centro universitÁrio curitiba michelle gironda … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado...

184
CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA CABRERA A IDEIA DE RISCO COMO FATOR DETERMINANTE DO INCREMENTO E DA IMPUTAÇÃO DE CRIMES ECONÔMICOS CULPOSOS CURITIBA 2013

Upload: hanguyet

Post on 09-Dec-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

MICHELLE GIRONDA CABRERA

A IDEIA DE RISCO COMO FATOR DETERMINANTE DO INCREMENTO E DA

IMPUTAÇÃO DE CRIMES ECONÔMICOS CULPOSOS

CURITIBA

2013

Page 2: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

MICHELLE GIRONDA CABRERA

A IDEIA DE RISCO COMO FATOR DETERMINANTE DO INCREMENTO E DA

IMPUTAÇÃO DE CRIMES ECONÔMICOS CULPOSOS

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Direito.

Orientador: Professor Doutor Fábio André

Guaragni

CURITIBA 2013

Page 3: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

RESUMO

O presente trabalho assume a proposta de analisar a forma como o risco –

inerente à sociedade atual – repercute em um especial critério dogmático do

delito, a imputação, no contexto sociológico de surgimento de novas dimensões

sobre as quais ao direito penal foi dada a missão de se debruçar. A ciência

jurídico-penal viu o panorama de desenvolvimento de seus conceitos e critérios

conduzir-se conforme dois modelos epistemológicos básicos: a visão da coisa em

si, que se difundira, no direito penal, aos partidários de uma ciência realizada

através do ontologicismo; e a visão de mundo, que se difundira aos partidários de uma ciência afeita a critérios axiológicos. Ocorre que, a vontade de verdade pode

ser enganadora, conforme máxima nietzschiana, e é capaz de distorcer a

realidade para adaptá-la às categorias do conhecimento, das ciências e do que se

pretende que seja real. Faz da vida, complexa que é, um argumento simples. Através da exposição dogmática de como se realiza a imputação do crime culposo

nas diversas Escolas da teoria do delito, esta dissertação parte do pressuposto de

que não se trata de um ou-isto-ou-aquilo, mas de um tanto-isto-quanto-aquilo, solução hesseniana, ademais. A filosofia é ambas as coisas: visão de si e visão de

mundo. E não só esta, mas o direito, e o direito penal. Buscando empreender o

paradigma funcionalista introduzido pelas teorias pós-finalistas, esta dissertação

traz à lume o novo contexto do qual não é dado ao cientista jurídico-penal da

alvorada do milênio se esquivar: a necessidade da interdisciplinaridade em

matéria jurídica e, ademais, da multidimensionalidade das categorias dogmáticas

de direito penal. Assim é que, inferindo um estudo político-criminal do risco como

fator determinante do incremento do material delitivo do direito penal econômico, tratar-se-á de delimitar as causas e consequências de uma expansão da

modalidade culposa de delito. O direito penal, calcado que deve estar, sob bases

garantistas constitucionais, que foram as responsáveis, ademais, pela vigência de

um Estado Democrático de Direito, pode (e deve) debruçar-se sob o novo contexto

que se apresenta. Do contrário, negar-se-ia o caminho epistemológico da

complexidade, que aqui será sustentado, e o é, inclusive, na teoria roxiniana - à

qual se partidarizará, através da utilização, no novo contexto, de critérios de

imputação objetiva.

Palavras-chave: Direito; Direito Penal Econômico; Imputação objetiva; Crime

culposo; Risco; Direito Penal do Risco; Complexidade.

Page 4: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

RESUMEN

El objetivo de este trabajo es examinar como el riesgo - inherente a la sociedad

actual - refleja en un criterio dogmático especial de la delincuencia - la imputación

- en el contexto sociológico de la aparición de nuevas dimensiones en las que la

ley penal se ha dado a la tarea de resolverlas. La ciencia del derecho penal ha

visto como el comportamiento y desarrollo de sus conceptos y criterios se han

enmarcado de acuerdo los dos conceptos epistemológicos fundamentales: la

visión de la cosa misma, que, extendida en el derecho penal, alcanza a los

partidarios de la ciencia óntica y la visión del mundo, a los adherentes de una

ciencia fundada en criterios axiológicos. Lo que sucede es que la voluntad de

verdad, máxima nietzschiana, puede ser engañosa y distorsionar la realidad para

adaptarla a las categorías del conocimiento, donde incluso la vida, que es

compleja, resulta ser un simple argumento. La exposición dogmática de la

imputación del delito imprudente en las diversas Escuelas de la teoría del delito,

asume, en este trabajo, una solución hesseniana en sentido de que, tanto la

filosofía, como el derecho, son vistos como cosas en sí, y, también, del mundo. De

acuerdo con el paradigma funcionalista de las teorías post-finalistas del delito, este

trabajo analiza el nuevo contexto que los juristas no se lo niegan: la

interdisciplinariedad y, por otra parte, la multidimensionalidad de las categorías

dogmáticas del derecho penal. Así es como se emprende un estudio político-

criminal como determinante del Derecho penal económico, que va ser, también, fundamental en el modo de expansión del delito imprudente. Al enfrentarse contra

el riesgo, es fundamental preservar los principios del Estado de Derecho, pero, además, no puede negar la forma epistemológica de la complejidad, que se

encuentra incluso en el pensamiento roxiniano que, en este trabajo se plantea, através de la adopción de criterios de imputación objetiva.

Palabras-clave: Derecho; Derecho Penal Económico; Imputación Objetiva; Delito

imprudente; Riesgo; Derecho Penal del Riesgo; Complejidad.

Linha de Pesquisa – 2 Atividade Empresarial e Contituição: inclusão e

sustentabilidade.

Page 5: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

9

INTRODUÇÃO

O verdadeiro cientista, por mais especializado que seja,

deve ser um amador. Necessita amar o seu objeto de estudo.

1

A ciência do direito penal, a ferramenta mais grave de que dispõe o Estado, é

construída sobre bases bem definidas e, das quais, não lhe é dado o abandono. Foram suas

bases liberais de cunho garantista, aliás, as responsáveis pelo alicerce do Estado Democrático

de Direito. Ocorre que, sem abrir mão destas bases, surgem ao direito penal, na alvorada do

milênio, novas dimensões de atuação, as quais não lhe cabe negar. A presente dissertação

analisará a forma como o risco – inerente à sociedade atual – repercute nos critérios

dogmáticos de imputação do delito, em especial, o culposo que, conforme se demonstrará, é

alvo principal na tomada de percepção de riscos.

Pretende-se, de maneira preliminar, abordar as formas de atuação do crime

culposo nas diversas Escolas de teoria do delito, cujo norte empreendido girará (sempre) em

torno de dois elementos epistemológicos básicos, a visão de si, ou da coisa em si e a visão de

mundo. Estes dois elementos, como demonstra a história, sempre existiram em um ambiente

de tensão peculiar: ora ganha força um deles, ora outro. Toda a história da Filosofia (e do

Direito) aparece, enfim, como um movimento pendular entre esses dois pontos: o universo do

ser e do dever ser.

Por não raras vezes, a ciência do direito penal, afeita a referibilidades empíricas,

não se deixou falsear e, ao contrário, refugiou-se em abstrações que, fundadas no universo

ôntico das coisas e na sustentabilidade de seus efeitos, fizeram-na se fechar em uma

metafísica conceitual. Ocorre que, deixando de enfrentar problemas concretos, ainda que

apegada à ontologia das coisas, a ciência do direito penal afasta-se do que deva ser,

incorrendo, assim, em um reducionismo epistemológico que, nesta dissertação, refutar-se-á.

No caminho da complexidade, que, aqui, é considerado como imposição contemporânea,

abre-se um leque de novas dimensões sociais e políticas que, através do contributo da

interdisciplinariedade e da afeição a critérios axiológicos – porém, não menos justos e

coerentes – é capaz de lidar com o novo que se apresenta.

1 BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz: sobre o mundo jurídico e outros mundos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1994, p. 70.

Page 6: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

10

Daí a necessidade de se inferir um estudo prévio do crime culposo como oscilação

entre os modelos ontológicos e axiológicos. É que, ademais, para compreender o presente,

parte-se da compreensão do passado, pois, empreender o novo “não significa renegar o

passado recente, apagar-lhe os sulcos deixados nos caminhos, abandonar as trilhas

percorridas. Superação que não se confunde, sequer, com o passo à frente, porque somente é

possível com a mirada retrospectiva, o passo atrás.” 2 Ademais, os aparatos contemporâneos

do presente não se assemelham aos do passado, por isso, pretender o estudo do novo, aqui,

requer a exata compreensão do passado. Do contrário, incorrer-se-ia, senão, a uma

desonestidade intelectual, na medida em que “nada mais injusto do que julgar homens do

passado pelas ideias do presente. Para evitarmos julgamentos baseados em valores do nosso

tempo, devemos consultar a opinião da época.” 3

No contexto de fins do século passado, em razão da autêntica crise de confiança

no cálculo científico - o que colocou em cheque as bases de uma modernidade calcada no

racionalismo cartesiano -, o direito penal identificou, como nunca, condutas capazes de

produção de consequências catastróficas para a vida e demais bens jurídicos. Os riscos,

ademais, são democráticos, pois se perfizeram neste e em todos os tempos; sua percepção,

porém, é o que, evidentemente, marca a atualidade. São riscos, enfim, que de nulos (ou quase

isso) na sociedade de outrora - confiante no desenvolvimento tecnológico vaidoso e

autorreferente - hoje, se traduzem como protagonistas nas tomadas de decisões políticas e,

consequentemente, jurídicas.

Assim é que, como recurso epistemológico, serão utilizados os contributos

primordiais de outras ciências, tendentes a aprimorarem o estudo jurídico à sua

multidimensionalidade: a Filosofia, que surge como pressuposto de toda construção

científica4 e a Sociologia, que, ademais, é a responsável por definir as carências de proteção

havidas pelos membros da sociedade. Neste panorama, traçar-se-á a maneira como o risco

repercute nos critérios de imputação: com o aumento da percepção dos riscos – as fontes de

riscos, igualmente, se expandiram -, inflam, por consequência, as antecipações das catástrofes,

o que dá lugar a um direito penal atuante preventiva e supraindividualmente. Prepondera um

2 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São

Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 157. 3 TUCHMAN, Bárbara W. A marcha da insensatez: de Tróia ao Vietnã. 3ª edição. Tradução de Carlos de Oliveira Gomes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 56. 4 MARITAIN, ademais, já afirmara que “são as construções filosóficas requisitos epistemológicos para o controle da legitimidade das proposições científicas.” MARITAIN, Jacques. Introdução geral à Filosofia. Elementos de filosofia I. Rio de Janeiro, Agir, 1977, p. 73.

Page 7: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

11

direito penal de desvalor de resultados, preocupado em minimizar os riscos advindos do

emprego de tecnologias, conquanto destas, a sociedade não está disposta a abrir mão.

Essas tarefas atribuídas ao direito penal compõem a ambientação favorável à

tipificação culposa, mister em sede de crimes econômicos, dispostos na legislação penal

extravagante. Trar-se-ão alguns exemplos emblemáticos desta nova tutela que, ainda, se

afigura na proteção de bens jurídicos supraindividuais – no que os críticos da chamada

“expansão do direito penal”, igualmente, se contrapõem.

De então, será estabelecido, com a ajuda fundamental da política-criminal, o

ajuste axiológico-normativo, alocado no marco da proteção subsidiária de bens jurídicos

relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação

objetiva. O intento de ajustar a política-criminal, assim, aos critérios dogmáticos de

imputação, será tratado no Capítulo II, através das concepções de ROXIN, JAKOBS e

FRISCH, partidarizando-se, na presente dissertação, aos ensinamentos roxinianos.

Assim, levantada a nova ambientação e introduzidos os elementos dogmáticos que

permearam a incriminação por crime culposo, o que se demonstrará é a necessidade de

reajuste – da ciência do direito penal – às novas matérias de proteção, o que será realizado no

Capítulo derradeiro. Embora pareçam, à primeira vista e a muitos críticos, contrárias e

incompatíveis com suas bases principiológicas, é certo que o pré-estabelecido comporta

novidades; já não se pode mais, no século XXI, sustentar o reducionismo como método

seguro. Calha, aliás, a reflexão de SEBASTIAN SCHEERER, para quem, “o câmbio do

milênio (...) desfruta de referências brilhantíssimas e de uma confiança em si mesma sem

resquício de dúvidas.” 5

Novas possibilidades anunciam-se, já há, ao menos, quatro décadas, ao cientista

do direito penal. Os esforços não são poucos, no empreendimento e na sustentação de que

convicções absolutas e imutáveis, próprias dos métodos que se pretendam infalíveis, não têm

lugar na complexidade do direito penal.

Exatamente neste contexto é que se defenderá o novo espaço atribuído à ciência

jurídico-penal, onde as decisões mais justas e coerentes devem prevalecer. Deve, o direito

penal, absorver o que as outras disciplinas têm a lhe dizer - e assim tem sido. Nesta

dissertação, então, o intuito é aproximar a ideia do risco social ao incremento e à imputação

dos crimes culposos, em um ambiente específico muito próprio: o direito penal econômico. A

5 SCHEERER, Sebastian. ¿La pena criminal como herencia cultural de la humanidad? In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Organização da versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer e Björn Burkhardt; organização da versão espanhola: Francisco Muñoz Conde. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 375.

Page 8: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

12

partir da ideia de risco, enfim, a determinação do incremento de um novo ramo do direito e,

ademais, de novas modalidades delitivas, deve passar, imediatamente, pela estabilização

fornecida por critérios de imputação objetiva - mais axiológicos e mais afeitos ao que deva ser

o correto, e não ao que o pareça.

Page 9: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

13

CAPÍTULO I - O CRIME CULPOSO: A OSCILAÇÃO ENTRE OS MODELOS

ONTOLOGICISTAS E AXIOLÓGICOS NO SÉCULO XX

Alguns ainda precisam da metafísica; mas também a impetuosa exigência de certeza que hoje se espalha de modo científico-positivista por grande número de pessoas, a exigência de querer ter algo firme: também isso é, ainda, a exigência de apoio, de suporte, que, em suma, não cria religiões, metafísicas, convicções de todo tipo – mas as conserva.

6

Para que se possibilite fazer uma análise dos motivos que levaram (e levam) à

expansão dos crimes culposos na atual sociedade, é fundamental que se discorra sobre a

utilização da modalidade culposa de crime nas diversas Escolas da teoria do delito. Isto

porque, quando se pretende compreender o presente, deve-se, antes de tudo, voltar os olhos ao

passado, pois é da compreensão de sua essência que se permite indagar o novo. Conhecê-lo,

como recomenda o Zaratustra de NIETZSCHE: “Conhecer, este é o prazer daquele que tem

vontade de leão.” 7 Faz-se necessário, assim, traçar o panorama de utilização do crime culposo

durante as diversas fases que marcaram a dogmática jurídico-penal, mais precisamente, a

partir de VON LISZT.

A importância do estabelecimento de critérios analíticos de análise do crime

evidencia uma segurança jurídica por vezes necessária à ciência do direito penal. Neste

sentido, PAULO BUSATO leciona que “a teoria do delito visa estabelecer parâmetros gerais

sobre os quais serão fixados critérios de imputação jurídico-penal. Isto significa compor um conjunto de regras que vai servir de baliza interpretativa para a subsunção do fato à norma”. 8

Especificamente, em se tratando de crime culposo, “a sistematização analítica da

teoria do delito, (...) deve servir para proporcionar a unidade das espécies de delito em torno

de um denominador comum e, principalmente, sua diferenciação.” 9 Decerto, e consoante

6 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 240. 7 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. In: Obras completas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores), p. 251. 8 BUSATO, Paulo. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 176. 9 TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 07.

Page 10: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

14

lição de ROXIN, “a capacidade de rendimento de um sistema de Direito Penal depende de

sobre quais fundamentos ele é edificado”.10

Importa salientar que, a depender da atmosfera social, cultural e histórica de um

dado fragmento, as diversas linhas de pensamento dogmático jurídico-penal herdarão a

bagagem cultural própria de cada época. É a influência do zeitgeist ou “espírito do tempo”,

segundo o qual “todo pensamento filosófico, bem como a respectiva aplicação no universo

jurídico, vem com a marca do tempo e do espaço em que se produz”.11

Com relação a este ambiente, influenciador, em última análise, da teoria do delito,

também se tem a lição de BUSATO: “uma teoria do delito, fora de seu contexto geográfico,

cultural, sociológico ou histórico, encontra-se previamente fadada ao fracasso”.12 E, ainda,

pode-se encontrar a mesma reflexão em WINFRIED HASSEMER: “(...) a proximidade do

direito penal com o espírito do tempo é inquestionável. Aí reside o fardo, mas também a

oportunidade para os penalistas”.13 (t.n.)

A resposta do direito penal a cada fragmento filosófico de sua época dá-se nas

mudanças dogmáticas empreendidas pelas diversas teorias do delito (e as consequentes

soluções dadas, em cada caso, ao crime culposo), fazendo-se necessário um prévio estudo

filosófico a respeito das teorias do conhecimento que, há quase dois séculos, vêm distinguindo

e aprimorando os diversos saberes das ciências, não só do direito. Daí a cisão que se verifica,

na aurora da modernidade, mas, desde há muito, entre filosofia e ciência.

Todo o panorama de desenvolvimento das teorias do delito em direito penal

conduziu-se a dois elementos epistemológicos básicos: a visão de si, ou da coisa em si e a

visão de mundo. Estes dois elementos, como demonstra a história, sempre existiram em um

ambiente de tensão peculiar; ora ganha força um deles, ora outro. Toda a história da Filosofia

(e do Direito) aparece, enfim, como um movimento pendular entre esses dois pontos: o

universo do ser e do dever ser. Conforme lição do filósofo alemão JOAHNNES HESSEN,

“isso prova que esses dois elementos pertencem ao conceito essencial. Não se trata de um ou-

10 Neste texto, escrito em homenagem aos 70 anos de José de Sousa e Brito, ROXIN permeia todos os sistemas de direito penal, fundados ontológica e axiologicamente, para verificar a necessidade de uma construção dogmática baseada na inter-relação entre dados empíricos e normativos. ROXIN, Claus. Reflexões sobre a construção sistemática do direito penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. v.18, n.82, jan./fev.2010, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 26. 11 GUARAGNI, Fábio André. Da tutela penal de interesses individuais aos supraindividuais: Dialogando com Beccaria. In: Ler Beccaria hoje. BUSATO, Paulo César (org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 33. 12 BUSATO, Paulo. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 176. 13 HASSEMER, Winfried. La autocomprensión de la ciencia del derecho penal frente a las exigencias de su tiempo. In: La ciencia del derecho penal ante el nuevo milenio. MUÑOZ CONDE, Francisco. (coord.). Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 47.

Page 11: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

15

isto-ou-aquilo, mas de um tanto-isto-quanto-aquilo. A filosofia é ambas as coisas: visão de si

e visão de mundo.” 14

Os paradigmas filosóficos tendentes a aproximarem as ciências jurídicas ora como

descrição da realidade imutável das coisas - consistente no método de observar e descrever os

objetos (método próprio das ciências naturais) -, ora como reflexão sobre o comportamento

prático do espírito das coisas, consistente no método de compreender e valorar o objeto,

(próprio das ciências culturais ou do espírito), serviram de base a uma dogmática jurídico-

penal que vem se desenvolvendo há quase dois séculos.

Ocorre que o dualismo existente entre ser e dever ser (e a decisão a respeito de

qual deles o direito penal deve se aproximar), não é facilmente transitável, em termos lógicos.

KELSEN, posteriormente à KANT, distinguiu os dois universos afirmando que tal distinção é “um dado imediato da nossa consciência” e que “não pode ser mais aprofundada.”

15 É algo

de difícil descrição ou definição. Pender para um lado significaria, então, que do

conhecimento de que algo é, não se pode concluir o que deve ser. E vice-versa. Pender para o

outro, traria, igualmente, uma injustiça metodológica.

Pode-se dizer que, já desde BACON, para quem “a ciência é um empreendimento

destinado ao domínio da natureza” 16, a pura argumentação – tópica aristotélica – representou,

para muitos, um saber inseguro em seus fundamentos. Aqueles que pressupunham a natureza

como fonte de toda interpretação de mundo, consentiam que o puro discurso, desgarrado de

empirismo, era inútil e traduzia uma ciência invertebrada. Conforme este pensamento

ontológico, conhecer a natureza é fazê-la trabalhar a seu favor e, por isto, para os partidários

do conhecimento elaborado a partir do método indicado pelo universo do ser, somente o

conhecimento obtido a partir das experimentações naturais pode ser tido como verdadeiro. 17

14 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de João Vergílio Gallerani Curter. 3ª edição. São

Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 08. 15 De fato, KELSEN utiliza uma metodologia assumidamente redutora, que, para além de marcar a cultura de seu tempo, sem suas influências, o panorama jurídico seria outro. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª edição. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 06. 16 BACON, Francis. Novum organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. 2ª edição. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Coleção Os Pensadores), p. 13. 17 Tem-se, com bastante profundidade, o pensamento de NIETZSCHE a respeito do que ele chama de “vontade de verdade”, a que ele atribui a instintos negadores da vida, como o medo e a fraqueza em face do imponderável e do desconhecido. A vontade de verdade, aliás, pode ser enganadora, na medida em que é capaz de distorcer a realidade para que esta se adapte às categorias do conhecimento. Segundo o filósofo, quando o ser humano se depara com esquemas prévios e consegue adaptar a realidade (esta, cambiante e insegura), passa a viver na eterna segurança da mesmice permanente: “(...) nossa necessidade de conhecer não é justamente essa necessidade do conhecido, a vontade de, em meio a tudo o que é estranho, inabitual, duvidoso, descobrir algo que não mais nos inquiete? Não seria o instinto do medo que nos faz conhecer? Quando reencontram nas coisas, sob as coisas, por trás delas, algo que infelizmente nos é bem conhecido ou familiar, como a nossa tabuada, a

Page 12: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

16

Por outro lado, há, também, uma construção da ciência a partir de observações

carregadas de valor, que não decorrem racionalmente daquilo que é; tratando-se de uma

construção determinada, apenas, mediante uma decisão volitiva. Isto porque, uma vez que a

realidade é complexa, mutável e sujeita a acontecimentos que desnudam a rigidez das

fórmulas ontologicistas, obrigando-as a se reorganizarem, então a ciência que deve atuar

sobre ela precisa aprender a trabalhar com o complexo e com o novo. 18 No direito (e no

direito penal), se a vontade de verdade for totalitária e exclusivista, não haveria espaço para

justiça.

Assim é que se tem o seguinte panorama: para muitos, a ciência cuida apenas

daquilo que é, para outros, a ciência jamais pode se olvidar daquilo que deve ser. Aos

partidários da primeira forma de se fazer ciência, calha a sustentação de que a objetividade

científica perder-se-ia com a permissão de juízos de valor. Aos segundos partidários, em que

se tem KANT como grande nome, a ciência deve, isto sim, beneficiar-se das decisões tomadas

axiologicamente, ponderadas e escolhidas dentre os valores em questão. Isto é: apenas

mediante a utilização do juízo, é que se compreenderá a relação de causa e efeito. A causa,

segundo ele, não está na coisa em si, mas na representação; está na razão, e não nas coisas em

si.19 Há, em KANT, a razão pura, que é a razão do ser, e a razão prática, que é a razão do

dever ser, a razão da vontade. A seu respeito, a visão de NIETZSCHE:

Quando Kant diz que “o intelecto não cria suas leis a partir da natureza,

mas as prescreve a ela”, isso é plenamente verdadeiro no tocante ao conceito de natureza, que somos obrigados a associar a ela (natureza = mundo como representação, isto é, como erro), mas que é a soma de muitos erros da razão. A um mundo que não seja nossa representação, as leis dos números são inteiramente inaplicáveis: elas valem apenas no mundo dos homens.

20

Na mesma esteira, e igualmente importante na análise que se fará a respeito das

concepções dogmáticas aportadas nas teorias do delito, tem-se, também, que no fenômeno do

conhecimento defrontam-se consciência e objeto, ou sujeito e objeto. Estes dois elementos,

através de um dualismo recíproco, serão compreendidos e relacionados através do

conhecimento. A essência do conhecimento passa, assim, pela relação entre sujeito e objeto.

nossa lógica ou nosso querer e desejar, como fiam imediatamente felizes!” NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 251. 18 FEYERABEND, Paul. Adeus à razão. Tradução de Francisco M. Guimarães. Lisboa, Ed. 70, s.d., p. 12. 19 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 44. 20 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 29.

Page 13: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

17

Levando-se em consideração o caráter ontológico do objeto, têm-se duas possibilidades

distintas: o idealismo e o realismo.

Por realismo tem-se o ponto de vista epistemológico segundo o qual existem

coisas reais, independentes da consciência 21

, isto é, há a sustentação de que os objetos, tais

quais eles se apresentam na natureza, correspondem exatamente aos conteúdos perceptivos

que deles se fazem. O realismo, assim, toma para si dados extraídos das ciências da natureza,

como a física, que “pensa o mundo como sistema de substâncias que ela define de forma

puramente quantitativa.” 22

O idealismo - expressão utilizada em diversos sentidos, mas que será tratada, aqui,

apenas em seu sentido epistemológico – “equivale à concepção de que não há coisas reais,

independentes da consciência.” 23 Isto porque, “como, após a supressão das coisas reais, só

restam dois tipos de objeto, a saber, os existentes na consciência e os ideais, o idealismo deve

necessariamente considerar os pretensos objetos reais quer como objetos existentes na

consciência, quer como objetos ideais.” 24

A respeito da diferenciação entre realismo e idealismo, o exemplo de CARNAP é

eloquente: dois cientistas avistam uma montanha; um deles, “realista” diria que a montanha é

real, e traduz exatamente aquilo que suas percepções sensoriais lhe mostram; o “idealista”

diria que, da montanha, tem-se as mais diversas percepções e sobre a montanha supostamente

real, ele nada pode afirmar. 25 Tratam-se, afinal, de problemas metafísicos que, alijados da

ciência, carecem de significação, dadas suas condições pouco factíveis se não aplicadas a

alguma ciência do saber.

Em síntese, para os defensores das ciências elaboradas com base no universo

ôntico das coisas, sem precisão linguística e sem referibilidade empírica, não há ciência. E,

por outro lado, para os defensores das ciências elaboradas com base no universo axiológico

das coisas, nenhuma concepção sobre o que quer que seja pode se afastar das interpretações

valorativas, compreensíveis, unicamente, através de um método que refere o conhecimento à

apreensão espiritual dos objetos e das coisas.

21 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de João Vergílio Gallerani Curter. 3ª edição. São

Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 73. 22 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de João Vergílio Gallerani Curter. 3ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 76. 23 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de João Vergílio Gallerani Curter. 3ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 77. 24 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de João Vergílio Gallerani Curter. 3ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 81. 25 CARNAP, Rudolf. Pseudoproblemas na filosofia. 2ª edição. Tradução de Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Abril cultural, 1979, p. 158.

Page 14: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

18

A distinção, assim, passou a integrar o discurso epistemológico das ciências

jurídicas, e gerou diversas correntes de pensamento dogmático. Todas contribuíram, de certa

forma, para as reflexões que se podem fazer sobre o sistema penal de hoje. Assiste razão à

HASSEMER, quando afirma que “estes dois grandes complexos de atividades jurídico-

penais” 26

, os universos do ser e do dever ser, “deveriam ser trazidos um com o outro, em uma

relação harmoniosa, pois, com isto, o sistema jurídico-penal não se construiria nem se

ensinaria normativamente (pelo lado da lei) ou empiricamente (pelo lado da realidade) de

modo distorcido.” 27 No mesmo sentido, MUÑOZ CONDE reflete que, a respeito das duas

formas de compreensão epistemológica, “a ciência do direito pode ser incluída em ambas,

toda vez que, no afã por desentranhar seu objeto de investigação – o direito positivo -, é

necessário agregar uma valoração.” (t.n.) 28

Esta visão do direito penal, realizada ora por um modelo de saber, ora por outro,

importará, neste momento, para se delinear a posição ocupada pelo crime culposo em cada

uma das diversas Escolas da teoria do delito, a fim de que, ao final, se aperceba a respeito de

um incremento desta modalidade de crime.

1.1. O crime culposo no causalismo e finalismo: os projetos ontologicistas

Ainda que não se vislumbrasse qualquer aproximação entre dogmática penal e

política-criminal, certamente o momento ocorrido em final do século XIX e marcado, por um

lado, pela ascensão do positivismo jurídico, e por outro, pelo encantamento humano com o

racionalismo técnico-científico, deixara sua marca na doutrina por, ao menos, três décadas.

Até meados do século XVII, toda a explicação dos fenômenos mundanos dava-se

através da Igreja, o que causava uma unificação (perigosa) entre moral e ciência, moral e

política e, certamente, entre moral e direito.

Novo conteúdo epistemológico, atuante nas mais diversas áreas, surgiu exatamente

quando a crença religiosa deixou de servir de base para explicação dos fenômenos mundanos.

26 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução da 2ª ed. alemã, de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p.49. 27 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução da 2ª ed. alemã, de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p.49. 28 MUÑOZ CONDE, Francisco. La herencia de Franz von Liszt. In: Justiça e Sistema Criminal. Revista produzida pelo Grupo de Pesquisas Modernas Tendências do Sistema Criminal. V. 3 – n.5 – jul./dez. 2011, Curitiba: FAE Centro Universitário, 2009, p. 26.

Page 15: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

19

Neste momento, o homem ganha destaque no cenário político ocidental, após a ascensão da

burguesia, vivenciada no século XVIII (o século das luzes).

É quando o racionalismo cartesiano atinge seu status de fonte científica maior. Com

a substituição da vontade divina pela vontade racional – antropocentrismo-, o homem passa a

experimentar um novo papel na sociedade. Através da razão, ele pretende explicar e

compreender a natureza e a verdade das coisas. O método utilizado pelo racionalismo

cartesiano é o de observar e descrever as coisas, fazendo criar verdades tidas como absolutas e

permanentes. É um conhecimento causal que aspira a formulações de leis, à luz de

regularidades observadas, e conforme observação de SOUZA SANTOS, “assentadas no

isolamento das condições iniciais relevantes e, também, no pressuposto de que o resultado se

produzirá independentemente do lugar e do tempo em que se realizarem as condições iniciais.”

29 ANTÓNIO MANUEL HESPANHA faz uma leitura da evolução destes

paradigmas em torno do direito:

A evolução das ciências naturais, a partir dos finais do século XVIII, e a

sua elevação a modelo epistemológico criaram a convicção de que todo o saber válido se devia basear na observação das coisas, da realidade empírica (“posta”, “positiva”). (...) No campo jurídico, este movimento integrava-se harmonicamente na campanha contra a incerteza e confusão do direito tradicional, disperso, casuísta, dependente da teologia e da moral.

30

As verdades advindas das experimentações físico-naturais ganham status e

prestígio. Conforme salientado por EUSEBIO GIRONDA CABRERA, “passam a primeiro

plano a ciência e a natureza; se discursa acerca da felicidade, da virtude e da razão” (t.n.).31

As ciências naturais (da natureza, provenientes do universo do ser, do ontologicismo) foram

alçadas como modelo epistemológico e passaram a servir de base de toda e qualquer ciência,

através da observação das coisas, da realidade empírica.

O raciocínio lógico-matemático clássico volta-se à forma, não ao conteúdo. Na

ciência cartesiana, o fundamento do conhecimento deve ser lógico. Mesmo os céticos, que de

tudo duvidam, jamais poderiam duvidar de um raciocínio desenvolvido segundo uma

29 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 7ª edição. São Paulo: Cortez, 2010, p. 29. 30 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, pp. 373-374. 31 GIRONDA CABRERA, Eusebio. Teoría del Estado. Cuarta edición. La Paz: Edobol, 2006, p. 150. O catedrático da Universidad Mayor de San Andrés, fazendo clara alusão a “Do Espírito das Leis”, de Montesquieu, ressalta: “Las Leyes, en su significación más extensa, no son más que relaciones naturales derivadas de la naturaleza misma de las cosas; y en ese sentido, todos los seres tienen sus leyes, los animales tienen sus leyes, el hombre tiene sus leyes.”

Page 16: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

20

racionalidade mecânica, dada sua correção evidente. Essa necessidade encontra-se na base da

formulação da ciência moderna; DESCARTES já observara que o “encadeamento de razões”

era a forma de argumentar tipicamente lógica e racional. Sua argumentação, ademais, em

“Discurso do Método” tem pretensão de logicidade: até para falar de Deus, o filósofo

prescinde da fé. 32

O romantismo também restou prejudicado: a Lua, de inspiração romântica, torna-se

um deserto pedregoso, 33 conforme reflexão de ELIAS. O encantamento metafísico, afinal,

sucumbia, na medida em que já não se impediria a compreensão racional do mundo. Verdades

empíricas eram produzidas a partir de a prioris inquestionáveis e o argumento metafísico,

finalmente, havia sido destruído. 34

Foi este ambiente que influenciou o saber jurídico durante as primeiras décadas do

século XIX. Em outras palavras, alçadas ao âmbito do direito (e do direito penal), as

experimentações derivadas do racionalismo de cunho cartesiano (é a época da teoria da

relatividade de EISNTEIN, do evolucionismo de DARWIN e da psicanálise de FREUD)

buscariam explicar o delito, tanto quanto os acontecimentos da natureza, através de um

método empírico. 35

FÁBIO GUARAGNI também aponta a ascensão das ciências do ser como um

marco no início do século XIX:

Fica claro que uma tal forma de pensar acaba por colocar em xeque todas

as ciências culturais, dentre as quais está o direito penal, apegadas aos acordos interpessoais (jurídicos, culturais propriamente ditos, sociais, linguísticos ou outra qualquer forma de amarrá-los) que propõem como deve ser o mundo – daí a expressão ciências do dever ser. (...) E, neste exato ponto, dá-se o choque com o positivismo naturalista: não há como demonstrar a validade científica de proposições produzidas por uma ciência do dever ser.

36

32 DESCARTES tem a pretensão de demonstrar a existência de Deus através de, inclusive, considerações geométricas. DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 39-45. 33 ELIAS, Norbert. Condição humana. Considerações sobre a evolução da humanidade, por ocasião do quadragésimo aniversário do fim de uma guerra (8 de maio de 1985). Título original: Humana conditio. Tradução de Manuel Loureiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1985, p. 27. 34 DILTHEY, Wilhelm. Introducción a las ciencias del espíritu. Ensayo de una fundamentación del estudio de la sociedad y de la historia. Madrid: Alianza Editorial, 1986, p. 520. 35 O método empírico, próprio das ciências naturais, como a Física e a Biologia, consiste em observar e descrever seu objeto de estudo, e possui como “fórmula” a de que para toda causa existe um efeito. 36 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré- causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 70-71.

Page 17: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

21

Assim é que o direito penal, atentando-se a este entrelaçado científico, “adaptou-se

às regras do jogo” 37, partidarizando-se às ciências do ser, que pretendiam, através de um

saber dirigido para “coisas positivas 38 , afastar-se de quaisquer especulações filosóficas

abstratas. Em função do trabalho de todos estes cientistas do início da época moderna, buscou

o direito penal, remodular seus conceitos a partir de proposições abstraídas de verdades

empíricas.

Ocorre, então, que este racionalismo científico, alçado ao âmbito do direito, deu

origem a diversas concepções de “positivismo”. Para alguns, “positiva” deveria ser a lei, e

sobre ela deveriam pairar todas as explicações referentes ao saber jurídico (positivismo

legalista); para outros, “positivas” eram as explicações de todos os fenômenos da vida através

do modelo de causa e efeito, próprio das ciências da natureza (positivismo naturalista); ainda,

para outros, “positivos” eram todos e quaisquer conceitos jurídicos, abstratos, construídos

através de experimentações rigorosas e válidos para qualquer legislação (positivismo

conceitual). 39

Em que pese o surgimento de diversas concepções de positivismo racionalista,

todas se encontram no modelo de crença na validade dos resultados através da linguagem

científica. Caso os enunciados não se dirigissem a uma referência empírica, impedir-se-iam

sua qualificação como ciência. Os juízos de valor, ademais, não eram merecedores de atenção.

Como consequência deste modelo de conhecimento, no direito penal da segunda

metade do século XIX, vislumbram-se as concepções de crime tidas por CESARE

LOMBROSO e ENRICO FERRI. Para aquele, médico por formação, a causa do efeito crime

não é outra senão o determinismo genético, e assim defendeu um conceito de “criminoso

nato”. Já para Ferri, sociólogo e estudante de Lombroso, a causa do efeito crime permanece

previamente determinada, porém, por critérios sócio-psicológicos. Era a edificação de um

direito penal construído a partir de um modelo que pressupunha que todo acontecimento

possui uma causa pré-determinada, imutável e pré-diagnosticável.

Transportadas, finalmente, estas condições ao âmbito de estudo do delito, FRANZ

VON LISZT, complementado, depois, por ERNST BELING 40 concluirá ser a conduta

humana, identificável, para a teoria do delito, como o primeiro substrato analítico do crime,

37 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré- causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 71. 38 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 374. 39 DELACAMPGNE, Christian. História da Filosofia no século XX. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp. 11-27. 40 Os estudos de Von Liszt, complementados posteriormente por Beling dariam luz ao que se costumou denominar “sistema Liszt-Beling”, que fora válido no Tribunal do Reich.

Page 18: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

22

“um movimento corporal voluntário capaz de causar modificação/resultado no mundo

exterior”. (t.n.) 41 Em outras palavras, tem-se que, dogmaticamente, e como consequência de

um pensamento positivista naturalista próprio de sua época, conduta humana (ação) era

qualquer movimento físico voluntário, modificativo do meio exterior, enquanto a omissão se

conceituava como a ausência de tal movimento. Havia uma perfeita simbiose entre o discurso

penal e o paradigma cartesiano naquele espaço-tempo.

O estudo da teoria do delito, assim como o de todos os âmbitos da vida cuja

pretensão fosse ser “ciência”, foi reduzido à relação (típica das ciências físicas) de causa e

efeito. E, novamente, faz-se presente a lição de LISZT, de que ação é o fato que “repousa

sobre a vontade humana, a mudança do mundo exterior referível à vontade do homem. São

dois os elementos que compõem a ideia de ação, e, portanto, de crime: ato de vontade e

resultado”. 42

O apego lisztiano ao universo ôntico das coisas fez com que concebesse o direito

penal a par da política criminal, barreira esta que fora, posteriormente, derrubada por CLAUS

ROXIN 43 . O professor da Universidade alemã de Bonn concebia a política criminal

conflituosa com o direito penal, que, para ele, era a “Carta Magna do delinquente”. 44

Negava-se, no sistema teórico lisztiano, a autodeterminação do homem, na medida

em que se acreditava que ele estava, desde seu nascimento (por suas condições físico-

genéticas) ou por suas condições sociais, determinado a praticar delitos.45 O determinismo

psicológico fundava a responsabilidade penal e, por isto mesmo, LISZT defendia uma teoria

da pena fundada na prevenção especial - seu fim terapêutico sobre o próprio delinquente: “a

pena é, segundo o direito vigente, o mal que o juiz penal inflige ao delinquente, tendo como

causa a prática de um delito”. (t.n.) 46

41 LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. Tomo II. Traducão da 20ªedição alemã por Luis Jimenez de Asua. 4ª edición. Madrid: Editorial Reus, 1999, p. 297. 42 LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. Tomo II. Tradução da 20ª edição alemã por Luis Jimenez de Asua. 4ª edición. Madrid: Editorial Reus, 1999, p. 183. 43 A máxima lisztiana de que o “direito penal é a barreira intransponível da política criminal” será rompida, mais tarde, por ROXIN, através dos estudos de política-criminal quiçá inaugurados com a obra: ROXIN, Claus. Política criminal e Sistema Jurídico Penal. Tradução de Luiz Greco. Rio de Janeiro e São Paulo: Renovar, 2000, p. 01. 44 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 224. 45 ROXIN bem observa que LISZT “ofereceu maior possibilidade de em conta a personalidade do autor na medição da pena.” E, efetivamente, deu ensejo a um “direito penal de autor”. ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego- Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 178. 46 LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. Tomo II. Tradução da 20ª edição alemã por Luis Jimenez de Asua. 4ª edición. Madrid: Editorial Reus, 1999, p. 197.

Page 19: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

23

Trespassada esta estrutura fundada na razão científica para o âmbito da teoria do

delito - através do causal-naturalismo - tem-se que, àquela concepção de ação (inervação

muscular causadora de efeito no mundo exterior), agregavam-se os substratos da tipicidade

(enquanto correspondência da conduta a uma previsão legal), ilicitude (enquanto violação do

ordenamento jurídico em geral) e culpabilidade 47 . Deve-se ressaltar que a tipicidade era

entendida, naquele momento, como um tipo avalorado que, através do fenômeno da

observação e da descrição, subsumia-se em uma relação de causa e efeito, isto é, o tipo penal

era puramente objetivo, entendido como proibição da causação de um resultado; da mesma

forma, a culpabilidade, ainda que abarcasse o conteúdo subjetivo do delito (dolo e culpa), era

igualmente carente de qualquer valoração, pois se configurava no mesmo binômio

observação-descrição do estado mental do agente.

Assim, por exemplo, tem-se conduta humana ensejadora de tipicidade culposa

quando A, conduzindo seu veículo em alta velocidade (causa), atropela B (efeito), ocasião em

que “o processo de imputação de responsabilidade ao motorista estaria fundamentado pelo

fato de haver causado o atropelamento e a consequente morte ou lesão do pedestre (esquema

causal)”. 48

Para o sistema desenvolvido por LISZT, a estrutura do delito era bipartida,

possuindo um lado objetivo-interno (representado pela antijuridicidade), e um lado subjetivo-

externo (representado pela culpabilidade).

Assiste razão à ROXIN, quando analisa que “o fato de se afirmar que o injusto seria

algo objetivo e a culpabilidade algo subjetivo trazia consigo uma certa evidência também para

o senso comum.” 49 Não por outra razão, este sistema, chamado, também, de “clássico”, ainda

é ensinado e adotado em diversos países.

Segundo a teoria causal-naturalista, então, a manifestação da vontade relacionava-

se com o resultado da seguinte maneira: (i) objetivamente, quando o resultado era causado

(ação), ou não impedido pela manifestação de vontade (omissão) 50 ; (ii) subjetivamente,

47 BUSATO, Paulo César. Ação e omissão. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 16. 48 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 04. 49 ROXIN, Claus. Reflexões sobre a construção sistemática do direito penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. V.18, n.82, jan./fev.2010, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 27. 50 Cumpre ressaltar que, num primeiro momento, o conceito de conduta adotado por LISZT subsumia-se a um “movimento corpóreo voluntário causador de modificação no mundo exterior”, conceito este que não se compatibilizava com a hipótese de omissão, o que acabou por gerar bastante descrédito e críticas pela doutrina. LISZT, então, procurando uma saída, agregou ao conceito de conduta humana, para além da causação, a “não evitação de uma modificação no mundo exterior” ou, ainda, “a falta de ação ou omissão voluntária”. LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. Tomo II. Tradução da 20ª edição alemã por Luis Jimenez de Asua. 4ª

Page 20: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

24

quando, no momento da manifestação de vontade, o agente teria previsto, ou podido prever o

resultado, ou em outras palavras, quando culpavelmente causou ou não impediu o resultado

danoso. Vê-se, então, que os conceitos de dolo e culpa se encontram, exatamente, na

culpabilidade. 51

Em LISZT, o crime era entendido como “conduta antijurídica, culpável e

punível”52

, distinguindo-se do ilícito civil através da punibilidade. Foi com BELING, em

1906, que se reestruturou a ideia de tatbestand, que de totalidade do delito, passou a traduzir,

tão-somente, um dos elementos constitutivos do crime. Não por outra razão, considera-se

BELING o “pai do tipo penal”. A partir disso, o sistema analítico escalona o crime como

“conduta humana típica, antijurídica e culpável” 53, restando íntegra, entretanto, a bipartição

objetivo-subjetiva.

Situada a culpa no campo da culpabilidade54 (lado subjetivo do delito), distinguia-

se esta do dolo conquanto constituía, nesse sistema, uma “forma menor de culpabilidade, (...)

menos importante, em que a responsabilidade deriva tão-somente de uma relação psicológica

superficial, representada, segundo a tese da responsabilidade subjetiva, pela previsibilidade do

evento.”55 LISZT conceitua a culpa como sendo “a não previsão do resultado previsível no

momento em que teve lugar a manifestação de vontade” (t.n.)56

Nota-se, neste contexto, severa dificuldade em se enxergar qualquer conteúdo

psicológico no crime culposo, que fosse capaz de ligar o agente ao resultado ocorrido. Os

critérios impostos a uma responsabilização por culpa, de (i) consciência do resultado, pelo

agente, ainda que não desejado e (ii) possibilidade de consciência, são rasos e de difícil

edição. Madrid: Editorial Reus, 1999, p. 280. Certo é, porém, que este “novo” conceito causalista de ação acabou por quebrar com a sua própria natureza, uma vez que se se tem um “deixar de fazer algo” é porque “algo” se esperava que fizesse, i.e., omitir-se em direito é omitir-se de um dever (garante, mundo do dever-ser, do valor normativo), o que entrava em choque com a teoria causal-naturalista. 51 LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. Tomo II. Tradução da 20ª edição alemã por Luis Jimenez de Asua. 4ª edição. Madrid: Editorial Reus, 1999, p. 302. 52 LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. Tomo II. Tradução da 20ª edição alemã por Luis Jimenez de Asua. 4ª edição. Madrid: Editorial Reus, 1999, p. 302. 53 BELING, Ernst Von. Esquema de derecho penal. La doctrina del delicto-tipo. Tradução de Sebastian Soler. 11ª edição alemã. Buenos Aires: Depalma, 1944, p. 61. 54 LISZT se refere aos conceitos de dolo e culpa afastados do de antijuridicidade: “Los dos conceptos de dolo y culpa se refieren inmediatamente a la idea de acto, y nada tienen que ver, em sí mismos, com el carácter antijurídico de éste. Pero cuando ya la expresión de negligencia contiene en si una cierta apreciación del acto, entonces se encuentran modificados esos dos conceptos, en razón a que, según el Derecho vigente, deben ser referidos al delito como acto contrario al Derecho. Por conseguiente, esta materia sólo puede ser tratada despúes del estudio de lo antijurídico.” LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. Tomo II. Tradução da 20ª edição alemã por Luis Jimenez de Asua. 4ª edición. Madrid: Editorial Reus, 1999, p. 321. 55 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 28. 56 LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. Tomo II. Tradução da 20ª edição alemã por Luis Jimenez de Asua. 4ª edição. Madrid: Editorial Reus, 1999, p.430.

Page 21: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

25

constatação, o que é ainda agravado pelo fato de que a grande maioria dos crimes culposos se

dá através de culpa inconsciente. JUAREZ TAVARES atesta a dificuldade de adequação

dogmática da culpa, enquanto forma de culpabilidade, no causalismo:

A posição sistemática assumida pela negligência, como forma de

culpabilidade, implica, demais, para os adeptos da concepção psicológica de culpabilidade, uma presunção prática de vinculação subjetiva entre agente e fato, quer dizer, uma vez inserida na culpabilidade, presume-se que subsiste na negligência um vínculo psicológico entre agente e fato, embora, empiricamente, isto não pudesse ser demonstrado na chamada culpa inconsciente.

57

Exaurida a análise da primeira etapa do delito, conforme o sistema causal, tem-se

um movimento corporal, definido fisicamente como inervação muscular realizadora de um

resultado causal proibido, contrário ao direito. A conduta, neste sistema, era vazia de vontade,

exaurindo-se na simples produção do resultado. Daí é que, para além do causalismo não estar

apto a responder às situações de omissões (ex nihilo nihil fit) 58, ou às de delitos de mera

atividade, queda- se, igualmente, “cego”

59 quanto às condutas praticadas mediante culpa,

restando claro que a “questão da negligência fica adstrita à condição pessoal de

responsabilidade.” 60

Da lição de que o crime culposo é tido, nos clássicos, “tanto como a ‘não previsão

do resultado previsível’, quanto também a ‘falta de precaução’ ou o ‘desprezo do cuidado

requerido pela ordem jurídica e exigido pelo estado das circunstâncias’”,61 observa-se que,

embora a culpa pertencesse à esfera subjetiva-interna do delito (culpabilidade), passa a

possuir, também, um elemento de cunho normativo, qual seja, a desobediência (contrariedade)

a um dever de cuidado.

O crime culposo, assim, não se exauria, no causalismo, com a configuração do

elemento psicológico (a previsibilidade do resultado); fez-se necessária a “criação” de um

elemento volitivo, localizado ainda na primeira fase do delito (fase objetiva). BINDING, na

57 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen

Juris, 2009, p. 29. 58 Ainda que, posteriormente, LISZT busque resolver o problema da omissão agregando ao conceito de ação a expressão “não evita” (movimento corpóreo voluntário que causa, ou “não evita”, modificação no mundo exterior). 59 Vem daí a célebre afirmação de HANS WELZEL, para quem “o causalismo é cego; o finalismo, vidente”. WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Tradução de Juan Bastos Ramírez e Sergio Yáñez Pérez. 4ª edição. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1993, p. 40. 60 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 30. 61 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 31.

Page 22: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

26

tentativa de melhor fundamentar a imprudência, defendeu que “a ação culposa deve ter sido

querida em sua precedência ou momento inicial” 62. Este recurso dogmático, aliás, já fora

utilizado por HEGEL (em um período pré-causalista) 63 , que “descobre a ação como

exteriorização de uma vontade moral” 64, e também por CARRARA e FEUERBACH, “que se

esforçaram por encontrar um momento subjetivo na negligência, vendo-a na consciência e

vontade acerca das condições, tais quais, como real possibilidade, deriva o resultado

antijurídico”. 65

Assim, vê-se que a culpa, para os causalistas, “é tomada tanto como elemento

psicológico do delito, quanto normativo, embora integrante da culpabilidade psicológica.” 66

Isto porque, a partir do momento em que se trata a culpabilidade também sob o aspecto

normativo (juízo normativo de censura, atrelado, pois, ao universo do dever ser), e não mais

como mero elemento subjetivo do delito (ligação psicológica entre o agente e o fato), passa a

culpa a ser efetivamente investigada através do critério da não observância ao cuidado

exigido. QUINTERO OLIVARES bem leciona que a imprudência, neste sistema dogmático,

traduzia-se na mera “provocação de um resultado que o autor poderia prever e evitar”. (t.n.) 67

Fato é que este artificialismo criado a posteriori rompia com a natureza

metodológica naturalista do causalismo, isto porque, para reconhecer se determinado agente

agiu contrariamente a um dever de cuidado, é imprescindível saber qual sua finalidade no

momento da ação (movimento corpóreo voluntário).

Apesar das críticas, mais de 90 anos após sua morte, a influência da corrente

filosófica lisztiana sobre a ciência do direito penal é considerável e, conforme reflexão de

MUÑOZ CONDE, “ainda traz consigo proveitosos impulsos, já que subdividiu a investigação

62 Apud TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 32. 63 Sobre esta fase pré-causalista da ação, vale dizer, anterior a um estudo autônomo da conduta humana em direito penal, ressalta GUARAGNI: “verdadeiramente, a teoria da ação de linha hegeliana não foi mais do que uma teoria da imputação. Portanto, não visou definir ação. Quis – sim definir como se imputavam acontecimento a alguém.” GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 63 64 GUARAGNI, Fábio. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré- causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 65. 65 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 31. 66 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 30. 67 QUINTERO OLIVARES, Gonzalo. Parte general del Derecho penal. 3ª ed., Navarra: Aranzadi, 2005, p. 344.

Page 23: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

27

do delito em planos diferentes de idêntica classificação: o causal-explicativo (criminologia),

por um lado, e o compreensivo-axiológico (dogmática), por outro.” (t.n.) 68

As críticas ao causalismo residiam, então, na dificuldade de reconhecimento da

“previsibilidade” do acontecimento danoso ou no artificialismo normativo que em nada se

aproximava dos fins estabelecidos pelos causalistas.

Habitava, aí, toda a problemática tratada posteriormente por WELZEL. Aludindo

ao artificialismo da teoria causal em sede de crimes culposos, GUARAGNI ressalta:

“Somente a finalidade da conduta define quais os deveres de cuidado que a devem cercar.

Sem esta definição, restava inviável definir o padrão de comportamento exigido, para cotejá-

lo com a conduta realizada, (...) em tema de crimes culposos.” 69

HANS WELZEL prosseguiu construindo uma teoria do delito baseada na lógica da

conduta a partir de dados ontológicos. O professor de Bonn, ancorado em dois modelos

fenomenológicos e ontológicos do conhecimento - a doutrina da ação de NICOLAI

HARTMANN e a Psicologia do Pensamento de RICHARD HÖNIGSWALD – recriou

diversos conceitos da teoria do delito. É lição sua:

O direito natural não pode encontrar-se fora ou acima do direito positivo,

pois que está (como limite próprio) dentro dele; para vê-lo, basta ter a vista livre. Não chegamos ao direito natural legítimo quando projetamos nossos desejos em um reino ideal, mas quando, através de árduo trabalho, investigamos as realidades lógico-objetivas, que como um tecido atravessam todo o direito positivo, dando-lhe um ponto de apoio firme, livre de toda arbitrariedade.

70

Sobressalta a influência filosófica de HARTMANN, quando se extrai de sua obra

certos valores profundamente arraigados na ontologia das coisas. Segundo este filósofo

alemão, o fenômeno do conhecimento não consegue dar conta de sua própria realidade, nem

da realidade em que vivemos. Os acontecimentos do mundo inserem-se numa ordem objetiva

da vida como dado universal. E esta ordem tem um ser em si real, como uma unidade em um

fenômeno total. 71

68 MUÑOZ CONDE, Francisco. La herencia de Franz von Liszt. In: Revista Justiça e Sistema criminal. V. 1,

n. 1, jul/dez.2009. Curitiba: FAE Centro Universitário, 2009, p. 26. 69 GUARAGNI, Fábio. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré- causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 90-91. 70 WELZEL, Hans. Más allá del Derecho natural y del Positivismo jurídico. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, 1962, p. 41. 71 HARTMANN, Nicolai. Ontología I. Fundamentos. Tradução de José Gaos. México: Fondo de cultura económica, 1954, p. 242.

Page 24: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

28

Pela teoria finalista de WELZEL, ação é um fazer final, uma conduta dirigida a um

fim, ou como o próprio professor de Bonn a nomeia, uma “intencionalidade de sentido”. 72

WELZEL adverte que sua teoria é, antes de tudo, uma teoria da ação, representada por uma

realidade ontológica prévia e condicionante de todos os demais substratos do crime. Não por

outra razão, diz-se que a elaboração da teoria finalista recebeu clara influência da teoria da

ação desenvolvida por SAMUEL VON PUFFENDORF, que por sua vez, possui raízes em

Aristóteles. 73

Chega-se, com WELZEL, a proposições estabelecidas através de uma teoria realista

do conhecimento, cujo cerne é a preexistência do objeto (matéria do mundo) ao

conhecimento. 74 A realidade não é determinada ou modificada pelo homem, mas construída a

partir de certos axiomas, princípios e noções fundamentais que se traduzirão em seu objeto de

estudo.75

Estipulada a ordem objeto-ideia (seu inverso ideia-objeto é obra da teoria idealista

do conhecimento), “enquanto não se tenha o conhecimento, não se terá a ideia”. (t.n.) 76

Transportada para o direito penal, e para o conceito welzeniano finalista de ação, este objeto

traduz-se exatamente na conduta humana, o primeiro substrato analítico do crime. A partir

deste objeto (conduta humana) extraem-se as valorações (ideia), tais como a ilicitude e a

culpa.

WELZEL, assim, discordando de LISZT quanto ao conceito de conduta humana,

firmou o entendimento de que:

Todas as normas morais e jurídicas só podem referir-se a atos, os quais são

algo distinto de meros processos naturais causais, distinguindo-se destes pelo momento da finalidade. A estrutura da ação humana é o pressuposto de possibilidade para valorações, as quais, se hão de ter sentido, só podem ser valorações de uma ação, tais como, por exemplo, a ilicitude e a culpa. (t.n.)

77

72 WELZEL, Hans. ¿Un malentendido sin solución? (Acerca de la interpretación de la teoría finalista). In: Estudios de Filosofía del Derecho y Derecho Penal. Colección Maestros del Derecho Penal. Nº 14. Buenos Aires: Editorial B de F, 2004, p. 01. 73 BUSATO, Paulo César. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 262. 74 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal. Parte general. Buenos Aires: Ediar, 1996, p. 337. 75 VILLEY, Michel. Filosofia do Direito: definições e fins do direito: os meios do direito. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 14. 76 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal. Parte general. Buenos Aires: Ediar, 1996, p. 337. 77 WELZEL, Hans. Introducción a la Filosofia del Derecho: derecho natural y justicia material. Tradução de Felipe Gonzáles Vicén. 4ª ed. Alemâ. 2ª ed. Madrid: Aguilar, 1971, p. 257.

