abordagem contrastiva na terapia para desvios fonologicos- consideraÇÕes teoricas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CINCIAS DA SADE CURSO DE ESPECIALIZAO EM FONOAUDIOLOGIA

ABORDAGEM CONTRASTIVA NA TERAPIA PARA DESVIOS FONOLGICOS: CONSIDERAES TERICAS

MONOGRAFIA DE ESPECIALIZAO

Karina Carlesso Pagliarin

Santa Maria, RS, Brasil. 2007

ABORDAGEM CONTRASTIVA NA TERAPIA PARA DESVIOS FONOLGICOS: CONSIDERAES TERICAS

por

Karina Carlesso Pagliarin

Monografia apresentada ao Curso de Especializao em Fonoaudiologia, rea de Concentrao em Linguagem, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para concluso do Curso de Especializao em Fonoaudiologia.

Orientadora: Profa. Dra. Mrcia Keske-Soares

Santa Maria, RS, Brasil. 2007

Universidade Federal de Santa Maria Centro de Cincias da Sade Curso de Especializao em Fonoaudiologia

A Comisso Examinadora, abaixo assinada, aprova a Monografia de Especializao

ABORDAGEM CONTRASTIVA NA TERAPIA PARA DESVIOS FONOLGICOS: CONSIDERAES TERICAS

elaborada por Karina Carlesso Pagliarin

como requisito parcial para concluso do Curso de Especializao em Fonoaudiologia COMISO EXAMINADORA:____________________________________________

Mrcia Keske-Soares, Dra. (Presidente/Orientadora) ______________________________________ Helena Bolli Mota, Dra. (UFSM)

______________________________________ Carolina Lisba Mezzomo, Dra. (UFSM)Santa Maria, 17 de janeiro de 2007.

A grandeza no consiste em receber honras, mas em merec-las. Aristteles

AGRADECIMENTOS

Prof Dr.,Mrcia Keske-Soares, coordenadora do curso de ps-graduao e orientadora dessa pesquisa, pelo incentivo, pacincia, fora e contribuies na realizao deste trabalho. Minha sincera admirao pela sua incansvel dedicao, seu amor e seu profissionalismo designados fonoaudiologia. Quero ser que nem voc quando crescer.

s Profs Drs, Helena Bolli Mota, Carolina Lisba Mezzomo e Giovana Bonilha, minha admirao e respeito e principalmente por terem aceitado participar da minha banca de especializao.

As minhas amigas do corao e colegas de profisso, Marizete Ilha Ceron e Gabriele Donicht , pelo companheirismo e incentivo. E por estarem sempre presentes nos momentos em que eu mais precisei.

minha colega, tia e amiga, Clris Pagliarin Oliveira, pelo incentivo e trocas de experincias profissionais.

Ao meu pai, Eduardo, e minha me, Maria Elaine, pelo carinho, incentivo, exemplo de fora e dedicao.

Ao meu irmo, Eduardo, pelos momentos compartilhados, dia-a-dia de alegria e de tristeza, pela fora em momentos difceis.

Ao Eder, pelo incentivo e fora nesta caminhada, por encher a minha vida de alegria e pela compreenso nos momentos em que estive ausente.

A todos aqueles que, de alguma forma, contriburam com a realizao deste trabalho.

RESUMOMonografia de Especializao Curso de Especializao em Fonoaudiologia Universidade Federal de Santa Maria

ABORDAGEM CONTRASTIVA NA TERAPIA DOS DESVIOS FONOLGICOS: CONSIDERAES TERICAS

AUTORA: Karina Carlesso Pagliarin, ORIENTADORA: Mrcia Keske-Soares Santa Maria, 17 de janeiro de 2007.

Desvios fonolgicos so alteraes existentes na fala de algumas crianas e caracterizam-se por substituies e/ou omisses de fonemas. de extrema importncia que o fonoaudilogo, aps avaliao detalhada, tenha conhecimento a respeito do tratamento a ser realizado, ou seja, qual modelo teraputico deve ser usado e quais generalizaes devem ser esperadas. Assim, este estudo teve o objetivo de realizar uma reviso de literatura sobre os modelos teraputicos utilizados na terapia fonoaudiolgica, dando-se nfase aos Modelos de Pares Mnimos/Oposies Mximas e o de Oposies Mltiplas. Foram realizadas buscas a partir de pesquisa de publicaes nas bases de dados Medline, Scielo, Bireme e Pubmed, sendo tambm utilizados alguns livros texto e artigos de peridicos. Os modelos de Pares Mnimos/Oposies Mximas envolvem a seleo de pares de palavras que se diferenciam por um nico fonema, podendo contrastar poucos traos distintivos (pares mnimos) ou muitos traos (oposies mximas). Esses modelos so indicados para crianas com desvio mdio a mdio-moderado. No modelo de Oposies Mltiplas, so selecionadas palavras que tambm diferem em apenas um fonema, porm estes contrastam diversos traos devido seleo de vrios fonemas. Esse modelo recomendado para desvio severo, pois, em geral, as crianas substituem muitos fonemas do sistema adulto por um nico som. Com isso, pode-se concluir que, para a escolha do modelo adequado, deve se levar em considerao a presena e ausncia dos fonemas, o tipo e o grau de severidade do desvio fonolgico. Alm disso, a seleo do modelo teraputico adequado pode auxiliar nas generalizaes a serem obtidas. Palavras-chaves: Distrbio Fonolgico; Fala; Fonoterapia.

ABSTRACTSpecialization Monograph Specialization Course in Phonoaudiolology Federal University of Santa Maria

CONTRASTIVE APPROACH IN PHONOLOGICAL DISORDERS THERAPY: THEORETICAL CONSIDERATIONS AUTHOR: Karina Carlesso Pagliarin ORIENTING: Mrcia Keske-Soares Santa Maria, January 17, 2007.

