a vida nao e justa - andrea maciel pacha.pdf

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversosparceiros, com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas eestudos acadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudivel a venda, aluguel, ouquaisquer uso comercial do presente contedo

    Sobre ns:

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no maislutando por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a

    um novo nvel."

  • ANDRA MACIEL PACH

    A vida no justaAmores e outros conflitos reais,

    segundo uma juza

  • 2012, by Andra Maciel Pach

    Direitos de edio da obra em lngua portuguesa no Brasil adquiridos pela Agir, selo da EditoraNova Fronteira S.A.Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode serapropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma oumeio, seja eletrnico, de fotocpia, gravao etc., sem a permisso do detentor do copirraite.

    Editora Nova Fronteira Participaes S.A.Rua Nova Jerusalm, 345 Bonsucesso 2104-2235Rio de Janeiro RJ BrasilTel.: (21) 3882-8200 Fax: (21) 3882-8312/8313

    CIP-Brasil. Catalogao na fonte.Sindicato Nacional dos Escritores de Livros, RJ.

    P116v Pach, Andra Maciel A vida no justa / Andra Maciel Pach. Rio de Janeiro: Agir, 2012.

    ISBN 978-85-220-1451-4

    1. Crnica brasileira. I. Ttulo. CDD: 869.9812-6360 CDU: 821.134.3(81)-8

  • Para Marcelo, meu amor permanente,na alegria e na tristeza,

    por todos os dias da minha vida.

    Para Joo e Kike, minhas fontes de vida,pela experincia de um amor incondicional.

  • Sumrio

    CapaFolha de rostoFicha catalogrficaDedicatriaSumrioApresentaoParte I

    assim no final?Casamento no empregoBrincando de casinhaDoena inventada no curaFiel todos os dias da vidaDireito ao sonhoQuem cuida dele?Quando o amor acaba em silncioSem crime, sem castigoLiberdade ainda que tardiaUm no ama por dois

    Parte IIMais valem dois pais na moAs melhores intenesToma que o filho teu!Sem padecer no parasoEra s o que faltava...Papai Noel no existeUm dia de cada vezTem coisa que no se perguntaNem tudo verdadeEm nome do pai

    Parte IIICale-se para sempreMolhadinha25No meio do nada tinha uma histria

  • O enterro do filho de dipoEle amava CatarinaGabriel no AlemoPoderoso quem resolveO que os olhos no veem...

    Parte IVTodo dia e nem sempre igualMerea a moa que voc temSagrado um samba de amorMas eu amo aquele homem...ReconciliaoDeixa o inverno passar

    AgradecimentosCrditos

  • APRESENTAO

    A vida ruim, mas boaAlcione Arajo

    Escritor

    Casamentos podem ser efmeros, mas separaes so eternas. Todavia, casaisno se preparam para o desenlace. Alis, nem para o casamento. Tantos no docerto! Talvez a preparao seja intil. Diz-se que o casamento cogitao que,hoje, s surge depois que o amor se entranhou. Nos dois cnjuges. Num pelooutro. Mas o senso comum diz que no se prepara, e nunca se est preparado,para o amor. Ele surge espontaneamente. s vezes, atropela o bom senso e algica, e surpreende todos, inclusive os amigos, que no intuam aquela qumicaentre eles. a famosa qumica, cincia oculta e experimental, que se podeaprender, mas no se sabe ensinar. A qumica inescrutvel cria a energia e ofrescor do bom relacionamento.

    Desejado e festejado, o bom relacionamento essencial, dizem casaisexperientes. Para alguns, at mais importante que o prprio amor. Para esses,havendo um bom relacionamento, pode-se viver com algum que no se ama. Oque impossvel quando o convvio ruim, mesmo amando muito. No casamento que se descobre que o paraso pode ser vizinho do inferno. Enfim, no nospreparamos para o amor, nem para o casamento ou a separao.

    Mas no de se estranhar. Tampouco estvamos preparados para a vida aonascer. A prova o vagido inaugural do beb, assustado de ter de iniciar a vidanum mundo desconhecido, aps o terno aconchego de um tero suave, quente eaquoso. Da em diante, tudo surpreendente, inesperado e imprevisvel. Intiltentar se preparar. Instituiu-se que amar se aprende amando. Correndo-se o riscode dar certo ou no. O que o poeta j advertia: A paixo uma flor que se colhe beira do abismo.

    Dois enamorados informam ao Estado que querem coabitar ao abrigo da lei, epassam a ser identificados como cnjuges. Se adiante o casal no alcana orelacionamento desejado, ou o amor acaba, instala-se a crise. Incapaz de resolv-lacom equidade, cogita a separao. E, sbito, entram em cena pessoas estranhas aocasal, e no preparadas para lidar com dificuldades afetivas: os advogados e o juiz.Com poder outorgado pelo Estado, os estranhos assumem a responsabilidade de

  • decidir sobre o que deve ser feito para proteger eventuais filhos e assegurar queseja cumprida uma lei que o casal, em geral, desconhece. E o Estado, ao atender asolicitao, invade a intimidade do casal. A judicializao dos afetos um vcio demo dupla.

    Este livro trata do momento em que o casal, ou um dos cnjuges, busca o apoiodo Estado, na pessoa do juiz da Vara de Famlia, para se separar segundo asexigncias da lei. O clima de um sonho que virou pesadelo. As circunstnciasemocionais que envolvem o desenlace amoroso deixam o casal abalado,decepcionado, tenso e vulnervel. Com as fragilidades flor da pele, encara o juiz,o estranho cuja personalidade, formao e sensibilidade orientam suas percepese atitudes. O humanismo e a conscincia social legitimam a sua liberdade parainterpretar a lei. Como fiscal da execuo da lei, o juiz pode focar-se nos atos deofcio: conduzir, com racionalidade, a anulao do contrato conjugal, nos termoslegais, mantendo-se olimpicamente distante das emoes e limitaes humanas,alheio aos condicionantes educacionais, culturais, sociais e econmicos do pas.Mas no o que faz a autora e juza Andra Pach.

    A vida no justa uma seleo de separaes judiciais, narradas pela autora, que tambm a juza incumbida de legalizar o rompimento dos casais. Ao dar formaliterria ao que o seu trabalho dirio, Andra Pach revela-se uma profundaconhecedora da legislao, que no se resigna sua mera aplicao. Metabolizouas frias letras da lei, que parecem circular nas suas veias com o pulsar da vida edas emoes. Em vez de operadora da lei, um ser humano atento, sensvel einformado, que ausculta a percepo, a inteno e o desejo do casal, tentandoentender o que pensam da vida e buscando aquilatar suas possibilidades e limitesde viver o fim e superar sequelas. No oculta dvidas, discordncias einseguranas sem, contudo, perder a lucidez ou se afastar dos deveres e limites dasua funo. Mas o peso da toga no pode dobrar a sensibilidade da pessoa.

    As crnicas da autora interessam a todo tipo de leitor. Ao que se comove comhistrias de amor tema imbatvel na preferncia humana desde a pr-histria, mesmo sem happy end, embora o fim de um amor enseje o incio de outro. Aoque esfrega as mos de curiosidade pelo que ocorre do outro lado dos sombriosportais do Judicirio: da intimidade conjugal aos motivos da separao, cominfidelidades, cimes, raivas e brigas; da diviso dos bens penso alimentcia; daproteo dos filhos aos deveres dos pais. Ao que quer evitar atitudes ecomportamentos que levem a um fim idntico. Ao que gosta das intensas emoesdos desenlaces. Ao que quer detalhes da ltima audincia: tenso, raiva, cime,paixo e ressentimento. E tambm a quem, com alvio e alegria, pode, enfim,livrar-se do inferno cotidiano.

  • Embora escrito com leveza, s vezes com sutil ironia, mas sempre comcompaixo, possvel que algum leitor sinta densidade na leitura pela sucesso derompimentos. Mas vale lembrar que todos esses fins tiveram incios felizes.Paixes e amores, correspondidos ou no, so o que de melhor e pior podeacontecer na nossa vida. Eis a verdade metafsica da qual no podemos escapar: avida ruim, mas boa.

  • Parte IAmores lquidos

  • assim no final?

    s isso? S isso sim, Aline. Se vocs quiserem esperar um pouco, podem aguardar no

    corredor para levar o documento de averbao do divrcio.Mas Aline no se levantava. Andr tambm parecia no ter pressa para deixar a

    sala. Surpresa com a rapidez? perguntei, tentando esvaziar o espao para a pauta

    que comeara h pouco.Ela no estava surpresa. No conseguia encontrar a palavra que definisse o que

    sentia naquele instante. Na impossibilidade de sintetizar com um substantivoabstrato, precisava de longas oraes coordenadas, subordinadas s lembranasque brotavam sem ordem cronolgica compreensvel.

    isso, ento, o que acontece no final? ela repetia, olhando para Andr,como se ele tivesse a resposta.

    Aline e Andr no tinham uma histria dramtica para con tar. Nem sequerprecisavam de um acerto de contas. No se olha vam com ressentimento,tampouco deixavam transparecer que ainda nutriam alguma expectativa pararetomar a vida a dois.

    Viveram juntos 22 anos. Conheceram-se do outro lado do oceano. Ela, em umcurso de especializao, ele, de mochila nas costas, em uma viagem ferroviriasem rota ou destino.

    As coincidncias e as afinidades eram a certeza de que um nasceu para viver aolado do outro. Ele ancorou naquele porto seguro e decidiu esperar o fim do cursoda moa. No perderia o trem de volta ao seu lado.

    Podia ser apenas mais um romance definitivo, daqueles que comeam nas friase terminam to logo aterrissam na vida real. Mas no foi assim na histria deAline e Andr.

    Agora, ali na sala de audincias, Aline estava visivelmente abalada. Eu noqueria deix-la se expor, sem necessidade, naquele ambiente. Interrompi:

    Aline, vocs j terminaram. No preciso saber dos motivos da separao, nemacho legal voc ficar revolvendo suas lembranas...

    Antes que eu conclusse a frase, ouvi a voz de Andr:

  • Lembra do sufoco, Aline, quando seu namorado apareceu l, de surpresa?Comovidos e emocionados, os dois no s queriam, como precisavam contar a

    profunda experincia de amor que vivenciaram durante mais de duas dcadas.Os filhos, o trabalho, as divergncias familiares, as muitas viagens, os livros, os

    filmes. Em pouco tempo, montaram a colcha de retalhos costurada pela estrada.Choravam de mos dadas. O casamento acabou. O amor, provavelmente,

    tambm. A tristeza com que experimentavam o luto se espalhava pela sala.Parecia desrespeitoso interromp-los.

    Se o ritual do nascimento do amor fazia todo o sentido, o mesmo no se podiadizer do seu fim.

    Pode ser que os amores sejam todos iguais: comeam com o corao aos pulos,migram para a banalidade do cotidiano, dispersam-se no tempo e, um dia, chegamao fim. As excees esto a para confirmar a regra.

    No entanto, Aline, Andr e tantos outros que passaram por aquela salaacreditavam que, com eles, a histria seria outra.

    O heri romntico tinha um destino trgico, como todos os heris.Nas tragdias, o fim estava traado. No tinha jeito de mudar rota ou rumo,

    embora os heris dediquem a vida a lutar contra o destino inexorvel.No amor, contrariando todas as estatsticas, experincias, pesquisas cientficas,

    cada casal tinha a pretenso de reverter o peso do cotidiano e aprisionar aqueleestado inicial de encantamento e paixo na gaiola da eternidade.

