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LETÍCIA FIGUEIRA MOUTINHO KULAITIS A TRAJETÓRIA SOCIAL DA IRMÃ TEREZA ARAÚJO: SERVIÇO E CONTEMPLAÇÃO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia, Mestrado em Sociologia, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Prof. a Dr. a Maria Tarcisa Silva Bega CURITIBA 2004

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  • LETCIA FIGUEIRA MOUTINHO KULAITIS

    A TRAJETRIA SOCIAL DA IRM TEREZA ARAJO: SERVIO E

    CONTEMPLAO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Sociologia, Mestrado em Sociologia, do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal do Paran.

    Orientadora: Prof.a Dr.a Maria Tarcisa Silva Bega

    CURITIBA

    2004

  • Dedicado a:

    Mrcia Clment Figueira, minha me, cujo esforo na superao de

    momentos difceis despertou minha admirao e orgulho.

    Fernando Kulaitis, meu marido, cuja seriedade, dedicao e inteligncia

    sempre serviram de inspirao para mim. Com voc, aprendi a ser melhor em nossa

    profisso. Obrigada!

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo s Irms Filhas da Caridade pela ateno, pacincia, carinho e pela

    sincera acolhida do meu trabalho.

    Agradeo Prof . Dra. Maria Tarcisa Silva Bega, por mais uma vez, dedicar

    a mim sua ateno e amizade na orientao desta dissertao de Mestrado.

    Agradeo a todos aqueles que, gentilmente, cederam seu tempo e sua

    memria e que com seus relatos tornaram possvel a realizao deste trabalho.

    Agradeo aos professores e colegas do Programa de Ps-Graduao em

    Sociologia que contriburam , de maneiras to diferentes, para minha formao.

  • SUMRIO

    LISTA DE ILUSTRAES......................................................................................vii

    LISTA DE SIGLAS...................................................................................................viii

    RESUMO......................................................................................................................ix

    INTRODUO.............................................................................................................1

    1 A TRAJETRIA SOCIAL COMO RELAO INDIVDUO E

    SOCIEDADE..............................................................................................................8

    1.1 ESTUDOS BIOGRFICOS LUZ DA SOCIOLOGIA.......................................19

    2 A COMPANHIA FILHAS DA CARIDADE DE SO VICENTE DE PAULO E

    A FORMAO DE UM NOVO HABITUS..........................................................31

    2.1 HISTRICO DA COMPANHIA FILHAS DA CARIDADE................................34

    2.2 FILHAS DA CARIDADE NO BRASIL.................................................................40

    3 AO E REFLEXO: A INSERO EM MEIO POPULAR NO BAIRRO

    DO BOQUEIRO....................................................................................................47

    3.1 O BAIRRO DO BOQUEIRO: NA CONTRAMO DO PLANEJAMENTO

    URBANO...............................................................................................................48

    3.2 A ASSOCIAO COMUNITRIA SANTO INCIO DE LOYOLA.................56

    4 ATOS FINAIS: O POSTO DE SADE COMUNITRIO E O CENTRO DE

    FORMAO............................................................................................................64

    4.1 O POSTO MDICO COMUNITRIO IRM ARAJO......................................65

    4.2 O CENTRO DE FORMAO URBANO RURAL IRM ARAJO...................68

    5 O HABITUS COMO UMA SEGUNDA NATUREZA: A TRAJETRIA

    SOCIAL DA IRM TEREZA ARAJO..............................................................74

    5.1 O CONCEITO DE HABITUS E A REALIZAO DA TRAJETRIA SOCIAL

    DA IRM ARAJO..................................................................................................75

  • CONSIDERAES FINAIS.....................................................................................86

    REFERNCIAS..........................................................................................................89

    BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................92

    ANEXOS.......................................................................................................................94

  • LISTA DE ILUSTRAES

    FIGURA 1 - FOTOGRAFIA DA CARTEIRA DE IDENTIDADE DA IRM ARAJO...31

    FIGURA 2 - SMBOLO DA COMPANHIA DAS FILHAS DA CARIDADE.....................37

    FIGURA 3 - FOTOGRAFIA DA CASA PROVINCIAL DO RIO DE JANEIRO...............41

    FIGURA 4 - FOTOGRAFIA DA CASA PROVINCIAL DE CURITIBA............................43

    FIGURA 5 - FOTOGRAFIA DA ASSOCIAO COMUNITRIA SANTO INCIO DE LOYOLA............................................................................................................56

    FIGURA 6 - FOTOGRAFIA DA FBRICA DE ARTEFATOS DE CIMENTO SANTO

    INCIO LTDA..................................................................................................59

    FIGURA 7 - FOTOGRAFIA DO POSTO MDICO COMUNITRIO IRM TERESA ARAJO............................................................................................................64

    FIGURA 8 - FOTOGRAFIA DA CASA IRM TEREZA ARAJO EM ALMIRANTE TAMANDAR, PR...........................................................................................66

    FIGURA 9 - FOTOGRAFIA DA CASA IRM TEREZA ARAJO EM ALMIRANTE TAMANDAR, PR ..........................................................................................67

    MAPA 1 - MAPA DO BAIRRO DO BOQUEIRO.........................................................52

    MAPA 2 - DETALHE DO MAPA DO BOQUEIRO......................................................53

    TABELA 1 - DADOS POPULACIONAIS DO BAIRRO DO BOQUEIRO 1970-1996 ...48

    TABELA 2 TAXA DE CRESCIMENTO DO BAIRRO DO BOQUEIRO 1970 1996...49

  • LISTA DE SIGLAS

    ADITEPP - ASSOCIAO DIFUSORA DE TREINAMENTOS E

    PROJETOS PEDAGGICOS

    CEBS - COMUNIDADES ECLESIAIS DE BAS

    CEBEMO - ORGANIZAO CATLICA DE COOPERAO PARA O

    DESENVOLVIMENTO

    CECOMA - CENTRO COMUNITRIO DE MANUTENO

    CEFURIA - CENTRO DE FORMAO URBANO-RURAL IRM

    ARAJO

    CNBB - CONFERNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL

    CEPAT - CASA DO TRABALHADOR

    GRIMPO - GRUPO DE REFLEXO E INSERO NO MEIO POPULAR

    MAB - MOVIMENTO DE BAIRROS DE CURITIBA E REGIO

    PIMPO - PROGRAMA INTENSIVO DE PREPARAO DE MO-DE-

    OBRA

    PMC - PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA

  • RESUMO

    Estudo da trajetria social da Irm Tereza Arajo (1919-1981), religiosa da

    Congregao das Filhas da Caridade de So Vicente de Paulo que, na dcada de 1970

    a 1980, realizou a primeira insero religiosa em meio popular no bairro do Boqueiro

    e influenciou a atuao de obras comunitrias em Curitiba e Regio Metropolitana de

    Curitiba, bem como do Centro de Formao Urbano-Rural Irm Arajo, fundado em

    1981.O objetivo central desta dissertao reconstruir a trajetria social da Irm

    Tereza Arajo, o que envolve investigar, sociologicamente, o modo como a religiosa

    percorreu o espao social. Sendo assim, o problema de pesquisa levantado neste

    trabalho corresponde as seguintes questes: Como seu deu a trajetria social da Irm

    Arajo?; Quais os aspectos da trajetria social da Irm Arajo que fazem com que esta

    permanea como influncia nos trabalhos comunitrios de Curitiba e Regio

    Metropolitana?. Em Norbert Elias e Pierre Bourdieu foram encontradas as orientaes

    tericas e metodolgicas necessrias construo, em perspectiva sociolgica, da

    biografia de um indivduo. Portanto, conceitos como habitus, campo e trajetria social,

    em Bourdieu e configurao, interdependncia e equilbrio de poder, em Elias,

    assumem fundamental importncia na realizao deste trabalho. Alm destes

    conceitos, o conceito de carisma utilizado neste trabalho, como discutido por

    Bourdieu e Elias, para estabelecer a relao entre o histrico da Companhia das Filhas

    da Caridade e a trajetria da Irm Tereza Arajo. Pode-se concluir que realizando de

    forma intensa o habitus vicentino, a Irm Arajo destacou-se no campo religioso, pois

    sua dedicao aos princpios da Companhia das Filhas da Caridade valeu a religiosa

    um grande investimento da ordem em sua formao e o reconhecimento daqueles que

    conheceram seu trabalho.

  • INTRODUO

    Esta dissertao tem como princpio o interesse cientfico despertado por

    monografia1, escrita em 2002, sobre a formao e a institucionalizao do CEFURIA

    Centro de Formao Urbano-rural Irm Arajo, uma organizao no-governamental

    de assessoria a movimentos sociais rurais e urbanos, com sede em Curitiba, Paran.

    Constatou-se, nessa pesquisa, que a primeira dcada de atuao do

    CEFURIA, de 1981 a 1991, foi marcada pela influncia das obras comunitrias

    realizadas na periferia da cidade de Curitiba, em especial pela obra da Irm Arajo,

    religiosa da Congregao das Filhas da Caridade de So Vicente de Paulo, no bairro

    do Boqueiro. Atravs desse primeiro levantamento, tornou-se evidente que o trabalho

    da religiosa serviu de modelo para o planejamento e realizao das primeiras

    atividades do Centro de Formao.

    Portanto, fez-se necessrio no decorrer da pesquisa compreender a razo que

    levara os fundadores do Centro a denomin-lo de Centro de Formao Urbano-Rural

    Irm Tereza Arajo. Era necessrio, para tanto, descobrir quem foi a Irm Arajo,

    reconstituir sua biografia. Buscando atingir este objetivo foram realizadas naquele

    perodo entrevistas com moradores do Boqueiro e Irms Vicentinas, congregao a

    que pertenceu a religiosa. Todos os entrevistados demonstraram satisfao em relatar

    os momentos de convivncia com a religiosa e uma profunda admirao por seu

    trabalho.

    Justamente por esta disposio encontrada entre os entrevistados, as

    informaes levantadas, inicialmente, que iam alm dos objetivos pretendidos para a

    realizao de uma monografia sobre o CEFURIA, deram origem ao projeto de

    mestrado que baseou esta dissertao e cujo objetivo central reconstruir a trajetria

    1 MOUTINHO, Letcia Clment Figueira. Da insero religiosa assessoria popular: Trajetria da racionalizao do CEFURIA. Curitiba, 2002, 57 p. Monografia (Bacharelado em Cincias Sociais) Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paran.

  • social da Irm Tereza Arajo o que envolve investigar, sociologicamente, o modo

    como a religiosa percorreu o espao social. apresentada a seguir a discusso do

    contexto do trabalho realizado pela Irm Arajo e da fundao do Centro de

    Formao.