Page 25: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

29

A origem aristotélica do pensamento de WELZEL é claramente observada quando

o penalista e filósofo alemão sustenta que, para Aristóteles:

Todo devir tem lugar por causa do fim, e por isso este é, em última análise,

também a causa atuante do devir. Não há acontecer causal e cego, puramente mecânico, mas todo acontecer está orientado a um fim, é acontecer teleológico. O fim é a natureza do objeto, que se atualiza no processo do devir. Ideia (essência), forma, causa atuante, fim e natureza constituem uma unidade no sistema aristotélico. (t.n.)

78

Esta vontade, expressa no fazer final do agente, encontra razão de ser na tipicidade,

e não mais na culpabilidade, como no modelo anterior. Este “giro” dogmático do finalismo

fez-se sentir nos substratos da tipicidade – entendida como a proibição da conduta (fazer

guiado por um fim) nas formas dolosa e culposa; o tipo passa a ser concebido como tipo

complexo, composto de tipo objetivo e tipo subjetivo - e da culpabilidade, entendida, neste

momento, como a reprovabilidade na formação da vontade de quem atua; expurgava-se-lhe

qualquer aspecto psicológico, e ela passa a ser estruturada a partir da imputabilidade, da

consciência potencial da ilicitude e da exigibilidade de conduta conforme o direito.

O problema que se afigura nesta linha metodológica reside no fato de que

WELZEL propôs um conceito de ação inchado, que abarcasse as figuras do dolo, da culpa, da

ação e da omissão. PAULO BUSATO delineou a questão: “Enquanto o dolo para Welzel

seguia sendo uma concepção ontológica, ficava clara sua incompatibilidade com uma

imprudência que é específica e irredutivelmente normativa.” 79

Isto porque, na lição de WELZEL, é imprescindível, além do pressuposto de que no

tipo de injusto do delito culposo haja uma lesão a bens jurídicos ou, ao menos, um perigo de

lesão a eles, o desvalor de ação. O penalista alemão, através de algum malabarismo

metodológico, explicita sobre a finalidade da ação nos crimes culposos:

O desvalor específico de ação dos delitos culposos, não radica na direção

finalista que o autor tenha realmente empregado (limpar a escopeta na hipótese de ter, culposamente, lesionado mortalmente um terceiro), mas na direção final imposta, que vai mais além, e que o autor não imprimiu à sua atividade. (...) O desvalor de ação dos tipos culposos consiste na omissão

78 WELZEL, Hans. Introducción a la Filosofia del Derecho: derecho natural y justicia material. Tradução de Felipe Gonzáles Vicén. 4ª ed. Alemâ. 2ª ed. Madrid: Aguilar, 1971, p. 258. 79 BUSATO, Paulo César. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 263.

Page 26: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

30

de uma direção final melhor, imposto pelo direito com vistas a evitar lesões a bens jurídicos. (t.n.)

80

Assim, no finalismo - e só no finalismo - “a negligência passa a constituir uma

modalidade especial de delito, com elementos próprios do tipo de injusto e da culpabilidade e estruturado à parte do delito doloso.”

81 Isto porque, embora ambos caracterizassem puro

desvalor de ação82

, com secundarização do desvalor de resultado83

, o crime culposo não se

subordina aos mesmos princípios do crime doloso, pois, como observa TAVARES, “a

característica básica da postura finalista é tratar a negligência segundo a condução da

atividade humana estabelecida no tipo de injusto, quer tendo por base o objeto de um juízo de

valor, quer o desvio de um processo causal ou defeito de congruência.” 84

MAURACH, citado por TAVARES, entende, de maneira acertada, que a diferença

entre os crimes culposo e doloso “radica no tipo subjetivo, ou seja, no componente subjetivo

do tipo de injusto.” 85 Exatamente a partir desta proposição da escola finalista, o tipo de

injusto do delito culposo passou a ser chamado de incongruente, enquanto o do delito doloso,

via de regra, é congruente, na medida em que se estabeleça (ou não) congruência entre as

partes objetiva e subjetiva. 86

Ainda que agregada “vidência” ao conceito de conduta humana em WELZEL,

preenchendo-se o vazio da voluntariedade na teoria causal-naturalista e exigindo-se um

desvalor de ação, persistia, quanto aos crimes culposos, uma contradição epistemológica. Isto

porque, se o dolo, para o finalismo, é a finalidade atual, a culpa ou imprudência é a

80 WELZEL, Hans. Derecho Penal: parte general. Traducão de Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956, pp. 136-137. 81 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 41. 82 Isto fica bem claro já no prólogo de sua obra “O novo sistema jurídico-penal”. WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal. Uma introdução à doutrina da ação finalista. Tradução de Luiz Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 83 GUARAGNI bem elucida a correlação entre a missão do direito penal em WELZEL e seu conceito ôntico de conduta: “Se o homem é pessoa responsável, dentro de uma ordem social que o obriga enquanto direito – o que implica tratá-lo como sujeito – e não por meio de coação, sua conduta deverá ser punida quando simbolizar ausência de responsabilidade em face de um direito existente (...) Diante deste quadro, o homem responsável, tratado como sujeito, deve contraprestações, no sentido de guiar-se pela pauta jurídica de valores atribuídos às condutas ontologicamente consideradas. Quando sua conduta contraria a pauta de valores, merece punição de per si, tornando-se secundário o que resulta da ação (desvalor de resultado).” GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós- finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, pp. 140-141. 84 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p.42. 85 Apud TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 41. 86 Sobre a “teoria da congruência”, tratada pela mais vasta manualística penal brasileira, tem-se: GOMES, Luiz Flávio e de MOLINA, Antonio García-Pablos. Direito Penal: parte geral. Coord. Luiz Flávio Gomes. V. 2.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p.375.

Page 27: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

31

“finalidade em relação à condução insuficiente (e evitável) para o cuidado requerido à ação

que conduz a uma lesão de bem jurídico” 87, ou, nos dizeres de WELZEL, o crime culposo era

a “causação que era evitável mediante uma atividade final” 88.

Evidente o paradoxo metodológico. Se o elemento básico da ideia de ação é um

fazer final, sua adequação com o delito culposo dava-se, em WELZEL, com uma noção de

atividade final idealizada, ou seja, uma atividade final que fosse capaz de evitar a causação de

um resultado danoso, uma atividade final de perfil ideal, enfim. E este perfil ideal só seria

alcançado na hipótese de a condução dos fatores causais dar-se de forma correta. Agregada à

ideia de observância ideal dos cursos causais dirigidos à finalidade potencial (por exemplo,

dirigir com cautela até o destino final, que é chegar em casa após o trabalho), encontram-se os

padrões de conduta adequados a cada fim potencial (no exemplo, as regras de trânsito).

Acabava, assim, o finalismo, por se afastar de seu plano ontologicista, aproximando-se de um

plano normativo-axiológico, uma vez que o estabelecimento de padrões de comportamento

ideal firma-se a esta última categoria conceitual.

Optaram os finalistas, então, pelo abandono da ideia de finalidade potencial – que

fazia ruir sua ligação com o universo ôntico das coisas. PAULO BUSATO trata da

reformulação conceitual de WELZEL:

Isto levou à reformulação conceitual de Welzel, a partir de um artigo

seguido de desenvolvimentos e aprofundamentos em outras publicações e edições de seu Tratado onde admitia que as lesões infligidas aos bens jurídicos nos delitos imprudente não são executadas finalisticamente, e sim produzidas de modo puramente causal. Ainda assim, sustentava que do mesmo modo que em face dos delitos dolosos, nos casos de imprudência existe um ‘injusto pessoal’, representado por um desvalor que incide sobre a própria ação e que consiste na omissão da direção final ulterior à qual o autor estava obrigado pelo direito.

89

Chegou-se, com WERNER NIESE 90 , à seguinte transformação metodológica:

concluiu-se que a conduta culposa, assim como a dolosa, traduz-se em um fazer guiado por

87 ZIELISNKI, Diethart. Disvalor de acción y disvalor de resultado en el concepto de ilícito: análisis de la estructura de la fundamentación y exclusión del ilícito. Tradução de Marcelo Sancinetti. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 1990, p. 78. 88 WELZEL, Hans. Derecho Penal: parte general. Traducão de Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956, p. 139. 89 BUSATO, Paulo César. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 264. 90 Apud ROXIN, Claus. Derecho penal. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Parte general. Trad. Diego Manuel Luzón-Peçna, Miguel Dias y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2ª ed. alemã. Madrid: Civitas, 1997, p. 241.

Page 28: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

32

um fim (aplicando-se a teoria da antecipação biocibernética do resultado 91

). Assim, uma

enfermeira que manuseia veneno em seu paciente, acreditando, porém, que se tratava de

remédio que iria curá-lo, não realizou uma ação final de matar, mas uma ação final de aplicar

remédio a paciente, recaindo, porém, em mau uso dos meios para chegar ao fim. Prioriza, o

legislador, a má execução dos meios no alcance do fim (ou, ainda, a escolha de meios

inadequados), quando configura este mau uso a matéria de proibição dos crimes culposos. Isto

porque, em regra, o crime culposo é um crime material, que exige resultado naturalístico

(modificação no mundo exterior). 92

WELZEL, encampando as ideias de NIESE, passou a conceber, então, que o

critério diferenciador do crime culposo não residia no resultado, através da ideia de finalidade

potencial, mas no modo de execução da conduta, reconhecendo-se, desta forma, uma

finalidade na ação. 93

Assim, de um conceito de finalidade potencial, admitido durante certo tempo por

WELZEL, em contradição com a base ontológica fenomenológica do finalismo, passou-se a

conceber, como primordial para a existência de uma ação culposa punível, a escolha dos

meios na consecução dos fins. E o penalista alemão vai além, ao ressaltar a necessidade de se

adotarem cuidados especiais na execução de atividades incertas e perigosas:

Em atividades especialmente difíceis (que supõem perigo para a vida), que demandariam um especialista particularmente capacitado para sua adequada execução, deve-se atentar não apenas para uma média observância de cuidados, mas para a observância máxima de cuidados objetivos.

94

Ora, é certo que no crime culposo – assim como no doloso – tem-se uma vontade

dirigida a um fim, porém na modalidade culposa de crime há uma perda no controle causal

91 Ressalte-se que o conceito de ação finalista desenvolvido por WELZEL deu margem à elaboração de uma

“teoria” denominada de “antecipação biocibernética do resultado”, segundo a qual, com a proposição de um fim, selecionam-se os meios para sua obtenção que desencadeará a causalidade em direção à produção do resultado. Para os crimes culposos, tem-se o seguinte acontecimento “cibernético”, conforme se extrai dos ensinamentos de WIENER: “O dirigir o objetivo a uma direção refere-se ao conteúdo mais importante da ação, mas não o único: o objetivo pode ser totalmente irrelevante (do ponto de vista jurídico), embora os meios de governar e dirigir a ação sejam sempre juridicamente relevantes, quando se dão de modo inadequado e pouco cuidadoso, como no caso da ação culposa.” Apud JAÉN VALLEJO, Manuel. El concepto de acción en la dogmática penal. Madrid: Colex, 1994, p. 45. 92 Há, porém, exceções, principalmente na legislação extravagante, que vem lançando mão, cada vez em maior número, da utilização da modalidade culposa de crime. Como exemplo, veja-se a Lei 8.137/1990, art. 7º, II, III e IX c/c parágrafo único e a Lei 11.343/2006, art. 38. 93 WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Tradução de Juan Bustos Ramírez e Sergio Yáñez Pérez. 11ª edição alemã. 4ª edição. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1993, pp. 155-156. 94 WELZEL, Hans. Derecho Penal: parte general. Traducão de Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956, p. 144.

Page 29: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

33

das coisas, ou um desgoverno do curso causal. Há uma “desvaloração do fazer final que se faz no plano da tipicidade” 95 e, por isto mesmo, deslocou-se a culpa – e o dolo (substratos

pertencentes à culpabilidade no sistema causal-naturalista) - para a tipicidade, entendida como

a proibição de uma conduta, seja na forma de dolo ou culpa. 96

Sem dúvida, o aperfeiçoamento do complexo estudo da teoria do delito deve-se, em

grande parte, ao estudo empreendido por WELZEL e, não por outra razão, na atualidade,

muitos autores partidarizam-se pelo esquema finalista, ainda que não adotem totalmente a

teoria do penalista alemão. JUAREZ TAVARES elucida a importância da teoria finalista para

a dogmática penal e enfatiza sua contribuição, especialmente em sede de crimes culposos:

A maior contribuição da teoria finalista reside no setor dos fatos culposos,

precisamente, na metodologia empregada, de deslocar-lhe o estudo do âmbito da culpabilidade para situá-lo dentro de todo o complexo da teoria do delito. (...) O que se pretende com a teoria da ação final não é proporcionar tipificação do delito culposo, pois tal pode também ser feito com a teoria causal. O objetivo político-criminal do finalismo é estabelecer um fundamento ontológico, ao qual se devam subordinar todas as formas de atividade humana, justamente por ser esse fundamento a generalização concreta da conduta humana, realizada por meio da redução de seus elementos mais gerais.

97

De outra banda, INGEBORG PUPPE, catedrática na Universidade de Bonn,

também assevera que a comprovação de que o elemento central da culpa era elemento do

injusto, deu-se com WELZEL:

Tal posição foi promovida de modo decisivo pela teoria finalista da ação, que partia da ideia segundo a qual a principal diferença entre a ação humana e a causalidade natural é ser a primeira dirigida a um fim. O decisivo é que já a plasmação do injusto em diversos tipos distingue a causação dolosa de resultados injustos da causação culposa. Por exemplo, o homicídio doloso tem uma qualidade de injusto diversa da do culposo.

98

Assim é que, malgrado os pontos que devam ser superados (e o foram,

posteriormente, através das teorias pós-finalistas de cunho funcionalista), não se deve fechar

os olhos à insuperável contribuição dogmática imposta pelo finalismo.

95 GUARAGNI, Fábio. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-

causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 177. 96 Ressalte-se que, no finalismo, o desvalor de ação dos crimes culposos recai não sobre o fim – o que ocorre no crime doloso-, mas sobre o mau uso dos meios (ou escolha dos meios) para chegar ao fim. 97 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, pp. 71 e 73. 98 PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Tradução Luís Greco. Barueri, SP: Manole, 2004, pp. 4-5.

Page 30: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

34

1.2. O neokantismo como ruptura com o ontologicismo

Em que pese as inúmeras reviravoltas e “criações” dogmáticas estabelecidas pelo

sistema Liszt-Beling, sempre com vistas a não se afastar do que a realidade estabelecia,

transformou-se, este sistema teórico de delito, em “um invento que nada tinha que ver com a

realidade da ação”. 99 O apego, do causalismo, ao mundo do ser era onde residia a falha que

desencadearia a formação de uma nova Escola Filosófico-Jurídica.

Entre o causalismo e o finalismo, tem-se um período, talvez a “primeira tentativa

filosófica de superação do paradigma positivista e normativista a servir de base para o direito

penal” 100

, denominado “neokantiano” ou “neokantista” ou, ainda, “neoclássico”, exatamente

pela experiência de resgate à separação estabelecida por KANT 101 entre o mundo do ser e do

dever ser. Trata-se, talvez não tanto de uma teoria do delito, mas de uma Escola de Filosofia

do Direito, representada pelas Escolas de Baden e de Marburgo, ambas alemãs.

Chega o momento em que, para diversos filósofos e epistemólogos, o mundo

lógico-metafísico da verdade deixava de representar um porto seguro para as elucubrações

teóricas, e o mundo das manifestações jurídicas acompanham este contexto, em que se

intentava refutar a metalinguagem científica. Os conceitos jurídicos, sempre idênticos e

universais a quaisquer realidades, intentavam, neste momento, deixar para trás os “conceitos-

múmias” de que tratara NIETZSCHE: as normas jurídicas sempre vêm a ser a todo momento

diferentes – quem o impedirá? 102

Após a perda de credibilidade das ciências do espírito, ou do dever ser, em meados

do século XIX, fazendo com que as ciências do ser servissem de base para o paradigma

causal-naturalista do sistema Liszt-Beling, houve uma fase exatamente oposta. Observaram,

diversos jusfilósofos e penalistas da segunda metade do século XIX até meados de 1920, que

99 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal. Parte general. Buenos Aires: Ediar, 1996, p. 350. 100 BUSATO, Paulo. Direito Penal e Ação Significativa: uma análise da função negativa do conceito de ação em Direito Penal a partir da Filosofia da Linguagem. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 10. 101 Nesta fase, encontra-se em declínio a chamada razão instrumental, o positivismo exagerado que deixe de levar em conta a imensurabilidade do conhecimento, da razão prática. Em outras palavras, a razão prática acaba por matematizar o conhecimento, valendo-se de uma forma de pensamento calculante. Uma ciência, como o direito penal, nestes moldes, fica impedida de se manifestar sobre aspectos do real que não aceitem explicação por uma racionalidade lógica ou técnica. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003. 102 Tem-se, no filósofo, a seguinte passagem: “Vocês me perguntam o que é idiossincrasia nos filósofos? (...) Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio à noção mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam fazer uma honra a uma coisa quando as des-historicizam, sob a perspectiva da eternidade, quando fazem dela uma múmia. Tudo o que os filósofos manejaram, por milênios, foram conceitos-múmias: nada realmente vivo saiu de suas mãos.” NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 25.

Page 31: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

35

existia um verdadeiro relativismo metodológico quando se pretendia reduzir a análise dos

substratos do crime à relação de causa e efeito, própria das ciências físicas, predominantes até

então. O pano de fundo essencial ao modelo neoclássico103 de delito foi o resgate do valor

científico das ciências do espírito.

Caía por terra, durante este período, a “crença de que é aparentemente impossível

fundamentar os valores jurídicos na ‘natureza’, na ‘razão’ ou na ‘ciência’.” 104 Isto porque, na

Europa, as próprias ciências do ser “abandonaram a ideia de verdade (como correspondência

com uma realidade exterior fixa) pelas ideias de ‘coerência interna’, de ‘paradigma’ (como

modelo mutável de saber)”. 105 Aquelas eram, afinal, construções teóricas, que poderiam ser

comparadas, por seu descompromisso com o existencial e concreto, “a um esculpir nas

nuvens, com licença da metáfora”. 106

Agregaram-se fatores axiológicos ao eixo do sistema dogmático penal, o que deu

origem a um conceito de ação tido não unicamente como entidade do ser, mas, também, como

uma noção impregnada de valor. 107 Aliás, como bem ensinado por GUARAGNI, a respeito

da conduta humana no neokantismo, “sequer havia necessidade de iniciar a análise do crime

com um transporte daquilo que a conduta humana é, diante dos sentidos, para o universo dos

valores, no qual ser-lhe-iam então atribuídos valores negativos (desvalores).”108

Os neokantianos (em que se tem MEZGER, RADBRUCH, GRAF ZU DOHNA,

MAYER, JIMENEZ DE ASÚA como principais nomes) buscaram superar os conceitos

ontológicos havidos pelo modelo anterior, “com um método próprio, quer dizer, com um

método referido a finalidades e valores e não mais simplesmente à relação de causa e efeito,

um método mais compreensivo e valorativo que explicativo e descritivo.” 109 Aí, o termo

“neokantismo” encontra razão de ser, pois se “as coisas em si são incognoscíveis, unicamente

103 Chama-se neoclássico este período do pensamento jurídico-penal pois, ainda que se mantivessem algumas

concepções originárias do sistema Liszt-Beling (clássico), é certo que houvera um “giro” metodológico, uma vez que se deixava de lado o paradigma naturalista fundado nas ciências do ser, dando-se lugar às valorações, típicas do universo do dever ser (neoclássico, portanto). 104 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 90. 105 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 90. 106 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 49. 107 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 83. 108 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 105. 109 BUSATO, Paulo César. Direito Penal e Ação Significativa: uma análise da função negativa do conceito de ação em Direito Penal a partir da Filosofia da Linguagem. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 10.

Page 32: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

36

são cognoscíveis os fenômenos” 110

, perfila-se exatamente o preconizado por KANT em sua

“Crítica da Razão Pura” 111. Como desenvolvimento e a revitalização dos estudos de KANT é

que se aprimoraram as concepções no âmbito do estudo do delito, voltado, neste momento, à

metodologia que encontrava na compreensão e valoração dos objetos seu esteio. JOHANNES

HESSEN bem elucida a importância da obra de KANT:

Na filosofia continental, Immanuel Kant aparece como o verdadeiro

fundador da teoria do conhecimento. Em sua obra Crítica da razão pura (1781), tentou fornecer uma fundamentação crítica ao conhecimento das ciências naturais. O método que usou foi chamado por ele próprio de “método transcendental”. Esse método não investiga a gênese psicológica do conhecimento, mas sua validade lógica. (...) O neokantismo desenvolveu a teoria kantiana do conhecimento numa direção muito bem determinada. A unilateralidade de questionamento que isso provocou fez logo surgirem numerosas correntes epistemológicas contrárias. Vem daí estarmos hoje ante uma enorme quantidade de direcionamentos epistemológicos.

112

Como consequência para o estudo dos crimes culposos, tem-se que, em alguns

neokantistas, chamados normativistas, como, RADBRUCH 113 e MEZGER, abriu-se mão, no

estudo da teoria do delito, do substrato pertencente à conduta humana, eis que não mais

interessaria ao direito um subconceito de ação, pois que nada no mundo do ser vincularia o

universo do dever ser. Neste sentido, é a lição de RADBRUCH

Preceitos normativos, pois, só podem fundamentar-se e demonstrar-se por

meio de outros preceitos normativos. Mas justamente por isso é que os preceitos normativos últimos, aqueles de que todos os outros dependem, são indemonstráveis, axiomáticos, não suscetíveis de serem objeto de conhecimento teorético, mas apenas de adesão espontânea. Entre afirmações opostas acerca dos últimos preceitos normativos, como entre concepções opostas do mundo e dos valores, não é possível decidirmo-nos por razões científicas. A contemplação científica dos valores ilustrar-nos-á

110 GIRONDA CABRERA, Eusebio. Teoría del Estado. Cuarta edición. La Paz: Edobol, p. 160. 111 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2002. 112 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de João Vergílio Gallerani Curter. 3ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, pp. 15-16. 113 O professor de Coimbra, MONCADA, tradutor da obra de RADBRUCH, filosofa que “certamente, a filosofia dos valores não é tão-pouco uma doutrina filosófica que se deixe aprisionar e definir cabalmente dentro duma orientação sistemática única e fechada. O dogmatismo não é o seu forte. É uma orientação geral, principalmente metodológica, de contornos esfumados, um amplo movimento de ideias, mais que uma doutrina, ou como que um largo rio de margens indecisas que, embora tenha uma nascente bem determinada – o idealismo transcendental de KANT – todavia conduz, como o próprio kantismo, às mais variadas atitudes e posições filosóficas”. In: RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução de Luís Cabral de Moncada. Coimbra: Editora Arménio Amado, 1997, p. 14.

Page 33: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

37

acerca daquilo que podemos e do que queremos; não, porém, acerca daquilo que devemos.

114

O apego a preceitos normativos oriundos do universo do dever ser também é

existente em MEZGER, para quem a vontade do legislador estava acima de quaisquer outros

interesses 115 . Os neokantistas normativistas buscavam, de toda maneira, superar (ou, ao

menos, mitigar) os conceitos absolutos próprios do positivismo. ZIELINSKI, ao elucidar os

ensinamentos de MEZGER frente ao conceito de tipo, traz a lição do professor de Marburgo:

“Mezger contrapôs ao conceito de tipo livre de valor – de Beling -, um conceito de ilícito de

conteúdo material, segundo o qual o tipo é tipo de ilícito normativamente descrito (...) através

da generalização do ‘socialmente danoso’.” (t.n.) 116

Importava para MEZGER, na caracterização do crime culposo, a reprovação da

conduta, quando o agente pudesse prever o resultado danoso, reprovação esta contida na

culpabilidade. Dolo e culpa não se distinguiam, nesta concepção. MAGALHÃES NORONHA

bem chama esta construção unitária de “referência anímica” do sujeito a respeito do

resultado.117

Assim, prescindia-se de um conceito genérico de ação em favor de um estudo das

ações já tipificadas (estas, sim, interessantes ao direito). Passava a tipicidade a ser tida como

primeiro substrato analítico do crime. A consequência lógica e imediata para a estrutura do

crime culposo dá-se com a inflação dos interesses do legislador quando da caracterização do

fato negligente em face da lesão de bem jurídico ou na criação de deveres jurídicos. 118

Já em meados de 1920, ganha força a chamada teoria social da ação, cujos adeptos

(SCHMIDT, JESCHECK, WESSELS, MAYER) estabeleciam as “tarefas de um conceito de

ação com vistas a determinar os fundamentos necessários pelos quais a obra do homem pode

ser caracterizada como uma conduta punível”. 119 A metodologia utilizada levava em conta o

resultado social relevante, o que só se poderia deduzir através de um juízo de valor. Somente

com a utilização do método da compreensão e da valoração é que a conduta humana poderia

114 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução de Luís Cabral de Moncada. Coimbra: Editora

Arménio Amado, 1997, p. 52. 115 MEZGER, Edmund. Modernas orientaciones de la dogmática jurídico penal. Tradução de Francisco Muñoz Conde. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 16. 116 Apud ZIELINSKI, Diethart. Disvalor de acción y disvalor de resultado en el concepto de ilícito: análisis de la estructura de la fundamentación y exclusión del ilícito. Tradução de Marcelo Sancinetti. Buenos Aires: Hammurabi, 1990, p. 24. 117 MAGALHÃES NORONHA, Edgar. Do crime culposo. São Paulo: Saraiva, 1957, pp. 48-49. 118 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 90. 119 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 106.

Page 34: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

38

ser entendida como fenômeno social. Não por outra razão, JESCHECK traduziu a ação como

“um comportamento humano com transcendência social” (t.n.) 120 e EBERHARD SCHMIDT

como “conduta voluntária em relação ao mundo externo social”. 121

Do juízo valorativo que se faz quando se pretende definir a relevância social de

uma conduta, surgem inúmeros desdobramentos, dentre eles o fato de que tudo aquilo que é

socialmente relevante deflagra – necessariamente – uma transcendência ao indivíduo, ou em

outras palavras, uma conduta relevante ao mundo externo social é uma conduta que atinge

bem jurídico de terceiro, é não meramente imoral, e, finalmente, ultrapassa a esfera da

cogitatio. Afinal, este modelo pioneiro, que deu origem à primeira teoria social da ação,

“compreendia a conduta humana a partir do enfoque de atuação do direito penal, voltado às

condutas socialmente danosas, apegando-se ao método neokantiano, o que basta para

identificar esta sua gênese.” 122

No plano da tipicidade, MEZGER estabelecia que, para além dos princípios da

adequação, fazia-se necessária uma interpretação racional dos tipos, já que “a resposta à

pergunta sobre a relevância da conexão causal só pode ser encontrada nos tipos penais legais,

em virtude da interpretação de seu sentido.” (t.n.) 123 Para ele, que também era partidário da

chamada teoria da relevância social, importava, além da causalidade, a relevância jurídica da

mesma.

Assim como na concepção normativista, na teoria social também é difícil

conceituar o crime culposo, pois, ainda que em ambas tenha se tentado solucionar o problema

do supraconceito de ação (derivado dos modelos ontológicos já analisados), verifica-se

insuficiente uma concepção puramente objetiva (social) de conduta. E, além disso, a crítica

mais comum lançada ao pensamento neokantiano se encontra no relativismo valorativo que

advinha de seus conceitos pouco delimitáveis. Tem-se, a este respeito, GUARAGNI:

Veja-se o uso das concepções valorativas de insuportabilidade cultural,

insuportabilidade ético-social, dano social, Justiça e Bem Comum (com inicias maiúsculas!). Qual a hierarquia entre elas? Definir esta hierarquia que fica ao alvedrio do doutrinador? É possível conceber estes conceitos de

120 JESCHECK, Hans-Heinrich e WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte general. Tradução de Miguel Olmedo Cardenete. 5ª ed. Granada: Editora Comares, 2002, p. 238. 121 Apud ROXIN, Claus. Derecho penal. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Parte general. Tradução de Diego Manuel Luzón-Peçna, Miguel Dias y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2ª ed. alemã. Madrid: Civitas, 1997, p. 244. 122 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, pp. 112-113. 123 MEZGER, Edmund. Tratado de derecho penal. Vol.II. Tradução de José Arturo Rodríguez Muñoz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955, p. 223.

Page 35: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

39

maneira absoluta? Afinal, não havendo como definir, dentro de uma ordem de valores relativos, qual preponderava, estas inquietações surgem de forma automática.

124

No campo da culpabilidade, a chamada causalidade psicológica125

, presente quando

da previsão ou previsibilidade do resultado danoso do agente e própria do sistema causal-

naturalista (pelo menos em sua primeira vertente), não estava mais apta a explicar as hipóteses

de crime culposo. Esta nova maneira de pensar, neoclássica, justificou o desenvolvimento da

noção de culpabilidade. Ainda que o dolo e a culpa operassem formas de culpabilidade

(culpabilidade psicológica), acresceu-se-lhe um elemento normativo, representado pela noção

de reprovabilidade 126

, que de certa forma sempre se manifestara, mesmo que implicitamente,

na teoria analítica do crime. 127

Buscando melhor fundamentar a culpa, assim, surge a teoria psicológico-normativa

da culpabilidade, cujo grande nome foi REINHARD FRANK (1907). 128 Debruçando-se sobre

o tema, FRANK se convenceu da existência de um elemento normativo na culpabilidade, a

reprovabilidade, entendida como a censurabilidade, ao agente, por ter optado agir de um

modo contrário ao direito. O estudo de FRANK iniciou-se a partir do caso concreto do estado

de necessidade 129

, para o qual desimportava, ao direito, se o agente agira com dolo ou culpa,

vez que em circunstâncias anormais (portanto excepcionais) o agente não seria censurável.

A partir daí é que toma força, na doutrina, e de forma definitiva, a violação do

dever de cuidado ou a falta de precaução injetada pelo agente na conduta, o que fez

QUINTERO OLIVARES reconhecer que “compreendeu-se que é nesse elemento normativo

precisamente onde reside a essência do injusto da imprudência.” (t.n.) 130

Caía por terra a estrutura psicológica de culpabilidade por não conseguir explicar as

hipóteses, especialmente, de culpa inconsciente. Os reflexos da teoria de FRANK seriam

124 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p.113. 125 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Culpabilidade. Rio de Janeiro: Elsever, 2011, pp. 58-59. 126 Cuida-se, conforme salientado por LUIZ FLÁVIO GOMES E ANTONIO GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, do requisito da exigibilidade de conduta diversa (atual, não potencial), que é um dos requisitos e até hoje explica a essência da culpabilidade. GOMES, Luiz Flávio e GARCÍA-PABLOS DE, Molina. Direito Penal: parte geral. Volume 2. Coordenação Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 175. 127 PALADINO, Carolina de Freitas e GIULIANI, Emília Merlini. A culpabilidade normativa. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Editora Juruá, 2012, p. 210. 128 FRANK, Reinhard. Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Tradução de Gustavo Eduardo Aboso. Buenos Aires: UBdeF, 2002. 129 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 794. 130 QUINTERO OLIVARES, Gonzalo. Parte general del Derecho penal. 3ª ed., Navarro: Aranzadi, 2005, p. 260.

Page 36: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

40

sentidos na doutrina jurídico-penal brasileira, como se depreende da conceituação de

negligência em MAGALHÃES NORONHA: “Há culpa quando o agente, deixando de

empregar a atenção ou diligência de que era capaz, em face das circunstâncias, não prevê o

resultado que podia prever, ou prevendo-o, supõe levianamente que não se realizaria ou

poderia evitá-lo”. 131

Ressalta-se, aliás, que a noção de culpabilidade esboçou desenvolvimento, também,

através dos trabalhos de HELLMUTH WEBER e GRAF ZU DOHNA, passando de uma

teoria psicológico-normativa da culpabilidade para uma puramente normativa.

O que importa estabelecer é que, após o sistema causal-naturalista, “cego” diante de

qualquer elemento valorativo que fosse capaz de diferenciar dolo de culpa, utilizaram-se, os

posteriores penalistas, da concepção normativa de FRANK para fundamentar o crime culposo.

Desta forma é que se compreende que “dentro de uma concepção normativa (...) a

culpabilidade é um conceito eminentemente graduável, isto é, admite graus de reprovabilidade.”

132 Esta constatação fez ZAFFARONI e PIERANGELI admitirem que a

“concepção de FRANK foi bastante clara e permitiu o desenvolvimento posterior da

doutrina.”133

O neokantismo no âmbito penal foi responsável, ainda, por agregar valor à relação

existente entre tipicidade e antijuridicidade, formando-se duas correntes: (i) a de que a

tipicidade é indício (fumaça) da antijuridicidade, ou seja, sua ratio cognoscendi, o que dividia

o delito em três substratos (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade); (ii) e a de que a

tipicidade pertence à antijuridicidade, é fundamento ou sua ratio essendi, o que dividia o

delito em dois substratos (antijuridicidade e culpabilidade).

Todavia, ainda que estabelecido fundamento filosófico diverso, de cariz

normativista, tem-se, ainda, nos neokantistas, a bifacetação do crime em objetivo-subjetivo.

Aquele englobante da tipicidade e da antijuridicidade; este, da culpabilidade acrescida de um

elemento normativo.

Ainda que muitos tenham sido os contributos oferecidos pelo neokantismo, o que

fez LUIZ FLÁVIO GOMES e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA admitirem que “a

repercussão da filosofia e da metodologia neokantianas na sistemática penal foi

131 MAGALHÃES NORONHA, Edgar. Do Crime Culposo. São Paulo: Editora Saraiva, 1996, p. 48. 132 ZAFFARONI, Eugeno Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: RT, 2006, p. 521. 133 ZAFFARONI, Eugeno Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: RT, 2006, p. 520.

Page 37: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

transcendental”

134

41

, pois que se recuperou o “status científico das ciências culturais e,

portanto, do direito penal” 135, o processo metodológico de compreender e valorar a conduta

humana enquanto causadora de dano social ou violadora de bem jurídico e a culpabilidade

(dolo e culpa) enquanto reprovabilidade, não se mostrava suficiente.

A quem caberia definir danosidade social? Quais os limites valorativos de

censurabilidade ao agente? Para a análise da previsibilidade do resultado, quais critérios

deveriam ser analisados? GUARAGNI aponta os principais pontos críticos do período

neokantiano, no que o relativismo valorativo pode ser apontado, de início:

(...) a sensação gerada era a de que cada autor, ao considerar este ou aquele

valor como guia para o direito penal, como primordial para realização de suas finalidades, construía um sistema particular. (...) Veja-se o uso das concepções valorativas de insuportabilidade cultural, insuportabilidade ético-social, dano social, Justiça e Bem Comum (com iniciais maiúsculas!).

136

Os adeptos desta linha filosófica referiam-se a valores, como fonte de explicação

dos elementos do delito, porém, não se posicionavam partidários a este ou aquele valor, pois

acreditavam ser esta uma escolha cientificamente impossível. Ainda, outro ponto nebuloso

reside no radicalizado desapego à realidade que propugnavam, na medida em que optaram

pela cisão completa entre ser e dever ser, virando-se de costas ao que a realidade tivesse a

oferecer.

Porém, é certo que a fase neokantiana emprestou seus contributos à teoria do crime,

especialmente no tocante à separação objetivo-subjetiva do delito e a exploração dos

conceitos valorativos-normativos sobre a conduta humana, notadamente no plano do crime

culposo. Ademais, a afeição da Escola filosófica do sudoeste alemão à metodologia imposta

pelas ciências culturais, foi a responsável pelo surgimento de uma (já chamada) teoria de

imputação em direito penal. Isto porque, se o princípio de causalidade, tido em seu caráter

extensivo e de regresso ao infinito, é próprio das ciências reais - por dizer que todo fenômeno

tem uma causa -, a teoria de imputação objetiva leva em conta critérios oriundos do universo

do dever ser.

134 GOMES, Luiz Flávio e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito penal. Volume 2. Parte geral. Coorden. Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 176. 135 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 102. 136 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 115.

Page 38: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

42

Neste sentido, o paradigma filosófico da causalidade começa a ser rejeitado já no

neokantismo. É a observação de CIRINO DOS SANTOS:

O conceito de causalidade encontra-se em crise desde que a física quântica

demonstrou que a emissão de elétrons, no interior da estrutura atômica, não é determinada por leis causais, mas por leis estatísticas de natureza probabilística, pondo em choque não apenas o conhecimento científico anterior sobre as relações de causa e efeito dos fenômenos naturais – definidas como categorias do ser.

137

Assim é que se desconstrói o mito138 de que a teoria de imputação objetiva é um

tema novo e somente cabível nas mais modernas discussões do sistema jurídico-penal. Há, em

verdade, mais de setenta anos de contribuições às formulações sobre o tema, que se iniciaram

já desde HEGEL139

, mas que, porém, restaram introduzidas no seio jurídico com KARL

LARENZ – no direito civil – e, posteriormente, com RICHARD HONIG – no direito penal.

HONIG, em meados de 1930, transportando os estudos de LARENZ ao direito

penal, refletiu a respeito da relação existente entre ação e resultado (a causalidade), que fosse

coerente com o estudo dos tipos penais. Foi então que HONIG, partindo de uma crítica à

teoria da conditio sine qua non, “defendeu que o problema tinha origem na concepção

ontológica da causalidade, que não era capaz de apreender a correta relação entre ação e

resultado”. 140

Assim, pela primeira vez, percebeu-se que, para se imputar algo a alguém como

obra sua, era necessário mais que uma relação de causalidade no plano ontológico, era

necessário, isto sim, de uma “possibilidade objetiva de pretender”.141 (t.n.) Fica claro, então,

que, há mais de setenta anos se buscava uma teoria de imputação objetiva que corrigisse as

falhas da causalidade ontológica. Ainda que não se vislumbrassem os critérios tidos, hoje,

com ROXIN e JAKOBS, é certo que não se deve olvidar dos contributos de HONIG, que,

137 SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. 4ª edição. Curitiba: Lumen Juris, 2005, p. 49. 138 Utiliza-se expressão própria da obra de BUSATO. BUSATO, Paulo César. Fatos e mitos sobre a Imputação Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 139 Deve-se a HEGEL o pontapé inicial no estudo da teoria da imputação, uma vez que buscou diferenciar, o filósofo alemão, as realizações humanas a partir do livre-arbítrio conferido à vontade humana. A depender do resultado, decidir-se-ia se ele seria imputado, ou não, ao agente. HEGEL, Georg Wilhem Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães, 1960, p. 125. 140 BUSATO, Paulo César. Fatos e mitos sobre a Imputação Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 08. 141 MARTÍNEZ ESCAMILLA, Margarita. La imputación objetiva del resultado. Madrid: Edersa, 1992, p. 35.

Page 39: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

43

inclusive, fora lembrado por FRISCH, quando este observa que “a nova ótica de Honig é a

base de grande parte das mais recentes considerações da teoria da imputação objetiva.” 142

1.3. Conclusão parcial: Por que os modelos axiológicos são mais favoráveis à

tipicidade culposa?

São inúmeras as vantagens de um tratamento dogmático de crime realizado a partir

do escalonamento analítico de seus substratos. O direito penal, carregado de fortes tintas

ideológicas que é 143

, buscou, durante mais de um século, integrar os conceitos de ação e

demais substratos de crime a partir das experiências e dados que cada época lhe fornecera.

Conforme cambiavam os contextos histórico-políticos, cambiavam, também, as

bases metodológicas do sistema dogmático penal, funcionando como um pêndulo, ora

pendiam a uma orientação ontológica (finalismo e causalismo), ora a uma orientação

axiológica (neokantismo e, modernamente, os modelos funcionalistas).

Importa reconhecer que, para a análise da tipicidade culposa, assim como para a

adequação dos fenômenos penais a um Estado (que se pretenda) de Direito, não se deve recair

em um reducionismo epistemológico, no que a adoção de “uma dogmática de direito penal

excessivamente dada a fórmulas abstratas” 144 corre o risco.

Enquanto as ciências naturais, ciências que lidam com objetos sensorialmente

externos, dão conta do estabelecimento de princípios, originados de bases a priori, universais

com base na evidência da experiência145

, o direito penal, ciência cultural que é, não pode ser

àquelas comparado, sob pena de se incorrer em um pensamento científico simplificador. Uma

nova ciência, reaproximada da fundamentação prática do saber, deveria ser tentada. O

caminho, em APEL, é a consideração da linguagem: “o filósofo incorpora, à filosofia

transcendental kantiana, a pragmática e a intersubjetividade linguística enquanto um

constitutivo originário do ser no mundo e do interpretá-lo.” 146

142 Apud BUSATO, Paulo César. Fatos e mitos sobre a Imputação Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 10. 143 MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo. Los orígenes ideológicos de la polémica entre causalismo y finalismo. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 48. 144 JESCHECK, Hans-Heinrich e WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte general. Trad. Miguel Olmedo Cardenete. 5ª ed. Granada: Editora Comares, 2002, p. 176. 145 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2003, p. 57. 146 Apud LUDWIG, Celso Luiz. Discurso e Direito: o consenso e o dissenso. In: Discurso e Direito: discursos do direito. Organização Ricardo Marcelo Fonseca. Florianópolis: Boiteux, 2006, p. 47.

Page 40: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

44

As múltiplas razões políticas, sociais e éticas (ao menos estas) do direito penal

devem ser levadas a cabo, pois numa realidade complexa e intersistemática, se não se permite

o conhecimento desse meio ambiente para a construção de valores, não se conhece do próprio

direito penal. Ainda com KARL-OTTO APEL, tem-se a necessidade de uma metalinguagem,

que supere uma linguagem meramente sintático-semântica, merecendo destaque observação

que, refletindo sua angústia filosófica em face do mundo contemporâneo, cai como uma luva

ao contexto que é, senão, o cerne deste trabalho:

A paradoxalidade dessa situação se caracteriza, a meu ver, através do seguinte dilema: de um lado, a necessidade de uma ética intersubjetivamente vinculatória, de responsabilidade solidária da humanidade diante das consequências de atividades e conflitos humanos. Nunca foi tão urgente como nos dias atuais, e isso em função do pavoroso aumento do risco decorrente de todas as atividades e conflitos humanos, devido ao espantoso potencial técnico da ciência. De outro lado, parece que a fundamentação racional de uma ética intersubjetivamente válida jamais foi tão difícil quanto hoje em dia, uma vez que a ciência moderna pré- ocupou o conceito de fundamentação racional, intersubjetivamente válida, no sentido da neutralidade valorativa; por causa disso, todas as formações teóricas não isentas de valoração parecem, a partir desse parâmetro, serem meras ideologias.

147

Portanto, se as atividades humanas, na atualidade, têm a potencialidade de alcance a

todos indistintamente, não se deve prescindir, conforme filosofia apeliana, de uma ética de

alcance planetário, ou, em outras palavras, de uma racionalidade transcendental, de algo que

com a metafísica não se poderia atingir.

No caminho da negação do conhecimento complexo (e não meramente indutivo),

substitui-se a realidade a ser compreendida por um sistema ideal, construído pelo estudioso,

com pretensão de coerência, mas sem necessária correspondência com a realidade empírica.148

E a realidade de outrora já não mais subsiste. A criminalidade culposa vem ganhando terreno

há, pelo menos, 30 anos.

A tipicidade culposa, mais do que qualquer outra, possui papel fundamental no

moderno direito penal, voltado que está às novas demandas sociais decorrentes do processo de

industrialização que perdura desde o século XIX. Talvez tenham as imprudências se

transformado em protagonistas da sociedade que se apresenta, ou como frisado por MUÑOZ

147 APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna. Tradução de Benno Dischinger. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, pp. 160-161. 148 FOLLONI, André. A epistemologia e a superação do reducionismo. In: Ciência do direito tributário no Brasil. São Paulo: Saraiva, p. 421.

Page 41: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

45

CONDE, talvez tenham as imprudências “se convertido na parte mais importante do número

de delitos apreciados pelos tribunais ao fim de um ano”. (t.n.)149

O marco histórico correspondente à ascensão das ciências naturais mecanicistas,

marco este que tratou da inserção do homem ao palco dos acontecimentos e decisões sobre o

mundo, deu origem a uma das mais importantes Escolas de dogmática jurídico-penal, a Escola

causal-naturalista. Ocorre que, chega um momento, em meados da segunda década do século

passado, que o homem, induzido por um sentimento pessimista de seu próprio mundo,

sentimento típico de uma civilização pós-guerra, viu sua confiança depositada na certeza e na

verdade absoluta das ciências naturais perder terreno. A consciência filosófica da ciência, que

tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas principais formulações150

,

cambiava. MORIN, ao lançar um olhar interdisciplinar sobre o mundo, bem traduz este

movimento:

A ideia do mundo europeu e mais largamente ocidental era a de que toda a

razão, sabedoria e verdade estavam concentradas na civilização ocidental. (...) Cada civilização possui um pensamento racional, empírico, técnico e, também, um saber simbólico, mitológico e mágico. Em cada civilização há sabedoria e superstições. Com efeito, atribuir à técnica e à ciência a missão providencial de solução de todos os problemas humanos – esta era a ideia até a metade deste século – era uma ideia mitológica. Havia uma mitologia do progresso como uma lei da história que, automaticamente, iria produzir o melhor e cada vez melhor. Hoje sabemos que não é assim. O milênio que chega está totalmente embarcado na incerteza sobre o porvir. Vemos, então que havia uma mitologia, a mitologia do progresso.

151 (grifo nosso)

Em razão da autêntica crise de confiança no cálculo científico, que coloca em

cheque as bases de uma modernidade calcada no racionalismo cartesiano técnico-científico, o

direito penal identifica, como nunca, condutas capazes de produção de consequências

catastróficas para a vida, a integridade física, o patrimônio e outros bens, tidos numa

concepção supraindividual. 152 Postulavam-se, afinal, as bases da modernidade reflexiva e da

sociedade de risco do fim do século XX.

Neste contexto é que se chega à conclusão de que a inflação de crimes culposos

reflete uma ambientação favorável à adoção de modelos dogmáticos axiológicos, pois se se

149 MUÑOZ CONDE, Francisco e GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal. Parte general. 7ª Ed., Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, p. 281. 150 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 7ª edição. São Paulo: Cortez, 2010, p. 33. 151 MORIN, Edgar. Saberes globais e saberes locais: o olhar interdisciplinar. Participação de Marcos Terena. Rio de Janeiro: Garamond, 2000, pp. 27-28. 152 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito penal baseado em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Editora Juruá, 2012, p.120.

Page 42: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

46

pretende cercar as atividades da vida moderna de maiores cautelas, levando-se em conta que

todos gerenciam técnicas e manobras arriscadas (riscos conhecidos ou não) em face de todos,

caberá ao Estado, na figura do Poder Legislativo, valorar se determinada conduta merece ser

enquadrada (tipificada) como crime.

Ora. Fazer das multiplicidades de perigos e hipóteses de risco uma realidade una é,

nada mais, que uma simplificação metodológica a ser evitada. 153 Isto porque, um pensamento

complexo, como se pretende o direito penal, não deve substituir a diferença pelo holismo,

numa espécie de totalitarismo epistemológico. 154 Ao contrário, uma ciência complexa e

cultural, como o direito penal, deve compreender e respeitar as diferenças. Como destaca

ROBERT ALEXY, é necessário diferençar para compreender as relações entre os

diferentes.155

Afinal, toda e qualquer área da vida com pretensão de cientificidade deve, em certo

sentido, demonstrar complexidade e exteriorização da reflexividade. BOAVENTURA DE

SOUSA SANTOS distingue duas formas de reflexividade: a primeira, denominada

“subjetivista” diz respeito à relação existente entre o cientista e o social (assim, por exemplo,

o cientista do direito que, reflexivamente, percebe-se, também, como advogado, Magistrado,

membro do Ministério Público, professor, etc., estará mais apto a lidar com seu papel social

no meio em que está inserido, ou seja, o confronto de ideias em qualquer setor, ou em

qualquer ciência, traz retornos positivos louváveis); a segunda forma de reflexividade,

denominada “objetivista”, volta-se à própria prática científica, ou seja, aos limites e

possibilidades de suas atividades. 156

Em qualquer uma das hipóteses, o fundamental é a percepção de que em um

pensamento complexo, deve haver uma reintegração do observador na observação, a ponto

que se chegue à melhor forma de criação e aplicação do direito penal.

153 A respeito do que seja paradigma simplificador, tem-se a lição de EDGAR MORIN, em suas mais diversas obras. Não por outra razão, já foi reconhecido, o autor, como o inquieto pensador da complexidade. Em passagem sua na obra “Introdução ao pensamento complexo”, ele define o paradigma simplificador característico das ciências da natureza: “Os cientistas, de Descartes a Newton, tentavam conceber um universo que fosse máquina determinista perfeita. De fato, esta concepção que acredita poder dispensar Deus tinha introduzido em seu mundo os atributos da divindade: a perfeição, a ordem absoluta, a imortalidade e a eternidade. É este mundo que vai se desequilibrar, e depois se desintegrar. (...) Assim, o paradigma simplificador é um paradigma que põe ordem no universo, expulsa dele a desordem. A ordem se reduz a uma lei, um princípio. A simplicidade vê o uno, mas não consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo.” MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005, pp. 58-59. 154 MORIN, Edgar. Introdução: oitava jornada: a religação dos saberes. In: A religação dos saberes: o desafio do século XXI. 5ª ed. Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 490. 155 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais.Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 32. 156 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. 4ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 1989, pp. 78-79.

Page 43: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

47

Calha a lição de PAULO BUSATO, ao analisar sobre a pretensão (equivocada) de

uma concepção ontológica da imprudência:

As primeiras formulações da teoria do delito coincidiram em uma

pretensão sistemática que as afastou necessariamente de conclusões mais efetivas a respeito do conteúdo e justificação do castigo da conduta imprudente: a pretensão de ancorar o sistema de imputação sobre um conceito de ação ontológico, prévio a considerações jurídicas e condicionantes do sistema de imputação. (...) tanto o causal-naturalismo quanto sua versão de corte neokantista, bem como o finalismo se emparedaram na impossível tarefa de estabelecer critérios de unificação entre o delito imprudente e o doloso que correspondessem a um conceito geral de ação pré-jurídico.

157

O reforço do emprego desta categoria dogmática – a culpa stricto sensu - implica

maior atenção do legislador aos problemas cotidianos da vida em sociedade. Em outras

palavras, não se deve conceber que o direito penal esteja destinado a obedecer a padrões fixos,

predeterminados, estáveis, lineares.

Ademais, há de se conceber as ciências naturais, estas sim, como ordenadas e

obedientes, sempre, às mesmas leis naturais. Tal característica – redutora - do pensamento

científico moderno é lembrada por muitos epistemólogos. BOAVENTURA DE SOUZA

SANTOS, por exemplo, aduz que “o método científico assenta na redução de complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não a pode compreender completamente.” 158

BACHELARD, na mesma toada: “(...) a importância das descobertas como as de Cavendish

provando que a água não é um elemento, ou a descoberta semelhante referente ao ar por

Lavoisier, fraturam a história. Elas assinalam um fracasso total do imediato.” 159

Não calha, este sistema científico, à ciência do direito penal. Os físicos de segunda

metade do século XIX descobriram que o universo conhecido é movido pela desordem. Desde

então, cobrou-se da ciência que compreendesse a desordem e explicasse como, a partir dela,

far-se-ia possível a ordem. Através deste pensamento axiológico-valorativo é que se

depreende a atual “missão” do direito penal. Daí que se compreende o seu vir-a-ser.

O mundo físico imanente hoje é tido como um vir-a-ser constante de ordem e

desordem, organização e desorganização, não há uma realidade estática, eterna, universal e

157 BUSATO, Paulo César. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 258. 158 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 7ª edição. São Paulo: Cortez, 2010, p. 15. 159 BACHELARD, Gaston. Epistemologia: trechos escolhidos por Dominique Lecourt. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de janeiro: Zahar, 1977, p. 91.

Page 44: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

48

identicamente ordenada, o que afeta a noção de identidade. 160

Rompeu-se com as concepções

clássicas de tempo e espaço. Não havendo simultaneidade universal, o tempo e o espaço

absolutos de Newton deixam de existir. 161

Certamente, a escolha e determinação, por parte do legislador, de condutas

consideradas arriscadas ou capazes de gerar lesão a bem jurídico de outrem, não é tarefa fácil.

A complexidade, aqui, se faz presente e encontra esteio no ganho de complexidade, também,

das relações sociais, das interligações individuais e dos meios tecnológicos colocados à

disposição da maioria.

Na medida em que a conduta socialmente “perigosa” seja inevitável, resta ao

Estado, atuante na forma do Poder Legislativo, cercar as atividades que, segundo uma

valoração objetiva, possam afetar danosamente bens jurídicos de terceiros. ANDREAS

HOYER chama a atenção à tarefa proposta por KARL BINDING, desde 1919, de delimitar o

risco admissível: “o direito positivo carece, para este grandioso âmbito da vida jurídica, de

disposição, cabendo ao legislador formular ‘regras’, muitas vezes não cumpridas nos campos

da vida.” 162 (t.n.)

O mapeamento das condutas merecedoras de atenção por parte do Estado (e do

direito penal) não pode (e não deve) ser objeto de nada que não se traduza em parâmetros

valorativos. Trata-se de uma questão axiológica163

, não demonstrada através da relação causa

e efeito.

Nesta linha de pensamento, PAULO BUSATO leciona:

Evidentemente, a filosofia do direito não tardou em descobrir a prevalência

de uma indeterminação jurídica conceitual no âmbito do direito, assim também a imprestabilidade de um direito que produz resultados precisos, certos e intrinsecamente verdadeiros, porém injustos. Restou evidenciada a impossibilidade de alcançar pretensão de neutralidade do direito, já que ele próprio é prenhe de conceitos que demandam valorações e insuficiência do mero socorro do conjunto de conceitos jurídicos para a resolução dos problemas concretos que incumbem ao jurista.

164

160 MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 5ª edição. Tradução de Maria D. Aelxandre e Maria Alice Sampaio Dória Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.135. 161 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 7ª edição. São Paulo: Cortez, 2010, p. 43. 162 Apud HOYER, Andreas. Riesgo permitido y desarrollo tecnológico. In: La adaptación del derecho penal al desarrollo social y tecnológico. ROMEO CASABONA, Carlos María; LÁZARO, Fernando Guanarteme Sánchez e ARMAZA ARMAZA, Emilio José. Granada: Editorial Comares. 2010, p. 227. 163 HONIG, Richard. Causalidad e imputación objetiva. In: Causalidad, riesgo e imputación. 100 años de contribuciones críticas sobre imputación objetiva y subjetiva. Buenos Aires: Hammurabi, 2009, p. 129. 164 BUSATO, Paulo César. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 188.

Page 45: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

49

Conclui-se que há, em verdade, um dualismo entre ser e dever ser, fundado na

oposição entre razão e vontade, enquanto argumento para afastar o jurista das considerações a

respeito do direito que evidentemente deva ser. Não se pretende uma superação final do

paradigma positivista, pois se incorreria no risco de toda aquela ordem prometida se

transformar em desordem.

Mas, certamente, parece mais acertado e menos paradoxal a utilização de modelos

axiológicos do conhecimento quando se pretende lidar com os riscos que permeiam as

atividades cotidianas do novo milênio, e suas consequentes decisões, a respeito de se

enquadrar esta ou aquela conduta como merecedoras de atenção do legislador penal.

A filiação a esta ou aquela área do conhecimento (ser e dever ser) faz parte,

também, de discussões filosóficas que, certamente, interessam ao Direito. Ainda que se

encontre certa dificuldade em trazer FRIEDRICH NIETZSCHE para os trabalhos jurídicos

acadêmicos, sobressalta a conclusão de que um sistema pautado basicamente em

experimentações e conclusões determinadas, causaria arrepios ao filósofo: “Desconfio de

todos os sistematizadores e os evito. A vontade de sistema é uma falta de retidão. Eu

desconfio de todos os sistemáticos e saio do seu caminho. A vontade de sistema é algo que

compromete”. 165

Em outra passagem, o alemão, que estudou Filosofia na Universidade de Bonn,

explica:

A nossa inclinação básica é afirmar que os juízos são indispensáveis, que,

sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a realidade com o mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem não poderia viver. Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas, por isso, além do bem e do mal.

