a teoria da imputação objetiva - martinelli

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A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA E O CÓDIGO PENAL BRASILEIRO: AINDA FAZ SENTIDO A TEORIA DAS CONCAUSAS? João Paulo Orsini Martinelli 1 1. Introdução A imputação objetiva não é uma novidade na doutrina estrangeira, porém, é recente o “encanto” da doutrina pátria pelo assunto. Muito se tem escrito a respeito por diversos autores, dando ao assunto um destaque ímpar, com a impressão de que houve uma verdadeira revolução na dogmática. Alguns podem questionar como ficaria o direito penal após sua adoção por nossos doutrinadores 2 , pois o tema há pouco tempo era praticamente desconhecido por aqui. Será que devemos reconstruir a dogmática penal brasileira? Afinal, o que é a teoria da imputação objetiva? O presente trabalho segue dois caminhos distintos, apesar de contínuos. Primeiramente, tenta-se explicar o que seja a teoria da imputação objetiva, ou melhor, as teorias de imputação. Esta explicação tem início na teoria da causalidade e termina na própria imputação objetiva. Em seguida, a outra tentativa é adequar a imputação objetiva ao ordenamento jurídico vigente, sem alterar a estrutura do nosso Código Penal. A metodologia utilizada será a substituição da teoria das concausas pela imputação objetiva na interpretação do art. 13. Ao final, fica a questão: vale a pena continuar com a teoria das concausas? Caberá ao leitor, após analisar os fundamentos, decidir. 2. Teoria da causalidade A doutrina penal dominante diz que uma ação ou omissão (está ligada) ao resultado por um vínculo nexo de causalidade. Essa vinculação é fundamental para que fique caracterizado o delito, pois o resultado concreto deve estar faticamente ligado à conduta do agente. 3 Entre a ação ou omissão do agente e o resultado é necessário avaliar a responsabilidade penal pela autoria. Para tanto, deve haver um pressuposto mínimo nos 1 Advogado em São Paulo. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre e Doutorando em Direito Penal na Faculdade de Direito da USP. Professor na Faculdade de Direito do Centro Universitário Anchieta e na FACAMP. Professor convidado no curso de pós-graduação da UNIMEP, da OAB/SP e da Escola Paulista de Direito. Foi pesquisador no Instituto de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Munique (Alemanha) e no Instituto de Filosofia da Universidade da Califórnia (EUA). Coordenador-adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). 2 Por exemplo: GALVÃO, Fernando. Imputação objetiva. Belo Horizonte: Mandamentos. 2000; REGIS PRADO, Luiz, CARVALHO, Érika Mendes de. Teorias da imputação objetiva do resultado. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002. 3 Por todos: KINDHÄUSER, Urs. Strafrecht, allgemeiner Teil. pp. 88 e ss.

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Importante artigo sobre o tema da imputação objetiva no Direito Penal.

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A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA E O CÓDIGO PENAL BRASILEIRO: AINDA FAZ SENTIDO A TEORIA DAS CONCAUSAS? João Paulo Orsini Martinelli1 1. Introdução A imputação objetiva não é uma novidade na doutrina estrangeira, porém, é recente o “encanto” da doutrina pátria pelo assunto. Muito se tem escrito a respeito por diversos autores, dando ao assunto um destaque ímpar, com a impressão de que houve uma verdadeira revolução na dogmática. Alguns podem questionar como ficaria o direito penal após sua adoção por nossos doutrinadores2, pois o tema há pouco tempo era praticamente desconhecido por aqui. Será que devemos reconstruir a dogmática penal brasileira? Afinal, o que é a teoria da imputação objetiva? O presente trabalho segue dois caminhos distintos, apesar de contínuos. Primeiramente, tenta-se explicar o que seja a teoria da imputação objetiva, ou melhor, as teorias de imputação. Esta explicação tem início na teoria da causalidade e termina na própria imputação objetiva. Em seguida, a outra tentativa é adequar a imputação objetiva ao ordenamento jurídico vigente, sem alterar a estrutura do nosso Código Penal. A metodologia utilizada será a substituição da teoria das concausas pela imputação objetiva na interpretação do art. 13. Ao final, fica a questão: vale a pena continuar com a teoria das concausas? Caberá ao leitor, após analisar os fundamentos, decidir. 2. Teoria da causalidade A doutrina penal dominante diz que uma ação ou omissão (está ligada) ao resultado por um vínculo nexo de causalidade. Essa vinculação é fundamental para que fique caracterizado o delito, pois o resultado concreto deve estar faticamente ligado à conduta do agente.3 Entre a ação ou omissão do agente e o resultado é necessário avaliar a responsabilidade penal pela autoria. Para tanto, deve haver um pressuposto mínimo nos

1 Advogado em São Paulo. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre e Doutorando em Direito Penal na Faculdade de Direito da USP. Professor na Faculdade de Direito do Centro Universitário Anchieta e na FACAMP. Professor convidado no curso de pós-graduação da UNIMEP, da OAB/SP e da Escola Paulista de Direito. Foi pesquisador no Instituto de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Munique (Alemanha) e no Instituto de Filosofia da Universidade da Califórnia (EUA). Coordenador-adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). 2 Por exemplo: GALVÃO, Fernando. Imputação objetiva. Belo Horizonte: Mandamentos. 2000; REGIS PRADO, Luiz, CARVALHO, Érika Mendes de. Teorias da imputação objetiva do resultado. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002. 3 Por todos: KINDHÄUSER, Urs. Strafrecht, allgemeiner Teil. pp. 88 e ss.

delitos de resultado para exigir a responsabilidade por este.4 A causalidade é, portanto, junto à conduta e o resultado, um requisito do tipo objetivo.5 A causalidade, conforme assinala Tavares, não é apenas uma preocupação jurídica, mas a filosofia e as demais ciências também se ocupam dela.6 Continua a discorrer o autor sobre a separação da noção de causa em dois caminhos7: a) como forma de relação racional, deduzindo a causa sempre de seu efeito e b) como forma de relação empírica, de onde a causa é deduzida de um juízo de previsibilidade. No direito penal, as duas vertentes apontadas da causalidade são consideradas em seu estudo, conforme se verá adiante. A teoria da equivalência das condições e a teoria da relevância e adequação aderem à causalidade como uma forma de relação racional entre a ação e seu efeito, enquanto a teoria da condição conforme uma lei natural está relacionada a um juízo de previsibilidade. 8 Neste capítulo, serão expostas as três principais teorias da causalidade desenvolvidas na dogmática penal: 1) teoria da conditio sine qua non; 2) teoria da adequação e relevância e 3) teoria da condição conforme uma lei natural. 2.2. Teoria da equivalência das condições ou da conditio sine qua non A teoria da equivalência das condições predomina na doutrina brasileira, assim como na jurisprudência. Foi adotada pelo Código Penal de 1940 e mantida na reforma da parte geral, de 1984.9 É também denominada teoria da conditio sine qua non, ou melhor, a condição sem a qual o resultado não poderia ocorrer. Aponta Roxin que Julius Glaser foi o primeiro autor a discorrer sobre a teoria da equivalência das condições, citando trecho de seu tratado de direito penal austríaco, de 1858: “há um ponto de apoio seguro no exame do nexo causal; se tentamos eliminar mentalmente um elemento da soma originária dos acontecimentos e se constatamos que, apesar deste, o resultado se produz, então aquilo que foi suprimido não é causa. Se, ao contrário, suprimimos um acontecimento e percebemos que o resultado não ocorreria, aquele é causa deste”.10 Em uma etapa posterior, Maximilian von Buri utilizou a teoria da equivalência em seus julgados no Tribunal do Reich (Reichsgericht)11, passando este a adotar tal posicionamento. Além disso, a doutrina ganhou inúmeras monografias a respeito do tema, possibilitando a predominância da teoria da conditio sine qua non na doutrina e na jusrisprudência.

