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Ç \ o i—p* 0 6 juajrez T avares TEORIA DO INJUSTO PENAL 2 * EDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA Belo Horizonte - 2002

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Ç \ o i —p* 0 6

ju a jr e z T av a r es

TEORIA DO INJUSTO PENAL

2* EDIÇÃO

REVISTA E AMPLIADA

Belo Horizonte - 2002

1 7 8 TEORIA DO INJUSTO PKNM

teoria do injusto ficaria reduzida, dessa forma, a questões meramcn te dogmáticas, desprovida de seu caráter político, que lhe dá diiu mismo e possibilita sua inserção dentro do contexto da proteção ilr direitos fundamentais.

BUSTOS RAMÍREZ, por sua vez, acolhe essa última classifica^» • e ainda acrescenta uma função, a de instrução, pela qual o*, cidadãos tomam conhecimento das normas penais334. Esta funçio de instrução, todavia, pode estar compreendida na função polítio • criminal, pela qual se assinalam as delimitações das zonas do jusio «• do injusto, igualmente como um processo de comunicação.

Deve-se, ainda, agregar que essa modalidade de comunicaç:» • não se destina a instrumentalizar o tipo como forma ideológica tl<- ensinamento ou de formação de mentalidade, porque isto escnj i.* às suas finalidades. Ao Estado não se pode outorgar o direito d<- criar, estruturar, modificar ou eliminar formas de personalidade segundo sua finalidade política, muito comum nos regimes auiou tários do nacional-socialismo e do stalinismo. Simplesmente trata de informar o que se proíbe e o que se permite, ou, no gim • da omissão, o que se determina, sob o pressuposto da lesão <m perigo de lesão sensível de bem jurídico,-nada mais.

Cumpre salientar, por outra parte, que as funções do injuM*. estão condicionadas aos elementos que o compõem, bem com<« aos processos de imputação que se processam em seu "conteiu l> •. porque não se podem projetar funções apriori, senão no contexh ■ das delimitações positivadas do poder estatal de intervenção.

Há, assim, por parte das funções, uma dependência dialetii .1 para com os elementos do injusto, daí não se poder dizer que simplesmente, o injusto tem no aspecto dogmático as funçoe-. sistemáticas, de fundamentação, de garantia ou de infonnação, sem uma indicação de como essas funções são executadas e como e.si:i< ■ condicionadas. Caso contrário, ficaríamos numa fórmula vazia, i:n> comum a certos textos legais com princípios programáticos, que jamais correspondem ao que efetivamente se aplica.

334 Juan Bustos Ramírez. Manual de derecho penal, parte general, Barcelona, I');<•) p. 159.

3O CONTEÚDO DO INJUSTO

A determinação do conteúdo do injusto diz respeito não mais à relação entre tipo e antijuridicidade, mas sim à estrutura desses dois elementos e à significação dos júízas'^de?v'afor que necessariamente são emitidos sobre a conduta criminosa. A cons­tituição do conteúdo do injusto decorre, assim, da análise dife­renciada que se deve realizar sobre os elementos que compõem o lipo e a antijuridicidade, dé modo a tomar possível a perfeita delimitação da conduta proibida ou mandada. Isto se impõe por imperiosa necessidade dogmática, que se destina a emprestar àc.nefa da decisão jurídica os instrumentos adequados à solução do ciso sobre o fato concreto. Para que isto possa ser efetivado, deve-se dividir a tarefa em duas partes. Na primeira, enfocando a estrutura e i formação, em geral, do tipo. Na segunda, a estrutura da antijuri­dicidade e os princípios gerais que devem regê-la.

í . l O HPO DE ENJUSTO

.i-1.1 A estrutura do tipo de injusto

O tipo, tomado sempre em sentido estrito, compõe-se, nor­malmente; de um núcleo, representado pela ação ou omissão e seu■ >hjeto, tendo como base a lesão a um determinado bem jurídico. A reprodução do tipo como ação “indica "que a norma jurídica

definidora do injusto é uma nonma de conduta e não uma nornu meramente de reconhecimento, na terminologia proposta por haki Como norma de conduta, deve estar associada a determinad.i finalidade: a delimitação do poder de intervenção do Estado, a qtul não pode ser alcançada sem um pressuposto material que lhe ti:u «• os contornos de estabilidade. Daí a necessidade de que se estabek-c. .1, como base da ação típica, a lesão de bem jurídico335.

Geralmente, insere-se o bem jurídico como pressuposto d<* tipo, mas na qualidade de objeto de proteção. Na verdade, não pode instituir como pressuposto do tipo a proteção de bem jurídic o porque essa proteção não possui conteúdo real. Em primeiro Iujçn não há demonstração de que, efetivamente, a fomiulação típicxi di­urna conduta proibida proteja o bem jurídico. Em segundo lugar, o\.i proteção do bem jurídico funciona apenas como mera referçm 1.1 formal, sem fundamento material. Finalmente, inserira proteção d<- bem jurídico como pressuposto do tipo significa uma opção por unu política criminal puramente sistêmica, de tomar o tipo não com.. instrumento de garantia, mas sim como instrumento de manutem ;i<> e reprodução da ordem. Este último aspecto é ignorado pd.i dogmática, que, simplesmente, aceita a finalidade pròtetiva atríbuúl.i ao tipo como dado absolutamente irrefutável336.

Caso se tome, entretanto, a norma penal não como categoiu imperativa, nos termos autoritários propostos por THON337 e sai-.

■y‘> Com razão, assim, ao impor, como pressuposto de qualquer exame do tipn. . identificação do bem jurídico que pode ser violado: Jair Leonardo Lopes. Cm * de direito penal, 2. ed., S. Paulo, 1999. p. 119.

•,J6 Zaffaroni critica, asperamente, esse sentido protetivo de bem jurídico, qui- •< quer emprestar à norma penal, ressaltando, dentre outros argumentos, que •• conceito de bem jurídico, como objeto de proteção, nada mais é do qu. "produto de uma confusão incompatível com o carãter fragmentário da lefjM.i

■çào penal e com o caráter sancionador desta’ . Assim, como o direito penal m h.< meramente um direito sancionador e não constitutivo, isto é, não cria o Ivm jurídico, mas apenas o toma de outros ramos do direito, os quais seriam, cm suma. seus reais protetores, não o poderia tomar como objeto de tutela, iii.i-.

í apenas, como forma de delimitação do poder punitivo (Derecbo penal, prni.general, Buenos Aires, 2000, p. 464).

3r August Tiion. Recbtsnorm und suojekuues Kecht, teimar, 10/8, reimpress:i< • Aalen, 1964.

seguidores, como BINDING, por exemplo, mas unicamente com o M-mido de instrumento de garantia individual, perde ela seu caráter ideológico, que, aliás, só ò tem porque assim lhe concede a• l< mtrina e passa a ser vista dentro de sua exata dimensão democrá- tu.i, que se lhe deve prescrever. Entendida a norma penal dessa (> uma, não cabe ao tipo a função de proteção de bem jurídico.

y 1.1.1 O conceito de bem jurídico

Dadas as variedades com que se apresenta, é praticamente impossível conceituar exaustivamente bem jurídico. As conceitua­das, geralmente, procuram esclarecer de forma sintética as diretri- /<s do pensamento jurídico quanto ao conteúdo do injusto e às Imalidades da norma, o que conduz a confundi-los, indevidamente,< • >m o próprio bem jurídico. Neste sentido, podemos traçar quatro^ vertentes 'conceituais: uma positivista, uma neokantiana, uma »'iUológica e uma funcionalista, as quais, entretanto, ainda que se• .iracterizem por determinada orientação, estão muitas vezes im- I uegnadas de outros parâmetros e argumentos que não correspon­di riam, no fundo, ao seu programa inicial. Esta mescla de argu­mentos se reflete, igualmente, nos autores, tomando ainda mais• onfusa a concèituação que se propõem a formular e obscurecen- flu seus reais propósitos e sua visão ideológica do direito penal. Vi verdade, a questão do conceito de bem jurídico, como funda­mento da incriminação, não pode deixar de ser o resultado de «mia escolha política, ingênua ou comprometida, acerca do que se pretende com a sua proteção. Embora, no âmbito de um direito penal democrátiro, o que realmente se~gxljã~~seja a absoluta tr.msparência do objeto lesado, como forma de comunicação mi irmativa, independentemente do engãjamentcTpÕíítico do seu miOrprete, o conceito de bem jurídico ou; pelo menos, sua déTimi- i.ieào, por meio de argumentos compatíveis ao panorama da linguagem ordinária, deve ser levado a seno, porque nele reside «< ido o processo Hp legitimacão_da norma penal.

Apenas para citar alguns dos principais representantes das veitentes conceituais acima aludidas, pode-se ver que von LISZT

182 TEORIA DO INJUSTO l’l NAI

retratava, inicialmente, o bem [urídiçojQomo interesses da vida hümãnã jüridicãrrlente protegidos338. Já WELZEL o conceituava sob dupla õptica: primeiramente, como um bem vital da comunidade ou do indivíduo; depois, como um estado spciaT desejável” 1', atributo este que recolheu de MEZGER340. MUNOZ CONDE concebe-n inserido no âmbito da necessidade de convivência, daí como pressuposto existencial de utilidade341. Dessas diretrizes, afora de JAKOBS, que nega importância ao bem jurídico e o-substitui p elo critério da validade da norma342, resultam não apenas divergências ou perplexidades dogmáticas, como também posições ideológicas quanto às suas finalidades.

Se pensamios corretamente sobre a própria origem da criação do conceito de bem jurídico, veremos - como bem ressalia HASSEMER - que os impulsos de política criminal e do próprio 'direito estatal desempenham na solução de seus problemas uiti papel tão significativo quanto suas considerações de ordem dogmática343, de tal modo que riem sempre se tenha podido diferenciar, com absoluta precisão, do objeto da ação. Na verdade, se pode dizer, além disso, que nem sempre se je m -podido diferenciar o bem jurídico dos próprios fins da norma incrimi nadora. Esse ‘ argumento é por demais relevante, porque "pela evolução do conceito de bem jurídico se pode ver que sua criaça< i não é apenas produto de uma elaboração jurídica pura, ma.s também de um contexto poíítico e econômico.

Atribui-se, normalmente, a BIRNBAUM344 o conceito de bem jurídico, em oposição à tese iluminista de que o delito constituina

-*-w Franz von Liszc. Tratado de direito penal allemão, p. 219.339 Hans Weizei. Derecho penal alemán, p. 15.340 Kdmund Mezger. Tratado de derecho penal, p. 399-MI Francisco Munoz Conde. Derecho penal, parte general, p. 65.342 Günther Jakobs. Strafrecbt, AT, p. 46.343 Winfried Hassemer. Theorie und~Soziologie des Verbrechens. Ansãtze zu einn

praxisorientierten Rechtsgutslehre. Frankfurt am Main. 1980, p. 27.J. M. F. Bimbaum. “Über das Erfordemis einer Rechtsverletzung zum Begrilii- des Verbrechens, nut besonderer Rúcksicht auf den Begriff der Ehrenkrânkunn , in Archiv des Kriminairechts, 1934, p. 149 et seq.

' > CONTEÚDO DO INJUSTO 183

t uma lesão de direito subjetivo. Para entender o porquê desta concepção, é preciso salientar que ela não teria tido êxito, não fosse :i idéia inicial de FEUERBACH, ancorada no contrato social, de afastar< i fundamento do delito da tese de que pudesse ele ser visto como uma simples violação de dever; sancionada criminalmente.

Na idéia de FEUERBACH, o delito como violação de direito subjetivo significava, em vez dê uma lesao de dever para com o listado, uma lesão aoTdirèltoTnamdüãr~3o ofendido de exercer sua própria liberdade em face da ação de outrem, quer dizer, i-ntão, que o delito pressupunha, antes de tudo, um estado de igualdade de direitos de liberdade entre seu autor e a vítima, igualdade esta que se via quebrada com a execução desse delito, ile forma que uma das partes envolvidas no conflito não mais a pudesse exercer. Com isto, subordinava-se o conceito de delito a um princípio material - a preservação da liberdade individual - independentemente dos propósitos políticos do Estado, dando lugar, também, à possibilidade de se ver no delito uma própria k-são de bens materiais e não simplesmente uma violação de dever343. Este conceito de delito constituía, nesse sentido, uma lorma_de dèlimitãcâo da incriminacãó e do arbítrio estatal na i (mfigujaçâo.. d_g_ JipQS-p.enais^_porque representava^ no campo iurídiçp, a„43je.õmpa.çãqjde retratar o direito subjetivo como sím- l>olo de demarcação do dano social que pudesse decorrer da conduta criminosa. O Esã3 i5~nao~podéria, assim,'TncrímiHãr qual­quer conduta, mas apenas aquelas condutas quHTmpTicãssênT a violacIò~3e~difèitó svibíéavõ e~conseqügntemente. qüêTmpíicas- scm um danosocial. É conhecida, inclusive, ITdüra crítica traçada por FEUERBACH T g a llu s KLEINSCHROD quanto a alguns tipos de tlelito constantes do projeto de código penal da Baviera, elaborado por este último, em especial quanto ao delito de alta traição. Segundo o § 403 do projeto, KLEINSCHROD. conceituava o delito de .ilta traição como a “ação dolosa orientada no sentido de alterar a constituição vigente”. Opondo-se a esta redação, afirmava I KUERBACH que, com tal tipificação, “qualquer ação, sem qualquer

Winfried Hassemer, ob. cit., p. 35.