166 (grifo nosso)

Se é difícil admitir um aforismo conceitual na filosofia, na ciência cultural do

direito penal esta dificuldade sobressalta; um sistema calcado em puro ontologicismo mostra-

se incompatível com a ciência cultural, sempre sujeita à realidade cambiável na qual está

inserida. Esta linha de pensamento que rechaça tudo que se reduz a aforismos e sintetizações,

também pode ser percebida em ROXIN: “um direito penal concebido de forma sistemática

165 NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 13. 166 NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Márcio Pugliese. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005, p. 11.

Page 46: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

50

não possui status de evidência nem mesmo em países com alto grau de desenvolvimento

cultural” 167

, porém confessa que uma estruturação sistemática correta no direito penal é capaz

de garantir a isonomia na aplicação do Direito. Esta correta estruturação, para ROXIN, só se

alcançaria através da utilização abrangente tanto de dados empíricos como normativos, numa

perfeita e equilibrada relação dialética. 168

ROXIN, afinal, a respeito da prevalência de uma metodologia axiológica à

ontológica, esclarece que “não é possível deduzir soluções de problemas jurídicos de dados

ontológicos como a finalidade da ação humana. As soluções apenas podem ser alcançadas a

partir de valorações e nunca a partir de meros dados do ser”. 169 E conclui que afirmar se

determinada ação é dolosa ou culposa traduz-se em uma questão valorativa, axiológica,

pertencente ao universo do dever ser.

Ambientado está o novo universo em que o direito penal se encontra inserido, a

partir de meados dos anos setenta do século passado. A necessidade e a importância da

interdisciplinaridade para o discurso jurídico penal vieram incentivar este novo estudo

complexo, antissimplificador e de consequências primorosas ao direito penal.

Neste panorama, a ideia de política-criminal ganha força. É o que tratará o próximo

Capítulo.

167 ROXIN, Claus. Reflexões sobre a construção sistemática do direito penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.18, n.82, jan./fev.2010. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 24. 168 ROXIN, Claus. Reflexões sobre a construção sistemática do direito penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.18, n.82, jan./fev.2010. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 25. 169 ROXIN, Claus. Reflexões sobre a construção sistemática do direito penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.18, n.82, jan./fev.2010. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 31.

Page 47: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

51

CAPÍTULO II - A FUNÇÃO POLÍTICO-CRIMINAL DO DIREITO PENAL COMO

IDEIA FUNDANTE DO SISTEMA ANALÍTICO DE CRIME E O IMPACTO NOS

CRIMES CULPOSOS

Toda a práxis jurídica é uma técnica decisória

politicamente funcional. 170

“Que maravilhosa adequação ‘científica’ entre a lógica, o determinismo, os objetos

isolados e recortados! Então, o pensamento simplificador não conhece nem ambiguidade, nem

equívocos. O real tornou-se uma ideia lógica, isto é ideo-lógica, e é esta ideologia que

pretende apropriar-se do conceito de ciência. ”[sic] 171 A reflexão de EDGAR MORIN bem

serve para ilustrar o momento histórico havido no último quarto do século passado, que trouxe

consequências e uma nova abordagem nos estudos de direito penal.

Desde a Revolução Francesa e os ganhos do Iluminismo, considerados marcos na

evolução social humana e na formação do Estado de Direito que até hoje conhecemos, o

homem tratou de elevar e preservar seus direitos contra o Estado “Leviatã” e obteve êxito, a

partir da criação das bases que iriam formular toda a estrutura do Direito, e

consequentemente, do direito penal. Estas bases estariam sustentadas e expressas em seu

último (e primeiro grau) pelo princípio de legalidade.

Passava o direito penal, a expressar-se através de um sistema de imputação

formulado a partir do que exigisse a norma. O Iluminismo implicou em uma valorização do

indivíduo, própria de sua época, e ilustrada pela fórmula cartesiana clássica do “penso, logo

existo” ou cogito, ergo sum. 172 O princípio de legalidade torna-se o instrumento máximo do

direito penal, desmistificando a ideia de que era um instrumento a favor do Estado.

Tem-se, na esfera do direito público brasileiro, a introdução, realizada por

LOURIVAL VILANOVA, das categorias fenomenológicas de EDMUND HUSSERL173

, que

através da percepção da essência, buscam compreender que as coisas, os conceitos, as ideias,

são cada uma delas um todo acabado. Essa influência do procedimento analítico vilanoviano

elege o caminho que será percorrido fenomenologicamente pela norma jurídica: “O processo

170 MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria constitucional I. Tradução de Peter Naumann. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1995, p. 07. Originalmente publicada como Recht – Sprache – Gewalt. Elemente einer Verfassungstheorie I. 171 MORIN, Edgar. O método. V. 2: a vida da vida. Tradução de Marina Lobo. Porto Alegre: Sulina, 2005, pp. 429-430. 172 Expressão formulada por RENÉ DESCARTES, em seu “Discurso do Método”, de 1637. 173 VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos. V.1. São Paulo: Axis Mundi, IBET, 2003.

Page 48: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

52

de decompor analiticamente uma realidade em objeto de várias ciências é um princípio de

divisão do trabalho científico, exigido pela complexidade dos problemas que a realidade

oferece.” 174 O resultado é que a ciência do direito tenha por objeto apenas normas jurídicas, e

cada ciência específica do direito volta-se a normas de conteúdo bem específico, como as

normas de direito penal. Obtém-se, assim, mediante expediente redutor, o objeto de estudo: as

normas jurídicas que integram determinada especialização do direito positivo. Para

VILANOVA, assim, o direito, abstraídas as contingências, é, fenomelogicamente,

essencialmente normativo. 175

Descobertas as formas lógicas, é possível compreender como o direito funciona,

funcionou e funcionará, em qualquer espaço-tempo onde o fenômeno jurídico se verifique. A

quem cria o direito positivo, não lhe cabe evitar essa estrutura estática, constante e

independente de sua origem empírica.

A dogmática jurídico-penal, então, passou a se traduzir em uma estruturação

normativa, produto do pensamento ilustrado do século das Luzes. E o sistema da teoria geral

do delito, impregnado que estava pelo racionalismo positivista, intentava produzir um estudo

do crime a partir de sua subdivisão em substratos analíticos objetivos. O sistema jurídico-

penal elege a conduta humana como ideia fundante, cambiando seu conteúdo, conforme

estivesse impregnado pelo paradigma ontológico ou axiológico.

Ocorre que, e conforme já introduzido no Capítulo anterior, este modelo não mais

dava conta dos anseios e problemas que enfrentava o direito penal em fins do século passado.

As novas formas de criminalidade, organizada, onipresente, de alcance global e de

consequências pouco palpáveis, incentivaram o surgimento de um direito penal diferenciado,

que deixasse para trás a simplificação epistemológica que o trabalho apenas com a coerência

lógica dos conceitos trazia.

Uma ciência complexa é aquela que se dirige à compreensão cada vez mais

adequada da realidade. E esta afirmação não leva a crer que se esteja vinculando a ciência ao

universo ôntico das coisas, pelo contrário. Está-se evitando reduzi-la a esquemas

simplificados que, fruto da vontade de racionalização, substitui a realidade a ser valorada pela

realidade idealizada. Por certo, superar estes limites não significa ignorá-los, mas agregar-lhes

telos, aplicando alguns critérios a determinados grupos de casos, cuja solução não esteja

necessariamente contida em lei. Irrepreensível a lição de ROXIN, a este respeito:

174 VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos. V.1. São Paulo: Axis Mundi, IBET, 2003, p. 22. 175 VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos. V.1. São Paulo: Axis Mundi, IBET, 2003, p. 53.

Page 49: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

53

Apesar das vantagens, a interpretação do direito a partir de um sistema que abarque toda a matéria jurídica não é um procedimento em si mesmo evidente, nem necessariamente satisfatório em todos os casos. Constantemente surge a ideia de que a sistematização pode acabar por violentar a matéria jurídica e que, por isso, o método de decisão mais adequado para a ciência do direito seja a discussão dos problemas no caso concreto.

176 (t.n.)

E, assim, ROXIN analisa e elucida quatro desvantagens que, no mínimo, o

pensamento sistemático oferece: (i) o esquecimento ou padecimento da justiça no caso

concreto, pelo fato de se obterem soluções de deduções do contexto sistemático; (ii) a redução

das possibilidades de resolução dos problemas, uma vez que a utilização de uma dogmática

sistemática simplifica a aplicação do direito, restringindo o campo de visão do julgador; (iii) a

falta de legitimidade político-criminal na resolução de conflitos através de deduções

sistemáticas e (iv) o emprego de conceitos demasiado abstratos. 177

A partir da análise de que o real pode ser cambiável, e assim o é a sociedade global

da virada de século, as regras definidas pela teoria podem ser objeto de transformação. Daí é

que se conclui que fazer ciência complexa consiste, exatamente, em compreender estas

particularidades, essas mutabilidades, essas diferenças. A renúncia ao sistema “perfeito” e

racional é um trabalho árduo, mas necessário à ciência do direito penal.

Por este motivo, refuta-se a referência a “doutrinas”, a “dogmas”, que, por si só,

devem ser considerados definitivos, autoverificáveis, como num sistema “autopoiético” 178

.

Daí se compreende a lição de HEIDEGGER, a respeito do pressuposto segundo o qual para

falar de ciência, ela própria é incompetente:

O fato de os conceitos fundamentais de uma ciência e o que esses conceitos

concebem permanecer inacessível a toda ciência enquanto tal, isto é, a toda ciência enquanto ciência que ela é, está em conexão direta com o fato de nenhuma ciência jamais poder enunciar algo sobre si com o auxílio de seus próprios meios científicos. (...) Esse é o âmbito da filosofia. A filosofia não

176 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito.

Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 210. 177 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, pp. 210-214. 178 O termo autopoiesis, originado na década de 1970 através de estudos de Biologia e Filosofia, possui origem grega e significa autocriação, ou seja, a capacidade de determinados seres vivos produzirem-se a si próprios. O termo foi introduzido na linguagem sociológica contemporânea a partir do construtivismo radical, que tem Niklas Luhmann como exemplo. E, pode-se dizer, introduzido na literatura jurídica com a obra de GUNTHER TEUBNER, que refuta a transformação do direito positivo em um sistema autopoiético. TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Caloste Gulbenkian, 1999.

Page 50: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

54

é afixada às ciências e edificada em um andar superior. Ao contrário, ela se acha no âmbito mais intrínseco da ciência, de modo que é válido dizer: uma simples ciência só é científica, ou seja, só se mostra como um saber autêntico, para além da mera técnica, na medida em que é filosófica.

179

A consequência deste método simplificador não seria outra, senão, a incompreensão

do todo no qual o direito penal está submerso. Dizer que a ideia fundante do sistema gire em

torno do conceito de conduta humana, embora tenha tido sua destacada importância, parece

insuficiente, apenas um início de como deva ser o direito penal.

Mais do que nunca, do cientista jurídico do novo século, exige-se a compreensão de

outros saberes que lhe agregarão - suficientemente a ponto de se verificar o conhecimento

como um todo. Não se trata do abandono de raízes, nem da ultrapassagem de fronteiras

inócuas, mas de uma interdisciplinariedade necessária. Em especial, a Filosofia e a Sociologia

contribuirão sobremaneira na formulação complexa do direito penal. Importa ressaltar a lição

de HÖFFE:

Somente na sua fase inicial, a Filosofia se circunscrevia de temas que se

encontravam muito distantes do direito penal: a cosmologia e a ontologia de Parménides. Desde o interesse dos sofistas e de Sócrates pelo ser humano, desde esta inflexão antropológica, os grandes filósofos tornaram- se, ao mesmo tempo, grandes pensadores do Direito e da teoria do Estado; e desde seus fundadores, Platão e Aristóteles, também se ocupam do direito penal.

180 (t.n.)

As exigências que se depositam sobre o direito penal cambiam a todo tempo e, por

isso mesmo, por ser um dos ramos da ciência jurídica que mais influem (senão o que mais) na

vida cotidiana social, por ser o instrumento mais invasivo de controle social, suas bases

devem estar fincadas em um ambiente sólido e eficaz. O direito penal, quando amparado, com

perseverança e acuidade, por outras ciências do saber, faz destes inter-relacionamentos algo

realmente produtivo. HASSEMER, em artigo escrito sobre a autocompreensão da ciência

penal frente às exigências de seu tempo, acertadamente conduz o direito penal a um

pensamento complexo:

Proibir e sancionar é [sic] também um ato político, um meio público para a

compreensão normativa sobre nossos interesses fundamentais, assim como

179 HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, pp. 287-288. 180 HÖFFE, Otfried. Proto-Derecho penal: programa y cuestiones de un filósofo. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer, Björn Burkhardt. Coordenação da versão espanhola: Francisco Muñoz Conde. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p.327.

Page 51: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

55

são a fronteira da liberdade. A fascinação privada e política que a ciência do direito penal desperta supõe uma carga e reduz a ênfase de sua função de chamada e garantia da liberdade científica. O objeto de nossa ciência não só é fundamental, como também cambiante e determinado pela época. (...) é dizer, a cada certo tempo – também com as exigências científicas – devemos perguntar que estamos fazendo e que podemos esperar. (t.n.)

181

A aproximação dos institutos de direito penal com outras áreas do conhecimento e

sua reformulação a partir das questões impostas pela sociedade moderna foram assuntos

especialmente levantados em fins do século passado. O naturalismo e o delineamento

ontológico anteriores distanciaram o direito penal da realidade social posta, tornando-o

limitado e ineficaz frente às novas expectativas.182 Bem preceitua MUÑOZ CONDE:

O penalista, livre do positivismo criminológico que precisamente havia

ameaçado as sutilezas dogmáticas, podia dedicar seu empenho à Dogmática jurídico-penal e, dentro dela, ao aperfeiçoamento do sistema de teoria do deito, verdadeiro banco de provas de todas as reflexões acerca do núcleo e dos fins de direito penal.

183

O resultado do esforço simplificador é a incompreensão do todo no qual o direito

penal está imerso. Inviabiliza-se o conhecimento daquilo que, de fora, condiciona o direito

penal, mas, tampouco, devolve a seu entorno. E não se está referindo a um direito penal

simbólico, que devolva à sociedade as expectativas que lhe são inferidas. É necessário afastar

o equívoco que compreende a complexidade como mistura de saberes, como coquetel de

ciências, ou como sincretismo metodológico. O interdisciplinar, afinal, pressupõe as

disciplinas. É este o princípio: o mero conhecimento individualizado das partes de uma

realidade complexa é incapaz de fazer subsistir o conhecimento do todo. 184

Assim é que é dada, ao direito penal, enquanto ciência, a missão de trabalhar em

conjunto com outras ciências, na busca de soluções para problemas que já não mais admitam

resoluções incompatíveis com as próprias multidimensionalidades dos próprios problemas.

181 HASSEMER, Winfried. La autocomprensión de la Ciencia del Derecho Penal frente a las exigencias de su

tiempo. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coord. versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer, Björn Burkhardt. Coord. versão espanhola: Francisco Muñoz Conde. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, pp. 24-25. 182 MIR PUIG, Santiago. El sistema del Derecho Penal en la Europa actual. In: Fundamentos de un sistema europeo del derecho penal. Coord. Jesús-María Silva Sánchez. Barcelona: José María Bosch Editor, 1995, p. 26. 183 MUÑOZ CONDE, Francisco. La herencia de Franz von Liszt. In: Justiça e Sistema Criminal. Revista produzida pelo Grupo de Pesquisas Modernas Tendências do Sistema Criminal. V. 3 – n. 5 – jul./dez.2011, p. 27. 184 PASCAL, Blaise. Pensamentos. 2ª edição. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Coleção Os Pensadores), p. 35.

Page 52: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

56

Dogmas, são afinal, refutáveis a um discurso jurídico-penal. 185 Salutar a lição de

FOUCAULT que, através de uma interpretação nietzschiana, afirma que, para bem

compreender o conhecimento, deve-se debruçar, para além de sobre ele, sobre a política:

Ora, se quisermos saber o que é o conhecimento, não é preciso nos

aproximarmos da forma de vida, de existência, de ascetismo. Se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é, apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar (...) dos políticos. É somente nas relações de luta e poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros (...) – que compreendemos em que consiste o conhecimento.

186

A barreira imposta por LISZT 187

, para quem o direito penal deveria se afastar da

realidade político-social para que o edifício de intricados conceitos do direito penal não fosse

depreciado188

, era própria de um positivismo racionalista e, finalmente, foi derrubada por

ROXIN, quando em palestra proferida em maio de 1970, em Berlim (palestra que deu origem

à imemorável obra “Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal”), o professor da Universidade

de Munique, ancorado por ideias metodológicas antissimplificadoras e de alcance global, viu

na relação entre o direito penal e a política criminal consequências práticas fundamentais.

Conforme já salientado, uma estruturação sistemática dos conceitos jurídico-penais

concede vantagens, mas certamente, “provoca desconforto, que sempre se intensifica quando

se pergunta se o minucioso trabalho sistemático de nossa dogmática, feito através de

sutilíssimas precisões conceituais” 189, afasta-se do que realmente deva ser o direito penal.

Assim é que se iniciou uma nova fase - na contramão da dicotomia lisztiana entre

direito penal e política criminal -, quiçá inaugurada com a obra de ROXIN, que busca a

resolução dos conflitos para além do positivado, mas que, político-criminalmente seja mais

acertado. “Não será preferível uma decisão adequada do caso concreto, ainda que não

185 BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz: sobre o mundo jurídico e outros mundos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1994, p.93. 186 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 2ª edição. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Moraais. Rio de Janeiro: Nau, 1999, p. 23. 187 A respeito da herança política deixada por LISZT na Alemanha, MUÑOZ CONDE escreve um artigo em que irá “esmiuçar o que teriam sido, em partes, os germens das construções dogmáticas e político-criminais totalitárias, presenciadas no período nacional-socialista na Alemanha.” MUÑOZ CONDE, Francisco. La herencia de Franz Von Liszt. In: Justiça e Sistema Criminal. Revista produzida pelo Grupo de Pesquisas Modernas Tendências do Sistema Criminal. V. 3 – n. 5 – jul./dez.2011, p. 23. 188 Conforme ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 224. 189 ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 06.

Page 53: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

57

integrável no sistema?” 190

Há de se responder afirmativamente à indagação proposta pelo

jurista alemão.

A partir de sua obra, diversos outros jusfilósofos filiaram-se à adoção do método

axiológico proposto pela política criminal para a correção de algumas problemáticas

existentes na dogmática penal. O próprio ROXIN cita JESCHECK em uma passagem em que

este reconhece os pontos favoráveis de uma possível quebra de rigidez da regra: “O essencial

é sempre a solução do problema; exigências sistemáticas, por serem menos importantes,

devem recuar para um segundo plano.” 191 Há, também, a lição de BUSATO e HUAPAYA,

para quem “além de tudo, um sistema penal orientado axiologicamente por princípios de

política criminal tende a converter-se em uma estrutura dogmática próxima da realidade

social.” 192

Por óbvio, ROXIN adverte sobre os riscos da adoção, unicamente, de critérios

valorativos individuais, expostos que estariam ao arbítrio do julgador, e, mais uma vez,

ressalta a importância do equilíbrio e da dialética entre o racionalismo e o axiológico. Assim,

fixados que estão os conceitos e princípios de dogmática penal, ressalte-se a lição do mestre

alemão:

De todo o exposto fica claro que o caminho correto só pode ser deixar as

decisões valorativas político-criminais introduzirem-se no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação legal, a clareza e previsibilidade, as interações harmônicas e as consequências detalhadas deste sistema não fiquem a dever nada à versão formal-positivista de proveniência lisztiana. Submissão ao direito e adequação a fins político- criminais não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese, da mesma forma que o Estado de Direito e o Estado Social não são opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidade dialética.

193

A lição de ROXIN demonstra que o pensamento complexo, como já salientado, tem

muito mais a oferecer à ciência do que ela por si só, separada, distante, poderia traduzir-se. O

pensamento sistemático restrito ao direito positivo possui um caráter fortemente

simplificador, e se outrora contribuíra, de forma decisiva, para o desenvolvimento e

construção das bases do direito penal, sem as quais, hoje não se falaria, sequer, em teoria do

190 ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 07. 191 Apud ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 08. 192 BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao direito penal. Fundamentos para um sistema penal democrático. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 10. 193 ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 20.

Page 54: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

58

delito, frente às complexidades das relações sociais impostas pelo desenvolvimento

tecnológico global, há que se compreendê-lo (o pensamento sistemático positivo) a partir das

injunções que o extranormativo lhe impõe.

Quando se compreende a complexidade do real é que se consegue estabelecer

aquilo que deva ser o melhor e mais justo na aplicação do direito penal. Ademais, não se deve

olvidar que a salvaguarda da liberdade, de cariz liberal e tão apregoada por LISZT, conduz, de

igual forma, as decisões político-criminais.

E não deve ser de outra maneira. Afinal, o postulado pelo principio nullum crimen

nulla poena sine lege 194 proíbe punições ou o agravamento de punições pelo direito

consuetudinário, e constitui direito fundamental do indivíduo. Este princípio penal limitador

do poder punitivo estatal não pode (e não deve) ser suprimido, pois que o artigo 5º, inciso

XXXIX, da Constituição Federal possui eficácia e efetividade, irradiando seu conteúdo para

dentro de todas as normas, constitucionais ou infraconstitucionais, do ordenamento

jurídico.195

Nesta seara, e buscando romper as diferenças e a barreira que a afirmação de que

dogmática penal traduz-se no direito tal como ele é e a política criminal no direito como ele

deve ser, ROXIN adverte sobre a necessidade de a dogmática estar revestida do manto da

política-criminal. 196 Esta afirmação corrobora o que já se mencionou a respeito da

reflexividade que deve exteriorizar-se no âmbito da epistemologia e do ensino.

O dogmático deve ser analisado à luz do político-criminalmente mais justo e vice-

versa, ou seja, não deve, a política-criminal, olvidar-se dos direitos do cidadão e dos

princípios seculares que constituem a base de um direito penal democrático. ALAOR LEITE,

doutorando sob a orientação de ROXIN, a respeito do método, bem adverte que “há algum

tempo ecoam lamúrias a respeito do afastamento entre teoria e prática. (...) A caneta do

cientista, diferentemente daquela do magistrado, não assina” 197

; e prossegue, concluindo que

não deve, a ciência, se permitir divagações desgarradas dos reais problemas jurídicos.

194 Foi com FEUERBACH que o postulado atingiu significativa concretude jurídica. Para um estudo mais aprofundado: FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de Derecho Penal. 14ª ed. Tradução de Eugenio Raúl Zaffaroni e Irma Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi, 2007, p. 55. 195 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, pp. 73-74. 196 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 225. 197 LEITE, Alaor e ASSIS, Augusto. O erro. Especial foco no erro de proibição. In: Teoria do Delito. Série Direito Penal baseado em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 299.

Page 55: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

59

Mais do que nunca, o momento histórico atual (que inclui sociedade, política,

cultura e outras tantas áreas da vida) é ambientado por milhares e ininterruptos contatos

sociais, muitas vezes anônimos 198 , por uma vasta e complexa rede de relações

199 e

comportamentos, o que implica, sob o ponto de vista prático, na tomada de diversas decisões,

dentre elas, a que gira em torno dos riscos destes comportamentos e atividades introduzidas “a

toque de caixa” pela sociedade moderna.

É certo que, conforme salientado por JAKOBS, “numa sociedade em que vários

elementos estão vinculados a outras muitas circunstâncias, a causalidade carece de contornos determináveis”

200 , o que traduz, sem embargo, a insuficiência do sistema ontológico de

atribuição do resultado mediante a análise de um sistema puramente mecânico, como o do

nexo de causalidade.

A doutrina alemã das últimas décadas do século passado, buscando corrigir este

problema, então, tratou de introduzir e reforçar a aplicação de critérios axiológicos de

imputação, calcada que estava num pensamento complexo superior, tendente a utilizar, em

prol do sistema de direito penal, os parâmetros de política criminal.

Desta feita, “a unidade sistemática entre política-criminal e direito penal” 201

, que

no entender de ROXIN, “deve ser realizada na construção da teoria do delito, é somente o

cumprimento de uma tarefa que é colocada a todas as esferas da nossa ordem jurídica” 202.

Com a intensificação dos riscos advindos das atividades sociais – riscos, estes, cujo

alcance não se pode, muitas vezes, prever ou definir - decorre consequência fundamental para

o estudo atual da teoria do crime culposo: a busca pelo controle de riscos advindos de

tomadas de decisões humanas passa pela adoção de critérios funcionais na tentativa de se

definir se determinada conduta deva ser tolerada ou proibida pela legislação penal, o que

ocorre através da definição de patamares de riscos.

198 O termo “contatos sociais” é utilizado, com frequência e a priori, por JAKOBS, quando esclarece que, desde sempre (desde Adão e Eva) a Humanidade deve tomar em conta todas as consequências desses possíveis “contatos”. JAKOBS, Günther. A Imputação Objetiva no Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 14. 199 O sociólogo MANUEL CASTELLS refere-se à chamada “sociedade em rede” para definir a sociedade do novo século, econômica e socialmente dinâmica e interligada pela nova era da informação. Segundo ele, “a economia global se caracteriza hoje pelo fluxo e troca quase instantânea de informação, capital e comunicação cultural”, o que se reflete na aceleração, cada vez maior, do ritmo das descobertas e de suas aplicações. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Vol. 1, A era da informação: economia, sociedade e cultura. Prefácio de Fernando Henrique Cardoso. Tradução de Roneide Venancio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 200 JAKOBS, Günther. A Imputação Objetiva no Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, prólogo. 201 ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.22. 202 ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.22.

Page 56: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

60

O critério do risco, assim, traduz, em matéria de crime culposo, tendência

substitutiva à “quebra de dever de cuidado”. Desloca-se o eixo da imputação: como foco de

interesse do direito penal, a causação física de uma modificação no mundo exterior perde

força; ao contrário, ganha força a vinculação do comportamento com a exposição do bem

jurídico a dano ou perigo de dano. 203 O eixo central da imputação desloca-se, então, do

resultado naturalístico ao resultado jurídico.

Superadas, assim, as bases ontológicas na construção de uma dogmática penal (que

se fez, durante certo tempo, estéril), a política criminal ganha força e integra o sistema como

protagonista na atribuição de funções ou tarefas ao direito, enquanto conjunto normativo. De

um sistema cuja ideia fundante girava em torno do conceito de conduta humana - quer em sua

concepção causalista, ou finalista -, chega-se a um sistema, reconhecedor de sua

complexidade, cujo ponto de equilíbrio dá-se no estabelecimento e atendimento às funções do

direito penal.

Ora. Não há ambientação melhor para um sistema dogmático construído com “ares”

político-criminais que a atual, em que a “matematização do mundo” perde sentido e a

desconfiança social generalizada traz o direito penal ao palco - embora figurante como ultima

ratio - da controlabilidade de riscos provenientes de novas tecnologias. Oportuna a lição de

TAVARES, ao anunciar a que vieram as chamadas teorias funcionais pós-finalistas:

O termo funcional tem suscitado muitas controvérsias. Desde o século

XIX, com a obra dos corifeus da escola sociológica francesa, e já no primeiro terço do século XX, com a proposição de Bronislaw Malinowski de uma antropologia que se deveria ocupar da cultura como uma relação funcional, quer dizer, como um aparelho instrumental capaz de resolver as necessidades e os problemas humanos, a investigação científica das atividades sociais se deslocou da simples constatação (cognição) para um procedimento no qual os elementos singulares, como por exemplo, a conduta, deveriam ser vistos como engrenagens de uma estrutura global.

204

Esta estrutura global deve ser representada, exatamente, pela função do direito

penal que, a depender da posição que se adote, variará. Isto porque, do estabelecimento de

missões 205 ao sistema jurídico-penal, a proposta do funcionalismo é, conforme as palavras de

203 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série

Direito penal baseado em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Editora Juruá, 2012, p. 115. 204 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 156. 205 Conforme salientado por BUSATO, o emprego do termo “missão” é mais vantajoso que o do termo “função”, para refletir o plano do dever ser. Segundo ele, “no campo do direito penal, o termo ‘função’ corresponde aos efeitos objetivamente reais, ainda que não desejados, da aplicação concreta do Sistema juídico-penal. Por isso, parece mais adequada a utilização do termo ‘missões’ para denominar as consequências desejadas e buscadas

Page 57: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

61

GUARAGNI, “fazer os conceitos renderem de forma otimizada quanto ao cumprimento de suas finalidades sistêmicas”

206 , isto é, à luz dos critérios político-criminais sempre

preocupados com os ideias de justiça, revisitam-se alguns conceitos clássicos da teoria do

delito, como por exemplo, o da tipicidade (e, consequentemente, a culpa stricto sensu), com

vistas à melhor solução dos problemas práticos vislumbrados. Vale a transcrição da lição de

LUÍS GRECO, para quem o funcionalismo nada mais é que a remodulação das categorias

dogmáticas de crime para que “sejam capazes de desempenhar um papel acertado no sistema,

alcançando consequências justas e adequadas.” 207 O discurso aqui pretendido, é de se frisar,

não compactua, ademais, com a superação dos princípios clássicos garantistas, estes

indispensáveis e atuantes como um eixo a legitimarem soluções justas e coerentes. Calha a

lição de ROXIN, segundo a qual, o ponto de partida consiste em reconhecer que a única

restrição se encontra nos princípios da Constituição.208

Fato é que verificada a insuficiência e a imperfeição da causalidade natural

(evidenciadas no artigo 13 do Código Penal brasileiro) como determinante da imputação,

criaram-se critérios de análise do tipo objetivo, critérios estes, teleológico-normativos,

complementares do tipo, por um lado, e restritivos da causalidade, por outro.

Os critérios de imputação objetiva 209 ficaram, durante muito tempo, adstritos à

aplicação no âmbito do delito culposo. E ainda que hoje se vislumbre necessária importância

pelo Sistema penal.” BUSATO, Paulo César. O risco e a imputação objetiva. In: Teoria do delito. Série Direito penal baseado em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 64. 206 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 258. 207 GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. nº 32, out./dez. São Paulo: RT, 2000, p. 132 . 208 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 55. 209 Sabe-se que o tema da imputação objetiva não é, necessariamente, novo no ambiente jurídico-penal, vez que criada por LARENZ para o direito civil e trazida por HÖNIG para o direito penal, porém restava abandonado diante o sistema jurídico racionalista antecedente às teorias pós-finalistas. A este respeito, BUSATO adverte que “ao contrário do que eventualmente se pode pensar, o tema da imputação objetiva não é exatamente um assunto novo, nem muito menos fruto de concepções modernas sobre a teoria do delito, ainda que tenha lugar nelas, o que enseja que alguns autores comentem a existência de uma ‘moderna teoria da imputação objetiva’, em oposição a uma formulação ‘antiga’, para qualificá-la de algum modo. Não nos parece existir, com efeito uma ‘nova teoria da imputação objetiva’, mas sim novas concepções sobre as categorias delitivas, o que conduz à releitura de vários tópicos, entre eles, a parte objetiva da imputação.” BUSATO, Paulo César. Fatos e Mitos sobre a Imputação Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 04. Retrocedendo ainda mais no tempo, JAKOBS relembra que “desde o primeiro episódio conhecido na história da Humanidade sobre a violação de uma norma (que remonta a Adão e Eva), se transluz - ainda que de maneira não muito intensa – um problema de imputação objetiva.” JAKOBS, Günther. A Imputação Objetiva no Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 13. A respeito, ainda, do tema da imputação objetiva, é bastante considerável a doutrina brasileira que trate, com cautela, do tema: BUSATO, Paulo César. Fatos e mitos sobre a Imputação Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008; GALVÃO, Fernando. Imputação objetiva. 2ª ed., Belo Horizonte: Mandamentos, 2002; PREUSSLER, Gustavo de Souza. Aplicação da teoria da Imputação Objetiva no injusto negligente. Porto

Page 58: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

62

da avaliação destes critérios, também, quanto ao delito comissivo doloso, como pretendido

por JAKOBS 210

, é certo que a maioria arrasadora de casos em que se discute a aplicação dos

critérios de imputação objetiva dá-se no âmbito da tipicidade culposa 211

, já que se o cerne da

teoria de imputação é, hoje, a criação de riscos proibidos - o que caracteriza a essência do

crime culposo, quando adicionada ao critério da contrariedade a um dever normativo. Não por

outro motivo, esta modalidade de delito ganha protagonismo, mister nos últimos 30 anos.

Decerto, traduz-se a expansão da modalidade culposa de delito, na causa mais

necessária de ponderação de riscos permitidos – no sentido de não incomodativos de bens

jurídicos (ROXIN) ou no sentido de não desestabilizadores de expectativas em relação às

normas e aos modos de comportamento (JAKOBS) -, ocasião em que os critérios de

imputação objetiva 212 far-se-ão extremamente úteis para, tendo alguém dado causa a um

evento, aferir se o resultado deve (ou não) ser-lhe imputado. Imputação objetiva não traduz,

assim, concorrência à teoria da causalidade, vez que parte do pressuposto de que há causa,

mas traduz-se, isso sim, em medida de restrição do tipo objetivo a critérios provenientes do

universo do dever ser.

Os exemplos fornecidos pela doutrina se repetem. Tratam, a menudo, do

caminhoneiro que, ultrapassando em 10% a velocidade mínima prevista na rodovia, abate

sujeito que se jogara da ponte em ato suicida. Na hipótese, ainda que o caminhoneiro

mantivesse a velocidade de segurança, o resultado letal teria ocorrido.

Outro exemplo recorrentemente fornecido pela doutrina e, assim como o anterior,

recolhido da jurisprudência alemã, trata do caso do anestésico novocaína, que deveria ser

administrado a uma criança. Na hipótese, fora administrado, equivocadamente, cocaína; a

Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006. CAMARGO, Antonio Luís Chaves. Imputação objetiva e direito penal brasileiro. São Paulo: Livraria Paulista, 2002. E, sob a organização de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli: PEÑARANDA RAMOS, Enrique; SUÁREZ GONZÁLEZ, Carlos; CANCIO MELIÁ, Manuel. Um novo sistema do direito penal: considerações sobre a teoria de Günther Jakobs. Barueri, São Paulo: Manole, 2003. 210 JAKOBS, Günther. A Imputação Objetiva no Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, prólogo. 211 Na contramão do preconizado por JAKOBS, tem-se KAUFMANN, que nega que a imputação objetiva também seja utilizada como “teoria do tipo aos delitos dolosos, alegando, entre outras razões, que ‘está estampado na testa que provêm do tipo culposo’.” KAUFMANN, Armin Apud FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Teoria da Imputação Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da Teoria da imputação objetiva. Tradução de Nereu José Giacomolli. Barueri, São Paulo: Manole, 2003, p. 05. 212 CORCOY BIDASOLO enuncia que “os primeiros esboços do que poderíamos denominar já de teoria tradicional da imputação objetiva surgiram no âmbito dos delitos culposos.” (t.n.) CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. El delito imprudente: criterios de imputación del resultado. Barcelona: 1989, p. 31.

Page 59: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

63

criança vem a óbito e, posteriormente, se descobre que era portadora de uma anomalia e que,

impreterivelmente, viria a morrer, em uma hipótese ou em outra. 213

Assim, a opção em alçar a política- criminal à ideia fundante do sistema faz do

delito culposo peça fundamental no estudo (que se pretenda complexo e global) da dogmática

penal atual. Conforme lecionado por MUÑOZ CONDE, “o essencial do tipo de injusto do

delito negligente não é a simples causação do resultado, mas a forma em que se realiza a

ação” 214

; é dizer, portanto, que “diferentemente do delito doloso, o delito negligente, isto é, a

realização negligente dos elementos de um tipo de delito, não é punido em qualquer caso.”215

Para além de se afirmar que determinado comportamento esteja de acordo com o princípio da

causalidade, há de se inferir se o resultado lesivo advindo do comportamento deva ser

imputado ao agente.

A respeito da importância em se adotarem critérios de imputação objetiva frente à

inflação de novos riscos e atividades merecedoras de atenção por parte do legislador e do

julgador, tem-se a lição quase profética de HONIG, ainda em 1930216

:

Ainda que o juízo não se baseie no saber e no querer atuais do autor, (...) é

determinante a questão de se saber se o autor, mediante sua conduta, em concorrência com outros fatores dados fora de seu controle, pôde incidir na produção do resultado ou na sua evitação. (...) O conteúdo desta questão, o alcance de um fim determinado, faz com que todo fator da situação de fato seja essencial, com o qual o centro de gravidade da decisão não se traduza em generalização – como a teoria da causalidade -, mas singularizada em cada caso. (t.n.)

217

Já KINDHÄUSER, em 2008, ao escrever sobre o incremento e a diminuição do

risco como critérios de imputação objetiva, pôs em xeque o preconizado por JAKOBS 218

, de

213 Dentre outros, os exemplos são fornecidos por: FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Teoria da Imputação

Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da Teoria da imputação objetiva. Tradução de Nereu José Giacomolli. Barueri, São Paulo: Manole, 2003, pp. 10-11; CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. El delito imprudente: critérios de imputación del resultado. Barcelona: 1989, p. 431; ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997. 214 MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do delito. Tradução de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988, p. 70. 215 MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do delito. Tradução de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988, p. 70. 216 Aqui, mais uma vez, se reconhece que não se trata, a imputação objetiva, de tema novidadeiro na doutrina. 217 HONIG, Richard. Causalidad e imputación objetiva. In: Causalidad, riesgo e imputación. 100 años de contribuciones críticas sobre imputación objetiva y subjetiva. Organização e Tradução de Marcelo Sancinetti. Buenos Aires: Hammurabi, 2009, p. 117. 218 Conforme JAKOBS, a culpa stricto sensu caracteriza-se como uma cegueira diante dos fatos e garante que a diferença principal entre dolo e culpa reside na evitabilidade, e não na cognoscibilidade. Enquanto o dolo se traduz no conhecimento da conduta e de suas consequências, a culpa é sua verdadeira contramão. Portanto, uma

Page 60: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

64

que a diferença fundamental entre o dolo e a culpa resida, única e fundamentalmente, no

requisito da evitabilidade. Ensina o alemão, também professor da Universidade de Bonn,

sobre a importância de se adotarem critérios de imputação objetiva:

A teoria da imputação objetiva, desenvolvida, sobretudo, nas últimas

quatro décadas, considera insuficiente uma imputação do resultado orientada somente segundo o parâmetro da evitabilidade individual conforme o cuidado por parte do causante. Antes, será necessário delimitar objetivamente – é dizer, antes da imputação individual do autor – o objeto de reprovabilidade jurídico-penal. Nesta medida, a teoria da imputação objetiva persegue o fim de restringir o ilícito abarcado pelo tipo objetivo do delito. (t.n.)

219

Saliente-se, ademais que, apesar de o direito penal econômico – ramo do direito

penal sobre o qual se tratará adiante – não possuir bibliografia tão extensa como os demais

âmbitos do direito penal, é frequente a observação de que, no momento de enunciar as

peculiaridades que apresentam os delitos econômicos no terreno do tipo de injusto, destacam-

se as concernentes à causalidade e à imputação objetiva. 220

De tudo isso, conclui-se que a depender da missão escolhida no emprego e

remanejamento dos conceitos de direito penal, ou seja, a depender da finalidade político-

criminal eleita, cambiará a orientação do direito penal, podendo, ora orientar-se à proteção de

bens jurídicos, ora “fixar os objetivos preventivo-gerais da pena no afã de imprimir um certo

conteúdo ético nas condutas das pessoas, imposto verticalmente, de cima para baixo, pelo

Estado.” 221

E, ainda, há outras tantas correntes funcionalistas sendo desenvolvidas 222 , o que

confirma a existência de uma gama de missões político-criminalmente impostas no âmbito da

dogmática e, por conseguinte, diferentes repercussões a serem sentidas em sede de crime

culposo. A depender da ordem de orientação dada à conduta realizada, haverá injusto culposo,

conduta culposa não constitui injusto pelo fato de a realização do tipo ser cognoscível (a cognoscibilidade somente transforma a culpa em dolo), mas por ser evitável a realização do fato cognoscível. JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes e Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2008, p. 448. 219 KINDHÄUSER, Urs. Incremento del riesgo y disminución del riesgo. In: Causalidad, riesgo e imputación. 100 años de contribuciones críticas sobre imputación objetiva y subjetiva. Organização e Tradução de Marcelo Sancinetti. Buenos Aires: Hammurabi, 2009, p. 575. 220 TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico: comunitario, español, alemán. Barcelona: Editorial PPU, 1993, pp. 164 e ss. 221 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 258. 222 Há várias conceituações funcionais na literatura atual, a destacar, além de ROXIN, JAKOBS e FRISCH: Enrique Bacigalupo, Rolf Dietrich Herzberg, Hans-Joaquin Behrendt, Francisco Munõz Conde, Tomás Salvador Vives Antón, Jürgen Habermas e Klaus Günther.

Page 61: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

65

ou não. Isto porque, a conduta humana não mais se traduz em mera manifestação externa

individual e passa a ter sentido como elemento dentro de um sistema orientado pelas

finalidades (ou missões) eleitas.

Fixados estes parâmetros e a ideia fundante do pensamento teleológico do direito

penal moderno, resta definir e examinar as consequências práticas e a repercussão dos

critérios adotados em cada linha funcional, na ação culposa. Trabalhar-se-á, assim, um

aspecto do crime culposo, a imputação, e a (consequente) forma com que o risco repercute,

ademais, nos critérios dogmáticos de imputação.

2.1. ROXIN e os critérios de imputação no crime culposo

Conforme já salientado, ganharam força, em meados dos anos 70 do século

passado, as teorias pós-finalistas do direito, de cunho funcionalista, e costuma-se apontar

“Política criminal e sistema jurídico penal”, de ROXIN, como obra inaugural desta nova fase

do direito penal.

Efetivamente, o direito penal é conduzido a uma nova era que iria transformar

conceitos e reunir adeptos do chamado funcionalismo mundo afora. Surge um direito penal

interessado em se adaptar à dialética dos fenômenos sociais, transformando os obstáculos da

injustiça social e da insuficiência dogmática em ponto de apoio a um direito penal funcional

para o desenvolvimento de um novo sistema jurídico.

A submissão dos conceitos dogmáticos de direito penal à epistemologia ôntica

acabou por afastar a ciência jurídica - uma ciência evidentemente cultural - de uma ordem

justa e coerente de orientação. Ressalte-se a crítica de MESTIERI a um direito penal tido

como sistema apriorístico e genérico:

Artificialismo, formalismo, alienação e anêmica capacidade de abrangência

dos fenômenos sociais, fazem do direito dogmatizado força inservível para a plena composição dos conflitos de interesses do mundo atual, onde predominam os valores de abrangência e de comunicação entre as ciências, para além de não raro o sistema dogmático abençoar, em concreto, decisões legais de insuportável cinismo e injustiça, em detrimento das classes marginalizadas. (...) Para permear-se devidamente, o direito deverá interessar-se pelo drama social em sua inteireza. O correto redimensionamento do direito compreenderá, necessariamente, a visão do

Page 62: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

66

fato social como relação de adaptação do indivíduo à vida social; aos vários círculos de coletividades de que venha a fazer parte.

223

Em outras palavras, surge o funcionalismo para “corrigir” as mazelas de um

sistema acentuadamente dedutivo a partir da análise global dos conceitos jurídicos da teoria

do delito, com vistas a atenuar as desigualdades provenientes de uma estruturação dogmático-

normativa “dura”. O exame do conflito de interesses no direito penal não deve mais contentar-

se com soluções parciais e facciosas da simples regra de direito. 224

Não por outro motivo, ROXIN garante ser perigoso trabalhar com um pensamento

dogmático sistemático, manifestado que é como característica de determinadas concepções

pré-determinadas. 225 Deu-se conta, o penalista alemão, dos problemas decorrentes das teorias

causal e final na esfera da tipicidade e, a partir de seus estudos, buscou equilibrar as medidas

do injusto e da responsabilidade dele decorrente, calcado no justo balanceamento entre

necessidade interventiva estatal, de um lado, e liberdade individual, de outro.

Ocorre que, este balanceamento, em sua concepção, deve ocorrer de modo diverso,

a depender da função básica de cada uma das categorias dogmáticas do crime.226 Assim é que

surgira a primeira pretensão do funcionalismo, qual seja a remodulação e reaproveitamento

dos conceitos da teoria do delito de forma tal que fossem capazes de cumprir com sua função

no direito penal, a partir de concepções político-criminais mais justas e igualitárias. Para

tanto, ROXIN precisou romper com a máxima lisztiana, segundo a qual “o direito penal é a barreira intransponível da política criminal”

227 , pois como bem salientado, o apego ao

positivismo, que ele chama de classificatório 228 , acabara por “isolar a dogmática, por um

lado, das decisões valorativas político-criminais e, por outro, da realidade social.” 229

223 MESTIERI, João. Controle social e direito penal científico. In: Estudos críticos sobre o sistema penal.

Homenagem ao Professor Doutor Juarez Cirino dos Santos por seu 70º aniversário. Org. Jacson Zilio e Fábio Bozza. Curitiba: Editora Ledze, 2012, pp. 70-71. 224 MESTIERI, João. Controle social e direito penal científico. In: Estudos críticos sobre o sistema penal. Homenagem ao Professor Doutor Juarez Cirino dos Santos por seu 70º aniversário. Org. Jacson Zilio e Fábio Bozza. Curitiba: Editora Ledze, 2012, p. 72. 225 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 217. 226 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2ª edição. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.70. 227 ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 01. 228 ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 22. 229 ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 23.

Page 63: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

67

Os modelos ontológicos de estruturação da teoria do delito, ao buscar pertencerem

ao universo do ser, através da sistematização normativa, afastavam-se da realidade das coisas,

induzindo o julgador, muitas vezes, a decisões dogmaticamente corretas, porém político-

criminalmente equivocadas, e vice-versa. 230 A opção pela funcionalização dos conceitos

dogmáticos de crime foi a solução encontrada para corrigir o enfraquecimento que o

tratamento sistematizado do crime irrompera.

Estabelecido seu ponto de partida teleológico, ROXIN rompe as barreiras entre

direito penal e política-criminal, orientando aquele às funções subservientes a esta. Neste

sentido, e em decorrência do melhor aproveitamento das categorias dogmáticas a partir das

funções atribuídas ao direito, supõe-se que elas devam operar independentes, porém,

comunicativamente, ainda que se mostre paradoxal tal critério.

A proposta do funcionalismo é permitir o melhor rendimento dos conceitos, em

prol da estabilidade do sistema, o que somente pode ser alcançado através da análise

interdisciplinar e otimizada dos escalões da conduta, da tipicidade, da ilicitude e da

culpabilidade. É recomendável, para tanto, que todas as categorias estejam “atreladas

reciprocamente, à medida que se voltem para o mesmo norte: fazer com que o direito penal

realize as finalidades propostas.” 231

Paralelamente à derrocada das teorias finalistas da ação, a partir da década de 70,

ganha nova roupagem, também, as teorias da pena, que passaram a ser funcionalizadas,

naquele momento, quando impostas ao caso concreto. ROXIN, assim, ao eleger como missão

precípua do direito penal a proteção subsidiária de bens jurídicos (e, com ela, o livre

desenvolvimento do indivíduo) irá trespassá-la ao fim da pena. O penalista alemão, após

discorrer sobre as diversas teorias segundo as quais se interpretam os fins da pena, partidariza-

se a uma teoria unificadora dialético-preventiva que, ademais, configura uma das possíveis

combinações sobressaltadas a partir da retribuição, da prevenção especial e da prevenção

geral.

ROXIN parte do pressuposto de que, na sociedade atual, todo teoria que busque

interpretar o fim da pena só deve fazê-lo através do tipo preventivo. Isto porque, “as normas

penais só se justificam quando tendem à proteção da liberdade individual e à ordem social que

230 ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 17. 231 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 257.

Page 64: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

68

a seu serviço esteja; também a pena concreta só pode perseguir isto, é dizer, um fim

preventivo do delito.” 232

Do entendimento de que uma teoria mista (ou unificadora) como a sua o é, deve

conter traços tanto da prevenção especial como da geral, pois, parte do pressuposto de que

nem uma, nem outra, nem, tampouco, a retribuição, são capazes de determinar, por si só, os

limites da pena, ROXIN salienta que “os atos delitivos tanto podem ser evitados através da

influência sobre o particular, como sobre a coletividade, ambos os meios se subordinam ao fim último e são igualmente legítimos.”

233 É através do caso concreto que se irá delimitar,

eficazmente, qual critério a ser adotado, devendo-se sopesar um e outro e pô-los em uma

ordem de prelação: enquanto, por um lado, a prevenção especial deve dominar no âmbito da

ressocialização, a prevenção geral se acentua no âmbito das cominações penais, impostas pela

sentença. 234

Resta compreender, afinal, a finalidade político-criminal atribuída ao direito penal,

em torno da qual girarão os conceitos da teoria do delito. Opta, o professor de Munique, por

uma estruturação teleológica do sistema penal, funcionalizada pela proteção subsidiária de

bens jurídicos do indivíduo e da coletividade contra riscos socialmente intoleráveis, a partir

daquela análise unificadora dialético-preventivo da pena. 235 Vinculam-se as categorias do

delito ao postulado do nullum crimen, sobressaltando, o direito penal, como ultima ratio do

sistema.

As decisões a respeito se determinada conduta lesiva deva ou não ser imputada ao

agente – no que a análise sobre imputação por crime culposo sobressalta - passam, assim, pela

valoração teleológica proposta por ROXIN, ultrapassando a esfera ontológica das coisas, que

se mostrou inadequada e insuficiente à ciência complexa do direito penal e ao ambiente social

da virada de século.

Cada categoria do delito é analisada e sistematizada pelo mestre alemão sob o

ângulo de sua função de preservação de bens jurídicos, interessando, para a análise do crime

culposo, sua remodulação do conceito de ação e de tipicidade. ROXIN parte de um conceito

232 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito.

Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 95. 233 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 95. 234 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 98. 235 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2ª edição. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.71.

Page 65: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

69

de ação para além do explicado pelas ciências naturais, mas como manifestação da

personalidade 236 , uma atividade mais que motora, pois, acima de tudo, vinculada ao seu

centro anímico-espiritual de ação 237 . O exemplo dado em seu “Tratado” é o da conduta

puramente reflexa, realizada em atos de sonambulismo ou de distúrbios da consciência 238

.

Nestas hipóteses, inexiste manifestação exterior da personalidade, inexistindo, portanto, ação.

Nem se cogita, por consequência, de tipicidade culposa.

Com esta reformulação da categoria da conduta, ROXIN abarca, no conceito de

manifestação externa da personalidade, tanto as ações dolosas e culposas, como as omissões,

corrigindo as falhas, quanto a esta última categoria, existentes nas teorias ônticas anteriores. O

conceito pessoal de ação de ROXIN, como ele mesmo preleciona, pode ser considerado como

elemento básico, na medida em que abarca todas as formas de manifestação da conduta

delitiva; como elemento de enlace, pois consegue reunir, em um só conceito, as acepções

normativista, naturalística e espiritual de ação; como elemento limite, na medida em que

classifica e delimita a ação e a não ação, ou a falta de ação. 239

No âmbito da tipicidade, ROXIN, ao fazer prevalecerem as bases político-criminais

da moderna teoria do fim da pena 240

, agrega-lhe, para além de sua pura função sistemática de

adequação fática ao tipo, um função delimitadora da intervenção jurídico-penal, através da

realização do princípio nullum crimen nulla poena sine lege. O “giro” proposto por seu

funcionalismo teleológico-racional, no âmbito da tipicidade, consiste em reduzir o âmbito de

atuação da causalidade que, através da teoria da conditio sine qua non (ou teoria da

equivalência dos antecedentes causais), reunia um público extenso de “causadores” do fato.

Desta feita, tem-se uma reestruturação do tipo objetivo, segundo critérios político-

criminais, realizada através da utilização de alguns critérios de imputação objetiva. A

tendência funcionalista combate o preenchimento do tipo objetivo pelo mero nexo de

causalidade, o que configurara uma crescente redução epistemológica. O funcionalismo de

236 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 252. 237 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 252. 238 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 252. 239 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 258. 240 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 203

Page 66: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

70

ROXIN adiciona, no âmbito do tipo objetivo, critérios normativos de imputação objetiva do

resultado, fundados essencialmente na “realização de um perigo não permitido dentro do fim

de proteção de norma, substituindo a categoria científico-natural da causalidade por um

conjunto de regras orientado a valorações jurídicas.” 241

Em sede de crimes culposos, assim, tem-se que “na medida em que o tipo não

contenha uma descrição adicional da conduta, ela é preenchida mediante a teoria da

imputação objetiva.” 242 Prossegue o penalista: “Em realidade, por trás da característica da

infração de dever de cuidado se escondem distintos elementos de imputação que caracterizam os pressupostos da imprudência de maneira mais precisa que a tal cláusula geral.” 243

Pretende, a teoria da imputação objetiva, deixar de fora do âmbito da tipicidade

objetiva e, por conseguinte, da responsabilização jurídico-penal, cursos causais irrelevantes.

Mesmo quando realizado o nexo de causalidade entre conduta e tipicidade legal, e ainda que

transgredido bem jurídico alheio, se a conduta fática não criar ou incrementar risco não

permitido, não há que se falar em imputação objetiva. Isto se dá, “pois existem certas

situações previamente dispostas na sociedade de risco, que ante a ausência de criação de um

risco não permitido, bem como na falta de sua realização, tornam o ius puniendi estatal inócuo

e sem sentido.” 244

De fato, reconhece-se que o zeitgeist ou espírito do tempo vem atuando de forma

decisiva no desenvolvimento das modernas teorias de imputação objetiva. Ressalte-se a lição

de FERNANDO GALVÃO, neste sentido:

Sem dúvida, a criminalidade e o delito não fazem parte de uma realidade

natural, mas, sim, de uma construção jurídico-social, que depende dos juízos valorativos que produzem a qualidade de criminosa à conduta à qual se aplicam. (...) O Marquês de Beccaria já ressaltou que a justiça dos homens, a qual qualificou de “justiça política”, não passa de uma relação estabelecida entre uma ação e o estado variável da sociedade. Considerando essa variabilidade do ambiente social e de seus atores especificamente, percebeu Beccaria que a justiça também apresenta

241 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 204. 242 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 999. 243 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, pp. 999-1000. 244 PREUSSLER, Gustavo de Souza. Aplicação da teoria da imputação objetiva no injusto negligente. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006, p.24.

Page 67: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

71

variações à medida que a ação se torna vantajosa ou necessária ao grupo social. (grifo nosso)

245

No processo de desenvolvimento de seu funcionalismo, ROXIN chegou a afirmar

que os crimes culposos seriam, em verdade, delitos de dever, e não delitos de ação.246 Isto

significava que a imprudência não se contentava com a realização de uma ação, mas com a

violação de um dever normativo. 247 Com o aperfeiçoamento de seus estudos, o catedrático de

Munique abandona a tese de que o delito culposo se subsumia em um delito de dever, e passa

a tratá-lo sob a mesma estrutura do delito doloso, isto é, a criação ao bem jurídico de um risco

não permitido.

Com a evolução de sua teoria do incremento do risco, ROXIN ganhou adeptos em

todo o mundo 248

, merecendo destaque ainda maior quando se trata dos delitos culposos, pois como salientado por ele, hoje “cerca de metade dos delitos são delitos imprudentes”. 249

Apesar de os critérios de imputação objetiva valerem tanto para crimes dolosos

como para culposos, tem-se uma maior percepção de sua utilização nestes últimos. Como bem

elucida BUSATO, “definitivamente, o fundamento do castigo da imprudência reside em um

excesso de periculosidade a respeito dos limites de tolerabilidade de riscos sociais

estabelecidos na norma.” 250

A imputação objetiva do evento ao agente gira em volta da criação de risco

proibido para o bem jurídico. Desloca-se o eixo da imputação, conforme já salientado, e o

foco de interesse do direito penal que, antes correspondia à causação física de um resultado,

hoje se traduz na vinculação do comportamento com a exposição do bem jurídico a dano ou

perigo de dano. A conexão física entre conduta e resultado naturalístico é apenas aspecto

concernente a alguns tipos de injusto, no aspecto formal-objetivo.

245 GALVÃO, Fernando. Imputação objetiva. 2ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 58. 246 Apud TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3ª edição. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.167. 247 ROXIN, Claus. Política criminal y sistema de Derecho Penal. Tradução de Francisco Muñoz Conde. Buenos Aires: 2000, p. 71. 248 Pode-se citar: Jescheck, Stratenwerth, Maurach, Rudolphi e Bacigalupo. No Brasil, cite-se Luís Greco. 249 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 996. 250 BUSATO, Paulo César. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 278.

