o mal e a justiça de deus - mundo injusto, deus justo- n. t. wright

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« Livra-nos do mal” — é o que pedimos, vezes sem conta, na oração do Pai-Nosso. Porém, como isso acontecerá, não apenas acadaum individualmente, mas a todo o mundo criado por Deus?”

« A melhor de todas as notícias é que não precisamos esperar o fu tu ro para começar a viver a libertação do mal.Somos convidados a começar essa vida hoje. Suspeito que os problemas que isso nos apresenta — questões imediatas de perdão a nós mesmos e ao próximo, e questões práticas e políticas de se trabalhar por um mundo onde as pessoas não queiram mais ser terroristas, escravizar umas as outras, onde aqueles que correm risco por causa de desastres naturais recebam proteção especial — sejam os verdadeiros problemas, e que as questões filosóficas funcionem apenas como uma cortina de fumaça atrás da qual tentamos nos esconder.”

« O mal é mais do que a soma de pecados ind iv idua is, e não pode ser en tend ido da fo rm a co rre ta pelo dualism o, seja o on to lóg ico , que vê o m undo comoalgo mau do qual é preciso fugir, ou o socio lógico, que d iv ide o m undo entre “ nós” (bons) e “ eles” (maus).”

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O MALE A JUSTIÇA DE

DEUSMundo injusto, Deus justo?

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N. T. WRIGHT

O MALE A JUSTIÇA DE

DEUSMundo injusto, Deus justo?

t r a d u z i d o POR C LÁ U D IA ZILLER FARIA

a Editora UltimatoViçosa, MG

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0 MAL E A JUSTIÇA DE DEUS C ateg o ria : Ética / V id a Cristã / Liderança

Copyright © Nicholas Thomas Wright, 2006Publicado originalmente por Society for Promoting Christian KLondon, England.Título original em inglês: Evil and the Justice o f God

Primeira ed ição: Março de 2009 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Tradução: Cláudia Ziller Faria Revisão: Paula Mazzini Mendes Diagramação: B.J. Carvalho Capa: Caio Campana

Ficha catalográfica preparada pela Seçao de Catalogação 1 Classificação da Biblioteca Central da UFV

W953m Wright, N.T., 1948-

2009 o mal e a justiça de Deus / N.T. Wright ; tradução deCláudia Ziller Faria. — Viçosa, MG : Ultimato, 2009.

160p.; 21cm.

Título original: Evil and the Justice of God ISBN 978-85-7779-018-0 1. Bem e mal. I. Título.

CDD 22.ed. 236 .

Pu b l ic a d o n o B r a s il c o m a u t o r iz a ç ã o e c o m t o d o s o s d ir e it o s r e s e r v a d o s

E D IT O R A U LT IM A TO L T D A .Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MGTelefone: 31 3611-8500 — Fax: 31 3891-1557 w ww .ultim ato.com .br

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Em memória dos que morreram em Nova York e Washington em 11 de setembro de 2001,

no Oceano Indico em dezembro de 2004, em Nova Orleans e no Golfo do México em agosto de 2005,

no Paquistão e na Caxemira em outubro de 2005.

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S u m á r i o

Prefácio 9

1. O mal ainda é o mesmo:0 novo problema do mal 13

2. O que Deus p ode fazer a respeito do mal?Mundo injusto, Deus justo? 39

3. O mal e o Deus crucificado 67

4. Im agine que o mal não exista:Deus promete um mundo liberto 91

5. Livra-nos d o mal:Perdoando a mim mesmo, perdoando os outros 117

N otas 147índice de assuntos 149Livros bíblicos discutidos 157

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P r e f á c i o

Depois de alguns anos me dedicando a escrever um livro sobre a ressurreição, decidi, no início de 2003, voltar a

atenção para o significado da crucificação de Jesus. N o entan­to, assim que comecei a pensar em como abordaria o tema, percebi que primeiramente haveria outra coisa a fazer. Geral­mente, quando os cristãos falam sobre a conquista de Jesus por meio de sua morte, se referem à cruz com o uma resposta ao mal ou um resultado dele. Porém, o que é o mal?

Essa questão já havia sido apresentada a mim por uma ra­zão bem diferente. Depois de 11 de setembro de 2001, quando terroristas jogaram aviões nas Torres Gêmeas, em Nova York, e no Pentágono, em W ashington, o assunto “mal” ficou em evidência. George Bush declarou que existia um “eixo do m al” que precisava ser destruído. Tony Blair, o então primeiro-mi- nistro britânico, anunciou que a tarefa do político era livrar o m undo do mal. Com entaristas tanto de esquerda quanto de direita expressaram suas dúvidas quanto à análise e à solução do problema — dúvidas que foram reforçadas pela guerra do Iraque e suas conseqüências.

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Transformei minhas reflexões em cinco palestras, proferidas na Abadia de Westminster, onde trabalhava na ocasião, no pri­meiro semestre de 2003. Depois, adaptei-as para um programa de televisão produzido pela Blakeway Productions e transmitido pelo Canal 4 do Reino Unido, na Páscoa de 2005. O progra­ma está disponível no site <www.blakeway.co.uk>. Sou grato ao produtor David Wilson, e ao próprio Denis Blakeway, por en­tenderem o que eu queria dizer e me ajudarem a me comunicar por meio de uma mídia que eu desconhecia. Os que assistiram ao programa e ficaram confusos com o que eu tentei dizer nos 49 minutos que me foram dados, talvez se sintam mais confortá­veis com a versão completa apresentada neste livro.

N ão tenho a pretensão de ter tratado o problema do mal nem, especialmente, o significado da crucificação de Jesus por completo, nem com a mesma ênfase. O capítulo central deste livro aborda a morte de Jesus sob um aspecto que considero profundamente amplo. Porém, para se analisar o significado e o efeito salvador da morte de Jesus de forma mais abrangente,seria necessário levantar e responder a questões que nem mes­mo foram mencionadas aqui, além de abordar textos bíblicos e ideias teológicas e filosóficas que excederiam o espaço deste livro. N o entanto, espero que este trabalho ao menos aponte a direção para outros estudos.

N a primeira palestra — agora capítulo 1 — usei com ilustra­ção a imagem bíblica do mar revolto, indomável. Então, fiquei chocado quando vi um tsunam i irromper do Oceano Índico e devastar populações e comunidades, no dia 26 de dezembro de 2004. Tempos depois, assim como o resto do mundo, tive um a sensação de déjà vu em agosto de 2005, quando o furacão Katrina deixou Nova Orleans e grande parte da costa do Golfo do México debaixo d ’água. Ao pensar sobre as pessoas a quem dedicaria o livro, não poderia deixar de honrar a memória dos que morreram nesses dois desastres e, depois, no terremoto

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que atingiu o Paquistão e a Caxemira, além das vítimas dos ataques de 11 de setembro de 2001. Eles nos lembram que não nos compete “solucionar” o “problema do mal” neste mun­do, e que nossa missão principal não é responder a questões filosóficas complexas, mas sim manifestar os sinais do novo m undo de Deus, com base na morte de Jesus e no poder de seu Espírito, mesmo em meio a “esta presente era perversa”.

N. I WrightAuddand Castle

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CAPÍTULO UM

O MAL AINDA É 0 MESMO!

O novo problema do mal

Muitas pessoas ficam decepcionadas quando descobrem que, segundo Apocalipse 21, não existirá mar no novo

céu e na nova terra. Contem plar o mar, velejar e nadar são pra- zeres perenes, pelo menos para quem não precisa se sustentar negociando com seus hábitos traiçoeiros e suas crises de mau humor. Eu mesmo compartilho dessa surpresa e decepção, pois gosto de observar o mar e nadar de vez em quando. Po­rém, dentro de uma visão bíblica mais ampla, as coisas podem começar a fazer sentido.

O mar faz parte da criação original. Gênesis 1 fala do mar antes de citar a terra seca, que, assim como os animais, surgiu a partir dele. O mar faz parte do m undo que Deus, após seis dias, disse que era “muito bom ”. Em Gênesis 6, no entanto, as águas do dilúvio ameaçam todo o m undo criado por Deus e apenas Noé e seu zoológico flutuante escapam, pela graça de Deus. Parece que as forças do caos, prontas para executar o julgamento divino, surgem da própria criação.

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O mar só é citado novamente na Bíblia quando Moisés e os israelitas ficam diante dele, perseguidos pelos egípcios, sem saber o que fazer. Deus abre um caminho no meio do mar para resgatar seu povo e, mais um a vez, julgar o m undo pagão— a mesma história, apresentada de outro jeito. Mais tarde, quando os poetas de Israel olham para esse momento decisivo na formação do povo de Deus, celebram-no usando termos dos antigos mitos da criação dos cananeus: YHW H é sobera­no sobre o dilúvio (SI 29.10). Se as enchentes levantam a voz, YHW H nas alturas é mais poderoso do que elas (SI 93.3ss). As águas o viram, ficaram com medo e retrocederam (SI 77.16; 114.3, 5; YHW H é o nome bíblico do Deus de Israel). Assim, quando o salmista descreve seu desespero por ter água até o pescoço, como no Salm o 69, ele reconhece que YHW H con­trola o mar bravio e faz com que ele o louve (69.1, 34).1 Porém, mais tarde, em um texto que exerceu forte influência sobre o cristianismo primitivo, temos a visão de Daniel 7, em que os monstros que guerreiam contra os santos do Altíssimo saem do mar, que se torna sombrio, am edrontador e ameaçador, o lugar de onde o mal emerge e ameaça o povo de Deus, como uma onda gigante que se lança sobre os que vivem na costa. Para os israelitas na antiguidade, que não eram grandes mari­nheiros, o mar representava o mal e o caos, o poder tenebroso capaz de fazer com o povo de Deus o que o dilúvio fizera com todo o m undo, a não ser que Deus os resgatasse, como resga­tara Noé.

Pode ser, inclusive (em bora isso nos afaste um pouco do tema), que nosso am or pelo oceano seja motivado pelo mes­mo sentim ento que nos leva a assistir a um filme de terror: poder observar seu im enso poder e a energia incessante, mas de um a distância segura. O u então, se velejamos, ou nada­mos, podem os usar sua energia sem serm os engolidos por ela. Suspeito que existam inúm eros trabalhos acadêmicos

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sobre os aspectos psicológicos envolvidos nessas atividades. C laro, o prazer se transform aria em pavor se estivéssemos observando as ondas e um tsunam i viesse sobre nós, assim com o a em polgação de assistir a um filme policial se transfor­m aria em pânico caso os bandidos arm ados resolvessem sair da tela e am eaçar os espectadores. Ver o mar e um filme de um a distância segura pode ser um a form a de dizer a nós mes­m os que o m al pode até existir, o caos pode até se instalar em algum lugar, mas, pelo m enos nós, felizmente, estam os bem e não sofrem os ameaça im ediata. Talvez isso tam bém signifi­que que, ainda que o m al exista dentro de nós, que existam forças m alignas e caóticas bem no fundo de nosso ser, das quais temos apenas um a percepção subliminar, está tudo sob controle. N o final, o dique vai segurar o mar e a polícia vai prender os bandidos.

N os filmes das últimas duas décadas, no entanto, as coi­sas nem sempre acabam tão bem. Isso pode nos mostrar algo sobre como vemos o mal no m undo e em nós mesmos. Essa percepção, e a tentativa cristã de entender o mal, criticá-lo e solucioná-lo, é o assunto deste livro. Com ecei com o intuito de escrever sobre o significado da crucificação de Jesus, já que havia escrito muito sobre a ressurreição. Pareceu-me que, as­sim, equilibraria as coisas. Porém, quanto mais pensava nisso, mais me dava conta de que, para falar de forma significativa sobre a cruz, seria necessário abordar o mal, problema que, na teologia clássica, a cruz deliberadamente suscitou.

Assim que pensei em falar sobre o mal, percebi que este é um tema atual e urgente, que todos têm discutido. Depois de 11 de setembro de 2001, o presidente Bush declarou que existe um “eixo do m al” em algum lugar e que precisamos encontrar as pessoas más para evitar que continuem a fazer o mal. Tony Blair, ambicioso, afirmou que nosso alvo deveser livrar o m undo do mal. N o dia em que fiz o esboço deste

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já bem estabelecida entre a cultura dom inante, recebeu um grande im pulso com a popularização da pesquisa de Charles Darwin e sua aplicação a cam pos m uito mais diversos que o estudo dos pássaros e m amíferos de G alápagos. A intensacom binação entre os avanços tecnológicos, os progressos na medicina, o panteísm o rom ântico, o idealismo progressivo hegeliano e o darwinismo social gerou um clima de intelec- tualism o no qual, até hoje, m uitos vivem e atuam, especial­mente na vida pública. Assim , pelo fato de vivermos “nesta época” podem os ter certas expectativas; antevemos um a ca­m inhada constante rum o à liberdade e à justiça, geralmente entendida com o o triunfo paulatino, em bora certo, da de­m ocracia liberal do ocidente e das formas mais flexíveis do socialism o. De forma generalizada, quando alguém afirma que determ inadas coisas são inaceitáveis “agora que estamos no século 21” , está apelando para um a suposta doutrina de progresso e, mais ainda, um progresso em um a direção es­pecífica. Fom os ensinados, geralmente pelos discursos dos profissionais da m ídia e dos políticos e não por argumentos explícitos, a nos curvar diante do progresso. Ele é inevitável. N inguém quer ficar para trás, ser ultrapassado, viver com o os antigos. A expressão “fora de m oda” se tornou a crítica maior; o “progresso” (que m uitas vezes não passa de uma variação da moda) tornou-se o único e mais im portante indi­cador em nossa cultura e sociedade.

Essa concepção de progresso enfrentou pelo menos três de­safios bem distintos e é incrível perceber que ela sobreviveu e continua a se desenvolver. Para muitos, a Primeira Guerra M undial destruiu o antigo idealismo liberal. Em 1919, quan­do Karl Barth escreveu seu primeiro comentário sobre Roma­nos, sua mensagem principal era que estava na hora de ouvir a palavra de Deus vinda de fora, em vez de se apoiar no avan­ço constante do reino de Deus dentro do processo histórico.

