tríduos e novenas na bahia: aspectos estruturais comparadospsotuyo/dir/artigos/triduos e novenas na...

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1 V Encuentro Cientfico Simposio Internacional de Musicologa (V ECSIM) Santa Cruz de la Sierra, 27-28 abril de 2004 Trduos e Novenas na Bahia: aspectos estruturais comparados Pablo Sotuyo Blanco 1 Resumo (598 palavras) O presente trabalho discute aspectos cerimoniais, funcionais, estruturais, composicionais e de performance na prÆtica musical comparada em trduos e novenas catlicas na cidade de Salvador (Estado da Bahia - Brasil), ao tempo que procura estabelecer pontos de contato diacrnicos entre o presente dessas prÆticas musicais e os seus referenciais histricos a partir da documentaªo disponvel. A prÆtica referente aos tempos de preparaªo de festas do calendÆrio catlico, realizada tradicionalmente em perodos de trŒs, cinco, sete, oito, nove ou treze dias, apresenta aspectos idiossincrÆticos que dependem das tradiıes devocionais do local onde se realizam e do momento histrico e scio-religioso que as testemunham, entre os mais destacÆveis. Na monografia Para alØm das barras duplas: uma reflexªo preliminar sobre as prÆticas musicais nas novenas dos sØculos XVIII e XIX, AndrØ Guerra Cotta mostra que a estrutura bÆsica destas unidades cerimoniais, no repertorio de novenas localizadas em Minas Gerais (tanto de origem local quanto lusitana) vai alØm da proposta por JosØ Maria Neves em 1997, definida pelos incipits textuais. As mœsicas contidas nestas celebraıes, segundo a tradiªo, sªo (ou eram) cantadas repetidamente durante diversos dias, podendo ou nªo ser antecipadas e/ou encerradas por algum tipo de hino relativo ao evento ou personagem sagrado em questªo. Tal esquema conferiria celebraªo uma estrutura monoltica cuja repetiªo por nove dias, poderia gerar o mal-entendido de que ela seria igual para qualquer dia da novena. O que nªo Ø completamente certo. Motivados pelas referidas particularidades e conhecendo as tradicionais manifestaıes religiosas populares da Bahia (com destaque para as do Senhor do Bomfim, de Nossa Senhora da Conceiªo da Praia e de Bom Jesus dos Navegantes), porØm carentes de estudos especficos, iniciamos em Agosto de 2003, um projeto de pesquisa focado no estudo da prÆtica destas manifestaıes para-litœrgicas e musicais em Salvador, 2 procurando identificar mudanas e identidades entre o repertrio atualmente realizado e os anteriormente praticados (conhecidos atravØs da documentaªo histrica disponvel), nos seus diversos contextos histricos presentes e passados. Para atingir os objetivos definidos, estªo sendo levantadas informaıes relativas a: a) histria da instituiªo eclesiÆstica em Salvador desde 1549 atØ a atualidade, tanto no que diz respeito sua organizaªo diocesana, quanto relaªo entre as autoridades eclesiÆsticas, as organizaıes de leigos (irmandades, confrarias, devoıes, etc.), e os mœsicos e compositores atuantes em Salvador; b) descriıes e crnicas das referidas prÆticas, a partir de diversas fontes (escritas e/ou orais); c) repertrio musical relativo s novenas realizadas em Salvador. Por outro lado, estÆ sendo realizada a gravaªo digital sistemÆtica de cada dia destas manifestaıes na cidade de Salvador, a fim de dispor da primeira documentaªo aural referencial completa (cerimonial e musical) do presente de tais prÆticas nesta cidade permitindo o estudo comparado das mesmas; tanto entre elas, quanto das permanŒncias e mudanas nos diferentes dias em que cada uma delas acontece. AlØm do mØtodo analtico-comparativo (aural e/ou musical documental), aproveita-se o conceito de Modelo PrØ-Composicional, desenvolvido pelo autor na sua tese doutoral 3 como ferramenta analtica histrico-musical, para explicar alguns dos resultados encontrados. Entre os resultados parciais apresentados neste trabalho, se contam: a) mudanas no nœmero de dias em que elas acontecem (novenas que viram trduos ou vice-versa); b) aspectos relativos articulaªo da novena como estruturas cerimoniais e as normas eclesiÆsticas vigentes; c) aspectos relativos estrutura formal; d) aspectos relativos ao instrumental utilizado (coro, rgªo e orquestra; coro, violªo e percussªo; entre outras); e) identificaªo de Modelos PrØ-Composicionais pragmÆticos posteriores ao Concilio Vaticano II (uso de estilos oriundos do sØculo XVIII e XIX em novenas compostas no sØculo XX). 1 Doutor em Mœsica pela Universidade Federal da Bahia e Professor Pesquisador PRODOC-CAPES no PPGMUS- UFBA. 2 Projeto amparado no Programa Institucional de Bolsas de Iniciaªo Cientfica (PIBIC) da Universidade Federal da Bahia, com uma bolsa financiada pelo CNPq e dedicada aluna de graduaªo BÆrbara Brazil Nunes, quem vem participando desta pesquisa. 3 Pablo Sotuyo Blanco, Modelos PrØ-Composicionais nas Lamentaıes de Jeremias no Brasil (Tese doutoral, 2 vols., Programa de Ps-Graduaªo em Mœsica da Universidade Federal da Bahia, 2003), p.8.