Page 68: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

72

Vem daí ser locução mais apropriada que a tradicional “quebra de dever de

cuidado” a referência de que, em crimes culposos, exige-se a criação de riscos proibidos para

se imputar um resultado concreto ao agente, de dano ou perigo de dano ao bem jurídico. 251

Ainda que se encontre em grande parte da jurisprudência e da doutrina científica a

expressão “quebra de dever de cuidado” (e com ela, outras tantas, como “previsibilidade” e

“evitabilidade”) como requisitos do crime culposo, assiste razão a ROXIN quando sustenta

que estes termos são mais vagos que os critérios de imputação objetiva e, ademais, “errôneos

do ponto de vista da lógica da norma”. 252 Ora, a utilização da locução “quebra de dever de

cuidado” acaba por remitir o crime culposo, desarrazoadamente, à ideia de omissão,

conquanto a não observância de um cuidado devido subsuma-se, inadequadamente, numa

omissão. E afirmar que todo crime culposo seja omissivo (ou comissivo por omissão) é um

erro que merecera ser combatido.

De então, tem-se que, pela evolução estrutural do delito culposo, atrelada aos

mandamentos da política criminal, prescinde-se da observância (dúbia) do chamado dever de

cuidado objetivo 253

, em favor da análise de determinados critérios normativos de imputação

objetiva.

A partir da análise de determinados grupos de casos, ROXIN elaborou critérios de

imputação objetiva, segundo os quais se analisará se o agente causador de uma conduta lesiva

a bem jurídico as suportará, ou não. Assim, não basta dar causa no universo do ser (nexo

causal entre conduta e resultado naturalístico), deve o agente suportar critérios normativos de

imputação, do universo do dever ser. O penalista alemão, aliás, sobre os perigos de um

pensamento sistemático, adverte que “o fato de obter a solução de problemas jurídicos de

deduções do contexto sistemático pode conduzir a injustiças no respectivo caso concreto.”

(t.n.) 254

251 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito penal baseado em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 115. 252 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 1000. 253 ROXIN traz exemplos nos quais se verifica que, para além da nomenclatura “quebra de dever de cuidado objetivo” não representar critério válido para caracterização de um crime culposo, igualmente não o são os termos “previsibilidade” ou “cognoscibilidade”. Para tanto, dá o exemplo do ferido por tiro de revólver que morre em um incêndio ocorrido no hospital. O resultado morte por incêndio não era previsível, nem cognoscível, motivo porque a melhor solução encontrada para a hipótese é, certamente, a constatação de que não há homicídio culposo por falta de realização de perigo. ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, pp. 1000-1001. 254 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 210.

Page 69: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

73

Em sua totalidade, têm-se nove grupos de casos a partir dos quais ROXIN

desenvolveu seus critérios de imputação, sendo possível subsumi-los em três critérios (cada

qual abarcará três grupos de casos), conforme os quais o ilícito de resultado só se realizará de

modo juridicamente relevante se: (i) houver criação (ou incremento) de risco ou perigo não

permitido; (ii) houver realização objetiva do risco no resultado; (iii) houver verificação do

risco no âmbito de proteção da norma.

Pela teoria do incremento do risco, ainda que uma conduta lesiva a bem jurídico de

outrem se encontre subsumida a determinado tipo legal a partir do critério de causalidade

atuante no sistema penal vigente, não há que se falar em responsabilização jurídico-penal se

esta conduta objetivamente não criar (ou ao menos, incrementar) risco não permitido. Em

sede de crimes culposos, falta, de início, a contrariedade ao cuidado devido, quando o sujeito,

desde o princípio, não criou, com sua conduta, um perigo juridicamente relevante. Isto

porque, conforme lição de ROXIN, o elemento da infração ao dever de cuidado é mais vago e

impreciso que os critérios gerais de imputação e, por isso, é prescindível. 255

Parte-se da análise do caso concreto para a verificação, in thesis, se a conduta

realizada infringiu norma regida pelo setor da vida em que se deu o evento – exalta-se, assim,

a normativa que rege a área da vida onde ocorrera a conduta lesiva, por exemplo, normativa

de trânsito, normas regulamentadoras do comércio, normas fitossanitárias. 256

O exemplo recorrentemente fornecido é o do sujeito que instiga seu desafeto a

viajar a um lugar perigoso (cidade onde há furacões, floresta onde há raios), perfazendo-se a

mera causalidade da conduta na hipótese de o desafeto realmente vir a óbito, em decorrência

dos furacões, ou dos raios. Ainda que a viagem perfaça, objetivamente, causa da morte e,

ainda que, subjetivamente, o sujeito tenha querido a morte da vítima, é certo que sua conduta

“não criou um perigo de morte juridicamente relevante e não elevou de modo mensurável o

risco geral de vida.” 257 A conclusão parcial que se tem, nesta hipótese, é que expor alguém ao

risco de ser atingido por um raio numa chuva configura risco permitido.

Na seara dos crimes contra a ordem econômica, dispostos na Lei 8.137/90, também

podem (e devem) ser desenvolvidas reflexões a respeito da criação de riscos não permitidos.

Assim, como exemplo, tome-se o artigo 4º, inciso I, previsto na Lei: “Considera-se crime

255 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 1000. 256 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito penal baseado em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 117. 257 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2ª edição. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 104.

Page 70: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

74

contra a ordem econômica: I. abusar do poder econômico, dominando o mercado ou

eliminando, total ou parcialmente, a concorrência, mediante qualquer forma de ajuste ou

acordo de empresas.” Ora, é certo que, além desta, as demais modalidades delitivas previstas

na Lei devem ser idôneas a que a ordem econômica - como bem jurídico - veja contra si um

perigo juridicamente relevante realizado. Isto significa que o comportamento analisado sob a

luz do critério de imputação objetiva deve, objetivamente, ter adquirido um significado de

abuso típico (idôneo ou adequado à criação de um risco proibido à ordem econômica). 258

Ainda neste grupo de casos, é bastante recorrente, em sala de aula, o exemplo da

esposa que, buscando assumir a herança do marido, o instiga a ingerir peixe baiacu,

popularmente reconhecido como venenoso. Não há que se lhe imputar o crime de homicídio

culposo, nem doloso, pois evidentemente não houve criação de risco não permitido.

Vigora, nestas hipóteses, o princípio da confiança, trazido ao sistema jurídico-penal

através de uma releitura global das disciplinas, vez que sua utilização restringia-se ao âmbito

do direito penal de trânsito.259 Este postulado parte do pressuposto de que, na sociedade

global moderna, todos gerenciam tecnologias e atividades “perigosas” em face de todos. Daí a

importância e a expansão dos crimes culposos na legislação extravagante desde o último

quarto do século passado (vide Lei de crimes ambientais, Lei de crimes consumeiristas, etc.).

A intensificação dos aparatos tecnológicos, de alcance democrático e generalizado,

trouxe consigo a exigência de maiores cautelas e cuidados nas tomadas de decisões e nas

ações realizadas, principalmente as que repercutem, de alguma maneira, para a coletividade.

De outra banda, é certo que, quanto mais são exigidos cuidados, mais os praticantes de

condutas nos âmbitos de exigência, praticarão desvios. 260 O mecanismo atual que gira em

torno dos patamares de riscos é cíclico: quanto mais riscos, mais exigências e mais cuidados a

serem tomados pelos indivíduos.

Daí que se vislumbra o âmbito de atuação do princípio da confiança, na medida em

que não se exige do direito penal o “zeramento” de riscos nem, tampouco, exige-se dos

indivíduos que vivam em suas “bolhas domésticas”, receosos de adentrarem no âmbito de

258 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Cuestiones actuales de Derecho Penal Económico. Buenos Aires: Julio

César Faira Editor, 2009, p. 248. 259 ROXIN estende o princípio da confiança, reconhecido sobretudo no direito penal “de circulação”, aos outros setores da vida, denominando-o de “cooperação de divisão de trabalho”, e exemplifica a atuação médica, em que um médico deve confiar que o instrumentador irá lhe passar o bisturi, e não uma tesoura, ou outro objeto inadequado. ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 1005. 260 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito penal baseado em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 120.

Page 71: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

75

atuação perigosa proibida. CAMARGO bem garante que a integração social, decorrente do

princípio da confiança de todos perante todos, realiza-se através do agir comunicativo 261

, na

medida em que o importante, para o conceito de ação, deva ser sua estrutura teleológica 262 ,e

isto faz lembrar célebre passagem de HEIDEGGER, para quem “somos, antes de tudo, na

linguagem, e pela linguagem.” 263

Perfaz-se uma integração (necessária) entre os indivíduos atuantes em grupos

sociais, devendo existir confiança recíproca e dinâmica dos participantes. ROXIN, ao

sobressaltar o princípio da confiança como vertente mestra da análise de riscos permitidos,

leciona que se pode (e diga-se, deve-se) confiar no comportamento adequado daqueles que

dividem o mesmo espaço social, “enquanto não existirem pontos de apoio concretos em

sentido contrário, os quais não seriam de afirmar-se diante de uma aparência suspeita, mas

diante de uma possível inclinação para o fato.” 264

As regras pressupostas da aldeia global devem conter a característica, já

mencionada, da reflexividade. Através de um complexo e dinâmico jogo de linguagem, os

atores sociais confiam uns nos outros, enquanto atuantes de seus papéis no meio em que

estiverem inseridos, voltando-se para si próprios. Segundo explica HABERMAS: “uma

pessoa que se socializou numa determinada língua e numa determinada forma de vida

cultural, não pode, senão, dedicar-se a certas práticas comunicativas, acendendo assim

tacitamente a certos pressupostos pragmáticos presumivelmente gerais.” 265

Assim é que não se exige dos motoristas, no trânsito, que olhem para ambos os

lados da rua antes de atravessarem um sinal verde. O que não se vislumbra na hipótese de um

condutor que avista outro motorista desobedecendo a prioridade da via.266 O princípio da

261 CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação objetiva e direito penal brasileiro. São Paulo: Livraria

Paulista, 2002, p. 142. 262 Reconhece-se, neste momento, influência da filosofia da linguagem de LUDWIG WITTGENSTEIN e da teoria da ação comunicativa de JÜRGEN HABERMAS. Este último, filósofo e sociólogo da Escola de Frankfurt, trabalha com a ideia da interação comunicacional, devendo-se restringir o uso de uma racionalidade instrumental (dirigida, na sociedade moderna, à mera consecução de fins, fosse qual fosse os meios utilizados para isso), em prol de uma racionalidade comunicativa (uma razão que contém em si as possibilidades de reconciliação consigo mesma). HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1989 e HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. Tradução de Manuel Jiménez Redondo. 4ª edição. Madrid: Catedra, 2001. 263 HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. 2ª edição. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003, p. 191. 264 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2ª edição. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 105. 265 HABERMAS, Jürgen. Textos e contextos. Tradução de Sandra Lippert Vieira. Lisboa: Piaget, s.d., p. 27. 266 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 1005.

Page 72: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

76

confiança, ademais, deve ser afastado diante de uma “reconhecível inclinação para o fato” 267

ou de uma aparência suspeita que possa, efetivamente, ser criadora de risco proibido.

MIRENTXU CORCOY BIDASOLO, catedrática de Barcelona, ao discorrer sobre

o princípio da confiança, já advertira sobre sua restrição, o que se dá pela aplicação de dois

outros princípios: (i) a não eficácia ao princípio de confiança para o sujeito que infringe o

cuidado e (ii) o princípio de defesa, próprio de uma inversão do princípio da confiança. Aduz

que ambos são criações jurisprudenciais.268

Pelo primeiro, tem-se a regra social de que o princípio da confiança não subsiste a

quem infringe o dever de cuidado. Assim, é certo que “o princípio da confiança não pode

justificar a própria conduta imprudente, mas, não menos certo, é que não se pode atribuir ao

sujeito o dever de evitar o risco advindo das condutas de todas as outras pessoas.” 269

Pelo segundo princípio de restrição, tem-se o princípio de defesa, segundo o qual,

explica CORCOY BIDASOLO, volta-se à proteção dos membros da sociedade que se

encontram mais ameaçados ou mais necessitados de proteção. Assim, “o interveniente no

tráfico se vê obrigado a prevenir o comportamento defeituoso dos demais, sobretudo, no caso

de crianças, idosos e deficientes.” 270

A aplicação de uma regra, ademais, não deve ser dada a cogitações absolutas e

irrestritas. Ponderações são sempre necessárias a uma ciência complexa.

Tem-se a hipótese de um vendedor de uma loja de artefatos explosivos que entrega

objeto potencialmente destrutivo a um sujeito que se encontra em plena rixa no interior de sua

loja. Ainda que, no universo do ser, tenha o vendedor agido conforme seu papel de vendedor,

tem-se que, em virtude de seu conhecimento da situação, deveria ter se abstido da venda do

artefato, podendo-lhe, no caso, ser imputado homicídio culposo ou cumplicidade no

homicídio. A rixa no interior da loja, afinal, desfaz a atuação neutra e as razões para confiar.

No âmbito da criação de um risco juridicamente relevante, ganha importância a

face teleológico-racional atribuída ao direito penal, segundo a qual se exige que “o risco

criado determine um perigo além do limite da confiança recíproca e do limite da autorização,

267 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2ª edição. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 105. 268 CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. El delito imprudente. Criterios de imputación del resultado. 2ª edição. Buenos Aires: Julio Cesar Faira, 2005, p. 317. 269 CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. El delito imprudente. Criterios de imputación del resultado. 2ª edição. Buenos Aires: Julio Cesar Faira, 2005, p. 318. 270 CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. El delito imprudente. Criterios de imputación del resultado. 2ª edição. Buenos Aires: Julio Cesar Faira, 2005, p. 319.

Page 73: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

ou consenso que pauta o agir comunicativo, na interação social.”

77

271 Frise-se, ainda, que a

determinação do risco não permitido deve ser realizada a partir da normativa coerente com o

âmbito da vida que rege a ação, mormente a partir da nova percepção social, em face da

tecnologia e da evolução científica que refletem no modo de agir das pessoas. O princípio da

confiança serve, conforme afirmado por ROXIN, para “a negação de um incremento de perigo

inadmissível.” 272

Na esfera de proteção de bens jurídicos supraindividuais, verifica-se especial

concretização do critério, uma vez que o risco permitido produz ampla operatividade na esfera

do direito penal econômico, a partir do momento em que, num adequado funcionamento do

sistema econômico, necessariamente se realizarão atividades potencialmente perigosas para

bens jurídicos.273

Resvalando a aplicabilidade do conceito do risco permitido nos delitos econômicos,

costuma-se tratar do contexto de atividades percebidas socialmente como normais - ainda que

não sejam - próprias de uma reiteração ocorrida no âmbito da atividade empresarial. Há um

consenso, na doutrina do direito penal econômico, de que a admissão de riscos permitidos,

nesta seara, deve ser realizada a partir de um juízo de ponderação de interesses, que permitam,

ao final, fixar o limite máximo do risco. 274 Assim, na hipótese de agrupar, determinado

agente, conhecimentos especiais sobre uma dada situação (por exemplo, o administrador que

possui conhecimentos privados acerca da futura evolução do mercado financeiro) o nível do

risco permitido se reduz, vez que tais conhecimentos especiais são relevantes para se

determinar o cuidado devido.

Assim, conforme lição de ROXIN, o que está amparado pelo risco permitido não é,

portanto, imprudente, mas, logicamente, um risco permitido não pode, somente, estar

desculpado, mas há de fazer desaparecer o injusto. 275

O segundo grupo de casos dado pelo mestre alemão, e pertencente ao critério da

criação ou incremento de risco não permitido, traduz-se na hipótese da redução do patamar

271 CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação objetiva e direito penal brasileiro. São Paulo: Livraria Paulista, 2002, p. 143. 272 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 1004. 273 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ. Carlos. Derecho Penal Económico y de la empresa. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 266. 274 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ. Carlos. Derecho Penal Económico y de la empresa. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 267. 275 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 998.

Page 74: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

78

de risco. No direito penal, a proibição de ações direciona-se àquelas capazes de causar lesão

no mundo objetivo, provocada por um dissenso, o que não se verifica em atuações dispostas a

reduzir ou minimizar os riscos. Ora, se alguém, com sua conduta, modifica um curso causal,

diminuindo um risco ou um perigo iminente a outrem, certamente não criou ou incrementou

risco proibido.

A hipótese a ser indicada é a ação de A, que percebendo que B (transeunte em uma

rua qualquer) será atingido por um vaso que cai do alto de um prédio e que, certamente, ao

alcançar o solo e sua cabeça, lhe causará danos irreversíveis, empurra o transeunte, que cai e

fere os joelhos. Se analisada a situação sob o ponto de vista da conditio sine qua non,

certamente se verificará que B foi o causador dos ferimentos de A. Porém, não deve existir

nenhum resquício de tipicidade objetiva neste caso, uma vez que B diminuiu o patamar de

risco a que A estava sujeito (risco de vida, lesões graves, etc.).

Ainda neste grupo de casos, é exemplo recorrentemente fornecido em sala de aula,

o sujeito que, ao perceber que um colega de trabalho cairia em uma bacia de ácido sulfúrico, o

que lhe causaria a morte, empurra-o para fora dali, resultando, não a morte, mas um braço

fraturado. De igual forma, não deve restar dúvidas de que, analisada a conduta de forma

global, não houve incremento de risco, mas sua diminuição, hipótese em que “seria absurdo

proibir ações que não pioram, mas melhoram o estado do bem jurídico protegido.” 276

Para além da questão material do resultado, a análise sobre a diminuição do risco

encontra alguns obstáculos, tais como se a nova relação de risco (o braço fraturado ou o

joelho ferido), podem ser amparadas pela lei, como presunção de consentimento, ou como

estado de necessidade. A respeito destas valorações, ROXIN é categórico ao afirmar que

“naturalmente, no caso concreto, pode ser difícil a delimitação entre a diminuição de um risco

e sua troca por outro, mas esta é uma dificuldade própria de todos os problemas que se

enfrentam com relação à tipicidade e suas exceções.” 277

O terceiro e último grupo de casos dado por ROXIN e pertencente ao critério de

imputação objetiva que leva em conta a criação ou incremento de riscos não permitidos, gira

em torno da hipótese de o sujeito, com sua conduta, não diminuir o risco de lesão a bem

jurídico, mas, tampouco, não o aumentar de modo juridicamente considerável. Assim, por

exemplo, o maquinista de um trem que, desgovernado, estivesse prestes a se chocar contra

276 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 366. 277 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 366.

Page 75: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

79

uma montanha, tenta, com suas manobras, desviar o trem e impedir o resultado, porém, não

obtém êxito e o trem se choca contra outra montanha. Ainda que a conduta do maquinista do

trem tenha, do ponto de vista causal, realizado lesão a diversos bens jurídicos (vida,

integridade física, etc.), a mudança no curso causal não representou incremento de risco a bem

jurídico.

ROXIN garante que “como a provocação de uma conduta socialmente normal e

geralmente não perigosa não pode estar proibida, não haverá ação homicida tipicamente

delitiva, ainda que excepcionalmente tal atuação seja a causa de uma lesão a bem jurídico”. 278

Assim, mais uma vez, resta concluir que não basta a mera causalidade para a verificação de

relevância penal e, na hipótese analisada, a mera modificação do risco permitido por outro de

igual medida, não justifica a imputação objetiva.

O segundo critério de imputação objetiva formulado por ROXIN engloba outros

três grupos de casos e se traduz na análise da realização do risco não permitido no resultado.

A primeira análise exemplificativa deste critério é formulada a partir do caso do sujeito que

atira em seu desafeto, e este, por obra do acaso, acaba falecendo em decorrência do

capotamento da ambulância que o transportava ao hospital. Trata esta hipótese, dos casos em

que a correlação existente entre risco e resultado é de acaso. O resultado morte não pode (e

não deve) ser imputado ao agente que desferiu o tiro, ainda que lhe possa ser imputada

tentativa de homicídio.

Efetivamente, o ato de desferir um tiro de arma de fogo em alguém não é causa de

morte por acidentes por capotamento. Falta, portanto, a realização do risco que fora criado

pelo tiro. Como bem salienta ROXIN, “o risco de morrer em um acidente não foi elevado pelo

transporte na ambulância; ele não é maior do que o risco de se acidentar quando se passeie a

pé, ou com o próprio automóvel.” 279 A criação de risco proibido ocorrida ex ante (o tiro) não

repercutiu concretamente sobre o resultado (a morte por acidente). Fica claro, então que

“assim como a criação de perigo não permitido, a consumação requer, ademais, a realização

deste perigo” 280.

O segundo grupo de casos pertencente a este critério perfaz-se na ausência de

relação de determinabilidade entre risco e resultado, ou em outras palavras, nas hipóteses em

278 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 367. 279 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2ª edição. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 106. 280 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 375.

Page 76: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

80

que, mesmo produzido o risco não permitido, o resultado, ainda assim, ocorreria. Assim, por

exemplo, um caminhoneiro que dirige a 140 km/h, certamente, está, com sua conduta

imprudente, criando risco não permitido pelas normas e leis de trânsito. Porém, na hipótese de

este mesmo caminhoneiro atingir um suicida que se jogara de uma ponte, e este vir a morrer,

não há relação de determinabilidade objetiva existente entre o risco criado pelo caminhoneiro

e o resultado, pois, ainda que o motorista estivesse conduzindo o caminhão a 70 km/h, ainda

assim ocorreria a morte do suicida.

Neste diapasão, é certo que a condução de veículo em velocidade maior que a

regulamentada não aumenta o risco de atropelar suicidas que se jogam de uma ponte. Tendo

em mira o critério de que o risco criado deva se realizar no resultado ocorrido, ROXIN

leciona que “às vezes a superação do risco permitido não é totalmente irrelevante para o

resultado concreto, mas não obstante o curso causal era tão atípico que já não se poderia contemplar como realização do risco proibido anterior.”

281 De fato, a norma que pune a

condução em excesso de velocidade não visa, e nem o poderia, impedir que os automóveis

circulem em determinado lugar, a determinado momento. 282

Deve-se ressaltar, porém, que o critério ora analisado proposto por ROXIN para

haver imputação – relação de determinabilidade entre risco e resultado – traduz, para

ZAFFARONI E PIERANGELI, elemento autônomo do tipo culposo. Isto porque, ainda que o

condutor do caminhão tenha violado um dever de cuidado – ao ultrapassar o limite de

velocidade – ainda que se perpetrassem as condições adequadas, o resultado da mesma forma

se teria produzido. É a lição dos penalistas:

Estes casos demonstram que não basta que a conduta seja violadora do

dever de cuidado e cause o resultado, mas que, além disto, deve haver uma relação de determinabilidade entre a violação do dever de cuidado e a causação do resultado, isto é, que a violação do dever de cuidado deve ser determinante do resultado. A relação de determinação não é, de modo algum, uma relação de causalidade. Há causalidade quando a conduta de dirigir um veículo causa a morte de alguém, haja ou não violação do dever de cuidado. O que aqui se requer é que, numa conduta que tenha causado o resultado, e que seja violadora de um dever de cuidado, o resultado venha determinado pela violação do dever de cuidado.

283

281 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 377. 282 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 376. 283 ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Volume I. Parte geral. 7ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 443.

Page 77: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

81

ROMEO CASABONA, partindo do mesmo pressuposto, observa que “nos delitos

culposos de resultado, não basta que se tenha produzido um resultado material ou o perigo

concreto para o bem jurídico” 284, faz-se necessário uma relação de determinabilidade entre

violação do dever e resultado. ZAFFARONI e PIERANGELI encontram, como fundamento

legal para exigir a relação de determinação, o artigo 18, inciso II (“Diz-se o crime: II. culposo,

quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligencia ou imperícia”), o que

resulta que não basta que o resultado se tenha produzido, mas que, ainda, tenha sido causado

em razão da violação do dever de cuidado. 285

O terceiro grupo de casos, que não pode ser confundido com o terceiro critério de

imputação, gira em torno da verificação do âmbito de alcance da norma. A título

exemplificativo, citem-se os autos de inquérito policial 481.020-8/TJPR, iniciado para a

apuração de responsabilidade do prefeito municipal de São João do Caiuá pela prática do

crime de homicídio culposo, quando do acidente que vitimou um catador de papel, o qual,

dentro da área do aterro sanitário de São João, foi atingido pela basculante do caminhão de

lixo quando vasculhava objetos de seu interesse. A relação do prefeito com o episódio estaria

no fato de não haver cercado a área, dando causa ao sinistro. A Procuradoria Geral de Justiça

do Estado do Paraná determinou o arquivamento dos autos de inquérito, calcada,

principalmente, no critério de imputação objetiva, segundo o qual, somente se imputa um

evento ao agente quando quebra norma de cuidado cujos fins consistam em evitar resultados

nas circunstâncias projetadas pela norma. Noutros termos: normas de cuidado visam proteger

bens jurídicos em face de determinadas condutas. Se o contexto do fato concreto está fora do

âmbito de alcance desta norma, ainda que seja quebrada ou não observada, a imputação não se

estabelece. No caso, verifica-se que o âmbito de alcance da norma que manda cercar os

aterros de lixo é a preservação da saúde pública, não a evitação da morte de catadores de

papel.

O exemplo dado por ROXIN, para este critério, é o de dois ciclistas que resolvem

pedalar por uma rodovia, à noite, um atrás do outro, porém, sem sinalização de luz em suas

bicicletas. O ciclista que se encontrava à frente, devido à falta de iluminação, choca com outro

que vinha em sentido contrário. No caso em análise, ainda que o acidente pudesse ter sido

evitado se o ciclista de trás obedecesse às normas gerais de iluminação no trânsito, o resultado

(morte do ciclista da frente) não lhe pode ser imputado, pois a norma que impõe que, à noite,

284 ROMEO CASABONA, Carlos María. Conducta peligrosa e imprudencia en la sociedad de riesgo. Granada: Comares, 2005, p. 23. 285 ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Volume I. Parte geral. 7ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 443.

Page 78: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

82

deva se trafegar com iluminação própria, visa evitar acidentes com a própria pessoa, e não que

se iluminem outras bicicletas para que estas não se envolvam em acidentes.

Deste modo, em que pese o aumento (e incremento) de risco produzido pela

conduta de alguém, não há imputação objetiva de resultado se não estiver verificado, in casu,

o âmbito de alcance da norma. Isto porque, numa sociedade cada vez mais complexa, e cada

vez mais atuante nas mais diversas áreas da vida, não se pode exigir das normas um alcance

ilimitado, não se lhes exige o “zeramento” de todas as mortes e lástimas da vida. Certeira a

lição de FEIJÓO SÁNCHEZ de que “o critério do ‘fim de proteção da norma’ tem como

princípio básico a ideia de que a norma de conduta (norma de cuidado) somente se refere a

determinados riscos, não tendo que evitar a realização de riscos permitidos ou, o que é o

mesmo, de todo o tipo de riscos.” 286

Finalmente, chega-se ao terceiro critério proposto por ROXIN para a verificação e

análise da imputação objetiva, qual seja a verificação do âmbito de alcance do tipo, critério

que, juntamente com o grupo de casos antecedente (fim de proteção da norma típica), tem

fundamental importância no estudo do delito culposo. Ademais, quando se discute a

concreção do âmbito típico de proteção, discute-se, já, o alcance e a limitação do dever de

cuidado que incumbe ao sujeito. 287

O primeiro grupo de casos gira em torno da hipótese de cooperação de terceiro em

autocolocação em risco. O exemplo dado pelo catedrático de Munique é o de dois sujeitos, A

e B, inimigos, que se encontram nas proximidades de um lago com gelo quebradiço. Ambos

sabem que atravessá-lo implica em risco demasiadamente grande à vida, porém, ainda assim,

B, aconselhado por A, o faz, ocasião em que o gelo se parte e ele morre.288 A questão que se

impõe é se deve ser imputado a A o resultado morte de B e, consequentemente, se se pode

exigir responsabilidade por homicídio culposo.

Levado o critério da cooperação de terceiro em autocolocação em risco, tem-se, na

hipótese em questão, que o conhecimento do risco por parte de ambos exclui – na Alemanha -

a imputação objetiva do resultado, quando um deles, sabedor e conhecedor do potencial

resultado danoso, prossegue mesmo assim. A este respeito, ROXIN traz referencial

286 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Teoria da Imputação Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Tradução de Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 52. 287 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 1011. 288 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 387.

Page 79: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

83

jurisprudencial de 1984, que foi o estopim da transformação dos julgados que, em momentos

anteriores, puniam o sujeito A. Veja-se:

Autocolocações em perigo, desejadas e realizadas de modo responsável,

não estão compreendidas no tipo dos delitos de homicídio ou lesões corporais, ainda que o risco que se assumiu conscientemente se realize. Aquele que instiga, possibilita ou auxilia tal autocolocação em perigo não é punível por homicídio ou por lesões corporais. (BGHSt 32, p. 262)

289

Ocorre que, no Brasil, esta hipótese possui resolução diversa, uma vez que, ao

contrário do direito alemão, em que a questão atinente à cooperação de terceiro em

autocolocação em risco é discutida no campo do delito de homicídio, o mesmo não ocorre no

Brasil, onde se pune a participação em suicídio (artigo 122 do Código Penal).

Assim, ainda que, na doutrina alemã, o alcance do tipo (na hipótese, o tipo de

homicídio) não abranja autocolocações em perigo por parte de “potenciais suicidas”, uma vez

que o efeito protetivo da norma estende-se até o limite da autorresponsabilidade da vítima, é

certo que, na doutrina pátria, não há que se olvidar do tipo contido no artigo 122 do CP que

pune, por si só, a participação em suicídio. Não há, na Alemanha, correspondente tipo penal.

A lição de FEIJÓO SÁNCHEZ, para os países em que o critério se faz presente, é relevante:

Esse critério ressaltava com clareza que o problema do tipo não era causal,

mas uma questão relacionada com a interpretação teleológica dos tipos penais e a determinação de seu alcance (busca do fim, alcance das formulações típicas), especialmente no âmbito do delito culposo. (...) Encontra-se sedimentada na literatura a ideia de que essas “teorias da causalidade” eram, na realidade, “teorias primitivas da imputação”, que buscavam critérios valorativos de delimitação do alcance dos tipos penais.

290

O segundo grupo de casos pertencente a este critério de imputação gira em torno da

heterocolocação em risco consentida. Refere-se aos inúmeros casos em que alguém deixa-se

pôr em risco, com total e atual conhecimento, por outro. Assim é que, na hipótese de A,

avisada pelo parceiro que é contaminado pelo vírus HIV, ainda assim prossegue e mantém

relação com o soropositivo. Em que pese o parceiro, neste caso, ter, objetivamente, criado

289 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2ª edição. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008,

p. 109. 290 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Teoria da Imputação Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Tradução de Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, pp. 53-54.

Page 80: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

84

risco não permitido a alguém, não há imputação objetiva, pois, aquele alguém renunciou ao

campo de proteção do tipo.

Este grupo de casos possui muita incidência no tráfego moderno, como no exemplo

dado por ROXIN: um motorista que não se encontra em condições de condução pelo consumo

excessivo de álcool prossegue na condução e, ainda, permite que outros o acompanhem como

passageiros - conhecedores que são do estado de embriaguez do motorista. 291 Na hipótese de

os passageiros virem a morrer, em decorrência de um grave acidente, a jurisprudência alemã

tem aceitado que a violação do dever de cuidado por parte do motorista (ao dirigir

embriagado) deva ser substituída pelo fato de que os passageiros “aceitaram certo perigo com

um claro conhecimento do mesmo” 292

É certo que a análise das circunstâncias variará caso a caso, devendo ser

preenchidos dois requisitos, no mínimo, impostos por ROXIN: (i) o dano deve ser

consequência direta do risco ou perigo corrido, e não de circunstâncias ou fatos adicionais; (ii)

o sujeito colocado em perigo (nos exemplos fornecidos, a mulher que mantém relação sexual

e o passageiro que aceita a viagem de carro) deve ter a mesma responsabilidade pela atuação

de quem o pôs em perigo – haverá, assim, “assumido”, conscientemente, o risco. 293

Sem embargo, há muita discordância, tanto na doutrina, como na jurisprudência, a

respeito do critério representado por este grupo de casos. O próprio ROXIN destaca as

posições de SCHÜNEMANN e DÖLLING, para quem, respectivamente, a colocação em

perigo de terceiro com a sua concordância deve ser tratada como uma autocolocação em

perigo, o que para ROXIN não afeta o tratamento da imputação 294 e a colocação em perigo de

terceiro concordante só exclui a imputação daquele que na situação de perigo o colocara, na

hipótese de “o valor da autonomia da vítima colocada em prática pelo consentimento e o valor

291 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 394. 292 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 394. 293 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 395. 294 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 397.

Page 81: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

85

dos fins perseguidos com a conduta preponderarem sobre o desvalor ínsito da colocação em

perigo de uma vida.” 295

Como conclusão parcial, ROXIN garante que a figura jurídica da colocação em

perigo de um terceiro com seu consentimento deve prosseguir sendo fruto de estudos e

leciona que a concepção deste critério de imputação, desde o ponto de vista do alcance do

tipo, é discutido quase que exclusivamente em sede de crime culposo. 296

Por fim, o último grupo de casos pertencente ao terceiro critério de imputação

objetiva elaborado por ROXIN diz respeito à substituição da responsabilidade ou à atribuição

à esfera de responsabilidade alheia. O exemplo fornecido pela doutrina é o do caminhoneiro

que dirige sem iluminação nos faróis traseiros (e, portanto, criando risco proibido), e é

abordado por um policial, que o multa e ilumina a pista com o triângulo de sinalização para,

posteriormente, escoltá-lo até o posto policial. Acontece que, antes do trajeto, o policial retira

o triângulo de sinalização prematuramente e outro caminhão, que vinha na pista em sentido

contrário, acaba abalroando aquele primeiro que se encontrava sem os faróis, e o motorista do

último caminhão é lesionado mortalmente. A questão que se coloca, a partir desta hipótese, é

se deve o motorista do caminhão ser responsabilizado por homicídio culposo.

Com relação à causalidade, se levada em consideração somente a teoria da

equivalência das condições, há causas intermediárias culposas que, porém, carecem de

influencia sobre o nexo causal. Conforme o critério de imputação que se desdobra da análise

do âmbito de alcance do tipo, tem-se que o policial, na função em que se encontrava, assumiu

a segurança do tráfego, naquele momento.

Ainda que este critério, transportado a este grupo de casos, como o anterior,

também careça de maiores elaborações doutrinárias (o que, também, é fruto da carência de

decisões sobre o tema), ROXIN leciona que a ratio da exclusão da imputação nestes casos

(exclui-se a imputação ao motorista do caminhão) “encontra-se no fato de que determinados

profissionais, dentro do marco de sua competência quanto à vigilância e à eliminação das

fontes de perigo, são competentes de tal modo que terceiros não devam se intrometer.” 297

295 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 397. 296 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 398. 297 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 399.

Page 82: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

86

Em outras palavras, o policial, no exercício de sua função de vigiar e promover a

segurança, toma para si a responsabilidade de que não ocorram acidentes na rodovia. A

consequência político-criminal que se extrai da utilização deste critério de imputação é a

exacerbação da responsabilidade (no sentido literal, não jurídico) daqueles que manejam

atividades perigosas – atividades, estas, que duplicaram a partir de uma sociedade complexa e

globalmente informatizada, repita-se – e atividades reconhecidamente existentes para a

minimização do perigo, como as exercidas pelos bombeiros, soldados, policiais. E, ainda,

discute-se se o exercício da Medicina também deva entrar neste rol de atividades que a

sociedade “exige” a redução de riscos.

A discussão em sede de crimes culposos, a partir deste critério, gira,

essencialmente, em torno dos riscos que a escolha de determinadas profissões exige. Na

opinião de ROXIN, “os riscos profissionais são voluntários em um sentido só um pouco mais

ampliado, pois que ao escolher a profissão, assumem-se, espontaneamente, os riscos que com

ela advêm.” 298

A questão, porém, vai além. Resta definir a aplicação e a consequência de se

estabelecerem, objetivamente, regras e deveres decorrentes do ofício, em sede de crimes

culposos. Conforme salientado por JUAREZ TAVARES, “tais normas constituem, na

verdade, preceitos diretivos, preliminares da norma penal” 299 e o penalista brasileiro garante

que estas regras deveriam ser incluídas no “chamado direito de ordem pública, parte do direito

administrativo que engloba regras de conduta social, cujos destinatários são ou a coletividade ou certas pessoas que se dedicam a alguma atividade particular”

300 , como motoristas,

bombeiros, policiais, etc.

Ainda que haja divergência, na doutrina alemã, quanto à natureza jurídica das

regras decorrentes do ofício, no Brasil esta discussão é minimizada e a doutrina vem

considerando que, das condutas social e juridicamente relevantes, decorrentes do exercício da

profissão, aquelas que não constituam delitos (isto é, aquelas contra as quais não subsistir

preceito penal tipificador), deverão, ainda que relativamente independentes do direito penal,

298 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, pp. 399-400. 299 TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3ª edição. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 307. 300 TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3ª edição. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 307.

Page 83: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

87

ser consideradas infrações à ordem pública 301

, cabendo, contra elas, as intervenções

disciplinares decorrentes das regulamentações normativas de cada ofício.

Resta salientar, finalmente, que os critérios de imputação objetiva criados por

ROXIN são cumulativos, ou seja, da inobservância de quaisquer um dos três critérios por ele

desenvolvidos (criação ou incremento de risco proibido, realização do risco no resultado e

âmbito de alcance do tipo), exclui-se a tipicidade penal e, consequentemente, inexiste crime.

É de se frisar, que ROXIN estendeu a análise dos critérios de imputação objetiva

para os delitos de perigo. Se no passado, os critérios foram criados, exclusivamente, com o

intuito de melhorarem e restringirem o tipo objetivo nos crimes materiais (que possuem

resultado naturalístico), hoje, mister com a expansão, na legislação penal extravagante, dos

crimes culposos, enganchados que estão à tipificação por delitos de perigo, sua teoria de

imputação objetiva expande a atuação, não só ao tipo objetivo, mas, ainda no substrato da

tipicidade, na ofensa ao bem jurídico. 302

Por fim, ressalte-se um contributo fundamental da teoria de imputação objetiva: o

deslocamento dos critérios de imputação, do resultado naturalístico ao resultado jurídico.

Observou-se que não bastava o nexo causal entre a conduta e o resultado para haver

configurado o tipo objetivo. E, ademais, a imputação objetiva não deveria subsumir-se,

apenas, aos delitos de resultado, no que a localização da imputação objetiva no marco do

resultado naturalístico, ocasionava.

MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ observa, aliás, que o termo “causalidade” é, não raras

vezes, empregado em seu sentido mais estrito, aludindo à questão da atribuição ou imputação

fática de um resultado material a uma conduta cuja tipicidade se requer. “Ainda que a

doutrina utilize a expressão ‘imputação objetiva’ para se referir a esta questão, o certo é que

tal denominação não resulta plenamente adequada e é fonte de confusão com o conceito mais

amplo e mais preciso de imputação objetiva”. 303 O penalista espanhol adverte que imputação

objetiva deve descrever “o fenômeno que atribui o injusto específico de uma figura delitiva

301 TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3ª edição. Prefácio de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 309. 302 Recorde-se que a ofensa a bem jurídico configura o terceiro elemento da tipicidade penal: (i) tipicidade legal, esta subdividida em tipicidade objetiva e subjetiva; (ii) antinormatividade; (iii) ofensa a bem jurídico. GOMES, Luiz Flávio e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal. Vol. 2. Organização Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 250-280. 303 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Parte general. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 251.

Page 84: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

88

(isto é, a lesão ou a posta em perigo de um bem jurídico) a uma conduta que coincide com a

descrita pelo tipo.” 304

Portanto, a causalidade em sentido estrito – como atribuição fática – não se analisa

nos tipos de mera atividade, razão pela qual a imputação objetiva cumprirá papel fundamental

para comprovar que o risco criado pela conduta apresenta idoneidade para ofender o bem

jurídico protegido, partindo-se do primeiro critério de imputação, qual seja, a criação de riscos

proibidos relevantes.

Calha a lição de MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, calcado nos ensinamentos de

VIVES ANTÓN, a respeito das vantagens de se adotarem critérios de imputação objetiva:

Em suma, deve-se rechaçar toda pretensão de elaborar teorias uniformes e

generalizadas, como as que, com o apego ao método ‘cientificista’, tradicionalmente vinham se mantendo com relação à determinação da chamada relação de causalidade, pretendendo com isso resolver o problema (ainda que parcialmente) através do procedimento de descobrir leis de causa e efeito, que são válidas para as ciências da natureza, mas não para as ações humanas. (t.n.)

305

A partir, assim, da superação do fetiche em torno do nexo de causalidade, próprio

do início do século XX, transportou-se, por influência político-criminal, a imputação objetiva

ao âmbito do resultado jurídico – necessário a todos os delitos. Com esse “giro”, quem causou

o resultado – ou não, no caso de crimes que prescindem de resultado naturalístico – deverá

suportar, ainda, os critérios de imputação objetiva para haver configurada responsabilização

penal.

2.2. JAKOBS e os critérios de imputação no crime culposo

Os fundamentos político-criminais atribuídos ao crime culposo, endossados pelo

funcionalismo de GÜNTHER JAKOBS, merecem ser precedidos pelo conceito de conduta do

penalista alemão. JAKOBS considera as teorias causal-naturalista e finalista de ação

preocupadas, apenas, com aquilo que o sujeito projeta ao mundo exterior (movimento

304 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Parte general. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 251. 305 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Parte general. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 253.

Page 85: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

89

muscular voluntário em um, movimento dirigido a um fim, em outro); ele critica, exatamente,

a despreocupação - nas teorias tradicionais anteriores ao funcionalismo - com os impulsos

originários do movimento corporal voluntário ou dirigido a um fim, como evidência de que,

se pretendiam ser ônticas, não conseguiam. A crítica também se encontra em ZAFFARONI,

ALAGIA e SLOKAR: “partindo-se da distinção entre ‘governo da ação’ e ‘impulso ou

motivação’, Jakobs sustenta que a localização do primeiro no injusto e do segundo na

culpabilidade não é uma questão ôntica, mas uma decisão acerca do sujeito do injusto.” 306

O funcionalismo de JAKOBS é apoiado, até certo ponto, na teoria dos sistemas de

LUHMANN 307

, por acreditar que ela seja capaz de distinguir, de forma vantajosa para o

sistema jurídico, entre sistemas sociais e sistemas psíquicos. A teoria luhmanniana, de forma

muito simplificada, pode ser traduzida em um procedimento que busca diferenciar o sistema

social daquilo que existe à sua volta: “sistema e entorno, enquanto constituem as duas partes

de uma forma, podem, sem dúvida, existir separadamente, mas não podem existir,

respectivamente, um sem o outro. A unidade da forma permanece pressuposta como

diferença.” (t.n.) 308

O direito, no pensamento luhmanniano, é um sistema, ou melhor, um subsistema

tendente a atuar dentro de um sistema social maior. O entorno do direito é, exatamente, a

sociedade. Um não existe sem o outro e, pari passu, um é indicador do outro. O direito é,

portanto, um sistema de função atuante sob um agir comunicativo. 309 Esta linguagem tem o

objetivo, afinal, de minimizar o número de expectativas existentes nas relações humanas.

De fato, JAKOBS traz a base da teoria sistêmica para definir ação como causação

de um resultado individualmente evitável310 e leciona que o conceito penal de ação é, pois,

uma noção que “trata sobre o que é sujeito, o que é o mundo exterior para o sujeito e quando

se pode vincular a conformação do mundo exterior com o sujeito (imputação).” 311

306 ZAFFARONI, Eugénio Raul; PIERANGELI, José Henrique e SLOKAR, Alejandro. Derecho penal. Parte general. Buenos Aires: Ediar, 2000, p. 392. 307 JAKOBS recorre, em certos pontos, à teoria dos sistemas de LUHMANN, o que não se deve confundir com uma total transposição desta teoria ao pensamento do professor de Bonn: “Todavia, um conhecimento superficial dessa teoria (de Luhmann) permite perceber que as presentes considerações não são em absoluto consequentes a essa teoria, e isso nem sequer no que se refere a todas as questões fundamentais.” JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa: teoria de um direito penal funcional. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 01. 308 LUHMANN, Niklas e GEORGI, Rafaelle de. Teoría de la sociedad. Tradução de Miguel Romero Pérez e Carlos Villalobos. Guadalajara: Instituto Tecnológico y de Estudos Superiores de Occidente, 1993, p. 37. 309 LUHMANN, Niklas e GEORGI, Rafaelle de. Teoría de la sociedad. Tradução de Miguel Romero Pérez e Carlos Villalobos. Guadalajara: Instituto Tecnológico y de Estudos Superiores de Occidente, 1993, p. 67. 310 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 168. 311 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 169.

Page 86: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

90

Decompondo-se seu conceito de ação, tem-se a “causação de um resultado”, numa

definição distinta dos meros movimentos corporais voluntário do causalismo, que alocava o

resultado (modificação no mundo exterior) no conceito de conduta como resultado

naturalístico. Em JAKOBS, o resultado decorrente de uma causação evitável encontra-se no

conceito de conduta, mas vai além do mero resultado naturalístico, engloba todas as atuações

cognoscíveis e suas consequências. 312

No que concerne à expressão “individualmente evitável”, JAKOBS frisa a

desnecessidade do conhecimento da norma, por parte do sujeito. O conhecimento da norma

faz parte, segundo ele, do substrato da tipicidade. Na conduta, dá-se a evitabilidade individual

segundo “motivos superiores”, como por exemplo, paixão, natureza e raiva. A propósito, é a

lição do professor da Universidade de Bonn:

A evitabilidade é independente da cognoscibilidade da regulação jurídica e

tem que ser assim porque a cognoscibilidade não aporta nada ao poder do autor de realizar ou não algo, mas só dá um bom motivo ao autor leal ao direito para utilizar seu poder a fim de evitar o proibido (assim como para realizar o prescrito): a cognoscibilidade do direito pertence ao controle dos impulsos, não à direção da ação, porque é, no âmbito do injusto, assunto próprio do sujeito da imputação. (t.n.)

313

Assim, a conclusão parcial a que se chega, no plano da conduta, em JAKOBS, é

que somente havendo a “evitabilidade”, haverá conduta; somente preenchido este elemento da

conduta é que se torna possível prosseguir na análise dos demais substratos analíticos do

crime. Através de um método de hipótese – em que se analisa hipoteticamente determinada

situação - se analisa se o autor, tendo um motivo dominante para evitar determinada ação,

ainda assim prosseguiu em sua conduta, ou não a evitou. 314 Por exemplo, se um sujeito joga

telhas, de sua janela, em direção à calçada, há ação ainda que o sujeito não as queira

arremessar, mas, mesmo assim, o faz; ainda que o sujeito desconheça que jogar telhas numa

calçada seja proibido e ainda que o sujeito conheça a norma, mas se coloque contrário e

indiferente a ela.

Por outro lado, considera-se inevitável a ação, inexistindo crime por inexistir já a

conduta, na hipótese de o sujeito não poder conhecer que onde joga as telhas passa uma

312 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 303. 313 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, pp. 173-174. 314 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 174.

Page 87: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

91

calçada. Se o “resultado” existente no conceito de ação de JAKOBS engloba, exatamente,

todas as atuações cognoscíveis e suas consequências, então é certo que o conceito de ação,

para o penalista alemão, passa pela capacidade de conhecer do sujeito atuante. 315

São dois os grupos de expectativas que se travam quando da análise dos contatos

sociais: (i) as baseadas em motivos superiores, nas leis da natureza (cuja violação dá ensejo à

conduta); (ii) as baseadas no respeito às normas vigentes (cuja violação dá ensejo à

tipicidade).

Exemplifica-se, no âmbito do primeiro grupo de expectativas, a característica de

que todo ser humano é “feito de ‘carne e osso’ e que, portanto, também está sujeito às leis

naturais.” 316 Assim, tem-se que um sujeito afogando-se em alto-mar morreria pelo simples

fato de não saber nadar, ou se sofresse um ataque epilético, ou, ainda, se alguém o golpeasse

durante o afogamento. Não se pode exigir destas pessoas o respeito a normas jurídicas - pois

seria tarefa impossível -, mas que sigam as regras da natureza. Trata-se de expectativas

cognitivas, que se mal avaliadas, devem ser “calculadas melhor para o futuro, com a sabedoria

adquirida pela experiência”. 317

O motivo de assim se traçar este grupo de expectativas é trazido por JAKOBS:

“Essas situações são consideradas normais, porque sua imputação transformaria

potencialmente qualquer pessoa impossibilitada de tomar uma providência em criminoso e,

consequentemente, eliminaria tanto a segurança da expectativa quanto esta possa garantir.”318

Conforme já adiantado, este grupo de situações, calcado em eventualidades naturais

decorrentes dos contatos sociais não interessa ao direito penal; inexiste, nestas situações,

conforme já assinalado, ação.

O segundo âmbito de expectativas quanto ao comportamento dos demais seres

humanos traduz-se no respeito às normas vigentes, fazendo com que cada qual cumpra com

seu papel social e contribua com a estabilização da norma sobre o fato. Se determinado sujeito

deixa seu veículo em um posto de gasolina para limpeza, vindo o frentista a apropriar-se do

veículo319

, há uma frustração (ou decepção) da expectativa fundada na obediência à norma.

315 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid:

Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 174. 316 JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes e Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2008, p. 22. 317 JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes e Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2008, p. 22. 318 JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes e Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2008, p. 22. 319 O exemplo é dado por FÁBIO ANDRÉ GUARAGNI: As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 288.

Page 88: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

92

Cabe, no momento posterior à analise da conduta, identificar, através de uma teoria

de imputação, a tipicidade penal, esta sim, vinculada a uma evitação não mais segundo

motivos superiores, mas segundo a norma.

É com a linguagem simbolizada através da norma que são uniformizados os

contatos sociais; e o sistema jurídico, atuante como um sistema de função comunicativo, é o

responsável, na lição de JAKOBS, para a estabilidade do sistema social. Daí se dizer que seu

funcionalismo seja sistêmico radicalizado, na medida em que “funcionaliza não só os

conceitos, dentro do sistema jurídico-penal, como também este, dentro de uma teoria

funcionalista sistêmica da sociedade.” 320

A partir de uma visão sistêmica das coisas, então, JAKOBS leciona que não se pode

configurar a função da pena, e assim, consequentemente, a do direito penal, a par da

existência da ordem em que se pune, bem como a compreensão de seu sentido. 321 Esta

“ordem” é definida pelo penalista alemão como a ordem imposta pelo Estado, na medida em

que ele deva ser o responsável por garantir e assegurar sua própria existência322

, através, por

exemplo, da aplicação de penas severas. Trabalha, o alemão, com a teoria da prevenção geral

positiva da pena, segundo a qual, sua função é a de autoafirmação, isto é, a afirmação da

norma dentro do sistema. A pena, para ele, traduz-se como uma reação ante a infração de uma

norma.

Isto porque, segundo JAKOBS, o direito penal é um subsistema, conforme herança

luhmanniana, que não se presta à solução de conflitos, nem à proteção de bens jurídicos,

senão à função de estabilização normativa. É rechaçada qualquer bagagem ontológica ao

sistema de imputação, devendo prevalecer, única e exclusivamente, a estabilidade das

expectativas normativas que, segundo ele, é a responsável por assegurar que o direito penal

cumpra sua função. Nota-se, neste ponto, bagagem epistemológica trazida de HEGEL, “no

sentido de que, se o crime é a negação do direito, a pena é a negação do crime: como

dialeticamente a negação de uma negação é uma afirmação, tem-se que a pena – negação da

negação do direito – é a afirmação do direito”.323 Ainda que se reconheça um paralelo entre os

pensamentos de JAKOBS e HEGEL, constata-se uma diferença primordial na forma como

concebem a pena: enquanto HEGEL – idealista que é – concebe a pena em seu caráter

320 GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.32, out.-dez. 2000, p. 139. 321 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 08. 322 Por este motivo, o funcionalismo de JAKOBS é, muitas vezes, chamado de autopoiético. 323 Apud GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 293.

Page 89: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

93

retributivista somente, JAKOBS a vê como reafirmação da norma, dentro do marco de uma

teoria da prevenção geral positiva. 324

A preponderância da norma sobre o fato antinormativo visa a que as pessoas,

intercomunicadas que estão através dos mais diversos contatos sociais, não percam a

confiança na norma, o que ocorreria, a contrario sensu, se à infração de uma norma não

correspondesse uma pena equivalente. A aplicação da pena restaura a confiança (prevenção

geral positiva) de todos (prevenção geral) na norma, ou, nas palavras de JAKOBS, “exercita a

fidelidade ao Direito.” (t.n.) 325

Na linha de pensamento do penalista alemão, a violação de uma norma não importa

ao direito penal pelo fato de causar danos, riscos ou consequências externas, até porque

muitas das violações normativas consagram-se antes mesmo da ocorrência de resultado

naturalístico (como nos casos de tentativa). A violação de uma norma importa ao direito penal

já na medida em que a conduta antinormativa, que era evitável ao sujeito, coloca em risco a

boa organização dos contatos sociais.

JAKOBS, assim, na contramão da teoria de ROXIN, desvincula a missão do direito

penal à proteção de bens jurídicos. A diferença entre a prevenção geral positiva de um e a

unificadora dialético-preventiva de outro é que em ROXIN a confiança na norma faz-se

através da proteção subsidiária de bens jurídicos; já em JAKOBS, a única função da pena

criminal é, exatamente, a prevenção geral positiva, ou seja, a estabilização das expectativas

normativas. Nota-se, em ambos, evidente traço utilitarista da pena, próprio de uma sociedade

calejada pós-guerras – atuante, novamente, o Zeitgeist, expressão que representa a força do

tempo e do espaço na bagagem epistemológica de cada época. Afinal, a carga cultural de uma

época, presa a um espaço geográfico, funciona como atmosfera circundante, daí a perfeita

simbiose entre o discurso e o paradigma filosófico do espaço-tempo.326

Faz-se importante a lição de PEÑARANDA RAMOS, SUÁREZ GONZÁLEZ e

CANCIO MELIÁ:

A pena serve, precisamente, para que as expectativas normativamente

fundadas não fiquem anuladas por sua defraudação, no caso concreto; para sua manutenção ‘contrafática’, isto é, para sua manutenção, apesar da

324 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do

pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 293. 325 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p.18. 326 GUARAGNI, Fábio André. Da tutela penal de interesses individuais aos supraindividuais: Dialogando com Beccaria. In: Ler Beccaria hoje. Coleção Por que ler os clássicos. Volume I. Organização Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 33-34.

Page 90: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

94

evidência de sua defraudação de fato, mediante a definição como defeituosa da conduta do autor, e não da expectativa de que este se comportasse conforme a norma. A pena consiste, portanto, em uma contradição da violação da norma que se executa a custa de seu autor.

327

Ocorre que, em uma sociedade exacerbadamente complexa como a atual, os

contatos sociais multiplicam-se, abrindo caminho para um sem número de comportamentos

violadores (e não violadores) das normas. Emerge, daí, exatamente, a fundamental

compreensão a respeito da importância adquirida pelos crimes culposos, pois se aumentam os

contatos sociais, matematicamente aumentam os riscos advindos destes contatos.

O conceito de sociedade, para JAKOBS, foge ao conceito que a enxerga como uma

atuação paralela de sujeitos individuais e, por isto, recorre à teoria sistêmica luhmanniana,

ainda que em parte. De fato, conforme assinala JAKOBS, o existir humano traduz-se em

contatos sociais, levando em consideração, a todo tempo, os comportamentos imprevisíveis de

outras pessoas. Neste sentido, tem-se a lição:

Da mesma forma que os homens apenas conseguem lidar bem com a

natureza na medida em que possam reconhecer regularidade nos contatos sociais, a orientação também só é possível quando não é preciso contar a cada minuto com um comportamento imprevisível das outras pessoas. Caso contrário, todo contato tornar-se-ia um risco incalculável.

328

Assim é que, ao se travarem contatos sociais – quaisquer que sejam -, estabelecem-

se expectativas quanto aos demais comportamentos, conforme já salientado. “O fato de se

travar um contato social já é um sinal de que não se espera um desfecho totalmente

indeterminado”. 329

Ocorre que, em sede de crimes culposos, o próprio JAKOBS observa a dificuldade,

na individualização da imputação, da distinção entre dolo e culpa; rechaça a distinção

sustentada em explicações psicologistas (que travam que a evitabilidade é mais fácil no dolo)

e, também, as eticistas (que há, no dolo, a decisão de lesionar o bem) 330

. JAKOBS, assim,

leciona que “os atos imprudentes afetam a validez da norma menos que os dolosos, na medida

327 PEÑARANDA RAMOS, Enrique; SUÁREZ GONZÁLEZ, Carlos e CANCIO MELIÁ, Manuel. Um novo sistema do Direito Penal. Considerações sobre a teoria de Günther Jakobs. Organização e tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, pp. 08-09. 328 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 21. 329 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 21. 330 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 312.