    No perodo, entre 1970 e 1980, a populao de baixa de renda de cidades

    como So Paulo e Rio de Janeiro sofre com a dificuldade de acesso moradia e com

    as precrias condies de sobrevivncia concentradas na periferia dessas grandes

    cidades. As reas de periferia cresceram sem permitir o acesso de seus moradores a

    equipamentos de consumo coletivo e serviram como cenrio para o surgimento das

    chamadas lutas de bairro. Essas lutas pretendiam obter, atravs de presso popular, os

    bens coletivos necessrios sobrevivncia de seus moradores e que so de

    responsabilidade do Estado. As relaes entre a interveno do Estado e o processo de

    segregao scio-espacial podiam ser percebidas tambm na cidade de Curitiba, onde

    a ocupao das reas de periferia e da Regio Metropolitana, pela populao de baixa

    renda, demonstra que a cidade tambm se submeteu lgica capitalista de apropriao

    do solo urbano2.

    A dcada de 1980 , portanto, um perodo marcado por intensas

    mobilizaes populares no Estado do Paran. Nesse perodo criado, na capital, o

    Centro de Formao Urbano-Rural Irm Arajo - CEFURIA, uma organizao no-

    governamental, de orientao religiosa, que tem como proposta apoiar os mais

    diversos movimentos sociais de Curitiba e Regio Metropolitana. Com o auxlio do

    Centro de Formao, so articulados movimentos sociais como o Movimento de

    Bairros de Curitiba e Regio Metropolitana MAB, que luta, em 1983, por educao e

    sade.

    Todos esses acontecimentos, as instituies a eles associadas e

    2 A lgica capitalista de apropriao do espao urbano implica na concentrao da interveno do Estado no plo dominante do capital na cidade. Sobre este tema ver: CASTELLS, Manuel. Cidade, democracia e socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 122.

  • principalmente o CEFURIA, foram influenciados ou estiveram relacionados

    trajetria da Irm Tereza Arajo, o que instigou a formulao da primeira questo a ser

    respondida neste trabalho: Quem foi a Irm Arajo?

    Portanto, o problema de pesquisa levantado nesse projeto corresponde s

    seguintes questes: Como se deu a trajetria social da Irm Arajo? Quais os aspectos

    da trajetria social da Irm Arajo que lhe deram destaque no campo religioso? E por

    fim, quais os aspectos da trajetria social da Irm Arajo que fazem com que esta

    permanea como influncia nos trabalhos comunitrios de Curitiba e Regio

    Metropolitana?

    Tendo como referncia a construo sociolgica da biografia da Irm, foram

    formuladas as seguintes hipteses:

    a) A trajetria social da Irm Arajo marcada pela passagem por diversos

    campos sociais e pelo processo de atualizao de seu habitus;

    b) O carisma da Irm Arajo associado a diferentes tipos de capitais so

    elementos que explicam seu destaque no campo religioso;

    c) A f, constitutiva do habitus religioso, aproximou a Irm dos trabalhos

    comunitrios, de orientao religiosa, realizados em Curitiba e Regio

    Metropolitana.

    O ponto de partida para a realizao desta dissertao foi um levantamento

    dos estudos sociolgicos de trajetria social. Em Norbert Elias, Pierre Bourdieu e

    Srgio Miceli, entre outros autores, foram encontradas as orientaes tericas e

    metodolgicas necessrias construo, em perspectiva sociolgica, da biografia de

    um indivduo. Assim conceitos como habitus, campo e trajetria social, em Bourdieu e

    configurao, interdependncia e equilbrio de poder, em Elias, assumem fundamental

    importncia na realizao deste trabalho. Alm destes conceitos, o conceito de carisma

    utilizado neste trabalho, como discutido por Bourdieu e Elias, para estabelecer a

    relao entre o histrico da Companhia das Filhas da Caridade e a trajetria da Irm

    Tereza Arajo.

  • Nesse sentido, a construo terica do conceito de trajetria social, como

    proposta por Bourdieu, estabelece um contraponto entre esta pesquisa e as chamadas

    biografias institucionais, que tm por objetivo, atravs de alguns personagens,

    documentar a histria de algumas instituies. De acordo com MICELI (1988, p. 54),

    no campo religioso:

    O trabalho de resgate e conservao da memria organizacional [...] passando pelos livros de devoo, missais, manuais, brevirios, novenas, pelos regulamentos, pelas obras monogrficas a respeito de igrejas, santurios, conventos, ordens, irmandades, cultos e devoes populares, sociedades pias, seminrios, escolas at os textos doutrinrios, litrgicos, e a imensa cpia de imagens com amplas tiragens (santinhos, oleografias, gravuras, etc), constitui um dos principais obstculos sociais apreenso de pesquisadores leigos que no estejam comprometidos com os interesses da hierarquia, e muito menos a seu servio.

    Em tais obras encontra-se o sentido da realizao de uma hagiografia, ou

    seja, uma biografia excessivamente elogiosa de santos e religiosos. Sendo assim, o

    objetivo central destes trabalhos no perceber tais indivduos em suas relaes

    sociais, mas os perceber como indivduos cujas aes no esto relacionadas ao

    contexto social em que esto inseridos. H, at mesmo, uma tentativa de desvincular o

    indivduo de seu contexto social para que as aes individuais sejam vistas como

    geniais e ou pioneiras.

    Verificando que um recurso metodolgico indispensvel para a reconstruo

    da trajetria social de um indivduo a reconstituio do ponto de vista do indivduo3,

    busca-se reconstitu-lo atravs das entrevistas realizadas com a Irm Adiles Zangrande

    em 03 de maio de 2001, com o Sr. Elias Saade Filho em 17 de maio de 2001, com o

    Dr. Vitrio Sorotiuk em 15 de maio de 2001 e com o Sr. Paulo Jos Portes Simio4 em

    3 De acordo com BOURDIEU (2002, p. 17), para se compreender o ponto de vista de um indivduo preciso compreender as escolhas feitas por este indivduo no universo das escolhas a que ele se apresentam, ou seja no chamado espao dos possveis.

    4 O Sr. Paulo se recusou a informar se haviam documentos na sede da ADITEPP sobre a Irm Arajo e tambm se recusou a informar com detalhes sobre o trabalho realizado com a Irm Arajo no bairro do Boqueiro.

  • 05 de agosto de 2003. As entrevistas, com indivduos que acompanharam diferentes

    etapas da trajetria social da Irm Arajo, foram utilizadas neste trabalho como uma

    tcnica de captao de dados.

    Destaca-se tambm que dada a inexistncia de uma biografia da Irm Tereza

    Arajo, seja de carter institucional ou autobiogrfico, a construo deste trabalho foi

    feita com dados primrios recolhidos em entrevistas e pesquisas documentais.

    Esta pesquisa envolveu desde o levantamento de dados atuais e do histrico

    do municpio de Pacot, Estado do Cear, local de nascimento da religiosa; da ordem

    religiosa Companhia Filhas da Caridade e do CEFURIA. Tais dados foram somados

    aos relatos dos entrevistados para a realizao da reconstituio da biografia da Irm

    Arajo.

    Foram pesquisados tambm possveis registros sobre a passagem da Irm

    Arajo por diferentes provncias das Filhas da Caridade no Brasil por meio da troca de

    correspondncias com as religiosas responsveis por essas provncias5.

    Em seguida foram levantados os documentos disponveis sobre suas

    atividades religiosas e profissionais na Arquidiocese de Curitiba, no Hospital das

    Clnicas de Curitiba, na Pastoral Carcerria de Curitiba, na ADITEPP Associao

    Difusora de Treinamentos e Projetos Pedaggicos, na Associao Comunitria Santo

    Incio de Loyola e no Posto de Sade Comunitrio Irm Tereza Arajo. No foram

    encontrados documentos ou registros escritos sobre a religiosa em nenhuma destes

    rgos ou instituies.

    Atravs de correspondncia eletrnica foram contatados rgos pblicos do

    Estado do Cear como o Arquivo Pblico do Estado do Cear e a Biblioteca Pblica

    Menezes Pimentel em busca de dados sobre a Irm e o municpio de Pacot. Foram

    contatados, dessa mesma forma, cartrios de registro civil em Pacot e Curitiba em

    5 Tais correspondncias encontram-se em anexo ao final deste trabalho.

  • busca das certides de nascimento e bito da Irm Tereza Arajo. No entanto, em

    ambos os casos, no houve retorno destas solicitaes.

    Analisando os dados levantados, a relevncia terica deste trabalho consiste

    na compreenso da relao entre os conceitos de indivduo e sociedade, um dos

    maiores desafios das Cincias Sociais. Mais especificamente, sua relevncia est na

    tentativa de convergncia entre as perspectivas tericas de Pierre Bourdieu e Norbert

    Elias acerca dos estudos biogrficos na Sociologia.

    O estudo da trajetria da Irm Arajo pode contribuir ainda para o

    entendimento dos fatores sociais que propiciam a realizao de uma biografia capaz de

    influenciar geraes posteriores e do processo de reatualizao do habitus na trajetria

    de um indivduo, uma vez que a religiosa transitou por diferentes campos no espao

    social.

    Na Reviso de Literatura, que corresponde ao primeiro captulo deste

    trabalho, so explicitados os pressupostos tericos em que se baseiam Norbert Elias e

    Pierre Bourdieu na discusso dos conceitos de indivduo e sociedade, apontando suas

    convergncias. A partir desta discusso, so apresentadas as orientaes tericas e

    metodolgicas, propostas por Elias e Bourdieu, para a construo de um estudo

    biogrfico luz da Sociologia.

    So apresentados, nesta seo do trabalho, a definio de conceitos como

    habitus, campo, trajetria social, configurao e interdependncia utilizados ao longo

    dos prximos captulos. Exemplos de estudos biogrficos realizados por Elias,

    Bourdieu, Miceli, entre outros autores, tambm esto presentes neste captulo.

    No segundo captulo denominado A Companhia Filhas da Caridade de So

    Vicente de Paulo e a formao de um novo habitus relatada a entrada da Irm

    Tereza Arajo no campo religioso e a formao de um habitus religioso que tem por

    princpio o carisma vicentino. portanto, neste captulo que se encontra a articulao

    do conceito de carisma, como apresentado por Max Weber, Pierre Bourdieu e Norbert

    Elias, com os dados levantados.

  • A discusso do conceito de carisma est presente tambm no terceiro

    captulo deste trabalho denominado Ao e reflexo: a insero em meio popular no

    bairro do Boqueiro. A chegada da Irm no bairro do Boqueiro e a formao da

    Associao Comunitria Santo Incio de Loyola so os assuntos tratados neste

    captulo, buscando associar o carisma adquirido pela Irm, o contexto vivido por ela e

    o desenvolvimento de sua liderana no bairro.

    O quarto captulo intitulado Atos finais: o Posto de Sade Comunitrio e o

    Centro de Formao apresenta um relato dos ltimos anos de vida da Irm Tereza

    Arajo, a luta pela implantao do Posto Mdico Comunitrio Irm Tereza Arajo e

    um breve histrico do CEFURIA Centro de Formao Urbano-Rural Irm Arajo.

    So abordados os anos posteriores a seu falecimento bem como a permanncia de sua

    influncia como um modelo de realizao de trabalhos comunitrios em Curitiba e

    Regio Metropolitana de Curitiba.