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Page 1: Tríduos e Novenas na Bahia: aspectos estruturais comparadospsotuyo/dir/artigos/Triduos e Novenas na Bahia (TEXTO... · 28-30 Igreja de Santa Teresinha Santa Terezinha Tríduo DF

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V Encuentro Científico Simposio Internacional de Musicología (V ECSIM) Santa Cruz de la Sierra, 27-28 abril de 2004

Tríduos e Novenas na Bahia: aspectos estruturais comparados

Pablo Sotuyo Blanco1 Resumo (598 palavras)

O presente trabalho discute aspectos cerimoniais, funcionais, estruturais, composicionais e de performance na prática musical comparada em tríduos e novenas católicas na cidade de Salvador (Estado da Bahia - Brasil), ao tempo que procura estabelecer pontos de contato diacrônicos entre o presente dessas práticas musicais e os seus referenciais históricos a partir da documentação disponível.

A prática referente aos tempos de preparação de festas do calendário católico, realizada tradicionalmente em períodos de três, cinco, sete, oito, nove ou treze dias, apresenta aspectos idiossincráticos que dependem das tradições devocionais do local onde se realizam e do momento histórico e sócio-religioso que as testemunham, entre os mais destacáveis.

Na monografia �Para além das barras duplas: uma reflexão preliminar sobre as práticas musicais nas novenas dos séculos XVIII e XIX�, André Guerra Cotta mostra que a estrutura básica destas unidades cerimoniais, no repertorio de novenas localizadas em Minas Gerais (tanto de origem local quanto lusitana) vai além da proposta por José Maria Neves em 1997, definida pelos incipits textuais.

As músicas contidas nestas celebrações, segundo a tradição, são (ou eram) cantadas repetidamente durante diversos dias, podendo ou não ser antecipadas e/ou encerradas por algum tipo de hino relativo ao evento ou personagem sagrado em questão. Tal esquema conferiria à celebração uma estrutura �monolítica� cuja repetição por nove dias, poderia gerar o mal-entendido de que ela seria igual para qualquer dia da novena. O que não é completamente certo.

Motivados pelas referidas particularidades e conhecendo as tradicionais manifestações religiosas populares da Bahia (com destaque para as do Senhor do Bomfim, de Nossa Senhora da Conceição da Praia e de Bom Jesus dos Navegantes), porém carentes de estudos específicos, iniciamos em Agosto de 2003, um projeto de pesquisa focado no estudo da prática destas manifestações para-litúrgicas e musicais em Salvador,2 procurando identificar mudanças e identidades entre o repertório atualmente realizado e os anteriormente praticados (conhecidos através da documentação histórica disponível), nos seus diversos contextos históricos presentes e passados.

Para atingir os objetivos definidos, estão sendo levantadas informações relativas a: a) história da instituição eclesiástica em Salvador desde 1549 até a atualidade, tanto no que diz respeito à sua

organização diocesana, quanto à relação entre as autoridades eclesiásticas, as organizações de leigos (irmandades, confrarias, devoções, etc.), e os músicos e compositores atuantes em Salvador;

b) descrições e crônicas das referidas práticas, a partir de diversas fontes (escritas e/ou orais); c) repertório musical relativo às novenas realizadas em Salvador.

Por outro lado, está sendo realizada a gravação digital sistemática de cada dia destas manifestações na cidade de Salvador, a fim de dispor da primeira documentação aural referencial completa (cerimonial e musical) do presente de tais práticas nesta cidade permitindo o estudo comparado das mesmas; tanto entre elas, quanto das permanências e mudanças nos diferentes dias em que cada uma delas acontece.

Além do método analítico-comparativo (aural e/ou musical documental), aproveita-se o conceito de Modelo Pré-Composicional, desenvolvido pelo autor na sua tese doutoral3 como ferramenta analítica histórico-musical, para explicar alguns dos resultados encontrados.

Entre os resultados parciais apresentados neste trabalho, se contam: a) mudanças no número de dias em que elas acontecem (novenas que viram tríduos ou vice-versa); b) aspectos relativos à articulação da novena como estruturas cerimoniais e as normas eclesiásticas vigentes; c) aspectos relativos à estrutura formal; d) aspectos relativos ao instrumental utilizado (coro, órgão e orquestra; coro, violão e percussão; entre outras); e) identificação de Modelos Pré-Composicionais pragmáticos posteriores ao Concilio Vaticano II (uso de estilos

oriundos do século XVIII e XIX em novenas compostas no século XX).

1 Doutor em Música pela Universidade Federal da Bahia e Professor Pesquisador PRODOC-CAPES no PPGMUS-UFBA. 2 Projeto amparado no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da Universidade Federal da Bahia, com uma bolsa financiada pelo CNPq e dedicada à aluna de graduação Bárbara Brazil Nunes, quem vem participando desta pesquisa. 3 Pablo Sotuyo Blanco, �Modelos Pré-Composicionais nas Lamentações de Jeremias no Brasil� (Tese doutoral, 2 vols., Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Bahia, 2003), p.8.