184 TEORIA DO INJUSTO PENAI.

exceção, poderia constituir alta traição”, até mesmo uma ação originariamente lícita, já que essa se exauria exclusivamente no atuar doloso346. A crítica parece ainda hoje oportuna, porque a redação do projeto de KLEINSCHORD não está tão distante, por exemplo, da redação do art. 25 de nossa antiga lei de segurança nacional, instituída pelo Decreto-lei 898/69, que definia como delito “praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva”. Com apoio na sua teoria do delito como violação de direito subjetivo e, assim, construída sobre uma base material, FEUERBACH argumentava que a alta traição só poderia subsistir se, efetivamente, ocorresse um ato concreto de hostilidade que viesse a violar a estabilidade do Estado, no sentido de um dano social347; quer dizer, aplicável ao nosso exemplo da antiga lei de segurança, não se poderia caracterizar como contrário à segurança do Estado a prática de simples atos que se destinassem à guerra revolucionária ou subversiva, mas atos concretos de hostilidade que implicassem a execução da guerra e a conseqüente desestabilização do regime, da qual resultasse um-dano social.

É preciso ressaltar, todavia, que esse sentido material do conceito de bem jurídico, que hoje se desfruta como fundamento de qualquer incriminação, não havia sido despertado, propria­mente, em BIRNBAUM. Este,' na verdade, tinha outro propósito, com sua elaboração, que era justamente o de adequar a teoria jurídica do delito às normas do direito penal vigente, que cònflitavam com a idéia da violação de direito subjetivo, principal­mente nos chamados delitos contra a religião, contra o Estado ou contra a comunidade. Com a introdução do conceito de violação de bem jurídico, em substituição ao conceito de violação de- direito subjetivo, como fundamento do delito, desde que se pudesse reconhecer que, igualmente, interesses comunitários ou religiosos fossem contemplados como espécies de bens jurídicos,

546 Paul Johann Anselm Feuerbach. Kritik des Kleinschrodischen Entwurfs zu einem peinlichen Geselzbuchefür die Chur-Pfalz-Bayrischen Staaten, Parte III, p. 34 el seq., reedição a cargo de Wemer Schmid, da edição de Giesen: Tasché u. Müller, 1804, Frankfurt am Main: Keip, 1988.Paul Johann Anselm Feuerbach. Ob. cit., loc. cit.

■ > CONTEÚDO DO INJUSTO 185

ainda que se ganhasse em clareza, quanto à incriminação das respectivas condutas, se perdia - e de fato se perdeu - a vinculação dessa incriminação aos seus pressupostos de legitimidade348, que cstavam, de qualquer modo, presentes na estrutura idealizada por i-EUERBACH. Embora os regimes autoritários, por seu turno, se tenham manifestado contra a noção de bem jurídico, considerando-a um estorvo aos seus fins políticos, nem sempre tem ficado muito claro se esta noção efetivamente os prejudica nesse desiderato. Como todo conceito, o de bem jurídico só pode servir a uma autêntica teoria democrática do injusto, à medida que correspocda aos seus fins limitativos e não aos propósitos punitivos. Daí a necessidade de sualorm úlãpb dentro de um sentido de linguagem que expresse, na su a ^ ropnã^TigSrfTêlírãBofãçãõy os contornos exatos das zonas de intervençlo do EsHdõ,lTpãrtir'3 à crítica dessa mesma jnren/ençãn, çnh n grêssu post5 de sua legitimidade.

A análise da evolução histórica desse conceito pode, em certa medida, contribuir para sua reformulação, ao demonstrar como esse conceito se amolda aos vários segmentos da evolução da política criminal é do pensamento jurídico em geral. Não se deve descartar, nessa evolução, como bem ressalta NILO BATISTA, a identidade da noção de bem jurídico, como bem material tal como na proposta inicial de BIRNBAUM, como conceito de mercadoria, elevado, na época, à condição essencial do capitalismo industrial, em franco desenvolvimento349. Da mesma forma que a criação do processo de composição, tão caro ao direito germânico primitivo, pode ser considerada, em certo sentido, um reflexo no mundo jurídico do sistema de trocas de mercadorias, o bem jurídico nasce justamente no contexto da grande produção e do incremento do consumo e. afora considerações de ordem política, também sofre,

Sobre isso, ver a magnífica abordagem de Klaus Günther, “De la vulneración de un derecho a la infracción de un deber. Un 'cambio de paradigma’ en el derechopenal ?”, in La insostenible situaciõn dei derecbopenal, tradução espanhola sob coordenação de Carlos Maria Romeo Casabona, Granada, 2000, p. 489 et seq.

v’9 Nilo Batista. “Ocupações do MST e propriedade”, in Boletim do IBCCRIM, 95, outubro 2000, p. 7.

186 t e o r ia DO INJUSTO I I »>

.jaa sua conceituação, o influxo desse processo econômico. NeMc sentido, é importante também observar, ao estiío da crítica de makx à chamada fetichização e, depois, à metamorfose da mercadoria'v>. inserida na evolução do capitalismo, as alterações que, posten< >i mente, se vão procedendo no conceito de bem jurídico que gradativamente, perde seu substrato material (deixa, portanto. il>- ser uma mercadoria real) até o ponto de se inserir como meu» pressuposto formal da norma incriminadora, como na teoria dr BINDING, correspondendo, daí, ao capitalismo financeiro (os tíiu los de crédito são, por si mesmos, mercadorias), e cheg;ir .1 confundir-se com a noção de função, já agora no capitalismo de serviços. A visão pós-moderna do funcionalismo, que propugna. enfim, em prol da substituição da noção de bem jurídico pela de estabilidade normativa, pode ser considerada, dentro de certi»-> limites, também um reflexo dissimulado dessa evolução da vida material, agora desprovida de propósitos edificantes e simplesmeu te satisfeita com a manutenção de regras de organização. N<> mencionado processo de fetichização da mercadoria, MARX procu rava demonstrar como o valor de uso dos bens postos em circul;i ção, aliado aos interesses de consumo de seus adquirentes, ocultavao seu valor de trabalho e, assim, as contradições havidas no seu processo de produção. Se tomannos o bem jurídico como objeto de proteção e não como condição limitativa da incriminação, parec e

/perfeitamente cabível a analogia com esse argumento de MABXjTal (como na fetichização da mercadoria, pela qual se ocultam a.s relações de produção, ao retirar-se do tipo de delito a exigência de um dano social decorrente da violação de direito subjetivo e justificá-lo tão-só com a violação de um bem, que poderia sei confundido com a própria finalidade da norma, se legitima a incriminação, sem mais, por meio da simples legalidade. Seguindo a trilha dessa evolução, podemos entender, então, às correntes de pensamento que se dedicam a retratar o conceito de bem jurídio > sem se desvincularem da estrutura formal da norma, a começar d<> positivismo.

150 Karl Marx. O capital, tradução brasileira de Reginaldo Sant'Anna, Rio de Janeiro. 1968, livro 1 , vol. 1, p. 79 e 116.

• >NTEÜDO DO INJUSTO 187

Não se pode traçar, com precisão, o conceito positivista de («•in jurídico, quer no plano puramente jurídico, quer no plano

>i iológico, sem uma definição dos contornos da ciência do• luvito, segundo aquela concepção. Todo o arcabouço científico «l<> positivismo já foi esclarecido no capítulo 2.2 da primeira parte, «•mi que foram salientados os diversos objetos empíricos que dão lunar às distintas propostas de sua apreensão no campo jurídico. \>|ui basta que se considere sua postura fundamental, a de que ioda norma incriminadora deve possuir um antecedente causai.I Me antecedente causai poderá ser a vontade do Estado, ou da .uKoridade, como no positivismo jurídico propriamente dito, ou< < mdições de vida, como no positivismo sociológico.

A noção de bem jurídico varia, conforme essas duas vertentes do positivismo. Segundo o. positivismo jurídico,- somente a lei expressa os objetos jurídicos, porque encerra a vontade declaracla do Estado. O bem jurídico sericiuz. aqui, a. um elemento da própria norma, que tanto pode ser sua finalidade quanto a ratio i le seíi sistema. Representante deste posicionamento éQlNDING^. Segundo o ^positivismo sociológico ou naturalista, derivado, por desdobramento, da es.cola histórica, o direito tem sua fonte não :i penas na lei, mas principalmente no cósmmêToilTíõ èspIrito dol H)vo, Ç Q m o^ _sin tÊ tizad .Q tyon jLadéj^eraiT ^ axT ^ estlto mntratualista ou organicista. A noção de bem jurídico çojnp interesse juridicamente protegido, taTcomo na proposta de^ON) i ISZ3V* é produto dessa idéiã "privatística dominante no século passado, que se intrometeu na formulação da teoria do injusto ilesde VON JHERING e constituía um pressuposto indécíinável umbém do desenvolvimento da vida material. Aqui, o marco penal encontra suas delimitações no momento subjetivo, quer dizer, na materialização do exercício da capacidade de contratar por parte do sujeito, de modo que, protegendo-se o interesse, se

,íl KarI Binding. Die Normen und ibre Übertretung, Leipzig, 1922, vol. I, cap. I, p. 188.

188 TEORIA DO INJUSTO I I

concebe a vida social como uma resultante de pretensões inili\ i duais, as quais, dependendo de sua importância, se vêem ani|u radas pela norma de direito público. Não obstante a origem privatística desse conceito, deve-se reconhecer que há aqui, m- bem que ingênua, uma idéia utilitarista da norma penal sobiv .1 base de uma realidade. O interesse não é algo imaginário, é nli.;-» perceptível, assim, por exemplo, a manutenção da vida, da intcuu dade corporal, do patrimônio e sua possibilidade de transmi.s.s.n i. da reputação como expressão da própria individualidade no sn>> da comunidade, da incolumidade pública, como estado social <l<- estabilidade diante de perigos, ou da própria confiança em dom mentos ou objetos de caráter público, que sustenta a fé públio

A existência de fundamento utilitarista para o objeto tlc proteção da norma incriminadora abre caminho para considcr.ii VON LISZT como um positivista naturalista. Embora sustente, cin seu tratado, que “é a vida e não o direito que produz o interesse ", adverte que “só a proteção jurídica converte o interesse em lx-m jurídico”3’2, apresentando-se, com tal assertiva, como um repiv sentarite do iluminismo, pelo qual o direito não teria outro escopo, senão o de regular as relações interindividuais. Contudo, ao definii os bens jurídicos como as “condições vitais da comunidade est:i tal”353, as quais se manifestam por meio da norma jurídica, como expressão, da vontade geral, põe-se, então, na trilha de um org:i nicismo. Há que distinguir no pensamento de VON LISZT, porém, duas situações: a primeira diz respeito à origem do bem jurídico, isto é, do interesse; a outra, às razões da própria incriminação. Assim, por um lado, manifesta VON LISZT o entendimento de qm-o interesse, que vai dar lugar ao bem jurídico, é pré-existente :u* conteúdo da norma: a esta cabe apenas acolhê-lo como seu objeto de proteção, em se tratando de uma condição vital" cl:i comunidade estatal. Por outro lado, não indica o porquê da esco lha, por parte do legislador, daquele e não de outros interesso como bens jurídicos, sendo-lhe indiferente, portanto, as razõe.s da incriminação. Esta é a crítica que lhe faz HASSEMER, par:i

352 Franz von Liszt. Tratado de direito penal alemão, p. 94.3,3 Franz von Liszt. “Der Zweckgedanke im Strafrecht", in ZStW, 3 (1883), p. 1-47.

• >NTEÚDO DO INJUSTO 1 8 9

<|iicm esta posição demonstra sua filiação à estrutura /positivista, i(t ic aceita, empiricamente. a existência do interesse, sem qualquer< i insideracâo de valor acercã~3ê~suã sigmficaçao e da legiumidade <l<> Estado de elevá-lo à~cãtegona~cle bem jurídico'35,1. Este segundo -•ignifícado do bem jurídico, embora possa ser respaldado, hipote- i u a mente, como experiência jurídica, assinala, por excelência, uma visão normativa de sua realidade, porque se desgarra de seu mi bs trato empírico e abre caminho à sua criação a partir de um ato >lc autoridade.

3.1.1.1.2A

O positivismo, na forma de um normativismo desprovido de v.ilor, ainda que se estruture, politicamente, de modo diverso, não i-stá muito distante do neokantismo. Com o neokantismo se inaugura, porém, uma outra fase de evolução política, êrrTque. a medida individual cede lugar a posições ou situações preferen-> iais. Elimina-se definitivamente o sujeito e se trabalha còm a< H >çào de totaTrcTade7~decorreãte de um puro juízo normativo, aparentemente neutro, mas em "geral de perfil autoritário, que• >!>tém seu coroamento com a definitiva substituição da noção material de bem pela noção de valor, não de um valor individual, mas de um hipótêüc5~WlõrcuItúrâl, quêTnascé~e vive nos impera- * t i vos ê proibições d~á~ríõrma. Na acepção de RICKERT, a totalidade dos valores e sua conexão sistemática é que determinam a vida Immana, que se converte, assim, em vida humana cultural355, seguindo esse mesmo sentido, MEZGER faz coro com HONIG e< \prime o bem jurídico, em síntese, como um valor que se nlentifica com a própria finalidade da norma, da qual depende para sua existência, ao mesmo tempo em que o considera elemen-io de todos os pressupostos do complexo total de cultura do qual emana o direito356. Vê-se que essa idéia -de fazer derivar o bem

Winfried Hassemer. Ob. cit.,p. 40.' Henrich Rickeit. “Thesen zur System der Philosophie”, in Neukantianismus,

Stuttgart, 1982, p. 174 etseq.' ■* Edmund Mezger. Tratado de derecho penal, cit., tomo I, p. 402 e 406.

