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ABRIGOS

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Abrigos: condições das cidades e energia da cultura do António Pinto Ribeiro é um conjunto de ensaios acerca do lugar da arte e da cultura na vida da cidade contemporânea e dos seus habitantes.

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Título: Abrigos: condições das cidades e energia da cultura

© António Pinto Ribeiro e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2004

ISBN 972-795-080-9

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António Pinto Ribeiro

Abrigoscondições das cidades e energia da cultura

Cotovia

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Índice

A minha cidade são cidadesPlanta de cidade a que não falta a paisagemUma cerejeira no jardimA Europa culturalCasas do mundoO problema das grandes superfíciesSobre a necessidade de subsidiar os públicosMulticulturalismo: entre Hong Kong e a MourariaDocumentários, precisam-se!Lisboa’94, dez anos depoisOs herdeirosO poder da culturaArte e democraciaO populismo, a cultura e a democraciaPortugal populista

PATRIMÓNIO CULTURAL VERSUS ARTE CONTEMPORÂNEA:O CONFLITO

“Património Cultural versus Arte Contemporânea:o conflito” (António Pinto Ribeiro)

“Dos Châteaux do Loire ao Castelo de Alcanede”(Vasco Graça Moura)

“Amor é fogo que arde sem se ver” (APR)

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p. 112144485458626973768193

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“Subversão e subvenção (I)” (VGM)“Subversão e subvenção (II)” (VGM)“Subversão e subvenção (III)” (VGM)“Subversão e subvenção (IV)” (VGM)Abrigos

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Origem dos textos

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O conjunto de textos aqui apresentado resulta dare-escrita ou revisão propositada de artigos publicados,ou de conferências realizadas, entre 2000 e 2004.

Agradeço ao Vasco Graça Moura a possibilidade deeditar o conjunto dos seus textos que foram uma res-posta a artigos meus.

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A minha cidade são cidades

A cidade contemporânea é um “work in progress”com as suas obras permanentes: alargamento dos aero-portos, abertura de novas vias de tráfego, construção ereconstrução de prédios, construção de novos bairros ede novas áreas de circulação. Por outro lado, a sua com-posição e combinação social altera-se a um ritmo aluci-nante, através das migrações contínuas e da circulaçãode pessoas: 50% da população do globo vive em cida-des e, neste momento, a cada hora que passa, enquanto60 pessoas chegam a Manila, seis outras abandonamMoscovo.

Cidades erguem-se dentro de cidades. As PetronasTwin Towers em Kuala Lumpur, albergam, nos seus 450metros de altura, 60.000 pessoas e prevê-se em Tóquio aconstrução de uma Ecopolis com 1000 metros de alturae uma capacidade de ocupação da ordem dos 100.000habitantes. A relação com a natureza altera-se: depois deter sido expulsa do espaço urbano pela azáfama urbanis-ta dos anos 70, regressa e parte deste começa a ser desti-nada a zonas naturais, mais ou menos regradas — 20%dos vegetais consumidos em Buenos Aires são produzi-dos em quintas dentro da própria cidade e, em Amster-dão, existem cerca de 20.000 hortas particulares.

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A convivência entre o urbano e o natural introdu-ziu uma nova paisagem geográfica e cultural híbrida,mas nostálgica de uma modernidade humanista. Estanostalgia pôde simultânea e paradoxalmente produzircontextos tão artificiais quanto o Zoo de Singapura ouas praias artificiais da Coreia, construídas nos lofts dosarranha-céus.

A globalização económica e tecnológica dos meiose dos conteúdos das comunicações, específica da for-ma mais recente do capitalismo, actua, produzindo re-sultados contraditórios: por um lado, desenvolvendouma tendência para a homogeneização do mundo me-diante a uniformização gradual dos sistemas de produ-ção; por outro lado, gerando — por um efeito de disse-minação incontrolável — novas situações sociológicas,algumas das quais constituem alternativas ao próprio fenómeno da globalização. Veja-se o aparecimento de novos centros de referência para a criação (Festivais, Bienais, Feiras de Arte) e de novos mecanismos de pro-dução e co-produção internacional. Esta situação modi-ficou radicalmente conceitos como fronteira, identidade,cidadania, urbanidade, jardim, lazer, viagem, férias, ha-bitação, família. Vivemos hoje uma época caracterizadapor um pós-nacionalismo. Nestas cidades contempo-râneas, que sentido poderá, então, adquirir a expres-são “políticas culturais”? Quais os seus limites e as suaspossibilidades?

