à integridade física e mental de umapessoa incluem propiciar-lhe a oportunidade de fazer escolhasreprodutivas autônomas (40, § 22; 114, art. 23; 167, art. 16). Oprincípio da autonomia, expressado mediante decisão integral,livre e informada, é tema central na Ética Médica e é incorpo-rado ao regime dos Direitos Humanos (168, 169). As pessoasdevem estar aptas a escolher e a recusar a esterilização. Respei-tar a autonomia exige que qualquer orientação, aconselha-mento ou informação dada por profissionais de saúde, poroutros profissionais e por membros da família deve ser nãocompulsória (119), de forma a permitir aos indivíduos tomardecisões que sejam as melhores para si, com o conhecimentode que esterilização é procedimento permanente e de que ou-

28 Sardon, obra citada, p. 431. No original: “C’est ce que propose aussi laFédération internationale pour le Planning familial comme base de révision deslégislations ou réglementations existantes : « toute personne a le droit de se fairestériliser sans le consentement préalable de son époux en accord avec le principe dela liberté de choix garantie para la plupart des constitutions ».”

29 Trata-se de declaração conjunta do ACNUDH (Alto Comissariado daONU para os Direitos Humanos), da ONU Mulheres (Entidade dasNações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento dasMulheres), da UNAIDS (Programa Conjunto das Nações Unidas sobreHIV/AIDS), do PNUD (Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento), do UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas),do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e da OMS(Organização Mundial da Saúde).

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tros métodos não permanentes de controle da fertilidade sãodisponíveis. [...]Exigir consentimento ou autorização de terceiro (inclusive decônjuge, parceiro, profissional médico ou autoridade) para es-terilização contraceptiva compromete a capacidade de decidire o desfrute de direitos humanos. Ao decidir a favor ou contraesterilização, um indivíduo não deve ser induzido por incenti-vos ou forçado por ninguém, independentemente de esta pes-soa ser cônjuge, parente, membro da família, guardião,profissional de saúde ou autoridade (28; 36, § 20; 114, art. 25;136, § 38; 164; 171, § 20; 172, §§ 31 e 32; 173, § 22).30

30 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Eliminating forced, coercive andotherwise involuntary sterilization: an interagency statement. Geneva: WHO,2014. p. 15-16. Disponível em < http://zip.net/blr270 > ou< http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/112848/1/9789241507325_eng.pdf >. Acesso em 23 set. 2015. No original: “Autonomy indecision-makingRespect for dignity and the physical and mental integrity of a person includeproviding that person with the opportunity to make autonomous reproductivechoices (40, para 22; 114, art 23; 167, art 16). The principle of autonomy,expressed through full, free and informed decision-making, is a central theme inmedical ethics, and is embodied in human rights law (168, 169). People should beable to choose and to refuse sterilization. Respecting autonomy requires that anycounselling, advice or information given by health-care providers or other supportstaff or family members should be non-directive (119), enabling individuals tomake decisions that are best for themselves, with the knowledge that sterilization isa permanent procedure and that other, non-permanent methods of fertility controlare available. […]Requiring third party consent or authorization (including from a spouse, partner,medical practitioner or public officer) for contraceptive sterilization compromisesdecision-making authority and the enjoyment of human rights. In making adecision for or against sterilization, an individual must not be induced byincentives or forced by anyone, regardless of whether that person is a spouse, parent,other family member, legal guardian, health-care provider or public officer (28; 36,para 20; 114, art 25; 136, para 38; 164; 171, para 20; 172, paras 31 and 32;173, para 22).”Nota 40 citada no texto: “General recommendation no. 24: Article 12: womenand health. New York, United Nations Committee on the Elimination ofDiscrimination against Women, 1999 (contained in UN DocA/54/38/Rev.1, Chapter I).”Nota 114 citada no texto: “Convention on the Rights of Persons withDisabilities. Adopted 13 December 2006, entered into force 3 May 2008.New York, United Nations General Assembly, 2006 (UN Doc

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Em suma, o exercício da liberdade e da disponibilidade física

do corpo do indivíduo não deve depender de consentimento de

terceiros, sob pena de ser, sem justificativa legítima, severamente

debilitado.

A/RES/61/106, 2515 UNTS 3).”Nota 167 citada no texto: “United Nations Convention on the Elimination ofAll Forms of Discrimination against Women. New York, United NationsGeneral Assembly, 1979 (contained in UN Doc A/47/38, 1249 UNTS14).”Nota 168 citada no texto: “Faden RR, Beauchamp TL. A history and theoryof informed consent. New York, Oxford University Press, 1986.”Nota 169 citada no texto: “Resolution on Involuntary Sterilisation and theProtection of Human Rights in Access to HIV Services, Banjul, AfricanCommission on Human and People’s Rights, 2013(http://www.achpr.org/sessions/54th/resolutions/260/, accessed 23March 2014).”Nota 119 citada no texto: “Desjardins M. The sexualized body of thechild, parents and the politics of ‘voluntary’ sterilization of people labelledintellectually disabled. In: McRuer R, Mollow A, eds. Sex and disability.Durham, Duke University Press, 2012.”Nota 28 citada no texto: “Concluding observations of the Committee on theRights of Persons with Disabilities: Argentina. Geneva, United NationsCommittee on the Rights of Persons with Disabilities, 2012 (UN DocCRPD/C/ARG/CO/1).”Nota 36 citada no texto: “General comment no. 28: Equality of rights betweenmen and women. Geneva, Human Rights Committee, 2000 (UN DocCCPR/C/21/Rev.1/Add.10).”Nota 114 citada no texto: “Convention on the Rights of Persons withDisabilities. Adopted 13 December 2006, entered into force 3 May 2008.New York, United Nations General Assembly, 2006 (UN DocA/RES/61/106, 2515 UNTS 3).”Nota 136 citada no texto: “Concluding observations of the Committee on theRights of Persons with Disabilities: Spain. Geneva, United NationsCommittee on the Rights of Persons with Disabilities, 2012 (UN DocCRPD/C/ESP/CO/1).”Nota 164 citada no texto: “General comment no. 14: The right to the highestattainable standard of health (art. 12). Geneva, United Nations Committee

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PGR Ação direta de inconstitucionalidade 5.097/DF

IV CONCLUSÃO

Ante o exposto, opina o Procurador-Geral da República

pelo não conhecimento da ação direta e, no mérito, pela proce-

dência do pedido.

Brasília (DF), 24 de setembro de 2015.

Rodrigo Janot Monteiro de Barros

Procurador-Geral da República

RJMB/WS/ALB-Par.PGR/WS/2.081/2015

on Economic, Social and Cultural Rights, 2000 (UN DocE/C.12/2000/4).”Nota 171 citada no texto: “General comment no. 3: HIV/AIDS and the rightsof the child. New York, United Nations Committee on the Rights of theChild, 2003 (UN Doc CRC/GC/2003/03).”Nota 172 citada no texto: “General comment no. 4: Adolescent health anddevelopment in the context of the Convention on the Rights of the Child. NewYork, United Nations Committee on the Rights of the Child, 2003 (UNDoc CRC/GC/2003/4).”Nota 173 citada no texto: “General recommendation no. 21: Equality inmarriage and family relations. New York, United Nations Committee on theElimination of Discrimination against Women, 1994 (contained in UNDoc A/47/38).”

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