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A Vila Rica dos tempos de Ataíde: sociedade e família Mirian Moura Lott Doutoranda - UFMG Introdução Vila Rica foi ocupada em fins do século XVII por paulistas, nordestinos e por- tugueses (lavradores, artífices, mineradores, pequenos negociantes etc.) que fundaram, inicialmente, povoados nos morros de São João, São Sebastião, Santana, do Padre Faria, Alto da Cruz, do Antônio Dias, do Passa Dez, do Caquende e do Ouro Preto. Estes vários arraiais desenvolveram-se ao longo do ribeirão do Tripuí, formando o núcleo urbano longilíneo de origem colo- nial que se transformou em “Vila Rica de Albuquerque” em 1711 1 . Em meados do século XVIII, as minas começaram a exaurir-se (...). No último quartel do século XVIII a decadência da lida mineradora generalizou-se. Os mineiros passaram a procurar as poucas áreas de terra fértil na região das Minas ou dirigiram-se para leste, (...) para as áreas de plantio do sul ou de- mandaram os campos criatórios situados a oeste . Manoel da Costa Ataíde ou Mestre Ataíde: pintor, exímio colorista, de “paleta riquíssima, técnica pictórica magistral”, nasceu na cidade de Mariana em 176, filho legítimo do capitão Luiz da Costa Ataíde, português e Maria Barbosa de Abreu. Morreu em 0 de fevereiro de 1830, sendo que sua produção artística se deu entre 1 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Roteiro Sagrado. Belo Horizonte: Tratos Culturais/Ed. Frâncico Inácio Peixoto, 000 – p. 7. COSTA, Iraci Del Nero da. Vila Rica: população (1719-186). São Paulo: IPE-USP/FINEP, 1984 – p. 15.

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A Vila Rica dos tempos de Ataíde: sociedade e família

Mirian Moura LottDoutoranda - UFMG

Introdução

Vila Rica foi ocupada em fins do século XVII por paulistas, nordestinos e por-tugueses (lavradores, artífices, mineradores, pequenos negociantes etc.) que fundaram, inicialmente, povoados nos morros de São João, São Sebastião, Santana, do Padre Faria, Alto da Cruz, do Antônio Dias, do Passa Dez, do Caquende e do Ouro Preto. Estes vários arraiais desenvolveram-se ao longo do ribeirão do Tripuí, formando o núcleo urbano longilíneo de origem colo-nial que se transformou em “Vila Rica de Albuquerque” em 17111.

Em meados do século XVIII, as minas começaram a exaurir-se (...). No último quartel do século XVIII a decadência da lida mineradora generalizou-se. Os mineiros passaram a procurar as poucas áreas de terra fértil na região das Minas ou dirigiram-se para leste, (...) para as áreas de plantio do sul ou de-mandaram os campos criatórios situados a oeste�.

Manoel da Costa Ataíde ou Mestre Ataíde: pintor, exímio colorista, de “paleta riquíssima, técnica pictórica magistral”, nasceu na cidade de Mariana em 176�, filho legítimo do capitão Luiz da Costa Ataíde, português e Maria Barbosa de Abreu. Morreu em 0� de fevereiro de 1830, sendo que sua produção artística se deu entre

1 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Roteiro Sagrado. Belo Horizonte: Tratos Culturais/Ed. Frâncico Inácio Peixoto, �000 – p. 7.� COSTA, Iraci Del Nero da. Vila Rica: população (1719-18�6). São Paulo: IPE-USP/FINEP, 1984 – p. 15.

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178� e 18�93. Estes são dados biográficos mínimos sobre o pintor do Rococó mi-neiro. Entretanto, sabemos bem mais sobre aspectos sociais e familiares do pintor, principalmente através de documentos paroquiais pesquisados por professores como Ivo Porto de Menezes e Adalgisa Arantes Campos4.

Este artigo tem como objetivo traçar o panorama sócio-econômico, adminis-trativo e familiar da Ouro Preto do final do século XVIII e das quatro primeiras dé-cadas do XIX, além de algumas características padrões nos casamentos, situando com aspectos da vida do mestre pintor, identificando em suas práticas sociais e familiares comportamentos costumeiros na sociedade oitocentista da capital da província, pois como considerada a professora Adalgisa, Ataíde era um homem extremamente “integrado na sociedade daquele tempo”5.

Estudos historiográficos recentes derrubam o mito da decadência mineira ge-neralizada a partir da diminuição da produção aurífera na segunda metade do sé-culo XVIII. A exaustão da exploração do ouro de aluvião atingiu de forma mais intensa a região tradicional mineradora. Entretanto, ao se analisar dados mais ge-rais referentes às primeiras décadas do século XIX, observa-se expressivo cresci-mento demográfico na província, tanto da população livre quanto da escrava, infe-rindo-se, portanto que a atrofia do setor minerador não foi suficiente para desarticular a sociedade e a economia mineira. Mesmo nas regiões auríferas, desde cedo se desenvolveu a produção de víveres para o auto-consumo e abastecimento local. Ao longo dos setecentos, estabelecera-se também sólido setor agropecuário mercantil na parte setentrional da província, sul de Minas, em São João del Rei e em menor escala em Paracatu6. O comércio sempre esteve presente, abastecendo a região com produtos importados, ao lado ainda da produção de toucinho, “aguar-dente, açúcar e rapadura, cultivo e transformação da mandioca”7, da presença da indústria têxtil doméstica e da incipiente indústria siderúrgica:

A extração do minério de ferro era extremamente simples, pois havia aflora-ções nas encostas de incontáveis serras e montanhas de uma vasta área de Minas. Dessa forma, a matéria-prima básica da siderurgia era abundante e de fácil obtenção, o que reforça as evidências de que a produção de ferro remon-ta pelo menos aos meados do século XVIII8.