Page 91: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

95

em que a culpa se manifesta da incompetência do autor para o manejo de seus próprios assuntos.”

331 (t.n.) Trata, prossegue o penalista, de uma não correspondência entre

representação e realidade, pois falta o conhecimento atual do que se quer evitar. 332

JAKOBS rechaça a suposta existência de um dever de cuidado, cuja infração

caracterize o crime culposo, pois, concernente à missão eleita pelo direito penal, apenas da

norma surgem deveres, restando relevante, assim, apenas a previsibilidade do risco que

ultrapasse o limite de riscos permitidos e que, ademais, seja objetivamente imputável. 333 Isto

porque, se inexiste um dever de cuidado especial, nem toda previsibilidade de um resultado

constitui imprudência relevante, mas apenas as limitações do tipo objetivo que se efetuam por

meio da imputação objetiva. 334

Resta, neste momento, restringir, através dos critérios de imputação objetiva, a

atuação da tipicidade objetiva. Leciona JAKOBS que “explicar por meio da imputação tem

por significado o seguinte: o risco pelo qual deve responder um dos intervenientes é definido

como causa determinante, enquanto que todas as demais condições se consideram não

determinantes, é dizer, estimam-se socialmente adequadas.” 335

A constatação de que todo e qualquer contato social é gerador de risco (e o

imediato desdobramento de que quanto mais contatos sociais, tantos mais riscos), não deve

conduzir à conclusão de que tais contatos devam ser evitados 336

, o que tornaria impossível o

convívio em sociedade. É neste diapasão que se constata que algumas formas de risco devam

ser toleradas e consideradas próprias ao convívio social, a não ser que fosse possível a

renúncia à sociedade e a permanência, do ser humano, em um estado total de isolamento. É

hipótese deveras impossível. JAKOBS, ao tentar definir risco permitido, ensina que “o risco

permitido não resolve uma colisão de bens, mas estabelece o que são hipóteses normais de

interação, já que a sociedade não é um mecanismo para obter a proteção de bens, mas um

contexto de interação.” 337 (t.n.)

331 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 312. 332 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 312. 333 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, pp. 384-385. 334 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 384. 335 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 15. 336 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 34. 337 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 35.

Page 92: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

96

A determinação se uma conduta possa ser considerada socialmente adequada, ou

seja, se se deve excluir imputação,338 deve passar pela análise de quatro critérios de imputação

objetiva: (i) risco permitido; (ii) princípio da confiança; (iii) proibição de regresso e (iv) culpa

exclusiva da vítima.

Preliminarmente, como critério de exclusão da imputação, tem-se a fundamentação

do risco permitido. JAKOBS, assim como ROXIN, reconhece a existência de uma sociedade

de riscos e, com ela, condutas cotidianas arriscadas que, se proibidas em sua totalidade,

impossibilitariam o convívio social. O risco, assim, deve ser sopesado de acordo com um

patamar, que distinga o que é tolerável do que não o é. Exatamente neste ponto, o direito

penal atua: regulando o comportamento humano, através das normas penais, possibilitando a

vida em sociedade, que não pode existir sem a segurança das expectativas. 339 Para JAKOBS,

assim, deve haver uma perfeita correlação entre a realização dos papéis sociais de todos em

relações aos demais. Daí que o princípio da confiança – segundo critério de exclusão da

imputação – possa ser considerado uma concretização (ou delimitação) do risco permitido. 340

Ocorre que, ao contrário de ROXIN, JAKOBS abre mão do critério de proteção de

bens jurídicos, e, também, de qualquer critério axiológico de aferição de riscos, motivo pelo

qual, para o professor de Bonn, “o direito penal não tem que proteger um arsenal de bens,

nem maximizar os bens, mas tem que estabilizar expectativas em relação a determinados

modos de comportamento.” 341 Assim, se determinada conduta lesiona um bem jurídico, mas

não defrauda expectativas 342

, então não deve haver imputação, por não ultrapassar o risco

permitido.

Não fugiu à análise de PEÑARANDA RAMOS, SUÁREZ GONZÁLEZ e

CANCIO MELIÁ, a definição do risco permitido em JAKOBS, como “o estado normal de

338 Ressalte-se que os critérios de imputação objetiva em ROXIN são cumulativos, na medida em que são critérios que devam ser verificados para que ocorra imputação. Diferentemente, em JAKOBS, os critérios são não cumulativos, vez que, em sua teoria de imputação objetiva, são ditados os critérios necessários à exclusão da imputação e, por sua vez, da tipicidade. 339 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 243. 340 PEÑARANDA RAMOS, Enrique; SUÁREZ GONZÁLEZ, Carlos e CANCIO MELIÁ, Manuel. Um novo sistema do Direito Penal. Considerações sobre a teoria de Günther Jakobs. Organização e tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 88. 341 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 244. 342 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 244.

Page 93: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

97

interação, quer dizer, como o vigente status quo de liberdade de atuação, desvinculado da

ponderação de interesses que deu lugar a seu estabelecimento”. 343

JAKOBS, ademais, distingue o risco permitido como obstáculo à tipicidade do

utilizado como ponderação de interesses, do estado de necessidade justificante. No risco

permitido, ao contrário do estado de necessidade – em que o contexto da ação justifica -, o

contexto da ação que se esperava típica já se traduz no motivo de autorização do risco. A

conduta que não defrauda expectativas, enfim, já não realiza o tipo. 344

Assim, de acordo com o critério de imputação objetiva delineado pelo risco

permitido, JAKOBS parte do pressuposto de que os riscos que comportam o contato social

são permitidos, cabendo delimitar, então, os que não o são. Exemplifica sua teoria com a

hipótese do motorista experiente que, ainda que não coloque em perigo um bem jurídico, ou,

ainda que não lesione a integridade de ninguém, dirige com sono ou fora dos limites de

velocidade. Sua conduta não está abarcada pelo risco permitido. O que importa, em JAKOBS,

é a vigência da norma, independente da realidade relacionada com o bem jurídico. 345 O

motorista, afinal, atuante em seu papel de motorista, frauda a confiança na norma.

Em sede de crimes culposos, ademais, a previsibilidade individual deve existir no

momento da conduta. Assim, na hipótese do motorista experiente que dirige com sono, era

ele, no momento em que optou por dirigir, capaz de apreciar as consequências de seu atuar,

motivo porque está obrigado a cuidar para que não se produzam as consequências.346 Havia

cognoscibilidade do risco objetivamente imputável. Ultrapassou, com sua ação, o patamar de

riscos permitidos.

Em inexistindo a cognoscibilidade do risco, por parte do autor, não há que se falar

em imputação objetiva. Em seu “Tratado”, JAKOBS exemplifica o critério: um sujeito que,

ao adentrar plantação agrícola, não conhecedor de sua proximidade com um palheiro e um

depósito de gasolina, joga uma bituca de cigarro, o que, inexoravelmente, inicia um incêndio.

Em JAKOBS, o sujeito não responderá por incêndio a título de culpa, pois não era conhecedor

do risco de sua conduta. 347

343 PEÑARANDA RAMOS, Enrique; SUÁREZ GONZÁLEZ, Carlos e CANCIO MELIÁ, Manuel. Um novo

sistema do direito penal. Considerações sobre a teoria de Günther Jakobs. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 86. 344 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 246. 345 BUSATO, Paulo César. Fatos e mitos sobre a imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 109. 346 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 389. 347 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 391.

Page 94: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

98

O catedrático de Bonn, ainda, rechaça a teoria do incremento do risco (de ROXIN),

especialmente em matéria de crime culposo. Assim, o sujeito que dá início a um plano que

sabe ser perigoso (há cognoscibilidade, pois), percebe, porém, que suas primeiras ações

(destas, ele não possuía conhecimento do perigo) produzem resultado. Há, para JAKOBS, um

desvio do curso causal cognoscível, motivo pelo qual não há que se falar em incremento de

risco. 348

Por fim, ainda no âmbito do risco permitido como critério de exclusão da

imputação, o penalista alemão opta por desconsiderar os conhecimentos especiais do autor.

Assim, na hipótese de um biólogo que, ao servir seu tio, cuja herança lhe prometera, observa,

por obra do acaso, a existência de mofo venenoso na comida e, mesmo conhecedor do fato,

ainda assim o serve, não há que se falar em defraudação da norma, vez que a ninguém é dado

o dever de controlar a existência de mofos venenosos antes do consumo. Idêntica solução é

dada na hipótese do engenheiro que, ao realizar test-drive num automóvel, percebe uma falha

importante no sistema de freios e, ainda assim, não avisa ao proprietário. É que o biólogo, ao

servir comida a seu tio, não está inserido em seu papel de biólogo, assim como o engenheiro

que, ao comprar um veículo, despe-se de seu papel social de engenheiro. 349 Tais soluções,

ademais, devem ser refutadas.

Como segundo critério de exclusão da imputação, tem-se o princípio da confiança

que, numa sociedade geradora de riscos – riscos, estes, que não podem ser zerados, mas

minimizados -, traduz o entendimento de que, apesar de os contatos sociais darem-se entre

indivíduos “de carne e osso” sujeitos a erro, autoriza-se que se confie em suas atitudes, dentro

de uma pauta definida a partir do âmbito da vida em que atua.

O professor de Bonn, assim, trabalha com a ideia de que cada um destes indivíduos

desempenha um papel em suas redes de relações interpessoais, coexistindo, entre eles,

expectativas mútuas, na medida em que cada um possa (e deva) esperar do outro

comportamento tal qual o sistema de regulação social (sistema do qual o direito faz parte,

como subsistema) determine.

Mister salientar a importância que o crime culposo adquire nesta rede de relações

onde o risco é compartilhado (tráfego urbano, intervenções médicas, etc.). Novamente, calha a

“fórmula” que admite que quanto mais contatos sociais, mais riscos; quanto mais riscos, mais

chances de imputação por crimes, especialmente os culposos (dada sua expansão na legislação

348 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 392. 349 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, pp. 251-252.

Page 95: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

99

extravagante). A área de influência natural do princípio da confiança se estabelece na

construção dogmática do conceito de imprudência 350 . Isto porque, a literatura penal atual

admite trabalhar com dois conceitos de imprudência: (i) o conceito de quebra de dever de

cuidado, sustentado com base nas posições dominantes de WELZEL e JESCHECK, para

quem imprudência é uma lesão do dever de cuidado objetivo exigido e (ii) o conceito de risco

permitido, desenvolvido a partir dos trabalhos de ROXIN, para quem imprudência é a lesão

proveniente de um risco permitido.

De uma forma ou de outra, “o dever de cuidado é delimitado principalmente por

normas jurídicas, que definem o risco permitido em ações perigosas para bens jurídicos na

circulação de veículos, na indústria, no meio ambiente, no esporte, etc.” 351

Dado tudo isso, a fim de evitar que o convívio social se torne insuportável, os

indivíduos ficam permitidos a confiarem uns nos outros, cada qual em seu papel. Desta forma,

se a conduta geradora de riscos deste sujeito que, cumprindo seu papel e confiante que

terceiro também o cumpra, ainda assim, produzir resultado danoso, este não lhe será imputado

objetivamente. Nota-se, entretanto, um equívoco localizado exatamente neste ponto de sua

teoria, pois que dos papéis sociais deve fazer parte a abstenção de condutas quando da

percepção de que outrem não os cumprem. Por exemplo, o motorista que percebe que alguém,

de forma irresponsável e abrupta, cruza o sinal vermelho em zigue-zague, possui, ademais, o

dever de se abster de cruzar o sinal verde.

Entretanto, em JAKOBS, não está o sujeito cumpridor de seu papel obrigado a

fiscalizar a conduta alheia, pois tal dever dificultaria a própria tomada de atenção e dedicação

do sujeito às suas atividades. Assim é que não cabe ao cirurgião-médico checar se o

instrumentador lhe forneceu o bisturi desinfetado; ele confia que seu ajudante o fará da

maneira esperada. A responsabilidade por danos à vida e à integridade física do paciente,

neste caso, pode ser imputada ao instumentador que agiu de maneira imprudente. Da mesma

forma, o motorista que, em plena luz do dia, atravessa cruzamento em que lhe era dada a

preferência; na hipótese de abalroamento, não lhe pode ser imputado o resultado, vez que

cumpria com seu papel na área da vida tráfego urbano.

É que, conforme ensinamento de JAKOBS, o estabelecimento de papéis sociais

cria, a cada indivíduo atuante, e adstrito ao seu âmbito de atuação, o papel de garantidor. A

respeito da combinação de conhecimentos em determinado setor da vida, e os papéis sociais,

JAKOBS explica a existência de dois âmbitos de competência: (i) a competência por

350 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte geral. 5ª edição. Florianópolis: Conceito, 2012, p. 167. 351 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte geral. 5ª edição. Florianópolis: Conceito, 2012, p. 163.

Page 96: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

100

organização, segundo a qual o autor é garante “no sentido de assegurar que em âmbito de

organização se respeitem os padrões habituais de segurança, o qual sucederá

independentemente de seu comportamento atual” 352; assim, por exemplo, é garante todo e

qualquer motorista de veículo a motor e (ii) a competência em virtude de vínculo

institucional, segundo a qual é englobada, através do papel de garante, relação maior e mais

completa com o favorecido, de modo que o garante não possa “deixar à margem de seu papel

alguns determinados conhecimentos especiais. Provavelmente seja esta a configuração da

relação dos pais a respeito dos filhos submetidos a sua tutela.” 353

De forma bastante radical, JAKOBS leciona, ademais, que o indivíduo só deve ser

considerado “pessoa” no momento em que lhe é agregada uma função, dentro de seu rol de

contatos sociais. Para ele, assim, resta claro que a atuação das pessoas não deva se pautar no

binômio satisfação/insatisfação, mas no binômio dever/liberdade. 354

O catedrático de Bonn, nesta toada, distingue os deveres que concernem ao cidadão

como titular de uma função representando o Estado – que ele define como genuinamente

estáveis 355 - daqueles concebidos a partir de seu status dentro de uma instituição, como a

família, e os deveres de cônjuge. JAKOBS observa que estes segundos deveres são, na

atualidade, resolúveis e, por isto mesmo, fragilizados, gozando, para além de mera

organização ao livre arbítrio, qualidade jurídica.356 JAKOBS separa, assim, a qualidade de

pessoa da de indivíduo: pessoa é quem possui um papel social a ser desempenhado como ser

humano, afastando-se de sua singularidade pessoal em prol de uma representação social;

indivíduo, ao contrário, é o desprovido destes papéis sociais.

Este esquema não deve, entretanto, levar à conclusão de que quem realiza conduta

antinormativa perde a qualidade de pessoa, por dois motivos: a um, porque não se possibilita

a ninguém que disponha de sua personalidade; a dois, porque, ainda que infringida uma

norma, ela permanece válida, vigente e orientadora das pautas sociais de conduta. É a

característica mais específica do funcionalismo jakobsiano: o desprezo do componente

352 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luíz Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 50. 353 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luíz Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 51. 354 JAKOBS, Günther. Sobre la teoría de la pena. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Centro de Investigaciones de Derecho Penal y Filosofia del Derecho de la Universidad Externado de Colombia, 2002, pp. 16-17. 355 JAKOBS, Günther. A imputação penal da ação e da omissão. Coleção Estudos de direito penal. Tradução de Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 50. 356 JAKOBS, Günther. A imputação penal da ação e da omissão. Coleção Estudos de direito penal. Tradução de Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 50.

Page 97: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

101

humano, deslocado que está o centro gravitacional do sistema em torno da norma. 357

“Isto porque a norma não visa pessoas, mas simplesmente à estabilização do sistema.”

358 E a pena

atribuída a quem infringir esta estabilização é vista de forma positiva, não mais como uma

simples retribuição metafísica do mal.

O terceiro critério de exclusão da imputação, em JAKOBS, é a proibição de

regresso. Intentou, o mestre alemão, restringir o âmbito de atuação da tipicidade objetiva da

teoria da conditio sine qua non ou equivalência das condições que, ao utilizar o critério de

eliminação hipotética de Thyrén, acaba por ampliar demasiadamente o rol de causas de

determinado resultado danoso. A imputação objetiva, assim, deve funcionar como um filtro

através do qual se analisa se o sujeito deve suportar a imputação. JAKOBS pretende excluí-la

e, assim, excluir responsabilidade penal, àquelas pessoas que, ainda que atuantes em seu papel

social, tenham contribuído, de alguma forma, para o resultado danoso. Explica o critério, pois

considera necessário um “distanciamento do agente com relação à realização do tipo”, na

medida em que “a realização do tipo pode ter sido definida como consequência da vontade de

outra pessoa, ou, como pertencente ao âmbito de organização alheio, sobretudo quando

pertencente ao próprio âmbito de organização da vítima.” 359 (t.n.)

JAKOBS seleciona alguns grupos de casos para exemplificar a questão:

primeiramente, tem-se um devedor que paga sua dívida e o credor compra, com o dinheiro

que recebe, uma arma, matando terceira pessoa. A solução encontrada pelo alemão é a de

afastamento da tipicidade objetiva, uma vez que o devedor encontrava-se atuante em seu

papel na relação in casu.

O indivíduo atuante na cadeia causal (segundo os exemplos comumente fornecidos

pela doutrina: o inventor da pólvora, os genitores do sujeito que atira, o fabricante do

revólver, etc.) só terá o resultado danoso imputado a si na medida em que ingressar no âmbito

de organização da conduta antinormativa. Necessária a transcrição da lição de JAKOBS:

Há ações que conduzem a um resultado típico sem que o agente, mediante

estas ações, tenha configurado o seu âmbito de organização deixando de considerar as outras pessoas. Em tais ações, a responsabilidade por um delito de resultado mediante comissão só está fundada quando o agente, independentemente de sua ação atual, é garantidor, ou seja, está obrigado,

357 BUSATO, Paulo César. Fatos e mitos sobre a Imputação Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 119. 358 BOZZA, Fábio da Silva. Uma análise crítica da prevenção geral positiva no funcionalismo de Günther Jakobs. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. n.70, jan./fev. 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 50. 359 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 259.

Page 98: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

102

por causa de outra ação prévia (ingerência) ou por causa dos deveres decorrentes da relação, a especiais limitações de ação, ou ainda quando por causa de seus deveres institucionais de solidariedade, está obrigado a sacrificar sua liberdade de ação. (t.n.)

360

Nestes casos, o entendimento é de que este sujeito que, de alguma maneira, inicia

participação, ou ingerência no comportamento danoso alheio, para além da mera condição de

causalidade, adquire posição de garantidor. E, para definir o momento em que a participação

no curso causal adentra o âmbito da imputação, JAKOBS leciona que não basta a

concorrência de um comportamento evitável (na omissão, não basta a capacidade de evitar o

resultado); faz-se necessário que exista a obrigação de evitar (garante). 361 JAKOBS divide o

critério em quatro grupos de casos; em metade deles se exclui a imputação.

No primeiro grupo de casos, o autor da conduta antinormativa junta-se ao

comportamento de outra pessoa, sem que esta tenha contribuído com o resultado. É a hipótese

da esposa que, buscando reconciliar-se com o marido, o chantageia afirmando que se ele não

reatar o relacionamento, ela destruirá coisa alheia de grande valor. Ora, conforme a teoria

jakobsiana, o marido que não reata o relacionamento mantém-se coerente em seu papel na

relação imposta e não deve ter imputado como obra sua o resultado lesivo provocado pela

mulher.

Por segundo, tem-se o âmbito das relações negociais usuais da vida cotidiana.

Assim, por exemplo, ao comerciante de uma rede de mercados não cabe identificar se

determinado sujeito que compra um produto (lícito e dentro do prazo de validade) irá utilizá-

lo, através de transformações laboratoriais, de forma prejudicial ao meio ambiente, ou como

veneno em um homicídio. O comerciante não deve responder pelo crime ambiental, nem pelo

homicídio, vez que se encontrava rigorosamente atuante em seu papel social, de forma

objetiva. 362 Não há, nestes dois primeiros casos, imputação objetiva, excluindo-se, assim, a

tipicidade e, assim, a responsabilização penal.

O terceiro grupo de casos em que se analisa a proibição de regresso diz respeito à

responsabilização por quem contribui, de alguma maneira, com os atos executivos do delito.

360 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid:

Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 265. 361 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 61. 362 JAKOBS garante que os contatos sociais devem ser avaliados segundo um ponto de vista objetivo, somente: “Como caráter geral, unicamente se deve ter em conta o sentido objetivo; este é o sentido socialmente válido do contato. Ao não se objetivar, ao menos não nesse contexto, o sentido que subjetivamente se persegue, em nada implica a outra pessoa.” JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 63.

Page 99: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

103

Se um sujeito empresta seu carro danificado a alguém que lhe solicita, sem que este alguém

pudesse perceber o risco proveniente da precariedade do veículo, deve, o sujeito, ter-lhe

imputado eventual resultado lesivo. Isto porque, na hipótese in casu, “independentemente do

idealizado por quem realiza a prestação, quem leva a cabo este tipo de prestações põe-se em

um nível comum com quem complemente a prestação até dar lugar a um comportamento delitivo.”

363 Quem realiza esta comunhão de comportamentos deve, portanto, ver-lhe

imputado o resultado, vez que lhe é próprio.

O quarto, e último, grupo de hipóteses - segundo dos que não excluem imputação,

no marco da proibição de regresso - trata do induzimento e da cumplicidade nas atividades

delitivas. Como regra geral, são casos em que há intervenção, objetivamente falando,

qualquer que seja, no estado executivo. Por exemplo, aquele que não participa dos atos

violentos de um assalto, mas contribui organizando a rota de fuga, não deve ver excluída a

imputação do resultado lesivo. Mais uma vez, não se analisa o aspecto subjetivo do contato

social, ou seja, não se analisa o animus do sujeito atuante em seu papel social, mas somente se

analisa, objetivamente, seu comportamento. Se objetivamente tenha surtido o efeito de

favorecer o delito, há que ser imputado o resultado. Neste sentido, JAKOBS:

As intenções e os conhecimentos de quem realiza a contribuição são, a

estes efeitos, irrelevantes, do mesmo modo que a omissão de um não- garante não se converte em comissão por omissão pelo fato de conhecer uma possibilidade segura de salvamento ou por ter más intenções. Quem realiza algo que seja invariavelmente considerado socialmente adequado não responde, e isso independentemente do que pense e conheça, enquanto que quem se adequar a um plano delitivo está oferecendo uma razão para que o ato executivo lhe seja imputável.

364

O último dos critérios de imputação desenvolvido por JAKOBS diz respeito aos

casos em que se exclui imputação devido a acordo, consentimento, competência ou

capacidade da vítima, quando esta atua em risco próprio, excluindo o tipo. O professor de

Bonn, entretanto, e conforme crítica de BUSATO, contradiz-se neste critério, pois “faz ampla

incursão e variada referência ao bem jurídico como critério, o que não condiz com sua

363 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 65. 364 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 67.

Page 100: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

104

organização geral do sistema” 365

, aproximando-se, por diversas vezes, do critério roxiniano

do alcance do tipo.

Neste seu ultimo critério, JAKOBS apresenta dois grupos gerais de casos que

podem ser classificados em: (i) ações de terceiros protegidas pelo consentimento do ofendido,

a que ele chama de “acordo” 366; (ii) ações em que a própria vítima se coloca em risco.

No primeiro grupo de casos, têm-se as hipóteses em que, ainda que a conduta lesiva

tenha sido praticada por terceiro, a vítima consente com o resultado – ainda que o faça com

erro de apreciação. Consoante ensinamento de JAKOBS, “numerosos bens jurídico-

penalmente protegidos estão sujeitos à disposição por parte de seu titular. Nessa medida, o

consentimento do titular exclui a realização do tipo” 367, pois, completa o professor alemão, “o

fato danoso ocorrido é responsabilidade de quem consente.” 368

Assim por exemplo, se o proprietário de uma residência, visando destruir sua porta

de entrada, pede a terceiro que o faça, este não poderá ser imputado pelo resultado danoso.

Inexiste o tipo penal de dano, pois, in thesis, houve o consentimento da suposta vítima.

JAKOBS utiliza a terminologia “acordo” para expressar as hipóteses de consentimento

excludentes do tipo e leciona que “a fórmula, empregada frequentemente, de que para o

acordo basta a concorrência fática de vontades, é correta na medida em que o acordo não se

oponha ao Direito ou aos bons costumes.” 369 (t.n.)

O segundo grupo de casos trabalhado por JAKOBS diz respeito às condutas

realizadas pela vítima, atuante em risco próprio. Alguns bens jurídicos possuem a

característica de poderem ser excluídos livremente, como a propriedade, o patrimônio, a

honra, a integridade física. 370 Assim é que inexiste o crime de dano na hipótese de um sujeito

cortar a árvore de sua própria propriedade.

Não se deve cair no erro, entretanto, e a ressalva é fornecida pelo penalista alemão,

de que todo consentimento eficaz exclui a tipicidade, pois há (numerosos) casos que traduzem

“uma defraudação de expectativas que não se pode solucionar com o mero consentimento,

365 BUSATO,Paulo César. Fatos e mitos sobre a Imputação Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 116. 366 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 289. 367 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 289. 368 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 289. 369 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 291. 370 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 294.

Page 101: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

105

mas deve ser levado em conta, também, o contexto”. 371

É o caso do cirurgião-médico que se

depara com a situação em que o doador consente que lhe seja extirpado um rim, para doação.

Não se trata de uma cirurgia de pequeno risco, sendo assim, o médico deve avaliar o contexto,

a excepcionalidade da situação e, não fazê-lo caso a cirurgia represente risco ao doador, ainda

que este o queira a qualquer custo.

Assim, a título de conclusão a respeito do funcionalismo de JAKOBS, atrelado ao

âmbito de atuação do crime culposo, ressalta-se que o alemão rechaça, de forma contundente,

a causalidade estabelecida pelo critério da equivalência dos antecedentes, que acaba levando,

através do regresso ad eternum, a um sem número de imputações. Busca, assim, através da

imputação objetiva do resultado jurídico, analisar se determinada pessoa deve ser “castigada”

para a estabilização da norma. Sua teoria de imputação objetiva desenvolve-se a partir dos

conceitos de: comportamento do sujeito, infração da norma e culpabilidade. 372

É certo, porém, que “malgrado a inegável coerência da construção para com sua

teoria de base, a respeito da missão do direito penal” 373

, deve-se frisar que JAKOBS propõe,

afinal, um completo abandono da dimensão humana, ao estabelecer que o agente fique à

mercê do império da norma. JAKOBS deixa de reconhecer a desigualdade entre os homens,

pressuposto elementar de uma sociedade democrática. Quando pressupõe a posição igualitária

do sujeito frente à norma 374

, o penalista alemão peca, ao desconsiderar a ausência de qualquer

motivação pessoal para o desrespeito à norma, e, não obstante, reconhecendo este agente

como único defraudador da instabilidade normativa, opta por reafirmá-la, pois é esta a missão

do direito penal.

2.3. FRISCH e os critérios de imputação no crime culposo

Merece atenção e referência acuidosa, no marco do comportamento típico e da

imputação do resultado, o recente estudo da teoria de WOLFGANG FRISCH. O catedrático

de Freiburg, Alemanha, fugindo ao lugar-comum, concebeu entendimento diverso aos

371 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 295. 372 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição. Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997, p. 156. 373 BUSATO, Paulo César. Fatos e mitos sobre a imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 119. 374 Apud BUSATO, Paulo César. Apontamentos sobre o dilema da culpabilidade penal. In: Revista Liberdades. nº 08. Set./dez. IBCCRIM: 2011, p. 67.

Page 102: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

106

propugnados por ROXIN e JAKOBS, a respeito da imputação objetiva. Conforme observado

por SILVA SÁNCHEZ, “avistam-se as nuvens de uma parcial desconstrução da doutrina da imputação objetiva”

375 , no momento em que FRISCH busca avaliar a capacidade de

rendimento da teoria.

Ademais, após as severas contribuições impostas pelas teorias de imputação, é

chegada a hora, conforme reconhecido por FEIJÓO SÁNCHEZ, de discutir as questões

relativas à tipicidade e afrontar as soluções propostas por aquelas teorias. 376

Sabe-se que a teoria da imputação objetiva é um dos produtos da dogmática alemã

que mais êxito alcançou em outros países de mesmo entorno cultural 377 e que, conforme já

analisado, intentou corrigir uma concepção causalista-naturalista do tipo com a utilização de

critérios normativos no tipo objetivo.

Ocorre que, na contramão das demais teorias de imputação objetiva, FRISCH

distingue, em dois momentos bem delineados, o juízo normativo de desaprovação da conduta,

de um lado, e a imputação do resultado à conduta desaprovada, de outro. São análises que,

para ele, não se misturam. Apenas no segundo momento – o juízo de imputação do resultado

– é que se pode falar em imputação objetiva stricto sensu.

Em fase inicial de seus estudos, FRISCH observou a necessidade (que se mostrava

evidente) de uma reflexão sobre a expansão da teoria de imputação objetiva à luz do

desenvolvimento do conceito de injusto. O professor alemão explica este fenômeno

recordando que “a doutrina da imputação objetiva do resultado possui raízes, sobretudo, numa

época em que a dogmática penal do resultado se encontrava, ainda, em primeiro plano e o

injusto se identificava com o desvalor de resultado”. (t.n.) 378 Em outras palavras, a imputação

de um resultado lesivo a alguém era o instrumento que discernia entre justo e injusto, cujos

critérios giravam em torno do tipo objetivo.

Esta forma de imputar (objetivamente) o resultado é, conforme os ensinamentos de

FRISCH, frágil e merecedora de reformulação. Assim é que, em fins dos anos 80, o penalista

375 SILVA SÁNCHEZ em prólogo da obra “Desvalorar e imputar” de FRISCH e ROBLES PLANAS. FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira, 2006, prólogo (XI). 376 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Recension a Frisch, Wolfgang/Robles Planas, Ricardo: Desvalorar e imputar. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira, 2006, p. 116. 377 ROBLES PLANAS, Ricardo. Conducta típica, imputación objetiva e injusto penal. Reflexiones al hilo de la aportación de Frisch a la teoría del tipo. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira, 2006. 378 FRISCH, Wolfgang. Comportamiento típico e imputación del resultado. Tradução da edição alemã de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid, Barcelona: Marcial Pons, 2004, p. 38.

Page 103: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

107

alemão, imbuído pela influência da teoria final de ação (ainda que não se apegue a conceitos

ontologicistas) e de investigações de teoria das normas, tratou de transportar o núcleo do

resultado ao comportamento, ou seja, dever-se-ia, antes de tudo, estabelecer os contornos

objetivos da conduta típica.

Enquanto, na esteira do proposto por ROXIN, o fundamental para avaliar se, ao

final de determinado curso causal, o resultado possa ser imputado ao agente, é a criação de

um risco (não permitido) juridicamente relevante – no que FRISCH leciona que se trata da

substituição, levada a cabo por ROXIN, da perseguibilidade objetiva do resultado proposta no

direito civil por HONIG 379 - FRISCH, de outra banda, verificou que, mister em se tratando de

crimes culposos, estes conceitos não se configurariam suficientes.

Sem embargo, em sede de crimes culposos, abriram-se novas possibilidades,

surgidas “especialmente das dificuldades provenientes da existência de âmbitos de

responsabilidade de diversas pessoas que intervêm simultaneamente” 380, dificuldades estas

que, conforme a fórmula de resolução de questões centrada diretamente na imputação de

resultados, levariam à imprecisão de atribuir resultados a determinadas pessoas.

FRISCH considera os critérios de imputação objetiva do resultado propostos por

ROXIN bastante “atrativos”, especialmente conquanto sejam aplicáveis, também, ao delito

doloso 381

, a partir do momento em que se trasladam os critérios assentados no delito culposo

ao doloso. Ocorre que, para ele, a utilização, pela doutrina dos anos 80, do crime comissivo

doloso como o grande contexto dos critérios de imputação, não satisfaz a problemática que,

ademais, sobressalta da teoria. Isto porque, segundo o professor de Freiburg, é nos delitos

culposos onde mais se perfaz a utilização de critérios como o da criação de riscos proibidos

relevantes.

A criação ou incremento de riscos proibidos juridicamente relevantes que, para

ROXIN, traduz o critério basilar da imputação objetiva, para FRISCH, ao contrário, deve

servir como critério a um juízo valorativo autônomo – um juízo de desaprovação da conduta.

FRISCH, assim, identifica a criação de riscos não permitidos como pressuposto material da

responsabilidade penal, porém, e aí reside a principal distinção de sua teoria, define-a como

379 FRISCH, Wolfgang. La teoría de la imputación objetiva del resultado: lo fascinante, lo acertado y lo problemático. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira, 2006, p. 05. 380 FRISCH, Wolfgang. La teoría de la imputación objetiva del resultado: lo fascinante, lo acertado y lo problemático. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira, 2006, p. 08. 381 FRISCH, Wolfgang. La teoría de la imputación objetiva del resultado: lo fascinante, lo acertado y lo problemático. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira, 2006, p. 09.

Page 104: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

108

juízo normativo próprio para analisar se determinada conduta é penalmente relevante. A

imputação, segundo seus ensinamentos, só pode versar sobre o resultado 382

, o que não seria o

caso quando se analisa se determinada conduta criou (ou não) riscos juridicamente relevantes.

FRISCH atém-se ao crime culposo, mais uma vez, para assinalar uma hipótese

exemplificativa: “no crime imprudente, por exemplo, a criação de risco já não tolerável –

como elemento definidor da contrariedade ao dever de cuidado – não representa o critério

central de comportamento (para a teoria de ROXIN).” (t.n.) 383 Para o penalista alemão, o

requisito da criação de perigo desaprovado não deve se traduzir em requisito da doutrina de

imputação objetiva, mas, sim, deve subsistir naquilo que ele chama de “injusto de

comportamento”. 384

O que FRISCH pretende, em verdade, no campo dos delitos culposos, é o

reconhecimento de que a teoria da imputação objetiva desenvolvida por ROXIN não seria

necessária no âmbito da imprudência, vez que esta, por si só, já se encontra satisfeita com a

exigência da contrariedade ao dever de cuidado, por parte do autor. Não pretende, o penalista,

abandonar os requisitos materiais da imputação do resultado; eles, porém, são reconhecidos

noutro momento. Isto porque, para FRISCH, contrariar um dever de cuidado já se traduz (e

não se complementa) com a criação de riscos proibidos, perfazendo juízo normativo

integrante da tipicidade – como desvalor da conduta -, e não de critérios de imputação.

A criação ou incremento de riscos, assim, integrariam o conceito de conduta típica,

perfazendo requisito autônomo e absolutamente imprescindível à tipicidade penal. Eis sua

lição:

Não cabe a renúncia à exigência de perigo na determinação do conteúdo do

injusto de comportamento: o mero iniciar cursos causais improváveis, absolutamente estranhos, não só não se proíbe, como, do contrário, asfixiaria o atuar humano, e, tampouco, cabe valorá-lo como comportamento ilícito. (...) A exigência da criação de um risco desaprovado como elemento parcial da imputação só parece concebível,

382 FRISCH, Wolfgang. Comportamiento típico e imputación del resultado. Tradução da edição alemã de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid, Barcelona: Marcial Pons, 2004, pp. 47 e ss. 383 FRISCH, Wolfgang. Comportamiento típico e imputación del resultado. Tradução da edição alemã de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid, Barcelona: Marcial Pons, 2004, p. 46. 384 FRISCH, Wolfgang. Comportamiento típico e imputación del resultado. Tradução da edição alemã de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid, Barcelona: Marcial Pons, 2004, p. 47.

Page 105: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

109

em um sentido: naqueles casos em que a periculosidade, ex ante, da ação não corresponde, ex post, a nenhum perigo realmente configurado. (t.n.)

385

FRISCH parte do pressuposto de que (quase) todas as atividades humanas são, em

verdade, potenciais realizadoras de consequências negativas, motivo pelo qual, não basta esta

constatação para desaprovar uma conduta, ou se imporia demasiada limitação à liberdade.

Considera-se que, para delitos que requerem injusto de resultado e, assim, a produção de

consequências derivadas de violações objetivas da liberdade jurídica, não lhes cabe renunciar

ao requisito de que a conduta que conduz ao resultado típico deva, já ela, apresentar-se como

criação de risco desaprovado.

Apenas se espera desaprovação quando “se identificam indícios concretos sobre a

possibilidade de tais cursos (perigosos) ou se as possibilidades baseadas na experiência

pudessem orientar à evitação do dano.” 386 E, mais uma vez, se assinala o ponto crucial com o

qual sua teoria é diferenciada:

Ao meu modo de ver, o requisito da criação desaprovada de perigo, unido à

ação, não é pressuposto de imputação. Se não há criação desaprovada de um perigo unido à conduta, então, o que realmente falta é uma conduta proibida (com relação à sua possível periculosidade para bens). A vinculação da conduta com um perigo desaprovado é, neste sentido, elemento nuclear da conduta típica dos delitos de resultado. (t.n.)

387

Do exposto, nota-se, que FRISCH esforçou-se por construir uma categoria dentro

da teoria do tipo que fosse capaz de filtrar, de um modo objetivo, as condutas que realmente

interessem ao direito penal, distinguindo-as das que não. E esta regra vale tanto aos delitos

dolosos como aos culposos. Conforme sua teoria, não são dados ontológicos, antropológicos

ou empíricos que presidem o juízo de desaprovação típica, mas critérios estritamente

normativos. 388

385 FRISCH, Wolfgang. Comportamiento típico e imputación del resultado. Tradução da edição alemã de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid, Barcelona: Marcial Pons, 2004, p. 50. 386 FRISCH, Wolfgang. FRISCH, Wolfgang. La teoría de la imputación objetiva del resultado: lo fascinante, lo acertado y lo problemático. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira , p. 27. 387 FRISCH, Wolfgang. FRISCH, Wolfgang. La teoría de la imputación objetiva del resultado: lo fascinante, lo acertado y lo problemático. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira 2006, p. 49. 388 ROBLES PLANAS, Ricardo. Conducta típica, imputación objetiva e injusto penal. Reflexiones al hilo de la aportación de Frisch a la teoría del tipo. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e

Page 106: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

110

Não escapou à observação de ROBLES PLANAS que, para o catedrático de

Freiburg, este primeiro nível valorativo imprescindível à configuração do injusto penal é uma

questão estritamente jurídica, que deve ser respondida com critérios e princípios estritamente

jurídicos.389 Na medida em que parte do pressuposto de que todas as condutas, mormente no

atual contexto social, são potencialmente danosas, FRISCH busca contribuir para a defesa da

objetividade do juízo de desvaloração da conduta.

Para além de intentar transportar o critério da criação de riscos desaprovados ao

âmbito da tipicidade penal como critério autônomo, FRISCH, por razões análogas, tampouco

se convence a respeito do enquadramento do fim de proteção da norma a uma teoria de

imputação objetiva. Explica o penalista:

Quando se realiza um risco desaprovado pela norma (de conduta) existe

sempre uma relação de fim de proteção entre conduta proibida e resultado: a realização de um perigo já não tolerado pela norma de conduta do respectivo tipo, frente a cujos efeitos das normas de conduta – naturalmente – pretendem proteger, implica precisamente a existência da relação de fim de proteção. (t.n.)

390

Visto desta forma, o pressuposto do âmbito de proteção da norma, para fins de

imputação, só seria adequado se não se realizasse, de forma acuidada, a concreção do juízo de

conduta, ou, ainda, na hipótese de existirem circunstâncias que não se compreendam como

potencial realização de riscos.

Em suma, tem-se que, em FRISCH, é desprezada a perspectiva de desvalor do

resultado para a imputação objetiva, na medida em que seriam solucionáveis tais questões na

apreciação do desvalor da conduta. Conforme delineado pelo professor alemão, uma teoria de

imputação objetiva do resultado só faria sentido tendo por objeto, unicamente, os

pressupostos do nexo causal e de realização, a serem configurados entre comportamento

proibido e resultado. Falar em imputação objetiva, então, é falar em imputação de resultado

em delitos de resultado.

imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira, 2006 , p. 75. 389 ROBLES PLANAS, Ricardo. Conducta típica, imputación objetiva e injusto penal. Reflexiones al hilo de la aportación de Frisch a la teoría del tipo. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira, 2006, p. 75. 390 FRISCH, Wolfgang. Comportamiento típico e imputación del resultado. Tradução da edição alemã de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid, Barcelona: Marcial Pons, 2004, p. 81.

Page 107: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

111

ROBLES PLANAS é categórico ao afirmar sobre a contribuição de FRISCH à

categoria da conduta típica, donde se comprova, ademais, a ausência de elemento subjetivo no

tipo culposo:

Em essência, a estratégia passa por superar a dicotomia entre o subjetivo

como o interno à psique do agente e o objetivo como realidade externa à mesma. Frisch não nega que careça de relevância o fato de que o autor conheça as circunstâncias da realidade. O que Frisch nega é que o juízo que se emita tendo em conta estes conhecimentos seja um juízo que tome por base o subjetivo. Em seu entender, se trata igualmente de um juízo objetivo na medida em que as circunstâncias relevantes existam objetivamente. (t.n.)

391

FRISCH traz sua crítica à dominante teoria da imputação objetiva observando a

necessidade de se construir uma categoria (da conduta típica), dentro da teoria do tipo, que

fosse capaz de filtrar de um modo objetivo aquelas condutas que interessem ao direito penal,

deixando, à margem, as que devam se reputar irrelevantes. Conforme reflexão de CARLOS

MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, a construção de FRISCH, neste ponto, bem se aproxima de

uma concepção significativa de ação. 392

Resta claro, desta forma, que as autênticas questões de imputação – enquanto

imputar algo a alguém como obra sua – são questões genéricas adicionais e verificadas,

usualmente, na prática forense. FRISCH intenta, assim, revolucionar, não só a teoria do tipo,

mas a teoria do delito, com a ideia de que deslindar o exercício da liberdade jurídico-penal

relevante da irrelevante faz-se através do conceito da desaprovação de condutas.

Suas críticas, porém, não escaparam a ROXIN que, em seu “Tratado”, as rebateu.

ROXIN não nega o novidadeiro estudo proposto por FRISCH, porém reconhece pontos de

convergência entre suas concepções e o que intentara o professor de Freiburg, sobressaltando,

assim, contradição epistemológica em sua teoria.

ROXIN observa que “o fato de Frisch pretender que o elemento volitivo se inclua

no próprio conceito de conhecimento do risco, supõe, apenas, uma reformulação conceitual (artificiosa), que não modifica em absoluto a coincidência material”

393 com sua teoria. E,

391 ROBLES PLANAS, Ricardo. Conducta típica, imputación objetiva e injusto penal. Reflexiones al hilo de la aportación de Frisch a la teoría del tipo. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira, 2006, p. 85. 392 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Parte general. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 257. 393 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 440.

Page 108: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

112

ademais, explica ROXIN, “ao atender ao risco juridicamente relevante, é evidente que está

extraindo as consequências oportunas da doutrina de imputação objetiva”. 394

Fato é que o próprio catedrático de Freiburg, em artigo escrito, originariamente, a

um livro em homenagem a ROXIN, garante que as reflexões (pioneiras) de ROXIN sobre a

imputação possuem ressonância maior que as do próprio HONIG, as quais, precisamente,

constituem o ponto de partida de seu homenageado. 395

De outra banda, MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, malgrado reconhecer a interessante

proposta de FRISCH, igualmente a rebate, afirmando que sua “teoria da conduta típica” não

se mostra coerente, posto que a diferenciação entre os dois juízos com os quais opera não

pode ser admitida, pois não há uma categoria (ou um gênero) de conduta típica, mas condutas

típicas particulares conforme as que se interpretam das condutas realizadas, de tal forma que a imputação objetiva se “dissolve” na concretas interpretações dos tipos da Parte Especial.

396 O

penalista espanhol relembra, aliás, que as críticas efetuadas por FRISCH já traduziam matéria

de objeção dos partidários do finalismo, “quem, estes sim, subsumiam-nas às suas premissas

metodológicas, na medida em que, para eles, a teoria da imputação objetiva não é uma

questão que possa ser resolvida com determinados critérios normativos de atribuição de

resultados, pois se deve respeitar a estrutura ontológica da ação humana.” (t.n.) 397

Conforme observado das análises sobre teoria da imputação objetiva, o que fora

realizado através de referências aos trabalhos de ROXIN, JAKOBS e FRISCH, conclui-se que

a pluralidade e heterogeneidade de perspectivas não resultam do acaso. Conforme exposto por

BUSATO, “estes pontos de vista, que ainda podem ser complementados por outros, têm

fundamento nos princípios político-criminais de atuação do sistema penal dentro dos limites

do Estado de Direito” 398 e demonstram, prossegue, “que a moderna dogmática, mais do que

nunca, necessita acompanhar as mudanças que a sociedade de risco implica ao cotidiano do

394 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 440. 395 FRISCH, Wolfgang. La teoría de la imputación objetiva del resultado: lo fascinante, lo acertado y lo problemático. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira, 2006, p. 02. 396 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Parte general. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, pp. 254-255. 397 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Parte general. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 255 398 BUSATO, Paulo César e PEREIRA, Gabriela Xavier. O risco e a imputação objetiva. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 67.

Page 109: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

113

ser humano moderno.” 399

É, exatamente, análise sobre este tema que se travará a partir dos

itens subsequentes.

399 BUSATO, Paulo César e PEREIRA, Gabriela Xavier. O risco e a imputação objetiva. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 67.

Page 110: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

114

CAPÍTULO III - A SOCIOLOGIA DO RISCO COMO SUPORTE POLÍTICO

CRIMINAL DOS DELITOS CULPOSOS E SEU IMPACTO NO DIREITO PENAL

ECONÔMICO

Se há similitude e simetria entre a missão do jurista e a dos que se dedicam a outras províncias do conhecimento, impõe-se esse diálogo.

400

Surge, para o cientista jurídico da alvorada do milênio, nova ambientação

intelectual, sem a qual seu discurso há de perder significado. Trata-se, em verdade, de uma

reorganização das proposições que compõem a ciência do direito penal (e não só dele) às

vistas de outras disciplinas que lhes conduzam a um melhor aproveitamento. Se, no início do

presente trabalho, pensou-se a relação entre filosofia e ciência jurídica, neste momento,

estabelece-se a relação entre direito e sociologia.

Sem os contributos da sociologia, que irá explicar os fundamentos e bases do novo

palco social, a ciência jurídico-penal estaria entregue à superficialidade e à frustração de seus

objetivos. Seria inviável. Dentre as utilidades da sociologia, no âmbito do direito penal, está o

oferecimento de lastro e fundamento a uma ciência que se pretenda consistente, justa e coerente. “A modernidade é ela mesma profunda e intrinsecamente sociológica”

401 , é a lição

de GIDDENS.

Pode-se dizer, afinal, que a chamada sociologia do risco, em particular, é requisito

epistemológico para o controle de legitimidade das proposições decorrentes do chamado

direito penal do risco que, em ultima análise, deu origem à delimitação conceitual de um novo

ramo do direito penal, o direito penal econômico.

Ainda que, conforme lecionado por MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, nada autorize a

falar de um direito penal “substancialmente” diferente 402

, é certo que o objeto de estudo da

ciência penal expandiu-se, projetando-se, a partir da segunda metade do século passado, sobre

os aspectos econômico e socioeconômico. Por isto mesmo, para fundamentar um discurso

científico de ruptura com o pré-estabelecido, deve-se passar, necessariamente, pela construção

de bases epistemológicas tendentes a quebrarem discursos simplificadores que nada tenham

400 BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz: sobre o mundo jurídico e outros mundos. Recife: Fundação de

Cultura Cidade do Recife, 1994, p. 10. 401 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991, p. 53. 402 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la empresa. Parte general. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 67.

Page 111: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

115

que ver com a ciência complexa do direito penal. Importante a observação de BUSATO, para

quem “o direito como mecanismo científico de controle social inserido no compasso de

evolução das ciências sociais não consegue regulamentar determinadas matérias sem

subverter seus próprios padrões evolutivos.” 403

Por isso é que o estudo científico do direito penal demanda uma incursão

multidisciplinar de forma a que se remeta aos novos fundamentos histórico-sociais -

irreversíveis que são - ensejadores do novo discurso, discurso este que, se isolado em sua

perspectiva positivo-dogmática tende a se tornar pernicioso. A respeito do perigo de uma

dogmática construída isolada e abstratamente, MUÑOZ CONDE alerta que, na Alemanha, o

afastamento da dogmática em relação aos valores ético-sociais foi fruto de uma política

desastrosa perpetrada pelo nacional-socialismo e sustentada por juristas de prestígio. 404

Este novo ambiente em que se encontra inserido o direito penal passou a admitir,

em sede de crimes culposos, a existência de uma dogmática estéril 405

, conforme palavras de

MUÑOZ CONDE, que veio a ser abafada com a inserção do contributo da política criminal

que, juntamente com a dogmática, pretende estabelecer vínculos de união tendentes a

aproximarem a ciência complexa do direito penal à realidade sobre a qual se dirige. Daí que

se pressupõe acertada a afirmação segundo a qual “política-criminal e direito penal atuam como vasos comunicantes da realidade social.”

406 Na mesma esteira, BUSTOS e

HORMAZÁBAL confirmam que a dogmática jurídico-penal, mais do que nunca, evidencia

seu caráter instrumental e o estudioso do direito penal ata-se, por necessidade, à

interdisciplinariedade. 407

É assim que deve ser e é este o caminho que vem sendo tomado por importantes

cientistas do direito penal há, ao menos, quatro décadas. Neste momento, calha relacionar a

sociedade de risco e o direito penal do risco ao novo discurso científico de controle social

inserido no âmbito do direito penal econômico.

403 BUSATO, Paulo César. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 501. 404 MUÑOZ CONDE, Francisco. La herencia de Franz von Liszt. In: Justiça e sistema criminal. Revista Produzida pelo Grupo de Pesquisas Modernas Tendências do Sistema Criminal. Curitiba: FAE Centro Universitário, 2009, p. 39. 405 MUNÕZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo. Estudos sobre o direito penal no nacional-socialismo. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 406 DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 73. 407 BUSTOS RAMÍREZ, Juan J. e HORMAZÁBAL MALARÉE, Hernán. Nuevo sistema de derecho penal. Madrid: Editoral Trotta, 2004, pp. 61-62.

Page 112: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

116

3.1. Sociedade de risco

O grande contributo da sociologia recente, conferindo novas tarefas ao direito

penal, deu-se com a chamada sociologia do risco, que trouxe à tona a característica da

modernidade atual de se ocupar dos riscos procedentes do manejo humano de tecnologias.

Este novo modelo de sociedade é matéria de estudo de diversos sociólogos, atribuindo-se a

denominação “sociedade de risco” 408 ao sociólogo alemão ULRICH BECK.

A história do risco, assim como a história do medo – que com aquele vem

enganchado -, não é uma história que possa ser considerada nova. As coletividades e todas as

próprias civilizações - a despeito de serem mais ou menos modernas, ou mais ou menos

esclarecidas – estão comprometidas em um diálogo permanente com o medo. 409 Afirmar,

entretanto, que toda civilização seja um longa luta contra o medo é afirmação demasiado

simplista, fruto de um pensamento reducionista tomador do todo pela parte; eis que deve ser

rechaçado. Porém, é certo, isto sim, que o silêncio prolongado sobre a história dos riscos

esconde uma confusão mental que foi narrada pelo historiador francês DELUMEAU:

Por uma verdadeira hipocrisia, o discurso escrito e a língua falada – o

primeiro influenciando a segunda – tiveram por muito tempo a tendência de camuflar as reações naturais que acompanham a tomada de consciência de um perigo por trás das falsas aparências de atitudes ruidosamente heroicas. A palavra medo está carregada de tanta vergonha, que a escondemos. Enterramos no mais profundo de nós o medo que nos domina as entranhas.

410

Decerto, existem alguns sinais, nas sociedades modernas, indicativos do aumento

da preocupação em torno de alguns riscos, particularmente quando se verifica que, destes

riscos, originaram-se desastres e catástrofes de grande potência e de severas consequências.

Calha diferenciar, neste momento, os conceitos de risco e perigo – diferença que, frise-se, não

é ontológica, não radica em suas estruturas de ser. Enquanto os riscos são representativos de

uma decisão humana, na medida em que seja a antecipação da tragédia a partir de uma tomada

408 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Tradução de Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002. 409 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 12. 410 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 14.

Page 113: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

117

de decisão humana, os perigos são qualquer possibilidade considerável de um prejuízo, ou,

em última análise, são provenientes da natureza, e, assim, independem de decisão humana.

Assim, e como bem diferenciado por LUHMANN, “deve-se falar de risco somente

quando a própria decisão é um motivo indispensável da possível ocorrência de um prejuízo, quando, portanto, com uma outra decisão este prejuízo não ocorreria”

411 , pelo menos não

daquela forma. O exemplo dado por LUHMANN é o do fumante que, aceitando o risco de

desenvolver câncer, prossegue fumando. Ao não fumante, não incide risco, mas perigo. O

sociólogo alemão, ademais, explica que a complexidade de mundo, não compreensível pela

consciência humana, faz com que as partes e os sistemas devam ser tratados não

individualmente, mas considerando o seu entorno. LUHMANN, então, define complexidade:

“a complexidade significa obrigação à seleção, obrigação à seleção significa contingência e

contingência significa risco.” 412

BECK conceitua o risco como consequência, de uma decisão humana

racionalmente tomada no manejo das tecnologias, decisão esta que se direciona a uma

vantagem ou oportunidade técnico-econômica. 413 Para DEAN, entretanto, o risco, na

modernidade, vem se aproximando, sorrateiramente, do conceito de perigo, na medida em

que, em certas circunstâncias, o risco pode ser visto como um continuum e, neste sentido,

nunca desaparece completamente. 414

Apesar da pluralidade conceitual que gira em torno da noção de risco, há um

elemento transversal em todas as suas definições, qual seja, a distinção entre possibilidade e

realidade. Assim, o acontecimento ou conduta arriscada pode ou não acontecer, alçado que

está o risco ao âmbito da incerteza.

As explosões periódicas de medo, riscos e insatisfações fazem parte de um histórico

recorrente das civilizações. A observação é de DELUMEAU, que exemplifica o que ele

chama de “medos escatológicos” 415 com diversas passagens bem conhecidas: o medo dos

soldados pela ameaça da fome, os massacres advindos das excomunhões, o avanço turco

411 Apud ALFLEN DA SILVA, Pablo. Aspectos críticos do direito penal na sociedade de risco. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 12, n. 46, já./fev 2004, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 77. 412 LUHMANN, Niklas. Sistema y función. In: Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Organização Ignacio Izuzquiza. Barcelona: Ediciones Piados, 1990, p. 69. 413 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Tradução de Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002, p. 78. 414 DEAN, Mitchell. Risk, calculable and incalculable. In: Risk and Sociocultural Theory: new directions and perspectives. Deborah Lupton. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 147. 415 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 302.

Page 114: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

118

inquietante a partir das derrotas de Kossovo, as Cruzadas, etc. 416 Há, porém, uma

característica fundamental presente nas civilizações de todas as épocas, a necessidade,

advinda de tempos em tempos, com a modernização dos povos, de ruptura com o modelo

paradigmático anterior. A lição de THOMAS KUHN, para quem revoluções científicas “são

aqueles episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é

total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior” 417, é acertada.

É representativa, nesta esteira, a ideia de que a revolução burguesa ecoada através

da Revolução Francesa e marcada nos anais da História como o Século das Luzes, implicou

no abandono do paradigma de servidão feudal, dando fim ao Absolutismo monárquico do

século XVIII. E, assim como todo abandono de paradigmas é proliferado em cada época

(zeitgeist) buscando superar um modelo já incompatível com os anseios de cada povo, tem-se,

posteriormente, o episódio iniciado com a Revolução Industrial, que iria transformar a relação

entre capital e trabalho e substituir grande parte do ofício humano pelo maquinário.

Elucidativa a primeira frase com que HANNAH ARENDT prefacia sua obra “Entre

o passado e o futuro”: “Notre héritage n’est precede d’aucun testment – Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento”

418 . Embora cada novo paradigma possa ser tido,

objetivamente, como a continuação natural e intrinsecamente delineada do anterior, é certo

que há algo de abrupto nesta “continuação”, motivo pelo qual as noções de ruptura e quebra

tendem a ser verdadeiras.