    No quinto e ltimo captulo deste trabalho so retomados os pressupostos

    tericos que o orientam. Uma reviso dos principais acontecimentos na trajetria

    social da Irm Arajo tem por objetivo, neste captulo, apontar possveis relaes com

    as hipteses e o problema de pesquisa que nortearam a realizao deste trabalho.

    Em captulo denominado Consideraes Finais, a concluso do trabalho

    apontar os alcances e limites encontrados na realizao desta dissertao de mestrado.

  • 1 A TRAJETRIA SOCIAL COMO RELAO INDIVDUO E SOCIEDADE

    Um dos desafios propostos s Cincias Sociais, desde o seu surgimento, a

    relao entre os conceitos de indivduo e sociedade. apresentada, neste captulo, a

    discusso feita por Norbert Elias e Pierre Bourdieu, acerca deste tema, por serem estas

    as orientaes tericas e metodolgicas utilizadas para construir a trajetria social da

    Irm Tereza Arajo, objeto de estudo desta dissertao, trazendo conceitos como

    campo, configurao, habitus, interdependncia, entre outros, atravs dos quais

    possvel construir, em perspectiva sociolgica, a biografia de um indivduo.

    Elias defende que os conceitos de indivduo e sociedade devem ser

    discutidos em relao e no em oposio, como feito usualmente, sem que sequer se

    observe o tratamento dado aos termos e os motivos deste tratamento6. Sendo assim, o

    autor critica o uso dos conceitos indivduo e sociedade como dois termos

    completamente opostos.

    So identificadas, por Elias, as seguintes acepes usuais dos termos

    indivduo e sociedade. O primeiro concebido como expresso da singularidade do ser

    humano. J o segundo percebido como a somatria dos indivduos ou como algo que

    existe de forma independente dos indivduos e que no pode ser explicado (ELIAS,

    1994, p. 7). No h portanto nenhuma relao estabelecida, a princpio, entre as

    definies usuais destes termos.

    Contrapondo-se a estas concepes, Elias investiga o modo pelo qual os

    indivduos ligam-se entre si numa sociedade. O autor questiona como que eles (os

    indivduos) formam uma sociedade e como sucede a essa sociedade poder modificar-

    se de maneiras especficas, ter uma histria que segue um curso no-pretendido ou

    6 De acordo com Phillipe Corcuff (CORCUFF, 2001, p. 35), a crtica da oposio clssica entre indivduos e sociedade aparece como um dos fios condutores dos trabalhos de Norbert Elias.

  • planejado por qualquer dos indivduos que a compem (ELIAS, 1994, p. 16). Elias

    acredita que sua abordagem torna o entendimento dos conceitos de indivduo e

    sociedade mais concreto. E neste contexto terico que o autor desenvolve o conceito

    de configurao, que se refere a grupos interdependentes de pessoas, organizados em

    estados e no por indivduos singulares interdependentes (ELIAS, 1999, p. 31).

    A noo de interdependncia, fundamental na definio do conceito de

    configurao, refere-se aos laos de dependncia, sejam eles de propriedade, trabalho e

    afeto, que vinculam os indivduos uns aos outros.

    Na anlise das configuraes, os indivduos singulares so apresentados da

    maneira como podem ser observados: como sistemas prprios, abertos, orientados para

    a reciprocidade, ligados por interdependncias dos mais diversos tipos e que formam

    entre si figuraes especficas, em virtude de suas interdependncias (ELIAS, 2001, p.

    51). Portanto, os indivduos devem ser observados nas figuraes especficas das quais

    fazem parte.

    As aes dos indivduos esto, para Elias, inscritas na cadeia de

    interdependncias que os ligam aos outros indivduos e que limita o que lhes possvel

    decidir ou fazer. As cadeias de interdependncias so centrais para Elias pois fazem

    com que cada ao individual dependa de toda uma srie de outras (CHARTIER,

    2001, p. 13) e esteja direcionada aos outros indivduos.

    As configuraes so permeadas por relaes de poder, sempre em equilbrio

    instvel. Sendo assim, a individualidade e o comportamento de um indivduo so

    incompreensveis sem conhecimento do desenvolvimento de sua posio social no

    interior da estrutura de poder da sociedade na qual est inserido (ELIAS, 2001, p. 43).

    Assim os conceitos de indivduo e sociedade so vistos como processos sociais que se

    diferenciam, mas que so indissociveis.

    Numa perspectiva prxima de Elias, Pierre Bourdieu dedica-se a seguinte

    problemtica terica: a mediao entre o agente social e a sociedade (ORTIZ, 1983, p.

  • 8), utilizando como instrumentos metodolgicos e tericos, os conceitos de habitus7 e

    campo.

    O conceito de campo definido por Bourdieu, como um espao estruturado

    de relaes, onde as condies objetivas (aquelas que so da estrutura social) e as

    prticas sociais se manifestam. Pode ser definido ainda como uma esfera autnoma da

    vida social. A autonomia de cada campo apresenta-se nas relaes sociais, contedos e

    recursos diferenciados que possuem, ou seja, como uma espcie de autonomia relativa.

    A noo de campo, como apresentada por Bourdieu, convergente, em

    Elias, ao conceito de configurao no que se refere ao padro mutvel criado pelo

    conjunto de jogadores [indivduos] no s pelos seus intelectos, mas pelo que eles so

    no seu todo, a totalidade das aes nas relaes que sustentam uns com os outros

    (ELIAS, 1999, p. 142). Assim, um campo ou uma configurao especfica apresentam

    relaes sociais tambm especficas.

    Tanto Elias quanto Bourdieu observam que em muitos estudos sociolgicos

    fala-se do indivduo como um elemento dissociado da sociedade, esquecendo que o

    indivduo faz parte da sua sociedade. ELIAS (1999, p. 13) aponta que a sociedade

    que muitas vezes colocada em oposio ao indivduo, inteiramente formada por

    indivduos, sendo ns prprios um ser entre os outros.

    Por conta desta separao entre indivduo e sociedade, grupos de seres

    humanos interdependentes como a famlia no so estudados como configuraes

    especficas formadas pelos indivduos. Numa concepo tradicional, a sociedade

    formada por estruturas exteriores aos indivduos e estes so, ao mesmo tempo,

    separados da sociedade e rodeados por ela.

    Para Elias, dada a especificidade do campo de estudo da sociologia as

    7 importante destacarmos que o conceito de habitus no assume na obra de Elias, a centralidade que possui na obra de Bourdieu, mas ainda assim refere-se a estrutura da personalidade ou a economia psquica (CHARTIER, 2001, p. 21), numa relao estruturada de uma pluralidade de indivduos.

  • configuraes de seres humanos interdependentes torna-se fadada ao fracasso a

    realizao de um estudo sociolgico que investigue os indivduos isoladamente. No

    entanto, o procedimento contrrio at mesmo aconselhvel uma vez que s

    podemos compreender muitos aspectos do comportamento ou das aes das pessoas

    individuais se comearmos pelo estudo do tipo da sua interdependncia, da estrutura

    das suas sociedades, em resumo, das configuraes que formam uns com os outros

    (ELIAS, 1999, p. 79). Ou seja, analisando os tipos de relao estabelecidas no espao

    social, ou mesmo, as regras em jogo nos campos sociais.

    O autor utiliza a imagem dos participantes de jogo como uma metfora das

    pessoas que formam as sociedades. Atravs do modelo de jogos possvel perceber

    como a interdependncia das pessoas enquanto jogadores exerce coaco sobre cada

    um dos indivduos que esto ligados deste modo, a coaco radica na natureza

    particular da sua relao e dependncia enquanto jogadores. Tambm nesta instncia o

    poder, a caracterstica estrutural de uma relao (ELIAS, 1999, p. 104). Deve-se

    pensar, segundo o autor, no no homem no singular mas sim numa multido de

    pessoas, cada uma delas constituindo um processo aberto e interdependente.

    Nas sociedades humanas, torna-se manifesta a profunda necessidade

    emocional que os seres humanos tm em relao uns aos outros. Esta questo e todas

    as outras questes colocadas por Elias so fundamentais se quisermos compreender

    quais as relaes que ligam as pessoas umas s outras, constituindo os alicerces da sua

    interdependncia. Para a compreenso do nexo de relaes de uma pessoa isolada

    necessrio voltarmos teia de relaes pessoais dessa pessoa isolada, para ver como

    que ela aparece do seu ponto de vista como que sentido do ponto de vista da

    perspectiva do eu (ELIAS, 1999, p. 150).

    Dada a acepo de Elias dos conceitos de indivduo e sociedade, preciso

    considerar o indivduo em suas relaes com os outros indivduos e no isoladamente.

    Construindo o modelo terico das configuraes, possvel verificar quais os limites

    que uma determinada configurao social impe aos indivduos e como os indivduos

  • se comportam diante destas limitaes. Ou seja, de acordo com diferentes posies

    interdependentes, proporcionadas pelas configuraes.

    Numa abordagem semelhante de Elias, de mostrar a relao entre os

    conceitos de indivduo e sociedade, Bourdieu destaca os agentes em ao no campo ao

    construir o conceito de habitus.

    O conceito de habitus definido por BOURDIEU (1992, p. 191) como

    sistema das disposies socialmente constitudas que, enquanto estruturas

    estruturadas e estruturantes, constituem o princpio gerador e unificador do conjunto

    das prticas e das ideologias caractersticas de um grupo de agentes. E importante

    lembrarmos que esse sistema pode sofrer atualizaes, de acordo com a posio e a

    trajetria do agente nos diferentes campos.

    O habitus pode ser entendido como um sistema de esquemas de pensamento

    interiorizados e socialmente constitudos, que capaz de originar todos os

    pensamentos, percepes e as aes caractersticas de uma cultura.

    De acordo com CORCUFF (2001, p. 33) Bourdieu e Elias tm a

    particularidade de continuar a dar uma certa predominncia s estruturas sociais e aos

    aspectos macrossociais da realidade, integrando de maneira varivel, as dimenses

    subjetivas e interacionais.

    Nesse sentido, Bourdieu prope com o conceito de habitus a ruptura

    decisiva com a viso ordinria do mundo social determinada pelo fato de a relao

    ingnua entre o indivduo e a sociedade ser substituda pela relao construda entre

    esses dois modos de existncia social, o habitus e o campo, a Histria feita corpo e a

    Histria feita coisa (BOURDIEU, 2001b, p. 41).

    Sendo o habitus um princpio gerador das prticas de um indivduo (sendo o

    habitus original o habitus de classe), deve-se, portanto, entender as prticas sociais

    conforme o campo de que o indivduo participa e o habitus que possui. Ou seja, o

    habitus indica a ao dos agentes na inter-relao entre diversos campos e em um

    campo especfico.