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Dostoievsky, em Os irmãos Karamazov, traz um a passagem marcante, em que ele considera a possibilidade de o m undo avançar rumo à perfeição sob a pena de torturar uma criança inocente até a morte, mas conclui que o preço é alto demais. Auschwitz destruiu — alguns pensariam que para sempre — a ideia de que a civilização europeia era um lugar onde a nobre­za, a virtude e a razão humanizadora poderiam se desenvolver e se propagar. As profundas raízes do Holocausto, encontradas em várias correntes do pensamento europeu — até mesmo no próprio Hegel, que considerava o judaísm o um a manifestação do tipo errado de religião — precisam ser desfeitas e descons- truídas.

Portanto, como afirmei, parece incrível que a crença no pro­gresso ainda sobreviva e triunfe. O século 19 pensou que havia exterminado o pecado original. C om o obviamente era neces­sário encontrar substitutos, M arx e Freud ofereceram alguns. Apresentaram sistemas explanatórios e soluções adequadas para esses sistemas, novas doutrinas de redenção que pareciam paró­dias da doutrina cristã. E de alguma forma, apesar das terríveis batalhas de Mons e Somme, na Primeira Guerra Mundial, de Auschwitz e Buchenwald, de Dostoievsky e Barth, as pessoas até hoje acreditam que o mundo é basicamente um bom lugar e que seus problemas podem ser mais ou menos solucionados com tecnologia, educação, “desenvolvimento” no sentido de “ocidentalização”, e com a crescente adoção da democracia oci­dental e, segundo a preferência, dos ideais sociodemocráticos ocidentais, do capitalismo ocidental ou até mesmo de uma mis­tura dos dois.

Essa situação trouxe à tona três aspectos que caracterizam o novo problema do mal. Primeiro, ignoramos o mal quandoele não nos atinge diretamente. Segundo, nos surpreendemos quando o mal nos alcança e, terceiro, reagimos de forma ima­tura e perigosa. Explicarei cada um desses aspectos.

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Primeiro, ignoramos o mal quando ele não nos atinge diretamente. Alguns filósofos e psicólogos tentam nos convencer de que o mal é apenas o lado sombrio do bem, uma parte do equilíbrio essencial do mundo, e aconselham-nos a evitar o dua­lismo excessivo, a polarização entre o bem e o mal. Isso nos leva direto à filosofia de Nietzsche sobre o poder e, retrocedendo um pouco, a Hitler e Auschwitz. Ao ultrapassarmos o bem e o mal, chegamos a uma esfera na qual o poder é um direito e tudo que lembre os antigos valores morais — uma grande comunidade ju­daica, por exemplo — e impede o progresso deve ser eliminado.

N o entanto, não é necessário retroceder sessenta anos para verificar isso. Os políticos ocidentais sabiam que a Al-Qaeda era um a força que devia ser controlada, mas ninguém quis levá-la a sério até ser tarde demais. Todos sabem que a dívida nacional crônica em vários dos países mais pobres do m un­do é uma grande mancha na consciência coletiva. Contudo, nossos políticos, até mesmo os mais empáticos, não querem enfrentar a situação com seriedade, porque, do nosso ponto de vista, o m undo está cam inhando mais ou menos bem e não queremos prejudicar a economia. N osso desejo é fazer negó­cios e fortalecê-la. A “escolha” é um bem essencial para todos. Então, se oferecemos Coca-Cola e Pepsi para uma África fa­m inta e devastada pela aids, e exploramos um imenso merca­do ainda inexplorado enquanto acrescentamos cárie à outros problemas crônicos, estamos apenas promovendo o bem-estar da população. Sabem os que a libertinagem sexual traz imensa infelicidade para as famílias e os indivíduos, mas, como vive­mos no século 21, não queremos dizer que o adultério é errado (devemos notar que há apenas duas gerações muitas comuni­dades tinham sobre o adultério a mesma opinião que hoje têm sobre a pedofilia — fato preocupante em am bos os lados).

Cresci numa época em que a censura estava sendo banida. Diziam que a única obscenidade verdadeira era a censura. Tudo

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que as pessoas queriam fazer ou dizer era basicamente bom; devíamos exaltar todos os nossos instintos; ninguém podia controlar o que o outro fazia. Até hoje a palavra “controle” é dita com desprezo, como na expressão “maníaco controlador” , como se a norma moral básica fosse a inexistência de controle; exatamente como alguns slogans de certas empresas que afir­mam que “não existem limites”. Vivemos em um m undo onde os políticos, os experts da mídia, os economistas e até mesmo os teólogos liberais mais atrasados falam da humanidade como se ela fosse bastante boa, como se o m undo fosse bom e como se não houvesse nenhum motivo para nos preocuparmos.

Então, em segundo lugar, nos surpreendem os quando o mal nos atinge diretamente. Gostam os de pensar que as pequenas cidades inglesas são agradáveis e seguras e ficamos chocados quando duas garotinhas são assassinadas em Soham , por al­guém que elas conheciam e em quem confiavam. N ão sabemos com o classificar um ato desse tipo, assim como não sabemos classificar o mal em suas novas formas, como a violência tribal e o genocídio na África ou o movimento pela “balcanização”. Preferimos nos enganar e acreditar que o m undo é bom , agora que tantos países adotaram a democracia, ou caminham para isso, e a globalização, na teoria, nos capacitou a fazer, lucrar e conhecer tanto. Então, ficamos confusos e chocados com a multidão que bate à nossa porta, com a miríade de pessoas que vem para os países ocidentais em busca de asilo, incluindo um grupo, m aior do que pensávamos, de pessoas que não pro­curam segurança nem fogem da perseguição ou da tirania, mas vem disfarçadas, almejando praticar seus atos terroristas.

N a verdade, o próprio terrorismo nos pega de surpresa; nos acostumamos a imaginar que todas as questões sérias devem ser resolvidas em torno de uma mesa de discussão, e ficamos surpresos com os que ainda acreditam que isso não funciona e que precisam usar métodos mais drásticos para mostrarem seu

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ponto de vista. E, acima de tudo, a morte sempre nos choca. Exceto nas histórias de terror, apagamos da mente aquilo que nossos antepassados levavam tão a sério (tinham famílias nu­merosas porque uma epidemia súbita poderia levar metade dos filhos em questão de dias). Da mesma forma, a morte foi banida da sociedade, já que cada vez menos pessoas morrem em suas casas, em suas camas. A morte foi afastada, também, de nossa imaginação social profunda, já que a busca incessante por pra­zer sexual — e o sexo é uma forma de rir diante da morte — acaba sugando nossa energia e entusiasmo e anestesiando a lembrança dolorosa que surge em cada funeral e em cada assassinato que a televisão traz para nossa sala. Esquecemos do mal quando ele não nos atinge em cheio, então, acabamos chocados e intriga­dos quando ele surge.

Terceiro, como resultado, reagimos de forma imatura e perigosa. Ao declararmos que quase toda atividade sexual é boa, lícita e recomendável, ficamos ainda mais horrorizados diante do único tabu que permanece, a pedofilia. E como se toda a indignação moral, que deveria se espalhar com a mes­ma intensidade, atingindo assim muitas outras áreas, tivesse sido canalizada para esse único crime. Sem dúvida o abuso infantil é algo repugnante, mas devemos nos atentar a esse moralismo impensado, ansioso por condenar esse ato simples­mente porque detestamos pensar nisso e não com base em fundamentos adequados. Esse tipo de “m oralidade” pode, e geralmente é, m anipulado. Atacar algo que você sabe que é errado por intuição pode ser melhor do que tolerar o erro. Porém, esse dificilmente será o caminho para construir uma sociedade moralmente estabilizada.

U m dos exemplos mais evidentes e preocupantes desse fenô­meno foi a reação nos Estados Unidos (e proporcionalmente no Reino Unido) aos acontecimentos de 11 de setembro de 2001. Aquele dia terrível provocou pânico e ira justificados, porém,

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a reação oficial foi a típica resposta obstinada, impensada e imatura que não leva a lugar algum. N ão me entendam mal. Os milhares de vítimas inocentes, cuja morte lamentamos, tiveram um destino trágico, horrível, e totalmente imerecido. Os atos terroristas da Al-Qaeda foram e continuam sendo totalmente maus. Contudo, a surpreendente ingenuidade de considerar os Estados Unidos como sendo uma vítima inocente, dividindo o mundo entre os maus (especialmente os árabes) e os bons (espe­cialmente os americanos e os judeus), sendo estes responsáveis pela punição daqueles, exemplifica bem o que falo. Sugerir o oposto disso, ou seja, que o mundo ocidental é culpado, em todos os aspectos, e que todos os protestos e atos terroristas têm justificativa também é uma consideração imatura e ingênua. Da mesma forma, sugerir que todos que possuem armas deveriam ser presos, ou que todos deveriam ter armas, para que as pessoas boas possam matar as más antes que elas consigam fazer suas maldades, não passa de um fracasso em perceber a profundi­dade desses acontecimentos. O segundo momento de horror do desastre de Nova Orleans, a violência praticada por aqueles que não tinham nada a perder e a ânsia por adquirir armas para proteger a si mesmos e suas propriedades, deveria nos ensinar uma lição, embora isso talvez não aconteça.

Atacar aqueles que são considerados o “mal” na esperança de resolver o problema — por exemplo, bombardear o Iraque e o Afeganistão por causa do 11 de setembro — é, na realidade,a aplicação prática das teorias filosóficas que pretendem “so­lucionar” o problema do mal. Vários autores afirmaram, por exemplo, que Deus permite o mal porque ele cria o ambiente para as virtudes florescerem. Acreditar que Deus permitiu que Auschwitz existisse porque alguns heróis surgiriam dificilmente seria uma solução para o problema. Os milhares de civis ino­centes que morreram no Iraque e no Afeganistão são testemu­nhas mudas de que tais “soluções” simplesmente aumentam o

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problema. E não digo isso apenas porque geram endurecimento e oposição. Assim como não é possível eliminar o mal com um decreto parlamentar, ou um a discussão filosófica, também não é possível eliminá-lo com explosivos de alta potência.

Talvez seja mais fácil perceber essa imaturidade diante do mal ao observarmos como reagimos quando ele nos atinge, ou atinge as circunstâncias que nos cercam. Neste exato momento, você sente raiva de quê? Quem foi injusto ou desonesto com você? C om o você reage a essas situações? Com o resolve o proble­ma? Em geral, reagimos de duas formas. Projetamos o mal nos outros, gerando uma cultura de acusação: a culpa é sempre dos outros, da sociedade, do governo e eu não passo de uma vítima inocente. Aliás, assumir o papel de vítima se tornou a nova ma­nia multicultural. As pessoas galgam uma posição moral mais elevada, na qual podem permanecer puras e limpas, enquanto todas as outras pessoas são culpadas. A outra reação é projetar o mal em nós mesmos e pensar que somos culpados por tudo.

Em bora essa seja um a das principais causas da depressão, a questão abrange mais do que estados psicológicos. Politica­mente, oscilamos entre os que nos dizem que todos os males da face da terra são culpa dos outros — terroristas, exilados, traficantes, criminosos — e os que seguem a psicologia popular das décadas de 60 e 70, afirm ando que somos todos culpados, que os terroristas só são terroristas por causa do que deixamos acontecer no país deles, que os exilados estão fugindo dos efei­tos de nossa política externa, que os traficantes se entregaram às drogas porque destruímos o meio de sustento que tinham e que os criminosos são vítimas de um a sociedade próspera. O fato de existir uma pequena parcela de verdade nos dois la­dos representados não é de grande ajuda. A cultura de acusar os outros (resultando em processos, exaltação das vítimas e hipo­crisia) e a cultura de acusar a si mesmo (resultando em depres­são e paralisia moral e social) são reações igualmente imaturas e

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inadequadas diante do problema do mal como ele se apresenta, não tanto em nossos debates metafísicos quanto em nossas ruas e na tela da televisão. Esse é o novo problema do mal. Desco­brimos que ele continua ativo, mas não temos a menor ideia do que fazer diante dele. E, permita-me acrescentar, ignorar sua existência também não resolve a questão.

Mais adiante, tratarei de como podem os começar a ama­durecer em nossa reação diante do mal: como tomar conhe­cimento dele em cada dim ensão e adquirir uma visão mais madura que nos permita tratar o problema de forma mais sa­tisfatória. Porém antes quero considerar a “pós-modernidade” em sua tentativa de combater o mal, algo que trouxe consigo toda uma cosmovisão.

Pós-modernidade — o novo niilismo

Em outras ocasiões, escrevi e falei sobre a pós-modernidade na literatura, na cultura e na teologia, e não há espaço aqui para desenvolver esse tópico de forma mais abrangente. Basta dizer que, a partir da Segunda Guerra M undial, surgiram diversos movimentos na cultura europeia e americana que julgam to­das as reivindicações por justiça, por poder e por ações ou pensamentos imparciais com o sendo motivadas por interesses egoístas; essas conclusões seriam a tradução e o ‘desmascara- m ento’ desses movimentos.

Para Marx, tudo se relacionava ao dinheiro, para Freud, ao sexo e, para Nietzsche, ao poder. Apesar de terem sido despreza­dos por grande parte da Europa na primeira metade do século 21, na segunda metade eles influenciaram diversas áreas, como a crítica literária, a arquitetura e a sociologia. A verdade sofre ataques por todos os lados, mesmo que continuemos insistindo na autenticidade, por meio da utilização de registros e checa­gens uns dos outros. Com o Bernard Williams mostrou em seu

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último livro, Truth and Truthfulness (verdade e autenticidade), esse estado, contraditório em si mesmo — ou seja, uma exigência cada vez maior pela verdade e uma dificuldade cada vez maior de discerni-la — resulta da cultura da suspeita, que cresceu lenta­mente, e hoje permeia tudo.

Embora as raízes da pós-modernidade remontem a pensa­dores que viveram há um século, ou até mais, a maneira como ela ressurgiu e a forma específica que tomou na atualidade tem muito a ver como o horror do Holocausto. O filósofo Theo- dor Adorno declarou que é impossível escrever poesia depois de Auschwitz, e pode ser que, pelo menos em certo nível, os teóri­cos da pós-modernidade estavam dizendo que já não é possível falar a verdade. Se a cultura predominante na Europa foi capaz de produzir o Holocausto, com certeza devemos suspeitar de tudo que existe. Porém, a pós-modernidade não se detém nes­se ponto. O problema do mal, tão enfatizado por ela, vai mais além do que sugerir que todas as afirmações humanas são fal­sas; ele chega a desconstruir os próprios seres humanos. O “eu” deixa de existir — passa a ser uma massa retorcida de emoções, significâncias e impulsos, ou seja, “eu” estou sempre em estado de mudança. O imperativo moral que restou do existencialismo moderado (que a pessoa deve ser sincera com seu eu mais pro­fundo) colide com a afirmação pós-moderna sobre a fluidez e instabilidade desse eu profundo: “Q uando faço música”, disse o jazzista Charlie Parker, “toco quem realmente sou; o problemaé que me transformo o tempo todo”. U m a música maravilhosa, mas um a filosofia e uma psicologia profundamente confusas.