190 TEORIA DO INJUSTO I I

jurídico da própria elaboração normativa, que expressa o compl>- xo cultural, coincide com a proposta do positivismo jurídico <l<- fazê-lo apenas um pressuposto formal da incriminação. Daí m i compreensível tratar-se o pensamento neokantiano dentro «!>• ideário positivista, que trabalha com os dados existentes na oni< n> jurídica, sem questioná-los. A perquirição acerca do bemjuridu'> em cada um dos delitos, portanto, que sempre chama a atenÇ.n* nos manuais ou nos comentários do Código Penal, se limita a di/i-io que, na realidade, o legislador quer proteger ou incriminar. Kv-.i metodologia garante a aplicação da norma incriminadora mui nenhum questionamento acerca de sua legitimidade, valendo bem jurídico como mero exercício retórico ou marco de referên< 1.1 classificatório, isto é, só serve mesmo para possibilitar, sistemati< .1 mente, a classificação dos delitos na parte especial dos código-, penais e fornecer aos comentadores assunto para sua interpretaç;:i< • desde que respeitada a incolumidade da ordem jurídica. Convim não confundir, todavia, a concepção de MEZGER, como represei 1 tante tardio da visão neokantiana, com a de MAX ERNST maykk. igualmente um puro adepto daquela orientação filosófica. Nu capítulo 1.2.1.2 da segunda parte, já se havia salientado ess.» distinção. Aqui basta recordar seu ponto essencial. Contrariamenir a MEZGER, entende MAX ERNST MAYER que a noção de bem jurídiro não se desprende da noção de valor. Há, portanto, uma nítid.i diferença entre o bem jurídico e a finalidade da norma. Por bem jurídico até se poderia conceber, como fazia VON LISZT, o interesM- juridicamente protegido, mas se deve ressaltar, todavia, que ank-v mesmo de a ordem jurídica incorporar determinado bem com<> seu objeto de proteção, as normas de cultura já o teriam feito.v' Este pensamento de MAX ERNST MAYER, independentemente ili sua filiação filosófica, reflete sua postura liberal, em oposição :is teses que se seguiram e que deram lugar, por meio de um processo de corrupção ideológica de seus intérpretes, como n<> caso de MEZGER, à fundamentação de um Estado fascista358. .Com :i

357 Max Ernst Mayer. Normas jurídicas y normas de cultura, tradução castelhana tl<- José Luiz Guzmãn Dálbora, Buenos Aires, 2000, p. 108.

35K Sobre isso, com elucidativo material, Francisco Munoz Conde, Edmundo Mez^n V el derechopenal de su tiempo, cit., p. 27 et seq.

. «MTEÚDO DO INJUSTO 191

dependência dr> ronrpim He bem iurfdico às normas de cultura, «nucebidas como um substrato prê-jurídico de qualquer processo legislativo, já começa a delinear-se sua ontologicidádè.

s ' \U .1 .1 .3 A visíjo ontológica ^

Na concepção ontológica dejwELZElJo bem jurídico conserva ■.eu sentido de objeto de proteção da norma, tal como no neokan- hmho, mas se vê substituído, em grau de prefereiSã~~pèlos . Iiamados valores éüco-sócíãlsl Para chegar a esta posição, w elzel m ga, em primeiro píãriõ7q'üêruma proibição, ou um comando, possa resultar exclusivamente de um determinado poder externo, <|ucr poder de Estado, quer poder divino, ou de hábitos sociais n petidos359. A origem das determinações ou proibições é encon- tcida num axiomático dever incondicional transcendente, ao estilo k ii ntiano do imperativo categórico, mas vinculado ao sentidõ que >.e deve dar à ação humansP^TEste sentido, pelo qual se manifesta i> imperativo, é incorporado à consciência de cada um como um verdadeiro projeto sensível, ou modelo de ação. Este projeto não i'tinstitui, assim, um elemento da ação, mas o repositório de dados m ibre o conteúdo do dever, pelos quais o homem procura esclare-• cr o sentido de seu “ser no mundo” e interpretar os fins de sua i onduta, segurido as orientações de valor. Como esse projeto não pode ser conhecido, de modo absoluto, porque nem sempre é .uessível a todos, em determinadas condições históricas, o ho­mem só pode tomá-lo em consideração transformando a transcen­dência dos valores em imanência de sua própria consciência e i:izão361. Isto significa, pois, que a questão do dever não pode estar dissociada da pessoa, sobre a qual repousa a responsabílida- i le por seu desatendimento362. Como os valores ético-sociais serao sempre valores-de--QrientaçãoZ5e^conciuta e não derivados do sucesso de eventos ma renais causais, constituem seu dado exis­

vn Hans Welzel. Naturrecht und materiale Gerecbligkeit, Gõttingen, 1957, p. 237Haas Welzel. Naturrecht und materiale Gerecbligkeit, cit., p. 238.Hans Welzel. Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, p. 242.Hans Welzel. Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, p. 329 « 241.

192 TEORIA DO ÍNIUSH ■ ri

tencial tanto o dever transcendental, ao qual estão subordinados r ■ ■ qual, desde logo, se toma imanente na consciência e na razão <l<> ator, quanto, por conseguinte, a condição deste como pc.wu responsável. Embora a pessoa responsável se veja integrad;i iu condição de existência desses valores, não são eles produio <!<• um ato voluntário ou arbitrário do homem, mas estão condi* • nados empiricamente a três aspectos do ser, sem cuja significn .i> ■ seria impossível pensar num projeto social: a) a falibilidade íím< 4 do homem; b) sua diferença sexual; c) sua sociabilidade, qm-t dizer, sua referência a outros homens e sua recíproca depencU u cia363. Em conseqüência desses aspectos, situam-se, como elenu-n tos básicos de qualquer projeto social de proteção, além 11.» pessoa, as instituições do patrimônio, da família e da comunidndr política. Destarte, uma ordem social juridicamente organizml.i deve, antes de tudo, orientar seus cidadãos para que incorporem na sua consciência e, conseqüentemente, nos seus projetos ilr ação a obediência ao dever, dentro de uma decisão de valor em torno da proteção daqueles pressupostos elementares relativos .1 pessoa, ao patrimônio, à família e ao Estado364, os quais constitui riam, em última análise, os valores ético-sociais elementares.

O ontologismo de WELZEL representa uma mescla dos enim ciados neokantianos e da filosofia de valores, sem que assum.i uma posição definida em favor de uma ou de outra tese. Aqm. ressalta a existência de. um imperativo categórico.transcendente, que constitui o fundamento da ação - no sentido, portanto, d:i Escola da Marburg mas cujas normas não se orientam pelos princípios da universalidade e dignidade da pessoa human;i. senão por um projeto social de proteção de pressupostos elemen tares de sua existência, tratados como valores ético-sociais, por tanto, como dados ônticos, ao estilo de MAX SCHELER. Convém demonstrar a identidade, por um lado, e a contradição, por outro, destes dois posicionamentos, desde a tentativa, por parte cU- WELZEL, de rediscutir um novo programa de direito natural como

363 Hans Welzel. Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, p. 244 e 245.364 Hans Welzel. Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, p. 252 e 253-

>\ ITiÜDO DO INJUSTO 193

iumlamento à sua teoria do bem jurídico. Enquanto WELZEL trata «»•> valores elementares - os valores ético-sociais - como valores «k-i-orrentes de uma totalidade, engajada naqueles pressupostos rntpíricos da pessoa humana, e de sua sociabilidade, MAX SCHELERl.i li >s proceder, porém, da própria coisa365, no sentido como era «Ir.tiizado por HUSSERL, de que as normas da lógica não seriam mumas da razão, mas teriam seu fundamento na lei dos próprios <>l>i<.-tos que queriam regular366. Com isso, a apreensão desses x.ilores se faria normalmente pelos modos tradicionais do conhe- . micnto, isto é, quer por meio da intuição, quer pela forma da I* acepção, quer pela intuição sensível ou insensível, numa unidade iieíproca de coincidência entre a imagem e o pensamento367. A i> »i:ilidade idealizada por WF.LZF.L_ ao contrário, está embutida na <* < insciência, como forma deimanência de uma lei moral transcen­dente, que cada um tem im~cónta"ao mánífeitar seu projèto~3e a ao. Diante do subjetivismo do enunciado welzeliano, é fácil< ■ mipreender porque trata a questão do bem jurídico de modo M iundário, como um desdobramento ora naturalístico, ora normativo dos valores ético-sociais. É que sendo imanente à consi irncia de cada pessoa a obediência a um dever geral de respeito a esses valores ético-sociais, a proteção jurídica se confunde com a proteção moral, não havêndõ^necessídadê^Tüvez, apenas uma necessidade retórica - de identificar os dados materiais do objeto de proteção, veiculados como bens jurídicos. Com tal postura, a~hõçâo< le bem iurídicõ~~peFde_~su6sEnaãIídãâ XZj^oteçãcTde valores ei ico-sociais nada mais é do que a incriminação da anti-sociabilidade.■ I.ií não ser incoerente que seus adeptos venham a conceituar o l>em jurídico como um estado social, ou seja, uma determinada . >rclem, que se impõe como bem vital do indivíduo e da comuni­dade. É percuciente, neste sentido, a segura ponderação de II AREZ CIRINO DOS SANTOS, seguida por NILO BATISTA, de que no

Max Scheler. Idealismo ~ realismo, tradução castelhana de Agustina Schroeder de Castelü. Montevideo, 1962, p. 32.Edmund Husserl. Investigaciones lógicas, tradução espanhola de Manuel GarciaMorente e José Gaos, Madrid, 1929, p. 8.

v'- Max Scheler, ob. cit., p. 31.

194 TEORIA DO 1NJUST<) ri ■ •».

fundo, em uma sociedade dividida em classes, o direito penal i-mA protegendo relações sociais, interesses, estados sociais ou val<u< » escolhidos pelas classes dominantes, ainda que, sob o critério «Ir* sua universalidade368, o que implica igualmente, por um lado. <• fortalecimento do descrédito desse conceito como fundaim-m.» protetivo e, por outro, a possibilidade de sua crítica social. Indepeu dentemente de poder servir à discussão em tomo da fidelidade. < w não, do legislador aos imperativos de proteção dos valores éiim sociais e, assim, subordiná-lo a uma ordem de valor e não simples mente à imposição normativa, o que implicaria, de certa fomi.i uma contraprova de legitimidade,^o grande problema que apn- senta o ontologismo é de imprimir ao direito penal um contendo programático de orientação de condutas e deixar de concebé !•> dentro de suas limitações e garantias. Ao lado da instabilidade < l< ■ processo de descobrimento desses valores ético-sociais, não muii< > claramente definidos, o direito penal pode ser usado, conforme ■ ■ destino político que se dê à incriminação, como instrumento ideológico dos mais perigosos. Basta que se imprima aos valores ético-sociais conteúdos semelhantes ao sadio sentimento do pov< > ou à consciência coletiva, ou à vontade geral da nação, on moralidade pública, para que se instaure um regime de terror, sem fronteiras e ontologicamente legitimado. De qualquer forma. >> conceito ontológico de bem jurídico corresponde nitidamente :io

Estado de bem-estar social, no qual o processo de geração de riqueza se vê associado a um fundamento ético, de sua base material, que cria a expectativa de que possa ser repartido poi todos, como bem vital da comunidade.

3-1.1.1.4 A visão funcionalista '

Diversamente da postura ontológica, já agora sob os in f lu x o s

de um Estado mínimo, cujas tarefas essenciais se encontram, em grande escala, privatizadas, o funcionalismo enfrenta a questão d< ■

368 Juarez Cirino dos Santos. Direito penal, a nova parte geral. Rio de Janeiro, 19* ' p. 23; Nilo Batista. Introdução critica ao direito penal brasileiro, Rio de Jancim. 1999, p- 116 .

* ( 1NTEÚDO DO INJUSTO 195

U m jurídico, partindo da idéia de que o Fim do direito penal está Miuado na estabilidade da norma penal, como instrumento_ade- «liuido à manutenção do sistema. Sob éstã~perspectiva, podem ser s(. lecionados diversos modelos funcionais, desde o modelo< ihemético até o mqdelo mais ortodoxo de JAKOBS. Os enuncia-• l( >s gerais desses diversos modelos já foram perfilados no capítulo1 1 da primeira parte. Aqui, interessa apenas o tratamento que

oses modelos dispensam aos bens jurídicos, ou aos fins de (uoteção da norma que, para muitos, se vêem confundidos com .K|iieles. Para evitar uma exposição casuística, podemos reduzir os iliversos modelos funcionais a três grupos: o estrutural, o funcional I MÓprio e o funcional impróprio.

Ao primeiro grupo se associam as posições que entendem ser .1 nonma penal um instrumento de controle social, pelo qual se .issegura e, ao mesmo tempo, se legitima o autocontrole do poder I«ilitico. Esta legitimidade, contudo, está condicionada ã manutenção i.lc um estado de estabilidade, que pode corresponder aos funda­mentos da convivência, ou à simples organização do sistema. Como •i norma penal tem como escopo exercer o controle social, é I >i eciso que seja comunicada a todos em um fluxo permanente de imposições ou proibições, as quais devem ser aceitas e atendidas |K-la comunidade para impedir as perturbações do sistema. As I >erturbações Çinput) do sistema, entretanto, são necessárias à pro- ilução de um processo de reação (.outpui), que se executa me- ili;inte a imposição de uma sanção, que adquire legitimidade tão-só tom o fato de que tenha de ser aplicada em decisões dogma- tu nmente fundamentadas. Com isso, garante-se a reprodução do Msiema, a sua estabilidade e, socialmente, a convivência. Essas idéias i. orrespondem, em parte, à posição de MUNOZ CONDE, que se situa iiuma esteira giratória, entre as exigências de uma realidade social, de um lado, e as idéias funcionais, de outro, na relação sistêmica tk- input e output, isto é, os conflitos (inpui) geram a necessidade ik- uma intervenção (outpui) sob o pressuposto de utilidade. Esta utilidade, por sua vez, não implica desatender à realidade social e existencial da pessoa humana, mas é apenas um delimitador do <|iie deve e do que não deve ser protegido. A vinculação ao

196 TEORIA DO INII M-

ideário funcional, assim, não afasta MUNOZ CONDE de «.•nit-n.lU-.H como necessários para a convivência alguns pressupostos cmm. *» ciais que, conforme sua utilidade, são conceituados coni<> U m» jurídicos, no sentido de que a “pessoa necessita para sua realização e o desenvolvimento de sua personalidade na ' ■»<• social”369. Conceituando o bem jurídico sob esta óptica exisu-n. > i aproxima-se MUNOZ CONDE de uma visão crítica, na medúl.i • que submete também aos mesmos pressupostos os bens jin u l>. coletivos e descarta se possam elev2 r a essa categoria sim| S t interesses de classe ou de políticas estatais370.