3 MENEZES, Ivo Porto de. Uma releitura da trajetória do pintor marianense. In: Manoel da Costa Ataíde. Belo Horizonte: C/Arte, �005 – p. ��, �3 e �5. 4 Este texto se enriqueceu enormemente com citações do belíssimo livro organizado pela prof. Adalgisa Arantes Campos sobre Ataíde, lançado em �005 pela C/Arte – Belo Horizonte. 5 CAMPOS, Adalgisa Arantes (org). Manoel da Costa Ataíde. Belo Horizonte: C/Arte, �005 – p. 1�. 6 PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia em Minas Gerais do século XIX. 1996 (mimeo) – p.13. 7 Idem p. 4�. 8 LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Ge-rais no século XIX. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988 – p. 140.

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Tais atividades, paralelas e complementares à atividade mineradora, utilizavam-se tanto da mão-de-obra livre como escrava, determinando para as Minas Gerais ocupação da escravaria em atividades desvinculadas da economia exportadora.

“Quando, no início do século XIX, a corte portuguesa é transferida para o Rio de Janeiro, Minas assume gradualmente seu papel de província abastecedora” da corte9.

Estrutura econômica de Vila Rica

As várias regiões da província de Minas Gerais desenvolveram as característi-cas descritas acima de forma diferente, e cabe-nos aqui encaixar Vila Rica no pa-norama mineiro. Vários indicadores nos mostram que Vila Rica sentiu de forma contundente a exaustão da extração de ouro de aluvião.

Entretanto, o fato de ser a capital da capitania e, a partir de 18�3, ser a capital da província, quando foi elevada à categoria de Cidade Imperial do Ouro Preto, de-terminou a manutenção da burocracia administrativa provincial, além de permane-cer como sede de Regimentos militares. Ao compararmos Vila Rica com a Vila de São José del Rei (atual cidade de Tiradentes) no final do século XVIII, ambas formadas a partir das primeiras descobertas auríferas, podemos considerar diferenças funda-mentais, tanto no aspecto da composição populacional como no desenvolvimento econômico. Primeiramente, enquanto, para São José del Rei, a partir do rol de con-fessados da freguesia da Matriz da Vila de São José de 1795, o segmento legalmente livre (livres e forros) perfazia 51,3% da população, na Vila Rica de 1804 os livres representavam 65,3%, ou seja, a porcentagem de escravos era bem menor10. De acordo com o professor Douglas Cole Libby, “a proporção de escravos é, geralmente, um bom indicador do nível da atividade econômica regional”, demonstrando, por-tanto uma desaceleração econômica na capital da província. Também uma propor-ção maior de mulheres indica falta de dinamismo econômico, pois pode ser identifi-cada como movimento de êxodo da população masculina em busca de novas oportunidades. Outro aspecto interessante a observar é a composição da população escrava em ambas as vilas: em São José, 60% de escravos eram compostos por afri-canos, enquanto em Vila Rica e Mariana, no final do século XVIII e início do XIX, há uma inversão, ou seja, os africanos perfaziam 40% do total de escravos nessas loca-lidades. Escravos constituíam-se numa mercadoria cara, e a compra de africanos também é aspecto que identifica uma região economicamente dinâmica.

Para Saint-Hilaire o panorama de Vila Rica é considerado “desolador” no iní-cio do século XIX. Superada a febre do ouro, a economia estagnara-se e apresenta-

9 PAIVA, Clotilde Andrade. População ... p. 46. 10 LIBBY, Douglas; PAIVA, Clotilde. Alforrias e forros em uma freguesia mineira: São José d’El Rey em 1795. In: Revista Brasileira de Estudos de População. Vol 17, no. ½, jan/dez – �000, p. �1, ��.

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va franca recessão populacional. A população que alcançara, como atesta Saint-Hilaire, cerca de �0 mil pessoas, reduzira-se a oito milhares. Como já foi observado,

tal quebra no número de habitantes teria sido ainda maior não fosse Vila Rica a capital da capitania, centro administrativo e residência de um regimento. (...) Ao que parece, o comércio e atividades artesanais compunham os ele-

mentos de sustentação econômica da urbe11.