Isso também é uma reação ao problema do mal. O pós- modernismo, ao reconhecer nossa profunda imperfeição, evi­ta voltar à doutrina clássica do pecado original e alega que os seres humanos não possuem “identidade” fixa e, portanto, não têm responsabilidade fixa. N ão se pode escapar do mal, mas também não há como encontrar alguém que seja responsável

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por ele. Assim, um dos principais fenômenos socioculturais que caracteriza a pós-modernidade é o fato de ninguém assumir a responsabilidade por grandes desastres, como, por exemplo, um acidente de trem que ocorre por causa de defeitos na ferro­via, conhecidos de antemão, mas que não foram consertados, e ninguém, nenhum executivo da empresa, nem mesmo o con­selho diretor, assumiu a culpa. A pós-modernidade incentiva a abordagem cética: nada vai melhorar e não há nada que você possa fazer a respeito disso. N ão causa surpresa saber que isso resultou no aumento contínuo das taxas de suicídio, inclusive entre os jovens que (muitos poderiam dizer) tinham tantas coi­sas pela frente, mas absorveram a pós-modernidade por todos os poros. N ão que isso seja novidade. Epicteto, o inflexível fi­lósofo do século 1, teria entendido isso, embora desprezasse a postura intelectual que está por trás de tudo.

D epois desses comentários, afirmar que a pós-modernida­de deve ser bem-vinda em todos os aspectos talvez cause sur­presa. Ela traz uma visão do mal a qual a cultura dominante que descrevi antes ainda resiste. Desconstrói, especialmente, a perigosa ideologia do “progresso” . Suponho que a principal função da pós-modernidade, sob a direção de Deus, é pregar a doutrina da queda (a realidade de uma ferida profunda e fatal na natureza humana) para a arrogância modernista, pós-século 18, que supõe ter resolvido todos os problemas do mundo. Porém, além do ceticismo que mencionei, há dois problemas específicos na análise pós-moderna do mal que devem nos le­var a um a reflexão mais ampla e profunda.

Primeiro, sua análise é essencialmente desumanizadora. N ão existe mais dignidade moral, porque não há mais ninguém para assumir a culpa. Assum ir a responsabilidade é a última virtude que resta aos que rejeitaram todas as outras opções. Rejeitá-la significa reduzir os seres humanos a meras cifras. A m aioria de nós, sobretudo as vítimas de crime e abuso,

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considera isso contraproducente e revoltante. Os seres humanos são (dentro da razão e de certos limites) agentes responsáveis e devem continuar a ser vistos como tais. E muito comovente o testemunho de George Steiner, no final de sua autobiografia, Errata. Ele declara que, embora não consiga acreditar totalmen­te em Deus, tem certeza de que o mal existe e que os seres huma­nos devem assumir sua porção de responsabilidade diante dele. Trata-se de um apelo a um humanismo sombrio, mas autêntico, no final de um século desumano. -

Segundo, a análise do mal, oferecida pela pós-modernida- de, não dá lugar à redenção. N ão há fuga, não há oportuni­dade para o arrependimento e a restauração, nem formas de retornar à segurança da verdade, deixando para trás a instabili­dade da desconstrução. A pós-modernidade pode estar correta ao afirmar que o mal existe, é poderoso e notável, mas ela não nos orienta quanto ao que podem os fazer em relação a ele. Portanto, é essencial procurarmos respostas em outro lugar, ampliarmos os conceitos do problema para além dos enigmas superficiais e das análises niilistas desconstrutivas. Isso nos leva à terceira parte deste capítulo.

Em busca de uma nova visão do mal

A o buscarmos uma visão mais abrangente e fundam entada sobre o mal, percebemos que as principais correntes de pen­samento possuem formas de interpretá-lo. O budism o afirma que o m undo presente é um a ilusão e que o principal objeti­vo da vida hum ana é escapar dele. Esse pensamento tem vá­rias semelhanças com o platonism o clássico, embora Platão afirmasse também que a verdadeira justiça e virtude deveriam se estabelecer no m undo do espaço, do tempo e da matéria, mesmo que a realidade esteja em outro lugar. O hinduísmo defende que o mal que aflige as pessoas, e até os animais, na

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vida presente, pode ser explicado pelos erros cometidos em uma vida anterior e devem ser expiados pela aceitação do carma de cada um no presente — uma visão que oferece uma solução totalmente satisfatória em um nível, mas que causa grandes e inesperados problemas em outros. O marxismo, desenvolvendo seletivamente alguns aspectos do pensamento de Hegel, defen- de que o m undo se move de determinada forma rumo à dita­dura do proletariado; os problemas que surgem no processo, incluindo a necessidade de uma revolução violenta, não passam de incômodos inevitáveis que serão justificados pelo resultado final. O final glorioso vâlidará os meios indevidos. Ao comer uma omelete, a pessoa sabe que foi preciso quebrar os ovos. Os muçulmanos, se é que entendo bem o islamismo, dizem que o mundo jaz na iniqüidade, porque a mensagem de Alá, transmi­tida por Maomé, ainda não atingiu todas as pessoas. Para eles, a solução é levar a religião ao mundo, gerando com isso uma imensa distinção entre a maioria dos muçulmanos, que entende essa ordem como um processo pacífico, e uma pequena minoria que busca conseguir isso por meio da jihad.

C om o seria a visão cristã, ou judaica, do mal? Em que ela difere do que foi apresentado até agora? Esse é justamente o assunto do livro e deixo para responder mais adiante. N o en­tanto, alguns comentários são necessários para nos ajudar a pensar sobre o que deveria ser incluído ao se analisar o mal de forma mais séria.

Neste ponto, três conceitos do nosso pensamento devem ser analisados.

O primeiro é reconhecer a falha em nossa pressuposição oci­dental de que nosso tipo de democracia é perfeito e completo, o auge de um longo processo libertacionista nobre que remonta à Carta Magna. Basicamente, essa pressuposição contemporânea, uma forma atenuada de contar a história moderna, em que as coisas sempre prosseguirão em direção à liberalidade, apresenta

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todo tipo de problema, sem falar no estado de crise em que nossas instituições democráticas se encontram atualmente. Nos Estados Unidos, vemos a política dos super-ricos e uma cren­ça aparentemente incontrolável de que o país tem o direito de controlar o mundo, seja pela economia ou por meio de armas. N a Inglaterra, o governo está cada vez mais presidencial, o par­lamento, marginalizado e o eleitorado, insatisfeito. N a Europa, encontramos múltiplas ironias e tensões, corrupções e enganos que não são identificados nem resolvidos quando os debates são considerados meras discussões entre eurófilos e eurófobos. Será que realmente temos certeza de que o estilo de governo ocidental é o único, ou o melhor? Pessoalmente, continuo con­cordando com Churchill: a democracia é a pior forma de gover­no, com exceção de todas as outras que surgem de tempos em tempos. Com toda certeza, não quero viver sob outra forma de governo. Contudo, ao observar os problemas que enfrentamos, penso que deveríamos ser cautelosos com a idéia de esperar que, por exemplo, o Afeganistão, ou o Iraque, ajam da mesma forma que agimos. O que defendo é que devemos reconhecer que o simples fato de levantarmos a bandeira da ‘democracia ociden­tal’ não resolve o problema do mal, de como ele se apresenta em nossa sociedade.

O segundo elemento a ser analisado é o psicológico. O fa­moso psicoterapeuta americano M. Scott Peck foi agnóstico por muitos anos. Aprendeu uma psiquiatria baseada na convicção de que o mal não existe. Porém, para sua surpresa, na mesma época em que se converteu ao cristianismo, começou a reconhe­cer que, em certos casos, não bastava afirmar que o paciente, ou sua família, estava enfermo, confuso ou desorientado. Ele foi obrigado a defrontar-se com um poder maior, mais tenebroso, para o qual a única palavra definidora era “mal” e escreveu o livro O Povo da Mentira para tratar desse assunto tão impopu­lar. Claro que, desde Aristóteles, reconhece-se a existência de

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uma fraqueza da vontade — akrasia, segundo a terminologia do filósofo. Todos conhecem a experiência de querer fazer algo bom e acabar fazendo algo mau. O que a psiquiatria precisa, de acordo com Peck, é confrontar-se com a possibilidade de os se­res humanos serem dominados pelo mal, acreditarem em uma mentira e viverem de acordo com ela, esquecendo que é uma mentira e fazendo dela a base de sua existência. N ão há como dizer se a diferença entre a fraqueza comum da vontade e ser do­minado por uma mentira de forma tal que se chega a acreditar completamente nela é uma diferença de grau ou de qualidade, mas suspeito que seja esta última. O que devemos entender é que, quando nos referimos ao mal é preciso reconhecer — algo que nem a modernidade nem a pós-modernidade parecem fazer— que o mal humano existe e assume várias formas, incluin­do o estado em que a pessoa está absolutamente convencida e argumenta persuasivamente não somente que está certa, mas também que está mostrando a direção a seguir.

Em seu livro, Peck, confrontando toda a sua formação liberal tradicional e seu entendim ento prévio, afirm a que existe um a força, ou forças do mal, que são extrapessoais e extra-humanas, que parecem dom inar os indivíduos ou, em alguns casos, sociedades inteiras. Falar sobre forças dem oní­acas é algo tão problem ático e tão desprezado pelo moder­nism o liberal que seria perigoso até m encionar a questão. A inda assim, vários respeitados analistas do século passado foram obrigados a considerá-las para tentar entender ou ex­plicar o que aconteceu. O m ais notável entre eles é Thom as M ann, em sua obra-prima angustiante Doutor Fausto. Pouco a pouco, percebe-se que o personagem Fausto representa a pró­pria Alem anha, que vende a alma ao diabo e se vê dom inada por um poder m aior do que ela mesma, um poder terrível que destruiria m uitos outros, mas que, no fim, acabaria por destruir a si mesma.

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Estam os apenas começando a entender esse elemento, essa dim ensão no problema do mal. N em o modernismo, nem o pós-modernismo se interessam pelo assunto, e muitos teólogos cristãos, cientes dos perigos existentes no interesse desequilibrado pelo assunto, se mantêm bem afastados dele, como eu mesmo fiz na maior parte de meu trabalho. Porém, como Walter W ink afirma em suas principais obras sobre os poderes,3 existe m uito a ser dito sobre a visão de que toda instituição corporativa possui um tipo de alma corporativa, um a identidade m aior do que a soma de suas partes, e que pode realmente ordenar às partes o que fazer e como agir. Isso nos leva a concluir que, pelo menos em alguns casos, algumas dessas instituições, sejam indústrias, governos e até (Deus nos ajude!) igrejas, podem se corromper a tal ponto pelo mal que a palavra “possessão”, em um nível corporativo, se torna a única forma de explicar o fenômeno que presenciamos.

Isso conduz ao terceiro ponto, ilustrado de forma comovente pelo russo Alexander Soljenítsin ao voltar para sua terra natal após longos anos de exílio. Ele saudava a todos que encontra­va pelo caminho, inclusive os burocratas que participaram da tirania contra seus concidadãos durante o governo comunista, e que continuaram no governo depois de 1989. Alguns discor­davam, achando que ele não deveria confraternizar com pessoas que haviam sido parte do sistema maligno. Ele respondia: “A linha divisória entre o bem e o mal não está simplesmente entre ‘nós’ e ‘eles’. Essa linha transpõe cada um de nós” . A perversida­de existe, e precisamos distinguir entre as versões mais brandas e as mais terríveis. N ão podemos cometer o erro trivial de supor que um ladrão de galinhas e Hitler são exatamente iguais, que o aluno que cola na prova é tão mau quanto Bin Laden. Contu­do, também não podemos supor que o problema do mal possa ser tratado ou resolvido se, por outro lado, o banalizarmos, clas­sificando as pessoas entre “boas” e “más” .

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Esses três elementos — a disposição em aceitar que talvez não dom inem os a democracia e que ela pode não ser a pana- ceia para todas as enfermidades do universo; o reconhecimen­to de um a dimensão mais profunda do mal e de que ele possui um elemento extrapessoal; e a aceitação de que a linha entre o bem e o mal transpassa cada um de nós — são necessários para progredirmos no entendimento do mal, seja na esfera metafísi­ca, teológica, política ou pessoal. Espero conseguir detalhá-los nos capítulos seguintes. A seguir, vejamos um pouco sobre a tarefa que nos espera, pelo menos do ponto de vista cristão.

A grande questão de nossa era pode ser entendida pela for­ma com o vemos e convivemos com o mal em nosso mundo. Além da perplexidade dos filósofos e teólogos tradicionais diante do mal, somos confrontados com o problem a em nos­sas ruas e em nosso mundo, e ele não esperará ser resolvido por metafísicos habilidosos. O que vamos fazer7. Se não que­remos reagir de forma imatura, ignorando o mal, declaran­do que tudo é culpa dos outros, ou assumindo toda a culpa, precisamos descobrir uma forma mais profunda e distinta de responder a pergunta que muitos, inclusive os políticos, fa­zem: por que isso está acontecendo? O que Deus fez (se é que fez alguma coisa) a respeito disso? E o que nós podem os, ou devemos fazer?

Os cristãos creem, com base nas raízes judaicas, que Deus permanece envolvido com o m undo de forma apaixonada e compassiva. O judaísm o e o cristianismo clássicos nunca defenderam uma visão imatura ou superficial do mal e um dos desafios dos últimos séculos é entender como os principais filósofos, de Leibniz a Nietzsche, conseguiram escrever sobre o problema do mal como se fosse possível ignorar ou

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desconstruir a visão cristã utilizando um a caricatura barata. N ão havia teólogos para se levantar e responder a questão? Será que o caso foi encerrado por omissão?