    Quando no conseguiam, como qualquer heri, enfrentavam a tragdia do fim.Tambm no caso de Aline e Andr o distanciamento foi lento. O amor no

    acabou de uma hora para outra. No houve um fato, um desencontro, uma falhade comunicao que pudessem ser apontados como a causa.

    Aline e Andr no brigavam. O ninho vazio dos filhos que ficaram adultos eforam viver suas vidas era a explicao para o afastamento. Algumas vezes,percebiam o incmodo ou a insatisfao do outro, como naquela vez em que ele,chegando tarde de um jantar com os amigos, encontrou a mulher chorando na salaescura.

    Abraaram-se, carinhosamente, para aplacar a sensao de abandono que noera verbalizada, mas experimentada, em silncio, pelos dois.

    O amor nunca acaba de uma hora para outra. Vai gastando, lentamente, notempo arbitrrio da vida.

    Se o comeo de tudo tinha uma histria, uma hora, um roteiro e um ritual, seeram garantidos aos amantes uma festa, promessas, flores, msica e todo umcenrio para sacramentar a sorte e a coincidncia do encontro, nada mais justoque o fim do amor tambm pudesse ser vivido com a cerimnia necessria.

  • No era o caso de uma celebrao. Tambm no podia ser to simples quantoduas assinaturas numa sala gelada de um tribunal e mais nada.

    Aline tinha razo. Vinte e dois anos de vida no podiam terminar em cincominutos.

    Ouvi as histrias que quiseram contar. No me preocupei com o atraso dasdemais audincias.

    Aline e Andr precisavam combinar a melhor maneira de ele retirar as suascoisas da casa. Ainda precisavam acertar a diviso das pequenas lembranas e dosobjetos grvidos de significado.

    Nada disso era tratado no processo. Mas decidiram que a soluo seriaencontrada sob meu olhar.

    No era culpa de ningum. A frustrao era dos dois. A tristeza do luto era detodos ns que assistimos expresso concreta do fim de um ciclo.

    No adiantava falar que eles tiveram uma vida linda. No adiantava falar que erararo um relacionamento acabar de mos dadas. No adiantava mostrar que o queplantaram no caminho era definitivo.

    Mesmo acostumada a observar e decidir dezenas de separaes dirias, com odistanciamento profissional possvel, eu me vi, naquele momento, envolvida pelatristeza profunda experimentada pelo casal.

    No conseguia enxergar aquele destino como um fenmeno banal e cotidiano. Aindividualizao da dor, estampada nas faces de Aline e Andr, fazia com que eucompreendesse cada processo como uma tragdia nica.

    Desejei boa sorte aos dois. Eles saram de mos dadas. Olhei para a cena comose estivesse observando um milagre da transformao do amor para outra de suasmuitas formas.

    Acostumada com os finais felizes das obras de fico, antevi a possibilidade daretomada daquela relao.

    Mas no era assim na vida real. No era, tambm, o fim do mundo. A vida temmltiplos caminhos e diversas possibilidades. O ritual do luto era necessrio paraseguir adiante.

  • Casamento no emprego

    No era para ser uma audincia complicada. Consensual mente, dividiram opatrimnio, fixaram penso para a filha nica e no havia outros problemas aserem solucionados. Tudo estava dentro do quadro previsvel, exceto a reao dePatrcia, que, sob o protesto do advogado que representava o casal, se recusava aassinar o acordo.

    No justo e no assino. Ento, ele faz tudo o que quer, e eu saio assim, noprejuzo?

    Eu no tinha a menor ideia dos motivos que levaram aquele casal separao.Pela reao de Patrcia, imaginei que outra mulher se interpusera entre os dois eque sua manifestao nada mais fosse do que uma demonstrao do volume datristeza que remanescia ou da quantidade do ressentimento que ainda deveria serrevolvido, at que pudessem se olhar sem rancor.

    Engano. A indignao era apenas patrimonial. Sua amiga se separou h poucosanos e o ex-marido, alm da penso para os filhos, continuou responsvel pelasdespesas da mulher por tempo indeterminado. Eles tinham o mesmo padro devida e no era correto que a mesma soluo no lhe fosse concedida.

    H casais que escolhem viver numa vitrine e se comportam como modelos deperfeio aos olhos do pblico. S conseguem sobreviver em grupo. Normalmenteum grupo homogneo, tambm formado por outros casais, todos com filhos damesma idade, histrias similares, condies econmicas parecidas.

    Partilhar as insatisfaes e reclamaes parece ser a maneira encontrada parasuportar a existncia a dois, como se fosse natural viver mal, conformar-se com amesmice imposta pelo cotidiano e sepultar as vrias possibilidades oferecidas pelavida a cada esquina.

    A histria de cada um, nesses casos, multiplicada pela histria de todos, comose, num quadro comparativo de inferioridade, procurar alvio e justificativa para aprpria dor, naquele cenrio, fosse sempre menos pior que a dor do outro.

    O divrcio da amiga foi a pea do domin que desabou, lanando ao cho asoutras peas arrumadas de modo aparentemente seguro e que, num timo, setransformaram em escombros, pondo fim brincadeira. A separao recente daamiga Silvinha desarranjou toda a estabilidade dos dois, revelando o que j se

  • devia saber: a vida nunca um porto seguro, e casamento algum tem aestabilidade de um servio pblico. Muito menos uma aposentadoria justamenteremunerada.

    O marido de Silvinha a deixou para casar com outra. Os casais daquele grupoanteviram a serenidade morna ameaada. Pela primeira vez se enxergaram comopossveis vtimas do fim de um projeto coletivo de segurana.

    A partir desse fato, no passava um dia sem que Patrcia atormentasse Fernandocom suas crises de dvidas e desconfianas. A lgica que sustentava aquelerelacionamento desabara. Paulatinamente, os confrontos causados pelainsatisfao eram potencializados e amplificados.

    Sem disposio, naquele novo ambiente, para jantares ou viagens, a solidoconfrontou Patrcia e Fernando, quase num confinamento a dois. No haviaqualquer vestgio de afeto que justificasse a manuteno da vida em comum.

    O motivo bvio para ela s podia ser outra mulher. Fernando negava e, aoque parece, no havia mesmo outra. Mas todas as brigas e discusses partiamdessa hiptese. Ao trmino de quase dois anos de desacertos, ofensas einsatisfaes, chegaram ao fim.

    No se amavam havia muito tempo. No tinham dvidas da necessidade decaminhar cada qual para o seu lado. A resistncia de Patrcia e a pretenso dereceber penso alimentcia revelavam um modelo de casamento que, longe doafeto e da solidariedade, foi edificado sobre os frgeis pilares do interesse social,das aparncias, da imagem de perfeio e do domnio econmico.

    A arrogncia insistente com que ela tentava me convencer de que era justoreceber dinheiro pelos anos dedicados famlia e ao marido suscitou o que eutenho de pior: a impacincia.

    Tenho total limitao para conseguir respeitar argumentos que transformam aexperincia humana num negcio lucrativo. Deve ser esse o motivo que me levoua escolher o trabalho numa Vara de Famlia.

    Sou capaz de esperar algumas horas, em processos pouco complexos, quandopercebo que as angstias, tristezas e indignaes precisam ser verbalizadas.Assisto, pacientemente, aos rompantes de desespero que desfilam na minha frenteh tantos anos, como espectadora privilegiada das contradies humanas. Sintoum profundo respeito pelas tragdias que se abatem sobre as famlias queprocuram a justia.

    Lucrar e no encerrar o negcio sem prejuzo. Era esse o projeto de Patrcia parao fim do casamento. Essa era a soluo que eu abominava.

    Resolvi abreviar a audincia. Os dois entraram com um processo de separaoconsensual e, se no quisessem se separar, assinando o acordo, no haveria

  • nenhum obstculo. Ou suspendia o processo, ou o encerrava ali mesmo.Patrcia insistiu: A senhora acha mesmo correto ele comprar um Mercedes e no me pagar

    nada de penso? Embora minha opinio no seja relevante, Patrcia, acho certo, sim. Ele

    trabalha e pode comprar o carro que quiser. Voc tambm trabalha, e, se tivervontade, troca o seu carro. Casamento no emprego e no tem indenizao pararesciso com ou sem justa causa.

    Suspeitei que pudesse ter sido grosseira e tentei aliviar: Vocs so muito jovens e, seguramente, vivero outros relacionamentos. Vale

    a pena refletir sobre o que vocs esperam de um casamento. Se quiserem lucro erentabilidade, melhor procurar uma franquia bem-sucedida. Casar, do ponto devista econmico, o pior investimento que algum pode fazer. S perde para aseparao. O que entra para uma casa tem que ser dividido por dois. No temmatemtica que transforme isso num bom negcio.

    O casamento no um projeto de vida em condomnio. Como qualquer aplicaode altssimo risco, no tem seguro que cubra o seu fim.

    Patrcia e Fernando deixaram a sala de audincias, separados, com a sensao deterem investido no pior empreendimento de longo prazo das suas vidas.

  • Brincando de casinha

    No comeo eu no queria, no. Mas tudo bem. Onde que eu assino?Impaciente, consultando o iPhone a cada dois segundos, Marquinhos no via a

    hora de deixar o frum. Evitava o encontro com o olhar agressivo de Mariana.Precisava trabalhar e no tinha tempo a perder.

    Jovens, com pouco menos de 25 anos, Marcos e Mariana no tinham filhos. Seriaum divrcio simples. No havia patrimnio a ser partilhado, exceto uma dvida dealguns milhares de reais acumulada em cartes de crdito e na instituiobancria em que tinham conta conjunta.

    Quer separar, eu separo. Agora, otrio eu no sou. Pode esquecer que esseprejuzo no meu. Olha a o extrato do carto, doutora. A senhora vai ver quemgastou o qu.

    Prosseguiu: E tem mais! Ainda faltam 38 prestaes do carro que ela usa.Imediatamente, Mariana replicou: Compensa com a festa, o filme e as fotos que ainda nem ficaram prontos e j

    foram pagos pelo meu pai.Os dois namoraram desde os 14 anos. As famlias eram amigas e estimularam a

    brincadeira no comeo. Os sogros eram chamados de tias e tios. A excelentecondio financeira propiciou aos pombinhos, durante quase dez anos, a fantasiade um mundo perfeito.

    No comeo, as viagens eram na companhia das famlias, ora para Angra, ora paraBzios. O prmio pelo ingresso de ambos na faculdade foi uma viagem de seismeses para a Europa sob o pretexto de aprofundarem a fluncia no ingls.

    Com gastos ilimitados nos cartes, pagos pelos respectivos pais, as despesaseram motivo de risadas entre os familiares, que, com orgulho, exibiam eostentavam as faturas em lojas de marca, restaurantes carssimos e boatesfrequentadas pelo jet set e jogadores de futebol.

    Ah, se no meu tempo eu tivesse essa moleza... ia casar pra qu? dizia o paide Mariana, na ausncia da filha.

    Os planos para o casamento tomaram forma na volta para o Brasil. Teriam maisde quatro anos para organizar a festa. Casariam no ano da concluso dos cursos de

  • direito e administrao, escolhidos por Mariana e Marcos, respectivamente.Tranquilos, bons alunos, no davam trabalho ou preocupao, o que poderia ser

    um indcio de problema. Qual o adolescente que cresce e se torna independentesem confronto ou sem, ao menos, tentar vencer alguns limites e errar outrastantas vezes?

    No aqueles dois. Eles pouco conviveram sozinhos. Saam em bando, com osamigos, ou na companhia dos pais. Estavam sempre ocupados com a reforma doapartamento que ganharam de presente, com os preparativos para o casamento,com os planos para o futuro. A vida, no presente, se resumia ao que estava poracontecer.