Apesar do esvaziamento, Vila Rica não deixa de preservar suas características de núcleo urbano. De acordo com Iraci del Nero da Costa, em Minas colonial: características básicas de quatro estruturas demoeconômicas1�, podemos classificar em quatro as estruturas demoeconômicas típicas nas Minas Gerais no início do século XIX: a urbana, rural-mineradora, intermediária e rural de auto-consumo. De acordo com o autor, o termo de Vila Rica encaixava-se na categoria urbana. Essa estrutura distinguia-se das outras por apresentar grande percentual de pessoas livres e menores médias de escravos e agregados por domicílio. Além disso, há o domí-nio econômico do setor secundário (56,4%), presença marcante dos serviços (37,�%) e modesta participação do setor primário (6,4%)13.

A grande variedade de ocupações nos setores secundário e terciário evidencia que, apesar do encolhimento, Vila Rica continuava com seu aspecto urbano. Entre as ocupações, destacavam-se os alfaiates (113), carpinteiros (69), ferreiros (48), latoeiros (51) e sapateiros (145). Os carpinteiros, em sua maioria, eram escravos, mas identifi-camos os cativos também como alfaiates, faiscadores, ferreiros, pedreiros, sapatei-ros, seleiros, serralheiros, relojoeiros, quitandeiras, barbeiros, cozinheiros, jornaleiros e lavadeiras. A grande diversidade do papel dos escravos também é característica peculiar da vida urbana. Podemos observar também a participação dos livres nas mais diversas ocupações, assim como das mulheres14:

No comércio o sexo feminino encontrava-se melhor representado – conside-rados os negociantes de secos e/ou molhados contamos 45 mulheres de um total de 14�; com respeito aos quitandeiros computamos 36 mulheres e ape-nas � homens. Com referência aos homens, cabe realce particular aos músi-

11 COSTA, Iraci. Vila Rica ... p. 13�. 1� COSTA, Iraci Del Nero da. Minas colonial: características básicas de quatro estruturas demoeconômicas. ACERVO – Revista do Arquivo Nacional. Vol. 1, nº 1, 1986, p.95-114.13 Idem, p. 97. 14 Idem, p. 176. Sobre o trabalho artesanal e as profissões em Vila Rica no século XVIII, ver ARAUJO, Jeaneth Xavier. Para a decência do culto de Deus: artes e ofícios na Vila Rica sete-centista. �003. Dissertação (Mestrado em História). UFMG, Belo Horizonte (sob orientação da profª drª Adalgisa Arantes Campos; mimeografado).

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cos, funcionários da administração civil, eclesiásticos, negociantes e, sobre-tudo, aos militares15.

A decadência da mineração e o conseqüente desaquecimento econômico mu-dam o perfil da população da vila. A razão de masculinidade, ou seja, o número de homens em relação ao número de mulheres, que caracteriza a sociedade minera-dora do século XVIII, passa a diminuir, pois são principalmente os homens jovens de �0 a �9 anos, livres e solteiros que vão em busca de novas oportunidades eco-nômicas. Em Vila Rica, para o ano de 1804, há 95,56 homens para cada 100 mu-lheres, ou seja, há o predomínio da população feminina livre (55,31%). O número de escravos masculinos continua sendo maior que o de cativas (57,99%), apesar de a proporção também diminuir.

Estrutura demográfica

Donald Ramos, em seu ensaio “A estrutura demográfica de Vila Rica às vés-peras da Inconfidência”, utiliza-se dos recenseamentos de 1804 e 1838 de Ouro Preto para traçar o perfil da estrutura populacional do núcleo urbano de Vila Rica. Ele utiliza também os “mapas estatísticos” de 1815, 1818 e 18�3 para o termo de Vila Rica e outros três mapas sobre a freguesia de Ouro Preto: 1796-1799. Estas informações são importantes, pois a estrutura populacional de uma vila interfere diretamente no padrão de casamentos e constituição da família.

“Em 1804, a população do centro urbano de Vila Rica somava 8.785 almas, sendo 6.045 (68%) de elementos livres e �.740 (31%) de escravos”16. Proporcional-mente há uma diminuição grande no número de escravos. No período áureo da mineração, a maioria da população era cativa, sendo grande parte formada por homens adultos, característica motivada por uma economia dinâmica e rentável, possibilitando a compra de numerosos escravos, principalmente para ocupar-se na lida mineratória. A configuração da população da vila vai-se modificando, a partir do esgotamento do ouro de aluvião. A proporção maior de homens livres observa-da já no início do século XIX é determinada por uma economia mais diversificada, doméstica e menos rentável, ou “menos próspera, e voltada principalmente para o abastecimento interno”17. Em 1815, os escravos representavam �7,7% da popula-ção. Essa mesma relação se mantém para 1818 e 18�3.

15 Idem, p. 177. 16 RAMOS, Donald. A estrutura demográfica de Vila Rica às vésperas da Inconfidência. Anuário do Museu da Inconfidência. 1978 – p. 43. OBS.: Há uma pequena diferença entre os números citados por Donald Ramos e os de Herculano Gomes Mathias em Um recensea-mento na capitania de Minas Gerais: Vila Rica – 1804. Este registra um total de 8.990, sendo 6.097 livres e �.893 escravos. 17 (LIBBY e PAIVA, �000, p.��).

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A evolução da população acontece da seguinte maneira: em 1804 a população total da sede de Vila Rica era de 8.785; em 1815, 6.637; em 1818, 6.870; e em 18�3, 7.599 habitantes. A partir daí, torna-se relativamente estável. O crescimento após 1815 é carac-terizado pela diminuição do número de escravos e aumento da população livre.