4 BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. p. 70. 5 Conferir: WELZEL, Das deutsche Strafrecht. pp. 78 e ss.; JESCHECK, Hans-Heinrich, WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal. pp. 299 e ss. 6 Por exemplo, a problemática da causalidade atingindo a filosofia, na obra de PLATÃO e ARISTÓTELES, as ciências naturais, em KEPLER e GALILEU, e o empirismo de BACON (TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 107 e 108). 7 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 208 8 PUPPE, Ingeborg. La imputación objetiva. p. 19. (“a relação entre causa e conseqüência define-se como uma relação condicional ajustada a leis, a qual não será lógica, senão empírica”). 9 Exposição de motivos da nova Parte Geral do Código Penal brasileiro, itens 13 e 14. 10 ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil, vol. 1. p. 353. 11 ROXIN, idem. p. 353.

Ao sintetizar a teoria, chegamos a seus dois conceitos centrais: a) todas as condições determinantes de um resultado são necessárias e, portanto, equivalentes; b) causas são as condições que não podem ser excluídas hipoteticamente sem eliminar o resultado.12 Nota-se a simplicidade dos conceitos, o que pode levar a conclusões nem um pouco simples, o que se verá mais adiante. Diante disso, pode-se concluir que, para esta teoria, causa e condição são a mesma coisa. O próprio Código Penal brasileiro, em seu art. 13, diz que “considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Ampliando o conceito, podemos dizer que causa é toda condição de um resultado que não pode ser suprimida mentalmente sem que desapareça o resultado concreto.13 Não se realiza qualquer seleção entre as inúmeras condições possíveis de um resultado.14 Ao contrário, consideram-se equivalentes todas as condições de uma cadeia causal, que tem seu fim no momento do resultado concreto, porém, sem um início determinado. Essa indefinição da cadeia causal se dá porque é possível retroceder ao infinito. O conceito de equivalência baseia-se em seu significado pré-jurídico, próprio da filosofia e das ciências naturais. A teoria da equivalência trata cada causa parcial como causa autônoma, e o faz porque na jurisprudência o que importa não é a totalidade das condições, senão somente comprovar a conexão ou nexo entre determinado ato humano com o resultado.15 Retomando a idéia de Glaser, sua fórmula para a determinação de uma causa é a da eliminação hipotética. Para saber se determinado fato é causa, devemos eliminá-lo mentalmente para verificar se o resultado ocorreria da mesma maneira.16 Por exemplo, para saber se o soco que A deu em B foi causa de suas lesões, basta eliminar mentalmente o golpe para perceber se o resultado seria o mesmo. A fórmula da eliminação hipotética, na teoria da equivalência das condições, é criticada, com razão, por Roxin, que a considera inútil e tendente a erros,17 especialmente em certos casos de causalidade hipotética e alternativa. Vejamos os casos utilizados como exemplos: I) Se reprovamos a conduta de alguém que havia realizado um fuzilamento ilícito em uma guerra e o mesmo autor alega que, se não o fizesse, outro teria fuzilado a vítima da mesma maneira, poderíamos suprimir mentalmente o fato sem que desapareça o resultado; II) A e B, atuando independentemente um do outro, acrescentam veneno ao café de C. Se C vier a morrer por isso, apesar da dose posta por A ou por B ter sido capaz de provocar, por si só, a morte exatamente do mesmo modo, poder-se-ia suprimir mentalmente a conduta de cada um sem que o resultado desapareça.

12 OTTO, Harro. Grudkurs Strafrecht. p. 56. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A moderna teoria do fato punível. p. 49. 13 JESCHECK, Hans-Heinrich, WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal, parte general. p. 301; ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil, vol. 1. p. 351. 14 ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil, vol. 1. p. 351. 15 ROXIN, idem. pp. 351-352. 16 Por todos: KÜHL, Kristian. Strafrecht, allgemeiner Teil. pp. 21 e ss. 17 ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil. pp. 353 e 354.

Nos dois exemplos de Roxin, facilmente aparecem os defeitos da teoria. No exemplo I, houve uma ação dolosa que resultou na morte de uma pessoa. Não obstante, pela fórmula da eliminação hipotética, o autor deveria ter sido absolvido. Já no exemplo II, os dois agentes tiveram a intenção de cometer um homicídio e, eliminando hipoteticamente cada conduta, nenhum deles poderia ser punido pelo resultado. Ou seja, tanto em I quanto em II não haveria delito algum, mesmo ocorrendo o desvalor da ação e do resultado. Crítica contundente também vem de Jakobs, para o qual a teoria da equivalência conduz a uma confusão.18 A fórmula da eliminação hipotética é supérflua, pois não constitui uma definição de causalidade, mas torna-se um ciclo vicioso: o conceito que deve ser definido aparece oculto no material com que se define.19 A própria teoria nega sua essência: se a teoria é da “equivalência” das condições, aquela que, suprimida, geraria o resultado, não é mais equivalente às demais.20

Como ficou evidente, por algumas falhas, a teoria da equivalência sofreu certa resistência da doutrina alemã no seu modo original: FRANK desenvolveu a teoria da “proibição do regresso”; KRIES deu início à teoria da “adequação e relevância”; ENGISCH apresentou a teoria da “condição conforme uma lei natural”; entre outros. 2.3. Teoria da adequação A teoria da adequação, desenvolvida por Kries, surgiu no final do século XIX, sustentando-se por longo tempo na doutrina penal alemã. Segundo sua formulação, para que a ação possa ser considerada causal, exige-se que o acontecimento do resultado produzido pelo autor, em desenvolvimento de sua ação, deve ser considerado provável.21 A condição deve ser adequada ao resultado, entendendo-se por adequadas aquelas condições que tipicamente são idôneas para produzir aquele.22 A teoria da adequação também permite a apropriada eliminação de nexos causais totalmente incomuns, ou seja, evita o regressus ad infinitum da teoria da equivalência,23 pois retira da cadeia causal fatos passados absurdos para o caso concreto, como, por exemplo, a relação sexual do casal que gerou o criminoso. Daí podermos afirmar que uma condição é adequada se a mesma aumentou a possibilidade do resultado de modo relevante. Contudo, a teoria também sofre críticas de Roxin nos seguintes termos24: o juiz, para decidir se uma causa é adequada, deve se colocar posteriormente sob o ponto de vista de um observador objetivo que julgue antes o fato e disponha dos conhecimentos de um homem inteligente e dotado de conhecimento especial. As críticas mais contundentes à teoria estão relacionadas ao momento do juízo de adequação (anterior ou posterior ao resultado), à posição do observador (ponto de vista do autor ou de terceiro) e à falta de base científica para a análise causal por este meio.

18 JAKOBS, Günther. Derecho penal, parte general. p. 227. 19 Idem. ibidem. p. 227. 20 Idem, ibidem. p. 228. 21 Conforme opinião de JAKOBS, a teoria da adequação não substitui a da equivalência, apenas suprime a equivalência de todas as condições (JAKOBS, Günther. Derecho pena, parte general, p. 238). 22 JESCHECK, Hans-Heinrich, WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal, parte general. p. 305. 23 ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil. pp. 368 e 369. 24 Idem, ibidem. p. 369.