    Casar no era simples. No bastavam os noivos, o desejo de construir uma vidajuntos, o amor que sentiam um pelo outro e algum trocado pra dar garantia, comocantava Cazuza.

    Casamento passou de sacramento e ato jurdico para a categoria de projetoespecial. Impossvel realizar uma cerimnia sem iluminao, figurino, decorao,degustao, calgrafo, grfica, bem-casados, docinhos, enxoval em Nova York,coral, daminhas, roupa das daminhas, cabeleireiro, maquiagem, lua de mel noTaiti, ch de panela, jantar com os padrinhos, DJ, buqu, fotgrafo, cineasta,gravaes quase dirias do making of, site na internet, lista de presentes,reunies, compromissos, para enumerar o mnimo.

    Nesse mar de necessidades fabricadas e urgentes, o que menos importava era afinalidade da unio. A falta de qualquer dos itens impostos pelo cerimonialista erao passaporte para o fracasso.

    Nem trs meses depois do megaevento, que reuniu mais de quinhentosconvidados, ali estava o casal, querendo o divrcio porque o casamento no erabem o que esperava.

    Mesmo descrente da capacidade de reflexo dos dois, resolvi provocar um pouco,na tentativa de instigar algum questionamento, principalmente pela maneirainfantil com que se comportavam desde o incio da audincia:

    O que vocs esperavam? Caf na cama todos os dias de manh? Trilha sonoraao acordar, a casa arrumada, o bom humor permanente? Uma fada que recolhessea roupa espalhada no cho, as toalhas molhadas? Um duende que arrumasse acozinha e a loua?

    Os olhares blass e as caretas arrogantes indicavam que no se sentiamobrigados a ouvir nenhuma orientao. S admitiam a interferncia do Estadopara garantir os seus desejos. Nunca para contrari-los.

    Conclui: Tenho uma pssima notcia para vocs: quando a gente cresce, se no comprar

  • caf e papel higinico, no vo brotar da despensa.Mimados, refratrios s dores e s contradies prprias da humanidade,

    Mariana e Marcos eram o reflexo de uma gerao forjada no espetculo e noconsumo e tambm rasa nas manifestaes de afeto, desprovida de densidade.

    Cresceram naquele ambiente de felicidade obrigatria, e brincar de casinha, aosvinte e poucos anos, traduzia um hiato entre a realidade e a idade biolgica. Aindatinham alguma chance de assumir, no futuro, as escolhas das suas vidas.

    Sem capacidade para assimilar as grandes dores, ficariam blindados, tambm,das grandes alegrias, faces opostas da mesma moeda.

    Encerrei a audincia homologando um acordo no qual eles dividiram as dvidaspara pagamento pelos pais. Fiquei com a sensao de ter participado de um faz deconta, sem um final de felizes para sempre.

  • Doena inventada no cura

    Que coisa boa reencontrar vc. No vamos mais nos perder. Ainda bem que agente era feliz e sabia. Bj.

    Se aquela mensagem tivesse sido postada na pgina do Facebook do seu marido,por uma ex-namorada da adolescncia, h poucos anos, a reao no seria toexcessiva.

    Quarenta anos de idade e vinte de casamento deixaram efeitos devastadores navida de Marlia. A dura percepo de que, das leis da fsica, a mais concreta, noseu caso, era a da gravidade, empurrando tudo para baixo, a transformava namulher mais insegura do mundo, embora no tivesse motivos racionais paratanto.

    O filho foi para a faculdade em outra cidade. Otvio vivia a maturidadeprofissional, e uma promoo diretoria o obrigava a viagens frequentes. Com acasa vazia, Marlia tinha tempo para se dedicar aos seus projetos de jardinagem.Sempre reclamou do excesso de movimento e de obrigaes domsticas. Sonhavacom o dia em que poderia ocupar, sem culpa, o seu ateli, sem hora para almoo,supermercado ou problemas com a empregada.

    Fosse a vida previsvel e os desejos humanos estanques, aquele seria o seumomento mais perfeito. No entanto, o silncio era ensurdecedor. A falta dedesculpas para comear o que tinha planejado deixava Marlia responsvel peloseu destino. Era insuportvel no ter para quem terceirizar suas insatisfaes.

    O mau humor, no comeo pontual, passou a crnico. Por mais compreensivo egeneroso que Otvio fosse, ainda no havia sido canonizado. Vez ou outra perdia apacincia com as intervenes inoportunas da mulher. To logo ele sedescontrolava, Marlia assumia o comando com acusaes do tipo voc andamuito grosseiro comigo ou precisa disso tudo por causa de uma bobagem?.Comentrios que aprofundavam mais e mais a insatisfao.

    Ainda fibrilando com a explcita declarao de amor de outra mulher, maisacelerada ficou quando realizou que a postagem no Facebook podia ser vista portodos os conhecidos.

    Sentia-se velha, muito mais prxima dos sessenta do que dos vinte anos,desnecessria para o filho, ranzinza com o marido. Ele no tinha o direito de exp-

  • la daquela maneira. Viviam uma crise, verdade, mas jamais imaginou apossibilidade de ser trada.

    Sem qualquer reflexo, pegou o telefone e desmascarou Otvio para as amigasmais prximas. Insensvel, trara, des leal. No momento em que ela se sentia maisfrgil, ele decidira se lanar numa aventura do passado.

    As amigas mais ponderadas sugeriam que ela conversasse com calma antes dequalquer deciso. As outras cobravam uma atitude imediata. Ela sempre foimulher demais para ele. Era previsvel que isso fosse acontecer.

    Como Otvio s retornaria em trs dias, Marlia achou melhor no tocar noassunto de longe. Apenas com ele, pois a famlia e os conhecidos j sabiam.

    No satisfeita com o circo armado, sem que o palhao imaginasse o enredo queencontraria no picadeiro, Marlia fez mais. Ligou para o marido da fulana e,chorando, revelou o caso que ela estava tendo com seu companheiro.

    Na audincia, percebi que Marlia no estava muito convicta da separao,embora tivesse ajuizado a ao. O tempo todo ele negara o caso, o reencontro, atraio. No comeo, Otvio resistiu ao divrcio, mas, na falta de possibilidades deargumentar, acabou cedendo.

    Marlia se apegou hiptese que construiu e nada nem ningum a demoveriadas certezas acumuladas a partir da ligeira leitura de uma mensagem carinhosanuma pgina virtual.

    Constrangido, Otvio conversou com a amiga de infncia e com o marido dela.Desculpou-se pela mulher, que estava passando por um perodo turbulento.Tentou restabelecer a normalidade domstica.

    No houve santo que desse jeito. Marlia no podia perder a partida. Mobilizoutodo mundo. A dor que ela sentiu era real. Uma faca enfiada na espinha a fezcompreender o significado da dor de corno.

    Ela no podia voltar atrs. Ainda que tivesse vontade. Se ao menos no tivessecontado a ningum o ocorrido...

    Marlia... comecei assim que entendi que havia alguma possibilidade deabordar uma reavaliao. O tempo todo, desde que voc entrou aqui, tenhopercebido que voc tem dvidas sobre a separao. O fato de ter contado essahistria para os amigos e mobilizado a famlia no a obriga a seguir em frente coma deciso, exceto se for essa a sua vontade. Ningum vai viver a sua vida por voc.

    Ele estava disposto a continuar casado. Acreditava que aquela crise passaria eque era normal, depois de tanto tempo, tamanha insatisfao.

    Ela, embora tambm quisesse, no admitia perder o embate ou entender que ahiptese por ela mesma fabricada podia no ser real. Chegou a dizer que perdoariaOtvio se ele assumisse que a traiu.

  • Ele negou o tempo todo. Era uma bobagem a mensagem. Se fosse alguma coisareal, ele jamais permitiria tamanha exposio.

    No consegui concluir, com clareza, se Otvio havia pulado a cerca, masconsegui captar, nitidamente, que no era desejo de nenhum dos dois umaseparao aodada.

    Ponderei, ento: Por mais que tenha acontecido um encontro eventual, Marlia, coisa que o

    Otvio jura que no aconteceu, voc precisa avaliar se to grave a ponto deacabar com a vida que vocs construram juntos nesses vinte anos. Ningum ficacasado com ningum por tanto tempo porque tem o monoplio da sexualidade dooutro. Se rolou alguma coisa, o que no acredito minimizei , avalie se possvel esquecer e seguir em frente.

    Ela topou. Era o que queria desde sempre.Antes de sair, ainda a chamei e disse, sem que Otvio escutasse: Essas coisas acontecem com muita gente. As pessoas costumam mentir que

    so perfeitas. Mas preste ateno! para virar a pgina. No vai atormentar essehomem com essa histria!

    Durou pouco a sensatez. Voltaram depois de nove meses para o divrciodefinitivo. A realidade no conseguiu suplantar a hiptese.

    Impossvel vencer uma dor inventada.

  • Fiel todos os dias da vida

    Tem coisa melhor do que conhecer Paris com namorada nova, doutora?Apertando as mos de Guiomar, num gesto de carinho explcito e a olhando nos

    olhos, aquela pergunta poderia ser interpretada como uma declarao de amor deFrancisco. Exceto pelo fato de estarmos no meio de uma audincia de divrcio,pedido pelo prprio galanteador.

    O acordo era extremamente generoso para a mulher. Alm de penso alimentciapor prazo indeterminado, Francisco fazia a doao do apartamento onde moravampara Guiomar. Aquilo parecia algum tipo de fraude ou simulao, comunsnaqueles tempos de crise econmica. Pouco confortvel para homologar asclusulas, questionei:

    Vocs esto casados h pouco mais de dois anos. So maiores, capazes epodem fazer o que quiser com o patrimnio, mas vejo que o sr. Francisco j temmais de 40% de desconto na aposentadoria para pagamento de outras penses.

    Apreensivo, ele me olhava como que interrogando aonde que eu queria chegar.Continuei: Se descontar mais 20% agora, vai sobrar pouco para a sua prpria

    sobrevivncia. Dona Guiomar tem ganhos confortveis. A rigor, nem precisaria dapenso. E ainda tem o apartamento que s seu e que pretende doar para ela. exatamente isso o que querem?

    Francisco no a deixava responder. Piscando o olho e assumindo a conduo daconversa, disse com a voz pausada, meio rouca. At sedutora:

    A doutora no est me reconhecendo... A ltima vez que estive aqui, asenhora falou que eu era muito generoso.

    Seu rosto era familiar, embora no o tivesse identificado no comeo da audincia.J passara por aquela mesa duas vezes. A terceira foi em outra Vara de Famlia.Francisco terminava seu quarto casamento, desta vez com Guiomar.

    Norma, a detentora do maior tempo da sua vida de casado, era a me de seustrs filhos. Era tambm a nica que no falava com ele.

    Compreensvel, doutora. Nenhuma mulher, depois de 25 anos de casamento,pode aceitar ser trocada por outra muito mais jovem. Nem adiantava explicar queno era uma aventura. Foi paixo. Daquelas que tiram a gente do cho, deixam a

  • mo suada, o corao aos saltos.Desde a primeira vez que viu Patrcia, Francisco no teve sossego. No era

    homem de amantes ou relacionamentos fora do casamento. Era homem de umamulher s. Uma de cada vez.