Houve uma mudança também na composição racial da população de Vila Rica. “O branco comparecia em maior número no núcleo urbano (que no campo), atraído sem dúvida pelas oportunidades políticas, administrativas e econômicas”18. Ao observarmos o termo de Vila Rica, o número de mulatos livres é maior que o de brancos. “Desde o início do século (XVIII), o chamariz do ouro e das pedras precio-sas atraiu forros e gente de cor nascida livre oriundos de outras partes do Brasil”19. Além disso, o grande leque de oportunidades da economia de mercado oferecia aos escravos a possibilidade da compra da alforria e a escassez de mulheres bran-cas estimulava as uniões racialmente mistas, muitas vezes determinando a liberta-ção de escravas e suas crianças mulatas�0. O número de negros livres surpreende, demonstrando que a alforria era uma possibilidade também para o africano.

Ainda sobre a estrutura populacional de Ouro Preto, Cunha Matos reproduz os mapas de população impressos no ano de 18�1. Desses, selecionamos os dados referentes ao termo ou município de Vila Rica:

18 RAMOS, 1978, p.46). 19 LIBBY, �000, p.18). �0 (LIBBY, �000, p.18.

QUADRO Nº 1: População Livre do Termo de Vila Rica por sexo: 1821

Brancos Pardos Pretos

Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres

1.555 1.736 �.6�3 3.301 1.�8� 1.743

Fonte: MATOS, 1981, p.45.

TABELA Nº 1: Identidade Racial em Vila Rica entre os livres

1815 1818 18�3

Branco1.541 3�,1% 1.609 3�,3%

1.591 �7,5%

Mulato�.�36 46,6% �.�97 46,1%

�.983 51,6%

Preto1.019 �1,3% 1.07� �1,5%

1.�09 �0,9%

Fonte: RAMOS, 1978, p.46.

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O quadro acima perfaz um total de 1�.�40 habitantes, sendo que as mulheres aparecem em número maior, independentemente da cor. Entre a população cativa, essa proporção se inverte, num total de 5.985 de escravos, assim divididos:

Comparando os quadros 1 e �, podemos observar que a população livre com-punha mais que o dobro da população cativa. O número de escravos pardos for-mava uma minoria, pois as alforrias se davam com grande expressão nesse segmen-to da população, e somente entre os escravos negros o número de homens ultrapassa o número de mulheres.

Entre os livres, o número de mulheres é bem maior que de homens. Esse mar-cante desequilíbrio, como já foi dito, pode ser atribuído à falta de dinamismo eco-nômico, “a qual impelia os homens livres à busca de oportunidades nas regiões de fronteira”�1. Renato Pinto Venâncio nos alerta para a dificuldade de sobrevivência dos livres pobres numa sociedade escravocrata. Como os cativos desempenhavam as mais diversas atividades, deixavam “poucas alternativas de trabalho para os ho-mens e mulheres livres de poucos recursos”��. Ser livre nem sempre significava ter melhores condições econômicas que o escravo. Esse é o mesmo caso dos forros. Apesar de muitos conseguirem com pecúlio próprio alcançar sua liberdade, nem sempre adquiriam melhores condições sociais, pois, agora livres, passavam a ser responsáveis por sua manutenção.

Como já citado, o comércio e a administração pública foram responsáveis por manter a vida urbana em Ouro Preto. O próprio Cunha Matos, em 1837, após lamen-tar a diminuição da população, esclarece que “o comércio da província de Minas Gerais acha-se em estado muito florescente. (...) A comarca de Ouro Preto exporta ouro, ferro, topázios, legumes e algum toucinho”. As importações, que mantêm a balança comercial desfavorável para Minas, consistem principalmente de escravos. Além desses, “tecidos de todas as qualidades, vinhos e outros gêneros líquidos, drogas medicinais, ferro, outros metais brutos e manufaturados, quinquilharias, bi-

�1 (LIBBY e PAIVA, �000, p.�3). �� VENÂNCIO, �001, p.�00).

QUADRO Nº �: Pop. Escrava do Termo de Vila Rica por sexo: 1821

Pardos Pretos

Homens Mulheres Homens Mulheres

310 373 3.�07 �.095

Fonte: MATOS, 1981, p.47.

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jouterias e móveis”�3. A decadência citada no decorrer do presente artigo refere-se tão-somente ao núcleo urbano de Vila Rica.

Estrutura administrativa

O termo de Vila Rica dividia-se em duas freguesias: a de Nossa Senhora do Pilar da Cidade de Ouro Preto e a de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias. De acordo com Cunha Mattos, a primeira era composta do grande distrito ou paróquia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, além de quatro pequenos distritos. A segunda (de Antônio Dias) caracterizava-se somente por quatro pequenos distritos.

Os quatro pequenos distritos do Pilar e sua população eram: Ouro Preto e Cabeças, bairro da cidade, que no ano de 18�3 tinha 8�7 fogos e 3.546 almas; Arraial de São Sebastião, no morro de mesma denominação, distante uma légua da cabeça do termo, com 75 fogos e 398 almas; Arraial de Santa Quitéria da Boa Vis-ta, distante duas léguas, com 1�5 fogos e 69� almas, e Arraial do Rodeio, distante seis léguas, com 365 fogos e �65 almas.