H á um a valiosa tradição cristã que leva o mal tão a sério que adverte contra a tentação de “solucionar” o problema de qualquer maneira óbvia. Qualquer análise do mal que alegue ter entendido como ele acontece e o que fazer em relação a ele terá apenas simplificado o problema. Certa vez ouvi um conhecido teólogo-filósofo tentar fazer isso com Auschwitz e o resultado foi muito embaraçoso. N ão devemos e não podemos atenuar a questão, fingir que o mal não é tão ruim assim. Isso significa voltar ao m odernismo barato. Com o afirmei antes, isso é a contraparte intelectual da reação política imatura de pensar que algumas bom bas colocadas em locais estratégicos podem eliminar o “mal” deste mundo. Porém, para os cristãos, o problema é como entender e celebrar a bondade e a subli­midade da criação, e, ao mesmo tempo, entender e enfrentar a realidade e a seriedade do mal. E fácil “resolver” o problema amenizando um dos lados, dizendo que o m undo não é a boa criação de Deus, ou que o mal não é tão ruim quanto dizem. M eu argumento neste capítulo foi de que o problema é mais do que uma questão do que pensam os filosófica ou teologica­mente; o fracasso em tratar do problema está na raiz de nossa perplexidade diante dos vários problemas complexos e urgen­tes presentes nas esferas política e social.

As questões que deveriam ocupar nosso pensamento como sociedade e, sobretudo, com o Igreja são os seguintes: como podem os agregar as várias compreensões sobre o mal que os grandes pensadores e analistas sociais nos oferecem? Com o podem os confrontá-las de forma cristã quando for necessário? E como contar a história cristã de forma que, sem tentar “resol­ver” o problema de maneira simplista, possam os ainda assim tratar dele com maturidade e, nesse processo, alcançar uma fé

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mais profunda e sábia no Deus Criador e Redentor, cujo amor envolvente um dia nos dará um a nova criação, onde as trevas e o mar ameaçador do caos não existirão mais? O dilúvio de Noé, afinal, mostrou que até Deus, o Criador, havia se arre­pendido de ter criado o mundo; entretanto, com o sinal do arco-íris, estabeleceu um novo começo, um a nova aliança. Se nos esforçarmos para entendermos e participarmos tanto das lágrimas divinas diante do mal do m undo quanto da criativi­dade ao enviar um a pom ba para buscar ramos de oliveira que emergiam das águas do caos, estaremos no caminho certo. O mar é poderoso, mas o Deus Criador é mais poderoso que ele. O mal pode continuar a existir, mas o mesmo acontece com o amor, graças a Deus.

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=■< CAPÍTULO DOIS ! »

O q u e D e u s p o d e f a z e r

A RESPEITO DO MAL?Mundo injusto, Deus justo?

No capítulo 1, apresentei um a visão abrangente doproblem a do m al e sugeri alguns pressupostos necessários

para tentarm os pensar com seriedade sobre ele, de acordo com o cristianism o. Afirm ei que o mal é um problem a não apenas filosófico, mas tam bém prático. Ao tentar ignorar ou depreciar o problem a, a tradição ilum inista acaba condenada por sua arrogância, e a crítica ao ilum inism o, oferecida pela pós-m odernidade, por mais im portante que seja, não apre­senta soluções novas. Encerrei afirm ando que a dem ocracia ocidental, por si m esm a, não resolverá autom aticam ente o problem a m undial do mal e que precisam os levar a sério tan­to os poderes supra-humanos do mal quanto o fato de que a linha que separa o bem e o mal não passa entre “nós” e “eles” , mas sim por cada indivíduo, por cada sociedade.

Propositalmente, não comecei com uma visão bíblica — com exceção da imagem inicial do mar — porque queria expor o

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problema como ele se apresenta ao mundo de hoje, antes de buscar subsídios na tradição judaica e cristã para lidar com o assunto. Porém, farei isso agora, ao analisar o que a bíblia tem a oferecer. Obviamente, não há como abordar tudo em um único capítulo sobre o Antigo Testamento e outro sobre o Novo. Exa­minaremos apenas a superfície do assunto, o que já é suficiente para nos dar orientações essenciais.

O título deste capítulo reflete meu entendim ento sobre um a característica im portante do Antigo Testam ento. O que nossa tradição filosófica ocidental nos leva a esperar e a bus­car é um a resposta à questão: o que Deus pode dizer sobre o mal? Q uerem os um a explicação, saber o que o mal é, por que ele está presente desde o princípio (ou, pelo menos, quase do princípio), por que teve perm issão para continuar existindo e quanto tempo ainda vai durar. Essas questões aparecem na Bíblia, mas, para nossa frustração, não recebem respostas completas e com certeza são respostas que não agradariam aos filósofos da atualidade. N um a ordem reversa: os Salm os muitas vezes questionam até quando essa situação de caos vai continuar (13.1; 79.5 etc.); há indícios som brios de que a m aldade tem perm issão para continuar por mais algum tem­po para que, quando Deus julgar, o julgam ento seja justo (por exemplo, Gênesis 15.16; D aniel 8.23); Gênesis 3 e 6 parecem m ostrar o mal com o intruso na criação, apesar de isso nunca ser afirm ado plenamente. O Antigo Testamento oscila entre três elementos: o mal com o idolatria e a conse­qüente desumanização; o mal com o a atividade das pessoas perversas e o que elas fazem com os justos; e o mal como obra de “satanás” (palavra hebraica que significa “acusador”). N enhum desses elementos é exatam ente um a explicação. A Bíblia parece não querer dizer o que Deus tem a falar sobre o mal. Isso é um forte argumento para o ponto que m encionei no capítulo anterior, que pelo menos um a tradição dentro

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do pensam ento cristão advertiu quanto ao perigo de tentar­mos explicar o mal.

O que o Antigo Testamento faz é falar intensamente, não sobre o que Deus diz a respeito do mal, mas sobre o que ele pode fazer, está fazendo e fará com relação a ele. Talvez seja possível trabalhar a partir disso e chegar a alguma conclusão sobre o que a Bíblia diz que o mal é e por que ele existe, mas esse dificilmente será o enfoque principal. A inda que o Antigo Testamento apresente uma teodiceia (explicação da justiça de Deus diante da evidência contrária), não o faz nos moldes da filosofia atual, mas segundo uma narrativa de Deus e do m un­do, especialmente da história de Deus e Israel.

N a verdade — e isso é crucial para entender o Antigo Tes­tamento de forma geral —, o que a Bíblia oferece é, ao mesmo tempo, muito menos e muito mais do que um conjunto de dogmas e princípios éticos e muito menos e muito mais do que uma “revelação progressiva” , uma exibição contínua de quem é Deus. O Antigo Testamento não foi escrito apenas para “falar sobre D eus” de forma abstrata. Sua finalidade bá­sica não é fornecer informação, satisfazer mentes curiosas. Foi escrito para contar a história do que Deus já fez, está fazendo e fará com relação ao mal. (Isso se aplica a maioria dos livros bíblicos e ao Antigo Testamento canonicamente estabelecido, tanto na ordem hebraica dos livros quanto na ordem que utilizamos.) Isso ocorre em vários níveis, como veremos agora; porém, pre­cisamos logo de início entender que essa é a lógica narrativa subjacente a todo o Antigo Testamento.

Destacarei três aspectos para percebermos o caminho que seguiremos. Primeiro, todo o Antigo Testamento como conhe­cemos parece se resumir a um único fato, que é o chamado de Abraão em Gênesis 12. Parece que Deus, o Criador, fez isso para tratar do problema evidente em Gênesis 3 (a rebeldia humana e a expulsão do Jardim), Gênesis 6 e 7 (a decadência

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hum ana e o dilúvio) e Gênesis 11 (a arrogância humana, a torre de Babel e a confusão das línguas). Dentro disso, encon­tramos um a segunda seqüência de problemas: Israel, os filhos de Abraão, embora sejam os guardiões da promessa, tornam-se parte do problema. Isso se desenrola em uma narrativa exten­sa e épica, que vai dos patriarcas até o Êxodo, de M oisés até Davi, passando pelas turbulências da m onarquia de Israel e se encerrando com o exílio. Ainda dentro desse nível, encon­tramos outra seqüência de problemas: não foi apenas a raça hum ana que se rebelou, nem apenas Israel que falhou em sua tarefa, mas os indivíduos em geral, inclusive os israelitas, que se tom aram pecadores, idólatras e de coração endurecido.

O Antigo Testamento apresenta o resultado em cada uma de suas páginas. E verdade que nele o “problema do mal” apa­rece na conhecida forma das nações pagãs perversas que opri­mem o pobre e indefeso povo de Deus. N o entanto, os escritos históricos e‘proféticos repetidamente relembram a Israel que o problema é mais profundo do que “nós” e “eles” . O problema em sua forma individual, que grande parte da filosofia ociden­tal considera como cerne, é apresentado na Bíblia como sendo um subconjunto do problema m aior de Israel, da humanida­de e da própria criação. Se aprendermos a ler o texto dessa forma (o que não costumamos fazer quando lemos pequenos segmentos, seja na igreja ou individualmente) começaremos a perceber a floresta como um todo, assim como a individuali­dade às vezes enigmática das árvores.

Renovar a bênção

O m elhor é começar pelo início. N a prim eira parte deste capítulo m ostrarei com o Gênesis 12 e a narrativa decor­rente tratam a questão tripla do mal com o apresentada em Gênesis 1-11. Depois, na segunda parte, abordarei os vários

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problem as que surgem dentro dessa narrativa mais am pla ao se descobrir que a família de A braão tam bém é assolada pelo mal. A terceira seção enfocará precisamente o período do exí­lio babilônico e analisará três passagens bíblicas, incluindo o livro de Jó, que aborda a questão de form a mais profunda e tocante do que todos os outros livros. Isso nos ajudará a per­ceber de que form a o Antigo Testam ento nos leva a encarar o problem a do mal, apresentando temas profundos, mas semoferecer um a resposta definitiva.

Com eçarem os com a decisão de Deus de chamar Abraão (ou Abrão, como ele se chamava na época; porém, para facili­tar, usarei a forma mais longa) e prometer que, por meio dele e de sua família, todas as famílias da terra seriam abençoadas (G n 12.1-3). Essa promessa é repetida várias vezes, de várias formas, tanto a Abraão quanto a Isaque e a Jacó. Deus não explica como pretende abençoar as outras famílias da terra por meio da família de Abraão, diz apenas que é sua intenção fazê- lo. Assim como muitas narrativas mais curtas do Antigo Tes­tamento, toda a história precisa ser entendida com base nesse pensamento, para que, ao lermos capítulos e até livros inteiros sem perceber o m undo sendo abençoado por meio de Israel, possam os entender que, ainda assim, isso estava implícito na mente do autor (e talvez explícito na mente de Deus).

Gênesis 12, então, nos leva de volta a Gênesis 1-11: se essa é a solução, qual é o problema? Com o mostrei, Gênesis 3 - 1 1 apresenta um problema triplo para o qual o chamado de Abraão parece oferecer a solução. Ao lermos do capítulo 12 para trás, a primeira situação que encontramos é a história da Torre de Babel. A arrogância hum ana vai, quase literalmente, até as alturas, com a construção de uma torre visando renome e segurança. Deus desce para olhar a pequenina e insignificante torre (o texto é repleto de hum or irônico) e confunde a lingua­gem dos seres humanos, im pedindo que eles levassem a cabo

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sua ambição arrogante. Vejamos o que Deus está fazendo com relação ao mal. Por um lado, o confronta, o julga, e faz algo para impedi-lo de obter o efeito desejado. Por outro lado, está criando algo novo, dando início a um projeto por meio do qual o problema fundamental — a maldição e a desunião da famíliahum ana —, será substituído pela bênção. N ão fica claro como a família de Abraão reverterá a maldição de Babel e, olhando para o Oriente M édio hoje, continua claro que a família de Abraão ainda se divide definitivamente em dois grupos. Na realidade, a divisão remonta a Gênesis 16 e 21, primeiro com o nascimento de Ismael e depois de Isaque, e segue até a atu­alidade, com um a parte da família voltada para Jerusalém e a outra, pelo menos em determinados aspectos, voltada para Bagdá, ou seja, a Babilônia. Q uando a promessa de Gênesis 12 chega ao Novo Testamento, descobrimos seus efeitos especial­mente no dia de Pentecostes. A questão de como o Pentecostes será aplicado ao problema apresentado em Gênesis 11 ainda é motivo de debates constantes e voltaremos a esse tema.

Notam os especialmente dois fatos. Primeiro, há uma liga­ção entre as pessoas e a terra. O povo arrogante de Babel cons­truiu um a cidade e uma torre. Deus chamou Abraão para ser nôm ade — sem m oradia fixa por algum tempo — mas promete que um dia ele chegará a uma terra que será dele. Segundo, vemos que a “solução” , ou resposta, apresentada em Gênesis 12, é estritamente escatológica, ou seja, reside no futuro; e isso significa que a história que se desenrola a partir desse ponto está fadada a profundas ambigüidades. A família de Abraão carrega a promessa de um futuro em que o m undo será conser­tado, mas isso ainda não aconteceu. O resultado, falando de forma bem direta, é que a família de Abraão terá sua própria versão de Babel. Por fim, eles irão para o exílio, e o local desse exílio é a Babilônia, ou seja, Babel. Aqueles que serão a solu­ção, são obrigados a vivenciar o problema.

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Lendo mais para trás, chegamos à história do dilúvio, tema do capítulo 1. Encontram os aqui um a das passagens mais tris­tes da Bíblia, quando Deus declara que a perversidade da raça hum ana o fez sofrer de tal forma — com o diria alguém em profunda tristeza — que ele estava arrependido de tê-la criado (Gn 6.6). O dilúvio apresenta mais uma vez a m esma reação de Deus diante do mal. Por um lado, um terrível julgamento que destruiu tanto a terra quanto os animais. Por outro, um ato de graça para resgatar uma família da destruição, indicando que seu propósito para a criação continua e que ele agora trabalha­rá para cumprir esse propósito com tristeza e dor no coração. N ão há nada na história que indique que Deus, ao resgatar N oé e sua família, pensava que esse ato os transformaria e que eles seriam diferentes do povo que Gênesis 6.5 declara ser imensamente perverso, com o coração e a mente sempre volta­dos para o mal. A família de Noé incluía as pessoas que partici­param da construção da Torre de Babel, assim com o a família em que Abraão nasceu. O dilúvio se coloca com o sinal de que Deus odeia o mal e o que ele faz a sua criação; de que Deus, algumas vezes, se coloca no caminho e intercepta o mal; mas que, exatamente por ser um C riador soberano, ele encontrará um a forma agir, apesar de tudo, para cumprir os propósitos que tem para sua criação. C om o em Babel, existe uma ligação íntima entre as pessoas e a terra: a própria terra é inundada como parte do julgamento de Deus sobre a raça humana, e o sinal do resgate é o ramo verde da oliveira, que surge do solo recém-irrigado, levado até Noé, significativamente, por uma pom ba — parte da criação não-humana. A história termina em um a vinha, com um a mensagem profunda e ambígua, de que novos frutos estão chegando e também novas possibilidades de o mal atacar sorrateiramente.