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Invitatorium à pesquisa

Quando, em relação às manifestações musicais da religião católica, se fala em Novenas,

pensa-se logo em um conjunto de nove dias prévios à comemoração de alguma data importante do

calendário cristão.

Segundo a Catholic Encyclopedia, entende-se Novena como

Uma devoção pública ou privada de nove dias, na Igreja Católica, para obter graças especiais. A oitava possui um caráter mais festivo, enquanto à novena pertence a de lamento plangente, de anseio, de oração. [...] A novena é permitida e mesmo recomendada pela autoridade eclesiástica, porém ainda não possui um lugar próprio e definido na liturgia da Igreja. Tem sido, no entanto, mais e mais valorizada e utilizada pelos fieis. Quatro tipos de novenas podem ser identificadas: novenas plangentes, de preparação, de oração, e as novenas de indulgência, embora essa distinção não é exclusiva.4

Mas esse tipo de devoção não é a única que a autoridade eclesiástica católica permite ou

recomenda. Tríduos, Qüinquos, Setenários, e Trezenas são também períodos de preparação

espiritual prévios à data de festividade de um Santo ou dia muito especial do calendário litúrgico

(i.e. Natal, Páscoa, etc.) que contam (e contaram) também com permissão da autoridade

eclesiástica.

No confronto entre os documentos históricos remanescentes e as práticas devocionais ainda

existentes na Bahia, surgem uma série de questões com diverso grau de complexidade.

Abordaremos aqui alguns dos seus aspectos estruturais, funcionais, textuais e musicais mais

relevantes.

Invocação do objeto de pesquisa

Com a intenção de pesquisar tais exercícios ou práticas católicas em Salvador (Bahia,

Brasil), em Agosto de 2003 teve inicio mais um �recorte� do projeto de pesquisa institucional �O

Patrimônio Musical na Bahia�, proposto ao Conselho de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino

Superior do Governo Federal (CAPES) pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal

da Bahia, e financiado através da modalidade PRODOC.

Como primeira atividade se fez o levantamento das festas religiosas católicas na Bahia, com

a conseqüente triagem daquelas que configuram o alvo central.

4 �A nine days' private or public devotion in the Catholic Church to obtain special graces. The octave has more of the festal character; to the novena belongs that of hopeful mourning, of yearning, of prayer. [�] The novena is permitted and even recommended by ecclesiastical authority, but still has no proper and fully set place in the liturgy of the Church. It has, however, more and more been prized and utilized by the faithful. Four kinds of novenas can be distinguished: novenas of mourning, of preparation, of prayer, and the indulgenced novenas, though this distinction is not exclusive.� (HILGERS, Joseph. �Novena� In: The Catholic Encyclopedia, Volume XI. New York: Robert Appleton Company, 1911. Online Edition 2003 by Kevin Knight. Transcribed by Herman F. Holbrook. <http://www.newadvent.org/cathen/11141b.htm> [acessado em 30/09/03]).

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Em Salvador, segundo dados fornecidos pela Bahiatursa5, acontecem anualmente doze

novenas (incluindo a �semana� de N. Sra. da Guia), nove tríduos, e uma trezena [Tabela 1].

Tabela 1 � Calendário de Novenas, Tríduos e Trezenas em Salvador

Mês Data Local Evento Categoria Tipo

Ago 2 primeiras semanas Igreja de N. Sra/ da Assunção N. Sra. da Assunção Novena DM

06-15 Igreja de N. Sra. da Glória � Saúde N. Sra. da Saúde e Glória Novena DF 10-13 Igreja de São Domingos São Domingos Tríduo DM 28-30 Igreja de São Raimundo São Raimundo Tríduo DF

Set Última semana Igreja matriz de N. Sra. de Brotas N. Sra. de Brotas Tríduo DF

28-30 Igreja de Santa Teresinha Santa Terezinha Tríduo DF

Out 03-12 Igreja de N. Sra. da Conceição Aparecida Nossa Senhora Aparecida Novena DF

Nov 29-30 Dez 01-07 Igreja de N. Sra. da Conceição da Praia N. Sra. da Conceição da Praia Novena DF

10-13 Igreja de N. Sra do Pilar Santa Luzia Tríduo DF 21-25 Igreja Matriz Deus Menino Deus Menino Tríduo

28-31 Igreja de N. S.ª da Boa Viagem N. S. Bom Jesus dos Navegantes e N. S.ª da Boa Viagem Tríduo DF

Jan 08-17 Igreja Basílica do Bonfim N. S. Bom Jesus do Bonfim Novena DM 19-24 Igreja Basílica do Bonfim N. Sra. da Guia �Semana�6 DM 22-24 Igreja de São Lázaro da Federação São Lázaro Tríduo DM 29-31 Igreja Basílica do Bonfim São Gonzalo do Amarante Tríduo DM

Mar 10-19 Capela de São José de Amaralina São José Novena DF Mai 11-22 Paróquia de S. Rita Santa Rita Novena DM

Jun 01-13 Diversas Igrejas e lares Santo Antonio Novena ou Trezena DF

1a Sexta-feira Igreja de N. Sra. da Saúde e Glória Sagrado Coração de Jesus Novena DM

Jul 07-16 Convento do Carmo Nossa Senhora do Carmo Novena DF 17-26 Igreja de Santana Santa Ana Novena DF

DF - Data Fixa; DM - Data Móvel; Estruturas concomitantes

A primeira pergunta que surge é que tipos de estruturas possuem as devoções aqui listadas.