A partir dos dados acima podemos fazer o cálculo do número de habitantes por fogos. Nos bairros de Ouro Preto e Cabeças, a proporção é de 4,�8 pessoas vivendo em cada fogo. O Fogo não tem o mesmo significado de casa. Apesar de se referir a uma unidade habitacional, possui embutido o significado de unidade fami-liar, de lar. Cada fogo corresponde à casa e a todos os seus habitantes, incluindo aí parentes, agregados e escravos.

Nos arraiais, a média de habitantes por fogos é a seguinte: São Sebastião, 5,3; Boa Vista, 5,5; e Rodeio, 0,7�4. A média menor que um do Arraial do Rodeio nos sugere que algumas casas estavam desabitadas na ocasião do recenseamento.

Nesse sentido, é esclarecedora a observação feita por Matos após esta descri-ção populacional:

Não consta precisamente qual é o número de fogos de que se compõem os mesmos arraiais, pois, não obstante serem numerosos em alguns deles, acham-se na maior parte do tempo desertos, em conseqüência de residirem os seus proprietários nas fazendas de agricultura e gado (ou nos trabalhos minerais), donde ordinariamente vêm às povoações nos domingos ou dias de grandes festividades. Em muitos arraiais da província apenas se encontram os vigários ou curas, oficiais de justiça, estalajadeiros ou taberneiros, algum mer-

�3 MATOS, Raimundo J. da Cunha. Corografia histórica da província de Minas Gerais (1837). Belo Horizonte: Publicações do APM, 1981. Vol I, p.67.�4 MATOS, Raimundo. Corografia... p. 70.

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cador, os vadios e pessoas miseráveis, que não possuem terras ou não podem trabalhar�5.

A paróquia de Antônio Dias é bem menos populosa, e os habitantes distribuem-se da seguinte maneira: no bairro de Antônio Dias temos �08 fogos, com 1.�99 almas, significando 6.� habitantes por domicílio. No bairro Alto da Cruz, registrou-se 19� fo-gos, onde viviam 70� almas (3.6 hab./domicílio). Os bairros do Taquaral e Padre Faria (que está caindo em ruínas) possuem 96 fogos, com 36� almas (3.7 hab./domicílio) e o Morro de Santana com 145 fogos habitados por 50� almas (3.46 hab./domicílio)�6.

O número de habitantes por fogos, por si só, põe por terra a consideração da fa-mília ouropretana como de base extensa e patriarcal. A estrutura familiar de Ouro Preto será mais detalhada no próximo item.

Além disso, é importante observarmos as diferenças das denominações freguesia e distrito. Freguesia pode ser empregada como sinônimo de paróquia, ou seja, é uma jurisdição religiosa; o distrito é jurisdição administrativa. Até o advento da república (início do século XX) houve superposição desses domínios. Os registros eclesiásticos (atas de batismo, casamento e óbitos) faziam o papel de registros civis.

A Constituição de 18�4 e o Ato Adicional de 1834 estabeleceram um novo código de regras burocráticas, dispondo de novas funções administrativas para as províncias do império. Era importante que o governo central tivesse informações precisas, para que, conhecendo as populações, pudesse controlar, cobrar impostos e arregimentar soldados. Datam, portanto da década de 30 inúmeros ofícios e por-tarias, oriundos da administração central, exigindo listas nominativas e mapas de população, listas de eleitores, listas de indivíduos aptos para o recrutamento mili-tar, listas de vendas e engenhos existentes nos diversos distritos etc.�7

Para tanto, cada pequeno aglomerado populacional tornara-se sujeito ao juiz de paz a partir da lei de 15 out. 18�7. Essa norma foi complementada por declara-ções de �9 ago. 18�8 e decretos em 18 e �0 set. 18�9 e �1 jan. 1830. O juiz era considerado a autoridade judiciária máxima de cada distrito. Apesar de ocupar cargo eletivo, o juiz de paz era subordinado ao ministro da Justiça, que podia con-vocar novas eleições quando lhe conviesse.

A divisão dos distritos municipais não coincidia exatamente com os distritos paroquiais, apesar de essas estruturas jurídicas eclesiásticas terem servido de apoio mútuo, visto que o próprio pároco, na ausência do juiz de paz, cumpria esse papel.

Um decreto de 183� encarregava os juízes de paz de preencher um mapa padrão fornecido e impresso pelo Governo Provincial. Esse processo se arrasta até 1835. Infe-

�5 Idem, p. 71. �6 Idem, p. 70. �7 MARTINS, Maria do Carmo Salazar. Revisitando a província: comarcas, termos, distritos e população de Minas Gerais em 1833-35. V Seminário sobre economia mineira: anais. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 1990 – p. 14.

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lizmente não foram localizados os mapas dos distritos do Ouro Preto, Antônio Dias, Boa Vista, Ouro Branco, Passagem e Redondo, referentes ao termo de Ouro Preto�8.