Ainda, Roxin sustenta, com razão, que a teoria da adequação é uma teoria de imputação (e não de causalidade), diferentemente do que afirmam seus defensores. Ela nada mais tenta dar resposta ao questionamento de quais circunstâncias causais são juridicamente relevantes e podem ser imputadas a um agente.25 Para Mezger, a teoria da adequação é uma teoria de responsabilidade, ou, dito de uma maneira melhor, uma teoria de relevância jurídica.26 Trata-se de uma teoria insuficiente, inclusive, como teoria da imputação, pois seu âmbito de operação fica restrito a excluir a imputação apenas nos cursos causais anômalos e incomuns. Apesar das críticas de parte da doutrina, a teoria apresenta pontos positivos. Através de sua metodologia, foi imposto um limite ao regresso das causas que a teoria da equivalência deixou despercebido. Antes de uma teoria que limitasse o regresso, cabia tal função ao mero arbítrio do aplicador da lei.27 Além disso, a teoria da adequação foi ponto de partida para que a doutrina e a jurisprudência percebessem a necessidade de aplicar critérios normativos de imputação entre a conduta e o resultado. Por fim, podemos incluir, também, como teoria da causalidade a teoria da relevância. Segundo sua formulação, somente é causal, em sentido jurídico-penal, uma conduta que possua a tendência geral de provocar o resultado típico, enquanto as condições que apenas por causalidade desencadearam o resultado são juridicamente irrelevantes.28 Aqui, encontra-se a pretensão de limitar a responsabilidade penal no caso concreto de acordo com o juízo de probabilidade. Da teoria da relevância também surgiram critérios para o desenvolvimento da teoria de imputação.29 2.4. Teoria da condição conforme uma lei natural Originalmente exposta por Engisch, a teoria da condição conforme uma lei natural foi desenvolvida, posteriormente, por Puppe. Para a autora, o modo como buscamos a causa de um resultado é muito vago e incompleto, por isso é ineficaz a investigação de uma causa sem mesmo um conceito seguro de resultado.30

Então, primeiramente, é fundamental que o conceito de resultado seja revisto. A doutrina dominante sempre se contentou em dizer que o resultado que interessa ao direito é aquele concretamente ocorrido, com todas as circunstâncias de tempo e lugar, com todas as características individualizadoras.31 Puppe reage a este posicionamento, uma vez que, para ela, não existe qualquer limite para a individualização do resultado. Em nossa linguagem, sempre será possível acrescentar-lhe alguma característica, o que torna seu processo de determinação vago para o exame da causa.32

Então, Puppe afirma que o conceito jurídico de resultado é meramente a modificação desfavorável de determinado objeto protegido pelas normas jurídicas. O que tem de ser explicado pela teoria da causalidade não é a existência de um fato com todos

25 Idem, ibidem. p. 369 e 370. 26 ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil. p. 371. 27 JESCHECK, Hans-Heinrich, WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal, parte general. p. 305. 28 ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil. p. 370. 29 JESCHECK, Hans-Heinrich, WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal, parte general. p. 307. 30 PUPPE, Ingeborg. Strafrecht, allgemeiner Teil, vol. 1. pp. 74 e ss. 31 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 144. 32 PUPPE, Ingeborg. Der Erfolg in seiner kausalen Erklärung im Strafrecht. p. 881.

os seus detalhes, mas unicamente a alteração desfavorável por ele sofrida.33 Posteriormente, Puppe parte do seguinte enunciado: causa de um resultado é toda condição necessária do mesmo segundo leis naturais. No entanto, costumamos considerar a causa de um resultado um acontecimento mesmo que este não seja uma condição necessária para sua produção.34

Na verdade, segundo Puppe, o que denominamos “condição necessária” é meramente uma “condição suficiente”. Uma condição suficiente permite a conclusão do resultado a partir da condição. No entanto, não se faz o mesmo com a condição a partir do resultado. Se exigíssemos como causa uma condição necessária, poderíamos deduzir a causa a partir do resultado sem precisar conhecer o resultado para saber quem é o responsável pelo mesmo.35

Em seguida, Puppe conclui que nosso conceito de causa é uma condição suficiente do resultado conforme as leis naturais. Esta afirmativa é reescrita da seguinte maneira: causa é todo componente necessário de uma condição suficiente do resultado segundo leis naturais.36

A condição suficiente é o enunciado da lei natural, sempre em termos genéricos, não podendo conter qualquer particularidade, como nome próprio ou referência a um conjunto determinado de indivíduos.37 Pode-se comprovar se um fato é componente necessário de uma condição suficiente se pudermos eliminá-lo mentalmente e ter a certeza de que o resto da condição continua a ser suficiente para a produção do resultado.

Puppe ressalta que não se trata de eliminar mentalmente do mundo determinados fatos e constatar então o que haveria sucedido sem eles, como a fórmula da eliminação hipotética da teoria da equivalência. Na verdade, o observador simplesmente elimina mentalmente um determinado acontecimento de uma explicação causal para comprovar se sua explicação sem o mesmo segue como conclusão.38

Portanto, a nova fórmula de determinação da causa passa a ter nova roupagem: se o resultado continua a ser derivado dos fatos resultantes após a eliminação mental, aquele fato eliminado não é necessário, por conseguinte, não causal. Será causal somente aquele fato que, uma vez eliminado, não possa dar origem ao resultado (modificação desfavorável ao objeto tutelado pela norma). 3. Imputação objetiva A estrutura tradicional do tipo penal veio a ser modificada pelo desenvolvimento da teoria da imputação objetiva. Para que um fato seja objetivamente típico, além de haver uma conduta, um nexo de causalidade e um resultado, devem existir certos requisitos que traduzam a lesão ou perigo de lesão normativamente à ação ou omissão do agente. Ou seja, a conduta e o resultado precisam ter um elo normativo entre si. Melhor explicando. Entre a conduta do agente e o resultado, não basta o mero nexo de causalidade, pois este está fora da esfera normativa. A causalidade é puramente

33 Idem, ibidem. p. 882. 34 PUPPE, Ingeborg. Kausalität. Ein Versuch, kriminalistisch zu denken. p. 145. 35 Idem, ibidem. p. 148. 36 Idem, ibidem. p. 151. 37 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 147. 38 Idem, ibidem. p. 151.

naturalística, pertence ao mundo dos fenômenos naturais. Por isso, há a necessidade de limitar normativamente a imputação do resultado à conduta, para que o direito de punir não seja ilegítimo. O trabalho procura explicar melhor estas colocações iniciais nos tópicos que seguem a seguir. Primeiramente, haverá um pequeno histórico da teoria da imputação objetiva para situar o leitor no tempo. Em seguida, a teoria da imputação de Roxin, dominante na doutrina, será analisada em seus pontos mais importante, uma vez que será fundamental para a proposta de re-leitura do art. 13 do CP. Para ilustrar as divergências em torno da imputação, outras teorias serão estudadas de maneira menos relevante, como a de Jakobs, Frisch e Puppe. 3.1. Breve histórico do desenvolvimento da imputação objetiva no direito penal A imputação objetiva, conforme dito no início, é um problema discutido há muitas décadas na doutrina estrangeira, em especial na Alemanha. Atualmente, a imputação objetiva já está incorporada à doutrina alemã, ao ponto de Schünemann comparar sua importância na atualidade com o destaque do finalismo nos anos 50 e 60 e do conceito de causalidade no naturalismo jurídico-penal no início do século XX.39 Em 1927, o civilista alemão Larenz, com sua tese de doutoramento intitulada Hegels Zurechnungslehre und der Begriff der objektiven Zurechnung (A teoria da imputação de Hegel e o conceito de imputação objetiva), trouxe o conceito hegeliano de imputação para as ciências jurídicas. Sua idéia visava resolver o problema da distinção entre ação e acaso, para dizer realmente se um acontecimento é obra do sujeito.40 Na idéia de Larenz, a possibilidade de previsão para a imputação deve ser analisada do ponto de vista objetivo, e não subjetivo. Não é o autor concreto, mas a pessoa, o ser racional, que deve estar em condições de prever um determinado acontecimento.41 Somente assim seria possível traçar parâmetros objetivos de análise da conduta e do resultado. A obra de Larenz teve grande importância para que o conceito de imputação fosse apresentado aos penalistas. Poucos anos depois, em 1930, Hönig apresentou sua obra Kausalität und objektive Zurechnung (Causalidade e imputação objetiva), na qual trouxe o conceito de imputação objetiva especificamente ao direito penal. Em sua introdução, Hönig afirma que a teoria da causalidade encontrava-se em crise e haveria necessidade de reformulação na teoria do tipo.42 Diz que apenas ações humanas são interessantes ao direito penal, portanto, somente estas podem ser os únicos elementos do juízo de imputação.43 A lei não pode, assim, abarcar todos os possíveis fenômenos da natureza – o que é viável pela causalidade – mas somente as ações humanas relevantes ao direito. Para o ordenamento jurídico, o decisivo não é a constatação de uma mera relação de causalidade, mas a verificação de uma relação jurídica especial entre ação e resultado.44 Essa relação especial é o nexo normativo entre conduta e resultado, ou seja,