  • O conceito de habitus, apresentado como um princpio gerador de prticas,

    indica ainda como Bourdieu percebe a relao entre os conceitos de indivduo e

    sociedade. atravs da interiorizao de normas, valores e princpios sociais que as

    aes dos indivduos adequam-se realidade objetiva da sociedade. Na formulao

    terica apresentada por Bourdieu, os indivduos realizam aes sociais concretamente,

    mas as possibilidades de realiz-las esto objetivamente estruturadas na sociedade.

    nesse mesmo sentido, que Elias aponta as limitaes que so colocadas aos indivduos

    por uma determinada configurao.

    Renato Ortiz mostra que o habitus tende, portanto, a conformar e a orientar

    a ao, mas na medida em que produto das relaes sociais ele tende a assegurar a

    reproduo dessas mesmas relaes objetivas que o engendraram (ORTIZ, 1983, p.

    15). Alm da interiorizao de valores e normas, o conceito de habitus refere-se a

    sistemas de classificao8 que so anteriores s representaes sociais. Ortiz aponta

    que o habitus pressupe um conjunto de esquemas generativos que presidem a

    escolha; eles se reportam a um sistema de classificao que , logicamente, anterior

    ao (ORTIZ, 1983, p. 16). O habitus garante, ao ser interiorizado, a realizao de

    uma prtica que vem confirm-lo. Sendo assim, apresenta-se, ao mesmo tempo, como

    social e individual. Ou seja, o processo de interiorizao implica sempre

    internalizao da objetividade, o que ocorre certamente de forma subjetiva, mas que

    no pertence exclusivamente ao domnio da individualidade (ORTIZ, 1983, p. 17).

    Desse modo, as prticas dos indivduos estariam sempre engendradas em condies

    objetivas e seria possvel perceber, atravs das escolhas dos indivduos, sua posio

    social e vice-versa.

    BOURDIEU (1992, p. 191) afirma que as prticas e ideologias que so

    constitudas pelo habitus podero atualizar-se em ocasies mais ou menos favorveis

    8 De acordo com MICELI (2001, p. XVI) os sistemas de classificao constituem representaes coletivas cujas divises internas remetem s divises morfolgicas do grupo como um todo.

  • que lhe propiciam uma posio e uma trajetria determinadas no interior do campo

    intelectual que, por sua vez, ocupa uma posio determinada na estruturada da classe

    dominante. O conceito de habitus no , portanto, um conceito esttico e apresenta-se

    como fundamental para a compreenso de que as prticas dos indivduos devem ser

    apreendidas na relao entre habitus e os campos pelos quais transitam.

    Bourdieu acredita que as disposies dos agentes, o seu habitus, isto , as

    estruturas mentais atravs das quais eles apreendem o mundo social, so em essncia

    produto da interiorizao das estruturas sociais (BOURDIEU, 1990, p. 158). Desse

    modo, deve se compreender que a construo da realidade social pelos agentes no se

    opera num vazio social, est sim submetida a coaes estruturais e que por possurem

    uma gnese social, as estruturas cognitivas so socialmente estruturadas e que a

    construo da realidade social realizada coletivamente.

    As representaes sociais dos agentes tm como condicionantes sua posio

    e seu habitus, entendido como um sistema de esquemas de percepo e apreciao, ou

    seja, um sistema que ao mesmo tempo produz determinadas prticas e tambm percebe

    e aprecia as prticas, em operaes que exprimem a posio do agente. Sendo assim, o

    habitus produz prticas e representaes que podem ser classificadas e que so

    objetivamente diferentes. No entanto, para serem percebidas como tal pelos agentes

    necessrio que estes possuam os esquemas classificatrios necessrios para atribuir-

    lhes um sentido social. atravs destes esquemas classificatrios que se constitui o

    ponto de vista do indivduo.

    A tomada de posio pelo agente est associada ao estado do campo, ou seja,

    tanto os efeitos provveis das propriedades relacionadas ao agente quanto s

    disposies constitutivas do habitus, dependem do estado do campo de produo

    (BOURDIEU, 2002, p. 102) e est relacionada a diferentes elementos que determinam

    a trajetria do agente. As prticas dos agentes so o produto do encontro de duas

    histrias, a da produo da posio ocupada e a da produo das disposies de seus

    ocupantes (BOURDIEU, 2002, p. 289). Portanto, o efeito que um determinado campo

  • produz sobre seus agentes sempre mediatizado por suas disposies e pelo espao

    das tomadas de posio.

    Bourdieu mostra atravs dos conceitos de habitus e campo como a estrutura

    age sobre o agente e como o agente age sobre a estrutura e por conta desta construo

    terica, o autor, assim como Elias, marca a necessidade de compreender as aes dos

    indivduos no espao social em que esto inseridos.

    Nesse mesmo sentido, GRYNSZPAN (1990, p. 74-75) afirma que: o exame

    de trajetrias individuais nos permite avaliar estratgias e aes de atores em

    diferentes situaes e posies sociais, seus movimentos, seus recursos, as formas

    como os utilizam ou procuram maximiz-los, suas redes de relaes, como se

    estrutura, como as acionam, nelas se locomovem ou abandonam.

    Elias, por sua vez, explicita a relao entre o indivduo e a estrutura ao

    afirmar que a existncia no-finalista dos indivduos em sociedade o material, o

    tecido bsico em que as pessoas entremeiam as imagens variveis de seus objetivos

    (ELIAS, 1994, p. 18). Observada a relao entre as exigncias sociais e as

    necessidades individuais, comprovada por Elias a relao indissocivel entre os

    conceitos de indivduo e sociedade, dado que um conceito no existe sem o outro,

    sendo difcil e at mesmo impossvel pens-los separadamente.

    Procurando entender o que rene os indivduos em sociedade, Elias constata

    que a ordem invisvel dessa forma de vida em comum (a sociedade) que no pode ser

    diretamente percebida, oferece ao indivduo uma gama mais ou menos restrita de

    funes e modos de comportamento possveis (ELIAS, 1994, p. 21). Os indivduos

    estariam ligados uns aos outros por teias de interdependncia, ou seja, por conta das

    diferentes funes exercidas em sociedade as pessoas tornam-se dependentes umas das

    outras. Sendo assim, tais funes so percebidas por Elias como relaes.

    Desse modo, a sociedade concebida por Elias como uma formao social

    na qual so definidas de maneira especfica as relaes existentes entre os sujeitos

    sociais e em que as dependncias recprocas que ligam os indivduos uns aos outros

  • engendram cdigos e comportamentos originais (CHARTIER, 2001, p. 8).

    Elias afirma que a pessoa vive, e viveu desde pequena, numa rede de

    dependncias que no possvel modificar ou romper pelo simples giro de um anel

    mgico, mas somente at onde a prpria estrutura dessas dependncias permita; vive

    num tecido de relaes mveis que a essa altura j se precipitaram nela como seu

    carter pessoal (ELIAS, 1994, p. 22). Aproxima-se da concepo de Bourdieu de

    estruturas estruturadas e/ou estruturantes.

    Apesar de serem moldados pela sociedade, de ter sua natureza modificada

    por ela, os indivduos tambm passam, ao longo de seu desenvolvimento, por um

    processo de individualizao. Elias considera que a historicidade de cada indivduo, o

    fenmeno do crescimento at a idade adulta, a chave para a compreenso do que a

    sociedade (ELIAS, 1994, p. 30).

    Elias defende que todo homem pressupe outras condutas antes dele. Uma

    criana s se torna um ser humano ao se integrar num grupo por exemplo, ao

    aprender uma lngua j existente, ou ao assimilar as regras de controle das pulses e

    dos afetos que so prprias de uma civilizao (ELIAS, 1998, p. 19). Ou seja,

    necessrio estabelecer relaes com a sociedade. Como mostra Bourdieu, essa

    necessidade expressa no processo de interiorizao da exterioridade e exteriorizao

    da interioridade.

    At mesmo o entendimento da singularidade de um indivduo est associado

    a sua relao com outros indivduos. Elias considera que a estrutura e a configurao

    do controle comportamental de um indivduo dependem da estrutura das relaes entre

    os indivduos (ELIAS, 1994, p. 56).

    Como mencionado anteriormente, Bourdieu argumenta que a possibilidade

    de realizar aes individuais est inscrita na sociedade e como apresentado, por meio

    da teoria das configuraes de Elias, tais aes so orientadas em direo aos outros

    indivduos, o que reafirma a necessidade de perceber os conceitos de indivduo e

    sociedade como estruturalmente relacionais.

  • Considerando esta necessidade, os estudos biogrficos, de carter

    sociolgico, se contrapem aos estudos biogrficos literrios que costumam apresentar

    o indivduo e sua obra separadamente das relaes em que esto inseridos, ou seja,

    sem relacion-los s condies sociais de produo. De acordo com BOURDIEU

    (1992, p.183), a histria da literatura em sua forma tradicional [...] ignora quase

    completamente o esforo por reinserir a obra ou o autor singular que toma como objeto

    no sistema de relaes constitutivo da classe dos fatos (reais ou possveis) de que faz

    parte scio-logicamente. Este esforo a perspectiva que orienta, neste trabalho, a

    construo sociolgica da biografia da Irm Tereza Arajo.

    Seguindo esta perspectiva, um estudo biogrfico, luz da sociologia, deve

    construir a hierarquia do sistema de fatores pertinentes quando se trata de dar conta

    de um campo ideolgico que corresponde a um determinado estado da estrutura do

    campo intelectual (BOURDIEU, 1992, p. 187). Grande parte dos estudos biogrficos

    sociolgicos dedicam-se s trajetrias sociais de literatos, intelectuais e artistas9.

    Propomos, no entanto, o estudo da trajetria social de uma religiosa com base na

    metodologia utilizada para o estudo de intelectuais e artistas, a chamada cincia das

    obras.

    Bourdieu aponta as trs operaes que constituem a cincia das obras: a

    anlise da posio do campo, em estudo, no seio do campo do poder, ao decorrer do

    tempo; a anlise da estrutura interna deste campo, suas leis de funcionamento e de

    transformao; e por ltimo, a anlise dos habitus dos ocupantes dessas posies, ou

    seja, os sistemas de disposies, possveis de atualizao, que so o produto de uma

    trajetria social e de uma posio no interior do campo (BOURDIEU, 2002, p. 243).

    Sem deixar de lado estas trs operaes, a categoria carisma como

    9 Destacamos os estudos de Srgio Miceli sobre os intelectuais brasileiros em MICELI, Srgio. Intelectuais brasileira. So Paulo: Companhia das Letras, 2001; e de Maria Tarcisa Silva Bega sobre os poetas paranaenses, representantes do simbolismo em BEGA, Maria Tarcisa Silva. Sonho e Inveno do Paran. Gerao Simbolista e a Construo da Identidade Regional. So Paulo: 2000.

  • apresentada pelos autores Norbert Elias e Pierre Bourdieu permite associar as

    qualidades individuais da Irm Arajo s relaes e estruturas sociais, entendidas

    como configuraes ou campos, em que a religiosa estava inserida

    De acordo com Elias, a tarefa do lder carismtico agrupar os indivduos e

    reunir seus esforos em um mesmo sentido. Sendo assim, as aptides extraordinrias,

    que so atribudas ao lder carismtico, s podem ser analisadas considerando a

    configurao especfica que as proporcionaram.