Voltando mais um pouco, chegamos à famosa história de Gênesis 3: os humanos, a serpente e o fruto proibido. Muito

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já foi dito sobre o tema, e não tenho nenhuma ideia nova para apresentar sobre essa que é um a das mais profundas e intri­gantes histórias em toda a literatura. Todos querem saber o que a história se recusa a contar: por que existia uma serpente na bela criação de Deus e por que ela decidiu usar sua astúcia daquela forma. Em vez de apresentar uma explicação para o mal, a história faz uma breve análise sobre ele, principalmente sobre a forma como o engano, sobre si mesmo e sobre outros, desempenha um papel importante e como as desculpas che­gam rapidamente ao coração e a língua, mas não são capazes de anular a questão da responsabilidade.

Mais uma vez, a narrativa mostra o que Deus faz. Ele julga o mal, expulsando-os do jardim e im pondo uma múltipla maldi­ção. O s humanos não poderiam comer do fruto da Arvore da V ida enquanto estivessem em rebeldia; o próprio solo é amal­diçoado e passa a produzir ervas daninhas. Agora, o projeto de Deus para a criação terá de seguir por um caminho longo e tortuoso, enfrentando espinhos, cardos, poeira e morte. Po­rém, até no exílio os sinais da bênção aparecem, embora qua­se sempre seguidos dos sinais da maldição. A ordem original para os humanos serem frutíferos e se multiplicarem não foi revogada, mas agora carrega um a ambigüidade terrível. C om a ajuda do Senhor, Eva concebe Caim , mas-em Gênesis 4 ele se transforma em um assassino. O sinal da vida concedida por Deus carrega consigo o sinal da maldição da morte: o refrão na lista dos descendentes de A dão em Gênesis 5, “e morreu... e m orreu...” , relembra inúmeras vezes o que aconteceu em G ê­nesis 3, apesar de cada nova vida em cada geração representar uma nova esperança, até finalmente chegarmos a Abraão e à nova promessa de bênção e de uma terra.

A maravilhosa história que compõe o Antigo Testamento começa com essa tripla declaração do problema e a repetida resposta de Deus. O mal precisa ser julgado, e com severidade.

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Deus havia criado um m undo belo e o mal, conforme percebemos até aqui, desfigura o m undo, vira-o de cabeça para baixo. Em vez de adorar a Deus, com o a fonte da vida, os humanos dedicam sua lealdade à criação não-humana. Em lugar de ser governada com sabedoria por mordomos sensatos, tementes a Deus, semelhantes a ele, a terra é afetada pela maldição causada pela hum anidade idólatra. A morte, que poderíam os entender como parte natural e inofensiva do cenário original, agora assume a indesejável função de executora, implacavelmente impedindo que o veneno continue a se espalhar. A preocupação de Deus diante da possibilidade de Adão comer o fruto da vida e viver para sempre nesse estado decaído (3.22) conduz a uma preocupação semelhante para com a humanidade arrogante, que poderia tramar tolices cada vez maiores (11.6). O julgamento no tempo presente significa deter o mal antes que ele avance demais. A ameaça de “m orte” assume várias formas: exílio para A dão e Eva, dilúvio para a geração de Noé, confusão e dispersão para Babel.

Porém, em Abraão e por meio dele, Deus declara que, como ato de graça divina após a palavra e o ato de julgamento, um novo caminho se abriu para que o propósito original de bên­ção para a humanidade e para criação seja levado a diante.

N a própria história percebe-se que o preço será alto para o próprio Deus. Sua solidão no jardim, ao procurar seus com­panheiros Adão e Eva; seu sofrimento diante do dilúvio; a irritação em Babel — Deus sabe que continuará sentindo tudo isso. Enquanto a história se desenrola, haverá muitos outros atos de julgamento, e tam bém de misericórdia. Porém, ela há de se desenrolar. A visão m aior é a soberania do Deus Criador, que continuará a agir no m undo até que a bênção substitua a maldição, o acolhimento tome o lugar do exílio, o ramo da oliveira brote depois do dilúvio e um a nova família seja cria­da, na qual as línguas estranhas possam novamente se unir.

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Essa é a narrativa que forma a primeira estrutura do Antigo Testamento canônico.

Povo da solução, povo do problema

Desse ponto em diante, o Antigo Testamento narra a ambígua história da família de Abraão. O povo por meio do qual a so­lução de Deus seria apresentada, era formado por pessoas que eram parte do problema.

O narrador de Gênesis não deixa dúvida de que o próprio Abraão estava muito longe de ser inocente. Por duas vezes, ele quase joga fora a promessa m entindo para se proteger, afir­mando que Sara era sua irmã, e não sua esposa. Então, ele e Sara resolvem assumir a questão dos filhos e da herança em vez de esperar a ação de Deus, o que resulta na tragédia de Ismael, m andado com a mãe, Hagar, para o deserto; isso leva direta­mente à terrível história de Abraão quase sacrificando Isaque, o filho que teve com Sara. Por mais complexa que essa históriaseja, estou convicto de que ela se relaciona profundamente ao que Abraão e Sara fizeram com Hagar e Ismael. A promessa continua, mas os portadores da promessa, de Abraão em dian­te, saberão que ela tem um preço muito alto.

A história que se segue, de Abraão até o exílio na Babilô­nia, e o que se passa depois disso, dá prosseguimento ao tema, repleto de inúmeras ambigüidades. Jacó engana e mente para conseguir a herança do pai, Isaque, e depois é enganado de todas as formas pelo sogro, Labão. Volta à terra prometida manco, por causa de uma luta com Deus, aquele que mantém suas promessas, mas que faz seu povo se lembrar de seu des- merecimento e da surpreendente natureza da graça. Os filhos de Jacó vendem o irmão mais novo, José, com o escravo, e ele então parece aprender, não apenas sobre a humildade que não tinha, mas também sobre a certeza da espantosa providência

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divina, que é um a das principais respostas que a Bíblia dá à pergunta “O que Deus faz com respeito ao mal?”. Q uando seus irmãos o procuram, em temor e tremor, depois da morte do pai, José declara: “Vocês planejaram o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem ” (G n 50.20). Surpreendentemente, e às vezes para nosso desassossego, o Deus Criador não irá sim­plesmente acabar com o mal deste mundo. Por que não? Essa é exatamente a questão que gira em torno das discussões sobre o tema. N ão há resposta. Em vez disso, som os informados deque Deus conterá o mal, o restringirá, impedirá que chegue ao máximo de sua capacidade, e que até, em determinadas oca­siões, usará a maldade hum ana para realizar seus propósitos desconhecidos.

A narrativa mais instrutiva de todo o judaísm o é a do Êxo­do, a libertação de Israel do cativeiro no Egito. E um a das principais respostas bíblicas à questão sobre o que Deus faz com relação ao mal. Os descendentes de Jacó se multiplica­ram e se tornaram escravos no Egito. O s egípcios eram feito­res rudes e opressivos. Deus ouviu o clamor de seu povo e se manifesta para libertá-los; não de um a só vez, nem por meio de um relâmpago, mas da forma que agora já se torna um pa­drão: pelo chamado de um indivíduo, e depois de outro para trabalhar junto com o primeiro — pessoas que, como a história enfatiza, são falhas e algumas vezes problemáticas, precisam ser exortadas e algumas vezes disciplinadas, mas que levam e proferem a promessa de Deus e sua nova e salvadora palavra de libertação. O principal julgamento recai sobre o Egito, na forma das pragas, o que resulta na permissão dada por Faraó para o povo partir, na travessia do Mar Vermelho e na peregri­nação pelo deserto. Desde então, uma das principais respostas dos judeus sobre o que Deus faz com relação ao mal é: ele julga os pagãos perversos que oprim em Israel e resgata seu povo. A resposta ressoa por todo o Antigo Testamento, principalmente

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em vários Salmos, nos quais o justo sofredor implora a Deus para defender sua causa e sua vida do ataque do perverso, do opressor e do ímpio. Isso vai até o período do Novo Testamen­to, nos escritos judaicos, com o a Sabedoria de Salomão.

O Antigo Testamento deixa claro que esse é apenas um lado da história, embora seja o mais encorajador (a não ser que você seja o Faraó). O outro lado é que o Israel resgatado continua a ser um povo murmurador, rebelde e insatisfeito. Em vez da gratidão, da obediência e da confiança que uma leitura descuidada de Êxodo nos levaria a supor, Israel passa 40 anos no deserto desejando voltar ao Egito, temendo entrar na terra prometida por causa dos gigantes que a habitavam e demonstrando, de forma geral, todos os sinais da hum anida­de decaída cujo sofrimento o povo escolhido deveria ajudar a minimizar. O chamado no monte Sinai afirma que eles eram o sacerdócio real de Deus, a nação santa, o povo especial, es­colhido dentre todos os outros povos (Êx 19.5-6). Seria difícil imaginar qualquer coisa inferior a isso.

O pior acontece quando, depois de receber um a longa des­crição do tabernáculo a ser construído para adoração a Deus, acom panhada por instruções detalhadas para a consagração de Arão e de seus filhos como sacerdotes para servirem no tabernáculo, M oisés desce a montanha e descobre- que Arão fez um bezerro de ouro para o povo adorar. Dois mil anos mais tarde os rabinos lamentariam o episódio e o considerariam o equivalente, na história de Israel, ao que A dão e Eva fizeram no jardim. Israel, chamado para ser o povo que guardaria a promessa, um a luz para as nações, demonstrou de várias for­mas que ainda vivia nas trevas.

Mais uma vez, Deus julgou o mal, e com tanta severidade que parecia que recomeçaria com Moisés, como fizera com Noé. Porém, ele havia feito promessas a Abraão, e como um Deus que mantinha suas promessas para com toda a criação,

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ele se manteria fiel em suas promessas para com a família de Abraão. E quando Moisés, em um a das maiores orações da Bíblia, fez Deus se lembrar de suas promessas (Ex 32.11-14; 33.12-16), o Senhor se mostrou fiel aos israelitas, mesmo quan­do eles foram infiéis a ele.

Talvez não exista ocasião em que a ambigüidade dessa po­sição seja mais impressionante (com repercussões até os dias de hoje) do que na conquista de Canaã. A história é contada, assim como a de Abraão, sem qualquer tentativa de amenizar as falhas de Israel e as tolices que comete, apesar de conseguir con­quistar a maior parte da terra. O autor de Gênesis estava nos preparando para esse momento, e pelo menos para parte do problema moral que ele apresenta desde o capítulo 15, quan­do Deus diz que Abraão e seus descendentes voltariam à terra prometida na quarta geração, porque “não se encheu ainda a medida de iniqüidade dos amorreus” (15.16). O que ocorre é que, juntamente ou por trás da narrativa de como Deus lidará com o mal no m undo por meio da família de Abraão, existem subenredos nos quais Deus vigia as nações do mundo, não para puni-las imediatamente se forem más, mas para impedir que elas ultrapassem determinados limites. Nos dias de Abraão, Deus sabia que os amorreus eram perversos, mas não demais, apesar de ficar claro que eles se tornariam ainda mais perversos. Mais cedo ou mais tarde, no momento certo, os povos não- judeus que ocupam a terra estarão prontos para o julgamento. Nessa hora, Deus usará seu povo, e sua entrada na terra prome­tida como instrumento para julgar. Isso corresponde à notável imagem da providência moral de Deus que vemos em Isaías 10.5-19, quando ele primeiro usa a arrogância pagã da Assíria como forma de punir a rebeldia de Israel e depois, quando a obra se completa, pune a Assíria exatamente por sua arrogância pagã. Supõe-se que é isso que o salmista quer dizer (76.10) quan­do fala que Deus transforma a ira humana em louvor.

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Contudo, isso é uma imensa responsabilidade para Israel, que não se porta à altura. Resulta disso a seqüência tragicômi- ca de histórias do livro de Juizes em que, depois da conquista da terra prometida sob a liderança de Josué, o povo comete vários erros e Deus tem de resgatá-los de cada uma das situ­ações. U m a característica dos resgatadores é que eles dificil­mente poderiam ser considerados exemplos de virtude. Basta pensarmos no falho herói Sansão. Olham os para o passado, a partir de nossa posição historicamente vantajosa, e o. pen­samento pós-iluminista observa o passado a partir de uma su­posta posição de superioridade moral, e desaprovamos todo o lamentável projeto de conquista e dominação. Dam os o nome de limpeza étnica e, por mais que os israelitas tenham sofrido no Egito, achamos difícil acreditar que exista justificativa para o que o povo fez com os cananeus, ou que o Deus envolvidonessa operação é o m esm o que conhecemos em Jesus Cristo.

Até hoje tem sido assim. Desde o Jardim, desde o lamento de Deus sobre Noé, desde Babel e Abraão, a história sempre girou em torno dos cam inhos confusos que Deus teve de per­correr para tirar o m undo da confusão em que se meteu. De al­guma forma, que tendemos a considerar ofensiva, Deus precisa sujar os pés de lama e manchar as mãos de sangue para colocar o m undo de volta nos eixos. Se declararmos, com o muitos têmfeito, que preferíamos que ele agisse de outra forma, enfrenta­remos a questão reversa, ou seja: que posição elevada e inocen­te é essa em que nos colocamos, que nos permite olhar para baixo e fazer afirmações tão precisas sobre o assunto? Dietrich Bonhoeffer afirma que o pecado fundam ental da humanidade foi colocar o conhecimento do bem e do mal acima do conhe­cimento de Deus. Esse é mais um dos mistérios assombrosos de Gênesis 3: deve existir alguma ligação relevante entre o que entendemos por bem e mal e o que Deus entende, senão, es- taríamos realmente na escuridão moral. A inda assim, serve

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com o aviso para não sermos muito taxativos ao declarar o que Deus deveria, ou não, fazer.

A história da conquista termina com Israel, o povo da pro­messa, rebelde e relutante, mas finalmente na terra prometida. Daí em diante, Israel passa a ser como uma placa quebrada, que aponta oscilante para o propósito do C riador de resgatar suas criaturas humanas e completar a obra da criação.