39 SCHÜNEMANN, Bernd. Über die objektive Zurechnung. p. 207. 40 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. pp. 16 e 17. 41 Idem, ibidem. p. 19. 42 HÖNIG, Richard. Kausalität und objektive Zurechnung. p. 174. 43 Idem, ibidem. p. 182. 44 PRADO, Luiz Regis. Comentários ao código penal. p. 81.

uma relação prevista em lei, limitando os fenômenos naturais. Com isso, grande mérito de Hönig está na clareza das distinções que são feitas entre o plano ontológico (causa) e o plano axiológico (imputação), o que faz de sua lição muito útil aos dias atuais.45 A partir do início dos anos 70, Roxin lança as bases de sua teoria funcionalista direcionada político-criminalmente aos fins preventivos da pena.46 A partir daí, desenvolve uma teoria do delito distante de conceitos pré-jurídicos característicos das teorias finalista e causalista. Dentro de sua nova teoria do delito, incluiu a imputação objetiva como complemento à teoria do tipo. A seguir, uma breve explanação da teoria da imputação objetiva de Claus Roxin. 3.2. A teoria da imputação objetiva de Claus Roxin O próprio Roxin nos diz que um resultado causado por um agente pode ser imputado ao tipo objetivo se a conduta do autor criou um perigo para um bem jurídico não coberto pelo risco permitido e esse perigo também foi realizado no resultado concreto.47 Ou seja, se o resultado se apresenta como realização de um perigo criado pelo autor, via de regra, é imputável se for cumprido o tipo objetivo.48 Daí podemos inferir que o tipo penal não está completo se apenas considerarmos o nexo de causalidade como elo entre a ação e o resultado. Há necessidade, também, de um elo normativo, que possa servir de limitação ao poder punitivo do Estado. O nexo da causalidade é a mera ligação fática entre a conduta e o resultado. É o fato tão-só naturalístico.49 Por exemplo, na observação de Newton, a causa de uma maçã ter caído ao solo foi o fato de ter-se rompido do galho. Tal constatação empírica reverteu-se na formulação da teoria segundo a qual, “a grosso modo”, todos os corpos que apresentam massa estão sob influência da força gravitacional e, conseqüentemente, são atraídos para o centro da Terra. Levando ao campo do direito penal, consideremos, a título ilustrativo, o crime de homicídio. Imaginemos que A tenha atirado em B com a intenção de matá-lo, acertando-o no peito. B faleceu no hospital e foi constatado que a causa de sua morte foram as hemorragias internas decorrentes da lesão. Do ponto de vista naturalístico, A responderá pelo crime de homicídio doloso, sem mais análises. No entanto, da perspectiva da imputação objetiva, só será punido se preenchidos todos os requisitos legais, no caso, a presença de todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo. Retomando a idéia exposta anteriormente, o elemento imputação objetiva será o limite do alcance da norma penal, atendendo-se ao princípio constitucional da legalidade.50 Não se pode imputar o resultado ao agente na mera conclusão da causalidade, seja qual for a teoria causal adotada pelo operador do direito. No direito penal pátrio, a teoria da equivalência das condições foi adotada pelo Código Penal. Partindo desta afirmação, examinemos outro exemplo de crime com resultado morte: A atira em B, com a intenção de matá-lo, acertando-o no peito. Ao ser 45 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 22. 46 Conferir a exposição inicial da teoria funcionalista de Roxin em Política criminal e sistema jurídico-penal, Trad. Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar. 2000. 47 ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil. p. 372. 48 Idem, ibidem. p. 373. 49 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. p. 61. 50 Constituição Federal de 1988, artigo 5.°, inciso XXXIX.

socorrido, a ambulância que o conduzia bate em um poste e, em virtude da colisão, B vem a falecer. Houve uma alteração no curso causal da morte de B em relação ao primeiro exemplo. Na segunda hipótese, a morte decorreu da colisão em circunstância superveniente. Portanto, a análise do caso deve ser mais cautelosa para imputar ou não o resultado à conduta do agente. O tipo penal matar alguém tem a vida como bem jurídico tutelado. O alcance desta norma é prevenir mortes em conseqüência de ações diretas do agente, como, por exemplo, o tiro dado pelo autor no exemplo dado. Não é finalidade do tipo do art. 121 do Código Penal prevenir as mortes causadas por acidentes de veículos que não estejam sob domínio direto ou indireto de alguém que tenha disparado contra o ferido resgatado. O alcance da norma permite, entretanto, que o autor do disparo seja condenado pela tentativa de homicídio. Trata-se, pois, de uma ação dolosa, cujo objetivo era a morte da vítima, mas sua consumação foi evitada por fato superveniente, contra a vontade do agente (ou seja, a colisão da ambulância). Este é o conceito de tentativa adotado por nosso Código Penal e nossa doutrina. Vejamos, então, o exemplo de uma maneira mais detalhada. Estão presentes no segundo exemplo três elementos do tipo objetivo do art. 121: a ação de disparar, o nexo causal pela equivalência das condições e o resultado morte. Não obstante, faltou o quarto elemento do tipo objetivo: a imputação objetiva. Portanto, não se permite falar em homicídio consumado. Roxin elabora uma teoria geral de imputação completamente desligada do dogma causal.51 O autor parte da seguinte afirmação: a possibilidade objetiva de originar-se um processo causal danoso depende da conduta do agente concreto criar, ou não, um risco juridicamente relevante de lesão típica de um bem jurídico.52 Direciona Roxin sua teoria do risco para a valoração dos bens jurídicos protegidos.53 Sobre a metodologia de Roxin, seu aluno Luis Greco ordena a teoria do risco em quatro grupos de estudos de casos: a) a diminuição do risco; b) os riscos juridicamente irrelevantes; c) o aumento do risco; d) o fim de proteção da norma.54 Sobre os topoi55, a seguir seguem algumas observações. Diminuição do risco: Não há possibilidade de imputação se o autor modifica um curso causal de modo que o perigo já existente para a vítima seja diminuído, melhorando a situação do objeto da ação.56 Por exemplo, A percebe que B será atingido por um automóvel e o empurra, atirando-o ao solo, o que lhe causa lesões leves. Se B fosse atropelado, com certeza as lesões seriam mais graves. Portanto, a conduta de A diminuiu

51 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 58. 52 Idem, ibidem. p. 54. 53 A valoração dos bens jurídicos protegidos é fundamental para ROXIN. Um dos principais reflexos desta valoração é o princípio da insignificância, segundo o qual o direito penal não pode se preocupar com bens jurídicos de valor irrelevante. 54 ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil. pp. 375 e ss. 55 Cada um dos topoi representa uma aplicação da teoria em um grupo específico de casos. A cada grupo de casos aplica-se a teoria da imputação objetiva, partindo-se de sua elaboração genérica da criação do risco proibido e da realização deste no caso concreto. 56 ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil. p. 376.