Se comparadas, as estruturas são semelhantes ou não? De que depende a sua estruturação? Apenas

do evento que elas antecipam? Do número de dias envolvidos? Do texto utilizado? De alguma

disposição eclesiástica? Ou de outros fatores ainda não identificados ou pouco esclarecidos?

a) Estruturas devocionais (Para-liturgia vs. Liturgia)

Devido à escassez de fontes bibliográficas (eclesiásticas ou não) que possam subsidiar um

estudo apurado em relação à estrutura cerimonial completa das práticas devocionais em estudo para

a cidade de Salvador, em função do seu caráter eminentemente local de usos e costumes mais

5 BAHIATURSA [Órgão oficial de divulgação turística do Estado da Bahia] - Festas Populares - Agenda da alegria. Disponível na internet em <http://www.bahiatursa.ba.gov.br/> [Acessado em 07/05/03]. 6 Embora a partitura utilizada durante a celebração indica o termo �novena� (e velhos participantes da comunidade indicaram que assim era no passado), o termo �semana� é o que figura na programação disponibilizada pela Devoção do Senhor Bom Jesus do Bomfim pois a Festa de N. Sra. da Guia é atualmente precedida por apenas seis dias de exercícios devocionais.

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tradicionais, procurou-se realizar entrevistas sistemáticas com os protagonistas dos locais que foram

até hoje pesquisados, no intuito de conhecer melhor e de primeira mão os �como� e �por quê� das

características do acontecer religioso-musical em cada uma delas.

Tomadas como unidades cerimoniais (segundo a definição de Paulo Castagna)7, têm-se

detectado diversos estratos relativos às estruturas devocionais, envolvendo aspectos para-litúrgicos

e litúrgicos, os quais se imbricam e influenciam reciprocamente.

Talvez, a melhor explicação encontrada para entender os limites entre para-liturgia e liturgia,

dentro daquilo considerado como aceito pela Igreja Católica hoje, seja a fornecida pelo Mons.

Walter Jorge Pinto de Andrade. Nas suas palavras,

a novena do Bomfim, por exemplo, ela é para-liturgia até o momento da benção do Santíssimo [Sacramento]. Daí em diante é liturgia. Isso você aplica às novenas, aos tríduos, trezenas... [...] Se ela terminar com a benção do Santíssimo Sacramento ela terá sempre uma parte litúrgica, e a pratica que é para essas celebrações para-litúrgicas, ela termina sempre com a benção [do Santíssimo Sacramento]. O que você não pode fazer é o que muita gente está fazendo: um casamento entre Missa e a Para-liturgia... Aí não pode... [...] é expressamente proibido, se você celebra a Missa você não pode dar imediatamente a benção [do Santíssimo Sacramento].8

Por sua vez, o Pe. Lázaro Silva Muniz, pároco da Igreja de São José de Amaralina,

comentou:

Durante muito tempo se celebrou um rito próprio para a novena. Creio que a modificação, sobretudo, venha a partir do [Concílio] Vaticano II, quando se tentou dar uma centralidade maior na pessoa de Jesus. Durante muito tempo se celebrou muito mais os santos... Eram mais as devoções... Hoje se garante essa devoção, porém se tenta dar uma centralidade em torno de Jesus.

Antigamente as novenas terminavam também com a benção do Santíssimo [Sacramento] para marcar que tudo acontecia por causa de Jesus. Porém aquela benção do Santíssimo no final, entrava quase que como um apêndice, no finalzinho, quando tudo estava quase resolvido.

Hoje, até as novenas que celebram desse mesmo modo antigo, de dar a benção do Santíssimo [Sacramento] no final, fazem um pouco mais, colocam com um pouco mais de antecedência, fazem um pouco mais de oração para marcar essa centralidade.

E em muitos lugares se celebra a Eucaristia porque justamente aí toda a celebração é voltada para a pessoa de Jesus. E aí se fazem as adaptações: se coloca o Hino ao padroeiro, se coloca a Ladainha daquele Santo, e se faz alguma outra referencia, algum tipo de

7 Paulo Augusto Castagna, �O estilo antigo na prática musical religiosa paulista e mineira dos séculos XVIII e XIX� (Tese de doutorado, 3 vols., Universidade de São Paulo, 2000), 35. 8 Mons. Walter Jorge Pinto de Andrade, Reitor da Basílica e Capelão da Devoção do Senhor do Bomfim. Entrevista concedida ao autor em 21 de Janeiro de 2004 na mesma Basílica do N. S. do Bomfim.

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devoção ao Santo. Porém marcando a centralidade da pessoa de Jesus. [...] Tudo deve ser voltado para Ele.9

Levando em consideração ambas opiniões, e partindo da prática religiosa, foram definidas

quatro vertentes de articulação cerimonial possíveis:

a) para-liturgia com liturgia no final (descrita na resposta de Mons. Pinto de Andrade) PL-L; b) liturgia misturada com para-liturgia (descrita na resposta do Pe Silva Muniz) LPL; c) liturgia exclusiva (celebrações eucarísticas sem interferências nem adaptações) L; d) para-liturgia exclusiva (sem benção do Santíssimo Sacramento nem Eucaristia) PL.