    Ele nunca se interessou por meninotas. Patrcia, apesar da pouca idade, eramadura, inteligente, sensvel. Sabia o que queria. Estava disponvel para o projetode guinada de vida que Francisco, aos cinquenta anos, resolvera empreender.Partiria com ele para a fazenda. O encantamento que sentiam um pelo outro, aadmirao com que ela ouvia as suas histrias, a possibilidade de poder reviver,pelos olhos dela, experincias que tivera na juventude, tudo isso suplantaria otdio de permanecer numa regio meio isolada e inspita. Patrcia era a mulher deque Francisco precisava naquele momento.

    Francisco deixou quase todo o patrimnio imobilirio para a ex-mulher, Norma,e um ressentimento que at o dia de hoje ela no conseguiu sepultar.

    Mas Patrcia queria filhos. Tinha grande curiosidade pela vida. Muitorapidamente enjoou da rotina de isolamento. Ele jamais se interporia entre osdesejos da mulher e as possibilidades de concretiz-los.

    Mais um apartamento, mais uma penso e Francisco estava pronto paraprosseguir numa estrada prdiga na oferta de afetos. Antes mesmo da separaooficial, numa das suas viagens de trabalho, conheceu Isabel.

    Se o encontro com Patrcia o chacoalhou para a vida, o que dizer de Isabel?Finalmente sua alma gmea, pensou.

    No era to jovem. No queria engravidar, no pretendia descobrir a plvora.Recm-divorciada, independente, me de dois filhos, Bebel compreendia sua alma.No era apenas uma empolgao. Francisco nunca vivera um relaciona mento tohorizontal como aquele. No precisava provar sua virilidade. Um amor tranquilo,seguro, do qual ambos eram merecedores.

    Ela resistia ideia de casamento. Jurara que, na mesma casa, outro homemnunca mais!

    Francisco sabia esperar. Numa viagem a Praga, depois da pera com champanhe,um apelo verdadeiro fez Isabel rever sua deciso.

    Eles no precisavam um do outro. Eram adultos, independentes. No sedeixariam impressionar pelas fantasias do amor romntico, pelas falsasidealizaes. Sabiam que o que viviam era diferente, definitivo. Impossvel ter agraa de poder viver um amor daqueles e desperdiar a oportunidade por medo ouresistncia cega. Casaram.

    Teria envelhecido ao lado de Isabel, no tivesse Guiomar cruzado o seu caminho.Ele no procurava. Era atropelado pelas oportunidades e no sabia dizer no a

  • nenhuma delas. No achava leal nem correto permanecer ao lado de uma mulhere amar outra.

    Jamais trairia a mulher amada. Era contra todos os seus princpios. Mesmo como risco de ser malcompreendido, preferia ser julgado por inconstncia do que poreventual mentira ou acomodao. Vivia seus amores com intensidade, investia nasrelaes com o desejo de eternidade. Sofria com o fim do amor, mas sabiaidentificar os novos caminhos. Padecia de esperana crnica aquele homem.

    Isabel recusou qualquer auxlio material. De todas as experincias que tivera,essa foi a separao que mais angstia lhe trouxe. Ainda amava a mulher, mas seencantara por outra. No tinha o direito de submeter Bebel, sua irm de alma, ssuas dvidas e apreenses. Foi doloroso o fim, mas sobreviveram.

    Guiomar tinha a idade de Francisco. Viva, depois de quarenta anos decasamento, reencontrou seu primeiro namorado. O primeiro homem da sua vida.

    O olhar dele tinha o mesmo brilho, Excelncia informou Guiomar.Era a primeira vez que falava na audincia, sorrindo, como se estivesse narrando

    uma cena de um filme bom. Ela prosseguiu: A sensao era a de que o tempo no havia passado. Mais de duas horas, e a

    intimidade indecente que une dois adolescentes, em algum momento da vida,estava restabelecida.

    Redescobriram os prazeres das afinidades. Falaram sobre as saudades e aslembranas. Compartilhar as primeiras vezes cria uma cumplicidade para a vidatoda. Tanto as primeiras descobertas sexuais quanto as primeiras ansiedades emedos. Deve ser por isso que os amigos desses tempos so to ntimos ecarinhosos, mesmo quando no remanesce qualquer interesse ou objetivo emcomum.

    Eu nunca pensei em casar outra vez contou Guiomar. Mas ele irresistvel na conversa. Toda a vida foi assim. Disse que era hora de aquietar, quefinalmente ia viver, comigo, um amor de outono. E me levou a Paris. Nossasreferncias de vida e de literatura estavam em toda parte. No cansvamos deouvir as histrias um do outro e casamos.

    Guiomar continuou, falando carinhosamente e compreen siva. Eu sabia que ele no ia aguentar muito tempo, doutora. Nos conhecemos h

    dcadas. As pessoas no mudam. Mas ns somos muito amigos e ele merececontinuar tentando.

    Percebi uma pontinha de ironia na fala doce de Guiomar. Ela decidiu que erahora de envelhecer ao lado dos netos. J passara da fase das montanhas-russas daspaixes.

    Francisco, provavelmente, j encontrara um novo amor para sempre e,

  • novamente em Paris, reviveria a renovao da eternidade.A tentao de julgar Francisco, adjetiv-lo de imaturo e infantil, era grande. As

    suas histrias e a sua capacidade de seduo e encantamento, no entanto,dificultavam qualquer juzo de valor.

    Decretei o divrcio, aliviando a culpa de Francisco com o acrscimo material aopatrimnio de Guiomar e contei para eles uma histria que ouvira h alguns anos.

    Numa mina de carvo, na Polnia, socilogos coordenavam uma pesquisa paramapear o perfil daquela sociedade. Perguntaram a um velho carvoeiro o que elefazia na vida. Ele respondeu:

    Eu amo Olga.Nada na vida era mais simples e importante do que amar aquela mulher. Espero, sr. Francisco, que o seu amor pelas suas Olgas tenha essa mesma

    dimenso. At a prxima!

  • Direito ao sonho

    A senhora pode, por favor, perguntar se ela tem certeza mesmo do que tfazendo?

    Seu Honorato, nem preciso perguntar. Se vocs esto aqui neste momento, porque a sua mulher pediu o divrcio. Ela no quer mais continuar casada.

    Sria, cabisbaixa, silenciosa, Maria Jos assistia aptica resistncia inexplicveldo marido. Estavam juntos h quase cinquenta anos. Pareciam dois estranhos. Eravisvel o abismo instalado entre o casal. Foi preciso uma grande dose de coragempara que procurasse a Defensoria Pblica. Nunca acreditou que tivesse fora. Foicriada em outra poca. Mulher separada era malvista e nem em sonho podiacontar com o apoio dos familiares. Casamento era para sempre.

    Comeu a carne? Agora ri o osso!, esse era o conselho da me todas as vezesque ela ensaiava alguma queixa. Aprendeu, ento, a sofrer sozinha e resignada.Lavou, passou, cozinhou, fez salgados para fora, criou as trs filhas, viu a cabeaficar branca e a pele encarquilhar. No se lembrava de um riso ou de uma alegria,nem mesmo o nascimento dos netos. Era coisa comum, criana tudo igual.

    A pacincia com que eu ouvia aquelas histrias era proporcional ao tempo e aorespeito que devia ter para com um casal na iminncia de completar bodas deouro. Aparentavam mais idade e se percebia que a vida no fora prdiga comnenhum dos dois.

    Ela casou aos 15 anos e ele aos vinte, e no era o caso de gostar ou no gostarum do outro. O pai dela escolheu e pronto. Mudaram-se para outro estado, ondeMaria Jos no conhecia ningum. A vida se resumia a acordar e dormir, paraviabilizar o po na mesa e o tijolo para a construo de uma casinha no fundo dacasa do sogro.

    Alguma lembrana boa? No tenho nenhuma, no, senhora. J sabe o que fazer no futuro? Tambm no sei, no. Cada um recebia um salrio-mnimo por ms da aposentadoria e a renda era

    complementada com faxinas e docinhos para festas. Todas as filhas moravamlonge e o que sobrou da vida toda foi um aparelho velho de televiso, doao de

  • uma ex-patroa, que permitia que a noite encurtasse ao som das vinhetas dastelenovelas.

    Era difcil concretizar a separao do casal porque o teto era nico e aperspectiva de viabilizar nova moradia, nenhuma. Vender a construo e dividir arenda por dois era a pior escolha.

    Percebi que no era o caso de manter o casamento, pois nenhum gesto, olhar oupalavra apontava para essa possibilidade, mas, ainda assim, perguntei:

    Parece que no tem mesmo jeito de vocs continuarem casados, mas jpensaram na possibilidade de, como amigos, depois de quase meio sculo,dividirem a mesma casa?

    Claro que d, doutora! apressou-se Honorato em responder. De jeito nenhum! replicou ela, sem alterar a voz e olhando para a mesa. Mas por qu, Maria Jos? retrucou ele. Deixa de ser boba! A senhora acha que eu posso me humilhar mais? Juza, eu achei uma cartela

    daquele remdio azul no bolso dele. E tinha um usado. Mas minha Nossa Senhora! Essa mulher maluca?! Claro que foi usado. Eu

    usei com ela mesma! verdade, dona Maria? perguntei, incrdula, segurando a vontade de dar

    uma gargalhada. verdade, sim! E a senhora acha normal essa sem-vergonhice na idade da

    gente? Se a nossa vida pudesse ser parmetro para a vida dos outros, minha resposta

    teria sido autoritria e imperativa. Maria Jos tinha o que toda mulher sonhava:um homem que a desejava depois de quase cinquenta anos. Mas no era to bvioassim o desenlace daquele caso concreto.

    Ela jamais sentiu prazer ou afeto pelo marido, e sua histria foi de submissosilenciosa, sexo consentido por obrigao e ressentimento. Nunca expressoudesejos ou fantasias. Nunca sonhou ou idealizou uma relao. Nunca desejouaquele homem. Jamais, nesses anos todos, ele teve a delicadeza de perceber que abanalidade do sexo era incompatvel com um projeto de vida em comum, quedemandava cuidado, carinho, ateno.

    Submeteu-se s escolhas que foram feitas em seu nome e jamais assumiu oprotagonismo da sua vida.

    A falta de expresso das suas emoes e o distanciamento das filhas e dos netoseram os sintomas de que, depois de acordar, dormir e trabalhar durante tantosanos, nunca se enxergou como integrante da humanidade, com possibilidades depensar a vida e transform-la.

    Marionete de diversos ventrloquos que assumiram seu comando ao longo da

  • existncia, sem direito a qualquer improviso, pela primeira vez Maria Jos falavapor si e expressava seu firme desejo de no mais permanecer ao lado daquelehomem.

    Com as filhas criadas, a idade avanando, pensou que finalmente teria umapausa nas abordagens do marido e, sem coragem para negar o sexo, escolheu aseparao.

    Tambm a vida de Honorato no foi um festival de escolhas. Para quem precisase ocupar da sobrevivncia sobra pouco tempo para a transcendncia, para ossonhos e delrios. Pensar o afeto, discutir a relao, fantasiar desejos, materializarmanifestaes de carinho, amar, enfim, eram concesses que a vida fazia paraalguns, e aqueles dois, no processo arbitrrio e nada democrtico que costumadeterminar essas coisas para uma grande maioria, no foram selecionados paradefinir seus prprios caminhos.

    Cumpriram seus papis de sobreviventes, e a nica escolha de Maria Jos, aosquase setenta anos, devia ser respeitada.

    Uma parede divisria no meio do pequeno imvel e a construo de entradasseparadas. Essa foi a soluo encontrada e aceita por ambos. Saram da audinciadivorciados.