Phonological disorders are alterations that occur in the speech of some children and are characterized by substitutions and/or omissions of phonemes. It is really important that the speech therapist, after detailed assessment, has knowledge about the treatment to be followed, that is, the therapeutic pattern to be used and the generalizations to be expected. Thus, this study was aimed at reviewing the literature on therapeutic patterns utilized in the phonologic therapy, emphasizing the Minimal Pairs/Maximum Oppositions and Multiple Oppositions Approaches. There were searches through publications based on Medline, Scielo, Bireme and Pubmed data, books and articles. The Minimal Pairs/ Maximum Opposition Approaches involve the selection of couples of words that distinguish by a single phoneme, being able to contrast few distinctive features (minimum pairs) or many features (maximum opposition). These patterns are recommended to children suffering from mild to mildmoderate disorder. In the Opposition Multiple Approach, there are words that also differ in only one phoneme, however these contrast diverse features due to the selection of many phonemes. This pattern is recommended to severe disorder because, in general, the children replace many phonemes of the adult system by only one sound. So, it can be concluded that to choose the appropriate pattern they must be taken into account the presence and the lack of phonemes, the kind and the severity level of the phonological disorder. Moreover, the selection of the appropriate therapeutic pattern can help future generalizations. Key words: Speech Disorders; Speech; Speech Therapy.

SUMRIO1. INTRODUO.............................................................................................12 2. METODOLOGIA.........................................................................................14 3. REVISO DE LITERATURA...................................................................... 15 3.1 Teorias Fonolgicas............................................................................15 3.2 Modelo implicacional de complexidade de traos........................... 19 3.3 Desvio fonolgico................................................................................25 3.3.1 Caracterizao dos desvios fonolgicos.....................................27 3.3.2 Classificao dos desvios fonolgicos........................................29 3.3.3 Avaliao e diagnstico dos desvios fonolgicos....................... 33 3.3.4 O tratamento fonoaudiolgico dos desvios fonolgicos..............34 3.3.4.1 Modelos de terapia com bases fonolgicas......................... 37 3.3.4.1.1 Modelo de Pares Mnimos/Oposies Mximas..........39 3.3.4.1.2 Modelo de Oposies Mltiplas...................................52 4. CONCLUSO............................................................................................. 59 5. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...........................................................61

LISTA DE FIGURASFigura 1 Geometria de traos de consoantes, proposta por Clements e Hume (1995)....................................................................................... 18 Figura 2 Geometria de traos (Clements & Hume, 1995) das consoantes adaptada por Mota (1996).................................................................. 19 Figura 3 Modelo Implicacional de Complexidade de Traos (MICT) proposto por Mota (1996)........................................................................... Figura 4 Representao do MICT, com alteraes sugeridas por Rangel (1998).................................................................................................. 25 Figura 5 Hierarquia dos formatos de tratamento com pares mnimos e as previses de mudanas fonolgicas nos sistemas fonolgicos com desvios (Gierut, 1992)......................................................................... 46 Figura 6 Modelo de Oposies Mltiplas: exemplo de contrastes para interveno fonolgica (Williams, 2000a)........................................... 56 21

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AFC Avaliao Fonolgica da Criana ATD Alternating Treatment Design CO cavidade oral CUR - correct underlying representation CVCV Consoante-vogal-consoante-vogal DFE Desvio Fonolgico Evolutivo DM Desvio Mdio DMM - Desvio Mdio-moderado DMS - Desvio Moderado-severo DS - Desvio Severo E0 - Estado zero de complexidade GU - Gramtica Universal MICT - Modelo Implicacional de Complexidade de Traos N1 nvel um N2 nvel dois N3 nvel trs N4 nvel quatro N5 nvel cinco N6 nvel seis N7 nvel sete N8 nvel oito NSI Naturalistic Speech Intelligibility NSW Nonsense Words PC Ponto de consoante PCC - Percentual de Consoantes Corretas PCC-C - Percentual de Consoantes Corretas em Coda PCC-O - Percentual de Consoantes Corretas em Onset PCO-O - Percentual de Consoantes Omitidas em Onset PCO - Percentual de Consoantes Omitidas PCO-C - Percentual de Consoantes Omitidas em Coda PCI - Percentual de Consoantes Incorretas PCS - Percentual de Consoantes Substitudas

PCS-C - Percentual de Consoantes Substitudas em Coda PCS-O - Percentual de Consoantes Substitudas em Onset PDI - Process Density Index Pmd - Predominantemente Mdio Pmd-Mod - Predominantemente Mdio-Moderado PMod-Sev - Predominantemente Moderado-Severo PSev - Predominantemente Severo RCCI - Relao de Consoantes Corretas-Incorretas ROS - Relao Omisso-Substituio RO-O/C - Relao Omisso Onset/Coda RS-O/C - Relao Substituio Onset/Coda

Traos distintivos: [aprox] [aproximante] [voc] [vocide] [cont] [contnuo] [lab] [labial] [cor] [coronal] [dors] [dorsal] [ant] [anterior] [son] [sonoro] [soan] [soante] [estrid] [estridente] [cons] consonantal [silab] silbico