A estrutura social e familiar

De acordo com o Censo de 1804, em Vila Rica as pessoas solteiras são a gran-de maioria, principalmente entre os escravos: quatro quintos (80,45%) do total. A eles seguiram-se os viúvos (10,45%) e, por fim, os casados (9,10%)�9.

Isto nos faz concluir que o concubinato ainda era no início do oitocentos a forma como as pessoas se relacionavam. Trata-se de relação que precisava suportar as pressões e as convenções sociais, familiares e religiosas. Se o matrimônio era visto principalmente pelas famílias mais abastadas como uma forma de tornar apa-rente para a sociedade o enlace do novo casal, as relações consensuais, ao contrá-rio, permaneciam muitas vezes na esfera particular, pois ao alcançar maior visibi-lidade corriam o risco de, com as denúncias, serem admoestados nas visitas pastorais pelos clérigos ciosos de seu dever para com os fiéis.

A proporção entre os sexos é outro aspecto importante para refletirmos sobre a grande incidência ou não dos casamentos, pois a tradição nobiliárquica portu-guesa, herdada pelos colonos, determinava que os matrimônios realizassem-se en-tre pares, tanto sociais como raciais. O pequeno número de mulheres brancas é, inclusive, uma das justificativas para o baixíssimo número de enlaces conjugais ocorridos durante o a primeira metade do século XVIII nas Minas Gerais. O peque-no número de mulheres brancas “à altura” dos membros da administração metro-politana impedia que estes legitimassem seus relacionamentos perante a Igreja, mantendo suas companheiras como concubinas, numa relação que tanto preocu-pava as autoridades eclesiásticas como políticas. Outras dificuldades apontadas para o baixo número de enlaces matrimoniais referem-se às dificuldades para se organizar os proclamas e o custo da celebração do matrimônio. No entanto, estu-dos recentes mostram que os nubentes podiam ser dispensados dos impedimentos previstos pela legislação canônica, e dispensados também de arcar com o custo da celebração, alegando pobreza30. Portanto, mais que as dificuldades formais, pare-ce-nos que o preconceito racial e social e o costume das uniões consensuais, pre-sentes também em Portugal, determinavam o baixo índice de matrimônios. Ronal-do Vainfas nos alerta para a constatação de maior número de matrimônios em regiões de estabilidade econômica ou entre pessoas de maior destaque social, ca-racterizando o concubinato como a organização familiar dos livres pobres. O estu-dioso nos esclarece que os segmentos livres pobres

�8 Idem, p. ��. �9 COSTA, Iraci. Vila Rica ... p. 179. 30 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

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amancebavam-se por falta de opção, por viverem, em sua grande maioria, num mundo instável e precário, onde o estar concubinado era contingência da des-classificação, resultado de não ter bens ou ofício, da fome e da falta de recursos, não para pagar a cerimônia de casamento, mas para almejar uma vida conjugal minimamente alicerçada segundo os costumes sociais e a ética oficial31.

O pequeno número de matrimônios determinava uma grande quantidade de filhos ilegítimos. De acordo com o Recenseamento de Ouro Preto realizado em 1804, analisado por Del Nero da Costa, entre os livres, 47,8�% eram legítimos e 5�,18% eram naturais. Entre os escravos, quase a totalidade (99.30%) era formada por filhos naturais, ou seja, nascidos fora do enlace católico. Ao analisarmos um período maior, constatamos que em 680 de batismos registrados na Matriz de Nos-sa Senhora do Pilar do Ouro Preto no período de 1810 a 18�0, 364 ou 53.5% são de filhos naturais. Entre as 319 crianças escravas batizadas, �85 eram filhos natu-rais, enquanto somente 34 eram legítimos, ficando o índice de ilegitimidade em 89.34% entre os cativos3�. A tendência apontada em 1804 permanece de maneira geral para o primeiro quartel do século XIX.

Ataíde permaneceu solteiro por toda a vida. Entretanto, teve quatro filhos na-turais com Maria do Carmo Raimunda da Silva (parda forra), que sobreviveram até a idade adulta: Francisco de Assis Pacífico da Conceição batizado em 1809; Maria do Carmo Néri da Natividade; Francisca Rosa de Jesus, batizada em 1815 e Ana Umbelina do Espírito Santo, além de � outros que morreram em tenra idade: Sebas-tião, batizado em 1814 e Justino batizado em 181833.

O rol de confessados é uma documentação paroquial muito rica. Constituía-se de uma lista com o nome dos paroquianos acima de 7 anos por domicílio. Deveria ser realizado no período da quaresma, onde o pároco registrava o nome dos devotos que deveriam se confessar para receberem o sacramento da penitência e assim pode-rem cumprir o preceito da Igreja de comungar na Páscoa. De acordo com esta fonte, em 1813, no fogo de Manoel da Costa Ataíde viviam o próprio pintor e três escravos: Pedro Angola, de 44 anos, Maria crioula, de 40, e Victorino crioulo, 13 anos. Maria do Carmo, portanto, não era sua concubina, pois residia, em outro local, com paren-tes e � filhos, Maria do Carmo, com dois anos e Sebastião com um mês de idade.