Ao modelo funcional próprio correspondem, basiam» nu as propostas de JAKOBS. que panem do pressuposto de <|n. t norma penal só interessa assegurar a expectativa de uma comlm* correta. A conduta correta seria aquela que não implicasse unv» decepção de expectativas, daí se situar num círculo tautolóv.i. Ainda que não descarte expressamente a teoria do bem juruli.. ao fazer-lhe algumas concessões relativas à sua supremacia s«.|.:ia teoria da danosidade social, JAKOBS procura dar-lhe uma .........conceituação. Em vez de tratá-los como interesses ou pressui >•tos existenciais, identifica os bens jurídicos com a validade ....... .das normas, das quais se possa esperar a proteção dos bens. funções e da paz jurídica371. Ao reformular o conceito de 1»•»» jurídico para indicar que por tal se deva entender a validade lan. .* das normas, regressa à velha proposta de MEZGER de na. diferenciá-lo de seus próprios fins de proteção. Mais radical mostra, neste setor, AMELUNC., para quem a teoria do bem juridn.<- é simplesmente inútil, devendo ser substituída pelo conceito tl> danosidade social372. Embora seja correto associar-se todo o sisiv ma normativo à danosidade social produzida pelo delito, > •.

369 Francisco Munoz Conde. Derecho penal, parte general, 3. ed., Valencia, 199f\ |> 63 et seq.

570 Francisco Munoz Conde. Ob. cit., p. 66.371 Günther Jakobs. Strafrecht. AT. 2. ed.. Berlin/N. York. 1993. p- 44 et seq.372 Knut Amelung. Rechtsgütencbutz und Schutz der Gescllscbaf Frankfurt :»»

Main, 1972, p. 393.

............ DO INJUSTO 197

iu lonalistas utilizam esse critério, meramente,- como princípio formador e não como fundamento material da incriminação.

O modelo funcional impróprio se associa à teoria de ROXIN, tf (| uer revitalizar o conceito de bem jundico a partir de uma m- tle polítíca criminal ancorada nos preceitos da Constituição,

mu) restrição ao poder de punir. A püar de dar a entender, h i i ; i interpretação iluminista, que õ^oncèitoTlêfl5(^iurídicò 'nao

íflMr ser dissociado do pressuposto de liberdade que cerca a jV -Miu humana. concíurquè~, riòfundo, otem nJridicò serve para

in.mutenção do sistema. Este pensamento eclètrco^dêflui de sua j|n< ipria definição de bem- jurídico como “dados da realidade ou *l< i n minados objetivos, úteis ao funcionaménto do sistema, ou ao liuli viduo, e ao seu livre desenvolvimento 'nos" limítHS" de~um *»Mrina global, estruturado sobrê~ãT>áse dé represénfação desses (uis‘.573 Sustentando sua definição na Constituição, admite qüe"o v i 11 cito de bem jurídico possa derivar tanto de dados anteriores i lei penal - mas não anteriores à Constituição - quanto de «Irwres criados por elã mésmã.~ErnBõrã o conceito de ROXIN IMissa ser posto em discussão, porque - ao estilo neokantiano - »<• deixa levar pela normatização globalizada, ao assentar-lhe kinci base puramente sistêmica, caminha, em vez disso para a 1 < mstrução de uirt-sistema de garantias, ao desvincular dajxótF-'" \.m de bem jurídico a mera proibição de condutas “imorais, a i-Miieção de fins puramente ideológicos e todos qs preceitos• liscriminatórios, bem como ao buscar limitações ao poder de pmiir na própria, evolução dõ grau dé~utilidade dos dados e dos ■'I ifctivos que-servem-de-substrato ao bem jurídico374.

1.1.1.1.5 Uma visão crítica

A exposição das diversas alterações que se produzem na ii< içào de bem jurídico, a partir do positivismo até o funcionalismo, wm demonstrar que seu conceito depende do rumo tomado pelo

: ' Claus Roxin. Strafrecbt, AT, cit., p. 15.Claus Roxin. Strafrecbt, AT, cit., p. 16 et seq.

198 TEORIA DO INJUSTO H '.v .

poder punitivo, em face das modificações estruturais havidas tu sociedade e no Estado. De uma sociedade liberal-individualistn .n<- a sociedade da comunicação pós-modema, o que se observ:i <■ que a noção de bem jurídico vai diluindo gradativamente mu

«^-substância material, até culminar praticamente na sua eÜminav.i<> LUIZ REGIS PRADO bem assinalou a diversidade de todas as defim ções e, percebendo o perigo de uma radical substituição da m vi.. de bem jurídico pela de validade da norma, se associou .i<> pensamento de ROXIN para ressaltar ser praticamente impossível sua conceituaçâo fora do contexto constitucional em que m assenta a nonna jurídica, daí entender por bem jurídico n:i<. apenas um valor abstrato, mas um valor concretizável decorra u< da realidade social e subordinado às suas condições375. Perceben­do a trama de todas essas concepções, já havia anteriormente s<- .manifestado ZAFFARONI em favor de uma perspectiva pessoa! do

. bem jurídico, vendo-o como a “relação de disponibilidade de mu sujeito para com um objeto"37 .

O bem jurídico não se confunde, assim, nem com os inten-s ses juridicamente protegidos, nem com um estado social represei i tativo de uma sociedade eticamente ideal, nem ainda com m<.-t.i relação sistêmica, e tampouco pode ser identificado como umj função integrada ao fim de proteção da norma.

Bem jurídico é um elemento da própria condição do sujeiii ■ e de sua projeção social, e nesse sentido pode ser entendido com< ■ um valor que se incorpora à norma como seu objeto de prefeivu cia real e constitui, portanto, o elemento primário da estrutura d< > tipo, ao qual se devem referir a ação típica e todós os seus dem:ii-.

375 Luiz Regis Prado. Bem jurídico-penal e Constituição, S. Paulo, 1997, p. Também^cof. uma posição garantista: Gonzalo Fernández, “Bien jurídico \ principio de culpabliidad”, in Derecho penal hoy, Buenos Aires, 1995, p. I et seq.

376 Eugênio Raúl Zaffaroni. Derecho penal, pane general, Buenos Aires, 2000. p 466;ldem, Manual de derecho penal, México, 1986, p. 410; Idem. Manual il.- direito penal brasileiro, S. Paulo, 1997, p. 464. Igualmente, vendo o bem jurídii • ■ dentro de uma perspectiva dialética sujeito-sociedade: Lorenz Schulz, “Sttafro In ais Rechtsgüterschutz - Probleme der Mediatisierung am Beispiel õkoiogisclu i Güter". in AufgeklãrteKriminalpolitikoderderKampf gegen dasBõse?. Franklmi am Main, 1998, p. 236.

( 1NTEÚDO DO INJUSTO 199

«■imponentes. Sendo um valor e. portanto, um.objeto de prefe- uncia real e não simplesmente ideal ou funcional do sujeito, o lu m jurídico condiciona a validade da norma e, ao mesmo tempo, Mibordina sua eficácia à demonstração de que tenha sido lesado-^L ou pósto em perigo. Por isso sâò inválidas normaslncriminadoras •.cm referênciàliirel2rã'qüãlquer bem jurídico. nem se admite sua ■iplicação sem um resültãdõ^e dãrícTou de perigo a esse mesmo tx-in jurídico. A existência de um" bem jurídico e a demonstração <U- sua efetiva lesão ou colocação em perigo constituem," ãssím,I 'i cssupostos indeclináveis do ffllusto pe~riãT

A identificação do bem jurídico como valor, tomado no vntido de objeto de preferência do sujeito, cumpre sua função ili limitadora, não querendo dizer que o tipo de injusto deva estar \mculado a um sistema material de valores ao estilo de MAX si :i ieuer e n ico lai h artm ann , que os concebem como referências i >! ijetivas e independentes do sujeito377, ou ao modelo neokantiano,«pie identifica valor e norma. Seguindo a definição de HABERMAS, pudemos dizer que norma e valor se diferenciam basicamente em i.u e de seus pressupostos: a primeira se vincula a uma situação de ilrver; o outro, a uma finalidade378. Para se entender realmente a << instituição do bem jurídico, não se pode partir de que sua I >i < >teção se insira como um dever, porque estaria ele sendo confun- - tlulo, então, com a própria norma, o que o retrataria como mero iii ibuto formal e nâo uma condição material de sua validade.

O bem jurídico na qualidade de valor e. conseqüentemente, inserido no amplõ~áspêctõ da finalidade da ordem Jurídica “cumpre i lunçãcTdeprotê^õ" M õ délé^^ da pêssõãlíumãha,■ |ikj é o objeto final de protèçãcTdã"ordem ]urícfica !sto significa <iuc o bem jurídico só vale na medÍ3ã"em que~se iriSirã como• ■'lijeto referencial de proteção da pessóã7põís so nesta condição é i|ne se insere na norma como vãfori...............

Com outro raciocínio, na órbita de sua proteção, para de­monstrar que todos os bens jurídicos se subordinam ao mesmo

Uma síntese desse pensamento pode ser vista em José Silveira da Costa, Max Scheler, o personalismo ético, S. Paulo, 1996, p. 39 et seq.

’ " lürgen Habermas. Faktizitãt und Geltung, p. 312.

2 0 0 TEORIA DO 1NJU.VK • i :

fundamento, também neste sentido se põe a observação de HA.sm v< k de que. “...bens jurídicos universais somente requerem proiit,.*" como condição da possibilidade de proteção dos bens juridi..»« individuais, os quais, por isso, possuem uma função orieniadi .!* Deste modo, o fim de proteção dos bens jurídicos é a reuliAi>k.»<*

* da pessoa individual, sendo o interesse geral apenas uma t i.*|<•* deste rumo”379.

Entendido como valor e não como dever, é o bem jumli. >« pois, reconduzido à condição de delimitador da norma. ! >condição delimitadora é que assinala a característica essencúii bem jurídico e deve ser levada em conta em qualquer circunsiãi h :» ainda que sob a idéia de subordiná-lo aos preceitos constitucion.n

Embora sob outro contexto, mas levando em considera». .1. igualmente, a subordinação de seu conceito aos ditames da Con- tituição, esse mesmo raciocínio foi bem esboçado ainda • DOLCINI e MARINUCCI, que concluem, em oposição a toda fornu autoritarismo legalista e diante dos movimentos em favor de im.> acentuada repressão penal sob o manto da proteção de U n, jurídico, não haver obrigatoriedade constitucional explíciia >!• incriminação para a salvaguarda de qualquer bem jurídico, sal\- quando demonstrada sua estrita necessidade380. O mesmo :u>:»> mento levou PAULO DE SOUSA MENDES a afirmar que a importam u do bem jurídico, por maior que seja, em face do princípio • i.» subsidiariedade, não pode implicar a criminalização da condm- que o lese ou o ponha em perigo, porque a Constituição, u* verdade, apenas deve encarregar-se de delimitar o âmbito d.i incidência penal, mas não de impor criminalizaçòes3m.

'70 Winfried Hassemer. Theorie und Soziologie des Verbrechens. Ansãlze zn rm. • praxisorientierten Rechtsgutslebre. Frankfurt am Main. 1980, p. 222; da iik--.ii . forma, vendo os bens jurídicos como relações sociais concretas, que nasivm própria relação democrática, como uma superação do processo que m l.i • desenvolve, Tadeu Antonio Dix Silva, Liberdade de expressão e direitopennl l>aulo, 2000, p. 349.

31,0 Emilio Dolcini/Giorgio Marinucci. "Constituição e Escolha dos Bens Jurídn • > in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n° 2, ano 4, 1994. p. 151 et serj

WI Paulo de Sousa Mendes. Vale a pena o direito penal do ambiente?, Li.sl«u Associação Acadêmica Faculdade de Direito, 2000, p. 174.

. iNTEÚDO DO INJUSTO 2 0 1

A questão da criminalizarão de condutas não pode ser< • uifundida com as finalidades políticas de segurança pnfitica. iwnc|úè se insere como" uma condição do Estado democrático, i'.iscado no respeito dos direitos fundamentais e na proteção da s-cvsoa humana. Isto quer significar que, em um Estado democráti- .' o bem jurídico deve constituir um limite ao exercício da política• lê segurança pública, reforçado pela atuação do Judiciário, como• •mão fiscalizador e controlador e não como agência seletiva de urntes merecedores de pena, em face da respectiva atuação do U uislativo ou do Executivo. A decisão jurídica, portanto, que inndamenta a intervenção do Estado, mediante a afirmação de• 111cr detèrminada conduta é injusta, só terá legitimidade se for pronunciada sob a perspectiva de uma política de garantia indivi1• liial, tomada sobre- a base de argumentos racionais, que têm. i mio pressuposto a imparcialidade do órgão jurisdicional é todos".11 meles critérios que fundamentam o discurso ideal, déntro~do >jiial se devem incluir, n.e.ces.sariamente, todos os argumHntos"êm l.ivor da proteção de direitos humanos. Nesta linha de raciocínio,< utende KOBBERS. a partir do art. Í 6 da Declaração dos Direitos-do I lomem e do Cidadão de 1789, que um Estado só será démóCráti-- c > ria medidá'èm qiié 'recônhêçà a separação de põderes~e o i cspèito pelos direitos humanos *3 .