1 INTRODUOOs desvios fonolgicos1 so alteraes de fala que se caracterizam pelo apagamento, substituies, inseres e/ou reordenamentos de sons no sistema fonolgico da criana, fazendo com que a fala torne-se incompreensvel para o ouvinte. Uma criana pode ser diagnosticada como tendo desvio quando a mesma apresenta fala espontnea ininteligvel, que persiste alm dos cinco anos de idade, entretanto, no apresenta fatores etiolgicos conhecidos e detectados. De acordo com Wertzner, Ramos & Amaro (2004), os desvios fonolgicos esto entre as mais prevalentes alteraes da linguagem infantil e manifestam-se na linguagem oral, sendo observados por meio da fala. Muitos fonoaudilogos utilizam, na prtica clnica, modelos tradicionais de terapia, puramente articulatrios, isto , ensinam um som de cada vez e em cada posio. Essa abordagem, apesar de ultrapassada, ainda bastante utilizada por profissionais da rea, o que torna o tempo de terapia mais longo. Os modelos com base fonolgica tm proposta baseada na generalizao, ou seja, prev que um som trabalhado utilizado corretamente em outros ambientes e/ou sons no treinados, diminuindo, deste modo, o tempo de tratamento de uma criana com desvio fonolgico. Para isso, o fonoaudilogo deve ter em mente o modelo teraputico e seus princpios tericos, realizar as avaliaes e selecionar sons-alvo adequados ao tratamento, os quais devem possibilitar a ocorrncia de generalizaes. O tratamento dos desvios fonolgicos tem sido muito estudado principalmente quanto aos modelos teraputicos e seus princpios tericos por Williams (2000a, 2000b); Mota & Pereira (2001); Barlow & Gierut (2002); Silva, Ramos & Wippell (2002); Pagan & Wetzner (2002); Barberena, Keske-Soares & Mota (2004); Bagetti, Mota & Keske-Soares (2005). Alguns desses trabalhos (Mota & Pereira, 2001; Silva, Ramos & Wippell, 2002; Pagan & Wetzner, 2002; Barberena, Keske-Soares & Mota 2004) colaboraram para o estudo da interveno fonoaudiolgica, comparando modelos teraputicos, identificando quais as generalizaes obtidas e qual o de maior rapidez e eficincia no tratamento. Os modelos devem ser utilizados de acordo com o tipo de sistema fonolgico apresentado pela criana. Existem diversos modelos para o tratamento dos desvios1

Nesse trabalho o termo desvio fonolgico ser utilizado como sinnimo de distrbio fonolgico.

e alguns utilizam a abordagem contrastiva de traos distintivos para a escolha dos sons-alvo. Dentre estes, destacam-se os modelos de oposies: Modelo de Pares Mnimos (Weiner, 1981), Oposies Mximas (Gierut, 1992), Oposies Mximas Modificado (Bagetti, Mota e Keske-Soares, 2005), os quais foram muito pesquisados no Brasil, principalmente no sul do pas, e o Modelo de Oposies Mltiplas (Williams, 2000a) ainda pouco estudado no Brasil. Os modelos de Pares Mnimos/Oposies Mximas envolvem a seleo de duas palavras que se distinguem em apenas um fonema, o que leva a produo de homnimos se esse for realizado incorretamente pela criana. Os fonemas selecionados podem se diferenciar por um ou dois traos distintivos (Pares Mnimos) ou por mais de dois traos (Oposies Mximas). Esses modelos so indicados para crianas com desvio mdio a mdio-moderado, podendo, tambm, ser aplicados em crianas com desvio moderado-severo e severo. No modelo de Oposies Mltiplas, so selecionadas palavras que tambm diferem em apenas um fonema, porm estes contrastam diversos traos em decorrncia da utilizao de vrios sons-alvo para terapia. Esse modelo aplicado em crianas que apresentam desvio fonolgico severo, pois geralmente elas substituem diversos fonemas por um nico som. A fim de servir para a sociedade acadmica como mais uma fonte de pesquisa em relao aquisio da linguagem e escolha da melhor conduta teraputica, este trabalho teve por objetivo apresentar uma reviso de literatura sobre os modelos de terapia utilizados para o tratamento dos desvios fonolgicos, sendo aprofundados os estudos que abordam os modelos de oposies contrastivas (Modelo de Pares Mnimos/Oposies Mximas e Oposies Mltiplas).

2 METODOLOGIAPara a elaborao deste trabalho, entre maro de 2006 e agosto de 2006, foi realizada uma reviso sistemtica da literatura atravs de pesquisa em diferentes bases de dados como MEDLINE, SCIELO, BIREME e PUBMED, utilizando as seguintes palavras-chave: distrbio da fala, speech disorders, fonoterapia, speech therapy, transtornos da articulao, articulation disorders, Gierut, J. A. e Williams A. L. Nesta reviso, foram encontrados 522 trabalhos publicados, dos quais, aps leitura e anlise, 44 foram utilizados neste estudo. Alm da busca em base de dados, nesta pesquisa, foram usados tambm alguns livros texto e artigos de peridicos disponibilizados pela orientadora da pesquisa - j recolhidos por ocasio de outras pesquisas. Na citao dos autores consultados, optou-se por referenci-los de acordo com a ordem cronolgica de publicao de seus estudos, quando possvel, conforme os temas abordados neste trabalho.

3 REVISO DE LITERATURA3.1 Teorias fonolgicas

A presente seo ser apresentada a fim de elucidar alguns aspectos da teoria fonolgica, fornecendo subsdios importantes para um bom entendimento das propostas tericas de tratamento fonoaudiolgico com base fonolgica. As teorias fonolgicas consideram o modo como as unidades elementares segmentos e traos - da fala so organizadas. H dois modelos tericos: o linear e o no-linear. Na fonologia linear ou segmental, os fonemas eram vistos como um conjunto de traos no estruturados ou feixe de traos. Alguns autores (Jakobson, 1941; Chomsky e Halle, 1968) tratavam os segmentos como colunas de traos, dispostos em matrizes, sem nenhuma estrutura interna, como em (1):(1) /z/ -soante +consonantal +contnuo +coronal +sonoro -nasal +anterior