    Bourdieu revisou criticamente o conceito de carisma como proposto por Max

    Weber. Na concepo do autor, a fora simblica do profeta no est, como acredita

    Weber, em seu carisma pessoal mas sim no poder exercido pelos grupos sociais que

    representa. Tal perspectiva aproxima Bourdieu de Elias, pois ambos acreditam que

    para compreender a dominao exercida pelo profeta ou lder carismtico necessrio

    compreender o campo social em que este se insere e suas relaes de interdependncia

    para Elias ou a posio relacional deste indivduo no campo para Bourdieu.

    Desse modo, a concepo de carisma fundamental para a construo da

    trajetria da Irm Arajo como um objeto de pesquisa sociolgica, pois nos auxilia na

    compreenso de sua posio no campo religioso e na sua permanncia como uma

    influncia para os trabalhos comunitrios realizados em Curitiba e Regio

    Metropolitana at hoje.

    Bourdieu tambm contribui para a construo do objeto de pesquisa desta

    dissertao ao afirmar que preciso investigar as caractersticas sociologicamente

    pertinentes de uma biografia singular que fazem com que um determinado indivduo

    encontre-se socialmente predisposto a sentir e a exprimir com uma fora e coerncia

    particulares, disposies ticas ou polticas j presentes, em estado implcito, em todos

    os membros da classe ou do grupo de seus destinatrios (BOURDIEU, 2001, p. 94).

    Outra categoria que se apresenta como de fundamental importncia para a

    anlise da trajetria social da Irm Arajo o conceito de habitus, apresentado

    anteriormente. Esta categoria central na realizao deste trabalho. De acordo com

  • BOURDIEU (1992, p. 201-202), o estabelecimento da harmonia entre as posies

    oferecidas pelo campo e os agentes que assumem essas posies, no explicado por

    orientaes como a vocao. O ajuste das carreiras s estruturas dado pelo habitus.

    Sendo assim, ao construir a noo de habitus, Bourdieu destaca os agentes

    em ao no campo (conceito que d suporte ao de habitus). O campo, em linhas

    gerais, um espao estruturado de relaes. Para Bourdieu, as condies objetivas

    (aquelas que so da estrutura social) e as prticas sociais se manifestam no campo.

    Cada campo possui seu capital especfico, como por exemplo, o campo cientfico, em

    que o capital social se expressa pelos ttulos, publicaes, etc. Dessa mesma forma

    tem-se os campos religioso, poltico, artstico, intelectual, etc.

    1.1 ESTUDOS BIOGRFICOS LUZ DA SOCIOLOGIA

    Em uma obra denominada Poder, sexo e letras na Repblica Velha (Estudo

    Clnico dos Anatolianos), MICELI (2001) examina a trajetria social de um grupo de

    letrados brasileiros, atuantes no perodo da Repblica Velha (1889-1930). A

    construo da biografia dos letrados feita por Miceli, tendo como referncia,

    conceitos definidos por Pierre Bourdieu como campo e habitus. MICELI (2001, p. 17)

    considera que o estudo da vida intelectual brasileira em seu perodo de formao [...]

    permite captar alguns dos determinantes sociais da atividade intelectual que muitas

    vezes passam despercebidos num campo intelectual mais autnomo, dispondo de

    aparelhos de celebrao cuja funo bsica consiste em encobrir as condies sociais

    que presidem a produo e recepo das obras.

    Percebe-se em Miceli o esforo em estabelecer, como orienta Bourdieu, as

    posies e as relaes dos letrados brasileiros nos diversos campos sociais, em

    especial no campo intelectual. Alm de serem originrios de famlias oligrquicas em

    situao de declnio material e possurem vnculos de parentesco ou de compadrio com

    a classe dirigente, o grupo de letrados analisado por Miceli encontra duas possveis

    determinaes em sua biografia, so elas: o ingresso nas carreiras intelectuais

  • associa-se de um lado, posse de trunfos que resultam da posio na fratia ou na

    linhagem [...] e de outro, os efeitos que provocam handicaps10 sociais [...], biolgicos

    [...] ou, ento, estigmas corporais [...] (MICELI, 2001, p. 22). Por sofrerem diferentes

    formas de mutilao social, os letrados tm como efeito em sua trajetria social a

    impossibilidade de ocuparem as posies dominantes e ingressam na carreira

    intelectual.

    O deslocamento dos letrados para as chamadas posies dominadas se

    realiza mediante uma transformao profunda do habitus, de um processo de

    feminizao social que pode resultar tanto da experincia do declnio familiar como

    de uma resposta impossibilidade fsica de assumir papis masculinos, todos esses

    fatores podendo em certos casos se acumular e se reforar um ao outro (MICELI,

    2001, p. 26).

    Este processo de feminizao social tambm identificado por Miceli, na

    trajetria de alguns prelados brasileiros descendentes de proprietrios rurais. De

    acordo com o autor alguns dos filhos, mormente aqueles mais jovens desencorajados

    em suas pretenses de herana do patrimnio e da posio social paterna, estiveram

    sujeitos a um processo de feminizao ainda mais intenso e radical do que aquele

    sofrido pelos intelectuais, com a agravante de no disporem de trunfos escolares

    capazes de garantir sua sobrevivncia fora da organizao eclesistica (MICELI,

    1998, p. 90-91). Miceli reafirma, desse modo, a relao entre a trajetria social

    realizada pelo indivduo e as posies sociais que lhe esto disponveis.

    Um outro exemplo de estudo biogrfico a reconstruo da trajetria social

    do compositor clssico Wolfgang Amadeus Mozart por ELIAS (1995a). Segundo o

    autor, Mozart desistiu de viver por ter perdido o reconhecimento do pblico e o afeto

    de sua mulher. Elias acredita que para se compreender algum, preciso conhecer os

    anseios primordiais que este deseja satisfazer. A vida faz sentido ou no para as

    10 O termo handicap refere-se a desvantagens ou obstculos enfrentados pelo indivduo no espao social.

  • pessoas, dependendo da medida em que elas conseguem realizar tais aspiraes. [...] E

    nem sempre cabe pessoa decidir se seus desejos sero satisfeitos, ou at que ponto o

    sero, j que eles sempre esto dirigidos para os outros, para o meio social (ELIAS,

    1995a, p. 13).

    O autor acredita ainda que para conhecer algum necessrio conhecer o

    que esta pessoa considerava ser a realizao ou o vazio de sua vida (ELIAS, 1995a, p.

    13). nesse sentido que Elias constri a biografia de Mozart procurando identificar

    seus anseios e suas realizaes, como a msica e o amor11.

    Elias aponta que seria incorreto analisar o artista separadamente do homem,

    uma vez que, para amar a arte de Mozart necessrio ter amor tambm pelo homem

    que a criou. Alm disso, ao longo de sua obra o autor procura apontar alguns caminhos

    metodolgicos a serem adotados para a construo de uma biografia, de cunho

    sociolgico, entre eles afirma que preciso ser capaz de traar um quadro claro das

    presses sociais que agem sobre indivduos. Tal estudo no uma narrativa histrica,

    mas a elaborao de um modelo terico verificvel da configurao que uma pessoa -

    neste caso, um artista do sculo XVIII - formava, em sua interdependncia com outras

    figuras sociais da poca (ELIAS, 1995a, p.18-19). Podemos aproximar a

    recomendao feita por Elias da primeira recomendao feita por BOURDIEU (1992,

    p. 191) sobre a necessidade de uma anlise da posio dos intelectuais e artistas na

    estrutura da classe dirigente (ou em relao a esta estrutura nos casos em que dela no

    fazem parte nem por sua origem nem por sua condio). Desse modo, verificamos

    que ambos concebem trajetria social como um fenmeno essencialmente relacional,

    11 Seguindo essa mesma perspectiva, um estudo sobre o escritor, mdico e educador Afrnio Peixoto (1876-1947), aponta que o intelectual tinha como aspirao a paternidade e com a perda de seu nico filho, em 1942, sua carreira intelectual sofre considervel declnio (CSER; LOPES e MOTA, 1994, p. 158-159). Os autores procuram, a partir de tal constatao, identificar o impacto desta experincia pessoal na trajetria intelectual de Afrnio Peixoto.

  • ou estruturalmente relacional.

    Sendo assim, para ler adequadamente uma obra na singularidade de sua

    intertextualidade, preciso l-la consciente ou inconscientemente na sua

    intertextualidade, isto , atravs do sistema de desvios pelo qual ela se situa no espao

    das obras contemporneas; mas essa leitura diacrtica, ou seja, capaz de distinguir

    autor e texto, inseparvel de uma apreenso estrutural do respectivo autor, que

    definido, quanto s suas disposies e tomadas de posio, pelas relaes objetivas que

    definem e determinam sua posio no espao da produo e que determinam ou

    orientam as relaes de concorrncia que ele mantm com os demais autores e o

    conjunto das estratgias, sobretudo formais, que o torna um verdadeiro artista ou um

    verdadeiro escritor (BOURDIEU, 1990, p. 177-178).

    A natureza essencialmente diacrtica da produo que se realiza no interior

    de um campo faz com que seja possvel e necessrio analisar todo o campo, tanto o

    campo das tomadas de posio quanto o campo das posies, em cada obra produzida

    nessas condies (BOURDIEU, 1990, p. 178). Tal leitura seria possvel por meio de

    uma cincia das obras que procuraria as relaes entre um autor, suas obras e o campo

    no qual este autor est inserido.

    A condio para a realizao de uma cincia das obras o afastamento desta

    iluso presente nos estudos biogrficos. A iluso , segundo Bourdieu, um princpio da

    tradio hagiogrfica e biogrfica, que procura ver a coerncia deliberada de um

    projeto nos produtos objetivamente congruentes de um habitus (BOURDIEU, 2002,

    p. 84).

    Nesta concepo, a vida do indivduo orienta-se tendo sua origem social

    como um princpio gerador at a realizao de um determinado objetivo. Nestes

    estudos, considera-se que cada vida um todo, um conjunto coerente e orientado, e

    que s pode ser apreendida como a expresso unitria de uma inteno, subjetiva e

    objetiva, que se anuncia em todas as experincias, sobretudo as mais antigas

    (BOURDIEU, 2002, p. 213). Assim, acredita-se que a vida do indivduo tem um ponto

  • de partida ou um princpio gerador que levado at um termo ou um objetivo

    determinado.

    De acordo com o autor

    preciso perguntar no como tal escritor [ou agente] chegou a ser o que foi com o risco de criar na iluso retrospectiva de uma coerncia reconstruda-, mas como, sendo dadas a sua origem social e as propriedades socialmente constitudas que ele lhe devia, pde ocupar ou, em certos casos, produzir as posies j feitas ou por fazer oferecidas por um estado determinado do campo literrio (etc.) e dar, assim, uma expresso mais ou menos completa e coerente das tomadas de posio que estavam inscritas em estado potencial nessas posies (BOURDIEU, 2002, p. 244).