Com o o livro de Juizes mostra, há certo alívio quando a mo­narquia assume o lugar dos juizes. Porém, desde o início, como já era de se esperar, a instituição monárquica também é falha. O profeta Samuel sabia que o povo pedira um rei com base em motivações erradas, e Saul, o primeiro rei que tiveram, se voltou para o mal. O próximo rei, Davi, homem segundo o coração de Deus, estava interessado demais nas esposas dos outros e sua humilhante experiência de exílio conseqüente e sua restauração humilde e sofrida se tornaram um exemplo para a experiência de todo o povo quinhentos anos depois. Fica claro, especialmente nos Salmos, que Davi e sua dinastia seriam a resposta de Deus ao problema do mal. Eles trariam julgamento e justiça ao mun­do. Dominariam todas as extremidades dos mares, do Rio até os confins da terra. Ainda assim, os autores estão bem conscientes da confusão e da ambigüidade de tal afirmação. O maior Salmo real, o 89, justapõe 37 versículos de celebração das maravilhas que Deus fará por meio do reinado davídico com quatorze versículos que perguntam, em tom de lamento, por que tudo deu errado. O Salmo termina com um único versículo, bendizendo YHW H para sempre. Esta é a visão clássica do Antigo Testamento. Eis as promessas; eis o problema; Deus permanece soberano sobre o paradoxo. Se dividirmos o Salmo, seja qual for o critério, deixa­remos de perceber as nuances na totalidade dos escritos bíblicos. A solução divina para o problema do mal — o estabelecimento da monarquia davídica, por meio da qual Israel finalmente seria luz para as nações, traria justiça ao mundo — se completa com

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uma sensação de perplexidade e fracasso, uma sensação de que o plano não está funcionando como deveria, e de que a únicacoisa a fazer é se apegar as promessas maravilhosas, aceitar a dura realidade e louvar YHW H assim mesmo.

Os Salm os trazem ricas reflexões sobre o mal e o que Deus faz a respeito dele, e a respeito de tantos outros assuntos. O Saltério começa com um a declaração clássica da fé judaica: aqueles que caminham com YH W H são abençoados e os perversos serão como a palha que- o vento leva. Essa sabedo­ria convencional se repete com frequência em outros Salmos e, claro, em Provérbios. Um Salm o até se arrisca a afirmar (37.25) que apesar de o autor já ser idoso, ele nunca viu o justo abandonado, nem seus descendentes mendigando. Nem precisamos olhar o livro de Jó para descobrir que as coisas nem sempre caminham tranqüilas: vários outros Salm os men­cionam, quase em tom de ira, que os justos sofrem injustiças e Deus aparentemente não faz nada a respeito. O Salm o 73 apresenta afirmações veementes sobre isso, m ostrando perple­xidade diante do problema e apontando, por fim, para uma solução a longo prazo: no final Deus agirá, talvez até depois da morte, para julgar os perversos e vingar os justos. O Salm o 94 vai em direção semelhante: os sofrimentos presentes devem ser vistos como punições divinas que geram resgate e salvação, en­quanto o sofrimento dos perversos ficará reservado para mais tarde, para um castigo definitivo. Vários Salm os questionam: “Até quando, Senhor?” . N ão há resposta direta. Então, entre o belo poem a intitulado “Coisas gloriosas são ditas sobre ti”e o grande Salm o real de que falei antes, temos o Salm o 88, a oração mais sombria e desesperançada da Bíblia:

Ando aflito e prestes a expirar desde moço;Sob o peso dos teus terrores, estou desorientado.Por sobre mim passaram as tuas iras,Os teus terrores deram cabo de mim.

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Eles me rodeiam como água, de contínuo;A um tempo me circundam.Para longe de mim afastaste amigo e companheiro;Os meus conhecidos são trevas.Saimo 88.15-18

O único sinal de esperança (se é que é possível assim considerá-lo) é o uso da segunda pessoa do singular. O salmista acredita que o que está acontecendo com ele nada mais é do que a estranha e terrível obra do próprio YHW H. Ele não consegue entender e sabe que não é o que deveria estar acontecendo. Entretanto, ele se agarra, poder-se-ia pensar que quase até o ponto da blasfêmia, à fé na soberania de YHW H.

Isso, de fato, é o que acontece com os profetas do exílio, e o Salm o 88 pode ser lido em paralelo com Lamentações de Jeremias. Em bora as nações pagãs celebrassem o triunfo não apenas sobre Israel, mas também sobre o Deus de Israel, os profetas da época insistiam que fora o próprio YH W H que fizera com o povo o mesmo que havia feito com A dão e Eva há tanto tempo, expulsando-os da terra, do jardim prometido, por causa da rebeldia. A história de exílio e restauração, cen­tral na Bíblia, se torna a resposta maravilhosa e misteriosa à pergunta: “O que YHW H faz quanto ao mal?” . A questão da justiça de Deus, implicitamente abordada em toda a Bíblia, aqui é diretamente tratada.

Neste ponto, na terceira e última seção deste capítulo, che­gamos aos três livros que nos convidam a subir um pouco mais a m ontanha, mesmo que isso inclua penetrar na neblina, e ouvir novas palavras de sabedoria.

Meu servo Israel, meu servo Jó

“Perguntou ainda o SE N H O R a Satanás: Observaste o meu servo Jó?” Satanás tinha e não tinha observado, e parte do enigma do livro de Jó é por que Deus faz essa pergunta a

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Satanás. Porém, antes de Jó, quero considerar o outro grande Servo de YHW H no Antigo Testamento, ver se ele é realmente tão diferente de Jó, e então considerar outro livro que mos­tra um padrão semelhante. Aparentemente, o livro do Antigo Testamento que mais trata da justiça ou moral de Deus é o algumas vezes chamado Segundo Isaías, ou seja, os capítulos 40 a 55, ou talvez 40 a 66 de Isaías.

O texto de Isaías 40 - 55, supostamente escrito no período do exílio (embora meu objetivo não dependa essa informação), questiona como YHW H pode ser justo, sendo que Israel foi condenado ao exílio. Fica claro que esse é o ponto principal, embora em um aspecto mais limitado, do problema do gover­no moral de Deus no m undo como um todo. C om o mencio­nei, Israel no exílio é semelhante a Adão e Eva expulsos do Jardim. Porém, Deus criou os seres hum anos como mordomos à sua semelhança, para cuidar de sua criação com sabedoria, e essa aliança não foi esquecida. Esse é a formato bíblico do pro­blema do mal: a tarefa humana, dada há tanto tempo, está em constante tensão com o fato de que os hum anos se rebelaram e agora o solo produz espinhos e cardos.

Semelhantemente, Israel foi exilado por causa dos erros graves: idolatria, imoralidade, e a constante recusa em ouvir YHW H chamando de volta à obediência. N o entanto, Deus chamou Israel para ser o povo por meio do qual ele irá redi­mir o m undo, a hum anidade e a criação, e esse plano não foi esquecido. A amplitude bíblica do problema do mal é mais nitidamente vista no problema do exílio de Israel; Isaías 40 - 55 proclama que YHW H ainda é o C riador soberano, que ele ainda tem um a aliança com Israel e que ele é, acima de tudo, justo, tzaddík, e, por causa dessa justiça, dessa fidelidade com a aliança e com a criação, Israel será resgatado e a criação, restaurada. O capítulo 55, clímax magnífico do texto, exalta o fato de que o espinheiro será substituído pelo pinheiro, e

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as roseiras bravas, pela murta. A maldição de Gênesis 3, e as subsequentes maldições sobre Israel (Isaías 5, por exemplo), serão desfeitas quando Israel for redim ido e a aliança, resta­belecida.

Segundo o profeta, quem quiser entender a justiça de Deus em um m undo injusto, deve se atentar para essas coisas. A justiça de Deus não é apenas a distribuição alucinada de re­compensas para os virtuosos e de castigos para os malvados, embora isso aconteça durante o caminho. A justiça de Deus é salvadora, curadora e restauradora, porque aquele a quem a justiça pertence ainda não completou seu plano original para a criação e sua justiça vai além de restaurar o equilíbrio de um m undo decaído; ele deseja levar a criação a uma gloriosa satis­fação e realização, sobejando vida e possibilidade, conforme seu plano inicial. E ele continua determinado a completar seu projeto por meio das criaturas hum anas feitas à sua imagem e, mais especificamente, por meio da família de Abraão.

Entretecido no texto de Isaías 40 — 55, surge a figura do Servo de YHW H, por meio de quem o propósito de justiça e salvação será levado a cabo. O Servo aparece no capítulo 42 com o um a figura real, claramente relacionada à figura real dos capítulos 9 e 11 e semelhante à do capítulo 61. Porém, em muitos aspectos, ele é bem diferente de um rei. Ele é clara­mente Israel ou, poderíam os dizer, Israel personificado, pois compartilha da vocação e agora do destino do povo exilado, oprim ido e assassinado. N o entanto, também se coloca em oposição a Israel, para que o povo contemple, horrorizado, o destino dele; até o remanescente de Israel é descrito como “o que ouve a voz do Servo”. Isaías redefiniu de tal forma o gran­de problem a do mal, da injustiça no m undo e da justiça do único Deus Criador, que agora vemos tudo, não mais como um enigma filosófico que deve ser explicado, mas como a tragédia de toda criação, que clama por um novo ato do

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soberano Deus Criador, evidenciada na tragédia de Israel, que clama por um novo ato do Deus soberano da aliança.

E para nosso espanto e (se soubermos o que vem pela fren­te) horror, descobrimos em Isaías 53 que esse novo ato se con­cretiza no sofrimento e na morte do Servo. Com partilhando do destino de Israel no exílio, o exílio que, com o sabemos des­de Gênesis 3, está profundamente ligado à própria morte, ele carrega o pecado de muitos. Incorpora a fidelidade da aliança, a justiça restauradora do Deus soberano e, por meio de suas chagas, “nós” (os prováveis remanescentes que observam com espanto e fé) somos curados.

N o centro da imagem da justiça de Deus em um mundo injusto, exposta pelo Antigo Testamento, está a fidelidade de Deus diante da infidelidade de Israel; no centro dessa imagem está a do Servo de YHW H, alguém que se levanta contra Israel e leva sobre si a culpa do povo para que ele possa ser resgatado do exílio, permitindo que a raça hum ana prossiga, como em Isaías 55, rumo à nova criação, na qual espinhos e cardos serão substi­tuídos por pinheiros e murta; as cinzas e a morte, por água fres­ca e nova vida. O maior profeta do Antigo Testamento aponta para o futuro, sem maiores explicações, para um novo ato do único Deus verdadeiro por meio do qual isso se cumprirá. O Servo é, ao mesmo tempo, Israel e o novo emissário de Deus a Israel; o rei e aquele que faz o que nenhum rei poderia fazer. N o tocante ao Antigo Testamento, essa questão permanece enigmá­tica, é o aspecto positivo do próprio enigma do mal.

U m problem a sem elhante figura no segundo dos três livros que analisarei, um a das primeiras obras a tratar de Isaías 40 - 55 e a aplicar o texto a situações subsequentes. Todo o livro de D aniel fala do problem a do mal: ele m ostra com o os impérios pagãos agem da pior m aneira possível e m ostra os atos de julgam ento do único Deus verdadeiro so­bre eles, em defesa de seu povo. Em vários pontos do livro,

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mas especialmente nos capítulos 11 e 12, a figura do Servo parece se dirigir aos justos de Israel, aos que perm anecem fiéis a YH W H , m esm o no exílio e no sofrim ento decorrente, aos que foram martirizados nas mãos do império pagão, que são (na imagem central do livro, que percebem os no capí­tulo 1) m altratados pelos m onstros que emergem do mar. O s reinos do m undo se levantam contra o reino de Deus; o problem a cresce exponencialm ente, transpassa os debatesacalorados de filósofos e atinge o m undo real, transform an­do jardins em desertos e vidas hum anas em poeira a cinzas. C om o afirmei no capítulo anterior, um dos motivos de o m undo contem porâneo ainda não ter conseguido encarar a realidade do mal, reagindo, em vez disso, de form a inadequa­da e imatura, é pensar no m al com o um problem a filosófico que o secularism o há m uito deixou de lado, ou com o uma dificuldade antiga que a m odernidade finalm ente conseguiu solucionar. O s que estudam D aniel e ao m esm o tempo es­tudam o m undo contem porâneo real deveriam entender a situação. O m al está vivo e atuante, principalm ente quando impérios poderosos se vangloriam e acham que podem fazer o que querem, até m esm o transform ar jardins em desertos eestes em cemitérios.

N o centro do livro de Daniel, correspondendo em al­guns aspectos à figura do Servo de Isaías, e desempenhando papel semelhante ao receber e incorporar a justiça de Deus, está a figura de “alguém semelhante a um filho de hom em ” (7.13). O significado original, e o entendimento subsequente dessa expressão são altamente controversos, e já escrevi bas­tante sobre o assunto em outras obras. Porém, o drama de Daniel 7 não deve ser reduzido a meros debates lingüísticos. Com o vimos, embora os monstros que emergem do mar tra­vem guerra contra a figura humana, Deus a exalta acima dos monstros.

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Em certo nível, isso é bem semelhante a Adão, no Jardim, recebendo autoridade sobre os animais. N a verdade, isso é par­te do plano: é a imagem da criação restaurada, reconstituída em sua ordem original. Porém, dessa vez, após a longa história do mal e da criação desestabilizada, os animais são ameaçado­res e o dom ínio hum ano recém-restabelecido sobre eles é de julgamento punitivo. Daniel 7 é, basicamente, uma cena de tribunal: Deus toma seu lugar e julga os monstros em favor do homem. Assim será a justiça de Deus sobre o m undo injusto. A restauração da criação se dá pela deposição das forças do mal e pela defesa de seu povo fiel. N o final do livro de Daniel, resta um a questão: quem é o povo de Deus? Com o tudo isso acontecerá? Q uem é o Filho do Homem?

O terceiro e último livro a ser considerado (inevitavelmen­te de maneira sucinta) é o esplêndido e intrigante livro de Jó. Dentre as muitas coisas que poderiam, e talvez deveriam ser ditas, escolhi seis.

Primeiro, o livro de Jó, assim como alguns Salmos, levan­ta a questão da providência moral de Deus à luz do mal do­minante — nesse caso, um mal direcionado a Jó. A questão da justiça de Deus surge por todo o livro, da mesma forma como surge na literatura do exílio. A resposta, se é que se trata de uma, consiste em novas demonstrações do poder de Deus com o Criador, o que também é a base teológica das respostas, se forem respostas, apresentadas por Isaías e Daniel.