Diante disso, vislumbra-se a existência de um novo paradigma, permeado a partir

da segunda metade do século passado, e de contornos bastante ecoantes no direito penal

moderno: o paradigma do risco. A lição de BECK merece transcrição:

Somos testemunhas oculares – sujeitos e objetos – de uma ruptura no

interior da modernidade, a qual se destaca dos contornos da sociedade industrial clássica e assume uma nova forma – a aqui denominada ‘sociedade (industrial) de risco’. Isso exige um difícil equilíbrio entre as contradições da continuidade e censura na modernidade, que se refletem mais uma vez nas oposições entre modernidade e sociedade industrial e entre sociedade industrial e sociedade de risco.

419

416 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 302. 417 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 125. 418 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. 7ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 28. 419 BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 12.

Page 115: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

119

BECK delineou a história da modernidade recente em, ao menos, duas fases 420

: (i)

a primeira modernidade, também chamada de modernização simples, aquela modernidade

característica do período industrial clássico e (ii) a segunda modernidade, também chamada

de modernização reflexiva, caracterizada pela sociedade de riscos e fruto das vitórias obtidas

na primeira modernidade. 421

A primeira modernidade, iniciada logo após o fim da Idade Média e ecoada pela

ascensão burguesa no Iluminismo, é caracterizada pela derrocada do teocentrismo e a

consequente ascensão do homem ao palco social dos acontecimentos. É uma fase que viu

eclodir a chamada “boa sociedade”, uma sociedade compreendida por pessoas que dispunham

de dinheiro, certo status e que foram liberadas, até certo ponto, do extenuante fardo do

trabalho, dispondo também de lazer e cultura. ARENDT, com sua perspicácia e profundo

conhecimento de ciência política – ela própria se autodenominava cientista política, em vez de

filósofa – descreveu o modo de vida surgido com a “boa sociedade”:

A “boa sociedade” na forma em que a conhecemos nos séculos XVIII e

XIX, originou-se provavelmente das cortes europeias do período absolutista, e sobretudo da corte de Luís XIV, que soube reduzir tão bem a nobreza da França à insignificância política mediante o simples expediente de reuni-los em Versalhes, transformá-los em cortesãos e fazê-los se entreter mutuamente com as intrigas, tramas e bisbilhotices intermináveis engendradas inevitavelmente por essa perpétua festa.

422

Vigorava, ao menos no mundo ocidental, uma sociedade constituída a partir de uma

rede de interdependência funcional, cujos detalhes da vida cotidiana levaram a uma mudança

de perspectiva social, processo que levou NORBERT ELIAS a teorizar a respeito da ideia de

civilização. 423 Observa ELIAS, ademais, que a noção de civilização expressa uma cadeia de

lentas transformações dos padrões sociais, tratando-se de um processo pouco linear, mas

420 É de se frisar a existência de diversas denominações dadas aos momentos históricos pelos quais passa humanidade. Boaventura de Sousa Santos descreve o paradigma da modernidade ao longo de três períodos: o primeiro, período do capitalismo liberal que perdura todo o século XIX; o segundo, o período do capitalismo organizado, inicia-se em finais do século XIX e atinge seu máximo desenvolvimento no período entre as duas grandes guerras; e o terceiro período, o do capitalismo desorganizado, que perdura dos finais dos anos 60 do século passado até hoje. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000, p. 139. 421 BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 231. 422 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. 7ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 251. 423 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. V.1. Rio de Janeiro: Jorhe Zahar, 1994.

Page 116: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

120

impreciso e descontinuado.424

O que, de fato, se corrobora quando se compreende que as

questões mundanas são cambiáveis e inconstantes, por si só.

Desde então, cambiou-se o modo de viver nas sociedades e a razão técnico-

científica de cunho cartesiano projetou um senso de confiança e de verdade absoluta nos

experimentos oriundos das ciências. Aquela nova sociedade, uma “boa sociedade”, carente

que estava de lazer, de confortos antes inimagináveis, de controle de seu próprio futuro a

partir do desenvolvimento das técnicas, viu-se fascinada pelo exibicionismo industrial, em

fins do século XIX. Em outras palavras, “o homem auto-exaltava a capacidade inventiva.” 425

Durante quase um século, o homem, impulsionado pelas inovações industriais e

tomado pelo sentimento (individualista) de domínio da natureza e aproveitamento de tudo que

ela pudesse lhe fornecer, não se dera conta da potência letal destes instrumentos tecnológicos.

O uso desenfreado dos meios para atingir fins de puro exibicionismo e consumismo, ápice da

premissa antropocentrista moderna, assistiu, enfim, as forças produtivas perderem sua

inocência. 426 Desde a ameaça coletiva da saúde humana (recorde-se o impacto do amianto,

fibra extraída de uma rocha e utilizada na mineração em virtude de sua durabilidade e

resistência), passando pela chamada “revolução verde” (movimento ecológico tendente a

coibir o desmatamento da Amazônia e da Mata Atlântica), e as catástrofes de Chernobyl, há

diversos exemplos que confirmam a constatação de que “desde o ascenso da ciência moderna,

cujo espírito é expresso na filosofia cartesiana, o quadro conceitual tem estado inseguro. A

dicotomia entre contemplação e ação não pôde ser sustentada quando a ciência se tornou ativa

e fez para conhecer.” 427

A chamada sociedade de massas, tomada (ainda) por ARENDT, “sobrevém, assim,

nitidamente quando a massa da população se incorpora à sociedade.” 428 As proporções são

infladas e o público atingido, também.

Na aposta que a modernidade fez sobre a ciência, o homem optou por ser o senhor

de seu destino e a consequência desta relação pode ser sentida naquilo que GIDDENS chama

424 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. V.2. Rio de Janeiro: Jorhe Zahar, 1993, p. 193. 425 GUARAGNI, Fábio André. A função do direito penal e os “sistemas peritos”. In: Crimes contra a ordem econômica. Temas atuais de processo e direito penal. Organização Luiz Antônio Câmara e Fábio André Guaragni. Curitiba: Juruá, 2011. 426 BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 15. 427 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. 7ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 67. 428 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. 7ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 250.

Page 117: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

121

de desencaixe tempo-espacial. 429

É que a união do modelo econômico capitalista e o

desenvolvimento técnico-industrial perpetrado pela Revolução Industrial forjaram as

circunstâncias em que as relações sociais globalizadas se traduzem: as relações de confiança

cambiaram.

A relação de confiança deixa de se traduzir em uma relação pessoa-pessoa

(desencaixe), mas em uma relação pessoa-coisa, traduzindo o que GIDDENS chamou de

confiança em sistemas peritos. “Firma-se uma curiosa relação de confiança não entre homem

e homem, mas entre homem e objeto”. 430 A humanidade depositou sua confiança em

conjuntos de conhecimentos materializados e operados por desconhecidos. Sistemas peritos

são, enfim, “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”. 431 O homem, fiduciário

nas tecnologias empregadas em seu dia-a-dia, experimenta o fenômeno do desencaixe tanto

em relação ao tempo, como em relação ao espaço. 432 Assim, por exemplo, a toda viagem de

avião, não é necessário que se fiscalize se o mesmo está em perfeitas condições de voo, pois

se confia que esteja. Se assim não fosse, não seria possível o desencaixe de que fala

GIDDENS, pois se coubesse ao homem testemunhar o regular funcionamento do avião, por

exemplo, a quantidade de produção e distribuição de bens não teria sido possível - não no

patamar de globalização atual.

A confiança do homem em sistemas peritos foi a responsável pelo crescimento (em

progressão geométrica) do ciclo de produção, distribuição e consumo de bens e serviços.

Reconhece-se, para além da complexidade desta sociedade, uma sociedade consumista,

inserida em um movimento cíclico de perpetuação do consumo. Ocorre que o consumo dos

bens tidos como os mais necessários à felicidade humana – deste homem de virada de século

– mal sobrevive ao ato de sua produção. Como bem garante ARENDT, “após uma breve

permanência no mundo, retornam ao processo natural que as produziu, seja por meio da

absorção no processo vital do animal humano, seja por meio da deterioração.” 433 De fato, em

um mundo onde a industrialização rápida extermina constantemente as coisas de ontem para

429 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora

UNESP, 1991, p. 35. 430 GUARAGNI, Fábio André. A função do Direito Penal e os “Sistemas Peritos”. In: Crimes contra a ordem econômica: temas atuais de processo e Direito Penal. Organização Fábio André Guaragni e Luiz Antônio Câmara. Curitiba: Juruá, 2011, p. 83. 431 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991, p. 35. 432 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991, p. 36. 433 ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 11ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, pp. 118-119.

Page 118: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

122

produzir os objetos de hoje que, amanhã já experimentarão a obsolência, constata-se o aspecto

irônico da sociedade pós-industrial: o fato de que o consumismo desenfreado causa, por um

lado, prazer instantâneo e, por outro, depressão e liquidez a prazo – expressões atribuídas,

respectivamente, a LIPOVETSKY434 e BAUMAN.

435

A efemeridade das coisas mundanas, e a relação de confiança, então, contribuíram

com a “lógica” da produção de riqueza, em prol de uma “lógica” de produção de riscos 436

,

conforme lição de BECK. Na sociedade de riscos, característica de uma segunda

modernidade, essa lógica se inverte. Para além de se verificar uma quebra de paradigma com

o modelo anterior, tem-se, em verdade, um processo de superdesenvolvimento da primeira

modernidade, podendo ser verificadas, neste segundo momento, as últimas consequências da

primeira modernidade.

Deve-se ter em mente que não é a crise, mas a vitória, da sociedade industrial que

acaba por ocasionar sua (auto)destruição. Afinal, não apenas a pobreza, mas também a

riqueza crescente, produz conseqüências que abalam todo o mundo. Isto fez BECK refletir

que “ a ideia de que o dinamismo da sociedade industrial acaba com suas próprias fundações e

recorda a mensagem de Karl Marx de que o capitalismo é seu próprio coveiro.” 437

Daí se explica a denominação desta segunda modernidade, de modernidade

“reflexiva”, subdivida, por sua vez, em duas etapas: (i) reflexividade e (ii) reflexão. A etapa

da reflexividade caracteriza o primeiro momento desta segunda modernidade, o processo de

transição de uma sociedade industrial clássica para uma sociedade de riscos, onde se tem uma

aldeia global manejadora da razão científica desapercebida dos riscos. O principal aspecto

desta etapa é, exatamente, a irreflexão, o desconhecimento das potenciais sequelas advindas

do processo evolutivo tecnológico. BECK aproxima o termo reflexividade do que ele chama

de autoconfrontação 438

, formando quase um sistema circular bem fechado: o homem utiliza

as técnicas sem atentar aos riscos; estes riscos, então, voltam-se contra ele mesmo e, ademais,

contra todos. Daí se dizer que os riscos, hoje, são democráticos, pois atingem indistintamente

a quem os gerou e a quem os não. Forma-se um movimento cíclico bem definido, porém,

ainda pouco perceptível:

434 LIPOVESTKY, Gilles. A sociedade da decepção. Tradução de Armando Braio Ara. Barueri, São Paulo: Manole, 2007. 435 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 436 BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 15. 437 BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva. Política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1997, pp. 12-13. 438 BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva. Política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1997, p. 18.

Page 119: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

123

As coisas tangíveis (...) consideradas em sua mundanidade, sao as coisas menos mundanas e ao mesmo tempo mais naturais. Embora feitas pelo homem, vêm e vão, sao produzidas e consumidas de acordo com o sempre- recorrente movimento cíclico da natureza. Cíclico, também, é o movimento do organismo vivo, incluindo o corpo humano, enquanto ele pode suportar o processo que permeia sua existência e o torna vivo. A vida é um processo que em toda parte permeia a durabilidade, desgasta-se e a faz desaparecer, até que finalmente a materia morta, resultado de processos vitais pequenos, singulares e cíclicos, retorna ao gigantesco círculo global da natureza, onde nao existe começo nem fim e onde todas as coisas naturais volteiam em imutável e infindável repetição.

439

A segunda modernidade é, num segundo momento, reflexiva, também, pela

percepção generalizada, consciente e abrupta dos riscos tecnológicos, que tomaram corpo e

levaram diversas questões a respeito da tomada de decisões globais ao debate público e social.

E, na medida em que mais penetra na consciência pública, a ciência se torna cada vez mais

necessária e, por outro lado, paradoxalmente, cada vez menos suficiente, causando

instabilidade e insegurança gerais. A tomada de consciência social tornou-se questão política

de primeira grandeza, e a banalização do uso dos meios tecnológicos tornou-se, então, o

confronto da atual sociedade de riscos. A consequencia direta deste panorama é sentida,

principalmente, no âmbito econômico, como bem salient BECK:

Um dos pontos mais essenciais que distinguem a primeira da segunda

modernidade é a irreversibilidade do sucesso da globalidade. E isto significa: vivemos em uma sociedade mundial policêntrica, contingente e política na qual atores nacionais-estatais e transnacionais brincam de gato e rato. Globalidade e globalização significam também Estado não-mundial. Mais precisamente: Sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial. Surge um capitalismo mundial desorganizado.

440

A economia, no contexto da segunda modernidade, ganha papel de destaque, e sua

atuação global entra em curso atrelada a uma subpolitização de dimensões impensadas e

consequencias imprevisíveis. 441 A partir dos anos 1980, o mundo assiste à crise do próprio

sistema de regulação, e vê crescer a intensidade do conflito dentro do campo econômico, o

que, mais cedo ou mais tarde, iria resvalar no universo jurídico. O mundo observou, conforme

439 BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva. Política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1997, 1997, p. 19. 440 BECK, Ulrich. O que é globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 203. 441 BECK, Ulrich. O que é globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 15.

Page 120: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

124

descrição de CHESNAIS, uma destruição das relações que garantiam estabilidade e

crescimento. 442 Desse diagnóstico é que se desdobra a hipótese de que há uma ligação estreita

entre a mundialização do capital e o efeito depressivo presente na década de 90 em todo o

mundo.

Assim, como conclusão parcial e, a despeito das críticas em torno do conceito de

sociedade de risco, é certo que, fantasmagóricos ou não, há riscos (novos e velhos riscos) que,

em fins do século XX, são enxergados com outra força, o que tem colocado em xeque a

validade do discurso científico pautado na razão como fio condutor do futuro humano.

Mostra-se acertada a observação de GILLES LIPOVETSKY:

Na medida do histórico secular da modernidade, o momento

contemporâneo tem como característica fundamental a ruína das utopias e o esvaziamento dos mitos, do ponto de vista da edificação do porvir. A fase triunfal da modernidade identificara-se com um surto colossal de otimismo, digno de figurar na História. Poderia ser condensada no seguinte: uma fé indestrutível na marcha irreversível e contínua rumo a uma ‘idade de ouro’, augurada pela dinâmica da ciência e da técnica, da razão ou da evolução. Nesse ângulo de análise progressista, o futuro sempre foi concebido como algo superior ao presente. Assim, discorreu-se sobre a tese de que tais sistemas atuariam decisivamente no sentido de assegurar a liberdade e a felicidade do gênero humano para sempre. Como sabemos, as tragédias que o século XX presenciou, somadas ao novos desdobramentos dos perigos tecnológicos, representaram um desmentido categórico dessa infundada conviccção num futuro indefinidamente melhor. Entretanto, como as expectativas democráticas relativas à justiça e ao bem-estar subsistem, nossa época está impregnada dessa indescritível confusão e desse desengano, desconforto e angústia.

De fato, a sociedade de que se trata, seja qual for o ângulo de análise, é “global”,

expressão que se transformou em conceito mundial através da imprensa econônica de língua

inglesa e, em pouquíssimo tempo, proliferou de forma surpreendente.443 Estes fenômenos,

então, trouxeram consigo uma fumaça de incerteza, abalando, inexoravelmente, a desejada

segurança jurídica e social. É a respeito de um chamado “direito penal do risco”, consequente

das sensíveis mudanças que estruturam um novo mecanismo de controle de riscos, que se

tratará a seguir.

442 CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 300. 443 CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 23.

Page 121: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

125

3.2. Direito Penal do risco

“Tudo se tornou perecível, exceto talvez o coração humano”. 444 A afirmação de

HANNAH ARENDT faz refletir a respeito do panorama característico da virada de século e

cujo pano de fundo – aumento de complexidade das relações sociais, perda de credibilidade

das ciências, intensificação dos aparatos tecnológicos e a constação ou reflexão (tardia) dos

riscos advindos desta – traduz-se na inflação do sentimento de insegurança, o que fez SILVA

SÁNCHEZ afirmar que a sociedade atual pode ser definida como a “sociedade da insegurança

sentida”.445

Se, do ponto de vista objetivo, a sociedade pós-industrial é caracterizada pelo

manejamento de novos riscos, do ponto de vista subjetivo esta nova ambientação refletiu-se

no aumento generalizado da sensação de insegurança. A incerteza a respeito do conhecimento

científico e suas consenquências que, se sabe, podem atingir a todos indistintamente,

intensificou a tomada de consciência dos riscos (que, frise-se, são oriundos de tomadas de

decisão humana), podendo-se constatar aquilo que BECK chamou de “irresponsabilidade

organizada”.446

Num jogo de custo e benefício, toleram-se alguns riscos procedentes das atividades

humanas manejadoras das tecnologias para atender às pretensões de conforto e anseios típicos

da técnica instrumental da modernidade447

. Ainda que se questione os limites da sociedade de

risco (e até, sua própria existência, enquanto um novo modelo de sociedade conforme os

moldes impostos por BECK), é certo que se discute, nesse novo contexto, a maneira pela qual

podem ser distribuídos “os malefícios que acompanham a produção de bens, ou seja, verifica-

se a autolimitação desse tipo de desenvolvimento e a necessidade de redeterminar os padrões

de responsabilidade, segurança, controle, limitação e consequências do dano.”448 MENDOZA

BUERGO, ademais, já constatara que um dos traços definidores da sociedade atual é o rasgo

444 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. 7ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 73. 445 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 30. 446 BECK, Ulrich. A ciência é a causa dos principais problemas da sociedade industrial. Entrevista concedida a Antoine Reverchon, do “Le Monde”, publicada pelo jornal “Folha de São Paulo” em 20/11/2001. 447 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 119. 448 LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. Organização J. J. Gomes Canotilho e José Rubens Morato Leite. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 131.

Page 122: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

126

subjetivo de insegurança que, conforme leciona, pode existir, inclusive, independente da

existência de perigos reais. 449

É de fácil constatação que os fenômenos já descritos da pós-industrialização

possuem natureza econômica, resvalando, pois, no direito penal, que, como se sabe é um

produto político e imemorial. Se os fenômenos inerentes à sociedade moderna foram

responsáveis por intensificar o sentimento de medo e insegurança generalizada, este

sentimento, por sua vez, implicou na intensificação da demanda social por segurança, que,

alçada ao âmbito da opinião pública, enxerga no direito penal a principal ferramenta de

controle dos riscos. Este novo discurso, nao obstante, ingressa no discurso jurídico-penal,

ensejando o chamado direito penal do risco.

De fato, o direito penal, apesar de ultima ratio, é a ferramenta mais grave de que o

Estado dispõe, motivo pelo qual aparece como principal forma de acalentar os anseios

sociais450

. Inclusive os próprios críticos da sociedade de risco, como é o caso de PRITTWITZ

– que chega, até a aproximá-lo de um direito penal do inimigo 451 - afirmam sua existência:

“como se deve entender direito penal do risco? (...) Sem dúvida trata-se de ‘direito penal do

risco’ quando se coloca a criação do risco e o aumento do risco no centro das reflexões

dogmáticas sobre imputabilidade penal”. 452

De outra banda, MARTA RODRIGUES DE ASSIS MACHADO afirma que “o

surgimento de novas situações arriscadas, as incertezas e inseguranças criadas pelos riscos

tecnológicos determinam uma crescente demanda social por segurança, que se revela

normativa e substancialmente direcionada ao sistema penal.” 453

De fato, o direito penal atual tem se deparado com a séria dificuldade proveniente

do clamor intensificado da opinião pública que, insegura, solicita sua atuação. A consequência

direta deste fenômeno é sentida na ampliação, na expansão, no inchaço do campo de atuação

do direito penal, mormente no setor socioeconômico: meio ambiente, saúde pública, direitos

449 MENDOZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001, p. 30. 450 PRITTWITZ critica a característica do direito penal de ser protagonista de discussões tanto jurídicas, como leigas, e o cita como “o direito penal sobre o qual todos acreditam poder dar opinião – políticos, pessoas da mídia, mas também o homem e a mulher comuns na rua”. PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. V.12, n.47, mar./abr. 2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 34. 451 PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. V.12, n.47, mar./abr. 2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 32. 452 PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. V.12, n.47, mar./abr. 2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 37-38. 453 MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Sociedade do risco e Direito penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 96.

Page 123: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

127

consumeristas, das empresas, etc. De forma simplificada, tem-se como principais

características da expansão do direito penal454

, conforme denominação de SILVA SÁNCHEZ,

as que se exporão em seguida.

Aparição de novos bens jurídicos e aumento de valor experimentado por alguns

dos já existentes. 455 Tem-se, em realidade, o surgimento e o fortalecimento de novos e velhos

interesses que, sob a égide de uma sociedade mais complexa e evoluída, ganham força. Como

novos interesses (ou novas realidades) citem-se as tomadas de decisões humanas inerentes ao

universo econômico, como as instituições de crédito e as financeiras, que atingem, hoje, um

sem número de pessoas. Daí a lição de MARINUCCI e DOLCINI quanto à nova face da

proteção penal patrimonial:

(...) o futuro direito penal não poderá, de fato, ignorar o processo em curso, inclusive no nosso país, dirigido a financeirização da riqueza, que hoje é representada em larga medida por direitos de crédito e de participação em entes, sociedades, etc. Trata-se de uma riqueza coletiva –a poupança – que não se fragmenta um uma multitude de posições individuais bem diferentes entre si e suscetíveis de agressões em separado; o dano patrimonial das pessoas nunca é isolado: é o reflexo, no patrimônio individual, de uma dispersão da riqueza coletiva. O que caracteriza verdadeiramente o fenômeno da poupança na economia moderna é o seu destacar-se da esfera dos patrimônios individuais, sob a forma de investimentos, em geral confiados á gestão de intermediários profissionais.

456 (t.n.)

Por outro lado, tem-se, também, o fortalecimento de velhos interesses, como o

meio ambiente que, embora já exigisse proteção, ganha, na atualidade, proteção acentuada,

inclusive, jurídico-penal.

Além da aparição de novos interesses merecedores de proteção juridica, tem-se a

aparição de novos riscos. 457 A sociedade pós-industrial, conforme já observado, presencia o

aparecimento e a percepção de novos riscos provenientes de decisões humanas no manejo dos

454 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 455 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 27. 456

MARINUCCI, Giorgio e DOLCINI, Emilio. Corso di Diritto Penale. Vol. 1. 3ª edição. Milano: Giuffrè Editore, 2001, p. 550: “...il futuro diritto penale non potrà infatti ignorare i,l processo in atto, anche nel nostro Paese, verso la finanziarizzazione della riccheza, che è oggi rappresentata in larghissima misura da diritti di credito e di partecipazione in enti, società, etc. Si tratta di una ricchezza collettiva – il risparmio – che ´non si frammenta in una moltitudine di posizioni individuali ben distinte tra loro e suscettibili di separata aggressione´; ´il danno patrimoniale dei singoli non è mai isolato: è il riflesso, nel patrimonio individuale, di una dispersione di ricchezza colletiva´. Ciò che invero caraterizza il fenomeno del risparmi nell´economia moderna è il suo distaccarsi dalla sfera alla gestione di intermediari professionali.” 457 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 28.

Page 124: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

128

avanços científicos. Mas, para além disso, constata-se que a competitividade da sociedade

moderna desloca para a marginalidade muitos daqueles que, antes, sobreviviam com pouco;

hoje, esse pouco é mais do que nada. Há uma repercussão direta no incremento do bem-estar

individual 458

, o que gera a sensação maior de riscos pessoais e patrimoniais.

A difusão e institucionalização da insegurança. A confiança depositada na técnica

instrumental e na ciência tecnológica fez com que o homem não se acautelasse a respeito dos

resultados e das consequências que suas atitudes inflingiriam num futuro não tão distante.

“Decerto o cientista nao se pode permitir indagar: que consequências resultarão das minhas

investigações para o futuro do homem? A glória da ciência moderna foi ter sido capaz de

emancipar-se completamente de todas as semelhantes preocupações antropocêntricas, isto é,

verdadeiramente humanísticas.” 459 A reflexão de ARENDT já nos anos 1960, parecia prever

aquilo que hoje se verifica, a insegurança e os anseios, cujas respostas não se conhecem, a

respeito de todo o desenvolvimento industrial tecnológico que, esperava-se, uma dia pudesse

chegar ao fim. Acontece que não há fim ao desenvolvimento. Há porvires e, com eles,

medidas de contenção. Estas medidas, no direito penal, são reconhecidas com as medidas de

endurecimento das leis penais (o que se depreende, por exemplo, da análise dos crimes

hediondos), com a criminalização em matéria econômica, ambiental, consumerista, etc., e,

também, na utilização da técnica de tipificação dos delitos culposos que, não raramente, vêm

enganchados com os delitos de perigo que, por sua vez, aparecem em sua configuração

abstrata, os delitos de perigo presumido.460

Verifica-se, então, uma ampliação na área de atuação do direito penal, consequente

da sombra da incontrolabilidade que, frise-se, não é fenômeno novo, mas é inflado, no

contexto atual, pela ampliação da percepção dos riscos:

Apesar de, sem dúvida, ter-se tornado bem mais obscura no século XX, ela

(a sombra da incontrolabilidade) certamente não surgiu nas últimas décadas, com os riscos da era nuclear, por um lado, e, por outro, com o assustador impacto da poluição industrial e agrícola em grande escala. Ao contrário, é inseparável do capital como um modo de controle sociometabólico desde que este conseguiu se consolidar, tornando-se um sistema reprodutivo coerente, com o triunfo da produção generalizada de mercadorias.

461

458 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades

pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 29. 459 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 67. 460 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 31. 461 MÉSZAROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002, p. 133.

Page 125: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

129

Teses pessimistas e fundadas em críticas de baixa experimentação não devem

traduzir o pensamento de um sociedade e assim é que se deve concordar com MÉSZAROS

quando profetiza que por mais incertas que sejam as condições visadas, é impossível viver

num estado de emergência permanente, sob circunstâncias das quais não é mais possível se

esconder, pois que o futuro adiado nada mais é que futuro traído e abandonado. 462

A configuração de uma sociedade de “sujeitos passivos”. 463 Encontra-se, aqui,

característica especialmente resvaladora na criminalidade culposa. Ora, segundo SILVA

SÁNCHEZ, a sociedade do Welfare State configura-se como uma sociedade de classes

passivas, na medida em que, em decorrência da concentração de capital, as classes

empreendedoras vêm diminuindo. 464 Na sociedade globalizada, que possui diversos meios

tecnológicos de comunicação mas, que porém, mantém-se individualizada em seus

submundos de vida, constata-se uma redução na percepção do risco permitido. Assim, se, por

um lado, tem-se o incremento da criminalidade culposa, tem-se, por outro, uma dificultação

nos critérios de imputação, no que a imputação objetiva, conforme já observado, merece

atenção e ganha relevância fundamental.

A identificação social com a vítima. Encontra-se, aqui, uma verdadeira “faca de

dois gumes”. Em decorrência da configuração de uma sociedade de “sujeitos passivos”, há

uma tendência de identificação com as vítimas da criminalidade organizada, pelo fato,

também, de a criminalidade econômica ser caracterizada pela difícil percepção da figura do

vitimado, vez que abarca crimes capazes de atingir um sem número de pessoas. Há, assim,

uma identificação instantânea com aqueles que sofreram os algozes destes novos crimes, o

que caracteriza, por um lado, o incremento do sentimento de compaixão e solidariedade, que,

por si sós, já devem ser aplaudidos. De outra banda, porém, a identificação com a vítima

materializa-se, comumente, no apelo por um direito penal (ultima ratio que é) mais enrijecido

e atuante em mais áreas da vida.

Por fim, como característica da expansão do direito penal, própria de um direito

penal do risco, tem-se o descrédito de outras instâncias de proteção. Com a constante

transferência e mudança de valores sociais, o que se expressa com a anomia durkheimiana465

462 MÉSZAROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002, p. 141. 463 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 41. 464 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp. 41-42. 465 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 58.

Page 126: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

130

ou como demonstra o ensinamento pragmático wittgensteiniano de que “não é possível um

único homem ter seguido uma regra uma única vez” 466, nota-se uma angústia decorrente da

perda de referências normativas, que se traduz no apelo social a respostas e intervenções

estatais rápidas e se materializa, mais severamente, na figura do direito penal. Isto porque, o

direito penal é visto, na sociedade, como único recurso eficaz para a proteção de interesses

considerados de maior importância.

Da análise de todas estas características e circunstâncias que levam à existência de

um direito penal do risco, revela-se, este novo panaroma de expansão, como ambiente fértil à

proliferação dos crimes econômicos. De fato, é neste palco que surge a discussão da

macrocriminalidade, alicerçada na proteção de bens jurídicos supraindividuais, tais como os

sistemas financeiro, tributário e ambiental. Nas últimas décadas, aliás, proliferaram leis e

normas concernentes ao direito penal econômico, e, como seu desdobramento, às relações de

consumo, quase sempre através da criação de novos tipos penais incriminadores. 467 Na

legislação pátria extravagante, mencionam-se as Leis: 7.492/86 (que define os crimes contra o

Sistema Financeiro Nacional), Lei 8.137/90 (que define os crimes contra a ordem econômica,

tributária e contra as relações de consumo), Lei 8.666/93 (que traz crimes em licitação), Lei

9.605/98 (que aborda os crimes ambientais), Lei 9.613/98 (que dispõe sobre os crimes de

lavagem de dinheiro), Lei 9983/00 (que aborda os delitos previdenciários), dentre outras.

Reconhece-se, deste modo, uma relação de causa e efeito bem delienada no

contexto de sociedade atual: a globalização e pós-industrialização fizeram surgir a sociedade

de riscos que, por sua vez, deu ensejo à proliferação de normas incriminadoras no âmbito dos

crimes econômicos. A proliferaçao da proteção de bens jurídicos que transbordam à esfera

individual tem razão de existir. A um, porque se há uma atuação cada vez maior do direito

penal nas mais diversas áreas da vida, intensifica-se, também, a eleição de novos bens

jurídicos. A dois, porque, conquanto se tenha como função do direito penal a proteção

subsidiária de bens jurídicos, nota-se que esta função vem sendo substituída pela proteção de

instituições, fruto do contexto em que se tutelam bens jurídicos universais, pois, como leciona

GIDDENS, “hoje em dia, as ações cotidianas de um indivíduo possuem consequências

globais” 468

, globalizando-se, também, novas realidades e novos interesses dignos de proteção.

466 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de Marcos G. Montagnoli. Petrópolis, RJ: Vozes, 1944, p. 113 – originalmente publicada em edição póstuma, como Philosophische Untersuchungen, em 1953. 467 CALLEGARI, André Luís. Direito Penal Econômico e Lavagem de Dinheiro: aspectos criminológicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 21. 468 GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1995, p. 75.

Page 127: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

131

Um minimalismo jurídico-penal extremado, que negue ao direito penal qualquer

papel diante destas novas realidades, é anacrônico e descontextualizado 469

, conforme lição de

FIGUEIREDO DIAS.

Aliás, as relações de consumo, assim como a ordem econômica e o meio ambiente,

são valores que devem - e não somente podem - serem tutelados jurídico-penalmente, não se

chocando, pois, com os princípios da subsidiariedade e fragmentariedade.470 Por isto, rechaça-

se todo pensamento reducionista que, sob o discurso arraigadamente tradicionalista, pretende

levantar a bandeira de um direito penal clássico, sobrejacente a uma estrutura proposicional

sempre idêntica, em qualquer espaço-tempo. Essa forma de proceder enraíza-se no

pensamento científico simplificador. Deve-se, conforme já observado, atentar-se ao fato de

que a realidade é formada por ordenações instáveis, sempre sujeitas a acontecimentos que a

desorganizem e forcem novas organizações. É certo que o direito está sujeito aos influxos do

processo histórico e também aos valores da sociedade. E a ciência do direito deve se ocupar

da interação desses vetores.471 Há, decerto, possibilidade de coexistência entre expansão e

intervenção mínima.472

3.3. Direito Penal Econômico

É bastante comum a afirmação de que os riscos penais dos operadores econômicos

aumentaram a partir do início dos anos 80 passados. 473 Estabelecida a ambientação fértil à

proliferação da criminalidade econômica, calha estabelecer alguns critérios conceituais

determinantes ao chamado direito penal econômico. Existe uma consciência comum na

sociedade, que deve ser abolida, em que se tem a definição dos crimes econômicos como

aqueles crimes praticados por pessoas portadoras de poder derivado de sua elevada posição

469 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 130. 470 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 122. 471 BARRILARI, Claudia Cristina. Algumas considerações sobre o crime de perigo e o direito penal econômico. In: Revista dos Tribunais. V.100, n.903, jan. 2011. 417 472 Cite-se o trabalho de GUILHERME ANDRADE, a respeito do tema. ANDRADE, Guilherme Oliveira de. O Princípio da intervenção mínima e o Direito Penal do Risco. Dissertação de Mestrado, defendida em 02 de dezembro de 2009 no Centro Universitário Curitiba. 473 CANESTRARI, Stefano. “Riesgo empresarial” e imputación subjetiva en el Derecho Penal concursal. In: Temas de Derecho Penal Económico. III Encuentro Hispano-Italiano de Derecho Penal Económico. Organização Juan María Terradillos Basoco e María Acale Sánchez. Madrid: Editorial Trotta, 2004.

Page 128: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

132

social ou econômica. 474

Ainda que possa se traduzir em característica comum a certos tipos

de crimes econômicos, não os definem, por si só. De igual forma, não é incomum a afirmação

de que crimes econômicos seriam aqueles praticados por empresas, que, da mesma forma,

deve ser rechaçada, vez que se tomada a hipótese de empresa que comete homicídio, não se

afigura, certamente, um crime econômico. Há, ademais, crimes econômicos cometidos por

pessoas físicas.

Faz-se necessário uma conceituação do termo com mais acuidade. A primeira

grande contribuição à definição dos crimes econômicos fora dada por EDWIN

SUTHERLAND, em fins dos anos 30, e, para isso, o sociólogo buscou responder a três

questões fundamentais: (i) o que é o crime; (ii) quais suas causas e (iii) qual a relação entre o

crime e a lei. 475

SUTHERLAND rompeu com o pensamento causal-naturalista fundado na etiologia

do crime própria do início do século XIX, segundo a qual, os menos favorecidos e excluídos

socialmente estariam mais propensos à prática de crimes. SUTHERLAND verificou, através

de um vasto trabalho de pesquisa, que a criminalidade das classes sociais mais baixas

possuíam maior percepção social e, por isso, “abafavam”, tornando menos perceptíveis, os

crimes praticados pelos pertencentes aos altos escalões.

Abolia-se a chamada criminologia do delinquente, propria do pensamento lisztiano;

o “efeito” crime, segundo SUTHERLAND, não possuía como “causa” a qualidade social do

agente, mas era resultado do aprendizado adquirido a partir de situações reais enfrentadas pelo

agente. Em outras palavras e, ainda que pareça afirmação reducionista, tem-se que o

comportamento criminoso é aprendido em interação com as outras pessoas , e não herdado, o

que se faz concluir quando se observa ou, ao menos quando observou SUTHERLAND, que a

pessoa se torna delinquente quando a maioria de suas interações é favorável ao delito. A

principal forma de aprendizagem do delito é, afinal, no âmbito de atuação de grupos pessoais

privados, como exemplo, citem-se as atividades profissionais de um contador que pratica,

reiteradamente, condutas ilíticas sem que se aperceba disso, eis que tais práticas estão

incorporadas ao meio social da profissão, as chamadas associações diferenciais. 476 É a lição

do sociólogo:

474 PEREIRA, Flávia Goulart. Os crimes econômicos na sociedade de risco. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. V.12, n.15, Nov. 2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 115. 475 SUTHERLAND, Edwin. White collar crime. The uncut version. London: Yale University Press, 1983, p. 80 e seguintes. 476 SUTHERLAND, Edwin. White collar crime. The uncut version. London: Yale University Press, 1983, p. 240.

Page 129: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

133

A hipótese da associação diferencial é que o comportamento criminoso é aprendido em associação com aqueles que definem tal comportamento criminoso favoravelmente e em isolamento daqueles que o fazem desfavoravelmente, e que uma pessoa em um dada situação apropriada se envolve em tal comportamento criminoso se, e somente se, o peso das definições favoráveis excede o peso das definições desfavoráveis. (t.n.)

477

Assim, em SUTHERLAND, tem-se que, no seio de alguns grupos bem definidos,

reiteram-se modelos de conduta delitivos. A partir desse “contágio”, os indivíduos passariam

a ver como normais determinadas violações da lei, afinal para eles, têm alto valor certas

concepções, como a de que “trabalho é trabalho”.478

A partir da obra do sociólogo americano e com a proliferação de interesses

supraindividuais tendentes a alertarem a respeito da gravidade dos crimes econômicos,

diversas outras definições foram elaboradas. Deve-se, porém, dar prioridade ao conceito,

bastante recorrente na doutrina atual, que gira em torno do bem jurídico protegido ante a esta

nova criminalidade, qual seja, a ordem econômica. Por este conceito, toda vez que atingida a

ordem econômica, tem-se atuante o direito penal econômico. Ainda que, conforme salientado

por MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, quando a doutrina utiliza as expressões “direito penal

econômico”, “direito penal socioeconômico”, “direito penal da economia”, ou outras

similares, “não pretende referir-se a um direito penal distinto, mas, sim, a uma qualificação

fixada sobre a peculiar natureza do objeto que trata de tutelar”. 479

Conforme já salientado, a sociedade pós-industrial tem como uma de suas

principais características a globalização econômica e, se tomada a lição de BECK em “O que

é globalização?”, é ela a causa primordial dos conflitos pelos quais passa a sociedade

moderna:

O globalismo reduz a nova complexidade da globalidade e da globalização

a uma dimesão – a econômica – que ainda é compreendida de modo linear como a extensão contínua da dependência do mercado mundial. Todas as outras dimensões – globalização ecológica, globalização cultural, política policêntrica, o surgimento de espaços e identidades transnacionais – são, quando muito, tematizadas apenas sob o domínio subordinador da globalização econômica.

480

477 SUTHERLAND, Edwin. White collar crime. The uncut version. London: Yale University Press, 1983, p. 240. 478 PEREIRA, Flávia Goulart. Os crimes econômicos na sociedade de risco. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. V.12, n.15, Nov. 2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 119. 479 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Parte general. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 67. 480 BECK, Ulrich. O que é globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 205.

Page 130: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

134

O aspecto econômico fortemente orientador das novas complexidades sociais tem

nos delitos econômicos sua principal expressão na área criminal. Daí é que, o direito penal,

adaptando-se ao novo panorama, e cumpridor de sua função de tutela de bens jurídicos

fundamentais, opta por tutelar estes novos interesses que, pelo direito penal tradicional

permaneceriam desprovidos de proteção eficaz. 481

Há dois paradigmas bastante diversos atuantes no direito penal atual. De um lado, a

forma tradicional de criminalidade, com a qual surgiu o direito penal, e que tem servido de

base para a dogmática que fora construída até então – um direito penal que compactua com

aquilo que HASSEMER denominou de “direito penal nuclear”, o clássico direito penal de

bens jurídicos individuais e cáriz patrimonialista. De outra banda, tem-se uma nova forma de

delito, surgida há, ao menos, 40 anos, e caracterizada pela tutela de bens jurídicos universais,

de índole socioeconômica e, como o próprio HASSEMER – ainda que posicionado

contrariamente a esta nova modalidade delituosa, assim como o faz a Escola de Frankfurt -, os

define: “bens jurídicos que buscam a proteção do bem estar humano, da saúde pública, da

capacidade de funcionamento do mercado de capitais, da política estatal de subvenções ou do

emprego da informática na economia”. 482 Ademais, conforme bem observa MARTÍNEZ-

BUJÁN PÉREZ, “no âmbito dos delitos socioeconômicos, encontram-se tanto delitos que

tutelam diretamente um bem jurídico individual, como delitos destinados a proteger

diretamente um bem jurídico de natureza supraindividual.” 483

De qualquer forma, aquela modalidade delituosa exemplificativa de um crime

praticado por autor individual contra vítima específica diferencia-se, hoje, dividindo espaço

com o delito econômico, interessado que está em outros setores da vida – cite-se, como

exemplo de crime econômico, uma transação fraudulenta que vitima milhares de cidadãos e

cuja individualização é difícil, senão impossível.

Emerge o direito penal econômico que, conforme a doutrina dominante, possui

normas com as mesmas características que o resto das normais penais e cuja pena cumpre as

mesmas funções. 484 Bem observa FEIJÓO SÁNCHEZ que “o direito penal econômico nao é

um direito econômico que se serve das penas para conduzir a economia, mas, sim, é um

481 PEREIRA, Flávia Goulart. Os crimes econômicos na sociedade de risco. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. V.12, n.15, Nov. 2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 122. 482 HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad. Bases para una teoría de la imputación en Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 88. 483 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Parte general. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 152. 484 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Cuestiones actuales de Derecho Penal Económico. Buenos Aires: Julio César Faira Editor, 2009, p. 206.

Page 131: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

135

direito penal que se ocupa de um setor específico da vida social” 485

, concluindo-se, assim,

que “os critérios de legitimidade e as categorias dogmáticas criadas para a teoria do direito

penal são perfeitamente aplicáveis ao âmbito dos delitos socioeconômicos e de empresa.” 486

Não há como negar, porém, que muito se discute a respeito das alternativas de implementação

e formas que deve assumir essa nova tutela penal.

Se, por um lado – para os críticos -, é certo que o enquadramento de um crime

como delito econômico traz a presunção de que os princípios tradicionais do direito penal

deverão sofrer algum ajuste, por outro, não menos certo, é que devem ter em mente,

legislador, órgão julgador e aplicador do direito, que nem todo risco sentido como

demandante de contenção penal deve ser aceito, nem tampouco deve se desconhecer as várias

fontes de sensação de riscos “fantasmagóricos” (isto é, destituídos de possibilidade objetiva

de que obtenham concretude 487

) e infundados, derivados do anonimato das relações sociais,

na ausência de tábuas comuns de valor, na tendência ao individualismo, aspectos que minam

as relações de confiança entre os cidadãos e criam a angústia da insegurança. 488

Assim, novos-velhos critérios dogmáticos, como o da imputação objetiva roxiniana,

podem (e devem) ser adotados em sede de crimes econômicos, sem que com isto se infrinjam,

ou se relativizem, os princípios clássicos de direito penal. Isto porque, como toda tarefa

intelectual, em que se deva avaliar o entorno, os prós e contras, as vicissitudes, também na

epistemologia jurídica, deve-se avaliar o que de lá para cá mudou, o que permaneceu, o que

deva ser mantido e o que, todavia, merece evolução. Deste modo, se é verdade, conforme

NIETSZCHE, que “a humanidade gosta de afastar da mente as questões acerca das origens e

dos primórdios” 489, com a ciência do direito penal deve-se caminhar na contramão.

Imprimindo uma nova visão transcendental ao seu estudo, é capaz, o direito penal,

de adotar critérios dogmáticos “novos” a “novos” bens jurídicos, sem que, com isto, se

485 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Cuestiones actuales de Derecho Penal Económico. Buenos Aires: Julio César Faira Editor, 2009, pp. 209-210. 486 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Cuestiones actuales de Derecho Penal Económico. Buenos Aires: Julio César Faira Editor, 2009, pp. 210-211. 487 O termo foi utilizado por FÁBIO GUARAGNI: “Sabe-se que o risco, enquanto fato futuro projetado, só existe como imagem cultural, (...) de modo que o risco mundial é, na verdade, a ‘cenificação da realidade do risco mundial’ no plano das nossas mentes. Isto não significa que o risco seja uma espécie de fantasma. É certo que pode se apresentar como fantasmagoria, isto é, destituído de possibilidade objetiva de que contenha concretude. Mas avesso é possível, o risco, enquanto cenificação de tragédias futuras, bem pode guardar plausibilidade sustentada em marcos objetivos.” GUARAGNI, Fábio André. A função do Direito Penal e os “Sistemas Peritos” In: Crimes contra a ordem econômica: temas atuais de processo e Direito Penal. Organização Fábio André Guaragni e Luiz Antônio Câmara. Curitiba: Juruá, 2011, p. 83. 488 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 123. 489 NIETZSCHE, Friedich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 18.

Page 132: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

136

distancie de sua existência garantista, clássica e de cunho liberal, necessária que é à sua

própria subsistência.

Deste contexto, tem-se que diversas novas questões surgem no horizonte do direito

penal e, certamente, não lhe é razoável negar todo e qualquer papel em face desta realidade de

mundo. A reflexão de GUARAGNI é contundente:

Portanto: a) sem exclusividade; b) somando esforços com outros ramos do

direito e com mecanismos de controle social, institucionalizados ou não; c) mantidos os principais guias tradicionais da intervenção penal, como a intervenção mínima, a lesividade, a legalidade e a culpabilidade, é possível atribuir-se ao direito penal as tarefas: 1- de contenção de riscos provenientes de tecnologias; 2- de controle social da operação de sistemas peritos, incrementando os cuidados objetivos devidos pelos respectivos operadores e exaltando a condição de garantes que assumem quanto a resultados lesivos oriundos das atividades de operação.

490

Com o aprofundamento na verificação da criminalidade econômica, iniciada, com

efeito, a partir da virada de século, mormente com as transformações na economia e a

diminuição das distâncias (quebra de fronteiras) entre os povos, intensificaram-se as normas

relativas a este novo delito, criando-se, por conseguinte, novos tipos penais e enrijecendo as

penas dos já existentes. Volta-se, a mira do Estado, ao criminoso de terno e gravata, ao

empresário, ao consumidor, mas, também, ao indivíduo manejador de técnicas arriscadas,

porém, das quais não se abre mão. É de fácil constatação, assim, o aumento de delitos contra a

ordem econômica nos processos criminais brasileiros.

Para além do surgimento de novas leis, verifica-se um verdadeiro paradoxo -

consequente da manipulação pelos meios de comunicação, que pleiteam penas mais severas,

e, também, pelo próprio caráter supraindividual dos bens protegidos: é manifesta a

desproporção das penas cominadas aos delitos econômicos em comparação com os crimes

comuns. Vê-se, por exemplo, que o crime previsto na Lei 8.137/90, artigo 1º (sonegar

tributos, pena de 2 a 5 anos de reclusão) possui pena maior que a de homicídio culposo (1 a 3

anos de detenção).491 Percebe-se, aliás, um sensível acréscimo de condenações por crimes

490 GUARAGNI, Fábio André. A Função do Direito Penal e os “Sistemas Peritos”. In: Crimes contra a Ordem Econômica. Temas atuais de Processo e Direito Penal. Organização Luiz Antônio Câmara e Fábio André Guaragni. Curitiba: Juruá, 2011, p. 83. 491 KNOPFHOLZ, Alexandre. Considerações sobre a falta de justa causa nas denúncias genéricas de crimes econômicos. In: Crimes contra a ordem econômica: temas atuais de processo e Direito Penal. Organização de Fábio André Guaragni e Luiz Antônio Câmara. Curitiba: Juruá, 2011, p. 21.

Page 133: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

137

contidos na Lei 7.492/86, que define crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, tanto nos

Tribunais Regionais Federais como no Superior Tribunal de Justiça. 492

São os efeitos da mencionada expansão. Daí se admitir, para além do âmbito do

direito penal tradicional, a função da teoria da imputação objetiva como limitação da

responsabilidade - se suportados os critérios de imputação - no âmbito dos delitos

econômicos. Se o direito penal econômico, como ramo da ciência complexa do direito penal,

ganha status e força normativa, ocupando-se de um setor específico da vida social (setor,

diga-se, essencial à vida em coletividade), deve ver aplicados os critérios de legitimidade e as

categorias dogmáticas – no que os critérios de imputação objetiva também devam ser-lhe

aplicado - criadas, originariamente, à teoria do direito penal clássico. FEIJOO SÁNCHEZ

descreve a relação entre direito penal econômico e imputação objetiva:

Se a teoria de imputação objetiva, como teoria normativa da tipicidade

dominante – restando claro que não resultam decisivos os critérios causais, nem o sentido que o autor queira outorgar à sua conduta – há tempos iniciou uma marcha triunfal como teoria do injusto penal (ainda que existam alguns núcleos insurgentes como os do finalismo), afetará, também, os delitos socioeconômicos. E mais, neste âmbito, tão condicioando por decisões prévias de ordem social primária e, por isso, tão normativizado, demonstra-se uma superioridade absoluta frente a qualquer teoria do tipo prévia que deixara os temas centrais dos delitos econômicos como algo ‘residual’, que simplesmente tinham que vem com uma interpretação técnica de certos preceitos da parte especial.

493 (t.n.) – grifo nosso.

A normativização da tipicidade, ademais, possui vantagens político-criminais

adicionais, conforme ponderação de FEIJÓO SÁNCHEZ: “em um ramo do ordenamento

jurídico-penal em que a percepção do contexto de condução econômica dá lugar à

configuração de tipos penais” 494 como os mencionados, punidos com mais gravidade e em

maior número, a teoria da imputação objetiva, prossegue o catedrático de Madrid, permite

reduzir a intervenção da pena naqueles casos em que, utilizando terminologia tradicional,

492 MACHADO, Maíra Rocha. Crimes financeiros nos Tribunais brasileiros. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. v.17, n. 76, já./fev. 2009.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pp. 58-78. 493 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Cuestiones actuales de Derecho Penal Económico. Buenos Aires: Julio César Faira Editor, 2009, p. 211. 494 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Cuestiones actuales de Derecho Penal Económico. Buenos Aires: Julio César Faira Editor, 2009, p. 212.

Page 134: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

138

realmente resulta merecida e necessária, excluindo, assim, uma responsabilidade penal

excessivamente formal.” 495

Ademais, a utilização dos critérios de imputação objetiva calcados na criação ou

incremento de riscos proibidos, encontram campo de atuação em todos os delitos, tornando a

responsabilização mais justa e coerente. Calha a crítica de HASSEMER e MUÑOZ CONDE,

no sentido de que “o delito de perigo abstrato, enquanto forma mais representativa do

‘moderno’ direito penal (que se projeta, indubitavelmente, sobre a esfera socioeconômica), é

utilizado pelo legislador para ampliar enormemente o âmbito de aplicação do direito penal.

Ao prescindir do prejuízo, prescinde-se também de demonstrar a causalidade”. 496 Portanto,

em todos delitos, quer protejam bens jurídicos individuais ou não, quer prescindam de

resultado naturalístico ou não, será necessário, ao agente, suportar os critérios de imputação

objetiva.

Com razão, no momento de análise da tipicidade, proveniente da realização de

conduta infratora da ordem econômica - como, por exemplo, a realização de negócios de risco

por parte de um administrador societário - não se pode prescindir das posições jurídicas que se

projetam da valoração normativa (malgrado a criação dos critérios de imputação objetiva

terem surgido no âmbito do resultado naturalístico, recorde-se, foi trespassado ao campo do

resultado jurídico).

Interessa ter em conta que o critério do risco permitido, calcado em bases

teleológico-funcionais, opera de forma bastante eficaz na esfera do direito penal econômico,

desde o momento em que emerge uma economia de mercado, onde se mantêm relações e

atividades arriscadas não só aos participantes, como a terceiros alheios a estas relações.

A partir, principalmente, do último quarto do século passado, com o movimento de

abertura da economia brasileira, o mercado de capitais brasileiro passou a perder espaço para

outros mercados devido à falta de proteção ao acionista minoritário e às incertezas em relação

às aplicações financeiras. A falta de transparência na gestão e a ausência de instrumentos

adequados de supervisão das companhias influenciavam a percepção de risco e,

conseqüentemente, aumentavam o custo de capital das empresas. Parte-se do pressuposto de

que o impacto de uma falência não se restringe apenas às empresas que se tornam insolventes

ou aos seus credores particulares, mas afeta diretamente a sociedade, que sofre os efeitos das

crises econômicas. Foi dentro desse quadro de estagnação e tentativa de recuperação do

495 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Cuestiones actuales de Derecho Penal Económico. Buenos Aires: Julio César Faira Editor, 2009, p. 212. 496 HASSEMER, Winfried e MUNÕZ CONDE, Francisco. La responsabilidad por el producto en Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995, pp. 76 e ss.

Page 135: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

139

mercado acionário que, em 1976, foi introduzida, por exemplo, uma nova norma legal, ainda

em vigor: a Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), que visava modernizar as regras

que regiam as sociedades anônimas, até então reguladas por um antigo Decreto-Lei de 1940.

Assim, dada importância que emerge de um direito econômico do século XXI, não

é dado ao direito penal quedar-se alheio a um novo papel de controle que, certamente, deverá

ser submetido a critérios tendentes a compensar e conter a natural expansão do poder

punitivo.

Tome-se, por outra visão, o exemplo do crime fiscal previsto no artigo 1º, da Lei

8.137/90 (suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social). Concretamente, entende-se que

esta figura delitiva não “é um delito que se configure só pela conjunção de infração de

deveres tributários formais e a produção de prejuízo para a Fazenda Pública (isso só permitirá

distinguir o desvalor de ação).”497 O delito se constitui, conforme observação de FEIJÓO

SÁNCHEZ, “pela conjunção de atos concretos de organização, de infração atribuído pela

utilização de critérios axiológicos de imputação, fundamental em sede de crimes

esconômicos.” 498

Mais uma vez, deve-se apegar à ideia de complexidade, para refletir que uma

ciência complexa, descabe atribuir, exclusivamente, características gerais e universais aos

entes da realidade. A ciência complexa, ademais, compreende o diferente em sua diferença e

admite o individual, em sua individualidade. Com o enfrentamento da individualidade é que

se perpetrará, em direito penal, uma solução que melhor se ajuste ao caso concreto, não

cabendo ao intérprete refugiar-se em respostas prévias à experiência. Este discurso, aliás,

deve-se, em grande parte, em matéria de direito tributário (que, igualmente, se depara com as

objeções dos novos tempos), a SOUTO MAIOR BORGES, que bem intenta superar uma

dogmática lógico-instrumental, ao lecionar que o positivismo, qualificado como apenas

metodológico, não nega outras possibilidades de pesquisa jurídica: “O pensamento profundo

não receita a vertigem do abismo ou o ar rarefeito das alturas a que o conduziu o pensar

guiado pela ousadia intelectual. Nem deve recusar o combate com as dificuldades que o ofício

de pensar envolve.” 499

497 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Cuestiones actuales de Derecho Penal Económico. Buenos Aires: Julio

César Faira Editor, 2009, p. 232. 498 BAJO FERNÁNDEZ, Miguel. Política fiscal y Delitos contra la Hacienda Pública. Organização de Miguel Bajo Fernández, Silvina Bacigalupo Saggese e Carlos Gómez-Jara Díez. Madrid: Editorial Universitaria Ramón Areces, 2007, pp. 73 e ss. 499 BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz: sobre o mundo jurídico e outros mundos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1994, p. 28.

Page 136: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

140

Conforme lição de FEIJÓO SÁNCHEZ, “uma concepção material e não puramente

formal dos delitos configurados a partir de deveres positivos que excedam o mero ‘organiza-te

como queiras, mas sem lesionar’” 500 , permite um adequado tratamento de todas estas

questões. O penalista confirma a necessidade de se utilizarem o que ele chama de “sistemas

híbridos dogmáticos” partindo da análise de que uma compreensão excessivamente dada a

fórmulas rígidas e supostamente estabilizadas, não resta frutífera na solução de casos que se

pretendam justos.

Da análise da ampliação do âmbito de atuação do direito penal, merece destaque o

contexto de intensificação dos cursos causais. Dado o ganho de complexidade das relações

interpessoais, atrelado ao fato de que a “boa sociedade” de que tratou ARENDT, separou, em

lados bem distintos, o mundo da realidade e a épaisseur triste, ou a “opacidade triste” de uma

vida particular centrada apenas em si mesma, tem-se que as relações sociais tornaram-se mais

rápidas, líquidas e atuantes nas mais diversas vertentes. A repercussão, como não poderia

deixar de ser, é clara no seio jurídico-penal.

3.4. A intensificação dos cursos causais

Desde o surgimento das teorias pós-finalistas de cunho funcionalista, no último

terço do século passado, muito se discute a respeito do futuro do direito penal nas sociedades

pós-modernas. Não é à toa que, na Alemanha, tenha surgido, no meio acadêmico, um tema

geral denominado “o direito penal entre o funcionalismo e o pensamento europeu de

princípios tradicionais”. 501 Tem-se - em pólos bem antagônicos e abstraídas diversas outras

posições, o que não fora feito de forma leviana - de um lado o individualismo da Escola de

Frankfurt, de outro o normativismo de JAKOBS.