    Alm das biografias, produzidas no mbito da literatura, os estudos de

    trajetria diferenciam-se tambm das biografias institucionais como nos mostra Miceli,

    em relao s biografias produzidas sobre os prelados brasileiros:

    o exame acurado das obras produzidas por aqueles membros do clero especializados na documentao da histria da Igreja revela os incentivos organizacionais ao trabalho intelectual sistemtico de registro, transcrio e publicao dos arquivos das parquias, crias, conventos, dos livros de tombo das igrejas e irmandades, da correspondncia do clero, dos documentos e circulares episcopais e pontifcias, das pastorais, circulares e testamentos dos prelados, e de tudo mais que contribui para cristalizar a memria corporativa, num esforo considervel de expurgar documentos tendenciosos, de revidar aos argumentos e s verses anticlericais, de resistir ao proselitismo dos concorrentes maons, protestantes e espritas, de eufemizar acontecimentos atentatrios ao prestgio e ao bom nome da Igreja, de condenar ao esquecimento os hereges, cismticos, heterodoxos e desfradados, de apagar informaes a respeito de conflitos e lutas internas que s conseguem vir a pblico por conta de revises levadas a cabo por outros grupos de interesse do prprio clero ou por fora do confronto sistemtico (ou casual) entre fontes eclesisticas e outras fontes leigas (MICELI, 1988, p. 53-54).

    A realizao de uma biografia que no tenha por princpio o compromisso

    com a veracidade das informaes contrape-se tarefa do socilogo que, de acordo

    com BOURDIEU (2001, p. 14), construir um modelo verdadeiro das lutas pela

    imposio da representao verdadeira da realidade, que contribuem para fazer a

    realidade tal como se apresenta ao registro. Neste sentido, assim como tambm

    mostrou Elias em Mozart, a trajetria social no simplesmente a justaposio de

    acontecimentos histricos.

    Bourdieu prope o conceito de trajetria social como uma possibilidade para

  • o estudo da trajetria de vida de um indivduo dentro da Sociologia. A trajetria social

    definida pelo autor como a srie das posies sucessivamente ocupadas por um

    mesmo agente ou por um mesmo grupo de agentes em espaos sucessivos

    (BOURDIEU, 2002, p. 292). Assim, necessrio estudar no s o agente, como

    tambm suas relaes com outros agentes e os diversos campos pelos quais este

    circula.

    Propondo para alm de uma definio de trajetria social, um modelo para a

    realizao deste tipo de estudo, BOURDIEU (2002, p. 292) ressalta que:

    Toda trajetria social deve ser compreendida como uma maneira singular de percorrer o espao social, onde se exprimem as disposies do habitus; cada deslocamento para uma nova posio, enquanto implica a excluso de um conjunto mais ou menos vasto de posies substituveis e, com isso, um fechamento irreversvel do leque dos possveis inicialmente compatveis, marca uma etapa de envelhecimento social que se poderia medir pelo nmero dessas alternativas decisivas, bifurcaes da rvore com incontveis galhos mortos que representa a histria de uma vida.

    Dado que Bourdieu dedica-se, de acordo com ORTIZ (2002, p. 150),

    problemtica terica da mediao entre o agente social e a sociedade, percebe-se que o

    conceito de trajetria social, associado aos conceitos de habitus e campo, capaz de

    realizar esta mediao.

    Sobre a relao entre trajetria social e campo, Bourdieu esclarece que a

    constituio do campo a condio lgica prvia para a construo da trajetria social

    como srie das posies ocupadas sucessivamente nesse campo (BOURDIEU, 2002,

    p. 243).

    Para Bourdieu uma determinada posio no campo, favorece determinadas

    disposies, ou seja, tendncias ou inclinaes, sendo assim, apenas quando se

    caracterizam as diferentes posies que se pode voltar aos agentes singulares e s

    diferentes propriedades pessoais que os predispem mais ou menos a ocup-las e a

    realizar as potencialidades que a se acham inscritas (BOURDIEU, 2002, p. 105).

    necessrio ainda, como afirmamos anteriormente, fazer uma reconstituio do ponto

    de vista do indivduo e de seu espao das tomadas de posio.

  • No espao social, os agentes que ocupam posies semelhantes, esto

    colocados em condies parecidas e so submetidos aos mesmos e portanto podem

    possuir as mesmas disposies e interesses bem como produzirem prticas

    semelhantes (BOURDIEU, 1990, p. 158). Sendo assim, as disposies que so

    adquiridas na posio ocupada implicam em ajustamentos a uma determinada posio.

    Bourdieu acredita que as disposies dos agentes, o seu habitus, isto , as

    estruturas mentais atravs das quais eles apreendem o mundo social, so em essncia

    produto da interiorizao das estruturas sociais (BOURDIEU, 1990, p. 158).

    O habitus produz prticas e representaes que podem ser classificadas e que

    so objetivamente diferentes. No entanto para serem percebidas como tal pelos agentes

    necessrio que estes possuam os esquemas classificatrios necessrios para atribuir-

    lhes um sentido social. De acordo com Bourdieu o habitus implica no apenas em um

    sense of ones place, mas tambm um sense of others place (BOURDIEU, 1990, p.

    158).

    possvel perceber esta relao de forma mais clara atravs da discusso da

    noo de gosto realizada por Bourdieu. O gosto tem um carter essencialmente

    distintivo e pressupe esquemas generativos que orientam e determinam uma escolha

    esttica. atravs do gosto que so expressos, no espao social, os estilos de vida de

    diferentes classes ou grupos sociais. Bourdieu acredita que o espao social e as

    diferenas que nele se desenham espontaneamente tendem a funcionar

    simbolicamente como espaos de estilo de vida ou como conjunto de Stnde, isto , de

    grupos caracterizados por estilo de vida diferentes (BOURDIEU, 2001b, p. 144).

    Sobre o significado do espao de posies, Bourdieu esclarece que:

    De maneira mais geral, o espao de posies sociais se retraduz em um espao de tomada de posio pela intermediao do espao de disposies (ou do habitus); ou, em outros termos, ao sistema de separaes diferenciais, que definem as diferentes posies nos dois sistemas principais do espao social, corresponde um sistema de separaes diferenciais nas propriedades dos agentes (ou de classes construdas como agentes), isto , em suas prticas e nos bens que possuem. A cada classe de posies corresponde uma classe de habitus (ou de gostos) produzidos pelos condicionamentos sociais associados condio correspondente e, pela intermediao desses habitus e de suas capacidades geradoras, um conjunto sistemtico de bens e de propriedades, vinculadas entre si por uma afinidade de

  • estilo. Uma das funes da noo de habitus a de dar conta da unidade de estilo que vincula as prticas e os bens de um agente singular ou de uma classe de agentes (BOURDIEU, 1996, p.21).

    A compreenso da posio de um indivduo ou grupo no espao dos estilos

    de vida est associada compreenso de seu habitus, utilizado para descrever o

    conjunto de disposies que determinam os gostos e caracterizam camadas sociais.

    Aproximando os conceitos de gosto e habitus, Bourdieu nos mostra que:

    O gosto (ou o habitus) enquanto sistema de esquemas de classificao est objetivamente referido, atravs dos condicionamentos sociais que o produziram, a uma condio social: os agentes se autoclassificam, eles mesmos se expem classificao ao escolherem, em conformidade com seus gostos, diferentes atributos, roupas, alimentos, bebidas, esportes, amigos, que combinam entre si e combinam com eles, ou mais exatamente, que convm sua posio (BOURDIEU, 1990, p. 159).

    Alm de ser um produto do habitus, o gosto tambm um produto da

    educao escolar. fundamental ressaltar que o habitus transformado pela ao

    escolar constitui o princpio de estruturao de todas as experincias ulteriores,

    incluindo desde a recepo das mensagens produzidas pela indstria cultural at as

    experincias profissionais (MICELI, 2001, p.XLVII).

    Os indivduos escolhem no espao social bens e servios disponveis que

    ocupem uma posio homloga sua posio no espao social. Desse modo, os

    agentes se autoclassificam, em conformidade com seus gostos, como sistemas de

    esquemas de classificao e exteriorizam um habitus interiorizado atravs do consumo

    destes mesmos bens e servios.

    No entanto, Bourdieu no descarta a possibilidade de que indivduos que

    possuem posies semelhantes no espao social, realizem disposies diferentes.

    Analisando as trajetrias sociais de Baudelaire e Flaubert, em obra intitulada As regras

    da arte (2002), que a princpio aparentam ser anlogas, o autor percebe que:

    se Baudelaire ocupa no campo uma posio assimilvel de Flaubert, d a ela uma dimenso herica, baseada sem dvida em sua relao com sua famlia, que o levar, no momento de seu processo, a uma atitude muito diferente da de Flaubert, disposto a fazer funcionar a honorabilidade burguesa de sua linhagem, e que responsvel tambm por um longo mergulho na misria da vida bomia (BOURDIEU, 2002, p. 82).

  • O estilo pessoal, isto , essa marca particular que carregam todos os

    produtos de um mesmo habitus, prticas ou obras, no seno um desvio, ele prprio

    regulado e s vezes mesmo codificado, em relao ao estilo prprio a uma poca ou a

    uma classe (BOURDIEU, 1983, p. 81). Ou seja, apesar da histria do indivduo estar

    associada histria de um grupo ou classe, possvel perceber diferenas nas

    trajetrias de indivduos que pertencem a um mesmo grupo ou classe.

    Em artigo intitulado Bourdieu e renovao da sociologia contempornea,

    MICELI (2003) aponta as principais diferenas das anlises feitas por Sartre e

    Bourdieu sobre a trajetria de Flaubert. Nas palavras do autor: Em vez de mirar as

    mediaes modeladoras da individualidade singular do artista, tal como Sartre procede

    em relao a Flaubert, Bourdieu dava mostras de estar mais interessado em explorar os

    fatores incidentes sobre as prticas de todo escritor, que derivavam da operao do

    sistema mais inclusivo de relaes e de posies, designado como campo intelectual

    (MICELI, 2003, p.64-65).

    A relao entre as posies e as disposies pode ser analisada por meio do

    estudo feito por Miceli dos prelados brasileiros, em obra chamada A elite eclesistica

    brasileira (1988). O autor identifica a diviso dos prelados da Repblica Velha em trs

    grupos, de acordo com sua origem social. O primeiro grupo era constitudo por

    membros de antigas famlias da aristocracia imperial. Estes indivduos possuam todas

    as caractersticas socialmente valorizadas na poca: lastro material (terras, gado,

    escravos e outros bens de raiz), o cabedal de prestgio e honorabilidade (ttulos,

    honrarias, etc.) e o cacife de relaes e apoios polticos (MICELI, 1988, p. 86). Tais

    caractersticas contribuam decisivamente para a aceitao destes indivduos nas

    ordens religiosas.

