abandono de posto
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ABANDONO DE POSTO: CRIME OU TRANSGRESSO DISCIPLINAR?
Abelardo Julio da Rocha1
RESUMO
H muito, a Justia Militar e a Administrao Militar enfrentam a tormentosa tarefa de distinguir entre a prtica do crime previsto no artigo 195 do Cdigo Penal Militar (Abandono de Posto) e a transgresso disciplinar consistente em abandonar servio para o qual tenha sido designado. Em alguns casos, a dvida acerca da relevncia penal da conduta quase invencvel, divergindo-se a doutrina e a jurisprudncia em relao medida mais adequada a ser adotada. Se certo, por um lado, que no caso crime militar a ser apurado, sempre existir a responsabilizao administrativa disciplinar correlata, de outra banda, o contrrio no sempre verdadeiro. Existem casos em que a medida reclamada deve ficar circunscrita esfera disciplinar porque a conduta no chega a configurar ilcito penal militar. Todavia, tormentoso o caminho at esta concluso, com segurana jurdica.
Palavras-chave: Abandono de posto. Prtica de crime e a transgresso disciplinar consistente em abandonar o servio.
1 Capito da Polcia Militar do Estado de So Paulo Diretor Assistente da Diviso de Educao de Trnsito do DETRAN-SP. Especialista em Direito Militar. E-mail: [email protected]
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1. INTRODUO
Segundo o artigo 195 do Cdigo Penal Militar, pratica crime o militar que
abandonar, sem ordem superior, o posto ou lugar de servio que lhe tenha sido
designado, ou o servio que lhe cumpria, antes de termin-lo: Pena deteno, de trs
meses a um ano.
Ensinam os jovens doutrinadores Ccero Robson Coimbra Neves e Marcelo
Sreifinger2 tratar-se de crime atentatrio ao dever e ao servio militares.
Pode ser praticado por militar federal ou estadual, logicamente dentro do
conceito estabelecido no artigo 22 do Cdigo Penal Militar, isto , militar em atividade.
Ocorre que, ao abandonar ou ausentar-se do posto ou lugar de servio, o militar
pode praticar, pelo menos conceitualmente, transgresso disciplinar prevista no
Regulamento Disciplinar da respectiva Fora.
Por certo, mesmo ante a prtica de crime militar, a conduta sob lentes deve ser
apurada na seara administrativa disciplinar militar, em razo da incomunicabilidade das
esferas de responsabilidades.
Remanesce, no entanto, a hiptese de tratar-se exclusivamente de transgresso
disciplinar. Nesse caso, surge a necessidade de um balizador jurdico seguro para que se
afaste, na espcie, a incidncia do crime previsto no artigo 195 do Cdigo Penal Militar.
2. DO ELEMENTO SUBJETIVO QUE IMPULSIONA O MILITAR A
ABANDONAR O POSTO OU LUGAR DE SERVIO
Curiosamente, no caso de abandono de posto, tanto o crime como a transgresso
reclamam o dolo do agente para caracterizao do preceito incriminador.
Em outras palavras, se o militar no estiver imbudo da vontade livre e
consciente de descumprir a misso, no haver a prtica de crime ou transgresso
concernente ao abandono de posto.
2 C c e r o Ro b s o n Co i m b r a Ne v e s , Ma r c e l l o St r e i f i n g e r , Ap o n t a m e n t o s de Di r e i t o Pe n a l Mi l i t a r ,
vo l u m e 2, pa g i n a 304.
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Hiptese curiosa mencionada por Ccero Robson Coimbra Neves e Marcelo
Sreifinger3 diz respeito ao abandono de posto ou lugar de servio praticado por militar
que imagina firmemente estar autorizado para tal por quem de direito.
Por bvio que, nesse caso, tambm, no haver ilicitude na conduta.
Raciocnio idntico deve ser invocado no caso do militar que abandona o posto
ou local de servio escudado pela inexigibilidade de conduta diversa.