Há cidades mais estimulantes que outras, para sermais preciso, diferentes cidades produzem estímulos

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diferentes: conforme os movimentos das pessoas nosespaços públicos, as montras das lojas comerciais, oscartazes publicitários, os transportes públicos, a maiorou menor presença de jardins, a moda, as livrarias, osrestaurantes, o tipo de construção das habitações, apresença ou ausência de manchas de água, etc.. Estesestímulos podem ser de ordem afectiva, intelectual,fantasista. Há cidades onde apetece passar o tempo aescrever, outras, pelo contrário, onde só apetece pre-guiçar e fazer prolongar os dias. Há cidades que apete-ce filmar, outras onde a captação de uma só imagem senos afigura como uma violação à sua intimidade. O queé interessante nesta diversidade de estímulos é o factode a estrutura das cidades ser o resultado da combina-ção entre o planeamento urbanístico — de raiz culturalou religiosa — e as decisões individuais dos seus habi-tantes permanentes ou temporários. A diversidade dosperfis das cidades, determinadores, afinal, de memóriasculturais mais ou menos pertinentes, é algo que resultadas mais arcaicas práticas de relação de cada habitantecom o seu espaço de habitação.

Eu não tenho uma cidade ideal. A minha cidadeideal é uma cidade de cidades, uma colagem de lugares.É assim que eu vejo o rio Tejo e as varandas que paraele dão ladeando os arranha-céus de Hong Kong, emespecial o Banco da China de LiPei, nas margens doMar das Pérolas; o Banco faz esquina com a rua das li-vrarias do Rio de Janeiro, a mesma do China Club deParis que, nesta minha cidade, fica defronte dos Jardins

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de Luxemburgo, no centro dos quais se encontra o café Pullmans de Utrecht, com vista para a 9 de Julhode Buenos Aires, morada do Museu de Fotografia deArles, cujo portão abre para as termas de La Garriga,ao lado das quais fica a Biblioteca de Nova Iorque naRua 42, perpendicular à Avenida Eduardo Mondlanedo Maputo, lugar do colorido mercado de Hanói, vizi-nho do mercado de Barcelona e da Piazza de la Signo-ria defronte da esplanada do Sporting Clube de Beiru-te, de onde se avista o Mediterrâneo.

O que me interessa é destacar a energia culturalque recolho das cidades, quer viajando por elas, querreflectindo sobre o que constitui o substrato dessa ener-gia (aquilo que me faz gostar delas, querer nelas viver,conversar, criar). Faço uso da definição grega de “ener-gia”: a energia é a realização e actualização de uma ca-pacidade, normalmente acompanhada de prazer. Pensoque o expoente de uma política cultural seria isto: criaros dispositivos para que a referida energia circulasse,tornando cada cidade um espaço conectado, em perma-nência, com o mundo em mudança. Esta seria a conse-quência de uma atitude cultural cosmopolita.

Trata-se, assim, de encontrar instrumentos de ges-tão da cidade a partir da conciliação entre o planeadoe o criado pelo cidadão. Instrumentos que potenciema criação de narrativas míticas em torno da cidade.Gerir culturalmente cidades é gerir todas as cidadespossíveis no interior de uma cidade. É criar cidadesmíticas, cidades-filme, cidades-imagem: alguém imagi-na Nova Iorque sem o cinema que a filmou? Paris sem

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a literatura? Alguém imagina Londres sem a “pop”?Bombaim sem o cinema melodramático que fabricouou o Rio sem a “bossa-nova”? O objectivo fundamen-tal e primeiro de uma gestão cultural é contribuir paraque a cidade produza fantasias, mais precisamente,constitua ela própria um imaginário, por via do qual,tal como o poeta, nos inspiremos: “Já me esqueci daágua agora só vigio os aviões que chegam ou levantamna pista paralela ao horizonte, pilotos sonolentos, em-brulhados no frio, a voz no microfone destrocada portransparentes rotas rente às nuvens.” (António Fran-co Alexandre, As Moradas 1&2). Em segundo lugar, é facilitar estruturalmente o estabelecimento de con-tactos entre os vários modos de comunicação singula-res e diferenciados da actividade cultural e da criaçãoartística.