Do total de manifestações já registradas, tem-se a distribuição percentual seguinte:

a) para-liturgia com liturgia no final � PL-L (41, 667 % dos casos estudados); b) liturgia misturada com para-liturgia � LPL (41,667 % dos casos estudados); c) liturgia exclusiva � L (8,333 % dos casos estudados); d) para-liturgia exclusiva � PL (8,333 % dos casos estudados).

A distinção estrutural entre seções de natureza litúrgica e para-litúrgica é necessária para

poder determinar melhor os limites e o grau de controle e incidência dos dogmas e prescrições

relativas à prática musical, emitidas nos diversos momentos da história da Igreja Católica, definindo

assim diversos tipos de Modelos Pré-Composicionais dogmáticos (MPCd)10 claramente aplicáveis à

prática musical litúrgica. Tais MPCd não seriam tão estritamente cobrados pelas autoridades

eclesiásticas em se falando de práticas para-litúrgicas.

b) Estruturas musicais dependentes do texto

Na monografia �Para além das barras duplas: uma reflexão preliminar sobre as práticas

musicais nas novenas dos séculos XVIII e XIX�11, André Guerra Cotta mostra que as estruturas

básicas destas unidades cerimoniais, no repertorio de novenas localizadas em Minas Gerais (tanto

de origem local quanto lusitana) vai além da proposta por José Maria Neves em 1997, quem a

definia apenas por uma mistura de incipits textuais e de certos nomes genéricos envolvidos.12

Da existência na Bahia de novenas com estruturas semelhantes pelo texto ou função de

certas seções, já noticiamos no XIV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-

Graduação em Música (ANPPOM) em agosto de 2003 na cidade de Porto Alegre (Brasil) em

9 Pe. Lázaro Silva Muniz, pároco da Igreja de São José de Amaralina, Salvador, Bahia. Entrevista concedida ao autor em 13 de Março de 2004 na sacristia daquele templo. 10 Conceito desenvolvido pelo autor na Tese Doutoral �Modelos Pré-Composicionais nas Lamentações de Jeremias no Brail� (Salvador � BA: Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Bahia, 2003), 8 et passim. 11 André Henrique Guerra Cotta, �Para além das barras duplas: uma reflexão preliminar sobre as práticas musicais nas novenas dos séculos XVIII e XIX�. Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Musicologia da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001. 12 �A estrutura básica da novena constitui-se de: Veni Sancte Spiritus, Domine ad adjuvandum, Ave Maria e Gloria Patri (a primera parte destas orações são cantadas por coro-orquestra e a resposta é feita por todo o povo), Antífona (na hora da incensação da imagem e do altar), Ladainha, Jaculatória e Hino.� (José Maria Neves, Catálogo de Obras. Música Sacra Mineira [Rio de Janeiro: FUNARTE, 1997], 94).

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relação à Novena do Senhor do Bomfim e a Novena de Nossa Senhora d�Ajuda, ambas do

compositor baiano João Manuel Dantas. Por sua vez, se comparadas com a Novena para o Senhor

Bom Jesus dos Navegantes de Damião Barbosa de Araújo, começam-se a perceber diferenças mais

significativas [Tabela 2].

Tabela 2 � Estruturas das Novenas comparadas

Seções Novena Bomfim

(atual)

Seções relacionadas pelo texto ou

função

Seções Novena d�Ajuda

(histórica)

Seções relacionadas pelo texto ou

função

Seções Novena Navegantes

(histórica)

Regem Confessorem Festivitatem Christum Veni S. Spiritus Veni S. Spiritus Veni S. Spiritus

Padre Nosso - Padre Nosso Ave Maria Ave Maria Ave Maria Gloria Patri Gloria Patri Gloria Patri [Jaculatória] Jaculatória

Ladainha - Kyrie Kyrie Ladainha � Kyrie Pater de coelis Pater de coelis Pater de coelis

- Fili Redemptor Spiritus Sancte Deus Spiritus Sancte Deus Spiritus Sancte Deus

- - Cantochão Sancta Maria Sancta Maria Sancta Maria

- - Cantochão 1o Ramo 1o Ramo 1o Vº � Sancta Virgo

- - Cantochão 2o Ramo 2o Ramo 2o Vº � Vas Insigne

- - Cantochão 3o Ramo 3o Ramo 3o Vº � Consolatrix

- - Cantochão 4o Ramo 4o Ramo

- - Cantochão Consolatrix Consolatrix

- - Cantochão Regina Regina

1o Agnus Dei 1o Agnus Dei 1o Agnus Dei 2o Agnus Dei 2o Agnus Dei 2o Agnus Dei

Christus factus Sub tuum praesidium Sub tuum praesidium 1a Jaculatória 1a Jaculatória 1a Jaculatória 2a Jaculatória 2a Jaculatória 2a Jaculatória 3a Jaculatória 3a Jaculatória 3a Jaculatória

-------------------- [EXPOSIÇÃO E

BENÇÃO DO SANTÍSSIMO

SACRAMENTO]

Tais estruturas, segundo indica a tradição, são (ou eram) cantadas repetidamente durante os

nove dias da novena, podendo ou não ser antecipadas e encerradas por algum tipo de hino relativo

ao evento ou personagem sagrado em questão. Além disso, a missa pode (ou podia) se celebrar

imediatamente depois da novena, o que poderia criar uma aparente idéia de continuum. Neste

último caso, havendo hino de encerramento, este poderia acontecer antes do começo da Missa.