    Na sala vazia, depois da sentena, senti uma tristeza profunda traduzida pelocotidiano daqueles dois. O acesso justia era formal e injustamente continuariama viver, como sempre viveram, sem acesso esperana, ao sonho e ao amor.

    Lembrei-me de um texto de um poeta que dizia que o homem o nico animalque sonha. verdade. Mas s para alguns...

  • Quem cuida dele?

    Voc no precisa fazer isso, Camila. Por favor...A audincia mal havia comeado. Bruno e Camila eram casados h quase 23

    anos e tinham um filho de 18. Era um divrcio consensual, sem sintomas degrandes conflitos ou complicaes.

    Bastavam duas assinaturas e era o fim. Mas a caneta estancou na mo da mulhere a tinta congelou com a temperatura do seu sangue e da sua indignao.

    Apesar do visvel constrangimento de Bruno, que tentava evitar que elaprosseguisse nas ameaas, Camila continuou:

    J contou pro seu filho? Ele j sabe que vai encontrar seu namorado morandona sua casa quando for passar o fim de semana com voc?

    Olhando para a mesa, calmo, mas constrangido, ele suplicou em voz baixa: Assina, por favor. Vamos acabar logo com isso. Esse problema nosso e j

    estamos resolvendo.No era essa, no entanto, a leitura de Camila. Doutora, como eu fao pra proibir que o meu filho frequente a casa dele?Encarando Bruno, cabisbaixo, ela prosseguiu: Nem preciso me preocupar com isso. Voc acha que seu filho vai querer te ver

    depois que souber que o pai virou veado?Sem reao verbal, Bruno levantou o rosto pela primeira vez e me lanou um

    olhar, suplicando por socorro.Interrompi Camila, que compulsivamente acusava Bruno de ter aniquilado sua

    vida e de toda a famlia. Olha, aqui apenas uma audincia para resolver o divrcio. Nisso, os dois

    esto de acordo. Os problemas que vocs precisam administrar no so jurdicos.Vamos, ento, poupar tanto sofrimento e abreviar a burocracia?

    Mas Camila no estava mesmo disposta a nenhum resumo. Seu objetivo eramassacrar Bruno diante de uma plateia que ela acabara de eleger.

    No era fcil encarar o que estava vivendo. Durante trs anos, Bruno sesubmeteu a um tratamento para uma doena grave diagnosticada com dificuldade.Algumas internaes longas, o risco de morte iminente, at a cura h menos deum ano.

  • Quando ela imaginou que a vida fosse retomar seu rumo de normalidade como se existisse normalidade possvel na vida , Bruno sai de casa para vivercom um amigo. O mesmo amigo que, durante a doena, dividia com Camila odesgaste de passar noites insones na cabeceira do marido, em diversos hospitais eclnicas.

    Ela nunca desconfiou de nada. Era um alvio poder dormir na companhia dofilho e cuidar da casa, algumas noites, sabendo que Bruno estava amparado porum amigo com quem tinha afinidade e segurana. A sua gratido por Pedro eraeterna.

    Mas da a ser trocada por ele, isso ela no admitia. Nem na noite em que Brunoquase morreu sentiu uma dor parecida.

    Bruno, chorando, comunicou mulher que a estava deixando. Aproveitou umfim de semana com o filho fora de casa, arrumou duas malas e saiu. Foi a decisomais difcil da sua vida. O confronto com a morte desencadeou a determinao deque precisava. No era uma histria antiga, mas era urgente.

    Nunca tinha vivido uma experincia com outro homem. Repetia essa frasemuitas vezes. Tentava se justificar. Tentava minimizar a dor da mulher.

    Aconteceu, doutora. No foi culpa minha. Se eu pudesse escolher, a senhoraacha que eu ia estar passando por isso?

    Tive certeza de que no. Ningum, se pudesse, estaria passando por aquelaexperincia. Nem Camila, que merecia serenidade depois da montanha-russa emque se transformou sua vida nos anos de doena do marido. Nem Bruno, que,curado, merecia usufruir com qualidade as escolhas que quisesse fazer. Nem eu,que fiz um concurso para decidir questes objetivas das separaes e ali assistia,como espectadora da alma humana, a uma tragdia, sem saber o que fazer ou oque falar para aliviar tantas dores.

    Percebendo a angstia de Bruno, Camila mudou o tom. Falou, agora serena. Foiat carinhosa:

    Bruno, a gente passou pela vida juntos. Eu sei que voc t assim por causa dadoena. Tenho certeza que isso vai passar. Eu espero. A gente supera isso. Juntos.

    Bruno no queria tentar. Tinha convico da sua escolha. Tinha sido muito difcilchegar quele ponto. No se permitiria voltar atrs.

    Camila foi a grande mulher da sua vida. Ele a amou. Com ela viveu seusmelhores momentos. Tinham um filho que adoravam e admiravam. Eraprofundamente grato mulher pela cumplicidade, principalmente nos anos difceisda doena. Eram pessoas ntegras. Sempre se respeitaram. Com o tempo, elaentenderia que era em nome da lealdade que ele assim decidia. Amava outrapessoa. S isso.

  • Percebi, naquele momento, que a maior dor de Camila no era o fato de ter sidotrocada por um homem. O que a dilacerava era o fim do amor. No tinha jeito. So tempo.

    Ela concordou em assinar o divrcio e resolver de uma vez ao menos a partelegal do conflito. Sugeri que eles procurassem um terapeuta. Era necessrio para ainsero do filho adolescente naquele novo desenho das relaes familiares.

    O silncio profundo permitia que se ouvisse a tinta da caneta deslizando sobre opapel durante as assinaturas.

    Camila ainda encontrou espao para a ltima pergunta: Doutora, quem que vai cuidar dele quando ele precisar?Nada falei, mas pensei: h momentos, Camila, em que cada um cuida de si.

    Desejei, silenciosa e verdadeiramente, que eles superassem tanta dor.Tive certeza, no entanto, de que a pergunta final de Camila era mesmo a porta

    entreaberta que ela deixava para o caso de Bruno escolher voltar.

  • Quando o amor acaba em silncio

    Eu sou incapaz de criar qualquer problema, doutora. Sou da paz. s asenhora olhar para mim e vai ver que impossvel eu ser esse monstro que elaest pintando.

    H quase trs horas, Marisa e Norberto tentavam terminar um casamento de 18anos, dois filhos, um apartamento e muito silncio.

    O desequilbrio foi percebido desde o comeo da audincia. Bastou uma perguntasobre a possibilidade de conciliao para que ela engatasse a primeira marcha e,numa golfada, despejasse sua insatisfao, ansiedade e urgncia na soluo dodivrcio.

    Norberto, em cmera lenta, parecia querer tranquilizar a mulher. No seriaempecilho para a liberdade que ela tanto ansiava. S no tinha pressa e, emnenhuma hiptese, sairia de casa, exceto quando encontrasse um local do seuagrado para a mudana, no tempo que fosse necessrio.

    Quanto mais calma a sua voz, maior era a exasperao de Marisa, que nosuportava sequer ouvir o marido sem sentir um inexplicvel incmodo que setornara crnico nos ltimos meses e fazia arder a boca do estmago.

    H quase dois anos, ela tomara a deciso da separao, e, de l para c, umabismo se instalou entre o casal.

    Ela reclamava em silncio. Ele percebia e fazia questo de ignorar, como um jogode provocao para testar quem aguentava mais tempo aquele convviodesagradvel.

    No precisava ser assim. Tantos amigos j haviam passado pelo fim docasamento. Alguns confusos, outros mais civilizados, mas todos chegaram ao fim,de um jeito ou de outro dizia ela.

    Por que, com eles, era diferente? Por que ela no conseguia dizer ao marido oque sentia e o que pretendia? Por que ele, mesmo entendendo, fazia questo deignorar, ampliando a distncia e o sofrimento?

    Perguntava em silncio. Respondia em silncio. Conclua em silncio. Esqueceraque dos silncios profundos que se alimenta a angstia. Nunca aprendera queduas angstias silenciosas apodrecem as almas e contaminam, de formadevastadora, qualquer vida em comum. Sobra o deserto. E o silncio. Em silncio,

  • eu refletia, enquanto seguia a audincia.No comeo, Marisa achou que a vida se encarregaria de definir a separao. No

    era urgente. No tinha outra pessoa. No repelia Norberto. Apenas no o amavamais.

    No conseguia lembrar como o amor acabara. No tinha um sintoma claro.Acordar, tomar caf, ler jornal, olhar para o relgio e s 7h45 diagnosticar o fim doamor. Definitivamente, no era como acontecia na vida. Ao menos na sua.

    Perdera a vontade de conversar e ouvir as histrias do marido. Eram todas iguaise sem sal. Ser que, em algum momento da vida, verdadeiramente se interessoupor elas?

    No incio do fim, consentia o sexo, mesmo sem vontade. Com o passar dotempo, no mais. Desculpas, dores de cabea, cansao, at que ele deixou deprocur-la.

    Nenhum dos dois tinha vontade para um reencontro ou para uma reconciliao.Nessas horas, sem uma deciso pela separao, o afeto comea a adoecergravemente e o que era um machucado passageiro se transforma num mal semcura.

    Eu olhava para o casal e tentava imaginar em que momento da vida eles seamaram, se admiraram, se respeitaram. Como teria sido o nascimento dos filhos?Onde sepultaram o desejo que os levou cama durante todos aqueles anos?

    Naquele emaranhado de silncio e distncia, secou toda a vida de tantos anos.Nem a saudade dos bons momentos, nem as lembranas do que construram pelocaminho. No sobrou nada.

    A nica divergncia objetiva era com relao sada dele da residncia. Os filhos,adolescentes, queriam permanecer com a me. Nenhuma briga quanto pensoalimentcia.

    Mas quando, aparentemente, tudo caminhava para uma soluo razovel, eleretrocedia e monocordiamente voltava cantilena da calma e da tranquilidade.

    Depois de vrios retrocessos, Marisa perdeu o controle. Aos prantos, expunhaseu pnico diante daquele quadro que cansara de apreciar ao longo dos doisltimos longos anos.

    A mscara de ponderado e tranquilo que Norberto vestira, mais que repulsa, lhecausava medo. Sentia-se ameaada por ele. Enxergava naquele tom de voz enaquela resistncia irracional uma ameaa sua sensatez. No fazia sentido. Ele jestava namorando outra pessoa. Podia viver na casa da sua famlia. Seu objetivoera retardar uma soluo importante para a libertao de ambos.

    Na falta de qualquer argumento razovel para justificar a resistncia, veio umacontraproposta para que concordasse em sair imediatamente de casa: uma

  • indenizao pelos danos morais que Norberto afirmara estar sofrendo ante adeciso de Marisa pela separao.

    Quando ns casamos, doutora, assumimos o compromisso pela vida toda. Seela quer romper o compromisso, justo que eu seja indenizado. No violeinenhuma obrigao do casamento. Fui fiel enquanto convivamos como marido emulher, sustentei minha famlia. Por mim, continuava assim. A senhora estvendo de quem a responsabilidade nessa histria...

    Naquelas poucas horas, diante daquela voz arrastada e de argumentos torasteiros, vindos de uma pessoa de uma condio social e cultural razoveis,consegui entender o tamanho da exasperao que Norberto provocava em Marisa.

    Ele insistia na objetividade dos seus argumentos e no descumprimento, por parteda mulher, de um contrato pactuado para toda a vida. O fato de ele no a amar erauma reao e no a causa para o divrcio.

    O que parecia incomodar Norberto no era o trmino do relacionamento, mas aperda de um poder irracional que tiranizava Marisa e s se sustentaria no silncioe nas sombras.