Num belo texto de Charles Baudelaire — “Os olhosdos pobres” — dois amantes conversam num café. Portrás da vitrina está um pobre observando o interior doestabelecimento. É, com certeza, um texto de época cujasituação será irrepetível, não porque tenha deixado dehaver pobres — infelizmente não — mas porque esseinstrumento de comunicação entre o interior e o exte-rior dos espaços públicos desapareceu. Nada o substi-tuiu. A montra passou a ser um dispositivo cénico depublicidade, um suporte de informação visual. Muitoem breve a maioria das montras do mundo capitalistaserão um dispositivo de imagens digitais que constitui-rão um outro livro de imagens do mundo. O que fazer?

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Paul de Man alerta-nos para este novo mundo erecomenda uma leitura crítica: “muito embora tenha-mos sido tradicionalmente acostumados a ler a litera-tura por analogia com as artes plásticas e com a músi-ca, temos agora de reconhecer a necessidade de ummomento linguístico, não perceptual, na pintura e namúsica (eu acrescentaria nas imagens) e de aprender aler imagens em vez de imaginar o sentido.” (Paul deMan, A Resistência à Teoria). Aprender a ler as imagensdas cidades é uma exigência que hoje se impõe ao cida-dão. Ensinar a lê-las é um imperativo que se coloca aosseus poderes, com o risco de, ao negligenciá-lo, desen-volverem novas formas de exclusão assentes num novotipo de iliteracia. Para tanto é urgente criar pedagogiasde leitura das imagens tal como se criou o ensino pú-blico da escrita e da leitura.

Um outro instrumento de política cultural é a praça. O fundamento da democracia, a origem do espaço

público é a ágora grega: lugar de discussão e de argu-mentação, cuja tradição de comunicação haveria de es-tender-se ao teatro e à via pública. A tragédia grega só écompreensível no contexto da instância de criação demitologias colectivas e de regeneração comunitária quefoi o teatro grego, ou da importância exercida por“instituições” como a Academia e o Liceu, onde Aris-tóteles produziu filosofia.

As praças permaneceram: as de Chirico, oníricas,fantasmagóricas, espaços de interrogação do ser; as pra-ças renascentistas que instauraram a modernidade onde

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a beleza se expõe; a Place des Voges, ou a praça deMarraquexe, arquétipo do espaço público moderno.

Haverá espectáculo mais bonito que o da inteligên-cia? Imagem mais agradável que a de pessoas conver-sando sobre temas que podem ser desportivos, filosófi-cos ou, simplesmente, o quotidiano? As praças são a ra-zão de uma cultura democrática e a sua frequência ésintoma claro de democracia. Pelo contrário, a interdi-ção do acesso às praças ou a sua regimentação é típicados governos antidemocráticos. Não é por acaso queTianamen, a praça de Tianamen, é um ícone da imposi-ção de limites à cidadania democrática.

Há ainda outros modos de limitação das liberdadesculturais, sob a forma de fortalezas que expressam omedo, a discriminação social e uma tendência tribal pa-ra o autismo. O condomínio, materialização exemplardestas fortalezas, representa uma cultura do ressenti-mento, bem como uma prática de mimetização do mes-mo, responsável pela exclusão da comunicação culturalcom o outro, ou se quisermos, pela exclusão radical daalteridade, figura central e de sustentação da criação ar-tística, constituindo, por isto mesmo, uma das mais aca-badas manifestações contemporâneas de barbárie. Umcaso extremo é o condomínio Alphaville em S. Paulo:um forte fechado, com seiscentos polícias privados etambém privadas rede de estradas e cadeia de televisão.