Desse modo, a proteção de direitos humanos, como condi-j _ ...io de defesa individual perante o Estado despótico, além de seq / um programa, é fundamento do próprio Estado democrático, quet- r deve, pois, ocupar de garantir a todos o pleno exercício de seus^A.■ I irei tos fundamentais. Isso quer dizer que a legitimidade da ' iiuação estatal, no sentido de um exercício protetivo, está vinculada x i que sua atuação se faça necessária para impedir a interferência ! «Ir outrem no exercício de direitos do próprio indivíduo, o que lundamenta a constituição de um direito subjetivo desse indivíduoi determinada condição de garantia. Isto não implica, porém, o \ uso da pena criminal, pois a função de garantia, impulsionada I

Gerhard Robbers. “Scrafpflichten aus der Verfassung?", in Aufgeklãrte Kriminalpolitik, Frankfurt am Main, 1988, vol. 1, p. 147 et seq.

2 0 2 TEORIA DO INJUSTi 1 l i

pelo exercício de um direito subjetivo do cidadão à proU\.i-> jurídica, deve estar de qualquer modo condicionada à preservat,.'"’ dos direitos humanos, que têm como princípio primordial a soIik .k» pacífica dos conflitos, dando como conclusão de que a pena n:i< ■ <• dotada por si mesma de qualquer legitimidade e só se justifica n,« medida de sua extrema necessidade. Quer dizer, inexiste um ck \« t absoluto de punir383. A punição criminal é unicamente inu.« contingência de ultima ratio. Deve-se concluir, então, que .1

noção de bem jurídico não pode ser posta como legitimação 1I.1 incriminação, mas como sua delimitação, daí seguindo, no d i/e i

> de DOHNA, a necessidade de que seja determinado com precis.i< > para que possa servir de barreira diante da intencionalidade c d.i vacuidade384.

3-1.1.1.6 Bem jurídico e objeto da ação

O bem jurídico, por seu turno, não se confunde com o objeto da ação, pois não pode ser entendido no sentido puramente material, como se fosse uma pessoa ou uma coisa, mas no sentido da característica dessa pessoa e de suas relações, isto é, como v;il<» decorrente da vida individual e social, indispensável à sua manutençu ■ e ao seu desenvolvimento. A vida humana, por exemplo, erigida .1

condição de bem jurídico fundamental, não apenas para o direii>> penal, mas também para todos os demais ramos do direito, encerra um valor, tanto por seu lado puramente biológico, ou material, quanto e principalmente porque está relacionada .1

pessoa, entendida como categoria primária de todo o sistenu jurídico. Assim, a vida humana, mesmo quando apresente deli ciências materiais graves ou ainda quando se encontre em fonua ção, independentemente de a quem pertença, se a um homem socialmente valioso ou desvalioso, ao culpado ou ao inocente, a< > rico ou ao pobre, constitui um bem jurídico fundamental.

383 Gerhard Robbers - ob. cit., p. 152.384 Edegardo Alberto Dohna. “EI problema dei derecho penal en Ia actualidad", i»

Estúdios críticos sobre la cuestión criminal I, Buenos Aires, 2001, p. 66-67.

i >NTEÚDO DO 1NTUSTO 203

Normalmente, para os efeitos delimitativos, os bens jurídicos prescindem de qualquer classificação, porque todos devem ter< >i igem na pessoa humana. A doutrina, porém, os classifica segundo .d.nuns critérios, puramente aleatórios. Segundo seu titular, haveria l h mis jurídicos individuais (vida, integridade física, honra, liberdade, luirimônio), coletivos (incolumidade pública, meio ambiente, fé publica, paz pública) ou estatais (administração pública, adminis- lução da justiça, soberania, ordem pública econômica). Segundo a /•acepção, haveria bens jurídicos concretos (yida, integridade corpo-i.il. patrimônio) e abstratos (incolumidade pública, fé pública, paz pública). Segundo a natureza, haveria bens jurídicos naturais i vida, integridade física, liberdade) e normativos (patrimônio, admi­nistração pública, ordem pública econômica). Segundo seus ele­mentos, dever-se iam distinguir bens jurídicos de origem real (vida, integridade corporal, saúde) e de origem ideal (honra, sentimento religioso). Deve-se alertar que esta classificação é meramente metodológica e serve apenas para, em determinado’ contexto e limitadamente, identificar a qualificação do bem que se pressupõe lesado ou posto em perigo pela ação do agente.

Mais..adiâtite,geremos como essa modalidade de classifica­ção-eiitre bens jurídicos individuais e coletivos - põdè rondazirà t ( rnfúsão entrè!5ém"iúrídrc^e~funçâo. ÁTrida qüé sé possa reconhe.- i cr a existência de um bem jurídico estatal ou coletivo, sua inserção como tal não desnatura o ccTríteúdo estritamente pêssòál ~3êsses I >ens. Õ inteFessê''fisSr'aò'nEsHaõr'‘põr eXBffiplõ',' naõ' "pôde"ser erigido em bem jurídico unicamente por causa‘ dos interesses <io poder público/mas sempre como condição de sobrevivéncia-oa de melhoria da vida da pessoa humana, o que induz constantemente à discussão em torno da legitimidade dè tòdás as incriminações daí (icrivadis fsro sipnifira qnp todo bem que se possa reconhecer iximo coletivo^emface da impossibilidade fática de identificãçrâo da pessoa de seu titular, é no fundo um bem do indivíduo.

.....“ -•t.~.~ —3.1.1*1.7 Bem jurídico e funçãoX

A necessária vínculação de um bem jurídico estatal à sua origem e finalidade pessoal é uma garantia do indivíduo de que

204 TEORIA DO INJUSTi i I I

sua liberdade não será molestada por mera adoção de poliu. públicas, no âmbito administrativo, econômico ou social, ou finalidades eleitoreiras. Será preciso demonstrar, para tornar v:ili.!.« a eleição desta categoria de bem jurídico, que sua lesão sigi il i* p .• um dano igualmente à pessoa e às suas condições sociais. Por i- • se deve descartar da noção de bem jurídico a noção de fuiu que encerra atividades administrativas do Estado, referentes .controle sobre detenninado setor da vida de relação ou de -.i •; próprio organismo.

Acostumados à herança positivista e normativista cU--. i. BINDING e MEZGER, os doutrínadores sentem dificuldades de pi.. ceder à necessária distinção entre bem jurídico e função. Ci i.il mente, acoplam suas assertivas a um modelo básico de funçà< > >administração pública ou a administração da justiça - e daí f-i/i-m derivar todas as demais funções como corolários daquelas, ( "n. este critério de derivação, comparável analogicãmente à construi i • dos tipos penais, pretendem justificar a validade e a legitimiiLuI' das respectivas normas incriminadoras. O raciocínio é simpU-s . primário: se o direito penal tem como objeto de proteção a admim . tração pública, está claro que, igualmente, podem ser protegid.> todos os atos de controle decorrentes dessa administração, aiml.t que sejam meros atos administrativos sem qualquer repercusvi- • na vida da pessoa humana. Este raciocínio é, evidentemcm. falacioso e deve ser combatido. Para fazê-lo, no entanto, conu-n. precisar melhor, primeiramente, o conceito de função, depois. «■ fundamentos pelos quais se possa efetuar sua distinção dos lu-ii- jurídicos e, finalmente, indicar sua verdadeira importância iu definição do injusto.

Ao pôr em discussão os objetivos das leis ambientais italian.i-. FRANCESCO i>ALAZZO tem salientado a necessidade de uma pre; (•• •• identificação dos objetos de proteção nos delitos daí deriva d> em oposição ã noção de função. Embora seja um esforço louvam ! enfrentar essa tarefa sem atenção às orientações ideológicas < políticas de diversos matizes que imperam nesse setor, seu projn.i não pode ser considerado exitoso, porque acaba relativizando m m . escopo, até o ponto de também admitir que alguns delitos In m específicos, como os delitos contra o ambiente, possam ter pm

< iNTEÚDO DO INJUSTO 205

«>l>icto jurídico o próprio controle ambiental e não bens jurídicos m.iicriais, imediatamente lesados. Parece que essa relativização «< iii sua fonte no enunciado de seu conceito de função como i > mjuntos de homens e meios normativamente organizados para

.ilcance de fins institucionais ou sociais”385. Este conceito de luiiçào, derivado da noção de fim e do sentido de organização, é «U iuasiadamente impreciso e pode abarcar até mesmo bens jurídi-< > >s pessoais. Afinal de contas, o genocídio tem como objeto de pioteção uma particularidade da organização de certos grupos humanos, em tomo de sua etnia, raça, origem e condição social <ni política, que jamais se confunde com funções, mas que pode< si:ir compreendida como tal, segundo aquela definição. Manejan-< I> > um conceito dessa ordem, é natural que se passe a confundir Ixm e função.

A principal fonte de confusão entre bem jurídico e função '• M:i situada, pofêitTTTTá indèTTn íçao acêrçã~dõ objetò~3ê"referência• l.i norma. Õ bem jurídico constitui, aó mesmo tempo, objeFõ~cfè 1'ivferênçia, cómo valor vinculado__à_finai_idadê~3ã~òrcfem jurídica <iii tórno_da proteção da pessoa humana, e objeto de referência,• Dinp pressuposto de validade da norma, bem como de sua própria eficácia. Neste último caso, ao subordiná-la à demonstração >lr lesãoxiu.xioiQcacaò ernT^engo do bêrh~jurídícõ. A doutrina tem normalmenfe trabalhado, indistintamente, com essas duas catego-ii.is, ou modos de expressão do bem jurídico, sem atentar para o .'.no de que a segunda (objeto de referência) constitui um objeto■ li-pendente da primeira (objeto de preferência). Na medid2 em> i*ie se toma o bem jurídico apenas como objeto de referência^é í.u ii confundi-io com qualquer função, pois na condição de objeto ,l(' referência desempenha o bem jurídico, efetivamente, uma luncào de validade e eficácia da normá~'Ã fim de torná-lo objeto■ !>' garantia e não simplesmente de incfumhãçãõ, é indispensável pi nsá-Ío como objeto de preferência, vinculado a um valor. Uma n-z cònõBS^i'mffi&~valor:~RSggsi~lmperioso estabejEceFTüa ililerença para com o conce.itç) de função.

l-rancesco Palazzo. “Princípios fundamentales y opciones político-criminales en Ia tutela dei ambiente en Italia”, in Reuista Penal, Salamanca, 1999, n® 4. p. 76.

206 TEORIA DO IN JIM '

3.1.1.1.7.1 O conceito de função

O conceito de função deve partir da idéia de que !■•<*« função tem sempre uma característica de instrumentalidack- < dependência de outro objeto. Assim, na matemática se denumm* função uma grandeza, variável, cujo valor depende do v;il« .i .s». uma outra grandeza, e, na lógica, uma relação que associa m< :>« bros de uma classe determinada a um certo membro de classe. Se, por exemplo, dois objetos imantados forem colocad.. > determinada distância e provocarem, por força disso, uma ati.i., >■ de um para outro, dizemos que essa força atrativa constitui * função da distância que os separa586.

É indissociável, portanto, do conceito de função o com< n. de relação. Este raciocínio é aplicável a todas as demais ciên< i.r. Na medicina, o conceito de função está vinculado ao conceito • propriedades de um órgão ou aparelho e só adquire significada. t..« medida em que se veja dentro de variáveis de uma relação. Assim > função digestiva está sempre associada à quantidade de alinum.-1. ingerida e ã capacidade de sua absorção ou processamento m< i.» bólico do respectivo aparelho. Sem as variáveis do alimcnt<- (independentes) e dos órgãos encarregados da digestão (ck |» n dentes) seria impensável a função digestiva. JSa socioluv.i* funcionalista, o conceito de função está associado ao conceito >i< relação sistêmica, de modo que se poderia entender por funça. > ,i eficiência ou a força de um determinado elemento social paia .. construção, manutenção ou alteração de uma condição do sistcuu global, ao qual aquele mesmo elemento pertence. Não dissmi. deste conceito geral de função a diversidade de atributos que- II são dispensados ou o método de sua determinação. Enquam- DURKHEIM chama de função a força de manutenção da condk.i*- de normalidade de uma sociedade, fornecida por um determinad. • elemento social, avaliado segundo o grau de desenvolvimento d.r. condições preexistentes desta mesma sociedade387, em PARSOi\'> • -

^ Eduard Kasner e James Newman. Matemáticas y imaginación, tradu. .<■ castelhana de J. Celdeiro Ricoy, Buenos Aires, 1951, p. 330.

387 Emíle Durkheim. La división dei trabajo social, tradução espanhola de Caii<» > • Posada, Barcelona, 1993, vol. I, p. 67 etseq.

.M liÚDO DO INJUSTO 207

v i i< cito de função é abstraído do conceito de sociedade e diz >cito à força de manutenção, exclusivamente, de um sistema

global. Invertendo os pólos da proposição, já entendia MERTON qu<- o conceito de função não deveria ser inferido do sistema lllol).)!, ao qual estaria subordinado, mas sim de um determinado demento, tomado isoladamente e cuja força repercutiria na unidade <!<• outros elementos do sistema. Deste modo, um mesmo elemento |xnleria ser funcional (eficaz), dísfuncional (prejudicial) ou não- Kmi ional (irrelevante) ao sistema388.

Na filosofia, podem ser encontradas várias acepções para a lunção. Em todas elas, porém, o conceito de função continua se r\|>rimindo dentro de uma relação. Assim, por exemplo, em KANT 4 lunção estaria imbricada no processo do conhecimento, inserido igualmente numa relação, cuja função se resumiria na “unidade da 4\.io que consiste em ordenar diversas representações sob uma «rpresentação comum”389, quer dizer, a função corresponderia à Jotça dos conceitos na formação do entendimento. Para FICHTE, o mundo em sua totalidade nada mais seria do que a função do 1'ioprio eu, ou seja, um instrumento de sua realização, na qual o <■// se poria na condição de uma variante independente e primitiva, <li icrminante de todas as demais relações390.