Mas com ou sem missa no final, ambas (novena e missa) são unidades cerimoniais

independentes. Por este motivo, as missas não ficaram nas partituras localizadas. No caso do Senhor

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do Bonfim, cada um dos hinos (o oficial no inicio e o popular no final da celebração, tendo se

integrado ao acontecer estrutural da novena) foi composto por outros compositores (Wanderley e

Domenech) cada um deles utilizando textos diferentes de autores diferentes (Salles e Vilar

respectivamente).

Essa repetição diária poderia conferir à celebração uma estrutura unitária cuja repetição

(idêntica ou apenas semelhante) durante os nove dias só dependeria dos usos locais. Lembre-se que

a Igreja Católica apenas �permite e recomenda� mas aparentemente não regula o número de dias ou

a estrutura destes exercícios devocionais dedicados à preparação da data a comemorar, de forma

geral, urbi et orbi.

Tal fato permitiria cogitar a possibilidade de uma novena, poder vir a acontecer por apenas

três dias, virando assim um tríduo, ou vice-versa. O mesmo poderia acontecer com os qüinquos,

setenários e trezenas, por exemplo. E qual o motivo para tais mudanças? O mais escatológico de

todos: o financeiro ou econômico.

Relativo a dita questão, no artigo �Novena para o Snr. Bom Jezuz dos Navegantes�: mais

uma obra de Barbosa de Araújo13 ficou preliminarmente estabelecida a relação econômica entre

Tríduos e Novenas, pois como Silva Campos diz, a saída da imagem do Nosso Senhor da igreja da

Boa Viagem, acontecia �depois do tríduo, ou da novena, conforme as possibilidades financeiras da

Devoção�.14 Como então relatávamos,

contatos estabelecidos com a Devoção da N. S. da Boa Viagem, informaram que nos últimos 50 anos não se realizaram Novenas, tendo optado pelo Tríduo (que acontecia tradicionalmente nos dias 29, 30 e 31 de Dezembro). Este foi adiantado para os dias 28, 29 e 30 de Dezembro, sendo a Missa de Embarcação celebrada no dia 31 e oficiada pelo Arcebispo da Bahia, em horário condicionado ao nível da maré.15

Dessa forma ficavam registrados os necessários antecedentes de tal prática organizacional

dos períodos preparatórios, no mencionado caso, para a festa de Bom Jesus dos Navegantes, que na

Bahia de Todos os Santos se comemora em 1o de Janeiro. Nada impede que outras devoções,

Veneráveis Ordens 3a, etc., se aproveitem dessa modalidade de adaptação a uma eventual situação

econômica deficitária, para �abreviar� os nove dias tradicionais, e reduzir em 66% o ônus que

envolveria uma novena, realizando tríduos no seu lugar.

13 Pablo Sotuyo Blanco, �Novena para o Snr. Bom Jezuz dos Navegantes�: mais uma obra de Barbosa de Araújo, Revista Eletrônica de Musicologia, v.7, <http://www.humanas.ufpr.br/rem/REMv7/Blanco/blanco.html> [acessado em 30/09/03]. 14 João da Silva Campos, Procissões Tradicionais da Bahia (Publicações do Museu da Bahia. Nº1) Salvador: Secretaria de Educação e Saúde, 1941. 15 Pablo Sotuyo Blanco, �Novena para o Snr. Bom Jezuz dos Navegantes�: mais uma obra de Barbosa de Araújo, idem.

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Nas informações disponibilizadas pela Bahiatursa (órgão oficial de promoção turística do

Governo do Estado da Bahia), ainda se encontram dados que confirmam mais uma vez o caráter

local da escolha do número de dias em que vai se realizar o período de preparação religiosa para a

festa em questão. Em relação a Santo Antonio, informa assim:

"Santo Casamenteiro", é festejado em várias localidades do Estado da Bahia com trezenas nas igrejas e nas casas. Durante os festejos são servidos licores, canjica, milho assado e cozido, além de outras iguarias. Em Alagoinhas, Campo Formoso, Canudos, Caravelas, Coronel João Sá, Guanambi, Itajú do Colônia, Itatim, Itarantim, Jacobina, Jequié, Muniz Ferreira, Queimados, Ruy Barbosa, Santo Antônio de Jesus, Sítio do Quinto, Teolândia, Teofilândia, Retirolândia e Ubaitá, este santo é festejado como padroeiro havendo novena, missa solene e procissão neste período.16

Em relação à celebração de São Domingos na cidade de São Domingos, a citada �Agenda da

Alegria� informa:

Festa religiosa, comemorativa do padroeiro local, com novena, missa solene, procissão, leilão e bingos.17

O triplo de dias que os dedicados em Salvador, na igreja de São Domingos, no Terreiro de

Jesus, e que segundo a mesma fonte informa:

Trata-se de uma devoção do século XVIII, cuja festa é realizada no Dia dos Reis, sendo puramente religiosa, com tríduo, missa solene e procissão. 18

Ainda teremos que confirmar se existe alguma indicação em livros litúrgicos, cerimoniais,

ou nos livros de receita e despesa da venerável ordem 3a de São Domingos em Salvador e em São

Domingos, no interior do Estado (ainda não localizados), da realização do tríduo ou da novena na

história correspondente.