o risco de um resultado mais danoso. Conclui Roxin, por isso, que seria absurdo proibir ações que melhorem o estado do bem jurídico tutelado.57 Na hipótese de diminuição do risco, a conduta do agente poderia ser justificada pelo estado de necessidade, que é uma causa excludente de ilicitude, de acordo com a doutrina tradicional. No entanto, esta hipótese é resolvida no plano da tipicidade, em momento anterior ao plano da antijuridicidade. Como alerta Amelung, a antijuridicidade trata de conflitos sociais, que resultam da colisão de interesses dos indivíduos e de toda a sociedade.58 Na diminuição do risco, ao contrário, não há situação conflituosa, mas sim a melhora da condição do bem jurídico tutelado pela norma. Ausência de criação de riscos (ou riscos juridicamente irrelevantes): Não há imputação ao tipo objetivo se a conduta do autor não aumentou nem diminuiu o risco ao bem jurídico. Ocorre o mesmo se o perigo já existente não sofre incremento mensurável.59 Como ausência de criação de perigo, incluímos as condutas normais do cotidiano, como andar pelas ruas ou tomar banho. Em todas as nossas atividades existem riscos, por menores que sejam. Por exemplo, ao caminhar pelas ruas, assumimos o risco de tropeçar e cair sobre outra pessoa, causando-lhe lesões. O direito não se importa com os mínimos riscos socialmente adequados. Entretanto, é necessário observar que não podemos confundir as condutas que não incluem criação de perigo com a teoria social da ação. Apesar dos pontos em comum, apresentam conceitos distintos.60 Aumento do risco: Este critério tem em vista a resolução de casos em que o autor foi além do risco permitido, causou o resultado, mas não se sabe se a ação correta tê-lo-ia evitado.61 Roxin afirma que a imputação é excluída se a conduta alternativa conforme o direito tivesse levado com certeza ao mesmo resultado. É o estudo dos cursos causais hipotéticos. O famoso caso elaborado por Samson ilustra a situação: A conduz uma locomotiva em um trilho que, mais adiante, está bloqueado por causa do desmoronamento de uma montanha. Sem tempo para frear, B percebe a situação e desvia o trem do trilho da esquerda para o da direita, que também está bloqueado pelo mesmo motivo. O trem colide e A vem a falecer. Comprovado, no exemplo acima, que o resultado teria ocorrido de qualquer maneira, a conduta que causou a morte do maquinista não será objetivamente imputada ao autor da manobra que desviou a vítima em seu caminho e, conseqüentemente, o fato será atípico. Sobre a hipótese, há divergência doutrinária: Jescheck, por exemplo, diz que a há exclusão da imputação ao tipo objetivo não apenas nas hipóteses de certeza, mas

57 Idem, ibidem. p. 376. 58 AMELUNG, Knut. Contribución a la crítica del sistema jurídico-penal de orientación político-criminal de Roxin. p. 95. 59 ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil. p. 377. 60 A teoria social da ação é o comportamento humano socialmente relevante, o atuar final do comportamento doloso e o comportamento objetivamente dirigível de natureza imprudente (BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal, parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais: 1999.) 61 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 58.

também naquelas em que há probabilidade ou possibilidade de que o resultado aconteça nas situações permitidas.62 Alcance da norma: Um dos aspectos mais importantes na análise da imputação, após verificar se houve a realização do risco juridicamente proibido, é observar se o resultado concreto causado por uma ação ou omissão deve fazer parte da norma incriminadora, ressaltando, mais uma vez, o princípio da reserva legal. Portanto, se o resultado concreto não estiver no alcance do tipo, não há de se falar em imputação e, por isso, o fato será atípico. Explica Tavares que a fundamentação do alcance da norma deve fixar-se na subordinação da conduta incriminada às específicas modalidades de atuação na lesão ao bem jurídico, e não na premissa de que um tipo legal vise uma determinada e específica norma de proteção.63 Os casos de exclusão da imputação, por estarem fora do alcance de proteção da norma, segundo Roxin, são os seguintes: a) ajuda para a autocolocação em perigo dolosa; b) colocação em perigo de terceiro que aceita a condição; c) imputação na esfera de responsabilidade alheia. a) Ajuda para autocolocação em perigo dolosa: o resultado de uma ação intencional autoperigosa da vítima não pode ser atribuído ao colaborador da ação se a vítima conhece o risco existente na conduta.64 Como exemplo, não podemos imputar o resultado morte a B se este ofereceu cocaína a A e este veio a falecer após aplicar a droga em si mesmo, sabendo de todos os riscos de tal conduta. b) Colocação em perigo de terceiro que aceita a condição: a exposição consentida a perigo criado por outrem pode situar-se fora da área de proteção do tipo se corresponder à auto-exposição a perigo, observando o seguinte: o dano deve ser conseqüência do risco consentido e a vítima deve ter a mesma compreensão do perigo que o autor.65 Por exemplo, o motorista de táxi dirige em alta velocidade por pedido do cliente e este vem a falecer em virtude de colisão do veículo. c) Imputação na esfera da responsabilidade alheia: o fundamento da exclusão da imputação nesta hipótese está na competência do exercício de determinadas profissões que envolvem a exposição ao perigo.66 Como exemplo, o proprietário que, por imprudência, coloca fogo em sua casa não poderia ser responsabilizado pela morte do bombeiro que participou da operação de controle ao incêndio. Este tópico é controverso, principalmente quando surge a questão: poderia ser punido o criminoso pela morte de um policial que o persegue e colide a viatura? Não há uma posição pacífica, porém, a doutrina majoritária contraria Roxin, para o qual o resultado morte não seria imputado ao criminoso. 3.3. A teoria da imputação objetiva de Günther Jakobs Antes de entrarmos em sua teoria da imputação objetiva, é necessário, em breves palavras, explicar a doutrina funcionalista de Jakobs. Por ser, talvez, atualmente, a mais

62 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A moderna teoria do fato punível. p. 118. 63 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 230. 64 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A moderna teoria do fato punível. p. 114. 65 Idem, ibidem. p. 115. 66 ROXIN, Claus. Strafrecht, allgemeiner Teil. p. 399.

original idéia do direito penal, o leitor que nunca teve contato com sua obra poderá estranhar algumas considerações do autor. A função do direito penal para Jakobs é afirmar a vigência da própria norma. O direito penal funcional se constrói para o próprio direito penal, contrariando a maioria dos autores que enxergam neste a função de proteção exclusiva de bens jurídicos relevantes.67 Se o Estado conseguir que o ordenamento se mantenha estabilizado, a sociedade como um todo viverá em harmonia. Sua obra sustenta-se em conceitos sociológicos.68 O direito penal está intimamente ligado à estrutura social e tem por função manter a estabilidade social e preservar as expectativas guardadas nos papéis desenvolvidos por cada um, ou seja, o sistema de posições definidas normativamente e ocupados por pessoas intercambiáveis, 69 que a todo momento estão em um movimento de comunicação mútua. Como exemplo, podemos utilizar a seguinte situação: a mulher A possui um filho, é casada, trabalha em uma empresa e trafega diariamente em seu automóvel. De acordo com Jakobs, o direito penal deve proteger a mesma mulher, em cada momento, nos limites de seu papel social. Quer dizer, ora como mãe, ora como esposa, ora como empregada, ora como motorista. Assim, qualquer cidadão pode esperar que a mulher desempenhe sua função, pois, caso contrário, o direito penal terá legitimidade para puni-la. Daí a conclusão de que, por meio do direito penal, podemos criar a expectativa de que o cidadão manterá a estabilidade social exercendo seu papel dentro dos limites impostos. Jakobs parte do pressuposto da liberdade de comportamento do indivíduo e sua responsabilidade pelas conseqüências. O fundamento liberal de uma “obrigação originária” tem por conteúdo negativo que o outro não deva ser perturbado em sua existência e a jurisdição não se poderia resumir apenas a normas de proibição, mas estas devem atuar junto às normas de mandato. Faz Jakobs uma distinção entre normas de proibição e normas de mandato. As normas de proibição devem impedir a formação de um motivo que conduza a uma determinada atividade, enquanto as de mandato devem motivas precisamente a uma determinada atividade.70 As normas de direito devem motivar o cidadão a comportar-se adequadamente, em respeito às expectativas de cada um. Ninguém é obrigado a prever a quebra do papel social de outrem. Em sua teoria da imputação objetiva, afirma Jakobs que sua função em um tal sistema consiste em determinar os pressupostos que fazem de uma causação qualquer, um dado naturalístico, um complexo significativo, cujo sentido comunicativo é o questionamento da norma, um “esboço de um mundo” no qual a norma não possui vigência.71 A causalidade é somente uma condição mínima de imputação objetiva do resultado e a ela deve acrescentar-se a relevância dos cursos causais entre a ação e o resultado.72