A nova criminalidade pós-industrial parece ter criado a polarização entre aquilo

que se tem como “direito penal clássico”, pleiteada, sobretudo, pelos radicados em Frankfurt,

e o chamado direito penal do risco, surgido em um cenário de expansão do direito penal.

500 FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. Cuestiones actuales de Derecho Penal Económico. Buenos Aires: Julio César Faira Editor, 2009, p. 234. 501 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico- penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado, 1996, p. 14.

Page 137: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

141

A chamada Escola de Frankfurt, atuante desde a década de 1960, e cujos principais

representantes são HASSEMER, HABERMAS, HERZOG, PRITTWITZ e KARGL 502

, são

críticos (alguns fervorosos, outros não tanto) da sociedade industrial moderna - imbuídos,

talvez, pelo sentimento de angústia e depressão tomado pela Alemanha pós-guerra - e, com

suas críticas, os penalistas desta Escola partidarizam-se pela redução do objeto do direito

penal, associada à expressão “Direito Penal mínimo”. Enfatizam, precipuamente, que o direito

penal deve tratar de proteger somente os bens jurídicos que eles chamam de clássicos e que

não devem ser relativizadas as regras de imputação e os princípios tradicionais do direito

penal da Ilustração. Para estes autores radicados em Frankfurt, seria necessário, então,

eliminar a crise produzida pela expansão do direito penal e reduzi-lo a um direito penal

nuclear, no sentido de uma teoria pessoal do bem jurídico. 503

Ocorre que, a posição assumida por HASSEMER, de tutela de bens jurídicos

individuais clássicos, de ordem antropocêntrica, se tomada do ponto de vista da evolução das

condições de vida da sociedade e da tomada de complexidade nas relações interpessoais, é

certo que se afigura estreita demais ao novo cenário. SCHÜNEMANN observa duas falhas na

teoria pessoal do bem jurídico de HASSEMER. A um, reflete que “já que não é um indivíduo

em especial, no momento presente, mas a supervivência da espécie humana, o que constitue o

valor supremo, valor que desde o ponto de vista das pessoas que vivem no momento atual não

é individual, mas universal.” 504

A dois, o conceito de bem jurídico de HASSEMER não leva em conta as

dimensões das distintas potencialidades de lesão de uma determinada sociedade em função de

seu estado de desenvolvimento tecnológico. 505 Isto porque, se antes da Revolução Industrial e

da superpopulação na Terra, “as reservas de recursos ecológicos eram tão abundantes e as

potencialidades de lesão à disposição dos indivíduos eram tão pequenas, e de fato, em uma

hierarquização pragmática, os bens jurídicos dos membros da sociedade, cada qual em

particular, podiam estar em primeiro plano” 506 , hoje, a realidade é cambiante. Vê-se,

paradoxalmente a uma sensação de individualização dos povos - inflada pelos meios de

502 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-

penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado, 1996, p. 15. 503 HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad. Bases para una teoría de la imputación en Derecho Penal. Tradução de Francisco Muñoz Conde e Mª del Mar Díaz Pita. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, pp. 43-51. 504 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico- penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado, 1996, pp. 20-21. 505 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico- penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado, 1996, p. 24. 506 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico- penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado, 1996, p. 24.

Page 138: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

142

comunicação de massa que, ao final, restringem os indivíduos ao âmbito de sua privacidade

narcizista e egoísta, no que LIPOVETSKY chamou de “sociedade da (in)comunicação e da

(in)diferença” 507 – uma solidarização no sentido de que, ao respeitar o meio ambiente (bem

jurídico tutelado pelo direito penal econômico), este respeito se vislumbra, também, em uma

conotação reflexiva, no sentido de que se respeita em benefício próprio, mas em benefício de

quem sequer é conhecido, também. Daí a orientação da Escola de Frankfurt de observância a

bens juridicos pessoais, na atualidade, traduzir-se em uma quase-perversidade de valores,

quando se abdica egoisticamente de proporcionar condições de vida às gerações futuras.

Ora, a ciência do direito penal, complexa que é, deve absorver os valores da

dinâmica social, no que a mudança de alguns pressupostos faz-se necessária. Não se trata de

relativizar princípios constitucionais penais construídos sob o discurso garantista, mas, sim,

trata-se de não ignorar a nova realidade imposta. Salutar a lição de MIGUEL REALE de que a

mudança reside nos pressupostos que se devem adotar, não na natureza do método, pois que o

método (sempre) será o mesmo: jurídico. REALE observa o fato de que algumas teorias

jurídicas equivocam-se na separação entre norma, fato e valor; segundo ele, estas três

vertentes do direito são, em si só, uma realidade tridimensional. 508

Assim, é certo que, tendo como base o direito penal atual, de cunho pós-finalista,

em que se atribui a função de proteção de bens jurídicos ao direito penal, a organização social

contemporânea forja um pano de fundo atual de proteção de bens jurídicos transindividuais.

Não menos certo é que, em sua escolha, o Estado, na figura do legislador penal, não deve

eleger interesses para além dos estritamente necessários ao desenvolvimento dos indivíduos

em sociedade, abarcando, conforme já observado, tanto interesses pessoais seus (dos

indivíduos), como interesses que os atinjam reflexivamente, onde se encontra, sem sombra de

dúvidas, a ordem econômica.

Ainda que os autores frankfurtianos não neguem o ponto de partida de um direito

penal funcional, propugnam, no entanto, um funcionalismo construído sob um viés

individualista.

Ocorre que, uma característica da sociedade de risco, e consequentemente, do

direito penal do risco, é a substituição do contexto de ações individuais para o contexto de

ações coletivas, no que o contato interpessoal é substituído por uma forma de comportamento

507 LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção. Tradução de Armando Braio Ara. Barueri, SP: Manole, 2007. 508 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994.

Page 139: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

143

anônima e estandarizada. 509

Se antes o comportamento delitivo padrão se dava nas relações

interpessoais cujos atores bem se conheciam (ou poderiam se conhecer), no contexto atual, a

rede de relações tanto se vascularizou, deixando, inclusive, de se dar entre pessoas, mas entre

pessoas e coisas (sistemas peritos), que se enxerga uma dificultação, própria do direito penal

do risco, das cadeias causais. Estas se perdem no anonimato da sociedade de massas.510

A consequência no âmbito do direito penal é sua atuação preventiva, buscando

minar possíveis danos sociais de consequências inesperadas. Daí a substituição de um crime

culposo material por crimes de mera atividade, quanto ao resultado naturalístico, ou crimes de

perigo, em lugar de crimes de dano, quanto ao resultado jurídico, para abarcar, exatamente,

todas essas ações e garantir a proteção dos bens jurídicos escolhidos.

Em outras palavras, tem-se que, em matéria de proteção de novos bens jurídicos,

assim, como consequência da tutela por parte do direito penal econômico, de interesses cada

vez mais genéricos, antecipam-se as fronteiras da proteção penal, transitando-se do modelo de

lesão a bens individuais a um modelo de perigo para bens supraindividuais. 511 Para atender

às novas demandas, surge um direito penal atuante preventivamente, agindo em momento ex

ante à concretização do dano ou mesmo de sua própria constatação.

HASSEMER e MUÑOZ CONDE, aliás, embora críticos de um direito penal

“moderno”, consideram as condutas que possam dar lugar a uma responsabilidade pelo

produto, delitos contra a saúde pública, considerada esta, bem jurídico universal de caráter

autônomo. 512 Deduzem, ademais, uma conclusão fundamental: os delitos contra a saúde

pública (por castigarem condutas que recaem sobre diversos objetos: substâncias nocivas à

saúde, substâncias medicinais e produtos alimentícios), são delitos de perigo abstrato.513

De forma semelhante, e cuja técnica vem, não raras vezes, enganchada na da

precaução ou prevenção, tem-se a expansão dos crimes culposos que, neste quadro axiológico,

surge como um panorama em que se faz dos delitos praticados mediante culpa, ou seja,

praticados mediante quebra de um dever de cuidado objetivo ou, na melhor locução, mediante

condutas que ultrapassam os limites do risco permitido, mecanismo de contenção de riscos

509 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-

penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado, 1996, pp. 30-31. 510 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico- penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado, 1996, p. 32. 511 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 113. 512 HASSEMER, Winfried e MUNÕZ CONDE, Francisco. La responsabilidad por el producto en Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995, pp. 56-57. 513 HASSEMER, Winfried e MUNÕZ CONDE, Francisco. La responsabilidad por el producto en Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995, pp. 56-57.

Page 140: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

144

advindos de um modelo social nomeadamente complexo e atinente ao intensificado emprego

de tecnologias cujas consequências pouco se conhecem.

Relaciona-se, então, com os novos âmbitos de atuação da sociedade moderna, o

principio da precaução, surgido no direito alemão, em meados de 1970, e que pretendeu

explicar como o direito penal deveria preocupar-se, de forma antecipada, com as possíveis

consequências dos diferentes projetos e empreendimentos da atualidade, e não após estas

consequências se manifestarem. 514 Surgido inicialmente no direito ambiental, o princípio da

precaução foi recepcionado pelo direito penal, que vê diante de si riscos sobre os quais pouco

tem conhecimento. 515 Assim, por inexistir certeza científica a respeito da potencialidade

lesiva ou da inocuidade da atividade, o direito penal atua, conforme observação de

SCHÜNEMANN, em “legítima defesa da sociedade”. 516

Importa salientar a distinção entre os princípios da precaução e da prevenção que,

apesar da terminologia, bem se distinguem. O princípio da prevenção dirige-se às atividades

cuja periculosidade possa ser evidenciada por constatações científicas ou estatísticas, ou seja,

nas quais exista certeza científica de seu potencial lesivo. 517

A aplicação do princípio da precaução, porém, só está autorizada nas hipóteses de

incerteza da comprovação de periculosidade ou inocuidade de determinada atividade. Não

cabe, assim, a afirmação de que toda e qualquer atividade arriscada autoriza, por si só, a

aplicação do princípio da precaução, consequente que é a um novo paradigma, centrado na

importância de se diagnosticarem, previamente, os possíveis riscos atrelados às diversas

atividades humanas, a fim de evitá-los. 518

Complexificada a realidade social, complexifica-se seu estudo, e, assim, o direito.

Como ciência que é, o direito deve estar acostumado à variabilidade e à efemeridade do

objeto da ciência enquanto verdade absoluta. Assim é que, o direito - e o direito penal - atém-

se ao fato de que deduzir toda e qualquer atividade arriscada em potencial perigo à sociedade,

dificultaria a própria repartição de tarefas sociais.

514 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 11ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 28. 515 É um princípio que, conforme lição de CRUZ BOTTINI, “surge na seara do cientificamente desconhecido.” CRUZ BOTTINI, Pierpaolo. Princípio da precaução, direito penal e sociedade de risco. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 54. 516 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico- penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado, 1996, p. 27. 517 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 54. 518 BUSATO, Paulo César e KÄSSMAYER, Karin. Intervenção mínima x precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In: Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008, p. 142.

Page 141: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

145

Uma ciência complexa deve ter consciência das consequências práticas que pode

causar, pois já não se admite um saber científico puro, desvinculado das situações reais que o

circundam. Deseje o cientista, ou não, vive-se em uma sociedade de riscos, na qual integra-se

o risco de que suas proposições adquiram o status de acontecimentos, a alterar o estado de

coisas antes existentes, fazendo crescer a responsabilidade do cientista e do aplicador do

direito perante o mundo que o cerca. A aplicação do princípio da precaução, assim, afastada a

aplicação a todo e qualquer caso, visa resolver os problemas em que, dada a fundada incerteza

quanto às consequências de uma conduta, o direito opte por se antecipar a estes cursos

causais. Sábia a lição de JAPIASSÚ: “O objetivo não é o de criar uma nova disciplina, nem

de elaborar um discurso universal, mas o de tentar resolver um problema bem concreto em

suas múltiplas dimensões.” 519

Deveras, há riscos fundados e outros infundados, devendo o legislador tomar o

severo cuidado em selecionar apenas aqueles, quando da tutela antecipada do curso causal. De

fato, as pessoas estão expostas de modo coletivo, não, apenas, individualmente, como nos

recentes episódios dos vazamentos de energia nuclear na usina de Fukushima e do produzido

pela Chevron na Bacia de Campos, ambos em 2011.520 Os grupos humanos sob ameaça são,

em regra, indetermináveis, assim como os são as consequências da lesão a esta categoria de

bens transindividualmente protegidos, como a ordem econômica e financeira, e a saúde

coletiva.

A existência de riscos dispostos na sociedade, conforme observação de

PREUSSLER, induz a verificações causais errôneas, devendo haver um sistema que, ao

mesmo tempo, saiba lidar com a complexidade causal e com a eventual pluralidade de

responsabilização penal, muitas vezes indevidamente imputada.521

A complexidade das relações interpessoais intensificou os cursos causais a partir da

repartição de tarefas nos mais diversos nichos sociais. É o que se extrai da lição de

SCHÜNEMANN:

Há de se considerar que, desde a perspectiva do direito penal do risco, a

peculiaridade da sociedade industrial atual encontra-se unicamente no extraordinário incremento das interconexões causais. Pois, devido à densa

519 JAPIASSÚ, Hilton. O sonho transdisciplinar e as razões da filosofia. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 43. 520 Os exemplos foram fornecidos em Capítulo escrito a respeito da imprudência, a partir de um caso concreto, um julgado do Tribunal de Justiça do Paraná. GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p.111. 521 PREUSSLER, Gustavo de Souza. Aplicação da teoria da Imputação Objetiva no injusto negligente. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 25.

Page 142: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

146

rede de industrialização existente, resulta impossível explicar, em muitos âmbitos, a produção de danos na saúde dos habitantes de uma determinada área através de somente uma relação de causalidade.

522

Isto quer dizer que, da análise penal, a partir de determinada conduta delitiva, e

considerando que nosso Código Penal tenha como regra, no caput do artigo 13, a teoria da

conditio sine qua non, é certo que o rol de “causadores”, no contexto atual, intensificou-se.

Utilizando o critério de eliminação hipotética, por meio do qual se elimina mentalmente o

comportamento do autor para avaliar se, ainda assim, o resultado ocorreria do mesmo modo

como ocorreu, nota-se uma tomada de complexidade no campo da responsabilidade, corrigida

que é pela utilização de critérios axiológico-normativos de imputação objetiva e, ademais,

pela eleição, por parte do legislador penal, na utilização, cada vez maior, dos crimes de mera

atividade. A existência de relações causais múltiplas acaba por confundir o aplicador do

direito, cuja tarefa de esclarecimento das relações causais das condutas delitivas traduz missão

difícil, senão impossível, se se lançar mão, somente, dos métodos científico-naturais atuais de

causalidade.523

Cite-se o artigo 60 da Lei 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais). Através da

proibição normativa de que trata o artigo – “construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer

funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimentos, obras ou serviços

potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, ou

contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes” – tem-se que, a mera conduta de

fazer funcionar estabelecimento potencialmente poluidor já é merecedora de reprimenda

penal. Foi a saída encontrada pelo legislador penal de prevenir e evitar danos que, tomados do

ponto de vista ambiental, podem traduzir-se em verdadeiras catástrofes mundiais.

Por conta disso é que se diz, hoje, que “o critério do risco é algo que deve ser

inserido na teoria do delito, pois está presente no cotidiano das pessoas. Como diferentes são

os níveis de risco, também a tolerância em relação a cada um deles não é igual”. 524 Assim,

por conta da fragmentariedade do direito penal, eleitos os interesses mais fundamentais ao

convívio social, estabelecer-se-ão, conforme a modernas teorias funcionalistas, os parâmetros

de riscos tolerados pela sociedade. Aqueles riscos que ela estiver disposta a admitir, serão

limitados, ou mesmo, proibidos – proibição que, mormente o caráter coletivo dos interesses

522 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico- penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado, 1996, p. 30. 523 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico- penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado, 1996, p. 30. 524 BUSATO, Paulo César e PEREIRA, Gabriela Xavier. O risco e a imputação objetiva. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organizador Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 63.

Page 143: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

147

atinentes à ordem econômica, tem sido realizada, crescentemente, na forma dos delitos

culposos, de mera atividade e de perigo.

Como ponderado por MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, no âmbito dos delitos

socioeconômicos, “encontram-se exemplos de cada uma das diversas modalidades de tipos

que surgem com base no critério atinente à intensidade do ataque ao bem jurídico ou, o

critério referente à maneira com que se afeta referido bem jurídico.” 525

Assim, há exemplos de delitos de lesão (ou de dano), que se caracterizam por

exigirem a efetiva lesão do objeto tutelado, como é o caso do delito previsto no artigo 19 da

Lei 7.492/1986 (Lei que define crimes contra o Sistema Financeiro Nacional) – “obter,

mediante fraude, financiamento em instituição financeira”. Trata-se de um crime que só

restará configurado com a obtenção fraudulenta junto à instituição financeira.

De outra banda, frente aos riscos, constata-se uma forte tendência na utilização dos

crimes de perigo, que supõem uma antecipação do direito penal a um momento anterior à

lesão, consumando-se o delito com a mera posta em perigo do bem jurídico. É o caso do

artigo 7º, inciso IX, c/c parágrafo único, da Lei 8.137/1990 (Lei que define crimes contra a

ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo). O tipo penal múltiplo por

acumulação, ora mencionado, é admitido na forma culposa que, não raramente, vem

enganchada com a utilização da técnica de perigo abstrato, como é o caso da incriminação

contida no artigo.

Os delitos de perigo abstrato 526 , ao contrário dos de perigo concreto, possuem

como característica o fato de o legislador firmar a presunção de perigo ex ante factum, “de

modo absoluto, a partir das regras da experiência, dados estatísticos sólidos e certeza

científica de conexão entre comportamentos semelhantes ao incriminado e perigos de

resultado cuja evitação se intenta.” 527

Resulta manifesto, conforme lição dada por MENDOZA BUERGO, que, ante as

novas necessidades de proteção e segurança, além da utilização da tipicidade culposa de

delito, tem-se a vertiginosa utilização, na maioria das reformas penais, da técnica dos “tipos

de perigo abstrato, assim como os delitos de atividade ou de consumação antecipada e a

525 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Parte general. 3ª edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 192. 526 Ressalte-se a observação de SCHÜNEMANN, segundo a qual os delitos de perigo abstrato sempre existiram, “desde a época da Ilustração, como no Direito Territorial Geral Prussiano, de modo que só do ponto de vista quantitativo, eles podem ser qualificados como “forma delitiva da era moderna”’. SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado, 1996, p. 31. 527 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 121.

Page 144: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

148

punição específica de atos preparatórios, com a finalidade confessa de ampliar a capacidade

de resposta e a eficácia no controle de condutas, (...) vez que se facilita a aplicação do

tipo”.528

Está dado o norte da proteção penal no contexto atual de tutela da ordem

econômica, um contexto de expansão, porém contextualizada com as novas demandas, e que,

necessariamente, deve se dar em consonância com os princípios constitucionais basilares de

um direito penal democrático.

3.5. Dificuldades de imputação pela perseguição da quebra de dever de cuidado no

Direito Penal Econômico

O tipo de injusto dos delitos culposos é formado, ao contrário dos dolosos, por um

aspecto objetivo, ou seja, por uma ação violadora do risco permitido, ou, conforme doutrina

mais tradicional, pela infração do dever de cuidado. Atrelado a esta, leciona ROXIN, se

encontram a “previsibilidade”, “cognoscibilidade” ou “advertabilidade” e “evitabilidade” do

resultado, como requisitos ou pressupostos do crime culposo. 529 Na maioria das vezes,

prossegue, “se recorre à contrariedade ao cuidado devido para o injusto de ação, e à causação

de um resultado típico imputável para o injusto de resultado” 530, resvalando, esta, na teoria da

imputação objetiva. Entende-se, assim, que a não previsão do evento objetivamente previsível

traduz, justamente, a negação da incidência de qualquer elemento subjetivo, o qual deveria

existir, mas não existe – podia prever, mas não previu -, com exceção da culpa consciente.

Trata-se, a tipicidade culposa, de modalidade delitiva excepcional, pois que no Código Penal,

a maioria arrasadora de crimes admite, somente, forma dolosa.

Ocorre que, da análise da legislação penal extravagante pós mil e novecentos,

repercute uma expansão da modalidade culposa de crime, na tentativa de solucionar, ou

menos apaziguar, os problemas e anseios sociais decorrentes do ininterrupto desenvolvimento

528 MENDOZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001, p. 78. 529 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 999. 530 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 999.

Page 145: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

149

técnico-científico: são novas máquinas, novas formas de energia, delicadas cirurgias,

transplantes, etc., exigindo deveres especiais em relação a atividades perigosas. 531

A ação violadora dos limites do risco permitido traduz-se em conduta perigosa,

repudiada pelo sistema jurídico. Ainda que o fato culposo constitua modalidade especial e

excepcional de delito, é certo que, da análise da legislação penal extravagante, nota-se maior

recorrência a esta modalidade, reconhecendo-se, para além de uma expansão de delitos

culposos comissivos, delitos culposos omissivos, e também, de mera atividade, e de perigo.532

O tipo culposo, não obstante, “não individualiza a conduta pela finalidade e sim

porque, na forma em que se obtém essa finalidade, viola-se um dever de cuidado, ou seja,

como dita a própria lei penal, a pessoa, por sua conduta, dá causa ao resultado por

imprudência, negligência ou imperícia.” 533

É certo, porém, que, após muita discussão acadêmica, chegou-se a um mais ou

menos consenso de que a locução “quebra de dever de cuidado” – herança welzeliana - faz

remeter, desarrazoadamente, no campo dos crimes culposos, à ideia de omissão, no que todo

crime culposo seria omissivo, pois não observar um dever é omiti-lo. Mas, a lógica não se

aplica. Daí que a inobservância do dever de cuidado evoca uma falsa posição de garante, falha

que merece ser corrigida e o é, pela moderna doutrina funcionalista que, em seu lugar, utiliza

a referência, em crimes culposos, a “criação de riscos proibidos” para se imputar um resultado

concreto ao agente, de dano ou perigo de dano ao bem jurídico. 534

Ora. Tome-se o caso da intoxicação de lavradores numa fazenda no município de

Estrela do Norte, comarca de Presidente Prudente, em dezembro de 1977. 535 Três lavradores

que aplicaram inseticidas “Ekadrin” e “Ekatrox”, na lavoura de algodão, sem fazerem uso de

equipamento de proteção, sofreram forte intoxicação, ocasião em que um deles, no mesmo

dia, chegou a falecer por parada cardiorrespiratória consequente do contato com a substância

tóxica. A sétima Câmara do extinto Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo julgou o caso,

responsabilizando fazendeiro e agrônomo por homicídio culposo omissivo.

531 JUNIOR, Heitor Costa. Teoria dos delitos culposos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1988, p. 21. 532 TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. Prefácio de Claus Roxin. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 281. 533 ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Volume I. Parte Geral. 7ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 437. 534 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 115. 535 O caso concreto é fornecido por HUMBERTO SOUZA SANTOS, que analisa a co-autoria em crime culposo. SANTOS, Humberto Souza. Co-autoria em crime culposo e imputação objetiva. Barueri, SP: Manole, 2004, pp. 158-159.

Page 146: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

150

É certo que não é todo e qualquer cidadão o possuidor do dever de alertar e fornecer

condições seguras de trabalho a lavradores que se exponham a trabalho perigoso. O cuidado

se impõe àquele cidadão que, por seu cargo de chefia, no âmbito organizacional, possa expor

seus funcionários a condições perigosas de trabalho.

Da mesma forma, tomado o exemplo do artigo 7º, inciso IX, c/c parágrafo único, da

Lei 8.137/1990, tem-se que no âmbito dos delitos culposos consumeristas, não é todo e

qualquer cidadão o possuidor do dever de não expor à venda produtos com data de validade

vencida. 536 Há, conforme lição de JAKOBS, papéis sociais que, atrelados à missão de

proteção de bens jurídicos – e, aqui, faz-se uma releitura da teoria jakobsiana a partir da

missão desenvolvida por ROXIN - devem ser respeitados e conformados, dia-a-dia, no

convívio interpessoal:

No que se refere a uma suposta existência de um dever de cuidado ou de

uma infração de cuidado que caracterize a imprudência, nesta não há – como no dolo – mais dever que o que surge da norma, e só este dever é infringido: na comissão culposa, o autor deve omitir o fato, e na omissão culposa deve realizá-lo (cuidadosamente!). Sobretudo no delito comissivo, o que se costuma dizer de que o autor deixou de observar o cuidado prescrito é falso desde o ponto de vista da lógica das normas: no delito comissivo, não é que o autor deve atuar cuidadosamente, mas sim deve omitir o comportamento descuidado. Exemplo: no âmbito da comissão não se prescreve usar palitos de fósforo com cuidado, e sim se proíbe o uso descuidado; não existe um dever de usar.

537

A imputação da culpa ao agente, na esteira da tradicional literatura jurídico-penal

brasileira, é realizada a partir da checagem de elementos constituídos pela doutrina: a)

existência de conduta; b) nos crimes culposos materiais, incidência de resultado naturalístico e

liame entre a conduta e o resultado (nexo causal) – ambos os elementos são dispensáveis nos

crimes culposos formais e de mera conduta; c) quebra do dever objetivo de cuidado; d)

relação de determinabilidade entre o descuido e o resultado – elemento reportado por

ZAFFARONI e PIERANGELI 538 ou “conexão interna entre desvalor da ação e desvalor do

resultado” 539

, que não se confunde com nexo causal 540 e, não raro, é olvidado pela literatura

536 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série

Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 115. 537 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Madrid: Civitas, 1997, p. 1000. 538 ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 7ª ed. São Paulo: RT, 2007, p. 440. 539 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral, vol. 1. 11ª. edição. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 284; REGIS PRADO, Luiz. Curso de Direito Penal Brasileiro. 10ª. edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 329.

Page 147: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

151

pátria; e) previsibilidade objetiva, associada à ausência de previsão, por parte do agente (culpa

inconsciente, regra nas hipóteses de crimes culposos; na culpa consciente, o agente faz

representação do evento). 541

O critério da infração a um dever de cuidado, entretanto, traduz conceito objetivo e

normativo, na medida em que o critério é tomado no âmbito da relação concreta da vida em

que ocorrera o dano (tráfego, medicina, construção, etc.), e o juízo da conduta se realiza

observada a realização desta mesma conduta por um sujeito com as mesmas capacidades do

autor. 542

A observação a respeito do cuidado objetivamente devido deve se dar nos moldes

do risco permitido, segundo um direito penal funcionalizado a partir do critério de proteção de

bens jurídicos fundamentais. Assim o é porque não é dada à ciência jurídico-penal atual

construir-se unicamente a partir de critérios tomados do universo ontológico, dos quais se

extraiam os comportamentos sociais “adequados” e valorados conforme o homem normal. Por

conta, sobretudo, da introdução de novos riscos no seio da sociedade e da própria

complexidade dela mesma, tem-se que a superação do finalismo abriu um leque de

possibilidades mais justas, contributivas à imputação da responsabilidade penal.

Em verdade, o nome com que se “batiza” a criação do risco é de somenos. Se, da

violação a bem jurídico protegido, resultar dano decorrente de conduta criadora de risco não

permitido, a regra é a da imputação.543 O modo comum de imputação de crimes culposos no

Brasil ainda é fincado na quebra de dever de cuidado, o que acaba dificultando a imputação

no contexto do direito penal econômico.

540 Através do nexo causal, verifica-se a ligação entre a conduta e o resultado, e não entre o descuido constatado na conduta e o resultado, pois, ainda que se realize conduta descuidada, a imputação culposa só ocorre se o resultado não ocorresse sem o descuido. Não há imputação quando o resultado lesivo deriva de razão diversa do descuido, ainda que este esteja presente. Calha o exemplo de ZAFFARONI: acaso um suicida jogue-se de uma árvore, na qual esperava pendurado, à frente de um veículo em excesso de velocidade, não haverá imputação da morte ao motorista, por culpa, desde que fique evidente que haveria o resultado lesivo mesmo que a velocidade estivesse dentro do patamar tolerado para a via ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 7ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 441. 541 Somente a título de exemplo, CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Vol. 1. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 192, enumera os seguintes elementos: a) conduta; b) resultado involuntário; c) nexo causal; d) tipicidade; e) previsibilidade objetiva; f) ausênciade previsão; g) quebra do dever objetivo de cuidado. MASSON, Cleber. Direito Penal. Parte Geral. 3ª. ed. São Paulo: Método, 2010, p. 261, arrola: a) conduta voluntária; b) violação do dever objetivo de cuidado; c) resultado naturalístico involuntário; d) nexo causal; e) tipicidade; f) previsibilidade objetiva; g) ausência de previsão. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Vol. 1. 11ª. ed. Niterói: Impetus, 2009, p 201 enumera os seguintes elementos do tipo culposo: a) conduta humana voluntária, comissiva ou omissiva; b) inobservância de um dever objetivo de cuidado; c) o resultado lesivo não querido, tampouco assumido, pelo agente; d) nexo de causalidade entre a conduta do agente que deixa de observar seu dever de cuidado e o resultado lesivo dela advindo; e) previsibilidade; f) tipicidade. 542 ROMEO CASABONA, Carlos María. Conducta peligrosa e imprudencia en la sociedad de riesgo. Granada: Comares, 2005, p. 03. 543 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CBRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, pp. 116-117.

Page 148: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

152

Com a intensificação dos cursos causais, característica peculiar de um direito penal

que lida com riscos, dificulta-se, rigorosamente, as possibilidades de identificação dos

produtores do dano – como, por exemplo, na emissão de substâncias tóxicas por uma fábrica

de papel – o que, por sua vez, acaba esbarrando na constatação do nexo de causalidade entre o

dano e possíveis quebras de deveres de cuidado decorrentes de condutas arriscadas.

Como demonstra RAFFAELE CASTALDO, “o descobrimento do nexo causal

entre ação e resultado é uma conquista relativamente recente na história do direito penal” 544

e, se até 30 anos atrás, a forma de delito culposo limitava-se, principalmente, ao homicídio e à

lesão, hoje ela se vislumbra com muito mais vigor na criminalidade econômica, dificultando,

pelo alcance transindividual destes delitos, a imputação com base na perseguição da quebra de

dever de cuidado.

Assim é que, verifica-se imprescindível quando da imputação de responsabilidade a

alguém por sua conduta, a análise de critérios de imputação objetiva, os quais já foram

observados, outorgando ao tipo um conteúdo claramente valorativo. Disso resultam duas

consequências: (i) nem a causalidade nem a finalidade do sujeito são capazes de informar, de

maneira clara e justa, se uma pessoa realizou ou não o tipo penal (sabe-se que é no finalismo

que o elemento da infração à norma de cuidado torna-se determinante para a caracterização do

crime culposo) e (ii) é necessária uma valoração do ponto de vista normativo.

A tipicidade de uma conduta exige a configuração do fim e do sentido dos tipos

existentes na parte especial, não bastando, assim, a mera constatação da infringência a um

dever de cuidado. Isso quer dizer que, nem todo processo causal que mate ou lesione (o meio

ambiente, inclusive) é relevante ao direito penal. O tipo objetivo adquire uma especial

relevância dentro das teorias do tipo, transferindo a importância que tinha a finalidade do

sujeito para o finalismo. 545 A relevância, que no finalismo - teoria que alçou a infração à

norma de cuidado a elemento determinante para a caracterização do crime culposo – era

analisada ex ante, passa a ser compensada mediante uma perspectiva objetiva ex post

complementar. 546

A respeito da determinação da infração da norma de cuidado, que é realizada ex

ante, faz-se importante a lição de CORCOY BIDASOLO:

544 RAFFAELE CASTALDO, Andrea. La imputación objetiva en el delito culposo de resultado. Buenos Aires: Julio César Faira, 2008, p. 19. 545 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Teoria da imputação objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Tradução de Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 02. 546 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Teoria da imputação objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Tradução de Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, pp. 02-03.

Page 149: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

153

A norma de cuidado penal persegue evitar a produção daquelas lesões de bem jurídico que, ex ante, o autor teria possibilidade de prever e evitar. Em consequência, a cada caso particular, o dever objetivo de cuidado compreende todos aqueles deveres genéricos de cuidado ou de comum experiência que, ex ante, aparecem como adequados para evitar a lesão ao bem jurídico. (...) Uma vez estabelecido o dever objetivo de cuidado, de acordo com os riscos concorrentes no fato e à capacidade do autor, há que colocá-lo em relação com a conduta realizada. (t.n.)

547

Ocorre que, o processo para a determinação do dever objetivo de cuidado é

dificultado ante as novas complexidades socioculturais e, para além disso, trata-se de um

processo demasiado genérico e suscetível de injustiças, quando se equipara a conduta

realizada com a de outrem.

ROXIN - conforme alertara FEIJÓO SÁNCHEZ - em artigo escrito sobre a

infração do dever e resultado nos crimes culposos, “pretendeu estabelecer limites ou filtros

normativos ex post para imputar resultados a uma conduta descuidada.” 548 O Catedrático de

Munique pretendeu “combater o princípio escolástico versanti in re illicita imputantu omnia,

quae sequuntur ex delicto. Entretanto, pretende combatê-lo não como um problema de

causalidade da infração do dever, mas de acordo com uma interpretação teleológica dos tipos

penais.” 549

Assiste razão à FEIJÓO SÁNCHEZ, quando observa a relação entre direito penal

econômico e imputação objetiva:

Não se pode deixar de ter em conta que, neste âmbito, o direito penal atua

sobre uma ordem jurídica que configura a realidade social, a que são referidas as normas penais. (...) A pretensão de explicar todo o Direito Penal Econômico a partir da exclusiva existência de deveres de não lesionar o patrimônio alheio é, em minha opinião, condenada ao fracasso. Ao menos, tenho que reconhecer que, para mim, não resulta possível. (...) Na hora de determinar a tipicidade ou a atipicidade de determinadas condutas, não se pode prescindir dos papéis jurídicos sobre os quais se projeta a valoração jurídico-penal. (...) Pois que, nem todo mundo possui um tipo de deveres, ou outro. Há ocasiões em que, de um mesmo rol social,

547 CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. El delito imprudente. Critérios de imputación del resultado. Buenos Aires: Julio César Faira, 2005, p. 124. 548 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Teoria da imputação objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Tradução de Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 06. 549 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Teoria da imputação objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Tradução de Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 06.

Page 150: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

154

derivam deveres negativos de não lesionar, mas, também, deveres positivos de atuar em benefício dos interesses de um terceiro.

550

A evolução na teoria do tipo, atribuída às modernas teorias funcionalistas de delito,

pode ser sentida, ainda que timidamente, na jurisprudência, conforme se denota da análise do

julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, lançado na Apelação Criminal 558.987-9,

cuja ementa se transcreverá a seguir:

APELAÇÃO CRIME - HOMICÍDIO CULPOSO - ACIDENTE DE

TRÂNSITO - FUNCIONÁRIO PÚBLICO - TRATORISTA QUE REGAVA O CANTEIRO CENTRAL DA CIDADE QUANDO A VÍTIMA QUE PILOTAVA UMA MOTOCICLETA BATEU NA TRASEIRA DO TRATOR - ALEGAÇÃO DEFENSIVA DE AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE, CULPA EXCLUSIVA DE VÍTIMA E RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PELA ADEQUAÇÃO DO VEÍCULO - IMPRUDÊNCIA PELA FALTA DE SINALIZAÇÃO DO SEMI-REBOQUE QUE NÃO PODE SER ATRIBUÍDA AO MOTORISTA, MAS SIM À ADMINISTRAÇÃO - ATIVIDADE ADMINISTRATIVA DE REGAR OS CANTEIROS DE CONHECIMENTO DA COMUNIDADE - PRÁTICA CORRIQUEIRA - FATO QUE ACONTECEU NO INÍCIO DA NOITE, MAS SOB AS LUZES DE POSTES DA CIDADE - PROVAS QUE TENDEM PELA AUSÊNCIA DE AUMENTO DE RISCO PERMITIDO - TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA - IN DUBIO PRO REO - ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

551

Não há como negar que o ganho de complexidade nas relações sociais, assim como

a proliferação, no âmbito do direito penal econômico, de crimes cuja delimitação de sujeitos

ativos (e, inclusive, individualização das vítimas) torna a imputação por crimes culposos

calcada – unicamente - no critério da quebra de cuidado devido, dificultosa. O assunto

chegara ao ambiente dos Tribunais Superiores, conforme se verifica do publicado em 07 de

Julho de 2013 na página virtual do Superior Tribunal de Justiça:

Se a internet chegou para mudar as relações humanas e trouxe com ela

uma diversidade de novas questões jurídicas, essa mudança alcança todos os campos da vida contemporânea. Pela facilidade de acesso e distribuição que possibilita, a internet tornou-se um campo propício para

550 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Teoria da imputação objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Tradução de Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, pp. 214-216. 551 Documento assinado digitalmente, conforme MP 2.200/01, Lei 11.419/06 e Resolução 09/08, do TJPR/OE. Disponível em: http://www.tjpr.jus.br.

Page 151: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

155

a prática de muitos crimes. Com a ferramenta, a divulgação de fofoca, vinganças pessoais e golpes bancários se misturaram a casos de pedofilia e tráfico. (...) Sistema Financeiro - Em 2001, o STJ julgou habeas corpus de um conhecido empresário, que respondia por crime contra o Sistema Financeiro Nacional por divulgar informações falsas ou prejudicialmente incompletas por correio eletrônico sobre o Banco Bradesco. Segundo denúncia do Ministério Público Federal (MPF), o empresário, que chegou a ser preso, utilizando-se do nome Marcos C. como remetente, divulgou a várias pessoas e instituições financeiras informações falsas e alarmantes sobre a instituição financeira. Sua intenção seria causar um efeito cascata e multiplicador, visando afetar a credibilidade do Bradesco perante seus correntistas e acionistas e abalar o sistema financeiro nacional como um todo. O habeas corpus foi negado (HC 182.99). Outro crime comum contra o sistema financeiro são as fraudes relacionadas a instituições bancárias e afins. Nos últimos cinco anos, dezenas de ações envolvendo integrantes de quadrilhas especializadas no desvio de dinheiro pela internet foram julgadas. Várias operações da Polícia Federal passaram pelo Tribunal, principalmente em pedidos de habeas corpus. A Galáticos, que prendeu 52 pessoas, foi uma delas (HC 74.335).

552

Assim é que se tem, na esteira da moderna teoria da imputação objetiva, a avaliação

se determinada conduta criou ou incrementou risco proibido, devendo-se avaliar, em suma, (i)

se o resultado danoso decorreu do exercício do risco, (ii) se a ação do agente não tenha visado

diminuir o risco; (iii) se o risco realizou-se no resultado concreto e (iv) se o resultado não se

encontra fora do alcance do tipo ou da esfera de proteção da norma.

A constatação do risco – e dos critérios decorrentes da teoria da imputação objetiva

– delimita-se, conforme já observado, a partir das diretrizes que regem a área da vida em que

se deu o evento (trânsito, relações consumeristas, etc.). Na falta de normativa, valerão as

pautas sociais de comportamento. Em ambas, valerá, comparativamente, o ambiente de

expectativas respectivo a um agente com as mesmas capacidades do envolvido no episódio

(teoria individualizadora), não sendo adequado invocar-se o parâmetro de comportamento

aquém do limite de proibição de risco a partir de um fictício “homem médio”, para verificar

as capacidades individuais do agente envolvido apenas na culpabilidade (teoria do duplo

patamar). A solução encontrada por ROXIN, frise-se, foi a intermediária, segundo a qual,

adota-se a teoria individualizadora para pessoas com capacidades superiores à média e a do

552 Disponível no endereço eletrônico: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=110340 Acessado em 07 de Julho de 2013.

Page 152: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

156

duplo patamar para aqueles deficitários em relação à média. 553

Deve-se, conforme sua lição,

“generalizar para baixo e individualizar para cima”. 554

Assim, conclui-se que, quanto ao parâmetro da imprudência, deve-se levar em

conta as condições especiais e individualizadas de cada agente, pois, conforme advertido pelo

mestre alemão, “todas as regras expostas até agora para a determinação da imprudência,

partiram de parâmetros objetivos e tomaram por base os casos normais de capacidades

individuais.” 555 ROXIN, assim, na contramão do propugnado por SCHÜNEMANN, observa

que elevar, sem mais, as destrezas de alguns poucos cidadãos a um parâmetro objetivo para

todos é ampliar demasiadamente as exigências ao cidadão normal representativo 556 , e afirma

que os argumentos contrários a uma individualização são, ademais, débeis.

Afinal, se se amplia a utilização de crimes culposos, nada mais justo que a

individualização, caso a caso, dos parâmetros de imprudência. A compreensão das fronteiras,

das desigualdades, das diferenças, são necessárias à elaboração de decisões mais

contemporâneas à justiça. É compreensão, aliás, que faz parte da complexidade de que se

trata, neste trabalho. Complexus557

, ressalte-se, segundo MORIN, significa “tecido junto”.

Neste sentido, cada pessoa é uma realidade complexa heterogênea, diversa de qualquer outra

espécie, porém, semelhante. O “tecido junto”, o complexo, não se separa, porém, cada qual

possui sua realidade própria. O ordenamento jurídico, da mesma forma. O todo é mais do que

a soma entre as partes, é a compreensão de cada parte, enquanto existente perante um todo.

3.6. O incremento de crimes culposos de perigo como “cerco” às atividades de risco

553 ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, pp. 1.013 – 1.018. 554 ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 1015. 555 ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 1013. 556 ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 1018. 557 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 13.

Page 153: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

157

Conforme já observado, a ciência do direito penal passa por, senão uma

reformulação, uma autocompreensão necessária frente às exigências de seu tempo. O tema foi

abordado por HASSEMER, que observara, acertadamente, que, através das experiências

cotidianas e políticas, se verifica que “proibir e sancionar é, também, um ato político, um

meio público para a compreensão normativa sobre nossos interesses fundamentais, assim como a fronteira da liberdade”

558 , o que ele atribui à fascinação privada e política que o

direito penal desperta.

De fato, ainda que a ciência do direito penal tenha - como ciência que é - a

liberdade de não abastecer as expectativas que a ela se dirigem 559

, é certo que não lhe cabe

abster-se da situação que se lhe apresenta, de dominar os riscos e prevenir grandes catástrofes,

na medida em que tais riscos demonstram veracidade e potencialidade destrutiva.

Intervenções rápidas e eficazes lhe são exigidas e, conforme observado por JAKOBS, o

direito penal leva a cabo a tarefa de reunir, em normas jurídico-penais, as necessidades da

sociedade, é dizer, deve-se sintetizar direito penal e seu tempo num mesmo conceito. 560

Sem dúvida, dentre os grandes desafios jurídico-penais, tem-se a progressiva

ampliação da proteção penal, realizada através da tipificação de crimes culposos, feita, por

sua vez, em grande maioria, através do adiantamento do direito material com a utilização de

crimes de perigo abstrato. E, concomitantemente a este novo panorama, elaboram-se

objetivos, os quais devem considerar o subsistema do direito penal, frente às expectativas do

subsistema social, em que se tem na neutralização social dos mega riscos produzidos pelo

desenvolvimento econômico, o principal deles. 561

Os esforços do direito penal buscam canalizar o problema social que emerge das

novas ameaças e oportunidades inseridas num contexto de globalização dos mercados e

quebra das fronteiras sociais, formando uma sociedade que, para além de mundializada e de

558 HASSEMER, Winfried. La autocomprensión de la Ciencia del Derecho Penal frente a las exigencias de su tiempo. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão española: Francisco Muñoz Conde. Coordenação da versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer e Björn Burkhardt. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, pp. 24-25. 559 HASSEMER, Winfried. La autocomprensión de la Ciencia del Derecho Penal frente a las exigencias de su tiempo. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão española: Francisco Muñoz Conde. Coordenação da versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer e Björn Burkhardt. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 32. 560 JAKOBS, Günther. La autocomprensión de la Ciencia del Derecho Penal ante los desafíos del presente. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão española: Francisco Muñoz Conde. Coordenação da versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer e Björn Burkhardt. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 53. 561 PALIERO, Carlo Enrico. La autocomprensión de la Ciencia del Derecho Penal frente a los desafíos de su tiempo. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão española: Francisco Muñoz Conde. Coordenação da versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer e Björn Burkhardt. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 94.

Page 154: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

158

riscos, é, segundo definição do sociólogo espanhol MANUEL CASTELLS, em rede: “Uma

nova economia surgiu em escala global no último quartel do século XX. Chamo-a de

informacional, global e em rede (...) em rede porque, nas novas condições históricas, a

produtividade é gerada, e a concorrência é feita em uma rede global de interação entre redes

empresariais.” 562

Neste cenário, surge em contraponto, a necessidade de aumentar o bem estar, de um

lado, e a segurança dos cidadãos, de outro, cidadãos que, atuantes em seus meios, não podem

se abster de suas atividades cotidianas arriscadas. Malgrado os casos em que riscos palpáveis

e controláveis são diagnosticados equivocadamente, diagnóstico decorrente do uso egoísta dos

meios de comunicação de massa, o que deve ser rechaçado, tem-se que o “novo” direito penal

do meio ambiente e econômico traduz a conformação de que a legislação penal corresponde,

exatamente, às necessidades modernas, sem deixar, contudo de ser ultima ratio.

A favor de um direito penal compatibilizado com as exigências de seu tempo,

aduziu-se, ao legislador, ante a aleatoriedade dos cursos causais, incompreensíveis para o

cidadão, a função de prevenir riscos, para garantir uma melhor proteção dos bens jurídicos. 563

As transformações do direito penal frente aos novos delitos surgem, então sob duas frentes: a

da expansão dos crimes culposos e sua expansão na modalidade dos delitos de perigo.

Isto porque, no marco do direito penal do risco, emerge o princípio de que devem

se permitir ações arriscadas, na medida em que o interesse público em sua execução supere o

risco que elas geram, ou, em outras palavras, se o desenvolvimento e bem estar social

adquiridos não permitirem a renúncia a estas atividades arriscadas – ou, ao menos, a maior

parte delas – isto implica à sujeição a determinadas regras de conduta inseridas que devem

estar em um patamar de riscos permitidos.

Está plantado o contexto de expansão dos crimes culposos, cujo reforço do

emprego desta categoria dogmática impõe um cuidadoso trabalho para estabelecer os

respectivos pilares de imputação, de um lado, e de outro, impõe ao cidadão o dever de

diligência – para utilizar expressão tradicional – ou melhor, dizendo, impõe-se-lhe a

realização de suas atividades, obedecendo ao patamar de riscos toleráveis.

Reside, talvez, na vinculação ao sistema de incriminação das condutas culposas

como numerus clausus o mais significativo ponto de vista político-criminal, utilizado para

562 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Volume I. Prefácio de Fernando Henrique Cardoso. Tradução de Roneide Venancio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 119. 563 HIRSCH, Hans-Joachim. Delitos de peligro y Derecho Penal moderno. In: La adaptación del Derecho Penal al desarrollo social y tecnológico. Editores Carlos María Romeo Casabona e Fernando Guanarteme Sánchez Lázaro. Coordenação Emilio José Armaza Armaza. Granada: Comares, 2010, p. 107.

Page 155: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

159

afastar as críticas a respeito da expansão dos crimes culposos. Com efeito, só se incrimina a

culpa quando expressamente prevista, não cabendo dúvidas de que o sistema numerus clausus

goza de vantagens dogmáticas e político-criminais em relação ao sistema de incriminação

antagônico. As vantagens são observadas por ROMEO CASABONA, para quem, em

primeiro lugar, tal princípio supõe uma vinculação mais fiel ao princípio de legalidade, que

tem como pressuposto os princípios de taxatividade e de segurança jurídica, e, em segundo

lugar, do ponto de vista político-criminal, esta técnica permite ao legislador selecionar

condutas imprudentes que devam ser puníveis, atendendo ao princípio de intervenção mínima

do direito penal, tanto em razão da importância do bem jurídico protegido, como da gravidade

da conduta. 564

Ainda que o incremento dos crimes culposos gere redução da taxatividade da

norma, é certo que deve ser realizado um minucioso trabalho de valoração, em que serão

analisados, conforme a literatura mais moderna, critérios de imputação objetiva, por parte do

juiz, quando de sentenças condenatórias, e do órgão do Ministério Público, na formulação da

denúncia.

A expansão da modalidade culposa de delito, enganchada na técnica de tipificação

dos crimes de perigo, deriva, então, do contexto sociológico da sociedade de riscos, sendo

clara consequência do fato de que, se outrora os riscos, ainda que existentes, eram de baixa

percepção social, o cenário atual é de protagonismo destes riscos (e de tantos outros) nas

tomadas de decisões políticas 565 – inclusive, político-criminais.

Vem daí o reconhecimento de bens transindividualmente protegidos, como o meio

ambiente, a ordem econômica e financeira, a saúde coletiva. Não se trata de utilizar o direito

penal como prima ratio, pois, ainda que os bens jurídicos coletivos sejam mais vagos e

imprecisos, devem ser delimitados com clareza, para determinar se houve lesão ou somente

posta em perigo pela conduta. Não há que se negar, também, que constituem o meio ambiente,

a saúde pública, a ordem econômica, o sistema financeiro, as relações consumeristas,

interesses de primeira grandeza ao pleno convívio social.

MENDOZA BUERGO bem observa a respeito da evolução do bem jurídico no

direito penal ambiental – inserido que está no direito penal econômico:

O bem jurídico protegido pelo direito penal ambiental proporciona um

caso paradigmático de evolução. Efetivamente, quando começou a

564 ROMEO CASABONA, Carlos María. Conducta peligrosa e imprudencia en la sociedad de riesgo. Granada: Comares, 2005, pp. 42-43. 565 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo mundial. Barcelona: Paidós, 2008, pp. 20-23.

Page 156: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

160

projetar-se a proteção penal do meio ambiente na Alemanha, o Projeto Alternativo de CP ali elaborado, partia do pressuposto de que se protegia não diretamente o meio ambiente, mas a vida e saúde humanas frente aos perigos provenientes do deterioramento ecológico. (...) Na medida em que estes se consideram como partes integrantes do espaço vital do homem e, portanto, em última instância são referidos como bases da vida humana, é que esta tutela penal traduziu-se sob a perspectiva “ecológico- antropocêntrica”, que pode qualificar-se como posição dominante na literatura alemã.

566

No Brasil, o crescente desenvolvimento industrial e econômico, agregado aos novos

âmbitos de atividade social, incrementaram significativamente os problemas ambientais,

favorecendo o progressivo deterioramento ecológico 567 , o que culminou, como primeira

grande conferência sobre o assunto, na Conferência sobre o meio ambiente, em 1992, no Rio

de Janeiro. Àquela investigação, sobressaltaram justificativas à proteção do bem jurídico

supraindividual em questão, o que acabou por motivar, anos depois, em 1998, a aprovação da

Lei 9.605/1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e

atividades lesivas ao meio ambiente.

A título exemplificativo, tem-se que, dos dezesseis crimes contra a flora, previstos

na Lei 9.608/98, dos artigos 38 a 52 (dois foram vetados), seis são previstos na modalidade

culposa, o que configura mais de 1/3 destes crimes. O crime previsto no artigo 54 da Lei

(“causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em

danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição

significativa da flora”) traduz crime que, para além de prever punição pela modalidade

culposa, o faz a título de perigo, em sua primeira parte.

A primeira parte do tipo previsto no artigo 54 da Lei 9.608/98 traz a técnica de

tipificação de perigo concreto, que pressupõe que o objeto da ação se encontre realmente em

perigo no caso concreto. Difere-se do delito de perigo abstrato, conquanto neste último, a já

periculosidade típica de uma ação é motivo para sua penalização, sem que no caso concreto se

verifique a produção real de um perigo. A distinção foi dada por ROXIN que, ademais,

adverte a respeito da crescente importância dos delitos de perigo. 568

566 MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001, p. 71. 567 ROMEO CASABONA, Carlos María et al. La adaptación del Derecho Penal al desarrollo social y tecnológico. Editores Carlos maría Romeo Casabona e Fernando Guanarteme Sánchez Lázaro. Coordenação Emilio José Armaza Armaza. Granada: Comares, 2010, pp. 527-528. 568 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 336.

Page 157: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

161

Caso semelhante foi levado ao TRF da 4ª Região, conforme se verifica da ementa a

seguir colacionada, extraída da Apelação Criminal 2004.72.01.007715-7, julgada em

24/02/2010:

PENAL. ARTIGO 54, § 2º, inciso V da Lei 9.605/98. CRIME

AMBIENTAL DE PERIGO ABSTRATO. MATERIALIDADE COMPROVADA. VALOR DA PENA SUBSTITUTIVA DE PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA INDEPENDENTE DO DISPENDIDO EM VIRTUDE DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SENTENÇA MANTIDA. 1. Ao lançar dejetos sanitários diretamente no rio, o réu causou poluição, nos termos da primeira parte do artigo 54 da Lei 9.605/98, tratando-se de crime de perigo abstrato, cuja consumação independe de qualquer resultado da ação do agente. 2. O valor a ser empenhado pelo réu no PRAD - Plano de Recuperação de Área Degradada -, conforme definido na Ação Civil Pública, não se confunde com a prestação pecuniária fixada como substituição à pena privativa de liberdade imposta, nos termos do artigo 44 do CP. As duas esferas - cível e criminal - são independentes e não excludentes. Além disso, por faltar espontaneidade na reparação do dano, incabível a redução da pena proposta no artigo 14, II, da Lei 9.605/98. 3. A sentença aplicou justamente a pena, não merecendo reparos. Apelação improvida. (grifo nosso)

569

As empresas, quiçá as mais “atingidas” pelo novo direito penal, são advertidas, a

todo momento, no marco de um direito penal protetor de bens jurídicos contra catástrofes

antecipadas pelas coletividades humanas, sobre os riscos advindos de suas atividades. Em

uma escala valorativa, têm-se as empresas como maiores produtoras de atividades de risco,

razão pelo qual muitas instituições vêm construindo um sistema rígido de hierarquia piramidal,

“tendo em mira evitar os riscos juridicamente desaprovados, pois os diferentes escalões

hierárquicos funcionam como controladores, ou verdadeiros ‘garantes’”. 570

Esta descentralização das empresas é mais uma consequência evidente da

reorganização social, política, cultural e jurídica no contexto da sociedade de riscos. Assim, se

o imperativo reducionista prescreveu a redução da dogmática penal pré-funcionalismo - à

exceção do neokantismo - a proposições sobrejacentes sempre idênticas, em qualquer espaço-

tempo, os ganhos advindos com a introdução de um pensamento político-criminal, se fazem

sentir nos mais diversos âmbitos da vida. O resultado é a compreensão de uma dogmática

penal interessada em razões político-criminais necessárias a uma ciência complexa, e, no

meio social, uma tendência à solidarização. A complexidade nos papéis sociais faz com que

569 Disponível em: http://www2.trf4.jus.br 570 CÚNEO LIBARONA, Rafael. Responsabilidad penal del empresario. Por delitos imprudentes de sus dependientes. 1ª edição. Buenos Aires: Astrea, 2011, p. 12.

Page 158: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

162

estes mesmos atores sociais busquem cumprir suas tarefas, no que os limites impostos pelas

regras de conduta passarão pelo crivo do direito penal, sempre que acionado.

3.7. Ambientação favorável à tipificação culposa

De tudo quanto já fora exposto, percebe-se que as complexidades sociais com as

quais o direito penal vem se deparando, são (e foram) as responsáveis por torná-lo uma

ciência também complexa, cujas soluções mais justas vêm sendo fornecidas pela união e

intercomunicação entre dogmática e outras áreas epistemológicas, como a política-criminal.

Ensina MORIN que a complexidade se impõe “lá onde a unidade produz suas emergências, lá

onde se perdem as distinções e clarezas nas identidades e causalidades, lá onde as desordens e

incertezas perturbam os fenômenos, lá onde o observador surpreende seu próprio rosto no

objeto de sua observação.” 571

E, corroborando o entendimento a respeito das complexidades que se impõem à

ciência do direito penal, para as quais não se lhe é dado desconsiderar, tem-se BECK:

Tudo aquilo que parece isolado numa perspectiva teórico-sistêmica se

converte em componente integral da biografia individual: família e trabalho, educação e ocupação, administração e transporte, consumo, medicina, pedagogia, etc. Fronteiras subsistêmicas voltam para subsistemas, mas não para pessoas em situações individuais institucionalmente dependentes. Ou então, formulado com base em Habermas: as situações individuais trespassam a distinção entre sistema e mundo vital.