    Verbalizado o medo, iluminado o poro, os caminhos de ambos seriam maisleves.

    Lamento, Norberto. No tem indenizao. Ningum responsvel pelo fim doamor. No tem tabela de ressarcimento.

    Concordou em sair de casa. Divorciados, em silncio, deixaram a sala.

  • Sem crime, sem castigo

    Vou tentar esclarecer, pela ltima vez, Rosana. Voc pediu o divrcio. Vocpediu penso, indicou como quer que o patrimnio seja dividido. Ainda disse quepretende a guarda das crianas e regulamentou a visita do pai. Certo?

    At aqui, Rosana parecia entender e concordar. Mas o impondervel vinha aseguir. Continuei:

    O Rodrigo concorda. No s com o divrcio, mas com todas as condies quevoc estabeleceu.

    H mais de uma hora, eu tentava fazer a mulher entender que transformar umpedido de divrcio judicial em consen sual no significava mudar nada do que elaqueria.

    Mas o que Rosana no podia admitir era sair do frum, divorciada, sem que fossereconhecida a culpa do marido pelo fim do casamento.

    Intrigante aquele sentimento. Mesmo desejando o fim, Rosana precisava de umdocumento oficial a eximindo da res ponsabilidade por no ter sido capaz demanter a unio at o tmulo.

    Deve ser verdade que a paixo priva os sentidos. No fosse isso, como seriapossvel que algum prometesse ao outro fidelidade, amor, todos os dias da vida,at a morte?

    Para sempre, nunca, infinita e eternamente me pareciam advrbios vinculados aum tempo de adolescncia da alma, no qual no se morre e no se espera.

    No entanto, naquele estado de entorpecimento, era natural e bvio acreditar emum cotidiano diferente todos os dias da vida. Assim, as pessoas se uniam. Assim,Rosana e Rodrigo casaram e juntos viveram treze anos.

    Eu no podia continuar suportando tanta humilhao, doutora. Ele me traa.Saa com outras mulheres. Todo mundo sabia. Menos eu.

    Eu j havia entendido que Rosana entrara com o processo porque acreditava queo marido tinha outros relacionamentos. Mas ele concordava com tudo o que elaqueria. Para que diagnosticar a culpa?

    No havia sentido em apurar quem era o mocinho e quem era o bandido naseparao. Alis, sempre tive muita dificuldade com esses conceitos. Nuncaentendi a finalidade de se determinar quem o responsvel pelo fim do afeto.

  • Rosana insistia. No era pela incapacidade de am-la que Rodrigo deveria serpunido. A culpa era pelas sucessivas traies. Ento fidelidade era apenas umconceito formal? Ele assumiu o dever da monogamia quando casou e no honrouo compromisso.

    Tem que haver uma sano! bradou ela.Rodrigo, impaciente, resolveu se defender. No precisava, mas ele fazia questo.

    S ela falara at ento.Mesmo no sendo relevante para o julgamento do processo, toda vez que percebo

    que h incmodos ou angstias subjacentes, permito que as pessoas usem oespao da audincia para tentar resolv-los.

    Muitas vezes, o desgaste de tal ordem que somente ali, diante de um juiz, elesconseguem verbalizar os sentimentos, como se contassem com a ajuda de umtradutor.

    Rodrigo queria encerrar imediatamente o assunto. No a traiu muitas vezes nemteve tantas mulheres, como ela dissera. O cime de Rosana foi minando o amor.

    No comeo, ele concordou em deixar a pelada com os amigos, s quintas-feiras.Tambm era bom tomar um vinho com a companheira.

    Depois, foi se afastando paulatinamente dos conhecidos. Para Rosana, todas asmulheres com quem o casal convivia eram amantes em potencial de Rodrigo. Eleachava graa. Sentia-se sedutor, poderoso.

    Com o passar do tempo, foi ficando chato. As viagens que fazia a trabalho eramocasies, como insistia Rosana, nas quais ele, certamente, levaria as namoradas.Impaciente, Rodrigo nem respondia.

    Quando no tinha mais o que controlar, Rosana passou a querer se apropriar dospensamentos e fantasias do marido. No o deixava em silncio sem questionar omotivo. No respeitava sua individualidade. Fez um escndalo quando encontrou,no escritrio, uma revista masculina. Ele cansou.

    A metstase, originada no cime, atingiu de morte o amor.Rodrigo no teve coragem de pedir a separao. Deixou rastros para que Rosana

    tomasse a iniciativa.Assim foi feito. No contava Rosana, contudo, com a aquiescncia fcil dele. A

    facilidade com que Rodrigo concordou com o fim demonstrava que ele no searrependera nem pretendia o seu perdo.

    Pedi licena ao casal e rapidamente encontrei na internet um texto de Barthesque me ajudaria a encerrar aquele ato.

    Escuta, Rosana: O homem ciumento sofre quatro vezes: por ser ciumento,por se culpar por ser assim, por temer que o seu cime prejudique o outro, por sedeixar levar por uma banalidade; ele sofre por ser excludo, por ser agressivo, por

  • ser louco e por ser comum.Nem cime, nem culpa, nem arrependimento constroem novas possibilidades.

    Uma sentena declarando a traio no aliviaria qualquer dor.O que tive vontade de fazer (e no fiz), antes de homologar o acordo consensual,

    foi colocar a msica de Chico Buarque e perdo-la por ter sido trada.Temi ser invasiva e tive receio de no ser compreendida.

  • Liberdade ainda que tardia

    O senhor est coberto de razo, seu Alberto. Ningum obrigado a continuarcasado. No h lei que imponha essa obrigao. O que estamos tentando encontrar uma maneira justa de dividir o patrimnio que vocs construram em 43anos e estabelecer o valor da penso que o senhor pagar dona Julieta.

    No era uma partilha simples. Grande parte do dinheiro circulava pelas contasda famlia margem da formalidade. Os valores declarados nos impostos de rendaeram incompatveis com os gastos dos cartes de crdito e com a vida opulentaque ostentavam.

    Eu havia suspendido a primeira audincia, trs meses antes. Julieta e Albertochegaram com um advogado apenas, representando os dois, para homologar umacordo de divrcio extremamente desigual para as partes.

    Na ocasio, Alberto pretendia continuar administrando todo o patrimnio docasal e pagando as despesas da casa onde Julieta permaneceria residindo.

    J falei pra ela que o que precisar s me avisar. disse ele, na ocasio.No podia ser daquela forma. Ainda que tenham vivido juntos tanto tempo, com

    o divrcio era natural que cada qual cuidasse da sua vida. No homologaria umacordo que resultasse na submisso da mulher dependncia voluntariosa domarido. Era dele a vontade de se separar. Era direito dela assumir sua prpriavida.

    Sugeri que ela procurasse outro advogado, e o processo foi suspenso at aquelanova audincia, que acabara de comear.

    Alberto queria o divrcio. Aos 67 anos, apaixonara-se por uma mulher de 32. Eledecidira viver intensamente a nova relao. Seus dois filhos eram independentes emais velhos que Aninha, sua atual companheira.

    Julieta no casou por amor. Isso no era importante naquele tempo. Precisavamde estabilidade, e foi, para ela, uma unio conveniente.

    Discutir a relao iguaria fina. Quem precisa cuidar da sobrevivncia no podese dar ao luxo de questionar se o casamento vai bem ou vai mal.

    Era um tempo de matrimnios verticais. Mandava o marido. Obedecia a mulher.Do comrcio difcil empresa familiar, experimentaram uma mudanasignificativa na vida material.

  • Nada que interferisse no afeto inexistente. A multiplicao dos imveis, dasviagens, os desperdcios possveis, nada se parecia com as dificuldades dosprimeiros anos do casamento.

    Julieta nunca trabalhou fora de casa. Nunca se preocupou com as contas.Economizou, quando necessrio. Gastou o quanto podia, sem qualquer restrio.

    Escolheram a vida burocrtica a dois. Se insatisfeitos, s os respectivostravesseiros sabiam.

    Aos 63 anos de idade, Julieta no imaginava um divrcio na sua vida. Abriu moda juventude, sem reclamar, para viver da maneira possvel. Por que, no incio davelhice, teria que se preocupar com tamanha mudana?

    Alberto sempre teve seus casos. Ela nunca soube, ou preferiu,convenientemente, no saber. Ser que ele tinha perdido o juzo? Estava senil?No enxergava que a mulher nova s queria o seu dinheiro?

    Se dinheiro o que ela quer, doutora, eu dou. Ou a Julieta acha que eu tenhoque bancar a famlia dela?

    Alberto tinha razo, em parte. De fato, com o seu dinheiro podia fazer o que bementendesse. O que no era possvel, no entanto, era dispor da parte de Julieta.

    Tratava a mulher grosseiramente. Parecia querer culp-la pela interdio de viversua paixo com a intensidade e a urgncia de que se julgava merecedor.

    Intransigente, no aceitava nenhuma forma de partilha proposta e se recusava apagar penso alimentcia.

    Acostumada submisso silenciosa, Julieta no reagia. Na verdade, nem sequerimaginava que era possvel se impor como titular dos seus direitos, especialmenteos direitos liberdade e dignidade.

    Ela no precisava ceder indevida presso do marido. Quem tinha pressa eraele.

    Se eu tivesse presidido aquela audincia h uns dez anos, Alberto estaria emmaus lenis. Confesso que eu costumava ter uma certa parcialidade para julgarprocessos nos quais as mulheres eram trocadas por outras muito mais jovens.

    Nada como o tempo para exercitar a compreenso e a generosidade. Nada comoler Mrio Benedetti, escritor uruguaio dos amores e da liberdade. O frescor de umamor jovem, em determinado momento da vida, pode significar uma trgua noinexorvel destino do envelhecimento e da morte.

    Pouco importava para Alberto se era recproco ou interessado o afeto de Aninha.Tinha que apostar os anos que lhe restavam em um novo projeto que dessesentido sua vida.

    No que aquele Alberto, sentado na minha frente, tivesse sensibilidade paraentender o que lhe acontecia. Seu comportamento tosco revelava que pouco

  • aprendera da vida e do afeto.A forma com que se comportava na audincia deixava transparecer sua

    insensibilidade. Acostumado com o domnio e com a lgica irracional do quempaga manda, achou que estava sendo convincente quando me interpelou:

    A senhora uma mulher independente. Aposto que no acha razovel algumviver de penso alimentcia. Os direitos no so iguais? Eu no tenho direito deser feliz?

    Quase perdi a pacincia. Ensaiei dizer a ele que, para que os direitos fossemverdadeiramente iguais, era necessrio que os homens parissem e amamentassem.Depois, sim, poderamos conversar.

    Mas no era a escolha de Alberto que eu estava julgando. Eu no podia serpassional. Tambm no pretendia falar em nome de Julieta. Emboratemporariamente assustada com seu novo papel, com o tempo ela assumiria asrdeas da sua vida. Falei com cuidado:

    Seu Alberto, ns no estamos tratando de um casamento breve. Foram 43anos de vida. A dona Julieta nunca trabalhou. No agora, aos 63 anos, que elavai conseguir um emprego. O senhor tem todo o direito de casar outra vez e serfeliz. Ela tambm. Olhe para trs. Aposto que, numa balana, as lembranasmelhores pesam mais que os desencontros.

    Propus uma forma de partilha que aprendi com uma colega, Maria Lcia Karam,em sua rpida e intensa passagem pela Vara de Famlia: ele dividiu o patrimnio,ela escolheu a metade que quis.

    Resignada, Julieta pediu que ele continuasse administrando a sociedadecomercial. Embora pssimo marido, era excelente negociante.