Independentemente das concepções sociológicas ou filosó- fuas, a vinculação entre função e relação decorre, como informa i-mii. WATZLAWICK, de uma mudança radical na configuração dos< 'I ijetos da ciência moderna, principalmente com a superação da n oção clássica de grandeza e a introdução do novo conceito de iininero a partir da contribuição do matemático francês FRANÇOIS \ ii TE em 1591. Por esta interpretação, a relação numérica deixou <k- representar grandezas distintas e passou a se compor apenas >l<- variáveis391, possibilitando, com isso, o cálculo dos predicados.

Karl-Heinz Hillmann. Wõrterbucb der Soziologie, Stuttgart, 1994, p. 251. w‘ Immanuel Kant. Crítica da razão pura, cit, p. 102.’ ” lohann Gottlieb Fichte. Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre, Jena/

l.eipzig (1794), 4. ed., Hamburg, 1997, cap. III.l’aul Watzlawick et allii. Pragmática da comunicação humana. Um estudo dos padrões, patologias eparadoxos da interação, S. Paulo, 1998, p. 21.

208 TEORIA no INIIISM • I

No momento em que as grandezas individuais (1, 2, 3 hoim n - >-.» mulheres) foram substituídas por variáveis (x, y, z homens mulheres), erigiu-se a relação como condição necessária dr '•>** significação. Para tanto, contribuiu também a alteração da propii.» natureza do conceito de relação, que deixou de ser um conceiio <|>>< exprimiria sempre uma realidade - como na formulação .!<• ARISTÓTELES - e passou a comportar uma dupla dimensão: as rd;u. ■«i poderiam ter objetividade, embora não fossem reais. No caso <l..i ímãs, por exemplo, ao mesmo tempo em que podemos substitui I, >■. por letras, podemos também atribuir, hipoteticamente, à disúu. u que os separa, qualquer grandeza, sem a necessidade de qm tenha de referir, sempre, a uma situação concreta. Como a I<>i\j

atrativa se encontra em razão inversa à distância - quanto m:iioi ( distância, menor a atração -, é possível, objetivamente, estabel<-< um gráfico dessa relação, sem que isto represente uma realidade

A função é, assim, uma relação decorrente de variáveis. <|u. correspondem a pontos de referência de algo. Da mesma foi nu que as variáveis dependentes, a função.não tem significado pi*, prio, somente no contexto da própria relação. Há que se disim guir, entretanto, uma relação funcional de uma relação real. mi substancial392. Se dissermos, por exemplo, que João ama Joana estaremos indicando uma relação que pode ser verdadeir:i ou falsa, mas é uma relação real, limitada aos seus únicos don objetos, ou grandezas individuais, que subsistem independem» mente da relação. Da mesma forma, como estamos tratando e<nu pessoas, a relação de amor de João por Joana comporta um jm/i. de eleição ou de preferência sentimental ou ético, de tal mo,l.. que não poderemos dizer que o amor de Joana seja a função »l<- João. Se dissermos, entretanto, que x ama y, a substituição *l.i% pessoas reais por objetos simbólicos a transforma em rel:u.i>< funcional, de modo que podemos dizer que o amor de j/constiim uma função de x, que pode ser'desdobrada em muitas oun.i-. relações, suscetíveis de quantificação, como, por exemplo, <|u<-

m Aristóteles já compreendia essa modalidade de relação quando tivesse i*'< termos objetos reais ou sensíveis, cf. Metaphysik, XIV, cit., p. 365 et seq.

■ >NTEÜDO DO INJUSTO 209

ttnlox amam todos, alguém ama alguém ou, em sentido negativo, <|iu- ninguém ama ninguém. À medida que as variáveis se mes-i Um em inúmeras outras relações, vão-se criando outras funções <• :mipliando, por isso, o cálculo dos respectivos predicados. Da ««•liição funcional monádica xam ay, que no fundo exprime uma pmpriedade, podem resultar, assim, outras relações, triádicas ou l«>liádicas, das variáveis entre si, ou com outras variáveis. Esse desdobramento das funções dá lugar ao que BERTRAND RUSSELL e m.i-ked WHITEHEAD denominaram de conjuntos incompletos, ou •ieja, uma possibilidade infinita de combinações, sem substância material393.

Estas relações funcionais, ou sobre variáveis, têm importância (i.ini os cálculos quantitativos, ou de predicados, mas não repre­sentam em si mesmas um valor, ou seja, um objeto de preferência.I >:i formulação funcional monádica, ou de propriedade, x a m a y e <l<- qualquer de seus desdobramentos - todos amam todos, alguém mna alguém - só se pode inferir uma referência lógica, que não Mibsiste fora da relação. Como não é suscetível de preferência, a função não constitui um valor e, portanto, não pode ser confundida< < mi um bem,.________

Transportado esse conceito de função à ordem jurídica, ainda• n ie se possa manifestar por distintas modalidades, mantém sempre •i característica de subordinação ao pressuposto de que só tem existência e sentido numa determinada relação. Na atividade esta- t.il, as funções se expressam, normalmente, "'pSr''medidas_de< < mtrole, que constituem~õ matiz de um processo dégesçen- n:ilizaçaÕ, que se opera com maior intensidade a partir do afasta ­mento do Estado do processo de produção e distribuição de bens,■ >u da satisfação das necessidades reais das pessoas e sua redução •K) papel das chamadas agências de fiscalização.

Bertrand Russell e Alfred North Whitehead. Principia mathematica, 1. ed., tomo 1, Cambridge, 1910.

S. L l.1 .7 .2 Função e contn

210 TEORIA DO INIlisl* ■ i

A função administrativa de controle do tráfego rod<>\i.ii*-r por exemplo, é exercida pelo Estado sobre a base de uma ivI.k, de que veículos circulam por estradas e ruas. O controle tráfego por si só não tem a menor relevância, mas apenas (|iuii<!«. se faça sobre veículos em circulação por estradas e ruas. ím<- < como desdobramento de uma relação funcional determinad.i qual os objetos em circulação seriam as variáveis dependenu •. iU» condições e dimensões de estradas e ruas. Desta relação e < |<.« nasce a função de controle, que está subordinada à quantidade •!« veículos em circulação e à capacidade de escoamento ou à dime<s são das vias. Especificamente nesta relação de circulação ■ H veículos se pode ver que os elementos da relação - os veículo-- não representam, aqui, nenhum conteúdo material; servem ap< nas de variáveis, que conduzem à proposição de que circulam .i< conformidade com regras de circulação. As regras de circulação >■ controle resultam, pois, de uma simples equação de ajuste enue > quantidade de veículos e a dimensão das vias, sem nenhum., referência aos objetos reais em circulação, mas apenas ao u número estatístico. Neste passo, como se trata de um coniro!. anônimo, pode a função se exaurir na regra que a expressa, poi <|n>

• esta regra nada mais é do que a forma ou o modo de ser do pró| >i i- controle difuso ou anônimo.

Esta forma de controle anônimo é característica da socied.i de pós-moderna, que, ao lado da eliminação do Estado do proee-, so de produção, impõe uma contínua substituição de relao « materiais, ou reais, por funções de comunicação. Neste caso. • controle do tráfego, por exemplo, deixa de ser um controle maie rial, efetuado por fiscais, para se transformar num mero controle- <1* informação. Desde que o que importa é meramente uma relaç.i' • quantitativa da circulação e não a distribuição de bens, isto pod, ser obtido por simples informação, isto é, se a regra foi ou n.i« ■ atendida. Este controle de informação satisfaz ao conteúdo d.i regra de circulação, que só tem por objeto a circulação anônim.i de veículos.

Essa mesma característica assinala, igualmente, outras fim ções, como a de controlar a entrada ou a saída de dinheiro do

■\ 1'IIÜDO DO INJUSTO 211

p.iis, que tem por objeto a comunicação do ato de entrada ou de independentemente de suas repercussões na economia, ou

<l.i pessoa que efetivamente o realiza; ou de controlara arrecadação < I . i -n receitas e das despesas, sob o pressuposto funcional de metas l-iliiicas preestabelecidas.

A função de controle de informação, como depende exclusi- \.i mente de uma relação de circulação de veículos ou de bens e <l.i t apacidade de escoamento das vias ou da política do Estado, se k -n inge a um número determinado de objetos ou de pessoas, íi' |i iclas que sejam motoristas ou transportadores, e não possui um< .1 i ;iter de universalidade. É uma função específica, condicionada ,»•> suas respectivas variáveis. A ausência do caráter de universali-d.ule dessas funções e sua essência meramente informativa de- nit Mistram seu elemento simbólico e sua clara distinção do conceito il<- liem jurídico.

Significativo desta distinção, por exemplo, é o fato de que a •..mção imposta aos que infringem as regras de circulação independe da circunstância de que, no momento da infração, não h.iyeria a necessidade daquela regra, porque nenhum outro veículo

encontrava na rua, ou de que ela seria necessária em face da Mirunstãncia de que, com isso, se estaria impedindo o abasteci­mento de bens ao público ou restringindo a liberdade das pessoas, t.omo se trata de uma sanção administrativa, que não tem comol >i essuposto a lesão ou colocação em perigo de qualquer bem im ídico, a simples infração das regras de controle é suficiente para n i>tificá-la.

Não difere dessa estrutura a sanção imposta a quem deixa de• omunicar à receita federal o transporte de dinheiro para fora do p.ií.s, além de certo limite. Veja-se que a sanção é aplicável, independentemente de que uma outra pessoa o tenha feito, mas> i mi relação a quantias infinitamente superiores, quer dizer, sem levar em consideração o fato de que quem transporta dez mil> lõlares e não faz a comunicação deste transporte à receita federal musa, no fundo, muito menos prejuízo do que aquele que trans­porta um bilhão de dólares, mas comunica o transporte desta i|uantia. O que está em jogo, neste caso, não é o patrimônio

2 1 2 TEORIA DO INJUSTO l’I NM

público, somente a função de controle de informação. A gravidulr desta última hipótese está em que a. sanção, aqui, não é meramente administrativa, mas também criminal, nos termos da legislação vigente394, sem ter havido lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico, quer dizer, faz-se de uma simples função de controle um objeto de proteção penal, o que é um absurdo e viola os pre.s.su postos constitucionais da incriminação^,

3-1.1.1-7.3 A distinção entre bem jurídico e função \

Observando-se as diversas funções, como as de controle do tráfego ou de entrada ousàída de bens, dentre outras, verifidi-.se que elas não têm caráter de universalidade, porque estão submetidas exclusivamente a critérios de oportunidade. Isto não é caracterísiu .i exclusiva das funções administrativas ou de gestão, se dá tanto nas ciências da natureza quanto no sistema normativo. Voltando a>> exemplo da relação entre dois objetos imantados e a distância que os separa, a função expressada pela força atrativa depende nau apenas da distância, mas também dos outros termos da relação, u que demonstra sua característica de instabilidade, já que se encon tra condicionada à variação das respectivas grandezas. O mesmo >e passa no caso do controle do tráfego, que é, afinal, contingente d.i produção de veículos e da edificação pública das vias de drculaç:i< ■ Se tomarmos a ordem jurídico-penal sob o pressuposto de garantia, a*incriminação de uma conduta só deve ter por objeto jurídico <> que possa decorrer de úrii ente real estável - à pessoa humana - e não de uma função, sendo inválidas as normas que assim o tratem A distinção entre função e bem jurídico é, pois, essencial a um direito penal democrático.

Ademais, está claro que, em face da complexidade da vida. algumas funções se vão materializando, de tal modo que suas variáveis possam constituir uma realidade, ainda que puramente normativa, mas irredutível a simples grandezas, fato que as torna indispensáveis à existência do Estado ou do próprio indivíduo

■wí Lei 7492/86, art. 22, parágrafo único, em consonância com a Lei 9069/95, án <■'• Sobre isso, José Carlos Tórtima. Crimes contra o sistema financeiro nacional Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

> ONTEÚDO DO INJUSTO 213

Isso ocorre, por exemplo/com a administração da iustica. que é lioje uma função mdecKnável do Estado democrático. A caracterís­tica dessa função de servir, indistintamente, a todos, no sentido de iii 11a universalidade e sua vinculação à própria estrutura do Estado, tl;i-lhe estabilidade e a converte em bem jurídico, porque se consti­tui valor da pessoa humana.