As cidades podem ser vistas, apreciadas ou avalia-das de avião, de carro particular, a pé ou de transportepúblico e os diversos pontos de vista que delas pode-

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mos ter não são irrelevantes. Há cidades que são belasquando sobrevoadas e se tornam monótonas quandovisitadas a pé. Ao desinteresse suscitado por certa vis-ta aérea de uma cidade, pode contrapor-se o fascíniode um passeio. Qual a relação entre estes dados e polí-tica cultural? Creio que bastante. A maioria das nossascidades tem perdido a escala que seria mais adequadaà sua fruição enquanto espaço, arquitectura, urbanis-mo e coreografia, porque a medida do cidadão pedes-tre — que deveria ser a medida reguladora das cidades— tem sido preterida em favor do automóvel, actualmeio prioritário de ocupação da cidade. Com esta no-va medida, que impõe novos hábitos e altera a quali-dade de vida, alterou-se também a vivência do cidadãona sua cidade. Neste sentido, seria desejável que a ci-dade voltasse a ter como medidas de planeamento opeão e o utente do transporte público. Tal correspon-deria, segundo penso, a uma ligação mais epidérmicacom o espaço, à possibilidade de se instalar durabili-dade no tempo de gozo da cidade. E porque a cidadeé o primeiro espectáculo, a primeira cenografia, a pri-meira dramaturgia de imagens e de volumes, parece--me que a ligação interdisciplinar dos artistas aos arqui-tectos na concepção das casas, das ruas e dos jardins se-ria uma estratégia saudável. Disto são exemplos as ex-periências de construção do Jardim das Ondas, na Ex-po 98, por João Gomes da Silva e Fernanda Fragateiro;a escola Técnica Superior de Eberswalde de Herzog &de Meuren e Thomas Ruff; ou o projecto de reordena-ção do espaço público da Leopold de Waelplaats e da

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zona frontal do Real Museu das Belas Artes em An-tuérpia da autoria de Paul Robbrecht & Hilde Daem eCristina Iglésias.

As práticas artísticas têm-se desenvolvido numadupla direcção: primeiro há uma profusão de objectosde arte, de produtos de diferenciado valor e interesseartístico; em segunda direcção há uma espécie de re-traimento de eficácia — em particular das artes céni-cas e das artes visuais — que transforma parte destaactividade em práticas tribais. O que quer isto dizer?Que a disseminação é o modo contemporâneo de ex-pressão artística e que até por isto a cidade deve arti-cular-se em sítios, de modo a fornecer a possibilidadede instalação destas práticas singulares: contra um mo-delo totalitário de Museu, de Centro Cultural, de Tea-tro, propõe-se o investimento no sítio, na via subterrâ-nea, na escola, no jardim. A distribuição da cultura é aquestão fulcral; gerir cidades é distribuir a energia dasimagens e dos textos do mundo pelos seus habitantes,pondo-os à disposição destes como coisa natural. Ima-gino um projector ambulante reproduzindo imagens etextos, dia-a-dia, todos os dias do ano, pelas praças,bairros, sociedades recreativas, pelos lobbies dos hotéis,nos elevadores, nas obras, nos estaleiros, nos jardins.Sei, no entanto, que numa sociedade de espectáculo, adistribuição depende da possibilidade de rentabilizaçãoimediata do bem cultural em questão. Tal facto cria di-ferenciações gritantes no modo de conjugar distribuiçãoe acesso. Mais uma vez, o que há a considerar, numa

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política cultural urbana, é o estabelecimento de um ca-derno de encargos públicos entre os vários poderes dacidade (os criadores e os distribuidores), de modo a quehaja um conjunto mínimo de circuitos — equipamen-tos, recursos financeiros, instrumentos de promoçãocultural — que constituam uma garantia mínima daacessibilidade dos cidadãos.

Entendam-se, pois, as cidades e respectivas políti-cas culturais segundo um modelo de montagem queparta da importância dos peões, dos transportes públi-cos e da distribuição de bens. Parece-me que a princi-pal finalidade de uma acção cultural consistente sobreum espaço urbano é disponibilizar os meios e os ins-trumentos para que a criação aconteça.

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