...Factus est

Depois de ter participado e registrado (junto com a nossa aluna bolsista Bárbara Brazil

Nunes) as diversas devoções católicas que a cidade de Salvador acolhe; tendo observado as quatro

categorias de estruturas devocionais, a sua distribuição percentual nos casos estudados entre agosto

de 2003 e março de 2004, e as estruturas históricas conhecidas, faz-se necessário observar as

16 BAHIATURSA - Festas Populares - Agenda da alegria. Disponível na internet em <http://www.bahiatursa.ba. gov.br/> [Acessado em 07/05/03]. 17 BAHIATURSA - Festas Populares - Agenda da alegria. Idem. 18 BAHIATURSA - Festas Populares - Agenda da alegria. Idem. O tríduo de São Domingos, em 2003, foi celebrado no mês de agosto e não em janeiro, segundo informa a Bahiatursa. Questionada ao respeito, a Bahiatursa informou que o órgão apenas repete informações fornecidas pelos interessados ou organizadores das respectivas festas populares. Mas a Venerável Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão informou que desconhece a origem das informações disponibilizadas pela BAHIATURSA.

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estruturas dos casos extremos: aqueles que apresentam uso exclusivo de liturgia (L) e de para-

liturgia (PL).

Durante agosto de 2003, nos Tríduos de São Domingos e de São Raimundo observaram-se

as estruturas incluídas na Tabela 3.

Tabela 3 � Estruturas dos Tríduos de São Domingos e São Raimundo Tríduo de São Domingos

(8, 14, e 15 de Agosto de 2003)

Tríduo de São Raimundo

(28, 29, e 30 de Agosto de 2003) Hino a São Domingos [com música] Em nome do Pai [com música] Vem Espírito Santo [com música] MISSA

Ave Maria [rezado] Raimundo glorioso [com música] Ave Maria [rezado] Raimundo glorioso [com música] Ave Maria [rezado]

[com músicas para as seções do ordinário]

Raimundo glorioso [com música] História de São Raimundo... [falado] Eu sou como a estrela em noite escura [com música] [só aconteceu no último dia do Tríduo]

Hino a São Domingos [com música] São Raimundo rogai por nós [jaculatórias e/ou ramos, etc.] [com música]

Enquanto a Venerável Ordem 3a de São Domingos de Gusmão, atualmente optou pela forma

mais simples, isto é, de fazer do Hino a São Domingos uma moldura de inicio e fim de cada dia da

celebração (sem interferir na estrutura litúrgica da missa), observa-se que a Congregação de Nossa

Senhora dos Humildes, vinda a Salvador em 1933 desde Santo Amaro para ocupar o Convento e

tomar conta da Igreja de São Raimundo (originariamente pertencente à ordem mercedária como o

era o santo), segundo informou a irmã Iolanda em entrevista realizada em Agosto do ano passado,

optou por tentar nos últimos anos articular a devoção a São Raimundo se servindo de uma estrutura

que, com anterioridade e independência da Missa, assim como sem Exposição e/ou Benção do

Santíssimo Sacramento, parece tentar incluir seções tradicionais desse tipo de exercícios

devocionais, como o Vem Espírito Santo; os Ramos e/ou Jaculatórias, assim como uma Ladainha

para o santo, intercalado com Ave Marias rezados em número de três.

Conjuntos instrumentais

Embora as escassas partituras históricas disponíveis (majoritariamente compostas durante o

século XIX) indicam o uso de um ensamble instrumental constituído por cordas, sopros, vozes e

eventualmente percussão e/ou órgão, escassos são os exemplos que delas sobreviveram no uso

local, a partir das mudanças conseqüentes com o Concílio Vaticano II e as novas propostas estéticas

populares que a Igreja vem desenvolvendo.

Dentro do repertório estudado, a Tabela 4 inclui algumas das conformações instrumentais

observadas e registradas.