Segundo Hernandorena (1996), os modelos lineares analisam os fonemas como um conjunto de traos que se seguem uns aos outros, isto , analisam a fala como uma combinao linear de segmentos de traos distintivos com uma relao de um-para-um entre segmentos e matrizes de traos com limites morfolgicos e sintticos. Para Clements e Hume (1995), esses modelos embora relevantes, apresentam duas grandes desvantagens. Primeiro, nos modelos lineares, os traos que determinam um fonema permanecem em uma relao bijetiva, ou seja, cada valor de trao caracteriza somente um fonema e cada fonema caracterizado por apenas um valor de cada categoria. E, segundo, os feixes de traos no tm nenhuma estrutura interna. Cada trao relaciona-se de modo igual um com o outro,

no havendo agrupamento de traos em conjuntos maiores correspondentes a classes fonticas tradicionais como ponto e modo de articulao. Hernandorena (1990) investigou a aquisio da fonologia do Portugus, com base na teoria de traos distintivos, em 134 crianas com idades entre 2:0 e 4:3, com padres normais de desenvolvimento. Nessa pesquisa, analisou os traos distintivos atravs do modelo de Stevens & Keyser (1989), que coloca uma hierarquia e uma interdependncia de traos atravs da intensificao da distintividade. A autora verificou que os fonemas so compostos por traos distintivos, e que essa constituio no est relacionada com a simples soma de traos. Hernandorena (op.cit.) concluiu que os traos parecem possuir uma organizao hierrquica, em que elementos diferentes exercem papis

diversificados, isto , se um segmento no resulta da simples justaposio de traos co-ocorrentes, sua estrutura no linear. De acordo com Clements (1985), os sons da fala so vistos como consistindo de muitas propriedades simultneas ou traos juntamente organizados, separados em tiers (camadas). O termo no-linear refere-se ao fato de que os traos em diferentes camadas no se mantm exclusivamente um-para-um, ou seja, ligam-se um com outro, mas podem exibir padres complexos de sobreposio em que uma unidade em uma camada alinhada com vrias unidades em outras camadas. A nfase principal da fonologia no-linear a elaborao de um sistema representacional capaz de suprir explicaes simples, no-arbitrrias para propriedades repetidas da fala em nvel fonolgico. Conforme Hernandorena (1996, 1999), a fonologia no-linear subdividida em: Fonologia Mtrica (modelo terico que permitiu uma nova representao da slaba e uma anlise do acento); Fonologia Lexical (estuda a interao entre morfologia e fonologia); Fonologia da Slaba (na qual a slaba passou a ser aceita como unidade fonolgica); Fonologia Prosdica; e Fonologia Auto-segmental. A fonologia auto-segmental, enfocada nesta pesquisa, foi desenvolvida em 1970, e representa a primeira tentativa para integrar um aspecto no alfabtico ou no-linear da organizao de traos, dentro de uma estrutura conceitual derivada da fonologia gerativa (Clements, 1985). A principal inovao da fonologia auto-segmental foi apresentada por Goldsmith (1976), em sua tese de doutorado, em que refere que as lnguas tonais relacionam-se hierarquicamente entre os tons e outras unidades, pois os traos so

dispostos em tiers e funcionam como entidades autnomas. Cada tier composto de um arranjo linear de segmentos (s vezes chamados de auto-segmentos), assunto que certamente contrasta medida que eles podem ser associados. As regras fonolgicas podem atuar individualmente nos segmentos de qualquer tier, ou podem influenciar seus padres de associao com segmentos de outros tiers. Embora, taros em tiers diferentes no sejam agrupados um com outro em um n, eles podem ser unidos atravs de linhas de associao que determinam seu padro especfico de domnio, indicando, assim, como os segmentos em cada tier devem ser pronunciados ao mesmo tempo. A partir desse estudo, Clements (1985) props a geometria de traos que lida com a estrutura interna dos sons da fala. Dessa maneira, os traos que caracterizam os sons da fala so dispostos em diversos tiers, os quais apresentam uma organizao hierrquica. Os segmentos so representados como configuraes de ns hierarquicamente organizados, cujos ns terminais so valores de traos e cujos ns intermedirios representam constituintes. As duas premissas centrais da geometria de traos so (i) que todos os traos so universalmente dispostos em uma estrutura de multicamadas, onde elas entram, dentro do mesmo modelo de relaes geomtricas que so observadas na fonologia tonal e esqueletal; e (ii) que os traos no so diretamente ligados a posies esboadas (esqueletais), mas so agrupados e hierarquicamente organizados em uma estrutura arbrea com um n de raiz. A Figura 1 representa a geometria de traos de consoantes proposta por Clements e Hume (1995).

(a) Consoantes:

Raiz

soante aproximante

Larngeo [nasal] [aspirado] [glotal] [voz]

-vocide

Cavidade Oral

[contnuo] Lugar de C

[labial] [coronal] [dorsal] [anterior] [distribudo] FIGURA 1 - Representao geomtrica das consoantes (CLEMENTS & HUME, 1995:292).

Nessa representao existe uma estrutura de organizao hierrquica, que representada por um N de Raiz, um N Larngeo, um N de Cavidade Oral (CO) e um N de Ponto de Consoante (PC). De acordo com Clements e Hume (1995), o N de Raiz, que domina todos os traos e representa o segmento como unidade fonolgica, constitudo por traos de classe principal [soan], [aprox] e [voc]; o N Larngeo, o qual representa o papel da laringe na produo dos sons, representado pelo trao de sonoridade [voz], e tambm [glote aspirada] e [glote constrita]; O N de CO representa a funo da cavidade oral na produo dos sons, e neste N esto ligados os traos de ponto de articulao, representados pelo N PC e o trao de modo de articulao [cont]; o N PC, que representa o ponto de articulao na produo dos sons, est ligado ao n de CO; os traos de ponto de articulao so [lab], [cor] e [dors], e os traos [ant] e [ distribudo], que so dependentes do trao [cor]. Mota (1996) props uma geometria de traos para as consoantes do Portugus, baseada no modelo de Clements & Hume (1995). Esta geometria apresentada na Figura 2.

Raiz

soante aproximante -vocide

Larngeo

[voz]

Cavidade oral [contnuo] Ponto de Consoante

[labial]

[coronal]

[dorsal]

[anterior] FIGURA 2 Geometria de traos (Clements & Hume, 1995) adaptada por Mota (1996: 107).

A teoria auto-segmental prope a hierarquia dos traos, o que contribui para os estudos da aquisio fonolgica. Utilizando a teoria fonolgica no-linear, a partir da Fonologia auto-segmental, Mota (1996) props, para o portugus, o Modelo Implicacional de Complexidade de Traos, o qual ser detalhado a seguir.