Nos róis de confessados de 1819 e 18�4 vamos acompanhando a vida familiar de Ataíde, sempre observando o casal vivendo em lares separados. Neste ano, Ma-ria do Carmo vive só com seus filhos, tornando-se chefe de família, situação nada incomum nas primeiras décadas do século XIX.

A maioria das uniões consagradas pela Igreja respeitava as normas sociais e as orien-tações da doutrina católica acerca das “semelhanças” de idade, etnia e condição social.

31 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1989. P. 94.3� Banco de Dados sobre as séries paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto. FAFICH/UFMG/CECO/FUNDEP/FAPEMIG. 33 CAMPOS, Adalgisa A. Manoel da Costa Ataíde ... p. 66.

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Entretanto, o número de casamentos entre noivos de condição diferente apesar de peque-no não pode ser desconsiderado, pois ao contradizer o senso comum, com certeza sofre-ram com o preconceito da época e tiveram que vencer restrições sociais.

O gráfico acima nos mostra claramente que o casamento entre livres consti-tuía-se na grande maioria (83%).

O segundo percentual pertence ao casamento entre escravos (8%), e em ter-ceiro lugar coloca-se o casamento entre forros (3%)34. Esses números comprovam que a idéia de casamentos entre indivíduos da mesma condição social era a que prevalecia, justificando assim o fato de Ataíde nunca ter contraído núpcias com Maria do Carmo, apesar de seu relacionamento contínuo no decorrer de anos. Fato importante de se observar também é o fato do casal não ser concubinário, no sen-tido de viverem juntos em união consensual.

Além de forra, Maria do Carmo era parda, enquanto Ataíde era livre e branco. Esta diferença poderia determinar um fosso intransponível para a oficialização de sua união. Nas atas de casamentos da Matriz de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, do período de 1836 a 1841 a identificação da cor dos noivos é recorrente. Este dado não aparece com constância nos assentos do período anterior e vai desa-parecendo completamente a partir de meados de 1841. Neste curto período pode-mos observar uma grande endogamia. Só não podemos confirmar se esta era uma tendência ao longo do tempo, apesar de suspeitarmos que esta permanece. Dos 39 registros de casamentos nos quais consta a cor dos nubentes, 38 são entre pessoas

34 LOTT, Mirian Moura. Casamento e família nas Minas Gerais: Vila Rica – 1804-1839. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG. �004, mimeo. P. 85.

Fonte: Banco de Dados da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto.

GRÁFICO Nº 1: CASAMENTOS POR CONDIÇÃO SOCIAL – 1804-1839

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da mesma cor. Somente encontramos uma exceção, onde Antônio de Almeida Souza, livre, branco, filho legítimo e comerciante de 39 anos, casou-se com Clau-dina de Almeida Coelho, livre, exposta, parda de 34 anos35.

Consideramos para este estudo, o conceito amplo de família. Eni de Mesquita Samara categoriza as famílias por domicílio da seguinte maneira: singulares (indi-víduos solitários); desconexas (indivíduos com escravos ou agregados, casal ou fogos com chefe definido, mas ausente, ou seja, não há vínculo de parentesco entre as pessoas); nucleares (casal com filhos e netos ou composições várias com esses elementos); extensas (casal, filhos, netos e mais parentes); aumentadas (indivíduo com filhos, netos ou parentes mais agregados, escravos e outros, ou composições várias com esses elementos, desde que incluíssem parte das primeiras categorias e uma ou mais das últimas) e finalmente os fraternos (domicílios sem chefe com vá-rios elementos, parentes ou não)36.

O modelo de família aumentada, indicando presença de agregados e grande número de escravos, apesar de não ter sido a tônica da sociedade mineradora, não esteve completamente ausente da região. O Censo de 1804 registra algumas famílias, como a do coronel Carlos José da Silva, escrivão e deputado da Junta Real, casado com D. Maria Angélica, vivendo com seus cinco filhos, três agregados e 17 escravos; D. Ignácia Maria Pires de Oliveira, branca, viúva, vivia com suas quatro filhas, duas agregadas e 13 escravos. As duas famílias eram residentes na freguesia de Antônio Dias. No bairro do Ouro Preto, podemos exemplificar com o capitão José Marques Guimarães, ocupado na Contadoria, que vivia com dois filhos, dez escravos e oito agregados. Deve-se considerar que esses domicílios localizavam-se em área urbana. Se nos afastarmos um pouco do centro, como no morro de Santa Ana, já identifica-mos famílias com número maior de escravos, como o tenente Manoel Moreira, par-do, mineiro vivendo com mãe, irmã, uma agregada e 3� escravos.