Segundo, o tema central de Jó é que, conquanto Israel era profundamente culpado, e profetas com o Isaías, Jeremias, Eze- quiel e Daniel veementemente insistem nisso, Jó era inocente. O exílio era visto com o algo que Israel merecia, mas a questão é que Jó não merecia. O s amigos que foram consolá-lo, com base, sem dúvida, em um a leitura simplista de Deuteronômio, do Salm o 1 e de outros textos semelhantes, insistem que coisas boas acontecem com gente boa e coisas ruins acontecem com

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gente ruim. Diante disso, se acontece alguma coisa ruim com você... é claro que você fez alguma coisa errada. O livro de Jó apresenta um protesto veemente contra essa análise genera­lizada de com o as coisas acontecem neste mundo. E com o o Salm o 73, exceto pelo fato de sua repercussão ser bem m aior e de não ter a mesma solução que o Salmo.

Terceiro, o livro começa com dois capítulos que mostram que satanás é a fonte do problema de Jó e que Deus lhe dera permissão — podem os praticamente dizer um incentivo — para fazer o que fez. Essa é uma das poucas aparições de satanás no Antigo Testamento (a outra aparição relevante é no relato do censo feito por Davi, em 1 Crônicas 21.1), e fica claro que a palavra ‘satanás’ é um título, um a função: ele é “o acusador”, o diretor de processos públicos. Jó não é tentado a pecar, em­bora parte da questão seja que o diabo o tenta a amaldiçoar a Deus, algo que ele se recusa a fazer. (Jó amaldiçoa tudo o mais, inclusive o dia em que nasceu, mas limita-se a reclamar com Deus e perguntar o que aconteceu com a justiça divina.) Em outras palavras, som os convidados a ver o torm ento de Jó e seu questionamento tendo a informação privilegiada de que não se trata, de fato, de um embate entre Jó e Deus, como peijsa Jó (motivo que o leva, sabendo-se inocente, a pensar que Deus cometeu um erro terrível) e seus pseudoconsoladores (que, certos de que Deus não erra, deduzem que Jó cometeu algum pecado). Também não se trata de um confronto dire­to entre Deus e satanás, com o um dualista poderia imaginar. A disputa é entre satanás e Jó. Satanás tenta dom inar Jó para mostrar que os hum anos não merecem a atenção de Deus, enquanto Jó continua a insistir que Deus é justo e que ele, Jó, não cometeu nenhum erro.

Quarto, a demonstração majestosa do reino criado, que forma a conclusão do livro (capítulos 38 a 41) responde e, ao mesmo tempo, não responde ao problema. Em certo

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sentido, até reafirma a questão. Se Deus é realmente o Criador soberano, que controla Beemote e Leviatã e chama o vento nor­te para sair de seu abrigo, então ele devia controlar melhor a situação moral do cosmos. N ão é simplesmente uma forma de dizer: “Olhe aqui, eu sou Deus, sou muito poderoso e você cale a boca” . Nem acredito que Beemote e Leviatã, como sugerem al­guns estudiosos, tenham sido designadas a ser criaturas malignas sobre as quais Deus demonstra sua soberania. Porém, dentro de um contexto canônico mais amplo fica claro que, enfatizar novamente a doutrina da criação é realmente a base de todas as respostas bíblicas para as questões sobre Deus e seus atos. Isso acontece, como vimos, tanto em Isaías quanto em Daniel e continua a acontecer no Novo Testamento. .

Quinto, e talvez o mais relevante, a conclusão do livro no capítulo 42, que m uitos consideram um a decepção, quase um anticlímax, é importante devido ao assunto que aborda. Seria mais fácil se o autor tivesse outra posição teológica e dissesse que, depois da morte de Jó, os anjos o levaram até um paraíso onde tudo era tão maravilhoso que ele esqueceu as experiên­cias terríveis que teve na terra. N o entanto, isso não acontece, de forma alguma. A questão é sobre o governo moral de Deus neste m undo, não sobre como deixaremos este m undo para trás e encontraremos consolo em outro lugar. Esse é o cami­nho para o budism o, não para a teologia bíblica. Podemos considerar o último capítulo do livro meio trivial, e o autor parece não responder a pergunta de Dostoievsky em Os irmãos Karamazov: seria possível Deus se justificar diante da tortura de uma criança? Porém, o texto reafirma que, se Deus é o Cria­dor (e essa é, afinal, a premissa de todo o livro), então significa que se as coisas vão ser consertadas, isso será feito dentro da criação, não em outro lugar.

Sexto, e já antecipando o próximo capítulo, o paralelo en­tre Jó e o Servo de YHW H em Isaías continua surpreendente.

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N o fim das contas, um é tão inocente quanto o outro. O Servo não reclama como Jó, embora também seja afligido pelo des­respeito, pela dor e pelo desespero. Olhando de novo para o contexto maior do cânon bíblico, pode-se dizer que todo o livro de Jó antecipa a cena terrível do Getsêmani, na qual os con­soladores também falham e a criação fica em trevas enquanto monstros rodeiam a figura inocente que questiona o que está acontecendo. Tratarei mais disso no próximo capítulo. O livro de Jó permanece, de sua própria forma, como um referencial não apenas de imensa qualidade literária, mas também de busca teológica por respostas que não surgem, de insistência teológica de que “resolver” o problema do mal na era presente é diminuí-lo e de uma celebração teológica diante da evidência de que o Deus de Israel é o Criador e Senhor do mundo.

Em bora existam dezenas de comentários a ser feitos para concluir esse estonteante tour pela forma com o o Antigo Testa­mento aborda o problema do mal, vou me restringir a quatro, sendo o último um pouco mais amplo.

Primeiro, a força personificada do mal, satanás, é impor­tante, mas não tanto. A origem do mal permanece um mis­tério, e, quando aparece, satanás fica restrito a certos limites. A inda estamos afastados do dragão de Apocalipse, e até da figura sinistra que sussurrava nos ouvidos de Jesus no Monte da Tentação.

Segundo, o tempo todo fica muito evidente a responsa­bilidade hum ana pelo mal. Em bora não seja apresentada um a teoria sobre isso, todas as pessoas parecem participar do problema — ou praticamente todas. Ezequiel 14.14 cita Noé, Daniel e Jó como os três homens mais justos que viveram, e nos lembramos da embriaguez de Noé, da oração de confissão

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de Daniel, e das mãos de Jó cobrindo seus lábios por não ter mais nada a dizer em sua defesa. Abraão cometeu um erro, e o m esm o aconteceu com Moisés. Davi era um homem santo,mas tam bém um grande pecador. E assim por diante. Deus escolheu resgatar o m undo por meio de uma família compos­ta por pessoas profundamente falhas e que deram origem a problemas de segunda e terceira ordem que, por sua vez, pre­cisavam ser solucionados. Pode-se dizer que o único que per­manece inocente e justo é a, figura desconhecida e silenciosa de Isaías 53.

Terceiro, o mal que os humanos praticam está relaciona­do á escravidão da criação. Dificilmente se pode dizer que há um a relação direta de causa e efeito, mas existe um vínculo, um a teia de eventos de instabilidade que se espalha a partir da rebeldia humana contra o Criador e chega ao desequilíbrio da criação. Da mesma forma, quando a hum anidade voltar a seu caminho correto, o m undo também voltará. N ão há uma teoria sobre terremotos e outros “desastres naturais” , embora, sem dúvida, os profetas se sentissem à vontade para identificá- los como advertências vindas do céu.

Quarto, o Antigo Testamento jamais tenta apresentar o tipo de imagem que os filósofos querem, de uma ordem mun­dial explicada nos mínímos detalhes. Em nenhum momento a visão bíblica coincide com a visão simplista que muitos céticos presumem ser a opinião dos que creem, tendo Deus como um gerente todo-competente, dirigindo um a m áquina imensa, e tendo que mantê-la sempre no funcionamento perfeito. O que nos é oferecido, em vez disso, é algo espantoso e mais miste­rioso: a narrativa do projeto divino de justiça em um m undo de injustiça.

Esse projeto visa colocar a criação existente em seu devido lugar, não acabar com ela e fazer outra coisa. Por isso, Deus de­cidiu agir por meio dos seres humanos como eles são, embora o

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coração deles pense apenas no mal, e por meio de Israel, apesar de, desde Abraão, seus erros terem sido proporcionais aos seus atos de obediência. Tanto a narrativa mais ampla quanto os mo­mentos isolados dentro dela mostram o padrão da ação divina: julgar e punir o mal e estabelecer limites para ele, sem acabar com a responsabilidade e a participação das pessoas; além de prometer e realizar novas manifestações de graça, que consti­tuem a nova criação, mesmo que grande parte dessas manifesta­ções sejam, necessariamente, cobertas de ambigüidade. N ão se trata exatamente do fator livre-arbítrio tão aclamado pelos que tentam explicar ou defender Deus (ele nos deu livre-arbítrio, então é tudo culpa nossa); é mais um “compromisso de ação” firmado por Deus, baseado na afirmação taxativa de que a cria­ção continua sendo basicamente boa. Deus não desfaz a boa criação, mesmo que ela tenha agido errado. Portanto, ele agirá dentro do mundo que criou, afirmando que esse mundo é sua criação distinta, mesmo enquanto a coloca no rumo certo.

Neste quarto ponto encontraremos, pelo menos no padrão e na delimitação, as indicações que nos levarão, mesmo que de forma oblíqua e ambígua, à narrativa que se apresenta como clímax do Antigo Testamento. N o mom ento em que o pecado da hum anidade m agoou o coração de Deus, em que o Servo foi desprezado e rejeitado, em que Jó questionou Deus, surge o Filho do H om em ajoelhado, sozinho e amedrontado, antesde partir para enfrentar as bestas que, por fim, haviam surgido do mar. A história do Getsêm ani e da crucificação de Jesus de Nazaré se apresentam no Novo Testamento como a conclusão estranha e sombria do que Deus faz diante do mal, do que acontece com a justiça divina quando ela assume a forma hu­mana, quando ela suja os pés de lama no jardim e as mãos de sangue da cruz. As múltiplas ambigüidades dos atos de Deus no m undo se reúnem na história de Jesus, que será o assunto do próximo capítulo.

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CAPÍTULO TRÊS >®=>

O m a l e o D e u s c r u c i f i c a d o

Por que Jesus morreu? H á muitos motivos: os romanos temiam que ele ameaçasse a segurança; as autoridades ju­

daicas estavam incom odadas com a influência dele no templo; os discípulos o abandonaram ; o próprio Jesus sentia, em deter­m inado aspecto, que essa era sua vocação. Trato de todos esses pontos com mais profundidade no capítulo 12 de Jesus and the Victory of God (Jesus e a vitória de Deus).4

Porém, quando fazemos a mesma pergunta tendo em vista o motivo mais profundo, ou seja, por que, dentro do propósito de Deus, Jesus tinha de morrer, avançamos da análise de fatos e motivações históricas para o relato teológico sobre o que Deus resolveu fazer quanto ao mal, que é exatamente o que as teorias da “expiação” fazem. E, para tratar de uma questão como essa, é necessário, naturalmente, ter uma ideia do que seria o “mal”. Estamos diante de um a via de mão dupla: não basta apresentar uma visão do mal e depois criar uma doutrina da expiação para mostrar como Deus resolveu o problema, embora, sem dúvida,

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alguns já tenham feito isso. Do Novo Testamento em diante, há sinais claros para os quais os teólogos cristãos muitas vezes têm olhado horrorizados, espantados e gratos pela crucificação de Jesus e a partir disso deduzido algo profundo sobre a natureza do mal. Paulo escreveu: “se a justiça vem pela Lei, Cristo morreu inutilmente!” (G1 2.21).

N o capítulo 1, vimos que o mal é real e poderoso, mais do que a soma de pecados individuais, e não pode ser entendido da forma correta pelo dualismo, seja o ontológico, que vê o m undo como algo mau do qual é necessário fugir, ou o socio­lógico, que divide o m undo entre “nós” (bons) e “eles” (maus). A seguir, no capítulo 2, observamos que todo o cârtõn, não apenas passagens-chave como o livro de Jó, conta a história na qual, a partir de um a desconcertante variedade de ângulos, tudo se relaciona ao que Deus, o Criador, está fazendo com relação ao mal. Deus segue um plano ousado e arriscado que o envolve em tantas ambigüidades que ele começa a parecerum agente duplo, que se compromete com muitas coisas a fim de produzir uma solução. Esse plano inclui levar o mal até certo ponto e confrontá-lo ali. Entre os símbolos do An­tigo Testamento que mostram a estratégia de Deus para lidar com o mal figuram o Templo, onde os sacrifícios lembravam constantemente o pecado e a graça, os símbolos humanos dos reis, sacerdotes e profetas, e particularmente, como vimos, as figuras do Servo e do Filho do Homem, que surgem quando Israel — o povo que carrega a promessa divina de acabar como mal no m undo — está esmagado sob o peso e a força dopróprio mal.

Tudo isso nos conduz a uma reflexão inicial. Em geral, as teologias da cruz, de como Deus lida com o pecado por meio da morte de Jesus, não abordaram o problema mais amplo do mal, como vimos no capítulo 1. N o extremo oposto, a maioria das pessoas que escreveu sobre o “problema do mal” dentro da

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teologia filosófica não explorou a cruz o suficiente para consi­derá-la parte tanto da análise quanto da solução do problema. O s assuntos foram separados, não se relacionam. De um lado tem-se o “problema do mal” , concebido apenas em termos do questionamento de como um Deus bom e poderoso permite a presença do mal no m undo, e de outro a expiação, vista ape­nas em termos de perdão pessoal, com suas várias categorias apresentadas de uma forma que seria comovente, se não fosse inadequada no hino “There is a green hill far away” (Há uma colina verdejante ao longe) — os versos seguem apresentando de várias formas o que um a “expiação” personalizada deseja: “Ele morreu para sermos perdoados; ele morreu para sermos bons; para, enfim, irmos ao céu, salvos por seu sangue pre­cioso”. G rande parte do pensamento cristão dos séculos 19 e 20 aceitou o esquema oferecido pelo iluminismo, em que a fé cristã tem o papel de resgatar as pessoas do m undo malig­no, assegurando-lhes perdão no presente e o céu no futuro. O mundo, influenciado pelo iluminismo, aceitou tal avaliação da fé cristã — o que não causou surpresa, já que ele mesmo a tinha conduzido desde o início — e não considerou necessário incluir a teologia cristã em seus debates sobre “o problema do mal” . Sendo assim, como um hino como “Há uma colina verdejan­te ao longe” teria algo a dizer a um mundo assombrado pelo horror da Primeira Guerra Mundial, Auschwitz, Hiroshima e11 de setembro? Apesar de teólogos como Jurgen Moltmann terem dado um primeiro passo no sentido de reunir o que não deveria ter sido separado, ainda ficamos com uma imensa tarefa pela frente.