572

E pode-se ir além. Até as situações mais individuais, nesta sociedade de virada de

século, impõem-se através de interconexões. O direito penal, de princípios calcados em bases

democráticas e garantistas, não deve se abster da configuração do novo contexto social.

Da observação da tensão a que se submete a ciência do direito penal, entre

liberdade e obrigatoriedade, “verifica-se que o legislador, apoiado por grande parte da

doutrina, corresponde às expectativas com endurecimento da ameaça penal, tanto como com a

571 MORIN, Edgar. O método. V. 1: a natureza da natureza. 2ª edição. Tradução de Ilana Heineberg. Porto Alegre: Sulina, 2008, p. 456. 572 BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010, p.201

Page 159: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

163

criação de novos tipos, como com a ampliação das sanções” 573

, a utilização da modalidade

culposa de delito juntamente com o adiantamento das barreiras do punível.

É de fácil percepção a existência de uma ambientação favorável à tipificação

culposa. A autocompreensão do direito penal passa pela compreensão do cenário de expansão

dos riscos decorrentes dos avanços tecnológicos, impondo-se a perseguição por condutas que,

ainda que arriscadas, não ultrapassem o patamar de riscos permitidos ou tolerados pela

sociedade. Por esta razão, impõe-se a todos que travem suas participações nos contextos

interpessoais acomodados a certos deveres ou regras de conduta, com o fim de evitar a lesão

ou o perigo de lesão a bens jurídicos protegidos pelo direito penal. 574

Daí que se vislumbra a tarefa atribuída aos crimes culposos, causa de sua expansão,

que, sob o aspecto político-criminal, consiste não em “zerar” riscos procedentes de atividades

humanas, mas em minimizá-los. Ainda que se questione esta tarefa, no limiar do século XXI,

é certo que o direito penal, através dos crimes culposos, pretende reduzir a sensação de

insegurança ocasionada pela tomada de consciência dos riscos, fenômeno que, em direito

penal, se coaduna “com uma modernidade reflexiva, a uma, porque os riscos frutos de

decisões humanas redundaram em fatos que reverteram contra a humanidade; a duas, porque

passam a ser elementos de reflexão, a partir disso.” 575

Deriva, daí, o emprego do aparato jurídico-penal para reduzir riscos, operando

como parte de uma ampla mecânica de gerenciamento capaz de mantê-los em patamares de

razoabilidade. 576 Está posta a ambientação favorável à tipificação por crimes culposos,

resultado da distribuição de novas tarefas ao direito penal. É bastante emblemática a tutela

penal da ordem econômica: a dificultação na individualização das condutas, bem como a

ampliação de sujeitos passivos, calha a que a legislação extravagante em matéria penal venha

envolta com a tarefa a que o direito penal toma para si.

A tipificação por crime culposo é excepcional e taxativa, motivo pelo qual, ao se

falar nele, aflui a imagem do homicídio ou da lesão culposa, vez que no Código Penal, de

cada dez crimes, nove são tipificados exclusivamente na forma dolosa.

573 HASSEMER, Winfried. La autocomprensión de la Ciencia del Derecho Penal frente a las exigencias de su

tiempo. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão española: Francisco Muñoz Conde. Coordenação da versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer e Björn Burkhardt. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 51. 574 ROMEO CASABONA, Carlos María. Conducta peligrosa e imprudencia en la sociedad de riesgo. Granada: Comares, 2005, p. 02. 575 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 119. 576 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 119.

Page 160: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

164

Na esteira da expansão da modalidade culposa de crime, tem-se, a título

exemplificativo, a Lei 8.137/1990 que, em seu artigo 7º, incisos II, III e IX prevê a

responsabilização por crime culposo. Trava-se a tutela penal do consumidor, no âmbito das

relações de consumo, em que o tipo penal previsto no citado artigo 7º prevê, das nove figuras,

três sob a forma culposa. Já o CDC, que completa a tutela penal do consumidor, através da

previsão de infrações de menor potencial ofensivo, de competência dos Juizados Especiais,

contém doze tipos, com dois culposos (artigo 63 e 66).

Nota-se que, em comparação com a legislação penal codificada, o volume de

tipificações culposas na legislação especial traduz-se em mais do triplo daquela, consequência

de um direito penal atuante em torno dos chamados novos delitos.

Chama atenção, neste contexto, também, aquilo que já fora introduzido por

HASSEMER, a respeito do direito de intervenção que, para ele, serviria como uma figura

híbrida entre o direito penal e o direito sancionatório administrativo. 577 Ocorre que o jurista

alemão não aprofunda sua teoria a respeito de um direito de intervenção, e, de outra banda,

ainda que direito penal e direito administrativo sancionador possuam – de modo geral - tarefas

bem distintas, na medida em que este é voltado à pura ordenação da vida social e aquele à

proteção de bens jurídicos, é visível a existência de pontos de confluência entre as metas de

um e de outro. O desenho de dois círculos que se sobrepõem em parte é capaz de traduzir a

relação entre os ramos. 578

De fato, e tomando como base a crítica de HASSEMER, para quem o direito penal

do risco, ao atender às demandas sociais por segurança, atua como instrumento para acalmar a

opinião pública, no que se traduziria em um direito penal simbólico 579 , é evidente que ao

direito penal não se autoriza transformar-se em mero instrumento tendente a desobrigar os

poderes públicos de tomarem quaisquer outras medidas que julguem eficazes na prevenção de

riscos. Porém, não menos certo é que perpetuar ad eternum um direito penal responsável,

unicamente, pela tutela de bens jurídicos pessoais (individuais) seria relegá-lo à inexistência

de novas demandas, e de novas tutelas.

A percepção do novo quadro axiológico social é medida que se impõe, tanto nos

julgados, como na doutrina. E assim tem sido. A percepção do ambiente político-criminal

577 HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad. Bases para una teoría de la imputación en Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 72. 578 GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012, p. 120. 579 HASSEMER, Winfried. La autocomprensión de la Ciencia del Derecho Penal frente a las exigencias de su tiempo. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão española: Francisco Muñoz Conde. Coordenação da versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer e Björn Burkhardt. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, pp. 41-52.

Page 161: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

165

vem sendo encampada pela dogmática penal que, sem aquela, quedaria inerte em seu tempo-

espaço, desvinculada da nova realidade e tendente ao isolamento.

Ciências diferentes, então, podem cooperar e dialogar, em vez de se isolarem, em

consonância com um mundo globalizado, onde a necessidade de diálogo urge superar a

possibilidade de isolamento. BACHELARD já dizia: “É verdadeiramente nessa cooperação de

princípios teóricos que se manifesta a intensa atividade dialética característica da ciência

contemporânea.” 580

Desta forma, diante das novas demandas e do surgimento de um modelo social que

pugna por proteção penal perante os riscos procedentes de atividades humanas - que, como

nunca, tornaram-se perceptíveis pela humanidade - há, sim, coexistência entre um direito

penal interagente com a modernidade e, pari passu, pautado por princípios clássicos

garantistas, próprios de um Estado Democrático de Direito. Ademais, insta salientar que,

embora o paradigma do risco faça-se presente, embora se reconheça, inclusive, uma estrutura

social evidentemente diferenciada da anterior, não houve, do ponto de vista evolucional,

quebra sociológica ou histórica, sobre a qual se deva mais debruçar, mas, apenas, um ganho

de complexidade (natural) do contexto social. Salutar a lição de ROXIN: “Ainda que trivial,

nunca é demais repetir: A mudança de milênio não representa nenhuma ruptura de época, mas

simplesmente um evento no calendário. Portanto, não renovará de forma avassaladora a tarefa

da ciência penal.” 581 Não se trata, enfim, de reescrever o direito penal a partir da demanda de

novas tutelas, mas de pô-las em consonância com as categorias dogmáticas e conceitos

garantistas deflagradas à época da Ilustração.

580 BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Trechos escolhidos por Dominique Lecourt. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 85. 581 ROXIN, Claus. La ciencia del Derecho Penal ante las tareas del futuro. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão española: Francisco Muñoz Conde. Coordenação da versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer e Björn Burkhardt. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 393.

Page 162: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

166

CONCLUSÃO: CIÊNCIA E COMPLEXIDADE NO DIREITO PENAL

Toda dedicação à ciência é, afinal, um experimento de felicidade.

582

1. A vontade de verdade pode ser enganadora. É capaz de distorcer a realidade

para adaptá-la às categorias do conhecimento, das ciências, do que se pretende que seja real.

Faz da vida, complexa que é, um argumento simples. E, sabe-se, já desde NIETZSCHE, que a

vida não é um argumento. 583

Os esquemas verificáveis em qualquer espaço-tempo, dos quais

o direito encontra-se repleto, surgem, na alvorada do terceiro milênio, como questão de debate

entre as mais diversas áreas da ciência jurídica.

2. No direito penal, não seria diferente. A presente dissertação tratou de analisar a

forma como o risco – inerente à sociedade atual – repercute nos critério de imputação do

delito, fazendo surgir novas dimensões sobre as quais ao direito penal foi dada a missão de

tratar. O ambiente de segurança e imobilidade que, em matéria jurídica, parece afastar o erro

da vida científica, se olvida que, muitas vezes, o erro é necessário à própria condição

humana.584

3. É certo que a repercussão do aumento de percepção dos riscos dá-se,

precipuamente, em matéria de crimes culposos. Daí se elegeu, na presente dissertação, um

aspecto (essencial) do crime culposo para análise: a imputação e sua repercussão na

dogmática penal, a partir do panorama do risco.

4. Buscou-se, preliminarmente, empreender uma análise a respeito da utilização

da modalidade culposa nas diversas Escolas da teoria do delito. Verificou-se que, a depender

da atmosfera social, cultural e histórica de uma época, as diversas linhas de pensamento

dogmático jurídico-penal herdarão a bagagem cultural própria de seu contexto. É a influência

do zeitgeist ou “espírito do tempo”, que garante que todo pensamento e sua consequente

aplicação no universo jurídico, venha com a marca do tempo e do espaço em que se produz.

582 BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz: sobre o mundo jurídico e outros mundos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1994, p. 70. 583 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 145. 584 “A vida não é argumento; entre as condições para a vida poderia estar o erro.” NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 145.

Page 163: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

167

5. A resposta do direito penal ao contexto filosófico de cada época deu-se nas

mudanças dogmáticas empreendidas pelas diversas Escolas da teoria do delito - e as

consequentes soluções dadas, em cada caso, ao crime culposo. Daí a necessidade de se

verificar a aproximação do direito penal, ora ao universo daquilo que é, ora ao universo

daquilo que deva ser.

6. Assim fora conduzida a primeira parte desta dissertação, pois, avaliar o modo

como atualmente tende a ser feita a ciência do direito penal implica, necessariamente,

compreender as circunstâncias históricas que determinaram o modo de ser até então. Decerto,

conforme lição do professor recifense, “é absurdo pretender criticar, com as categorias e

instrumental teóricos modernos, os ecos das eras antigas da ciência. Sem compreendê-las na sua emergência, historicamente situada, o desacerto seria inevitável.” 585

7. Todo o panorama de desenvolvimento das teorias do delito em direito penal

conduziu-se a dois elementos epistemológicos básicos, a “visão de si, ou da coisa em si” e a

“visão de mundo”, aparecendo como um movimento pendular entre esses dois pontos,

exatamente, os universos do ser e do dever ser.

8. Os paradigmas filosóficos tendentes a aproximarem as ciências jurídicas ora

como descrição da realidade imutável das coisas, ora como reflexão sobre o comportamento

prático do espírito das coisas, serviram de base a uma dogmática jurídico-penal que se

desenvolvera há quase dois séculos.

9. Buscou-se trabalhar o conceito e os fundamentos do crime culposo,

primeiramente, segundo os modelos ontologicistas, e, após, segundo o corte axiológico

imposto pelo neokantismo e, posteriormente, pelos funcionalismos.

10. No causalismo não se vislumbrara qualquer aproximação entre dogmática

penal e política-criminal. Esta Escola da teoria do delito, que teve em VON LISZT e em

BELING seus maiores representantes, caracterizou-se pela ascensão do positivismo jurídico,

por um lado, e por outro, pelo encantamento humano com o racionalismo técnico-científico.

11. As experimentações derivadas do racionalismo de cunho cartesiano buscaram

explicar o delito, tanto quanto os acontecimentos da natureza, através de um método empírico.

Daí que o conceito de conduta humana - igualmente extraído da relação de causa e efeito,

própria da física newtoniana - traduziu-se, neste período, em um movimento corporal

voluntário capaz de causar modificação no mundo exterior. Concebia-se regra rígida, estática

585 BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz: sobre o mundo jurídico e outros mundos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1994, p. 114.

Page 164: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

168

e (pretensamente) estável a quaisquer movimentos que intentassem ser conduta, o primeiro

substrato analítico do crime.

12. A tipicidade era entendida, na teoria causalista, como um tipo avalorado que,

através do fenômeno da observação e da descrição, subsumia-se em uma relação de causa e

efeito, isto é, o tipo penal era puramente objetivo, entendido como proibição da causação de

um resultado.

13. Mas, tendo em vista a lacuna epistemológica inerente à culpa, no causalismo -

caracterizada tanto como a não previsão do resultado previsível, quanto a falta de precaução

ou o desprezo do cuidado requerido pela ordem jurídica e exigido pelo estado das

circunstâncias – fez-se necessário a criação de um elemento normativo no tipo objetivo, qual

seja, a desobediência (contrariedade) a um dever de cuidado.

14. Ocorre que, este artificialismo criado a posteriori pelo causalismo rompera

com sua metodologia filosófico-causalista, o que fora objeto de análise pelo finalismo de

WELZEL, para quem, ainda que os substratos da teoria do delito prosseguissem sendo

construídos a partir de dados ontológicos, somente a finalidade da conduta era capaz de

definir quais os deveres de cuidado que a devam cercar.

15. WELZEL, conforme observado, construíra suas proposições a partir de uma

teoria realista do conhecimento, cujo cerne é a preexistência do objeto ao conhecimento.

Estipulada a ordem objeto-ideia, então, concebeu um “giro” dogmático, que se fez sentir nos

substratos da tipicidade – entendida como a proibição da conduta (fazer guiado por um fim)

nas formas dolosa e culposa - e da culpabilidade, entendida, neste momento, como a

reprovabilidade na formação da vontade de quem atua.

16. Persistia, porém, quanto aos crimes culposos, uma contradição epistemológica.

Se o dolo, para o finalismo, é a finalidade atual, a culpa ou imprudência é a causação que era

evitável mediante uma atividade final. Optaram os finalistas, então, pelo abandono da ideia de

finalidade potencial – que fazia ruir sua ligação com o universo ôntico das coisas.

17. Entre o causalismo e o finalismo, observou-se a existência de um período,

marcado por se traduzir na primeira tentativa filosófica de superação do paradigma positivista

e a servir de base para o direito penal, denominado neokantiano ou neoclássico, caracterizado

pela experiência de resgate à separação estabelecida por KANT entre o mundo do ser e do

dever ser.

18. Os neokantistas, em geral, apegavam-se aos preceitos normativos oriundos do

universo do dever ser, razão pela qual o tipo era caracterizado como tipo de ilícito

normativamente descrito através da generalização do socialmente danoso. Importava, para

Page 165: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

169

MEZGER, por exemplo, na caracterização do crime culposo, a reprovação da conduta,

quando o agente pudesse prever o resultado danoso, reprovação esta contida na culpabilidade.

19. Como conclusão parcial, ao final do primeiro Capítulo, defendeu-se a

preponderância dos modelos axiológicos, como mais favoráveis para a análise da tipicidade

culposa. A um, porque para a adequação dos fenômenos penais a um Estado (que se pretenda)

de Direito, não se deve recair em um reducionismo epistemológico, no que uma dogmática de

direito penal excessivamente dada a fórmulas rígidas e abstratas, correria o risco. A dois,

porque, em razão da crise de confiança no cálculo científico, que coloca em cheque as bases

de uma modernidade calcada no racionalismo cartesiano, o direito penal identifica, como

nunca, condutas capazes de produção de consequências catastróficas para a vida e demais

bens jurídicos.

20. Neste contexto, chegou-se à conclusão de que a inflação de crimes culposos

reflete uma ambientação favorável à adoção de modelos dogmáticos axiológicos, pois se se

pretende cercar as atividades da vida moderna de maiores cautelas, levando-se em conta que

todos gerenciam técnicas e manobras arriscadas (riscos conhecidos ou não) em face de todos,

caberá ao Estado, valorar se determinada conduta merece ser enquadrada (tipificada) como

crime.

21. Contextualizou-se, assim, o novo universo em que o direito penal se encontra

inserido, a partir de meados dos anos setenta do século passado, o que tornou necessário e

imprescindível à ciência complexa que é, a interdisciplinaridade para o discurso jurídico

penal.

22. Verificou-se robusta a interligação entre disciplinas extrapenais, que iriam

contribuir com a definição das carências de proteção havidas pela sociedade. A dogmática

penal evidencia seu caráter instrumental e a política-criminal ganhou força, conforme

analisado. Trouxeram-se à tona diversos pensamentos epistemológicos (MORIN), filosóficos

(NIETZSCHE) e, inclusive, jurídicos (FOUCAULT) tendentes ao convencimento de que,

mais do que em qualquer outra época, se faz necessária a superação da “vontade de verdade”,

tida como absolutista e totalitária, malgrado suas (imemoráveis) contribuições ao direito

posto.

23. Estabeleceu-se, como critério-base a um direito penal que busque lidar com os

riscos do século XXI, sem perder sua cariz democrática e, ao mesmo tempo, tendente à

evitação de um chamado “direito penal simbólico”, a necessidade da multidimensionalidade

da ciência jurídico-penal.

Page 166: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

170

24. Como correntes de pensamento pós-finalistas, de cariz normativo-axiológicas,

e compromissadas com a função político-criminal do direito penal, analisaram-se as teorias

funcionalistas que, neste trabalho, foram abordadas segundo os ensinamentos de ROXIN,

JAKOBS e FRISCH.

25. CLAUS ROXIN foi o grande responsável por romper, em meados dos anos 70

do século passado, com a máxima lisztiana segundo a qual “o direito penal é a barreira

intransponível da política-criminal”, orientando aquele às funções supervenientes a esta.

Apontou-se “Política criminal e sistema jurídico penal” como obra inaugural desta nova fase

do direito penal. À sua teoria, partidarizou-se, neste trabalho.

26. ROXIN, em suma, optou por uma estruturação teleológica do sistema penal,

funcionalizada pela proteção subsidiária de bens jurídicos do indivíduo e da coletividade

contra riscos socialmente intoleráveis, vinculando as categorias do delito ao postulado do

nullum crimen, sobressaltando, o direito penal, como ultima ratio do sistema. A missão do

direito penal, para o penalista de Munique é, então, como observado, a proteção subsidiária de

bens jurídicos relevantes. Todas as categorias do delito, assim, deveriam ser analisadas

segundo este critério. Deveriam, afinal, ser funcionalizadas, para uma melhor repercussão de

si mesmas, dando lugar a decisões mais justas e coerentes.

27. ROXIN, aliás, já advertira, acertadamente, a respeito do zeitgeist que, quanto à

relevância dos bens jurídicos, é capaz de alterar-lhes o significado, sempre no marco das

finalidades constitucionais, conforme o “câmbio” social e os progressos do conhecimento

científico.

28. O catedrático de Munique, ao discorrer sobre os problemas básicos da teoria

geral do delito refletiu a respeito dos perigos em se adotar um pensamento sistemático, cujas

deduções (reducionistas) não raras vezes não são legitimáveis politico-criminalmente,

pensamento que, aliás, encontra-se em perfeita sintonia com o propugnado nesta dissertação.

“O correto é que a tensão entre a luta preventiva do delito e a salvaguarda liberal da liberdade

constitui um problema que, atualmente, tem importância não inferior que nos tempos de Liszt.

O que está superado, ademais, é a hipótese de que nesta tensão se expressa uma contraposição

entre política-criminal e direito penal”. 586

29. Assim é que, refutando o emprego de conceitos demasiado abstratos, ROXIN

tratou de delinear critérios de imputação objetiva que, tomados in casu, fossem capazes de

586 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 224.

Page 167: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

171

maximizar a justiça nas tomadas de análise a respeito da configuração do tipo objetivo. A

premissa dogmática clássica que partia da causalidade da conduta para ver cumprido o tipo

objetivo, era ineficaz e merecia ser superada.

30. Analisaram-se os critérios, um a um, assim como sua repercussão em sede de

crimes culposos, pois, partiu-se do pressuposto (corroborado por ROXIN) de que a

importância prática dos delitos culposos aumentou bruscamente com o crescente

desenvolvimento tecnológico e os perigos suscitados por ele, o que se fez sentir na inflação da

modalidade delitiva na legislação penal extravagante.

31. Ainda que se partidarizara, nesta dissertação, a um funcionalismo teleológico-

racional próprio do pensamento roxiniano, tem-se como não menos importante o

funcionalismo aduzido por GÜNTHER JAKOBS. Observou-se uma aproximação do

pensamento do penalista de Bonn à teoria dos sistemas de LUHMANN, caracterizada como

um procedimento que busca diferenciar o sistema social daquilo que existe à sua volta;

sistema e entorno, então, não estão aptos a se separarem, ainda que um não se confunda com o

outro.

32. O direito, traduzido no sistema, e o a sociedade, seu entorno, atuam através de

um agir comunicativo que, afinal, busca minimizar o número de expectativas existentes nas

relações humanas. Esta é, evidentemente, a conclusão jakobsiana a propósito da teoria

sistêmica luhmanniana. JAKOBS sintetiza em dois grandes grupos as expectativas

estabelecidas ao se travarem contatos sociais (contatos que, ademais, garante serem

indispensáveis à vida em sociedade): as baseadas em motivos superiores (que dão ensejo às

condutas) e as referentes às normas vigentes (que, se violadas, dão ensejo à tipicidade).

33. JAKOBS, assim, ao fundamentar sua teoria de imputação objetiva (que,

segundo ele, é o adicional jurídico que deve ser agregado à causalidade), ainda que elabore

quatro critérios de exclusão da imputação, os submete (sempre) à missão precípua do direito

penal que, segundo sua concepção, é o fortalecimento das expectativas normativas, regulado

pelo bom funcionamento dos papéis sociais de todos em relação a todos.

34. Sua teoria, entretanto, apesar de fiel ao que propugna (a promoção, sob

qualquer hipótese, da norma penal) resvala nas críticas de desprezar o componente humano e,

ademais, de se traduzir em um sistema autopoiético, de cunho absolutista e um quase-

“Leviatã”. As criticas não passaram desapercebidas na presente dissertação e foram fruto de

análise.

35. Por fim, analisou-se o posicionamento (novidadeiro) de WOLFGANG

FRISCH a respeito da teoria de imputação objetiva. FRISCH, ainda que tenha elaborado

Page 168: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

172

artigo inserido em obra em homenagem a ROXIN, parte da crítica a uma imputação objetiva

calcada na criação de riscos proibidos. Isto porque, conforme visto, FRISCH, identifica a

criação de riscos não permitidos como pressuposto material da responsabilidade penal, porém,

e aí reside a principal distinção de sua teoria, define-a como juízo normativo próprio para

analisar se determinada conduta é penalmente relevante. A imputação, segundo seus

ensinamentos, só pode versar sobre o resultado.

36. Ainda que seu estudo seja interessante e com bastante “fôlego”, na medida em

que sua pretensão era, ademais, reformular não só a teoria do delito, mas a teoria do tipo,

igualmente não se sustenta - não nesta dissertação. Isto porque, suas formulações, ao

emprestarem muitas das concepções roxinianas, acabam por contradizerem-se, e, ademais,

muito se aproxima de um “neofinalismo”, na medida em que foi exatamente com WELZEL

que se analisou o crime como desvalor de ação, atentado que estava à natureza ontológica das

coisas.

37. Analisadas, dogmaticamente, as diversas formas de imputação por crime

culposo, nas diversas Escolas de teoria do delito - desde LISZT até as escolas funcionalistas

pós-finalistas -, tratou-se, no presente trabalho, de analisar a forma como a sociologia

contribuiu, de maneira essencial, à tomada atual de rumo do direito penal. O contributo da

sociologia, no marco de um direito penal de cariz funcionalista, foi essencial para uma

compreensão da ideia do risco que, apesar de sempre atuante, ganha nova percepção a partir

dos sistemas de exposição e de contenção dele próprio, e, ademais, essencial na definição das

carências de proteção havidas pelos membros da sociedade.

38. Aparece, enfim, novo desafio ao cientista jurídico-penal que, malgrado as

dificuldades, pode concebê-lo com otimismo ou pessimismo. Através da presente pesquisa

buscou-se compreender as causas que levaram (e levam) a um novo direito penal que,

incrustado em suas bases, das quais não lhe é dado o afastamento, não se permitirá negar o

novo papel desta realidade de mundo, diagnosticada pelos sociólogos e, ademais,

democraticamente estudada, com não poucos esforços, pelos juristas. Deve-se buscar este

experimento, seguindo a filosofia nietzschiana da capacidade de recomeço e do eterno retorno

(Ewige Wiederkunft). 587

587 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 230.

Page 169: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

173

39. Discorreu-se sobre a sociedade de risco, consequente das experimentações

vaidosas e científico-tecnológicas da “boa sociedade” de que tratou ARENDT 588 e cujos

riscos que, outrora eram de baixa (senão nula) percepção, hoje se traduzem como

protagonistas das tomadas de decisões (políticas e, consequentemente, jurídicas).

40. Para além de uma sociedade de riscos, é de fácil percepção a ingerência desta

ambientação ao direito penal, dando lugar a um direito penal do risco. Com o ganho de

complexidade das relações sociais, a percepção dos riscos ganha notoriedade e o rastro da

insegurança faz-se sentir nos âmbitos da vida, ingressando, pois, no discurso jurídico-penal. O

processo é cíclico e de fácil percepção. O direito penal é, de fato, a ferramenta mais grave de

que dispõe o Estado como forma de acalentar os anseios sociais.

41. De fato, frise-se, não há que se falar em superação dos princípios garantistas

constitucionais. Ainda que se questione uma forma de se fazer ciência estampada pelo apego a

formas rígidas e estanques, não há que se negar as bases que sustentam, desde sempre, um

direito penal democrático. Porém, não menos certo, é que, a uma ciência complexa, abrem-se

novos caminhos, frutos de sua própria complexificação e da complexificação do seu entorno,

a sociedade.

42. Os riscos, ademais, fizeram-se sentir nos operadores econômicos, o que, enfim,

deu ensejo a um ramo do direito penal que, apesar de possuir bibliografia menos extensa,

considera-se, hoje, bem delineado pelos esforços da doutrina e fortemente recorrente nos

processos penais: o direito penal econômico.

43. Sem se olvidar dos valiosos contributos de SUTHERLAND, a presente

pesquisa buscou aproximar o conceito de direito penal econômico da função roxiniana do

direito penal: se a missão do direito penal é salvaguardar bens jurídico-penais relevantes, e se,

conforme lição de ROXIN, a mutabilidade da concepção de bem jurídico é aceitável,

conforme os progressos do conhecimento científico, abre-se espaço a um direito penal

protetor de bens supraindividuais que, para além de afetarem o indivíduo, afetam a toda a

coletividade (a ordem econômica é exemplo cabal disto).

44. De tudo isto, verificou-se que o paradigma do risco, atuante em um direito

penal econômico, faz prevalecer, como forma de minimização (e não zeramento) dos riscos

advindos de tomadas de decisões humanas, a escolha, pelo legislador penal, da modalidade

culposa de crime, enganchada à técnica de tipificação de perigo e, ademais, de perigo

abstrato. Diversos exemplos foram analisados, como o do crime contido no artigo 7º, inciso

588 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. 7ª edição. São Paulo:

Perspectiva, 2011, p. 251.

Page 170: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

174

IX, parágrafo único, da Lei 8137/90. Ainda, observou-se a ampliação, na legislação penal

extravagante, de crimes culposos econômicos: na Lei 8.078/90, 19% dos crimes é previsto na

modalidade culposa; na Lei 9.605/98, mais da metade dos crimes admite a forma culposa.

Assim, se da análise da legislação penal de dezembro de 1940, tem-se que a cada 10 crimes, 9

são admitidos na exclusiva forma dolosa, é certo que na legislação extravagante pós-1980 a

realidade é (bem) distinta.

45. O direito penal, para além de fazer dos bens jurídicos supraindividuais

(agrupados, aqui, sob a ordem econômica: meio ambiente, direitos consumeristas, sistema

financeiro, ordem tributária, etc.) seu campo de tutela, agregou-lhes técnica de tipificação que

fosse capaz de conter os riscos advindos de atividades perigosas.

46. Assim é que o enorme desafio que se apresenta deve, sim, ser enfrentado de

forma otimista e se a tarefa é difícil, não é impossível. O menos custoso seria, certamente,

permitir que o automatismo do pensamento e o apego a fórmulas - que, com esforço,

conseguem abraçar outras realidades - encerrasse o pensamento, já acabado. Esta dissertação,

afinal, que se manteve com o penalista de Munique, com ele se encerra: “A respeito da

questão de se o direito penal está em condições de fazer frente, com seu tradicional

instrumental liberal e ajustado ao Estado de Direito, a que também pertence o conceito de

bem jurídico, aos modernos riscos da vida” 589

, observa o jurista que “muitos respondem

negativamente a esta questão e referem-se à necessidade de desativar as causas sociais das

que fazem surgir tais riscos. Agora sim, (...) o certo é que não se pode renunciar totalmente à

intervenção do direito penal neste campo.” 590 E conclui que “ao lutar contra o risco, o direito

penal deve preservar a referência ao bem jurídico e aos restantes princípios de imputação

próprios do Estado de Direito.” 591

47. Exatamente neste contexto é que se defendeu o novo espaço atribuído ao

direito penal, onde as decisões mais justas e coerentes devem prevalecer. O que não significa

dizer que não se possa criar, expandir, reorganizar. Uma vez que a realidade é complexa,

mutável e sujeita a novos acontecimentos, a ciência do direito penal vê-se submetida a novos

critérios, e deve saber trabalhar, assim, com o complexo e com o novo. Não pode atuar por

589 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 61. 590 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 61. 591 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997, p. 61.

Page 171: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

175

automatismos. Deve saber escutar o que as outras disciplinas têm a lhe dizer; e assim tem

sido. Nesta dissertação, tem-se, finalmente, que a partir da ideia de risco, própria da virada de

século, a determinação do incremento de um novo ramo do direito e, ademais, de novas

modalidades delitivas, deve passar, imediatamente, pela estabilização fornecida por critérios

de imputação objetiva - mais axiológicos, porém, não menos coerentes, mais condizentes ao

universo do que deva ser, mas não menos ligados à realidade das coisas.

Page 172: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

176

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva.

São Paulo: Malheiros, 2008.

ALFLEN DA SILVA, Pablo. Aspectos críticos do direito penal na sociedade de risco. In:

Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 12, n. 46, já./fev 2004, São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2004.

ANDRADE, Guilherme Oliveira de. O Princípio da intervenção mínima e o Direito Penal

do Risco. Dissertação de Mestrado, defendida em 02 de dezembro de 2009 no Centro

Universitário Curitiba.

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 11ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2008.

APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna. Tradução de Benno Dischinger. Petrópolis,

RJ: Vozes, 1994.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 11ª edição. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2011.

________. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. 7ª edição. São Paulo:

Perspectiva, 2011.

BACHELARD, Gaston. Epistemologia: trechos escolhidos por Dominique Lecourt.

Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

BACON, Francis. Novum organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da

natureza. 2ª edição. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Abril Cultural,

1979 (Coleção Os Pensadores).

BARRILARI, Claudia Cristina. Algumas considerações sobre o crime de perigo e o direito

penal econômico. In: Revista dos Tribunais. V.100, n.903, jan. 2011.

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de

Janeiro: Zahar, 2007.

BECK, Ulrich. A ciência é a causa dos principais problemas da sociedade industrial.

Entrevista concedida a Antoine Reverchon, do “Le Monde”, publicada pelo jornal “Folha de

São Paulo” em 20/11/2001.

________. La sociedad del riesgo global. Tradução de Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo

Veintiuno de España Editores, 2002.

________. La sociedad del riesgo mundial. Barcelona: Paidós, 2008.

________. O que é globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização. São

Paulo: Paz e Terra, 1999.

________. Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião

Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010.

Page 173: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

177

BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva. Política,

tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora

UNESP, 1997.

BELING, Ernst Von. Esquema de derecho penal. La doctrina del delicto-tipo. Tradução de

Sebastian Soler. 11ª edição alemã. Buenos Aires: Depalma, 1944.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. Vol. 1. 11ª edição.

São Paulo: Saraiva, 2007.

BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz: sobre o mundo jurídico e outros mundos. Recife:

Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1994.

BOZZA, Fábio da Silva. Uma análise crítica da prevenção geral positiva no funcionalismo de

Günther Jakobs. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. n.70, jan./fev. 2008. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

BUSATO, Paulo César. Ação e omissão. In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado

em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Editora Juruá, 2012.

________. Apontamentos sobre o dilema da culpabilidade penal. In: Revista Liberdades. nº

08. Set./dez. IBCCRIM: 2011.

________. Direito Penal e Ação Significativa: uma análise da função negativa do conceito

de ação em Direito Penal a partir da Filosofia da Linguagem. Rio de Janeiro: Editora Lumen

Juris, 2005.

________. Fatos e mitos sobre a Imputação Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

________. O risco e a imputação objetiva. In: Teoria do delito. Série Direito penal baseado

em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Juruá, 2012

________. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011.

BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao direito penal.

Fundamentos para um sistema penal democrático. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2007.

BUSATO, Paulo César e KÄSSMAYER, Karin. Intervenção mínima x precaução: conflito

entre princípios no direito penal ambiental. In: Direito e Risco: o direito do ambiente na

sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008.

BUSATO, Paulo César e PEREIRA, Gabriela Xavier. O risco e a imputação objetiva. In:

Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato.

Curitiba: Juruá, 2012.

BUSTOS RAMÍREZ, Juan J. e HORMAZÁBAL MALARÉE, Hernán. Nuevo sistema de

derecho penal. Madrid: Editoral Trotta, 2004.

CALLEGARI, André Luís. Direito Penal Econômico e Lavagem de Dinheiro: aspectos

criminológicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

CAMARGO, Antonio Luís Chaves. Imputação objetiva e direito penal brasileiro. São

Paulo: Livraria Paulista, 2002.

Page 174: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

178

CANESTRARI, Stefano. “Riesgo empresarial” e imputación subjetiva en el Derecho Penal

concursal. In: Temas de Derecho Penal Económico. III Encuentro Hispano-Italiano de

Derecho Penal Económico. Organização Juan María Terradillos Basoco e María Acale

Sánchez. Madrid: Editorial Trotta, 2004.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Vol. 1. 8ª edição. São Paulo:

Saraiva, 2003.

CARNAP, Rudolf. Pseudoproblemas na filosofia. 2ª edição. Tradução de Pablo Rubén

Mariconda. São Paulo: Abril cultural, 1979.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Vol. 1. A era da informação: economia,

sociedade e cultura. Prefácio de Fernando Henrique Cardoso. Tradução de Roneide Venancio

Majer. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. El delito imprudente. Critérios de imputación del

resultado. Buenos Aires: Julio César Faira, 2005.

CRUZ BOTTINI, Pierpaolo. Princípio da precaução, direito penal e sociedade de risco. In:

Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

CÚNEO LIBARONA, Rafael. Responsabilidad penal del empresario. Por delitos

imprudentes de sus dependientes. 1ª edição. Buenos Aires: Astrea, 2011.

DEAN, Mitchell. Risk, calculable and incalculable. In: Risk and Sociocultural Theory: new

directions and perspectives. Deborah Lupton. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

DELACAMPGNE, Christian. História da Filosofia no século XX. Tradução de Lucy

Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. 1300 – 1800: uma cidade sitiada.

Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São

Paulo: Martins Fontes, 1996.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora,

2004.

DILTHEY, Wilhelm. Introducción a las ciencias del espíritu. Ensayo de una

fundamentación del estudio de la sociedad y de la historia. Madrid: Alianza Editorial, 1986.

ELIAS, Norbert. Condição humana. Considerações sobre a evolução da humanidade, por

ocasião do quadragésimo aniversário do fim de uma guerra (8 de maio de 1985). Título

original: Humana conditio. Tradução de Manuel Loureiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

1985.

________. O Processo Civilizador. V.1. Rio de Janeiro: Jorhe Zahar, 1994.

Page 175: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

179

FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Cuestiones actuales de Derecho Penal Económico. Buenos

Aires: Julio César Faira Editor, 2009.

________. Recension a Frisch, Wolfgang/Robles Planas, Ricardo: Desvalorar e imputar. In:

FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la

imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César

Faira, 2006.

________. Teoria da Imputação Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos

dogmáticos e sobre a evolução da Teoria da imputação objetiva. Tradução de Nereu José

Giacomolli. Barueri, São Paulo: Manole, 2003.

FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de Derecho Penal. 14ª edição.

Tradução de Eugenio Raúl Zaffaroni e Irma Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi, 2007.

FEYERABEND, Paul. Adeus à razão. Tradução de Francisco M. Guimarães. Lisboa, Ed. 70,

s.d.

FOLLONI, André. A epistemologia e a superação do reducionismo. In: Ciência do direito

tributário no Brasil. São Paulo: Saraiva.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 2ª edição. Tradução de Roberto

Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Moraais. Rio de Janeiro: Nau, 1999.

FRANK, Reinhard. Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Tradução de Gustavo

Eduardo Aboso. Buenos Aires: UBdeF, 2002.

FRISCH, Wolfgang. Comportamiento típico e imputación del resultado. Tradução da

edição alemã de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid,

Barcelona: Marcial Pons, 2004.

________. La teoría de la imputación objetiva del resultado: lo fascinante, lo acertado y lo

problemático. In: FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar.

Sobre la imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio

César Faira, 2006.

FRISCH, Wolfgang e ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la

imputación objetiva en derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César

Faira, 2006.

GALVÃO, Fernando. Imputação objetiva. 2ª edição, Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São

Paulo: Editora UNESP, 1991.

GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Política,

tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1995.

GIRONDA CABRERA, Eusebio. Teoría del Estado. Cuarta edición. La Paz: Edobol, 2006.

GOMES, Luiz Flávio e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito penal Volume 2.

Parte geral. Coordenação de Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

Page 176: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

180

GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito. In: Revista Brasileira de

Ciências Criminais. nº 32, out./dez., São Paulo: RT, 2000.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Vol. 1. 11ª edição. Niterói: Impetus,

2009.

GUARAGNI, Fábio André. A função do direito penal e os “sistemas peritos”. In: Crimes

contra a ordem econômica. Temas atuais de processo e direito penal. Organização Luiz

Antônio Câmara e Fábio André Guaragni. Curitiba: Juruá, 2011.

________. As Teorias da Conduta em Direito Penal: um estudo da conduta humana do pré-

causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2009.

________. Da tutela penal de interesses individuais aos supraindividuais: Dialogando com

Beccaria. In: Ler Beccaria hoje. BUSATO, Paulo César (org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2009.

GUARAGNI, Fábio André e GIRONDA CABRERA, Michelle. Imprudência. In: Teoria do

delito. Série Direito penal baseado em casos. Org. Paulo César Busato. Curitiba: Editora

Juruá, 2012.

HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido Antônio

de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

________. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. Tradução

de Manuel Jiménez Redondo. 4ª edição. Madrid: Catedra, 2001.

________. Textos e contextos. Tradução de Sandra Lippert Vieira. Lisboa: Piaget, s.d.

HARTMANN, Nicolai. Ontología I. Fundamentos. Tradução de José Gaos. México: Fondo

de cultura económica, 1954.

HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução da 2ª ed.

alemã, de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005.

________. La autocomprensión de la Ciencia del Derecho Penal frente a las exigencias de su

tiempo. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão

alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer, Björn Burkhardt. Coordenação da versão espanhola:

Francisco Muñoz Conde. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004.

________. Persona, mundo y responsabilidad. Bases para una teoría de la imputación en

Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999.

HASSEMER, Winfried e MUNÕZ CONDE, Francisco. La responsabilidad por el

producto en Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995.

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. 2ª edição. Tradução de Márcia Sá

Cavalcante Schuback. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003.

________. Nietzsche. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2007.

HEGEL, Georg Wilhem Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando

Vitorino. Lisboa: Guimarães, 1960.

Page 177: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

181

HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milênio.

Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005.

HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de João Vergílio Gallerani Curter.

3ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

HIRSCH, Hans-Joachim. Delitos de peligro y Derecho Penal moderno. In: La adaptación

del Derecho Penal al desarrollo social y tecnológico. Editores Carlos María Romeo

Casabona e Fernando Guanarteme Sánchez Lázaro. Coordenação Emilio José Armaza

Armaza. Granada: Comares, 2010.

HÖFFE, Otfried. Proto-Derecho penal: programa y cuestiones de un filósofo. In: La ciencia

del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão alemã: Albin Eser,

Winfried Hassemer, Björn Burkhardt. Coordenação da versão espanhola: Francisco Muñoz

Conde. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004.

HONIG, Richard. Causalidad e imputación objetiva. In: Causalidad, riesgo e imputación.

100 años de contribuciones críticas sobre imputación objetiva y subjetiva. Buenos Aires:

Hammurabi, 2009.

HOYER, Andreas. Riesgo permitido y desarrollo tecnológico. In: La adaptación del

derecho penal al desarrollo social y tecnológico. ROMEO CASABONA, Carlos María;

LÁZARO, Fernando Guanarteme Sánchez e ARMAZA ARMAZA, Emilio José. Granada:

Editorial Comares. 2010.

JAÉN VALLEJO, Manuel. El concepto de acción en la dogmática penal. Madrid: Colex,

1994.

JAKOBS, Günther. A imputação penal da ação e da omissão. Coleção Estudos de direito

penal. Tradução de Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri, SP: Manole, 2003.

________.A Imputação Objetiva no Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

________.Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição.

Madrid: Marcial Pons Ediciones Juridicas, 1997.

________.La autocomprensión de la Ciencia del Derecho Penal ante los desafíos del presente.

In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão española:

Francisco Muñoz Conde. Coordenação da versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer e

Björn Burkhardt. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004.

________.Sobre la teoría de la pena. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Centro de

Investigaciones de Derecho Penal y Filosofia del Derecho de la Universidad Externado de

Colombia, 2002.

________.Sociedade, norma e pessoa: teoria de um direito penal funcional. Barueri, SP:

Manole, 2003.

________. Tratado de direito penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Tradução de

Gercélia Batista de Oliveira Mendes e Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Editora Del Rey,

2008.

JAPIASSÚ, Hilton. O sonho transdisciplinar e as razões da filosofia. Rio de Janeiro:

Imago, 2006.

Page 178: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

182

JESCHECK, Hans-Heinrich e WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte

general. Trad. Miguel Olmedo Cardenete. 5ª ed. Granada: Editora Comares, 2002.

JUNIOR, Heitor Costa. Teoria dos delitos culposos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1988.

KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro,

2003.

________. Crítica da razão pura. Tradução de Alex Martins. São Paulo: Martin Claret,

2002.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª edição. Tradução de João Baptista Machado. São

Paulo: Martins Fontes, 2000.

KINDHÄUSER, Urs. Incremento del riesgo y disminución del riesgo. In: Causalidad, riesgo

e imputación. 100 años de contribuciones críticas sobre imputación objetiva y subjetiva.

Organização e Tradução de Marcelo Sancinetti. Buenos Aires: Hammurabi, 2009.

KNOPFHOLZ, Alexandre. Considerações sobre a falta de justa causa nas denúncias genéricas

de crimes econômicos. In: Crimes contra a ordem econômica: temas atuais de processo e

Direito Penal. Organização de Fábio André Guaragni e Luiz Antônio Câmara. Curitiba: Juruá,

2011.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Boeira e

Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2000.

LEITE, Alaor e ASSIS, Augusto. O erro. Especial foco no erro de proibição. In: Teoria do

Delito. Série Direito Penal baseado em casos. Organização Paulo César Busato. Curitiba:

Juruá, 2012.

LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: Direito Constitucional

Ambiental Brasileiro. Organização J. J. Gomes Canotilho e José Rubens Morato Leite. 2ª

edição. São Paulo: Saraiva, 2008.

LIPOVESTKY, Gilles. A sociedade da decepção. Tradução de Armando Braio Ara. Barueri,

São Paulo: Manole, 2007.

LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. Tomo II. Tradução da 20ª edição alemã por

Luis Jimenez de Asua. 4ª edición. Madrid: Editorial Reus, 1999.

LUDWIG, Celso Luiz. Discurso e Direito: o consenso e o dissenso. In: Discurso e Direito:

discursos do direito. Organização Ricardo Marcelo Fonseca. Florianópolis: Boiteux, 2006.

LUHMANN, Niklas. Sistema y función. In: Sociedad y sistema: la ambición de la teoría.

Organização Ignacio Izuzquiza. Barcelona: Ediciones Piados, 1990.

LUHMANN, Niklas e GEORGI, Rafaelle de. Teoría de la sociedad. Tradução de Miguel

Romero Pérez e Carlos Villalobos. Guadalajara: Instituto Tecnológico y de Estudos

Superiores de Occidente, 1993.

Page 179: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

183

MACHADO, Maíra Rocha. Crimes financeiros nos Tribunais brasileiros. In: Revista

Brasileira de Ciências Criminais. v.17, n. 76, já./fev. 2009.. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2009.

MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Sociedade do risco e Direito penal. São Paulo:

IBCCRIM, 2005.

MAGALHÃES NORONHA, Edgar. Do crime culposo. São Paulo: Saraiva, 1957.

MARINUCCI, Giorgio e DOLCINI, Emilio. Corso di Diritto Penale. Vol. 1. 3ª edição.

Milano: Giuffrè Editore, 2001.

MARITAIN, Jacques. Introdução geral à Filosofia. Elementos de filosofia I. Rio de

Janeiro, Agir, 1977.

MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ. Carlos. Derecho penal Económico y de la empresa. 3ª

edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011.

MARTÍNEZ ESCAMILLA, Margarita. La imputación objetiva del resultado. Madrid:

Edersa, 1992.

MASSON, Cleber. Direito Penal. Parte Geral. 3ª. Edição. São Paulo: Método, 2010.

MENDOZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid:

Civitas, 2001.

MESTIERI, João. Controle social e direito penal científico. In: Estudos críticos sobre o

sistema penal. Homenagem ao Professor Doutor Juarez Cirino dos Santos por seu 70º

aniversário. Org. Jacson Zilio e Fábio Bozza. Curitiba: Editora Ledze, 2012.

MÉSZAROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

MEZGER, Edmund. Modernas orientaciones de la dogmática jurídico penal. Tradução de

Francisco Muñoz Conde. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000.

________. Tratado de derecho penal. Vol.II. Tradução de José Arturo Rodríguez Muñoz.

Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955.

MIR PUIG, Santiago. El sistema del Derecho Penal en la Europa actual. In: Fundamentos de

un sistema europeo del derecho penal. Coord. Jesús-María Silva Sánchez. Barcelona: José

María Bosch Editor, 1995.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 5ª edição. Tradução de Maria D. Aelxandre e

Maria Alice Sampaio Dória Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

________. Introdução: oitava jornada: a religação dos saberes. In: A religação dos saberes: o

desafio do século XXI. 5ª ed. Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005

________. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre:

Sulina, 2005.

________. O método. V. 1: a natureza da natureza. 2ª edição. Tradução de Ilana Heineberg.

Porto Alegre: Sulina, 2008.

________. O método. V. 2: a vida da vida. Tradução de Marina Lobo. Porto Alegre: Sulina,

2005

Page 180: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

184

________. Saberes globais e saberes locais: o olhar interdisciplinar. Participação de Marcos

Terena. Rio de Janeiro: Garamond, 2000.

MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria constitucional

I. Tradução de Peter Naumann. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1995, p. 07. Originalmente

publicada como Recht – Sprache – Gewalt. Elemente einer Verfassungstheorie I.

MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo. Estudos

sobre o direito penal no nacional-socialismo. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2004

________. Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo. Los orígenes ideológicos de

la polémica entre causalismo y finalismo. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000

________. La herencia de Franz von Liszt. In: Justiça e Sistema Criminal. Revista

produzida pelo Grupo de Pesquisas Modernas Tendências do Sistema Criminal. V. 3 – n. 5 –

jul./dez.2011.

________. Teoria geral do delito. Tradução de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.

MUÑOZ CONDE, Francisco e GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal. Parte general. 7ª

Ed., Valencia: Tirant lo Blanch, 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:

Companhia das Letras, 2001.

________. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Márcio

Pugliese. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005.

________. Assim falou Zaratustra. In: Obras completas. Tradução de Rubens Rodrigues

Torres Filho. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).

________. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. Tradução de Paulo

César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

________. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São

Paulo: Companhia das Letras, 1998.

________. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução de Paulo

César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

PALADINO, Carolina de Freitas e GIULIANI, Emília Merlini. A culpabilidade normativa.

In: Teoria do delito. Série Direito Penal baseado em casos. Org. Paulo César Busato.

Curitiba: Editora Juruá, 2012.

PALIERO, Carlo Enrico. La autocomprensión de la Ciencia del Derecho Penal frente a los

desafíos de su tiempo. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio.

Coordenação da versão española: Francisco Muñoz Conde. Coordenação da versão alemã:

Albin Eser, Winfried Hassemer e Björn Burkhardt. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004.

PASCAL, Blaise. Pensamentos. 2ª edição. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril

Cultural, 1979 (Coleção Os Pensadores).

PEÑARANDA RAMOS, Enrique; SUÁREZ GONZÁLEZ, Carlos; CANCIO MELIÁ,

Manuel. Um novo sistema do direito penal: considerações sobre a teoria de Günther

Jakobs. Organização de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri, São Paulo:

Manole, 2003.

Page 181: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

185

PEREIRA, Flávia Goulart. Os crimes econômicos na sociedade de risco. In: Revista

Brasileira de Ciências Criminais. V.12, n.15, Nov. 2004. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2004.

PREUSSLER, Gustavo de Souza. Aplicação da teoria da Imputação Objetiva no injusto

negligente. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006.

PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do

inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. In: Revista Brasileira de

Ciências Criminais. V.12, n.47, mar./abr. 2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Tradução Luís Greco. Barueri, SP:

Manole, 2004.

QUINTERO OLIVARES, Gonzalo. Parte general del Derecho penal. 3ª ed., Navarra:

Aranzadi, 2005.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução de Luís Cabral de Moncada. Coimbra:

Editora Arménio Amado, 1997.

RAFFAELE CASTALDO, Andrea. La imputación objetiva en el delito culposo de

resultado. Buenos Aires: Julio César Faira, 2008.

REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994.

REGIS PRADO, Luiz. Curso de Direito Penal Brasileiro. 10ª edição. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2011.

RESENDE, Adeilda Coêlho de. Acesso à Justiça e Justiça Itinerante. Revista Jurídica (FIC); v.

1, n. 30, pp.47-65. Curitiba: UNICURITIBA. 2013. Disponível em:

(http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/554/426). Acesso em: 09 Jan.

2013.

ROBLES PLANAS, Ricardo. Conducta típica, imputación objetiva e injusto penal.

Reflexiones al hilo de la aportación de Frisch a la teoría del tipo. In: FRISCH, Wolfgang e

ROBLES PLANAS, Ricardo. Desvalorar e imputar. Sobre la imputación objetiva en

derecho penal. 2ª edição. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faira, 2006.

ROMEO CASABONA, Carlos María. Conducta peligrosa e imprudencia en la sociedad

de riesgo. Granada: Comares, 2005.

ROMEO CASABONA, Carlos María et al. La adaptación del Derecho Penal al desarrollo

social y tecnológico. Editores Carlos maría Romeo Casabona e Fernando Guanarteme

Sánchez Lázaro. Coordenação Emilio José Armaza Armaza. Granada: Comares, 2010.

ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general .Tomo I. Fundamentos. La estructura de la

Teoría del Delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e

Javier de Vicente Remesa. Madrid: Civitas, 1997

________. Estudos de direito penal. 2ª edição. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro:

Renovar, 2008.

________. La ciencia del Derecho Penal ante las tareas del futuro. In: La ciencia del

Derecho Penal ante el nuevo milenio. Coordenação da versão española: Francisco Muñoz

Page 182: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

Conde. Coordenação da versão alemã: Albin Eser, Winfried Hassemer e Björn Burkhardt.

Valencia: Tirant lo Blanch, 2004.

Page 183: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

186

________. Política criminal y sistema de Derecho Penal. Tradução de Francisco Muñoz

Conde. Buenos Aires: 2000

________. Política criminal e Sistema Jurídico Penal. Tradução de Luiz Greco. Rio de

Janeiro e São Paulo: Renovar, 2000.

________. Reflexões sobre a construção sistemática do direito penal. In: Revista Brasileira

de Ciências Criminais. v.18, n.82, jan./fev.2010, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. 4ª edição. Rio de

Janeiro: Graal, 1989.

________. Um discurso sobre as ciências. 7ª edição. São Paulo: Cortez, 2010.

SANTOS, Humberto Souza. Co-autoria em crime culposo e imputação objetiva. Barueri,

SP: Manole, 2004.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. 4ª edição. Curitiba: Lumen

Juris, 2005.

________. Direito penal. Parte geral. 5ª edição. Florianópolis: Conceito, 2012.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na

Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

SCHEERER, Sebastian. ¿La pena criminal como herencia cultural de la humanidad? In: La

ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio. Organização da versão alemã: Albin Eser,

Winfried Hassemer e Björn Burkhardt; organização da versão espanhola: Francisco Muñoz

Conde. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004.

SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la

ciencia jurídico-penal alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad

Externado, 1996.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal

nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2002.

SUTHERLAND, Edwin. White collar crime. The uncut version. London: Yale University

Press, 1983.

TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Culpabilidade. Rio de Janeiro: Elsever, 2011.

TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3ª edição. Prefácio de Claus Roxin. Rio de

Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.

TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Caloste Gulbenkian,

1999.

TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico: comunitario, español,

alemán. Barcelona: Editorial PPU, 1993.

TUCHMAN, Bárbara W. A marcha da insensatez: de Tróia ao Vietnã. 3ª edição. Tradução

de Carlos de Oliveira Gomes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

Page 184: CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA MICHELLE GIRONDA … · relevantes, introduzindo enlevo ao resultado jurídico do injusto: os critérios de imputação objetiva. O intento de ajustar

187

VÉRAS NETO, Francisco Quintanilha; SARAIVA, Bruno Cozza. A justiça socioambiental

como fundamento contrahegêmonico a Globalização e a Mercadorização Ambiental.

Revista Jurídica (FIC) – Curitiba: UNICURITIBA. pp 94-110. v.2, n.29. 2012. Disponível

em: (http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/515) . Acesso em: 14.

Fev. 2013

VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos. V.1. São Paulo: Axis Mundi, IBET,

2003.

VILLEY, Michel. Filosofia do Direito: definições e fins do direito: os meios do direito.

Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

WELZEL, Hans. Derecho Penal: parte general. Traducão de Carlos Fontán Balestra. Buenos

Aires: Roque Depalma Editor, 1956

________. Derecho Penal Alemán. Tradução de Juan Bastos Ramírez e Sergio Yáñez Pérez.

4ª edição. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1993.

________. Introducción a la Filosofia del Derecho: derecho natural y justicia material.

Tradução de Felipe Gonzáles Vicén. 4ª ed. Alemâ. 2ª ed. Madrid: Aguilar, 1971

________. Más allá del Derecho natural y del Positivismo jurídico. Tradução de Ernesto

Garzón Valdés. Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, 1962.

_________. O novo sistema jurídico-penal. Uma introdução à doutrina da ação finalista.

Tradução de Luiz Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

________. ¿Un malentendido sin solución? (Acerca de la interpretación de la teoría finalista).

In: Estudios de Filosofía del Derecho y Derecho Penal. Colección Maestros del Derecho

Penal. Nº 14. Buenos Aires: Editorial B de F, 2004.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de Marcos G. Montagnoli.

Petrópolis, RJ: Vozes, 1944 – originalmente publicada em edição póstuma, como

Philosophische Untersuchungen, em 1953.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal. Parte general. Buenos Aires: Ediar,

1996.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal

brasileiro. Volume I. Parte geral. 7ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

ZAFFARONI, Eugénio Raul; PIERANGELI, José Henrique e SLOKAR, Alejandro. Derecho

penal. Parte general. Buenos Aires: Ediar, 2000.

ZIELINSKI, Diethart. Disvalor de acción y disvalor de resultado en el concepto de ilícito:

análisis de la estructura de la fundamentación y exclusión del ilícito. Tradução de Marcelo

Sancinetti. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 1990.