3.2 Modelo Implicacional de Complexidade de Traos (MICT)

Baseada na geometria de Traos de Clements & Hume (1995) e no Modelo de Marcao de Calabrese (1995), Mota (1996) desenvolveu a Hierarquia Implicacional de Complexidade de Traos (MICT). Em seu estudo, participaram 25 crianas (idades entre 4:0 e 10:0) com desvio fonolgico falantes do Portugus. A autora analisou o sistema fonolgico dessas crianas e, a partir disso, construiu um modelo na tentativa de dar conta da aquisio segmental do Portugus e tambm explicar atrasos nesse processo. Segundo Mota (op.cit.), as crianas iniciam a aquisio fonolgica com uma representao geomtrica muito simples que dada pela Gramtica Universal (GU). Esta estrutura bsica composta somente por traos no-marcados e envolve um N de Raiz com os traos [ soan, -voc, -aprox] especificados para as consoantes; um N de Laringe, com os traos [-voz] para os segmentos [-soan], e [+voz] para os [+soan]; um N de CO ramificado em [-cont], e PC com os traos [cor] e [lab]. Com

esta estrutura geomtrica bsica, a autora concluiu que os inventrios fonolgicos iniciais apresentam os fonemas /p, t, m, n/. E que, de acordo com isso, a geometria bsica j vem pronta na GU com todos os Ns j estabelecidos, pois a produo de qualquer consoante exige a presena de um N de Raiz, de um N Larngeo, de um N de CO e de um N de PC. Cada N, no entanto, tem apenas traos nomarcados. proporo que a aquisio evolui, as caractersticas do input, assim como as capacidades cognitivas e articulatrias, vo fazendo com que a criana adquira, gradativamente, os traos marcados, tanto em termos de quais traos so especificados primeiro, como em termos de expanso desses no sistema. Mota (op.cit.) refere que a especificao dos traos marcados no ocorre da mesma maneira para todas as crianas, pois existe variabilidade entre os sistemas. A autora verificou tambm que h relaes implicacionais entre os traos, isto , a presena de certos traos marcados no sistema implica a presena de outros traos marcados. Nem todas as crianas seguem o mesmo caminho durante a aquisio dos sons da fala, mas os caminhos percorridos para o desenvolvimento da complexidade nos sistemas seguem leis implicacionais existentes entre os traos marcados. A autora salienta que a presena de estruturas marcadas implica a presena de estruturas menos marcadas; que a presena de segmentos com apenas um trao marcado implica a presena dos traos no-marcados correspondentes; que a presena de um segmento que possui dois ou trs traos marcados especificados implica a presena de segmentos menos marcados; os traos marcados aparecem primeiro nas classes de sons mais simples e somente depois que as combinaes mais complexas de traos so possveis; e que, em um sistema consonantal, a presena dos traos [+cont] e [+aprox] implica a presena de pelo menos uma distino de [ voz] na classe das plosivas. Com base nas observaes citadas anteriormente, a autora elaborou o MICT, o qual visa representar as relaes existentes entre os traos marcados na aquisio de complexidade segmental pelas crianas com desvios fonolgicos falantes do Portugus. O MICT de Mota (1996, 1998) representado sob forma de rvore, como se pode observar na Figura 3. Na proposta a raiz corresponde complexidade zero, de onde partem ramos levando aos traos marcados e s suas combinaes. Se existe mais de um trao ou combinaes de traos em um caminho, h uma relao de

implicao entre eles; assim, para que um trao que esteja mais abaixo seja especificado, necessrio que os traos mais acima tambm sejam especificados.

Estado 0:

[ -voc] [-aprox] [soante] [-voz] [+voz]/([+soante]) [-contnuo] [cor, +ant] [lab]

(N=Nvel de complexidade) A1 N=1

B1

C1

[-ant] ( ) N=2 [+voz] (b,d)

N=3

[dors]/(-voz) (k) A2 [dors,+voz] (g) B2 B3

C2

N=4

N=5 A3 B4 N=6 B7 N=7

[+cont] (voz) (f,v,s,z)

C3

[+aprox] (l) B5 [cor,+cont]/(-ant)( , ) B6

N=8 N=9 [+aprox, +cont, dors] (R)

[+aprox, +cont] (r) [+aprox, -ant]( )

FIGURA 3 - Modelo Implicacional de Complexidade de Traos (M.I.C.T.) proposto por Mota (1996:154).

O MICT foi concebido com base na observao da fala de crianas com desvios fonolgicos. Neste modelo, os traos no-marcados, que compreendem o Estado 0 (E0), permitem um sistema bsico composto de /p, t, m, n/. Estes so os primeiros sons do sistema da criana. Pelo modelo, os primeiros traos marcados a

serem especificados seriam o [-ant], que faz com que se estabelea o / /, o [+voz], levando s representaes de /b/ e/ou /d/, e o [dors], levando representao de /k/. A especificao dos traos marcados no ocorre simultaneamente. Um deles ser especificado primeiro. Uma vez especificado o trao [dors], por exemplo, a criana pode ento especificar o trao [+voz] na representao bsica, levando produo de /b/ e/ou /d/. A combinao desses dois traos marcados [dors,+voz] s vai acontecer aps ambos j terem sido especificados individualmente nas