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Tabela 4 � Instrumental utilizado em algumas devoções católicas em Salvador

Local Evento Categoria Instrumental

Igreja de São Domingos São Domingos Tríduo Coro misto a 2 vozes e violão amplificado

Igreja de São Raimundo São Raimundo Tríduo Coro misto a 2 vozes, violão e percussão amplificado

Igreja de N. Sra. da Conceição Aparecida Nossa Senhora Aparecida Novena Coro misto uníssono, 2 violões, baixo,

teclado e grande percussão amplificados Igreja de N. Sra. da Conceição da Praia N. Sra. da Conceição da Praia Novena Vozes solistas, coro misto a 4 vozes,

orquestra e órgão amplificados

Igreja de N. Sra. do Pilar Santa Luzia Tríduo Coro misto uníssono e teclado amplificado

Igreja de Deus Menino Deus Menino Tríduo 2 Vozes solistas, coro misto uníssono, violão amplificado e percussão

Igreja de N. Sra. da Boa Viagem N. S. Bom Jesus dos Navegantes Tríduo ou

Novena Voz feminina solista, coro masculino a 2

vozes, orquestra e órgão amplificados Igreja Basílica do Senhor

do Bomfim N. S. Bom Jesus do Bomfim Novena Vozes solistas, coro misto a 4 vozes, orquestra e órgão amplificados

Igreja Basílica do Senhor do Bomfim N. Sra. da Guia �Semana�19 Vozes solistas, coro misto a 4 vozes,

orquestra e órgão amplificados Igreja de São Lázaro da

Federação São Lázaro Tríduo Voz solista, Coro misto uníssono e violão amplificado com efeitos via pedais

Igreja Basílica do Senhor do Bomfim São Gonzalo do Amarante Tríduo Vozes solistas, coro misto a 4 vozes,

orquestra e órgão amplificados

Igreja de São José de Amaralina São José Novena

Voz solista, coro misto a duas vozes, 3 violões, baixo elétrico e teclado

amplificados, e percussão.

Pode-se dizer que em 30% das comunidades pesquisadas (nas quais acontecem 22% dos

Tríduos e 25% das Novenas do ano devocional soteropolitano), se constatou a presença de partitura

original, orquestra, vozes solista(s) e órgão, correspondendo à natureza e poder aquisitivo (presente

e/ou passado) das devoções e/ou irmandades responsáveis.20 Nas restantes, músicos e cantores

devotados voluntariamente entre os fiéis da comunidade, fazem possível a presença de música

durante os diversos exercícios piedosos, executando repertórios geralmente não originais de caráter

pastoral.

Modelos Pré-Composicionais do séc. XVIII aplicados no séc. XX

A todos os efeitos desta pesquisa, chamou a atenção ter encontrado um caso de novena no

sentido mais tradicional do termo e da prática, utilizando uma partitura para vozes solistas, coro e

orquestra com texto bilíngüe (em latim e português) composta em 1980. É o caso específico da

Novena de Nossa Senhora da Conceição da Praia, cuja prática é uma das mais antigas da Bahia (e

muito possivelmente do Brasil), assim como a Irmandade responsável pela sua organização e

realização.

19 Ver nota de rodapé 8. 20 Enquanto a Devoção do Senhor Bom Jesus do Bomfim conta, entre os seus devotos eméritos, com numerosas personalidades ligadas ao governo do Estado da Bahia e outros líderes políticos, a Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Conceição da Praia, tem um longo histórico de prósperos comerciantes entre os seus integrantes. Ambas comunidades pagam cada ano os cachês dos músicos e solistas durante as respectivas novenas e tríduos.

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Da referida partitura, resulta necessário exemplificar aqui um caso de MPCp do tipo citação

remetente (pela repetição que se faz dele na música aplicada ao texto) encontrado na novena de

Nossa Senhora da Conceição da Praia (Ex.1a e 1b). Como se pode facilmente perceber, o

compositor Humberto Portugal fez uma citação quase literal do tema inicial da Sonata em Dó maior

K 545. Embora a partitura tenha sofrido algumas modificações nos últimos tempos (como

acréscimos de introduções instrumentais e a tradução da maior parte do texto latino ao português),

resulta interessante observar que a referida citação aconteceu mais de uma década depois do

Concilio Vaticano II (1980), e que, mesmo nesse contexto pós-conciliar, a partitura da novena foi

pensada para utilizar texto em latim, e refletir modelos pré-composicionais pragmáticos (MPCp)

relativos a estilo e/ou práticas instrumentais anteriores ao século XIX.

Ex.1a � Início da Sonata em Dó Maior (K 545) de W. A. Mozart (1788)

Ex.1b � Início do Pater de Coelis da Novena de N. Sra. da Conceição da Praia (1980)

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Conclusões preliminares

Cruzando os dados até aqui recolhidos, mesmo correndo o risco de eventuais simplificações,

poder-se-ia concluir que:

a) O ano devocional católico na cidade de Salvador (Bahia) mostra que a prática de

exercícios piedosos realizados comunitariamente nas igrejas e templos soteropolitanos, se concentra

majoritariamente nas modalidades de Tríduos e/ou Novenas;21

b) Tal prática se distribui eqüitativamente entre costumes e estruturas pré e pós-conciliares;

c) O tipo de música e dos conjuntos depende majoritariamente da história e do poder

aquisitivo da comunidade envolvida, sendo mais um reflexo da situação sócio-econômica geral da

cidade.

21 Estes valores estão sendo questionados atualmente devido à estratégia pastoral Redentorista recentemente detectadas. Um visita realizada em 16 de março de 2003 ao sitio virtual da Igreja de São Lazaro <http://www.ressureicaodosenhor.com.br> a cargo dos Redentoristas, mostra a grande preferência da modalidade Tríduo do tipo LPL (de natureza eucarística) nas atividades que essa paróquia desenvolve. No entanto, o pároco não concedeu entrevistas ao nosso projeto de pesquisa até agora.

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