    Desarmado o esprito, ele ainda tentou barganhar o valor da penso. Aproveiteique o clima desanuviara, que os dois estavam conversando amistosamente, epropus uma quantia razovel. Disse a ele:

    Olha, seu Alberto, o senhor quer se divorciar. Vai casar de novo, com umamoa que tem menos da metade da sua idade. J que o senhor falou em direitosiguais, vamos ajustar a quantia. Continuei: A vida tem sido prdiga com oseu gnero. comum que os homens, ricos ou no, encontrem mulheres jovensdisponveis. Com as mulheres, no entanto, o quadro diferente. Como dizemumas amigas: A pista t cheia! Para a dona Julieta viver bem, sozinha ouacompanhada, vai precisar de um bom dinheiro.

    Durante os prximos cinco anos, Alberto pagaria a penso. Enquanto isso,Julieta aprenderia a administrar sua vida emocional e seu patrimnio. Nunca tarde para experimentar a liberdade que se anuncia.

  • Um no ama por dois

    Eu no quero vender a casa nem pra voc, nem pra ningum. A nossa vida ttoda ali dentro. No cabe em outro lugar, muito menos num apartamento. Eu seique os meninos cresceram, mas, e no fim de semana, onde que eles vo dormir?Por mim, moro embaixo da ponte, mas e eles? Voc acha justo, por causa dessesurto de infantilidade, impor s crianas essas limitaes?

    Mas o Jnior mora fora, no aparece h mais de ano. E da que o Marquinhos no vem ao Brasil h mais de um ano?! Uma coisa

    ele no querer e outra bem diferente ele no ter um quarto pra ficar. E, olha,pode tirar o cavalo da chuva. S faltava essa. Voc que decide largar sua famliadepois de quase trinta anos, voc que pensa que um garotinho adolescenteirresponsvel, voc que s quer se livrar dos problemas pra viver com umaninfetinha, voc que quer fazer uma liquidao com tudo o que a gente juntou avida toda e eu que sou intransigente e descompensada?!

    Mas voc est ficando com quase tudo! No tem compensao, no! A casa de Bzios e o flat do Leblon so meus e s

    falta voc querer bancar o bonzinho dizendo que t me deixando tudo! Tdeixando porque meu, porque, quando a gente casou, eu passei mais de cincoanos apertada em um quarto na casa da sua me. O que a gente tem, agradea amim, e se quer mesmo viver sua aventura me poupa dessas mesquinharias. Vaitestar o tamanho do amor da mocinha. Convida ela pra morar na casa dos seuspais!

    Na primeira pausa de Regina para respirar, assumi o comando da audincia quecomeara havia pouco mais de 15 minutos e ameaava descambar para umdescontrole total, caso eu no interviesse naquele momento.

    Calma, pessoal. Vocs no vo conseguir passar a vida a limpo aqui. Aaudincia de conciliao e ningum precisa concordar com nada agora. S vamostentar objetivar o que podemos resolver neste momento. Por favor, Regina, tomeuma gua e respire.

    De todas as audincias que presido na Vara de Famlia, a que mais me causaconstrangimento, sem dvida, uma como esta, na qual uma parte quer odivrcio e a outra resiste separao.

  • Por algum desses milagres inexplicveis da vida, Regina e Marco Antonio seencantaram um pelo outro num determinado momento que podia ser comparvel eternidade. Cultural ou terico o fenmeno, o fato que a reao qumicadaquele encontro tirava o sono, acelerava o corao. Acordar e dormir sem o outrodo lado era uma dificuldade intransponvel. O humor partilhado, os gestos e osolhares subentendidos, as entrelinhas compreensveis, enfim, tudo conspiravapara o desejo do at que a morte nos separe.

    Se a vida fosse um conto de fadas, seria possvel dizer que viveram felizes porquase trinta anos... s que no to simples assim. Eram, sim, felizes a maiorparte do tempo. Mas do mesmo jeito inexplicvel com que a paixo se instalara,tambm foi embora de modo imperceptvel, sem deixar rastros ou marcas visveis.A falta da paixo no era imediatamente sentida porque entravam em campo osprojetos, os desejos materiais, o trabalho, os filhos, a infncia e a adolescncia dosfilhos, as viagens, os amigos, as preocupaes com os filhos, mais trabalho,dinheiro, cansao, desnimo, afastamento e, por fim, o silncio.

    Durante todos esses anos, os prazeres e as alegrias da vida foram sendo adiadossempre para depois de algum evento ou alguma data que nunca chegava.Voltariam a conviver com os amigos, caminhariam na praia, viajariam para aRssia, teriam, ao menos, um fim de semana por ms para os passeios de barco,enfim, concordaram em viver no futuro do pretrito.

    Marquinhos, com 28 anos, se mudara para Londres, onde trabalhava, e Mariana,aos 25, andava ocupada demais com seu mestrado e o namorado.

    Foi nesse momento que Regina percebeu que era hora de voltar a protagonizarsua vida. Surpreendia Marco Antonio com jantares, lingeries, recados carinhosos,e a resposta vinha seca ou, muitas vezes, nem vinha.

    Acostumada, depois de tantos anos, com o temperamento sisudo e introspectivodo marido, s imaginava preocupaes com o trabalho ou com os meninos. Jamaislhe passou pela cabea outra alternativa. Seu marido no era do mesmo padroque os amigos, sempre envolvidos com outras mulheres. Falavam sobre o assuntoe sobre o ridculo da exposio pblica de desrespeito ao outro, nessas situaes.

    No caf da manh de um domingo, Marco Antonio comunicou que estava saindode casa. Apaixonou-se por outra mulher, e no era justo, nem com ele nem comela, conti nuar fingindo. Conversariam com os filhos naquela semana, e o resto dascoisas ele voltaria para buscar no dia que fosse mais conveniente para ela.

    Nenhuma reao de Regina, alm do buraco na barriga e do choro que secoualgumas semanas depois.

    Passados o susto e o primeiro momento de revolta, Regina imaginava que seriapossvel superar aquela crise. Ela o amava e ele voltaria razo. Nenhum

  • casamento slido como o deles poderia acabar dessa forma. Eram maduros, e ela,generosa e compreensiva, o perdoaria.

    No foi essa, no entanto, a leitura de Marco Antonio. Trs meses depois,apaixonado por outra mulher, precisava ritualizar o fim do casamento e pediu odivrcio. Oferecia uma generosa penso para a ex-companheira e uma proposta departilha de bens desigual, pois caberia a ela a maior parte do patrimnio, reflexoprovvel da culpa que sentia pela responsabilidade de ter desejado o fim.

    A resistncia de Regina no era razovel, ao menos para as decises objetivasque deveriam ser tomadas ali. Ora agressiva, ora carinhosa e compreensiva,deixava transparecer que no se conformava com o caminho escolhido pelocompanheiro. Ela o amava, sabia que era possvel restabelecer o afeto, era capazde perdoar tudo o que ele a fez passar nesses meses, prometia retomar a relaocom mais ateno, mais cuidado. No fundo, assumia a culpa pelo motivo que olevou a precisar de outros abraos.

    No incio, tranquilo, Marco Antonio recusava todas as propostas dereconciliao. Depois, um desconforto se instalou porque desprezava asmanifestaes da mulher, e, por fim, ele falou devagar, baixo, quase num sussurro,olhando nos olhos dela:

    Eu no quero mais, Regina. Acabou.No fcil se sentir surpreendido com a comunicao de que o jogo acabou. Pelo

    menos para o time que, perplexo, fica no campo. Ainda que o trmino da partidano venha na sequncia de jogadas arriscadas, violentas, passionais, e sim naesteira de um empate instalado h tanto tempo que at j se perdeu a percepode alguma emoo em campo. Ainda assim o final surpreende.

    como, se de uma hora para outra, algum apitasse e, com a bola embaixo dobrao, deixasse o campo, sob o olhar incrdulo de quem ainda imaginava quepodia permanecer infinitas horas driblando, na sombra, as intempries de umapeleja previsvel e que s acabaria quando um dos dois adversrios tombasse emcampo.

    O jogo termina assim em alguns casamentos, como nesse, de Regina e MarcoAntonio. E a responsabilidade pelo fim autoritrio de uma relao tem sido objetode teses, dissertaes, tratados, quase unssonos no diagnstico de que o amorromntico uma construo cultural e toda a dor que decorre do seu fim justificada, compreensvel e racionalizada.

    Mas tente dizer para o parceiro que soube pela boca do outro que o jogo acabou,se ele acredita nas teorias?

    Quem ainda pensa que ama acredita que pode amar pelos dois. No assim namatemtica improvvel do afeto. Para os dois sentados na minha frente, o jogo

  • acabara para ele e no havia nada, nenhum movimento dela capaz de restaurartrinta anos de construo conjunta de vida.

    Pedi aos advogados que me deixassem falar, privadamente, com Regina.Juridicamente no tinha muito a esclarecer. Ela sabia das vantagens do acordo eentendia que as suas objees no tinham relao com as clusulas propostas.Tive vontade, naquele momento, de tentar ajudar aquela mulher a fortalecer suaautoestima. No sei se por solidariedade de gnero ou por compreenso daquelador, tantos os momentos parecidos que j presenciei.

    Pedi que voc ficasse aqui, Regina, porque, depois de mais de quinze anosnesta cadeira, posso te dizer uma coisa que nesse momento voc no vai acreditar,mas tenho certeza de que vai se lembrar quando for a hora. Isso vai passar. Prossegui: Casamento bom quando bom para os dois. No d pra amar porvoc e por ele, e olha, voc uma mulher linda, inteligente, independente, e euno posso permitir que voc continue, nesta sala, onde ningum conhece vocs, seexpondo dessa forma. Ele decidiu que quer assim. Voc no merece se humilhardessa maneira. Se por acaso, algum dia, vocs entenderem que possvel voltar vida em comum, voc precisa estar livre para a deciso. No precisa assinarnenhum acordo que no queira, e o processo vai seguir com a decretao dodivrcio. S pensa se no melhor voc conduzir esse momento e preparar umfuturo que voc merece.

    Reiniciada a audincia, Regina, respirando melhor, concordou com o divrcio.Aceitou a tristeza natural do luto do fim do amor.

    Vai passar. Alis, quando me lembro dessa histria, tenho certeza de que jpassou.

  • Parte IIPais e filhos

  • Mais valem dois pais na mo

    Qualquer homem decente teria feito a mesma coisa, dona juza. Imagina seeu ia deixar o moleque morrer sem atendimento porque no tinha registro. Noera meu filho, mas era como se fosse.

    Antes de completar um ano, Juninho precisou de uma interveno cirrgica. Notinha certido de nascimento. O pai sumiu e nunca providenciou o documento.

    Cristiane e Emerson foram vizinhos durante a infncia. Na adolescncia, cadaum tomou seu rumo. Poucas vezes se encontraram.

    Em momento de desespero, sem o apoio da famlia, rejeitada pelo companheiro,reencontrou o amigo que, sem pestanejar, foi ao cartrio e declarou que era o pai.O nico pedido era dar o seu nome criana, no que foi prontamente atendidopela me, naquelas circunstncias.

    O que teria sido apenas um ato de solidariedade se transformou em exerccioreal de paternidade. Nascia ali uma gerao espontnea de pai, sem smen, semcadeia gentica. Apenas uma vontade inexplicvel de cuidado e um vnculofortalecido todos os dias pelo afeto.

    Emerson permaneceu ao lado de Cristiane no hospital e, como seu trabalho erano turno da noite, no fazia qualquer sacrifcio para cuidar de Juninho enquanto ame do menino trabalhava.