estruturas menos complexas, assim, o /g/ s vai surgir no sistema, se antes j houver um /k/ e um /b/ e/ou /d/, neste sistema. A relao com o trao [+voz] , porm, um pouco mais fraca, sendo possvel um /g/ sem que no sistema j exista /b/ e/ou /d/. A linha pontilhada, na representao do modelo, significa essa relao mais fraca. Se o trao [+voz] est especificado, o trao [+cont] poder ser especificado, levando representao das fricativas labiais e coronais [+ant] (/f/ e/ou /v/ e/ou /s/ e/ou /z/) e/ou o trao [+aprox] levando representao de /l/. A especificao desses dois traos no mantm relao de implicao com o trao [dors]. Depois de especificar o trao [+cont] e j tendo especificado o trao [-ant] para as nasais, a criana pode combinar esses dois traos levando representao de / / e/ou / /. A combinao de traos [+aprox,+cont] para a representao de /r/ depende da prvia especificao do trao [+cont] no sistema e, geralmente, da presena do trao [+aprox], embora essa ltima relao implicacional tambm seja mais fraca (pode haver /r/ sem haver /l/). A combinao de traos [+aprox,-ant] necessria para a representao de / / mantm relao implicacional com o trao [+aprox] e com o trao [-ant], isto , o sistema ter / / se j tiver /l/ e / /. Por fim, a combinao de traos [+aprox,+cont,dors] que compe a representao de /R/ mantm relao de implicao com a combinao de traos [dors,+voz], com o trao [+cont] e, na maior parte das vezes, com o trao [+aprox], embora esta seja uma relao implicacional mais fraca (pode haver /R/ sem ter /l/). Isso significa que um sistema ter /R/ se j tiver /g/ (e conseqentemente /k/), pelo menos uma fricativa labial ou coronal e, em geral, a lquida /l/.

A disposio dos traos em diferentes nveis na representao do MICT indica os diferentes graus de complexidade entre os traos marcados. Existe uma hierarquia de marcao entre os traos. Nesta hierarquia os traos so representados em nveis crescentes de complexidade, sendo o Nvel um (N1) o menos complexo e o Nvel nove (N9) o mais complexo. O trao [-ant] possui a menor complexidade (N1), seguido do trao [+voz] que representa o Nvel dois (N2), e do trao [dors] que est no Nvel trs (N3). Em seguida, representando Nvel quatro de complexidade (N4), est a combinao dos traos [dors,+voz]. Os traos [+cont] e [+aprox] tm uma complexidade maior e correspondem aos nveis cinco (N5) e seis (N6) de complexidade, respectivamente. No nvel sete (N7) esto [cor,ant]/[+cont]. No nvel oito (N8) esto [+aprox,+cont] e, finalmente, apresentando maior complexidade, esto as combinaes de traos marcados [+aprox,-ant] e [+aprox,+cont,dors] que correspondem N9 de complexidade. Rangel (1998) analisou a aquisio fonolgica normal de trs sujeitos (com 1:6 a 3:0 de idade), com base na geometria de traos de Clements & Hume (1995) e no MICT de Mota (1996). A autora verificou que o modelo d conta da variabilidade individual entre as crianas, entretanto no consegue dar conta do nvel de complexidade das lquidas [+ cont]. Rangel (op.cit.) salienta que o modelo proposto por Mota (op.cit.) para dar conta do sistema de 25 crianas com desvio fonolgico tambm se aplica a crianas com desenvolvimento normal de fala. A autora ressalta que no apenas a complexidade de traos que opera na aquisio da fonologia, a coocorrncia de traos tambm possui influncia na aquisio dos segmentos, por mais que todos os traos marcados sejam adquiridos separadamente, muitos segmentos deixam de ser realizados. A aquisio dos segmentos gradativa e, medida que vo sendo especificados, o sistema fonolgico vai aumentando significativamente e as substituies tornam-se menos freqentes. Por fim, Rangel (op.cit.) sugere algumas alteraes no MICT (ver figura 4), de acordo com os dados analisados em seu estudo. Prope, primeiramente, a mudana do nvel do fonema /l/ para um nvel mais acima, j que s tem um trao marcado [+aprox]. Alm disso, no considera necessrio estar numa relao hierrquica com o trao [+voz], pois no E0 j existe a especificao de [+voz]/([+soan]), que o caso

da lquida /l/. A segunda modificao diz respeito alterao de nveis para /R/ e /r/, devido aquisio mais tardia do /r/ em relao ao /R/, o que foi confirmado no sistema de seus sujeitos, corroborado pelos trabalhos de Hernandorena (1990), Lamprecht (1990), Hernandorena & Lamprecht (1997) e Miranda (1996). Ainda, afirmou que, em relao ao /r/, a ligao com [+aprox] no pode ser considerada fraca, conforme refere Mota (1996), pois nenhum de seus sujeitos teve /r/ sem antes ter /l/. A terceira e ltima sugesto com relao alterao do nvel para / /, que demonstrou ser adquirido mais tardiamente que o /R/ nos sujeitos de sua pesquisa, fato este confirmado pelos dados de Hernandorena (1990), Ilha (1993), Hernandorena & Lamprecht (1997).

Estado 0:

[ -voc] [-aprox] [soante] [-voz] [+voz]/([+soante]) [-contnuo] [cor, +ant] [lab]

(N=Nvel de complexidade) N=1

A1

B1

D1 [-ant] ( )

N=2

[+voz] (b,d)

C1

N=3

[dors]/(-voz) (k) A2 [dors,+voz] (g) B2 B3

D2

N=4

N=5 A3 N=6 B6

[+cont] (voz) (f,v,s,z)

[+aprox] (l)

D3

B4 cor,+cont]/(-ant)(S, Z) C2

N=7

[+aprox, +cont, dors] (R)

C3

N=8 N=9

B5

C4

[+aprox, -ant] ( )

[+aprox, +cont] (r)

FIGURA 4 Representao do MICT, com alteraes sugeridas por Rangel (1998:101).

3.3 Desvio Fonolgico

Com o passar dos anos, vrias nomenclaturas foram propostas para designar as alteraes de fala, dentre elas destacam-se: distrbio articulatrio, dislalia, transtorno fonolgico, distrbio fonolgico e desvio fonolgico. Da mesma forma, os avanos nas pesquisas contriburam para uma definio mais precisa desses termos e alguns so referidos atualmente como sinnimos (transtorno fonolgico, distrbio fonolgico e desvio fonolgico).