    O segundo grupo de prelados era formado por indivduos provenientes de

    famlias empobrecidas ou em declnio do patriciado rural. Sendo assim, tais famlias

    viam na carreira eclesistica uma chance de preservao do futuro de seus filhos.

    O terceiro grupo era constitudo pelos indivduos de origem humilde que s

  • voltas com uma situao de completo desamparo desde a mais tenra idade, em seguida

    morte dos pais ou em funo da perda dos arrimos materiais da famlia, acabam

    sendo entregues aos cuidados de algum membro do clero, de uma ordem religiosa ou

    de um seminrio, que assumem os encargos de reproduo material e educao desses

    jovens e deles se apossam como donos (MICELI, 1988, p. 97).

    As posies ocupadas pelos membros destes trs diferentes grupos favorece

    determinadas disposies, diferentes entre si, na carreira eclesistica. Desse modo, ao

    analisar a trajetria dos indivduos que compem o segundo grupo, Miceli nos mostra

    que o fato de esses herdeiros falidos dependerem da intercesso materna para obterem

    vagas gratuitas em colgios religiosos de prestgio ou para freqentarem os seminrios

    diocesanos contribui decerto para reforar o mandato subalterno que assumiram no

    espao da classe dirigente (MICELI, 1988, p. 90).

    A tomada de posio pelo agente est associada ao estado do campo, ou seja,

    tanto os efeitos provveis das propriedades relacionadas ao agente quanto s

    disposies constitutivas do habitus, dependem do estado do campo de produo

    (BOURDIEU, 2002, p. 102) e est relacionada a diferentes elementos que determinam

    a trajetria do agente. Acerca da trajetria social de Flaubert, Bourdieu formula a

    seguinte hiptese: a recusa ativa de todas as determinaes associadas a uma posio

    determinada no campo intelectual, para a qual estava inclinado por sua trajetria social

    e pelas propriedades contraditrias que estavam em seu princpio, predispunha-o a

    uma viso mais alta e mais ampla do espao dos possveis, e ao mesmo tempo a um

    uso mais completo das liberdades que lhe aoitavam as sujeies (BOURDIEU,

    2002, p. 124). Tal hiptese aponta para a liberdade do agente frente s determinaes

    sociais. A anlise sociolgica do criador e de sua obra em relaes s determinaes

    sociais pode, na concepo de Bourdieu, demonstrar como o autor torna-se o sujeito de

    sua criao.

    Bourdieu aponta para a correspondncia entre as lutas internas em um

    determinado campo e as lutas externas dado que o desfecho das lutas internas depende

  • desta correspondncia (BOURDIEU, 2002, p. 148). Sendo assim, necessrio, ao

    analisar um determinado campo, estudar sua relao com os demais campos existentes

    na sociedade. Desse modo, as lutas internas, mesmo que independentes em seu

    princpio, dependem da correspondncia que mantm com as lutas externas no campo

    do poder ou no campo social em seu conjunto.

    Bourdieu considera que compreender a gnese social de um campo, e

    apreender aquilo que faz a necessidade especfica da crena que o sustenta, do jogo

    simblico em jogo que nele se geram, explicar, tornar necessrio, subtrair ao

    absurdo do arbitrrio e do no-motivado os actos dos produtores e as obras por eles

    produzidas e no, como geralmente se julga, reduzir ou destruir (BOURDIEU, 2001b,

    p. 69). Tal afirmao auxilia a compreenso de que a cincia das obras, proposta por

    Bourdieu no tem por objetivo retirar das obras as caractersticas individuais de seus

    produtores, mas sim perceber tais caractersticas em relao ao campo do qual fazem

    parte.

    As prticas dos agentes so o produto do encontro de duas histrias, a da

    produo da posio ocupada e a da produo das disposies de seus ocupantes

    (BOURDIEU, 2002, p. 289). Portanto, o efeito que um determinado campo produz

    sobre seus agentes sempre mediatizado por suas disposies e pelo espao das

    tomadas de posio.

    Esta constatao aproxima-se da anlise que Elias faz da trajetria de

    Mozart, utilizando o modelo terico das configuraes12. De acordo com o autor, o

    desejo de ganhar a vida como artista autnomo, impulsionou Mozart a procurar uma

    posio diferente da posio de msico da corte. No entanto, Elias observa que a

    deciso de Mozart ocorreu numa poca em que a estrutura social ainda no oferecia

    tal lugar para msicos ilustres (ELIAS, 1995a, p. 32). A atitude do compositor,

    considerada frente de seu tempo, acabou por comprometer at mesmo sua existncia

    12 CORCUFF (2001, p. 38) considera o tipo de abordagem de Elias particularmente esclarecedor na anlise da singularidade de um indivduo como Mozart.

  • social.

    Embora a deciso de arriscar-se como artista autnomo, a princpio, tenha

    partido de Mozart, Elias ressalta que at mesmo tais decises individuais ficam

    obscuras quando no se consideram os aspectos relevantes dos processos sociais no-

    planejados em que ocorrem, e cuja dinmica determina, em grande parte, suas

    conseqncias (ELIAS, 1995a, p. 48).

    Havia um descompasso entre o talento de Mozart e sua posio de msico da

    corte, Elias nos mostra que em sua carreira de menino prodgio, Mozart desenvolveu

    e fcil de entender a razo uma noo muito forte de seu prprio valor e de sua

    tarefa como compositor e intrprete. Isso combinava mal com sua posio social de

    subordinado e criado (ELIAS, 1995a, p. 119-120). Desse modo, o compositor vivia

    um conflito permanente pois buscava sua autonomia artstica e o reconhecimento de

    seu valor artstico em uma sociedade na qual a posio de artista autnomo ainda no

    existia.

    Sendo assim, alm das posies que esto disponveis aos indivduos e que

    tm por base a lgica do funcionamento social, existem ainda as posies que esto

    por construir. De acordo com BOURDIEU (2002, p. 95) aqueles que pretendem

    ocup-la no a podem fazer existir seno construindo o campo no qual poderia

    encontrar lugar, ou seja, revolucionando um mundo da arte que a exclui, de fato e de

    direito. No caso de Mozart, a posio de msico ou artista autnomo era posio por

    construir na sociedade de corte de sua poca.

    Elias afirma que entre as mais interessantes perguntas no respondidas de

    nosso tempo est a que indaga quais caractersticas estruturais fazem as criaes de

    uma determinada pessoa sobreviverem ao processo de seleo de uma srie de

    geraes, sendo gradualmente absorvidas no padro das obras de arte socialmente

    aceitas, enquanto as de outras pessoas caem no mundo sombrio das obras esquecidas

    (ELIAS, 1995a, p. 52). Assim o estudo de trajetrias sociais tambm tem por objetivo

    elucidar a permanncia de um indivduo ou de suas obras como modelo ou referncia

  • para as geraes posteriores.

    As orientaes tericas e metodolgicas de Elias e Bourdieu fundamentam

    de forma particular a relao indivduo e sociedade, trazendo conceitos como espao

    social, campo, configurao, habitus, interdependncia, entre outros, atravs dos quais

    possvel construir, em perspectiva sociolgica, a biografia de um indivduo, ou seja,

    sua trajetria social.

  • 2 A COMPANHIA FILHAS DA CARIDADE DE SO VICENTE DE PAULO

    E A FORMAO DE UM NOVO HABITUS

    Quanto mais nos esvaziarmos de ns mesmos, tanto mais Deus vais nos encher. So Vicente de Paulo.

    Maria Pinheiro Arajo nasceu em Pacot13, no Estado do Cear, em 26 de

    janeiro de 1919. Seu pai, Jos Monteiro Arajo, era agricultor e sua me, Maria

    Pinheiro Arajo, dona de casa.

    Ainda no Cear, Maria Pinheiro Arajo recebeu alguns dos principais

    sacramentos da Igreja Catlica: foi batizada em 22 de fevereiro de 1920, fez sua

    primeira comunho em 08 de dezembro de 1924 e crisma em 1927. O recebimento

    desses sacramentos afirma a religiosidade da famlia Arajo. Tal religiosidade pode ter

    ainda influenciado a entrada de Maria Arajo no campo religioso. FIGURA 1 FOTOGRAFIA DA CARTEIRA DE IDENTIDADE DA IRM TEREZA ARAJO FONTE: Jornal Voz do Paran, 1981.

    13O povoado de Pendncia criado em 02 de setembro de 1890 foi elevado a categoria de municpio em 1938 com o nome de Pacot. A produo agrcola a principal atividade econmica do municpio, destacam-se a produo de algodo, cana-de-acar , milho e feijo. Atualmente o municpio conta atualmente com 10.929 habitantes, dos quais, 3.809 vivem em rea urbana e 7.120 vivem na zona rural do municpio. um municpio de pequeno porte na Serra do Baturit no Estado do Cear. Fonte: IBGE, 2004.

  • Aos 18 anos, Maria Pinheiro Arajo foi admitida na Companhia Filhas da

    Caridade de So Vicente de Paulo, da Ordem Vicentina, no Rio de Janeiro, sendo

    definida pela instituio como vocacionada fervorosa (SECRETARIA, 200?),

    embora o sentido de tal vocao no seja mencionado de forma clara nos escritos da

    Companhia. No dia 26 de agosto de 1939 recebeu o hbito da Companhia. Na festa de

    So Vicente de Paulo, em 19 de julho de 1943, fez os votos, passando a se chamar

    Irm Tereza Arajo. A mudana de nome marca, mesmo que de forma simblica, o

    rompimento com seu habitus original, proveniente de sua famlia, e a entrada no

    campo religioso.

    Mas do que a mudana de nome, este rito de instituio marca como

    esclarece Bourdieu a instituio de uma identidade, que pode ser um ttulo de nobreza

    ou estigma (tu s um s...), a imposio de um nome, ou seja, de uma essncia

    social. Instituir, conceder uma essncia, uma competncia impor um direito de ser

    que um dever ser (ou de ser). significar a algum aquilo que e significar-lhe que

    deve conduzir-se de acordo com isso. O indicativo, neste caso, um imperativo

    (BOURDIEU, 1998, p. 113).

    Sobre o significado de um rito de instituio como o vivido pela Irm

    Arajo, Bourdieu argumenta que:

    Em resumo, sob pena de no conseguir compreender os fenmenos sociais mais fundamentais tanto nas sociedades pr-capitalistas como no nosso prprio mundo (o diploma pertence tanto magia quanto os amuletos), a cincia social deve ter em conta o fato da eficcia simblica dos ritos de instituio; quer dizer, o poder que estes detm para agir sobre o real agindo sobre a representao do real. Por exemplo, a investidura exerce uma eficcia simblica perfeitamente real ao transformar a representao que dela fazem os outros agentes e, sobretudo, os comportamentos que adotam em relao a ela (sendo a mudana mais visvel sendo o fato de serem dados ttulos de respeito e o respeito realmente associado a esta enunciao); e, depois, porque transforma simultaneamente a representao que a pessoa investida faz de si prpria e os comportamentos que julga dever adotar para se conformar com esta representao. Podemos compreender nesta lgica o efeito de todos os ttulos sociais de crdito ou de crena os Ingleses chamam-lhe credencials que, como o ttulo de nobreza ou o ttulo escolar, multiplicam de forma durvel, o valor do seu portador, ao multiplicar o alcance e a intensidade da crena no seu valor (BOURDIEU, 1998, p. 112).