De qualquer maneira, o militar s abandona o posto a partir de iniciativa
deliberada, e nunca a ttulo de culpa, quer em relao ao crime previsto no CPM, quer
em relao transgresso prevista no regulamento disciplinar da respectiva Fora.
3. DA TRANSGRESSO DISCIPLINAR CONSISTENTE EM ABANDONAR O
POSTO
Todos os regulamentos disciplinares das Foras Armadas4, sem exceo,
preveem a conduta transgressional consistente abandonar ou afastar-se o militar do
posto ou local de servio.
Assim, para a Marinha do Brasil, transgresso disciplinar ausentar-se sem a
devida autorizao da Organizao Militar onde serve ou do local onde deva
permanecer.
Para o Exrcito Brasileiro, no pode o militar Ausentar-se, sem a devida
autorizao, da sede da organizao militar onde serve, do local do servio ou de outro
qualquer em que deva encontrar-se por fora de disposio legal ou ordem.
No caso do militar da Aeronutica, pratica transgresso disciplinar se
abandonar o servio para o qual tenha sido designado.
Os regulamentos disciplinares das Polcias Militares seguiram praticamente a
mesma orientao, como, por exemplo, a Polcia Militar do Estado de So Paulo, em
3 Ob. ci t. , v. 2, p. 310.
4 Re g u l a m e n t o Di s c i p l i n a r pa r a a Ma r i n h a , ap r o v a d o pe l o De c r e t o n 88.545, de 2 de ju lh o de
1983, ar t. 7, n 53, Re g u l a m e n t o Di s c i p l i n a r do Ex r c i t o , De c r e t o n 4.346, de 26 de ag o s t o de
2002, n 28 do An e x o I (Rela o de Tra n s g r e s s e s) e o Re g u l a m e n t o Di s c i p l i n a r da
Ae r o n u t i c a , De c r e t o n 76.322, de 22 de se t e m b r o de 1975, ar t. 10, n 19.
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cujo novel Estatuto Repressivo Disciplinar5 est disposto que pratica transgresso o
militar do Estado que abandonar servio para o qual tenha sido designado ou
recusar-se a execut-lo na forma determinada ou ainda afastar-se, quando em
atividade policial-militar com veculo automotor, aeronave, embarcao ou a p, da
rea em que deveria permanecer ou no cumprir roteiro de patrulhamento
predeterminado.
De notar-se que as condutas narradas nos regulamentos disciplinares militares
em muito se avizinham daquelas estatudas no dispositivo incriminador do artigo 195 do
CPM.
Note-se, por exemplo, que a conduta nuclear do crime consiste em abandonar
o posto ou local de servio sem autorizao.
Nos regulamentos disciplinares das Foras Armadas, exceto no caso da
Aeronutica, a conduta nuclear do tipo transgressional afastar-se, que, em ltima
anlise, significa distanciar-se, desviar-se, distrair-se, que tem o mesmo sentido prtico
de abandono.
Assim, a objetividade jurdica tutelada nos regulamentos disciplinares militares6
a preservao do servio militar e do cumprimento do dever, alm de outros valores
fundamentais deontolgicos, caros s Instituies militares em geral.
De fato, no outra a tutela do Codex Repressivo Castrense, ao definir o crime
do artigo 195, seno a defesa do servio e dever militares.
4. UM CRITRIO HBIL A AFASTAR A INCIDNCIA DO CRIME DE
ABANDONO DE POSTO APESAR DA ESTRITA TIPICIDADE DA CONDUTA
5 Le i Co m p l e m e n t a r n 893, de 9 de ma r o de 200 1 , qu e ins t i t u i u o Re g u l a m e n t o Di s c i p l i n a r da
Po l c i a Mi l i t a r do Es t a d o de S o Pa u l o , Pa r g r a f o n i c o do ar t. 13, n 74 e 77.