As alteraes de fala apresentadas por uma criana eram, anteriormente, consideradas distrbio articulatrio, independente de sua causa (Caraciki, 1983). Mota (1990) salientou que muitos fonoaudilogos ainda enfocam as desordens de fala sob uma viso puramente articulatria, motora, enfatizando as dificuldades na produo dos segmentos de sons isolados, desconsiderando as diferenas fonolgicas e a sistematicidade dos sons da fala. Dislalia, termo bastante utilizado at meados dos anos 90 para denominar desvio fonolgico, era definida como um distrbio da palavra falada, podendo ser de origem orgnica (fissuras, macroglossia, microglossia, freios da lngua e lbios, arcada dentria com prognatismo ou retrognatismo e palato ogival) ou funcional (falha na musculatura da lngua, lbios, bochechas e palato mole na fonao e deglutio), ou ambas (Caraciki, 1983). Para Garcia (1994), dislalia a fase do desenvolvimento da linguagem infantil na qual a criana no capaz de repetir as palavras que escuta, nem de formar esteretipos acstico-articulatrios. um distrbio que persiste aps os quatro ou cinco anos de idade. Ingram (1976) caracterizou as desordens de fala como uma dificuldade em estabelecer, de forma adequada, o sistema fonolgico padro da comunidade lingstica da criana, descaracterizando, dessa maneira, o pressuposto de ser um distrbio articulatrio de ordem puramente motora. Issler (1996) classificou as dislalias em: fonticas e fonolgicas. As dislalias fonticas estariam relacionadas realizao articulatria e seus processos fisiolgicos. Enquanto as dislalias fonolgicas seriam as de carter cognitivolingstico e seus processos no estabelecimento de um sistema de sons fonmicos e na forma apropriada de us-los dentro de um contexto. Grunwell (1981) caracterizou os desvios fonolgicos como uma desordem lingstica manifestada pelo uso de padres anormais no meio falado da linguagem. No desvio fonolgico, as dificuldades de pronncia englobam um nmero significativo de sons da fala, especialmente consoantes e encontros consonantais, no entanto, impossvel detectar patologia orgnica subjacente desordem. A autora enfatiza, ainda, que o transtorno afeta o nvel fonolgico da organizao lingstica e no a mecnica da produo articulatria. Grunwell (1990) estabeleceu uma comparao entre o desvio fonolgico e o fontico. O desvio fonolgico caracteriza-se como uma desorganizao,

inadaptao, ou anormalidade do sistema fonolgico da criana em relao ao sistema padro de sua comunidade lingstica, na ausncia de qualquer comprometimento orgnico. O desvio fontico caracterizado pela alterao na produo da fala, decorrente de uma deficincia orgnica, seja uma simples distoro na produo do fonema, ou resultante de patologias especficas, como fissuras, por exemplo, que so determinantes de distrbios motores na produo da fala. Leonard (1997) e Mota (2001) definem o desvio fonolgico como uma dificuldade no domnio da fonologia. Contudo, o termo permite a possibilidade de imprecises articulatrias, assim como problemas na organizao do sistema de sons. Segundo Lamprecht (2004), na maioria das crianas, entre o nascimento e a idade de cinco anos, ocorre o amadurecimento do conhecimento fonolgico num processo gradativo, no linear e com variaes individuais, resultando o estabelecimento de um sistema condizente com o alvo-adulto. No entanto, existem crianas em que a maneira como o seu sistema fonolgico construdo difere quanto ao caminho percorrido, sendo o mesmo diferente da fonologia da lngua do seu ambiente e, portanto, inadequado em relao a esta, denominados desvios fonolgicos. Wertzner (2004) denomina transtorno fonolgico, conforme o DSM-IV (1995), e o define como uma dificuldade de fala, caracterizada pelo uso inadequado de sons, de acordo com a idade e com variaes regionais, que podem envolver erros na produo, percepo ou organizao dos sons.

3.3.1 Caracterizao dos desvios fonolgicos

Segundo Grunwell (1981, 1990), para a determinao do Desvio Fonolgico Evolutivo (DFE) devem-se observar as caractersticas clnicas, fonticas, fonolgicas e evolutivas. As caractersticas clnicas das crianas com DFE so: fala espontnea quase ininteligvel em idade acima de quatro anos; audio normal para fala; inexistncia de disfuno neurolgica relevante produo da fala; capacidades intelectuais adequadas para o desenvolvimento da linguagem falada; compreenso da

linguagem falada apropriada idade mental; capacidades de linguagem expressiva aparentemente bem desenvolvidas em termos de abrangncia do vocabulrio e de comprimento dos enunciados. Quanto s caractersticas fonticas e fonolgicas, destacam-se as seguintes: quantidade e variedade restrita de segmentos fonticos, o que restringe as possibilidades distribucionais; reduo de combinaes de traos fonticos; quantidade limitada de fricativas e de ponto de articulao; trocas surdo/sonoro; estruturas fonotticas das slabas reduzidas a CVCV; poucos ou nenhum encontro consonantal; as nicas consoantes articuladas que ocorrem com alguma freqncia em posio final de slaba so nasais, embora se registre a ocorrncia ocasional de uma fricativa em final absoluto; as crianas apresentam sistema variveis estticos. Observa-se inadequada interao comunicativa decorrente da falta de potencial contrastivo e da variabilidade na realizao das palavras. Por isso, o sistema fonolgico apresenta limitaes, o que torna a fala das crianas ininteligvel em maior ou menor grau. As caractersticas evolutivas referem-se a processos normais persistentes (processos normais de simplificao que permanecem alm da idade da aquisio fonolgica normal), preferncia sistemtica de um som (quando um tipo de fonema usado no lugar de uma ampla gama de alvos diferentes), desencontro cronolgico (co-ocorrncia de processos iniciais de simplificao com processos que ocorrem posteriormente no desenvolvimento fonolgico), uso de processos incomuns ou idiossincrticos (processos de simplificao raramente contatados no