67 Como exemplo de legitimidade do direito penal na proteção de bens jurídicos: NAUCKE, Wolfgang. Strafrecht, eine Einführung, pp. 231 e ss; ZUGALDÍA ESPINAR, José Miguel. Fundamentos de derecho penal, pp. 163 e ss; QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito penal, introdução crítica, pp. 20 e ss. 68 Para uma boa compreensão da teoria de JAKOBS, conferir LESCH, Heiko. Intervención delictiva e imputación objetiva pp. 39 e ss. 69 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 124. 70 JAKOBS, Günther. La imputación penal de la acción y de la omisión. p. 849. 71 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 122. 72 JAKOBS, Günther. Derecho penal, parte general. p. 237.

O conceito de ação típica, para Jakobs, é o de violação de um papel social do ponto de vista objetivo, através da figura do garantidor. Ao autor somente serão imputados aqueles riscos cuja evitação cumpra a ele garantir, quer dizer, aqueles riscos em face dos quais ele desempenhe uma posição de garantidor.73 Portanto, a criação de um risco proibido se dá pela violação de um dever de garantidor do agente. Como a finalidade própria do direito penal é garantir a segurança das expectativas, o comportamento social adequado (dentro dos papéis sociais de cada um) não se pode imputar como injusto, nem sequer quando tenha efeitos danosos por um desencadeamento de circunstâncias. Para haver a consumação de um crime, portanto, há de se realizar um risco causado por um agente de modo não permitido (ou socialmente inadequado).74 Para Jakobs são irrelevantes todos os conhecimentos que ultrapassem os limites daquilo a que o agente, segundo seu papel social, está obrigado a saber.75 Há um famoso exemplo da jurisprudência alemã, do estudante de biologia, que pode ilustrar a idéia. Tal estudante de biologia trabalha como garçom nas horas vagas para ajudar nos custos pessoais. Este mesmo rapaz, ao servir um prato ao cliente, sabe que há, na comida, um fungo venenoso. Mesmo assim, serve o alimento e o cliente morre intoxicado. Para saber se o fungo era ou não venenoso, o estudante deveria fazer uso de seus conhecimentos específicos de biólogo. No entanto, no momento em que serviu o alimento, o estudante exercia seu papel de garçom, no qual não há a obrigação de conhecer as espécies de fungo. Por isso, para Jakobs, o fato não seria punível, uma vez que, dentro de seu papel de garçom, o agente correspondeu às expectativas, mesmo que não tenha evitado a lesão ao bem jurídico vida da vítima. Do que até aqui foi exposto, podemos extrair duas diferenças entre as teorias de Roxin e Jakobs: a) Jakobs não leva em consideração os cursos causais hipotéticos na determinação da realização do risco, pois o que vale é a quebra do papel social; b) também Jakobs não adotou o fim de proteção da norma, por considerar esta idéia um tanto imprecisa.76 Enfim, vale esboçar as causas de exclusão da imputação na formulação de Jakobs:77 1) realizado o risco permitido,78 dentro das expectativas do papel social,79 o fato será atípico; 2) ninguém é obrigado a fazer mais do que o necessário para a estabilidade da sociedade,80 já que existe a confiança em que cada um cumprirá sua função corretamente; 3) não há delito no comportamento socialmente neutro do autor se este for

73 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 125; JAKOBS, Bermerkungen zur objektiven Zurechnung. p. 50; JAKOBS, Risikokonkurrenz – Schadensverlauf und Verlaufhypothese im Strafrecht. pp. 63 e ss. 74 JAKOBS, Derecho penal, parte general. p. 225; JAKOBS, Risikokonkurrenz – Schadensverlauf und Verlaufhypothese im Strafrecht. p. 67 e ss. 75 JAKOBS, Risikokonkurrenz – Schadensverlauf und Verlaufhypothese im Strafrecht. p. 73 e 74. GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 127; 76 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 130. 77 Todos as hipóteses de exclusão da imputação estão fundamentadas em JAKOBS, Derecho penal, parte general. pp. 241 e ss. 78 JAKOBS, Derecho penal, parte general. pp. 243. 79 Idem, ibidem. p. 244. GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 126. 80 JAKOBS, Günther. Sociedad, norma y persona en una teoría de un derecho penal funcional. pp. 22 e ss.

utilizado por terceiro com intuito criminoso;81 4) não há risco criado quando este situar-se exclusivamente no âmbito da vítima (exposição da própria vítima ao risco).82 3.4. A teoria da imputação objetiva de Wolfgang Frisch Em sua teoria de imputação, parte Frisch da afirmativa de que a doutrina dominante teria priorizado a imputação de resultados, esquecendo-se de que seu pressuposto seria o comportamento proibido praticado pelo autor, ou seja, a conduta típica.83 A partir daí, o autor alerta para a distinção entre comportamento típico e imputação do resultado, já que são construídos com base em normas diferentes: normas de comportamento e normas de sanção, respectivamente. Tais normas variam entre as perspectivas ex ante e ex post ao resultado concreto.84 Em um primeiro momento, Frisch desenvolve sua teoria do comportamento típico, dividindo-a em dois planos: no plano constitucional, em que são estudadas as necessidades de intervenção estatal no direito de liberdade, e no plano jurídico-penal, em que será cogitada a reprovação social merecedora de sanção penal,85 sempre com orientação do princípio da proporcionalidade.86 Posteriormente, Frisch parte para a concretização do resultado, com o estudo de três grupos de casos: a) comportamentos imediatamente perigosos para o bem jurídico; b) comportamentos que possibilitam ou facilitam autolesões ou autocolocações em perigo da vítima; c) comportamentos que possibilitam, facilitam ou motivam comportamentos lesivos de terceiros.87 Cabem duas observações a respeito da teoria de Frisch.88 Em primeiro lugar, o autor confere importância às normas que regulam o comportamento, reduzindo a aparente indeterminação do critério proposto para o plano de concretização (os três grupos acima descritos). Cada um desses grupos de casos deve ser analisado pelo conjunto comportamento e norma de comportamento antes mesmo de verificar o resultado lesivo. Daí a segunda observação: inúmeros problemas que a doutrina tradicionalmente resolve no plano de realização do risco são tratados por Frisch no âmbito do comportamento típico. No momento seguinte à teoria do comportamento típico, Frisch parte para a teoria da imputação do resultado. Aqui, o autor afirma que o desvalor do resultado deve ser fundamentado pela ratio dúplice da insegurança jurídica e da vigência da norma. Ausente esse binômio, o resultado não poderá ser imputado ao autor.