    Embora no tenha sido possvel levantar, no decorrer do trabalho de

  • pesquisa, as circunstncias que levaram a entrada da Irm Arajo no campo religioso,

    MICELI (2002, p. 23) aponta que a escolha de uma profisso ou at mesmo de uma

    vocao pode estar relacionada a estratgias de reconverso de capital. Desse modo,

    o autor afirma que:

    Para aquelas famlias em declnio que ocupam uma posio em falso em virtude do desequilbrio entre o capital material dilapidado e o capital social disponvel, a nica possibilidade de reconverso depende das possibilidades de fazer valer o capital de relaes sociais em especial em conjunturas estratgicas como a educao dos filhos, a escolha dos cursos superiores, o casamento, a nomeao para cargos pblicos etc.-, por ser o nico com que ainda podem contar para escapar a um rebaixamento social ainda maior (MICELI, 2002, p.23).

    No entanto, Miceli discute que, em geral, estas estratgias de reconverso de

    capital no conseguem devolver a essas famlias suas posio social anterior. Dado

    que para as famlias em apreo, a prestao de servios Igreja se insere num clculo

    complexo de sobrevivncia social, dando origem a uma espcie de capital dificilmente

    conversvel, em outros setores da classe dominante (MICELI, 1988, p. 93). Assim

    como a escolha da profisso, a insero na Igreja pode ser concebida como um

    clculo complexo de sobrevivncia social o que afirma a importncia da origem social

    na entrada do campo religioso.

    Miceli discute ainda que as estratgias de reconverso de capital esto

    associadas ao estado do campo. Sendo assim se as famlias de parentes pobres

    tiveram xito em fazer valer seu capital social, isso se deve ao fato de que suas

    estratgias de reconverso coincidiram com um momento determinado de expanso do

    mercado de postos disponveis, que veio favorecer seus interesses (MICELI, 2002,

    p.23). No caso da religiosa, a possibilidade de deixar o campo e buscar formao

    escolar em nvel superior e a devoo religiosa de sua famlia so elementos que

    podem ter favorecido a escolha do trabalho religioso.

    No entanto, sejam quais forem as circunstncias que marcaram a entrada de

    um indivduo num determinado campo, como o campo religioso, Bourdieu indica que

    a vinculao ao campo implica a aceitao de um conjunto de pressupostos e

  • postulados que, sendo a condio indiscutida das discusses so, por definio,

    mantidos a salvo das discusses (BOURDIEU, 2002, p. 193).

    Como um sistema simblico estruturado, a religio, especificamente, assume

    uma funo ideolgica, de legitimao de um determinado estilo de vida. A religio

    inculca um sistema de prticas e representaes consagradas cuja estrutura

    (estruturada) reproduz sob uma forma transfigurada, e portanto irreconhecvel, a

    estrutura das relaes econmicas e sociais vigentes em uma determinada formao

    social (BOURDIEU, 2001, p. 46).

    Faz-se necessrio, portanto, a formao, no indivduo, de um novo habitus o

    que, por sua vez, implica em inculcar esquemas de pensamento, ao e percepo

    prprios deste campo. Para tornar mais evidente de que forma este processo ocorreu na

    trajetria da Irm Tereza Arajo apresentado na seo 2.1 deste captulo um breve

    histrico da Companhia Filhas da Caridade de So Vicente de Paulo.

    2.1 HISTRICO DA COMPANHIA FILHAS DA CARIDADE

    O esprito das Filhas da Caridade o amor de Nosso Senhor. preciso que saibam que ele se exerce de duas maneiras: uma afetiva e outra efetiva.

    So Vicente de Paulo.

    Bourdieu considera que a construo de uma biografia, em perspectiva

    sociolgica, implica em reconstruir o campo de produo em que um determinado

    indivduo est inserido e em verificar ainda a relao entre a posio do indivduo e as

    mudanas que ocorrem no campo. Obedecendo a este princpio, apresentado a seguir

    o campo de produo em que a Irm Tereza Arajo estava inserida: a Companhia das

    Filhas da Caridade de So Vicente de Paulo.

    No incio do sculo XV, Lusa de Marillac (1561-1660) foi convidada a

    reorganizar as Confrarias da Caridade, fundadas por So Vicente de Paulo para

    socorrer os pobres, em diversas parquias da Frana. Durante vrios anos, Santa

  • Lusa14 percorreu muitas cidades e aldeias do pas, promovendo reunies para moas

    para instru-las no auxlio aos pobres, dada necessidade de que estas moas

    recebessem uma formao adequada s suas atividades.

    A partir destas reunies, foi fundada a Companhia Filhas da Caridade de So

    Vicente de Paulo em 1617, constituda por quatro camponesas15. A princpio no havia,

    nesta Companhia, clausura, nem hbito, nem vu, nem votos, nem qualquer tipo de

    ofcio religioso. Exatamente por estas caractersticas, a fundao da Companhia Filhas

    da Caridade de So Vicente de Paulo foi considerada uma inovao na vida religiosa,

    uma novidade na Igreja Catlica que, geralmente, neste perodo no permitia que as

    religiosas sequer sassem dos claustros.

    Bourdieu afirma que ao mobilizar ou invocar a histria do campo que se

    torna possvel revolucionar um campo, uma vez que a estrutura do campo se faz

    presente no ato de produo. Ignorar tal histria correr o risco de excluir-se do jogo.

    Assim, ao se apropriar de um fundamento histrico do campo religioso - a caridade -,

    que a Companhia foi bem sucedida em sua inovao.

    Vale lembrar ainda que:

    Em funo de sua posio na estrutura da distribuio do capital de autoridade propriamente religiosa, as diferentes instncias religiosas, indivduos ou instituies, podem lanar mo do capital religioso na concorrncia pelo monoplio da gesto de bens de salvao e do exerccio legtimo do poder religioso enquanto poder de modificar em bases duradouras as representaes e as prticas dos leigos, inculcando-lhes um habitus religioso, princpio gerador de todos os pensamentos, percepes e aes, segundo as normas de uma representao religiosa do mundo natural e sobrenatural, ou seja, objetivamente ajustados aos princpios de uma viso poltica do mundo social (BOURDIEU, 2001, p.57).

    Em 29 de novembro de 1633, as participantes da Companhia tornaram-se

    14 Lusa de Marillac foi beatificada pelo Papa Bento XV em 09 de maio de 1920 e elevada como Santa Lusa de Marillac pelo Papa Pio XI, em 11 de maro de 1934.

    15 Atualmente a Companhia Filhas da Caridade conta com 25.000 religiosas.

  • religiosas da Ordem Vicentina, assumindo permanentemente a atividade religiosa.

    Simultaneamente, neste perodo, foram institudos o uso do hbito e a proclamao dos

    votos religiosos. Desse modo, a entrada no campo religioso torna-se, a partir deste

    momento, uma premissa para a entrada na Companhia. Este perodo marca tambm a

    obrigatoriedade da passagem pelo rito de instituio que as transforma de leigas em

    Irms religiosos. Como afirma Bourdieu, por intermdio do efeito de atribuio

    estatutria (noblesse oblige) que o ritual de instituio produz os seus efeitos mais

    reais: aquele que est institudo, sente se impelido a estar conforme com a sua

    definio, a altura de sua funo (BOURDIEU, 1998, p. 114).

    Ao estabelecer-se como uma companhia religiosa e no mais leiga, a

    Companhia das Filhas da Caridade obedece ao princpio de que:

    A gesto do depsito de capital religioso (ou sagrado), produto do trabalho religioso acumulado, e o trabalho religioso necessrio para garantir a perpetuao deste capital garantindo a conservao ou a restaurao do mercado simblico em que o primeiro se desenvolve, somente podem ser assegurados por meio de um aparelho de tipo burocrtico que seja capaz , como por exemplo a Igreja, de exercer de modo duradouro a ao contnua (ordinria) necessria para assegurar sua prpria reproduo ao reproduzir os produtores dos bens de salvao e servios religiosos, a saber, os leigos (em oposio aos infiis e aos herticos) como consumidores dotados de um mnimo de competncia religiosa (habitus religioso) necessrio para sentir a necessidade especfica de seus produtos (BOURDIEU, 2001, p. 59).

    A Companhia das Filhas da Caridade, considerada missionria desde a sua

    fundao, valoriza a capacidade de mobilidade das Irms, ou seja, a disponibilidade de

    trabalhar em diferentes locais de acordo com as necessidades de cada pas. Assim,

    pouco tempo depois de sua criao, a Companhia, com sede em Paris, expandiu-se e

    instalou-se em novos pases e as Irms que a constituam, j em maior nmero, foram

    enviadas, para misses em diferentes continentes. Deste modo, ao longo dos anos, a

    Companhia se estabeleceu nos cinco continentes, dividida em oitenta e uma provncias

    e regies, com aproximadamente duas mil novecentos e cinqenta e sete casas

    provinciais (FILHAS DA CARIDADE, 2003).

    As Irms que constituam as Filhas da Caridade tem como misso, de acordo

    com a orientao de So Vicente de Paulo, honrar Nosso Senhor Jesus Cristo como a

  • fonte e o modelo de toda a caridade, servindo-o corporal e espiritualmente na pessoa

    dos pobres (FILHAS DA CARIDADE, 2003). Para realizarem esta misso de

    dedicao aos pobres, as Irms deveriam fazer votos de pobreza, castidade, obedincia

    e servio aos pobres e deveriam ainda associar servio e contemplao. FIGURA 2 SMBOLO DA COMPANHIA FILHAS DA CARIDADE Fonte: www.filhasdacaridade.com.br O smbolo da Companhia Filhas da Caridade de So Vicente de Paulo apresenta a figura de Cristo num corao

    em chamas, acompanhado pela citao bblica A caridade de Jesus crucificado nos impele.

    Este servio para ser eficaz e adaptado a diferentes situaes, segundo as

    orientaes da Companhia, demandava uma formao humana, profissional e

    espiritual. A formao profissional se daria, principalmente, nas reas da sade e

    educao. J a formao humana e espiritual se refere ao aprendizado da lngua e da

    cultura do pas em que sua misso seria realizada e formao catequtica e pastoral.

    Estas orientaes da Companhia Filhas da Caridade demonstram que apesar

    da formao religiosa ser essencial, necessria tambm a posse e o acmulo de

    diferentes tipos de capitais, o que permitiria a passagem das religiosas por diferentes

    campos no espao social. O acmulo de diferentes capitais poderia ser convertido,

    mais tarde, em capital religioso.

    Tais orientaes esto diretamente ligadas ao fato de que

    A Igreja apresenta inm