desenvolvimento fonolgico normal), uso varivel de processos (mais de um tipo de simplificao opera no mesmo tipo de estrutura-alvo). As caractersticas evolutivas dos desvios fonolgicos mostram que as diferenas entre o desenvolvimento fonolgico normal e o desenvolvimento com desvios evidencia as seguintes anormalidades evolutivas: desenvolvimento atrasado; irregular; ou com desvios. Stoel-Gammon & Dunn (1985) acrescentam algumas caractersticas

observadas em crianas com DFE, como: grande variabilidade nas produes, sem melhora gradual; ocorrncia de regras ou processos incomuns, reduzindo muito a inteligibilidade de fala; preferncia sistemtica por um som. Farias (1997) pesquisou as caractersticas evolutivas dos desvios fonolgicos presentes na fonologia de 30 crianas, falantes do portugus brasileiro, na faixa etria dos 4:0 aos 8:0 anos. Foram analisadas todas as caractersticas evolutivas

referidas por Grunwell (1981,1990). A autora constatou que as caractersticas evolutivas mais freqentes foram os processos normais persistentes, seguidas do desencontro cronolgico, e dos processos incomuns, sendo que a preferncia sistemtica por um som no foi observada em nenhuma das crianas pesquisadas.

3.3.2 Classificao dos desvios fonolgicos

Existem diferentes propostas para a classificao dos desvios fonolgicos, sendo que algumas utilizam abordagens mais qualitativas, que se baseiam na inteligibilidade da fala e na severidade (Hodson & Paden, 1983, 1991; Grunwell, 1997; Ingram, 1997; Keske-Soares, 2001), enquanto que outras (Keske-Soares, 2001; Wertzner, 2002; Blanco, 2002; Lazzarotto, 2005) fazem uma anlise predominantemente quantitativa, esta ltima a mais utilizada, tanto em pesquisas nacionais como internacionais. Um exemplo desse tipo de anlise o Percentual de Consoantes Corretas (PCC) de Shriberg & Kwiatkowski (1982). Nas abordagens qualitativas, Hodson & Paden (1983, 1991), a partir do estudo do sistema fonolgico de crianas com desvios fonolgicos falantes do ingls, e com base nos processos fonolgicos apresentados por estas crianas, classificaram os desvios fonolgicos em quatro nveis de inteligibilidade. Nvel 0, ininteligvel, a comunicao realizada atravs de gestos, a fala caracterizada por omisses de obstruintes e lquidas, sendo estas menos freqentes em glides e nasais; Nvel 1, essencialmente ininteligvel, caracterizado pelas omisses de slabas, de consoantes simples pr-voclicas e ps-voclicas e apagamentos de encontros consonantais; Nvel 2, algumas vezes inteligvel, identificam-se as omisses caractersticas de reduo de encontro consonantal e de fonemas estridentes, especialmente em encontros consonantais; e Nvel 3; geralmente inteligvel, ocorrem alteraes no-fonmicas, como protruso de lngua, incluindo ambos sigmatismos anterior e lateral. Grunwell (1997) classificou os desvios atravs de uma perspectiva desenvolvimental em trs categorias: o desenvolvimento atrasado, no qual a criana desenvolve padres de pronncia de forma adequada, mas em ritmo mais lento que o normal; desenvolvimento irregular, caracterizado quando uma criana est usando padres de dois (ou mais) estgios diferentes de desenvolvimento. Alguns dos

padres esto na idade apropriada e outros podem estar atrasados ou avanados, ou seja, cronologicamente desemparelhados; e desenvolvimento incomum, onde a criana utiliza padres que so incomuns de ocorrerem no desenvolvimento normal, isto , padres atpicos ou idiossincrticos. Ingram (1997), a partir da anlise detalhada de caractersticas individuais de crianas com desordens fonolgicas, sugeriu uma tipologia baseada na comparao do sistema fonolgico da criana com o tamanho do vocabulrio. Quatro tipos caractersticos de padres de desvios foram determinados pelo autor: Tipo 1 com atraso fonolgico - mostram padres fonolgicos de crianas normais mais jovens e tm vocabulrios comensurveis com seus nveis fonolgicos; Tipo 2 com caractersticas desenvolvimentais distintas - as crianas adquirem um vocabulrio relativamente amplo, mas o expressam com um sistema fonolgico severamente desordenado; Tipo 3 com padres fonolgicos influenciados socialmente - so caracterizadas com padro fonolgico incomum; Tipo 4 com desordens no desenvolvimento supralarngeo - so as que apresentam avanado desenvolvimento do trao [voz]. Keske-Soares (2001) pesquisou 35 crianas com desvio fonolgico, com mdia de idade no incio do tratamento de 5:5, tratados pelo Modelo ABAB- Retirada e provas Mltiplas (Tyler & Figursky, 1994). A partir desse estudo, com base nos processos fonolgicos, quatro diferentes grupos de desordens fonolgicas foram identificados: os com caractersticas incomuns (sujeitos cujo sistema fonolgico defasado, com processos incomuns); os com caractersticas iniciais (crianas que apresentam um sistema tpico do desenvolvimento inicial na aquisio da linguagem); os com caractersticas atrasadas (sujeitos com um simples atraso em relao etapa de aquisio); e os com caractersticas fonticas adicionais (crianas que apresentam fatores fonticos que interferem no desenvolvimento do sistema fonolgico). Nas abordagens quantitativas, os autores Shriberg & Kwiatkowski (1982) determinaram uma anlise quantitativa para verificar o grau de severidade do desvio fonolgico atravs dos resultados do PCC, o qual obtido mediante a diviso do nmero de consoantes corretas pelo nmero total de consoantes, isto , corretas mais incorretas, aps o resultado multiplicado por cem. Com o resultado do PCC, o desvio pode ser classificado como desvio mdio (86 a 100%); desvio mdio moderado (66 a 85%); desvio moderado-severo (51 a 65%); e desvio severo (