Identificamos também fogos encabeçados por mulheres: nos anos de 1831 e 183� encontraram-se 17.375 domicílios chefiados por mulheres na província, re-presentando �7,31% do total. Desse conjunto, a maior presença é de pardas, com 49,�6%, seguidas pelas brancas (�8,45%) e as crioulas, com 16,80%37. Entretanto, essa característica não era exclusiva de Minas Gerais. Eni de Mesquita Samara ob-servou para São Paulo percentual de �9,�6% em 18�7 e 36,8% em 1836 de mu-lheres chefiando seus domicílios. Os motivos relacionados pela autora para que mulheres estivessem à frente de sua moradia eram “as dificuldades econômicas, urbanização incipiente e migração masculina para a abertura de novas áreas de

35 LOTT, Mirian Moura. Casamento e .... p. 76. 36 SAMARA, Eni de Mesquita. A constituição da família na população livre (São Paulo no século XIX).In: COSTA, Iraci Del Nero da (org). Brasil: história econômica e demográfica. 1986 – P. 191. 37 QUEIROZ, Bernardo Lanza et.al. As mulheres chefes de domicílio nas Minas Gerais do século XIX: uma análise exploratória. IX Seminário sobre economia mineira: anais. Vol 1. BH: UFMG/Cedeplar, �000, p. ��.

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lavoura”38. Nem sempre, entretanto, as mulheres viviam afastadas de seus maridos por terem sido deixadas por eles. Muitas mulheres podiam simplesmente optar por não casar, como no caso de forras africanas, que desenvolviam projetos de vida além do matrimônio, principalmente as pretas minas estudadas por Sheila de Cas-tro em São João del Rei. Além disso, Sílvia Brugger especifica outros motivos para mulheres estarem à frente de sua moradia. Nos casos em que a mulher era mais velha que o marido (talvez em segundas núpcias), ela poderia vir classificada como chefe de domicílio nas listas nominativas, apesar de o marido se encontrar presen-te39. Muitas eram viúvas e tinham bom padrão econômico, devido à herança lega-da por seus cônjuges40, demonstrando que nem sempre o lar chefiado por mulher determinava sua precária condição social.

Torna-se necessário salientar que as listas nominativas ou os censos populacio-nais, apesar de fontes com possibilidades riquíssimas, determinavam um flagrante, um momento da vida dessas famílias, ou seja, alguns desses domicílios podiam ser chefiados por mulheres temporariamente, enquanto seus maridos (tropeiros ou mili-tares) ausentavam-se por motivo de sua ocupação. Outras, solteiras, administravam seus lares enquanto aguardavam o momento da realização do casamento. Entretanto, esse fato não desvaloriza o fato de as mulheres tomarem para si a administração da casa e da família, mesmo que por um espaço de tempo. Em Vila Rica, de acordo com o recenseamento de 1804, os fogos chefiados por mulheres perfaziam 45,0%, bem acima da média geral da província ou da encontrada para São Paulo41.

Alto índice de solteirismo e de famílias nucleares foi observado em São Paulo por Eni de Mesquita Samara, além de casais concubinados e filhos ilegítimos. De acordo com a autora, o modelo de família patriarcal é mais pertinente ao meio rural e às famílias abastadas4�, não estando, entretanto ausente da capitania das Minas. Sílvia Brügger esclarece que o termo patriarcalismo não se refere ao núme-ro de componentes da família, e sim aos valores e relações de poder que se estabe-lecem no interior dela. “A idéia central parece residir no fato das pessoas se pensa-rem mais como membros de determinada família do que como indivíduos”43. Nesse aspecto a obediência da prole aos projetos familiares é de fundamental im-portância. Caberia aos filhos seguir a profissão indicada pelo pai, para assegurar a manutenção do patrimônio. Às filhas destinava-se um casamento favorável tam-bém à manutenção ou mesmo à multiplicação dos bens familiares.

38 SAMARA, Eni de M. A família brasileira. São Paulo: Brasiliente, 1983 – p. 50,51. 39 BRUGGER, Sílvia. Minas Patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei – século XVIII e XIX). Niterói, �00�, mimeo – p. 103.40 Idem, p. 97. 41 RAMOS, Donald. A estrutura demográfica ...1978 - p. 53. 4� SAMARA, Eni de Mesquita. Família e vida doméstica no Brasil: do engenho aos cafezais,. Es-tudos CEDHAL. No. 10. São Paulo: Humanitas – Publicações da FFLCH/USP, 1999 - p. 7, 8.43 BRUGGER, Sílvia. Minas Patriarcal: família e ... p. 53.

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Conclusão

Após todas as considerações acima, concluímos pela complexidade dos arranjos familiares mineiros e ouropretanos nas quatro primeiras décadas do século XIX. Obser-vamos que, apesar da forte presença da Igreja, famílias se constituíam à margem do sacramento do Matrimônio, que se realizava em grande medida entre pessoas da mes-ma cor e condição social. Apesar de não serem impedidos de receberem o batismo nem de participarem dos demais rituais católicos, exigia-se que estas famílias concubi-nárias ou não mantivessem seu relacionamento discretamente. Nos altos índices dos fogos chefiados por mulheres, e no grande número de solteiros vivendo sozinhos estão as famílias que viviam separadas, mas mantendo uma convivência duradoura, por ra-zões do preconceito étnico social. Este nos parece ser o caso de Ataíde e Maria do Carmo, compondo o que Luciano Figueiredo chamou de família fracionada, onde “casais abriam mão da coabitação para preservar o afeto”,44 estabelecendo uma forma de se proteger das investidas das autoridades diocesanas.

44 FIGUEIREDO, Luciano R. Barrocas Famílias. São Paulo: Hucitec, 1997 – p. 167.