A distinção entre bem jurídico e função não pode partir da própria norma e de süã" infração, e nem o conceito de funçãoI >< >de derivar exclusivamente dos fins que persegue. A distinçãoI úsica reside em que a função não existe por si mesma, depende tle uma relação e de suas variáveis, possibilitando unicamente■ ;ilculos de predicados, quê nàò podem ser confundidos com v alores. Não importa, àssím7~ã"õ"conceito "de função "qüê* essa ou aquela atividade de controle possa ser útil ou inútil, adequada ou inadequada. Confira-se o caso do controle da circulação de \ cíçulos, acima exposto. A chamada utilidade da função nada mais é do que uma derivação da variação de grandeza de suas variáveis, ou seja, da quantidade de veículos e-da dimensão das vias. Se as ruas forem de tal forma amplas e suficientes à circulaçãoi Io todos os veículos, essa diferença quantitativamente favorável aos v cículos faz diminuir a intensidade da função, da mesma forma que< i aumento da .distância toma menor a força atrativa dos objetos nnantados. Isto não quer dizer, porém, que a função detenha um valor substancial; dá-lhe apenas um valor quantitativo, cogno- minado de valor de utilidade, assim como na digressão marxista acerca do valor de troca ou útil da mercadoria, em oposição ao seu valor real, tomado como valor de trabalho, assentado nas condições u-ais das relações de produção. A suposta emissão de juízos de valor sobre funções — acerca de sua utilidade ou inutilidade — e sua< ntronização como objeto de proteção correspondem, portanto, a uma falsa interpretação de seu sentido dentro de uma relação Tá oI >cm jurídico - por exemplo, a vida humana - devejjerjo m adoi Dino valor poFiTm esmo, quer se retira a uma pessoa virtuosa,• I uer a uma pessoa moralmente e x e c r a vêTnSíIõlíã''possibTII<Bciei le se medir, quantitativamente? õ~grau'~dé iriténsídádè~cTè vãlor da v ida, jsorque isto implicaria ã édíflcã^<^de"'uma ordem jurídica

214 TEORIA DO INJUSTO n

puramente utilitarista, de todo modo inadmissível. Não contnuli/assertiva, igualmente, a relativização de alguma modalidade

de projeção da vida, como a ampliação das causas'dê^pêrmTssiI >t lidade do aborto, porque, neste caso, a vida humana em formarão se~faz objeto de um juízo de valor em face da pessoa humana d.t mãe e de suas condições reais de existência. Quer dizer, não se está procedendo a uma avaliação meramente predicativa ou de quantidade, mas de substância, entre a manutenção da vid:i |.i formada da mãe, e de suas condições reais e qualitativas de existência, e a da vida em formação do feto. Há, aqui, um conflito

_ real de bens jurídicos e não de funções.

Como a função depende da relação na qual se processa e cuj:i entidade é, no fim, a conseqüência de uma metamorfose e não :i representação de uma realidade substancial, não detém a função caráter de autonomia ou Independência. Em oposição a isto, deve-se entender o bem jurídico como um valor da pessoa humana, de caráter universal, material ou ideal, mas real, que independe, pau sua existência e essência, de qualquer relação funcional.

Nao desnatura essa característica do bem jurídico o fato de que muitos bens sejam concebidos como um conjuntcTde relações, como é o caso dó patrimônio, porque neste caso se trata de relações reais e não meramente simbólicas, isto é, não se constituio patrimônio exclusivamente de um ato de informação, mas de uma relação de titularidade de um direito, oponível a todos. (> próprio patrimônio, pode ser a variável de uma função, por exemplo, na medida em que tenha de ser acessível a todos. Isto não implica que o patrimônio seja uma função do Estado, mas sim que a relação funcional, neste caso, se estabelece entre o patrimô­nio, como condição da pessoa e variável independente, por um lado, ■= a capacidade de sua aquisição, por outro. Ao Estado compete ampliar a capacidade de aquisição. Para tanto, poderá reduzir o número concentrado de titulares patrimoniais, mediante redistribuição de rendas ou aumentando a própria grandeza patrimonial, com o incremento da produção de bens ou do poder aquisitivo de todos. Em qualquer caso, o patrimônio, como tal, não se desconstrói em função, continua sendo um valor da pessoa,

• ■ > INTEÚDO DO INJUSTO 215

.1 <|ual se vê, inclusive, engrandecida pela ampliação das possibili-. <i;ides de ser dele titular.

Encarando esse aspecto da questão patrimonial, que no Brasil m- convencionou chamar de função social da propriedade, MOCCLA. procura dar ao conceito de patrimônio um significado mais il >rangente do que sempre o fez o direito privado e mais preciso do <|ue o dotou a economia, ao afirmar que sua tutela “assume relevân-< m na sociedade e, ademais, no ordenamento jurídico, não porque, >»u não apenas porque, determinados objetos ou direitos que u nham valor econômico sejam atribuídos a um sujeito, senão pelo lato de que a disponibilidade destes bens assegura ao sujeito uma orbita de desenvolvimento de sua personalidade”, quer dizer, a lutela patrimonial se justifica “no sentido de garantia da disponi­bilidade dos bens com vistas a assegurar ao titular o desenvolvi­mento de sua própria entidade no âmbito econômico”.395 Esta mudança de orientação na identificação do bem jurídico irá se refletir, por sua vez, na concreção do objeto jurídico dos delitos i-conômicos, normalmente confundido com as próprias tarefas do listado, ou com súa política tributária ou fiscal396.

Um outro aspecto das características das funções e dos bens mrídicos é também de importância à sua distinção. Trata-se dos ilados referentes ao processo de seu conhecimento.

3.1.1.1.7.4 A identificação dos bens jurídicos

Ainda que se reconheça a diferença entre bem jurídico e função, não é fácil sua distinção no caso concreto, daí a necessidade de se alinhavarem indicativos para este encargo. Um dos pontos controvertidos dessa distinção tem origem na tendência de a

’'rt Sérgio Moccia. “De la tutela de bienes a la tutela de funciones: entre ilusiones postmodernas y reflujos iliberaldes", in Política crim inaly nueuo derechopenal, Barcelona, 1997, p. 133.Observando as dificuldades para situar os bens jurídicos nos delitos econômi­cos, bem ressaltam Miguel Bajo e Silvina Bacigalupo que, nos delitos fiscais, por exemplo, o bem jurídico é constituído do patrimônio ou erário público e não da simples função de arrecadar, Derecbo penal econômico, Madrid, 2001, p. 218.

216 TEORIA IX ) INJUSTO M Svs

doutrina penal proceder, grosso modo, a uma classificação do bens jurídicos consoante seus titulares, entre bens jurídicos indi­viduais e coletivos, ou consoante sua percepção, entre bens com ri­tos e abstratos. Esta classificação, além de arbitrária, implica, desde logo, três conseqüências. A primeira, de impor a adoção d<- um sistema dualista, isto é, de que os bens possam ter origem tanto na órbita individual quanto coletiva ou estatal, conforme sua funcionalidade. A segunda, de incrementar um estado de proteção simbólica desses bens, principalmente quando se trate dos chama dos bens coletivos. A terceira, de tornar obscuras suas proprieda des, o que reforça sua confusão com as funções, na medida cm que estas passem a ser interpretadas como interesses do Estado < >i i da comunidade em certa organização ou status. Significativa desia confusão é, por exemplo, como já vimos, a corrente identidade que se faz entre as funções de controle da arrecadação e o própri< > patrimônio público, entre as funções de controle ambiental e <> próprio meio ambiente, ou entre a função de controle e estabilida­de da economia com a ordem pública econômica, tomada como ente coletivo e abstrato.

Esta confusão é, no fundo, a conseqüência inevitável de um sistema penal de proteção, como normalmente ocorre quando se fala das tarefas do direito penal, porque, com isso, se passa a entendê-lo em face de suas características programáticas e não como instrumento de delimitação de poder, como deve ser num Estado democrático.

Se o objetivo do direito penal, porém, não é o de simplesmente proteger bens jurídicos, mas o de traçar, nitidamente, os contorno.s das zonas do lícito e do ilícito, do proibido e do permitido, nu sentido de só justificar a intervenção do Estado sobre a liberdade da pessoa humana, em casos de extrema e demonstrada necessidade, a primeira condição de seu implemento é a de descartar, desde logo, essa classificação entre bens individuais e coletivos e trabalhai com a noção de bem jurídico como bem jurídico pessoal. Esse é o primeiro e indeclinável pressuposto para se proceder, com segurança, à identificação do bem jurídico e diferenciá-lo da função.

■ i ONTEÚDO DO INJUSTO 217

Contudo como em termos de percepção muitos bens jurídi-11 >s nitidamente pessoais (por exemplo, a honra e a intimidade) são ■materiais, por sua natureza, a simples asserção do bem jurídico< < >mo individual (e não coletivo), embora constitua um pressupos-ii > indeclinável de um direito penal democrático, não basta para Mia perfeita distinção das funções. É indispensável, quanto a estes, l>ioceder-se.a uma segunda tarefa, a de estabelecer os princípiosi u irmativos de sua própria limitação.

A jierceftção^lg urn bem jurídico passa, portanto, por duas ' lases seqüenciais. A primeira, de correspori3eí~ao'processõ' de ivduçãò individual. A segúrrda~, ~dê'êléncãr süãs“características ou piopriedadés e dedispõr srcefCãdõs princípios normativos d ?su a delimitação. ..... ‘ ...................................• ----------- -

No caminho da primeira seqüência, .só poderá ser reconhecido rumo bem iurídico o que possa ser reduzido a um. ente próprio da pessoa humana, quer dizer, para ser tomado como bem jurkjico será preciso que “determinado valor possa implicar, direta ou indiretamente, um interesse individual, indèpendêntemen-te'de~se esse interesse individual corresponde a uma pessoa..determinada <iu a um grupo de pessoas indistinguíveis. Por exemplo, a inco­lumidade publica, pára assegurar sua qualidade de bem jurídico, não pode ser vista dentro do contexto da ordem pública, mas na de um estado de estabilidade da pessoa humana, sentida dentro de um grupo social ainda quê indeterminado, em face de perigos para a sua vida, saúde e patrimônio. Dessa forma, não pode ser integrado no âmbito da incolumidade^pública õ'simples controlei Io tráfego de veículos, mas só a situação concreta de perigo ou de dano pára ã vida, a saudê ou o patrimônio das pessoas, ainda que uào identificáveis, decorrentes de ações desenvolvidas naquelas atividades controladas. Se não se puderem reduzir os dados dessa atividade controladaa situações concretas de pengo ou7je~daTícTã vida, à saúde.ou^Q.patuHiônio de~pèssoas, nao se estara diante ae um bem jurídico, mas sim_de uma~vèraaaeira e simples função. O mesmo se pode dizer, por exemplo, ~do ffiSTo "ambiente ôu das relações de consumo. Para ser tomado no sentido de bem jurídico, deve o meio ambiente (solo, água, ar e seus demais elementos

218 TEORIA DO INJUSTO I I

naturais) ser entendido como bem essencial da pessoa humanu t sua relação com outras pessoas e com a natureza, e não como lu m por si mesmo, protegido e sufragado como interesse exclusivo il.. Estado e de seu poder de controle. Por sua vez, as relações ili- consumo não valem como simples relações, mas como projeção il<- direitos individuais à informação acerca dos produtos de seu um> <• consumo por parte das pessoas que nelas se encontram. Na meclid.t em que esses bens, ditos coletivos, devam ser, em qualquer cim > reduzidos a bens pessoais, será possível evitar incriminações altr:ii< > rias, de simples proteção a funções. Seria, pois, incompatível com ■■ sistema dessa redução e com os princípios de um direito penal il<- garantia a incriminação de ações, por exemplo, de freqüent.n determinada praia, sob o pretexto de, com isso, evitar um acúmuli ■ de pessoas no local e disciplinar seu tráfego, com vistas a um periiy > de contaminação ambiental. Tal incriminação não teria por ba.sr ,t lesão de bem jurídico, mas a simples função de controle ambienúl. pois não se pode deduzir daí que essa proibição tivesse coiim pressuposto a lesão ou o perigo concreto de lesão a um bem cl.i pessoa e de sua vida de relação. Quer dizer, então, que o contn .li­de acesso à praia pode ser exercido como ato administrativo, m:is jamais na forma de incriminação, como tipo de delito, porque II u- falta a lesão de bem jurídico.

Na segunda seqüência, tem-se de estabelecer aquilo qu<- constitua as propriedades essenciais de um bem jurídico e elencai os princípios nonnativos que devam incidir sobre essas propriedades para delimitar-lhes o alcance e precisar-lhes o conteúdo.

Já se assinalou que uma das características do bem jurídico deve ser sua universalidade e substancialidade, isto é, sua subsi.s tência como valor, independentemente de uma relação. Isto nfio obsta, está claro, que na maioria das vezes estejam os próprios bens jurídicos-vinculados a muitas formas de relações, que Iho dão os contornos e lhes delimitam o âmbito de atuação, nem qiu- algumas relações vitais possam ser enquadradas como bens jurídicos, desde que possuam esse caráter de universalidade. A liberdade.-, por exemplo, pode ser compreendida tanto como um valor intrín-

>' ONTEÚDO DO INJUSTO 219

m-co ou imanente da pessoa quanto como uma relação vital, guando vista sob o ângulo da convivência dessa mesma pessoa. Neste caso, a relação de convivência delimita os contornos do exercício dessa liberdade e a transforma num dado significativo da « sistência coletiva, que deixa de ser uma simples referência imaginária ou simbólica (afinal, o que é a existência coletiva?). I>:ira se constituir numa projeção real da pessoa.

Percebendo a necessidade de o bem jurídico possuir uma (leterminada substancialidade e não ser simplesmente inferido de mn dado normativo, JÀGER e ROXIN ressaltaram, já há alguns anos, por ocasião das respectivas teses de cátedra, o seu caráter dé <>I>jeto valorado, isto é, vinculado a um juízo de valor e suscetível <!c alteração no mundo exterior397. Com isso, descartaram da noção de bem jurídico, como objeto de proteção da norma, situações referentes à moralidade pública, aos bons costumes, aoI >cm comum, ao sentimento do povo e outras semelhantes. Apesar ile trabalharem com a exigência de substancialidade no conceito tle bem jurídico, JÀGER e ROXIN não o vincularam, necessariamen­te. à condição de objeto sensível, quer dizer, não o condicionaram :i uma coisa somente cognoscível pelos sentidos, mas, sim,' a um dado real, da vida material ou espiritual, capaz de ser lesado por uma conduta humana. Diante dessa postura, flexibilizaram sua crítica e abriram a possibilidade de ampliar o elenco dos bens jurídicos e, assim, permitir que nele fossem incluídos tanto objetos sensíveis, como a vida, a integridade corporal e o patrimônio, <|uanto estados, situações e funções. Independentemente das conseqüências de sua flexibilização, esta postura representa, em todo caso, uma importante delimitação do conceito de bem jurídico, a partir de um procedimento no qual seu reconhecimento li ca condicionado à sua capacidade de sofrer uma alteração real em sua constituição. A grande questão, entretanto, está situada, como bem pondera WOHLERS, em determinar os limites dessa

Herbert Jãger. Strajgesetzgebung und Recbtsgiiterschutz bei Sittlichkeitsdelikten, Stuttgart, 1957, p. 13 e ss.; Claus Roxin. Tãterschaft und Tatberrschaft, 6. ed., Berlin, p. 413.