81 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 126. 82 JAKOBS, Risikokonkurrenz – Schadensverlauf und Verlaufhypothese im Strafrecht. p. 75. 83 FRISCH, Wolfgang. Tipo penal e imputación objetiva. pp. 16 e ss.; GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 132. 84 FRISCH, Wolfgang. Tipo penal e imputación objetiva. pp. 92 e ss.; GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 133. 85 Para a elaboração da teoria do comportamento típico: FRISCH, Wolfgang. Tipo penal e imputación objetiva. pp. 95 e ss. 86 Sobre o princípio da proporcionalidade, conferir o interessante e profundo estudo de Teresa Aguado Correa: El principio de proporcionalidad em derecho penal. Madri: Edersa, 1999. FRISCH, Wolfgang. Tipo penal e imputación objetiva. p. 98 e ss., pp. 120 e ss. e pp. 134 e ss., respectivamente. 88 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. pp. 136-139.

No plano de realização do risco no resultado concreto, basta apenas uma mudança de perspectiva, de ex ante para ex post, ou seja, basta ao observador perguntar se, ex post, o que realmente ocorreu no plano dos fatos, foi aquele risco ex ante criado e se o curso causal ocorrido era daqueles que a norma tinha por finalidade evitar.89 3.5. A teoria da imputação objetiva de Ingeborg Puppe Na teoria de Puppe, as duas principais novidades estão na realização do risco e no fim de proteção da norma. No que diz respeito à criação de riscos juridicamente desaprovados, pouco difere da doutrina tradicional. 90 Segundo Puppe, para saber se um risco realizou-se no resultado, temos de analisar se o risco criado pelo autor é condição necessária para explicá-lo de modo suficiente, ou seja, se aquelas características do comportamento, que fazem dele algo proibido, são partes necessárias da explicação causal.91 Sua principal inovação é trabalhar a teoria da imputação com base em leis meramente probabilísticas, e não deterministas. Visa esse método corrigir os erros da causalidade onde não se pode afirmar, com certeza, por meio de leis deterministas, a ocorrência de um resultado. Para Puppe, na atualidade, não é um fato seguro que as ciências naturais disponham de verdades absolutas e eternas. Por isso, os juristas perguntam-se sobre que grau de prova deve-se exigir para que o juiz possa decidir sobre a validade de uma lei causal. É necessário requerer o grau mais alto de certeza que as ciências naturais podem oferecer.92 A validez de uma teoria causal a ser utilizada é uma questão de fato, e não se converte em uma questão jurídica. Muitos acontecimentos naturalísticos não serão verificáveis em provas forenses, por isso Puppe acredita em que as leis probabilísticas sejam instrumento fundamental para o julgador chegar o mais próximo da causa real de um resultado.93 Exemplo: se A aplica veneno na sopa de B, a quantidade aplicada será a condição necessária do enunciado de que toda vez que alguém ingerir uma quantidade X de veneno morrerá em conseqüência deste (lei probabilística). Pouco provável que o juiz, em sua área de atuação, conseguirá ter a certeza necessária sobre o resultado apenas por um raciocínio determinista. Outro exemplo utilizado por Greco:94 numa operação arriscada, o médico comete um erro, vindo a matar seu paciente. Não há qualquer lei determinista que deslinde sobre a certeza de que sempre que um médico cometer o erro X, seu paciente morrerá. Há inúmeros outros fatores que podem contribuir para o resultado morte. Puppe analisa especificamente os casos de intervenções médicas, manifestando que muitos processos

89 FRISCH, Wolfgang. Tipo penal e imputación objetiva. pp. 107 e ss.; GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 141. 90 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 150. 91 PUPPE, Ingeborg. La imputación objetiva., p. 39 e ss.; GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 150. 92 PUPPE, Ingeborg. La imputación objetiva. p. 25. 93 PUPPE, Ingeborg. Strafrecht, allgemeiner Teil, vol I. pp. 175 e ss. 94 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 151 e 152.

patológicos – e também processos de cura – não são vistos na ciência médica moderna como plenamente determinados por leis causais.95 Se trabalharmos apenas com leis deterministas, das quais não se pode afirmar que esse erro sempre causará a morte, o médico sempre sairia impune. Portanto, a necessidade de leis não deterministas se dá no momento de detectar o aumento do risco derivado de uma lei probabilística, para se chegar a uma conclusão sobre o resultado. Em relação ao fim de proteção da norma, Puppe caminha contra a teoria dominante e o redefine como a idoneidade genérica para impedir determinada classe de cursos causais.96 Quer dizer: não podemos ficar presos à simples interpretação individual do tipo, mas trabalhar com conceitos genéricos. Puppe não concorda com a solução de conflitos jurídicos através de particularidades de conceitos, mas sempre com a generalidade destes. Compreendem-se nas normas penais todos aqueles cursos causais que o respeito à norma geralmente consegue impedir. Se o respeito à norma tiver idoneidade para impedir o resultado apenas no plano micro, e não no plano macro, este resultado se encontra fora do âmbito de proteção da norma.97 4. O art. 13 do Código Penal brasileiro Após toda essa explanação sobre as teorias da causalidade e da imputação objetiva, chegamos ao art. 13 do Código Penal, o objeto do presente trabalho. Este é um dos artigos mais relevantes e, ao mesmo tempo, é pouco desenvolvido pela doutrina brasileira. Por isso, tentaremos relacionar esta norma à teoria da imputação objetiva, a fim de torná-la mais eficiente na resolução de casos concretos. O texto do caput do art. 13 diz: considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Em primeira leitura, chegamos à conclusão de que a teoria da equivalência foi adotada por nosso legislador. É esta a posição de nossa doutrina majoritária.98 Adiante, em seu parágrafo primeiro, diz a norma: a superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou. Por este preceito, a doutrina esforçou-se em desenvolver a teoria das concausas, até hoje dominante no país.99 Um pouco diferente da opinião majoritária é a lição de Reale Jr., segundo o qual o ordenamento brasileiro adotou a teoria da relevância. Descreve a verificação da ação como conditio sine qua non do resultado e a redução do âmbito de relevância causal pelo exame do aspecto psicológico, que atua como fator limitativo da imputação estritamente causal.100 O que se pode desprender do parágrafo único do art. 13 é que o legislador preocupou-se em evitar os abusos da teoria da conditio sine qua non, que está no caput,

95 PUPPE, Ingeborg. La imputación objetiva. p. 27. 96 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 153. 97 Idem, ibidem. p. 154. 98 Por todos: MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal. p. 109. 99 Conferir: BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. p. 72. 100 REALE JR., Miguel. Teoria do delito. pp. 178 e 179.