    Nunca foram namorados. Jamais dividiram o mesmo teto. Uma ponta de amorplatnico era percebida pela moa, que cultivava cuidadosamente a dependncia,com manifestaes de carinho que poderiam ser confundidas, no mximo, comproximidade fraterna.

    Ele nunca foi capaz de abordar a amiga de uma forma mais ousada. No sentiasegurana e temia perder a intimidade que lhe fazia to bem. Se Emerson tinhaqualquer desejo, escondeu at mesmo de si, contrariando aquela verdadeconhecida de que no h amizade sem mais nada entre um homem e uma mulher.

    Emerson tinha uma vida previsvel. A grana nunca sobrava. Trabalhava,namorava, cursava o supletivo. Incorporou Jnior sua rotina e, mesmo depois decasar com Selene, continuou a conviver com o menino, que passava todos os finsde semana na sua casa.

    Era to natural o vnculo entre ele e Jnior que ningum nunca se preocupou em

  • ter uma conversa sobre o assunto. Mas para Jnior, aos seis anos, ainda no eraum incmodo a brincadeira das crianas mais velhas, no colgio, sobre o filholoirinho do pai nego. Crianas tambm sabem ser cruis nessa idade.

    Cristiane precisou viajar repentinamente. Disse que ia cuidar de uma avdoente, em outra cidade. Durante oito meses, o menino morou com Emerson. Navolta, as grandes e profundas transformaes exigiram do rapaz uma posturamenos tolerante e dcil com a me da criana.

    Cristiane, na verdade, partira para reencontrar Tlio, o pai de seu filho. Elemudou muito nesses anos. Deixou a vida errada e estava pronto para assumir suafamlia. J alugara uma casinha e estavam morando juntos.

    A resistncia feroz de Emerson obrigou Tlio a ajuizar um processo dereconhecimento da paternidade. Ele queria anular o registro de nascimento emudar o nome do filho. No era razovel o filho ser dele e ter o nome de outrohomem.

    Nem foi preciso um exame de DNA. Juninho e Tlio, branquinhos e loiros,tinham o mesmo cabelo encaracolado e a mesma covinha na bochecha direita.

    Na audincia, Cristiane preferia no opinar. Era louca por Tlio. J perdoara oabandono. Em nome dessa paixo, deixou o filho, sem notcias suas, durantemeses.

    Por outro lado, era grata a Emerson. Sabia que, se no fosse por ele, Juninho noestaria vivo.

    O seu lugar de me estava preservado, reinava hegemnica do alto de seu trono,sem qualquer ameaa. A deciso sobre quem era o pai era um problema da justia.Para isso existiam os juzes.

    Testemunhas foram ouvidas, psiclogos entrevistaram os pais, a me e omenino. Parecia uma deciso simples. No era.

    Enquanto os fatos e as verses desfilavam na minha frente, a dvida foi seaprofundando. Era justo condenar o pai biolgico impossibilidade de assumir seufilho por uma deciso impensada da juventude? Era correto, depois de tantotempo, negar a Emerson o direito de ser pai, ainda que o registro tenha sido feitode maneira ilegal e falsa?

    No auge das minhas reflexes silenciosas, pedi que Juninho entrasse na sala. Jhavia terminado a audincia.

    Correndo, rindo muito, passou ao largo do lugar onde sentava Tlio e, de braosabertos, mergulhou no colo de Emerson, acariciando seu rosto.

    O contraste entre as cores das peles e a intensidade do afeto era o quadroeloquente de que o preconceito uma inveno despropositada e decadente queno deveria encontrar eco na humanidade.

  • Juninho, aos seis anos, j era um indivduo. Sabia seu nome. Reconhecia seulugar. Tinha referncia da figura paterna e identificava Emerson como seu pai.

    Uma certido de nascimento era somente um corte no enredo da existncia. Umcorte importante, verdade, um instrumento de incluso social. Mas...

    Decidi preservar a histria de Jnior escrita a partir do documento. Muito maisque um vnculo biolgico, a paternidade uma obra de construo cotidiana.

    Mesmo insegura para definir a paternidade e as referncias daquela criana,como se eu estivesse usurpando um de seus maiores direitos, o direito identidade, conclu que, se preservada sua segurana, o tempo se encarregaria decontar outras histrias possveis, que no cabiam numa certido de nascimento.

    Alm disso, pareceu, naquele momento, que Tlio estava mais preocupado emconsolidar sua relao com Cristiane.

    Mantive a paternidade de Emerson. O convvio com o pai biolgico virianaturalmente, com as portas abertas para o estabelecimento de mais esse vnculoafetivo.

    A vida muito maior e muito mais imprevisvel do que a burocracia que cabenuma certido.

    As mltiplas formas de paternidade e as mais diversas manifestaes de amor, seconjugadas, fortalecem uma sociedade mais democrtica.

    , no fim, uma equao simples. Quanto mais afeto, maior a possibilidade dejustia.

  • As melhores intenes

    O choro compulsivo de Ceclia interrompeu a spera discusso travada porAntnio Carlos e Denise.

    E eu, que no fiz nada errado, que no escolhi nada em nenhum momento,como que eu fico agora?

    Antnio Carlos levantou-se, dirigiu-se para o outro lado da mesa. Abraou a filharecm-reconhecida, beijou sua cabea. Chorando e soluando, repetia:

    Desculpa, querida. Eu nunca pude imaginar que voc existia.O choro de Denise completou a catarse coletiva, e, disfaradamente, enxuguei

    uma teimosa lgrima que insistia em escorregar pelo canto do olho. Respireifundo para conseguir retomar o final da audincia.

    H 22 anos, numa festa de formatura, as vodcas, a msica romntica e osamassos intensos acabaram por derrubar na cama de uma repblica de estudantesDenise e Antnio Carlos, para uma nica noite juntos. Ela era filha do dono dacantina do campus. Ele, paulista do interior, acabara de se formar e empacotara asmalas para o retorno a Catanduva. Assumiria, em pouco tempo, a clnica deodontopediatria da famlia.

    J casado, pai de trs filhos adolescentes, nunca mais voltara cidade ondeestudou. Surpreendido com a citao para responder ao de investigao depaternidade, dividiu a angstia com sua mulher. Num esforo de memria,recordou-se do nico e provvel dia no qual ele poderia ter sido o responsvel pelafecundao daquela que, agora, era a autora do processo.

    Diferente de muitos homens que, imediatamente, se protegem sob o manto dahipocrisia e da irresponsabilidade, Antnio Carlos entrou em contato direto com ame de Ceclia. Foi uma surpresa quando Denise lhe disse no ter, at ali, tomadoconhecimento da ao proposta pela filha.

    Antecipando-se justia, submeteram-se a um exame de DNA, numa clnicaparticular, e, com o resultado nas mos, o pai biolgico da moa solicitou umaaudincia para reconhecer a paternidade e oferecer penso alimentcia.

    Como s haviam se encontrado no dia da coleta do sangue, aquela era a primeiravez em que Antnio Carlos e Ceclia se enxergavam como pai e filha, passados 21anos. Era natural um acerto de contas. Era esperada a curiosidade sobre o

  • passado. Era previsvel que Ceclia quisesse respostas para as perguntas que aatormentaram principalmente na ltima dcada da vida.

    Ter apenas o nome da me na certido de nascimento sempre foi umdesconforto. Nas festas do colgio, na fila das vacinas, nas fichas de emprego, nosatos mais corriqueiros do cotidiano, o pai, como um espao em branco, era atraduo de uma existncia repleta de lacunas.

    Nunca Denise fabricou um pai idealizado para sua filha. Ceclia sabia que o paino a conhecia e que a me perdera o contato com ele.

    A adolescncia da moa foi o perodo mais complicado. No embate paraestabelecer limites, Denise era sempre derrotada. O pai, em branco e preservadopela ausncia, ocupava o espao da sensatez, da lucidez, do equilbrio.

    Meu pai faria diferente. Meu pai me deixaria viajar. Meu pai me compreenderia.Meu pai no perderia o controle. Meu pai isso, meu pai aquilo, repetia Cecliapara a me, nos momentos de discusso e conflito. A pausa para tanto pai veiocom a aprovao no vestibular e o incio de um namoro.

    Pausa curtssima, verdade. Logo recomearam as perguntas e, agora, com ainsistncia madura, no havia como sonegar da filha seu direito identidade: o paitinha um nome, vivia em outro estado. Era dentista.

    O resto das informaes veio do orculo virtual contemporneo. No Google,Ceclia localizou os dados do suposto pai e na Defensoria Pblica ajuizou a ao.

    Vendo-os um ao lado do outro, percebi como so curiosos no s a heranagentica, mas os gestos e as predilees. Sem nunca ter conhecido a profisso dopai, Ceclia optou pela mesma carreira.

    Curioso esse milagre que permite que duas pessoas se relacionem pontualmente,continuem desconhecidos um do outro e tenham capacidade de produzir, numsegundo, uma outra alma, vnculo definitivo entre eles.

    Verdadeiramente emocionado, Antnio Carlos se desculpava pela histria da qualnunca sonhou em participar. Jamais passou pela sua cabea a possibilidade de teruma filha, mulher, naquela idade. Inteligente, carinhosa, Ceclia se recusava aaceitar qualquer ajuda financeira. No era esse seu objetivo.

    Acostumada a assistir a outras audincias de investigao de paternidade, emque os pais, mesmo aps a comprovao do vnculo biolgico, reagem com dio erepulsa situao, sentindo-se injustiados com a condenao do pagamento depenso, era surpreendente perceber a insistncia com que Antnio Carlos faziaquesto de assumir as responsabilidades com a educao e a sade de Ceclia.

    Denise, acusada por Antnio Carlos de ser a culpada pelo tempo perdido, pelaaniquilao das memrias e lembranas jamais vividas, pela arbitrariedade comque decidiu o destino dele e da filha, quis contar a sua verso da mesma histria.

  • Ela era mais velha que ele. Nunca planejou uma produo independente. Nohavia entre os dois qualquer vnculo de afeto, seno a nica vez em que,prazerosamente, se encontraram e se relacionaram.

    Quando soube da gravidez, embora tenha pensado em procur-lo, achou que noseria correto nem justo. Ele estava comeando a vida. Ela no tomou os cuidadosnecessrios para evitar uma gestao. Ela assumiria a filha e em nenhumahiptese ocuparia o futuro do rapaz com uma preocupao, que considerava de suaresponsabilidade exclusiva.

    Criou Ceclia, com algumas restries materiais, mas tentou ensinar filha osprincpios de honestidade, dignidade, solidariedade que eram, tambm, os seus.S recentemente percebeu que no bastava sua vontade para que a vidaprosseguisse no rumo escolhido. A filha crescera. Era curiosa. Exigia a verdade.

    Por melhor me que Denise tenha sido, era impossvel representar o papel depai, fundamental para a existncia da filha. Compreendeu, embora tarde, oequvoco da deciso de tantos anos atrs.

    No era possvel reconstruir o passado. No era possvel restituir, ainda que soba forma de indenizao, os danos causados. O arrependimento no construiriauma nova histria nem projetaria um presente diferente.

    Era fundamental, no entanto, para que a vida dos trs continuasse comqualidade e leveza, que se conhecessem os fatos e as escolhas. Da verdadeescancarada dependia o futuro.

    Ceclia dirigi-me menina, comovida com o que assistira , depois detantos processos de investigao de paternidade que j julguei, posso lhe assegurarque voc tem muita sorte. Ningum tomou nenhum