6 RO C H A , Ab e l a r d o Ju l i o da. Re g u l a m e n t o Di s c i p l i n a r da Po l c i a Mi l i t a r do Es t a d o de S o Pa u l o . 3 ed. S o Pa u l o : Su p r e m a Cu l t u r a , 2007.
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O magistrio autorizado e preciso de Alexandre Henriques da Costa7 d-nos
conta da existncia do que o autor chama de Princpio da certeza do direito, segundo
o qual as regras da Administrao e os ilcitos disciplinares que podem ser praticados
pela sua no observncia, bem como seu processamento, devem ser passveis de
conhecimento por todos aqueles que a elas esto submetidos, evitando-se que os
militares sejam surpreendidos.
Em abono ao asserto referido, h situaes absolutamente fronteirias nas quais
o militar, apesar de haver praticado a conduta tpica consistente no abandono de posto,
permanece nas circunvizinhanas de seu local de servio mantendo inequvoca
vigilncia sobre o posto sob sua responsabilidade e em condies reais de intervir para
reprimir ameaa existente.
Nesses casos, como assinalam com singular maestria Ccero Robson Coimbra
Neves e Marcelo Sreifinger8, a jurisprudncia ptria entende que a manuteno da
vigilncia sobre o posto ou local de servio critrio hbil a afastar o crime.
Logicamente, em casos dessa natureza, falta ao agente o dolo de abandonar o
posto ou local de servio, elemento subjetivo reclamado na caracterizao do crime.
Equivocadamente, ao nosso ver, alguns operadores do direito militar tm
entendido que, se o agente intenciona retornar ao turno de servio, no h de se falar em
crime, e sim transgresso.
No esta a melhor inteligncia do artigo 195 do CPM, uma vez que a conduta
ali descrita refere-se a ao de abandonar, qual seja, afastar-se em carter temporrio ou
definitivo do posto ou local de servio que fora determinado ao militar para o exerccio
de suas funes.
Nesse exato sentido, decidiu o Egrgio Tribunal de Justia Militar do Estado de
So Paulo, nos autos da Apelao Criminal n 5630/06, julgado em 21 de agosto de
2007, pela 1 Cmara, em que foi Relator o Juiz Paulo Prazak.
7 Ma n u a l do Pr o c e d i m e n t o Di s c i p l i n a r . 1. Ed. S o Pa u l o : Su p r e m a Cu l t u r a , 2006, p g . 29.
8 Ob. ci t. , v. 2, p. 308.
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Tambm os julgados da mesma Corte: Apelao Criminal n 5196/03, J.
05.08.04- 2 Cmara e a Apelao Criminal n 5295/04 J. 08.06.04 1 Cmara.
5. CONCLUSO
Nesse compasso reflexivo e em observncia ao primado da legalidade, parece-
nos de todo lcito concluir que o critrio hbil a fazer separao entre a prtica do crime
previsto no artigo 195 do Cdigo Penal Militar e a incidncia da prtica transgressional
disciplinar prevista nos Regulamentos Disciplinares Militares consistente em se afastar
o militar do seu posto ou local de servio consiste, de fato, na potencial capacidade que
o agente deve possuir de, apesar de afastado de seu posto, nele intervir em caso de
situao emergencial ou risco.
Por bvio que o militar precisa manter contato visual com seu posto o tempo
todo a fim de que no seja descaracterizada sua preocupao com o dever e o servio
militares.
guisa de arremate, ento, se o militar se afasta de seu posto ou local de servio
ou mesmo da sede de sua Unidade, sem para tanto estar autorizado, porm mantm
contato visual permanente com o posto ou local onde deveria permanecer, com reais
condies de intervir em caso de emergncia ou perigo, h que se afastar, em tese, a
prtica do crime previsto no artigo 195 do CPM, e a conduta merecer apreciao na
rbita administrativa disciplinar da respectiva Fora.
No se diga tratar de aplicao do princpio da insignificncia na espcie, mas da
absoluta irrelevncia penal da conduta.