como o regresso das causas que fujam do bom senso jurídico e outras imperfeições jurídicas que possam levar a erros grotescos e inaceitáveis. A teoria das concausas trabalha com conceitos de causa superveniente, concomitante e anterior. Além disso, podem ser absolutamente ou relativamente independentes. A doutrina nacional sempre trabalhou com estes critérios inexatos, dependentes de cada caso concreto, sem dar atenção às possíveis conclusões errôneas a que se poderia chegar.101 A teoria da imputação objetiva pode ser um instrumento de interpretação do tipo penal mais eficiente que a teoria das concausas. Primeiramente, porque as concausas padecem do mesmo vício da teoria da relevância, ou seja, o limite imposto depende do arbítrio do juiz. Em segundo lugar, a imputação objetiva possui natureza normativa, fixada em lei jurídica, aproximando-se mais do princípio da legalidade do que a causalidade naturalística. Não encontra óbice na lei penal a imputação objetiva. Por interpretação do art. 13, em seu caput e seu parágrafo primeiro, podemos chegar a uma formulação suficiente para imputar-se objetivamente um resultado a uma conduta. Já fez Cirino dos Santos a distinção entre causação e imputação102 sustentando-se no art. 13 do Código Penal: a lei brasileira considera a independência relativa do novo curso causal como excludente de imputação do resultado – não como excludente da relação de causalidade.103 Deve-se alertar para o problema que está além da terminologia ou de aspectos teóricos. Chama a atenção Greco para a maior extensão da teoria da imputação objetiva e para os erros a que a combinatória de causas (supervenientes, antecedentes e concomitantes) pode levar, com conseqüências drásticas de uma responsabilidade objetiva, sem culpa, com base no mero nexo causal.104 Um exemplo é a actio libera in causa. O autor, ao ingerir alta dosagem alcoólica com o fim de criar coragem para a prática de um crime, tem por encerada a sua capacidade de compreensão dos fatos.105 Responderá o agente por todas as suas condutas praticadas em estado de embriaguez a título de responsabilidade objetiva. A fórmula da actio libera in causa está baseada em simples equivalência das condições, ou seja, a ingestão de bebida alcoólica foi condição para o autor tornar-se temporariamente inconsciente, e essa inconsciência temporária foi condição para a prática do crime.106 O art. 13 não pode ser repartido em duas opções distintas de aplicação: uma para os casos em que é possível chegar a um resultado razoável apenas pelo regresso das causas e outra para as hipóteses de necessidade de adequação das causas quando houver uma conclusão inviável sobre a causa do resultado. A norma deve ser analisada de modo uniforme, como instrumento único de verificação de causalidade e imputação.

101 Como exemplo de ausência crítica à teoria das concausas, Mirabete (Manual de direito penal, 16.ª ed., pp. 110 e ss.). 102 CIRINO DOS SANTOS prefere o termo atribuição ao termo imputação. Este último é a preferência da doutrina majoritária. 103 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A moderna teoria do fato punível. p. 53. 104 GRECO, Luis. in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. p. 72. 105 Sobre a actio libera in causa, muito interessante o artigo de Hans Joachim Hirsch: Zur actio libera in causa, in Festschrift für Haruo Nishihara, Freiburg, 1997, pp. 86-102 (com tradução para o espanhol: Acerca de la “actio libera in causa”, na Revista Penal, Universidad de Salamanca, n.º 7, 2001, pags. 67-75). 106 Por exemplo: TACRIM-SP – 15.ª Câm. - Ap. 1294701/5 – Rel. Carlos Biasotti – j. 07.03.2002.

Assim, se desejamos analisar o resultado e a conduta, primeiramente verificamos a relação naturalística entre ambos, por meio da causalidade, de acordo com a teoria da equivalência. Em seguida, cuidadosamente estudamos o risco criado pelo agente e se este risco foi realizado no resultado concreto. Deste modo, adotamos um método único e uniforme de análise de imputação a todos os casos, sem a necessidade de recorrer a critérios imprecisos das concausas. Levando para o lado da terminologia, lembremos que a própria redação do art. 13 carrega o substantivo imputação e o verbo imputar. Além da possibilidade metodológica, também a terminologia da norma permite a aplicação da teoria da imputação objetiva em nosso ordenamento. Enquanto o art. 13, em seu caput, oferece a regra de constatação do fenômeno naturalístico que deu origem a um resultado relevante, seu parágrafo primeiro orienta a análise da imputação. Por eliminar as causas independentes do nexo de causalidade, a norma implicitamente retira da responsabilidade do agente todos os fatos que não sejam riscos criados por ele. Então, somente são relevantes para a responsabilização do autor os riscos criados e, posteriormente, realizados no resultado concreto. A posição adotada no trabalho em muito se assemelha à teoria de imputação de Roxin. Tanto o risco juridicamente proibido quanto a realização deste risco no resultado concreto são fundamentais para se responsabilizar o agente. Se o Código Penal despreza as causas independentes (as absolutas e quase todas as relativas), fica evidente a preocupação com o alcance da norma. Por exemplo, no crime de homicídio, não está no alcance da norma a prevenção de crimes provocados por ataques cardíacos derivados de sustos drásticos. É possível extrair, portanto ,do art. 13 do Código Penal as quatro etapas de conexão entre conduta e resultado: o nexo de causalidade naturalístico (no caput) e os requisitos da imputação no parágrafo primeiro: criação do risco juridicamente desaprovado, a realização do risco no resultado concreto e o alcance da norma. Ainda, podemos destacar que os critérios da imputação objetiva são de suma importância para uma melhor compreensão dos crimes culposos. A criação do risco proibido e a realização deste risco no resultado são requisitos que complementam a violação de um dever objetivo de cuidado. Afinal, os elementos da infração ao dever de cuidado são mais vagos que o da imputação objetiva, sendo, inclusive, errados porque produzem a impressão de que o delito comissivo culposo consistiria numa omissão do cuidado devido, o que sugere sua interpretação desvirtuada como delito de omissão.107

A doutrina brasileira, assim como a jurisprudência, ainda está presa ao positivismo puro, negando-se a discutir a real eficácia da norma como única fonte de solução dos conflitos. Ignoram-se os estudos de política criminal associado à dogmática, no insistente e perpétuo embate entre causalismo e finalismo108, como se este fosse a mais moderna discussão do direito penal. Pode ser até por isso que a teoria da imputação objetiva ainda tenha pouca relevância entre nós. Damos pouca atenção às teorias pós-

107 SANTOS, Humberto Souza. Co-autoria em crime culposo e imputação objetiva. pp. 27 e ss. 108 Para mais detalhes sobre a ineficácia deste conflito entre causalismo e finalismo, interessante o trabalho de LUIS GRECO: Introdução à dogmática funcionalista do delito. in Revista Jurídica, ano 48. Porto Alegre. 2000.

finalistas, as quais adotaram a imputação objetiva como determinante da responsabilidade concreta pela realização do resultado típico.109 A teoria da imputação objetiva não é um milagre dogmático, mas um grande reforço para o princípio da legalidade. Por ser a causalidade um fenômeno de natureza puramente naturalística, decorrente de leis naturais, há necessidade deste nexo causal encontrar uma delimitação normativa, dentro do próprio ordenamento. A ausência da imputação objetiva cria uma dependência do direito em relação às ciências naturais para definir a responsabilidade do agente. Afinal, o direito não é a ciência do ser, é a ciência do dever-ser. A leitura do Código Penal não pode ter uma diretriz meramente positivista, calcada na “inadiável superação do positivismo jurídico neokantiano”.110 É possível interpretar a norma existente com o espírito de um direito penal democrático, dentro de uma concepção funcional da dogmática, voltada às necessidades de uma efetiva política criminal. 5. Conclusões A teoria do delito só permite a incriminação de condutas quando houver um nexo causal entre a conduta e o resultado. Além disso, o resultado deve contar um risco criado pelo agente no momento da ação ou omissão. O art. 13 do Código Penal brasileiro, em seu caput, adotou a teoria da equivalência das condições na definição do nexo de causalidade. Complementarmente, seu parágrafo primeiro deve ser interpretado como uma regra de imputação objetiva, de maneira a delimitar normativamente a relação de causalidade. A leitura do art. 13 deve verificar sempre o âmbito de proteção da norma. Para que o direito penal brasileiro entre na era da moderna teoria do delito, é fundamental a libertação dos argumentos de autoridade e do positivismo como única fonte de fazer ciência.

109 CHAVES CAMARGO, Antonio Luis. Imputação objetiva e direito penal brasileiro. p. 188. 110 Idem, ibidem. p. 19.

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