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substancialidade, isto é, em determinar até que ponto pode o In i» jurídico se afastar de sua expressão sensível e se espiritualizar4''' \ resposta adequada a esta questão é o grande desafio a enfrentado pela dogmática penal.

Exaurindo o conteúdo dessa questão, podemos dizer qm .11 características de universalidade e substancialidade, conferiil.i-. aos bens jurídicos, não podem ser, simplesmente, inferidas dc um procedimento denotativo, mas conotativo. Isto implica consick i.n como o faz WITTGENSTEIN relativamente ao significado das p:il.» vras e das frases399, que o significado do bem jurídico, conforme essas duas características (que seriam, poitanto, tomadas com< > •». fossem paites constitutivas de uma frase), não está subordinado .1 sua logicidade, mas, sim, ao contexto de garantia e de limitação il<- poder de um Estado democrático. Consoante este contexto 1.1 modalidade de jogo de linguagem que lhe corresponde, na <-\ pressão de WITTGENSTEIN), a identificação do bem jurídico d o <■ orientar-se, assim, em dois sentidos.

O primeiro sentido é o de que o bem jurídico não pml«- perder, direta ou indiretamente, sua referência a um dado do so isto é, sua existência como tal deve preceder suas característk :i--

-.normativas. Por exemplo, a vida humana tem existência a;il. independentemente de sua consideração normativa. O mesmo m passa com a liberdade, com a honra e com o patrimônio, c.m< último tomado, em sua origem, como um conjunto de relações d< disponibilidade, antes de se constituir em uma relação jurídica d<- domínio. O segundo sentido é o de que a consideração do lx-m jurídico, como dado do ser, ainda que preceda, logicamente, si n enfoque normativo, não pode dele prescindir. Justamente cm< sentido é que assinala o processo conotativo de sua identificação Tem razão, assim, WOHLERS, ao invocar o ensinamento di LÜDERSSEN, de assinalar a incorreção daqueles posicionamento.''

Wolfgang Wohlers. Deliklstypen des Práuentioiisslrafrecbts - zur Dognuiid“moderner" Gefãbrdungsdelikte, Berlin. 2000, p. 225-

3W Ludwig Wittgenstein. Philosopbische Uiitemicbuiigen, § 49-

■ «NTEÚDO DO INJUSTO 2 2 1

<|ne buscam incutir a idéia de que o ser, como tal, possa se tomar «onhecido objetivamente, sem se submeter a um processo de <oiistrução valorativa400. Esse processo, no entanto, não implica miuar os bens jurídicos dentro de um esquema puramente .i\iológico, ou fazê-los derivar da ordem jurídica. Ao contrário, a< • mstrução valorativa do bem jurídico, como dado do ser, significa< >i ientar sua cognição ao propósito de submeter suas conclusões a iiina contraprova, quer dizer, o processo de cognição deve estar Mihordinado, antes de tudo, a um juízo de refutabilidade, corres­pondente aos preceitos de um Estado democrático, fundado na mais absoluta transparência de seus objetivos. Com isso, só será> aracterizado como bem jurídico aquilo que possa ser concreta- mente lesado .'.óu pòstõ ém.pexigQ^. rnas de tál modo que a afirmação dessa lesão ou desse perigo seja suscetível dé um procedimento de contestação. No âmbito dos estreitos limites do injusto penal, para caracterizar, assim,'umW lõrcõinõ bèm' jurídi­co, não basta que ele possa ser reduzido, direta ou indiretamente, .1 sua característica de pessoãTícfade, isto ê, que interesse,"antes ilc tudo^ à pessoa humana. ÉTpreciso que esse valor apresente, .iilemais, substancialidade, de forma a fundamentar um procedi-11 lento de_^mojQSEcaçãõ~He que tenha siclcrfesada" oú posto em perigo. Jusfâmente a possibilidade deste procedimento é que assinala um limite normativo (a_regra do jogo, páiã WITTGÉNSTEIN) à

■ l»estão da espiritualização do bem jurídico.

3.1.1.1.7-5 As funções, os bens jurídicos e o injusto

No setor do injusto, por isso mesmo, as funções não podem •>er havidas como pressupostos indeclináveis da incriminação ou• ihjetos de proteção, porque carecem de substância e não podem se submeter a qualquer exame ou demonstração empírica de que

"" Wolfgang Wohlers. Deliklstypen des Prãventionsstra/rechts - zur Dogmatik “modemer"Gefãbrdungsdelikte, Berlin, 2000, p. 232; JClaus Lüdersseen. Genesis und Geltung in derjurisprudenz, Frankfurt ara Main, 1996, p. 49.

2 2 2 TEORIA 1)0 1NJIM' ■ i

tenham sido lesadas ou postas em perigo. A importância de im.- funçào de controle, portanto, só se manifesta nas relações lui\ i*i.m nos atos de sua decisão, pelas quais se possa identificar o respo 11\ <* .bem juríclico. É justamente com esse propósito que se estabcle. < >*•* as funções do tipo, referentes aos seus fins sistemáticos, polui. <> criminais e dogmáticos, todos imbricados no complexo da lingua;.;< pela qual se expressa a proibição, a qual tem, como conseqüén. u a efetiva lesão ou o perigo de lesão a um bem jurídico. I >.» delimitação das zonas do lícito e do ilícito, da qual decoru- >. proibição ou a imposição de condutas, segue-se a função < !• respectivos bens jurídicos, como instmmentos de referência de-.-..« delimitação. A exigência, portanto, de que esses bens venham <lr fato a sofrer uma lesão ou um perigo de lesão, aferidas cv..n conseqüências no plano do real e não apenas do simbólico, constim» um impedimento estrutural à adoção de uma política crimiiui destinada à proteção de funções.

A inserção da lesão ou do perigo de lesão a um bem juríd» •• como pressuposto da incriminação torna, desde logo, incompatiu ) com um direito penal democrático qualquer forma de elevar um» função do Estado à categoria de seu objeto de proteção penal Todavia, ao tomar-se o bem jurídico como objeto de preferem u como valor é referência, no plano da sua lesão ou perigo de ltwn. impossibilita-se a pretensão de utilizá-lo como instrumento <l> proteção de funções ou de submetê-lo hierarquicamente àquela-. Por isso mesmo, deve ser descartado da estrutura normativa chamado bem de prestação, ou instrumental, que é represenlat!<■ pela disponibilidade econômico-financeira, sem a qual seria im possível a assunção das funções típicas do Estado, como a corivu gestão econômica, o correto funcionamento do sistema de arret .1 dação, a ordem estável da economia ou a regular percepção il> tributos. Como bem expressa MOCClA, tomar tais bens, que são, iu verdade, funções, em objetos de tutela penal implica banalizar conceito de bem jurídico401. Na verdade, o objeto de tutela, aqm

401 Sergio Moccia. Ob. cit., p. 121.

i CONTEÚDO DO INJUSTO 223

corresponderia a uma ordem pública ideal, insuscetível de apreen­são conceituai, delimitação e juízo de refutabilidade402.

Se, por um lado, se deve distinguir entre bem jurídico e lunção, por outro, se pode divisar, como já se assinalou anterior­mente, uma função própria ao bem jurídico, que é a de servir de demento estrutural do injusto e, ao mesmo tempo, de objeto de ícferência da incriminação, mediante a demonstração de sua lesão ou perigo de lesão. Como a identificação do bem jurídico sc faz mediante um processo discursivo, edificado sobre a norma penal, que deve ser, assim, absolutamente clara e expressa na linguagem construída por todos, o bem jurídico serve também .i< >s propósitos garantistas, vinculados à proteção da pessoa Immana, de admitir uma incriminação não apenas quando ocorra n má lesão ou um perigo de lesão do próprio bem jurídico, mas i|iiando da incriminação não resulte uma dessocialização da pessoa humana. Independentemente da sanção penal aplicável, .1 própria incriminação pode produzir, muitas vezes, um efeito ilcssocializador, por exemplo, quando passe a retratar como penalmente proibidas, por si sós, sem qualquer exame do dano social daí resultante, condutas situadas no âmbito normal de u lação das pessoas.

O juízo de refutabilidade é aqui referido segundo uma exigência normativa de garantia da pessoa humana, não se confundindo, por isso, ainda que tenha pontos aparentes de semelhança, com o critério de falseabilidade, ou falibili­dade, de Karl Popper, que no fundo é apenas um critério de verdade. Não se quer, na identificação do bem jurídico, conhecer a verdade, más estabelecer limites negativos à sua espiritualização. Quanto ã questão da verdade, o texto busca seguir as linhas traçadas por Wittgenstein, no sentido de que a identifi­cação do bem jurídico, assim como a identificação de uma realidade, deve, em todo caso, estar subordinada a um contexto, no qual o que menos importa é sua conclusão acerca da verdade ou da falsidade da preposição, e muito mais a exigência de que esse bem, para ser um bem jurídico, comporte um procedimento de demonstração de que seja, efetivamente, lesado ou posto em perigo, e que, portanto, a afirmação dessa condição de lesividade ou perigosi­dade possa igualmente ser negada, mediante idêntico procedimento. A exigên­cia de elementos procedimentais, como limites do poder e do discurso de validade jurídica, já fora, inclusive, proposta de forma bastante clara por Habermas e outros autores, cujos parâmetros essenciais se encontram expos­tos no capítulo 4.4.

224 TEORIA DO INJUSTi > I I

Por exemplo, ainda que a honra constitua um bem juríili. a incriminação de atentados ã honra não pode valer exclush.i mente sob este aspecto da lesão deste bem jurídico e nada m:iK < preciso que a incriminação desses atentados não implique unu dessocialização das pessoas, no sentido de proibir-lhes todos . .1 comentários sobre os demais, o que impossibilitaria a vida soci.il < a sua convivência. Imagine-se como seria intolerável a vida soi 1.1I se se proibisse, simplesmente, qualquer comentário áspero ou .u<- mesmo desairoso. à conduta dos que exerçam autoridade, com.. os governantes, os parlamentares, os juizes, os membros <1. . Ministério Público ou os funcionários.

A exigência de uma delimitação da intervenção do Esimlo igualmente no âmbito do processo de socialização, ou dessod:ili zação, e não apenas no âmbito causai da produção de e fe ito s

deflui da necessidade de situar o bem jurídico, não apenas, agoi.tcomo objeto de preferência ou de referência, mas sim ........instrumento de discussão da legitimidade do próprio direito 11* punir. Neste sentido é que se diz que o bem jurídico cumpre, assim, um papel delimítativo da incriminação e protetivo da pessoa.

Encarando essas particularidades do bem jurídico e os prim 1 pios delimitativos e protetivos daí inferidos, pode-se concluir qm- será incompatível com o princípio democrático qualquer incriim nação que, por exemplo, utilize a definição típica como instrunu i 1 to de cobrança de dívidas públicas ou privadas, ou que restrinj:i .1 liberdade de expressão em proveito de um programa político in­segurança ou de manutenção de monopólios, ou que viole- .1 intimidade com o propósito de assegurar a dominação de men.i dos, ou a imposição de uma política econômica globalizada, ou qur regulamente a vida privada, exigindo do sujeito o cumprimento <lc normas de segurança pessoal, mesmo sem seu consentimento.

Em situações dessa ordem, a eleição da função na condiçu > de bem jurídico, como categoria pública ou estatal, sem considerac;:n > às condições do sujeito e seus projetos, bem como ao processo «Ir sua dessocialização, viola os fundamentos do Estado democrátio >. amparados na proteção da dignidade da pessoa humana.

• 'VTEÚDO DO INJUSTO

1.1.2 A conduta típica

Por outra parte, o bem jurídico só pode,'.(• esta violação se der na zona do ilícito. C íiuidamentalmente uma norma de conduta,-I. marcar as zonas do lícito e do ilícito em n ili limitar o poder de intervenção do Estado, a ação ou a omissão it|>ica violadora de bem jurídico é sempre representada por um mtIx> dotado de certo sentido. A representação da ação por meio de um verbo demonstra, por seu turno, o sentido dinâmico da conduta «l>ica, que passa a ser operada por um sujeito determinado.

A vinculação do sujeito à execução da ação põe de manifesto< p ic o tipo deve estar amparado também por critérios de imputação, <le modo que seja atribuído a alguém com base na causalidade de mui produção e ainda pelos princípios de orientação na ordem nindica, com vistas aos propósitos garantístas. Os critérios de imputação é que irão determinar, por seu turno, a divisão entre• Iclitos dolosos e culposos e bem assim fundamentar os delitos uiuissivos, tanto próprios quanto impróprios.

Diversamente da postura finalista que, desde o primeiro mstante da manifestação volitiva, vê essa divisão como conse­qüência necessária da configuração ôntica da ação — ação como exercício da atividade final e assim composta naturalisticamente - , a tnrmação dos tipos dolosos, culposos e omissivos não pode ser u iirada de um processo natural, senão dos critérios de imputação derivados da estrutura de demarcação das zonas do lícito e do ilícito e da relação entre as modalidades de conduta e os seus eleitos lesivos ou perigosos aos bens jurídicos.

A questão não está, como afirmamos em trabalho anterior­mente publicado, na esteira da teoria finalista, em determinar a ;.;radação do injusto a partir do conteúdo da ação, no plano «>ntológico403. Naquela ocasião, embora tivéssemos em conta que .1 distinção entre dolo e culpa só pudesse ser realizada dentro da estrutura do injusto, ainda o configurávamos como uma avaliação

juarez Tavares. Direito penal da negligência, S. Paulo, 1985, p. 114 etseq.