Relendo os EvangelhosA essa altura, o que precisam os fazer é reler os Evangelhos conform e o que eles são, e não conform e o que não são.

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M uitas vezes parece — com o verifiquei durante os vários anos em que ensinei e avaliei alunos em um ambiente universitá­rio no qual o paradigm a dom inante ainda exercia influência— que na verdade os Evangelhos não apresentam muito da teologia da expiação. A “teologia da cruz” , em Marcos, parece reduzida a um único versículo-chave, o 10.45, que evoca Isaías 53 ao falar que o Filho do Hom em veio para “dar a sua vida em resgate por m uitos”, lutron anti pollõn. Lucas, que parece deliberadamente evitar seguir Marcos nesse ponto, prefere não apresentar qualquer teologia da expiação. A Ultim a Ceia apresenta indicações dessa teologia e as narrativas da crucifi­cação, especialmente as alusões bíblicas, fornecem mais ele­mentos. Contudo, a maior parte dos Evangelhos, da forma como são lidos nas principais tradições, tanto nos seminários quanto nas igrejas — e me refiro às igrejas das quais se espera que busquem a teologia da expiação, explorando os lugares onde possa ser encontrada —, tinha pouco a contribuir, a não ser um a narrativa geral que servia de pano de fundo para a teologia da expiação, fundam entada em Paulo, Hebreus e1 Pedro.

Todavia, quando lemos os Evangelhos da forma holística em que eles deveriam ser lidos, descobrimos que contam uma história dupla, na qual os temas de nossos dois primeiros ca­pítulos se unem em um único ponto. Narram como o mal no m undo — político, social, pessoal, moral, emocional — atingiu seu ponto máximo; e contam como o plano a longo prazo de Deus para Israel (e para si próprio!) havia chegado ao seu clí­max. Os Evangelhos contam essas duas histórias por meio da narrativa de como Jesus de Nazaré anunciou o reino de Deus e seguiu rumo à sua morte violenta. Neste capítulo, explicarei essa complexa declaração e depois mostrarei como os Evan­gelhos, lidos dessa forma, oferecem ao mesmo tempo uma teologia da expiação mais rica do que estamos acostumados,

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e também um entendimento mais profundo do problema do mal e o que deve ser feito quanto a ele em nossos dias.

1. O s Evangelhos contam a história dos poderes políticosdeste m undo atingindo seu pleno e arrogante apogeu. Os pri­meiros leitores dos Evangelhos sabiam perfeitamente bem o que a palavra ‘evangelho’ significava, e sabiam que todo ensi­no sobre o “reino de D eus” , era um confronto direto ao go­verno de César, no qual as novas leis eram chamadas de “boas novas” , “evangelho” . Rom a é o pano de fundo som brio de todas as histórias do Evangelho, e quando, por fim, Jesus se encontra com Pilatos, o leitor atento percebe o desenlace, a revelação do verdadeiro confronto que vinha acontecendo o tempo todo. De m odo semelhante, visto principalmente no Evangelho de Mateus, a presença da casa de Herodes e a histó­ria de João Batista são lembretes contínuos de que a pseudo- aristocracia judaica (ou que fingia ser judaica) local não ficou satisfeita com a presença ou a proclamação de outro “rei dos judeus” . Finalmente, o corrupto regime de Jerusalém, dirigido por Caifás e seus sumo-sacerdotes, que novamente entra em cena apenas no clímax da história, faz parte da estrutura pro­funda do problema, já que os sistemas hum anos se excedem em todos os aspectos e acabam colocando Jesus na cruz.

2. Os Evangelhos também nos contam a história da corrup­ção dentro de Israel, já que o povo que carrega a solução havia se tornado, de uma forma ironicamente terrível e que levava Paulo às lágrimas sempre que pensava nisso, parte central do problema. A interpretação da Torá oferecida pelos fariseus im-

• põe um tipo de busca por santidade, mas acaba apenas agravan­do a situação. Os sacerdotes do Templo ofereciam sacrifíciosque deveriam exaltar a graça de Deus, mas que, em vez disso,exaltavam apenas o sistema sacerdotal exclusivista e corrupto.Os revolucionários tentam participar do estabelecimento doreino de Deus (Mt 11.12), mas seus esforços em combater a

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violência com violência sempre resultam em uma vitória em prol da violência e não sobre ela. Isso significa que, quando a morte de Jesus chega, está fadada a ser vista como obra não apenas das nações pagãs, mas de Israel, que ansiava, assim como (irônica- mente) no dia em que escolheu o primeiro rei, por tornar-se “à semelhança das outras nações” (ISm 8.5, 20) e agora se limitava a afirmar que seu único rei era César 0o 19.15).

3. O s Evangelhos contam então a história das profundase tenebrosas forças que operam em nível suprapessoal, para as quais a linguagem ‘dem oníaca’ é a mais adequada, apesar de todos os problem as. Essas forças m alignas operam em todos os elem entos hum anos já descritos, mas não podem ser re^ duzidas sim plesm ente a esses elem entos. O s Evangelhos nos apresentam “satanás” , praticam ente um “acusador” pessoal que se esforça ao m áxim o para arrastar Jesus para a arm adi­lha em que Israel, assim com o o resto do m undo, já havia caído. O s dem ônios escandalosos que vociferam quando ele cura, que se lançam sobre ele em ergindo das sepulturas, m ostram que a batalha vai além do nível pessoal. O mar som brio e turbulento evoca o antigo im aginário israelita de um m al que é mais do que a som a total dos erros e dores do presente. A referência ao “poder das trevas” , feita por Jesus instantes antes da traição (Lc 22.53), indica a consci­ência de que, naquela noite específica, o mal recebera um a perm issão, um a carta branca para fazer o pior que pudesse, de form a que os soldados, o traidor, os discípulos desnor­teados e o tribunal corrupto fossem apenas figurantes. A zom baria dos espectadores enquanto Jesus está pendurado na cruz (“Se és filho de D eus...”) é o eco da sarcástica e tentadora voz que havia sussurrado no deserto. O poder da própria m orte e a negação final da bondade da criação se referem a um a força de destruição, contrária ao m undo e a D eus, sendo autorizada a fazer o pior. O s Evangelhos

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contam toda essa história para dizer que o jovem profeta judeu torturado e pendurado na cruz representava o m om ento em que o mal se tornou verdadeira, plena e totalm ente autên- tico.

4. Os Evangelhos contam a história de Jesus com o um ahistória na qual a linha entre o bem e mal não separa Jesus e seus amigos do resto do mundo, nem os judeus dos gentios; ela passa bem no m eio dos próprios seguidores de Jesus. Pedro, cha­m ado para ser a pedra, logo em seguida é denunciado com o “satanás” . Tomé m urm ura e duvida. T iago e João querem os melhores lugares no reino. Todos discutem sobre quem rece­berá as posições de destaque. Judas é Judas, o m aior de todos os enigmas. Em todos os casos, assim que avistam a som bra da espada, perdem a coragem e a lealdade e abandonam Je­sus. Talvez pudéssem os afirm ar que algumas mulheres foram leais e dedicadas, enquanto os homens se descontrolaram ; no entanto, a base desse argum ento seria o silêncio. D ada a situação em que os Evangelhos foram escritos, a sinceridade com que as falhas dos prim eiros líderes da igreja são descritas é notável.

5. A história contada pelos Evangelhos é a história do espi­ral descendente do mal. U m a coisa leva à outra; o remédio ofe­recido contra o mal tem em si o germe do mal, de m odo que a tentativa de solucionar o problema apenas produz um mal secundário. E assim por diante. A traição de Judas e a negação de Pedro figuram apenas com o o último desdobram ento dessa história, que se completa com a injustiça casual de Caifás, o sumo-sacerdote, e de Pilatos, o governador, e com a zombaria da m ultidão ao pé da cruz.

Esses cinco pontos nos levam a dizer que a história que os Evangelhos tentam nos mostrar é a história de como a morte de Jesus é a convergência de todas as formas do mal. Sua morte re­sulta do maior mal político do mundo, dos jogos de poder que

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o mundo disputava e ainda disputa, e também das forças som­brias e acusadoras por trás dessas estruturas humanas e sociais; forças que acusam a própria criação de ser má, e assim tentam destruí-la, enquanto o próprio Criador anseia por redimi-la. Os Evangelhos contam a história da morte de Jesus como a história de quando o espiral descendente do mal finalmente atinge a base, culminando com a violenta e sangrenta execução desse homem, desse profeta que havia anunciado o reino de Deus. Se é assim que os Evangelhos contam a história de Jesus-, a que conclusão os autores querem que cheguemos?

Jesus lida com o malPoderíamos nos deter nesse ponto e dizer: “Bem, os Evangelhos falam que o mal, da forma como analisamos, foi a verdadeira causa da morte de Jesus; mas isso, por si só, não é uma solução para o problema, e sim uma nova apresentação dele” . N ão basta dizer que o mal colocou Jesus na cruz e a ressurreição reverteu tudo; os Evangelhos contam uma história muito mais complexa e profunda. E aqui que surge o segundo aspecto: os Evangelhos são também a história de como o extenso plano de Deus, de Abraão até Jesus, finalmente se concretizou; o plano aparente­mente ambíguo e arriscado de que tratamos no capítulo 2.

Podemos ver isso em detalhes na forma como os Evange­lhos contam as histórias do ministério público de Jesus. Es­crevi sobre isso em outras obras (principalmente em Jesus and the Victory of God [Jesus e a vitória de Deus], capítulos 5 a 10,5 e em The Challenge of Jesus [O desafio de Jesus]6), e aqui faço apenas um resumo.

A s curas de JesusJesus estende a m ão e toca o leproso. Em vez de a doença pas- ■ sar para ele, sua integridade, sua “pureza” se transfere para o

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enferm o. Ele permite que a mulher com fluxo de sangue o toque, ato que faria qualquer hom em se tornar im puro; entretanto, o poder passa dele para ela, que é curada. Ele toca no cor­po do filho da viúva em N aim e, em lugar de ficar impuro, o defunto volta a viver. Os autores dos Evangelhos quise­ram nos m ostrar o m esm o fenôm eno agindo durante todo o percurso até a cruz. Lá, Jesus finalm ente se identifica comos judeus revolucionários em sua causa perdida, trazendo o reino pelo qual eles ansiavam , mas de um a form a que eles rejeitaram.

Jesus à mesa com pecadoresJesus celebra o reino com todas as pessoas errantes. Atrai ira e hostilidade dos que certamente sabiam que o reino consis­tia em santidade e distância do mal, e que nunca suspeitaram que as pessoas más podiam ser, e estavam sendo, redim idas e resgatadas. A mãe e os irmãos de Jesus foram buscá-lo, acre­ditando que ele estava fora de si, e ele responde declarando que a m ultidão que o cercava, que absorvia cada um a de suas palavras, era sua mãe e seus irmãos. Ele conta histórias (uma ovelha perdida, uma m oeda perdida, dois filhos perdidos) destinadas a indicar, para os que tinham ouvidos para ouvir, que sua conduta não era acidental, mas sim um a priorida­de ordenada pelo céu. Jesus se convida para alm oçar com Zaqueu, o coletor de im postos de Jericó, enquanto a multi­dão espera à porta, totalm ente chocada: “Ele foi comer com um pecador!” . N o fim, morre com rebeldes, com partilhando a m esm a vergonha em bora fosse inocente, com o especial­mente Lucas faz questão de deixar claro. A m ácula do mal se pôs sobre ele com intensidade constante, e ele, de algu­m a forma, a recebeu, a suportou durante todo o caminho, derrotou seu poder.

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Jesus estabelece e descreve o chamado para Israel s e r Israel

Jesus expressa o cham ado de Deus de um a nova forma na convocação que faz a seus seguidores. Israel deverá ser, final­mente, a luz do m undo, a cidade colocada sobre o monte. M ostrará ao m undo o que significa ser povo de Deus, seus servos no mundo: dar a outra face, andar a segunda milha, não se opor aos pagãos que procuram acabar com você por causa de tudo o que conquistou. Então, com as palavras de­safiadoras do Serm ão do M onte ainda ressoando em nossos ouvidos, lemos o Evangelho de Mateus e observamos o Filho do H om em trazendo o julgam ento de Deus ao m undo, co- locando-o no cam inho certo, vencendo o mal, declarando o perdão dos pecados com sua própria autoridade, anunciando que tem o direito do suspender as leis que regulamentam o sabá. Então, observamos o M essias vindo até seu reino, ven­cendo a verdadeira batalha, purificando o Templo, trazendo o governo de Deus ao m undo com o o Salm o 2 havia predito,porém, fazendo tudo isso de um a forma nunca imaginada. Depois, por fim, vemos o Filho do Hom em , o Messias, que ao tomar sobre si o papel do Servo, a representação máxima de Israel, carrega o pecado e a vergonha de Israel e do m undo. Conform e a história se desenrola e chega ao seu violento fi­nal, repentinamente entendemos que ele obedeceu à vocação de Israel que ele m esm o anunciara no tremendo, e tantas vezes mal-entendido, Serm ão do M onte. Ele havia dado a ou­tra face. Pegou a cruz rom ana e andou a segunda milha. Foi colocado sobre um a colina, onde não havia com o escondê-lo. Agiu com o Israel, a luz do m undo, no lugar de Israel, que aceitara as trevas pagãs. Marcos 10.45 (com seu paralelo em M ateus 20.28) não é um a declaração isolada e independente, de interpretação teológica superposta a um a narrativa que,

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de outro m odo, seria incompleta e teologicamente neutra. É apenas a ponta do iceberg nos revelando o que há sob a su­perfície, nas profundezas.

Poderíamos resumir o tema, entranhado nas histórias dos Evangelhos, da seguinte maneira:

1. Jesus havia advertido seu povo quanto ao julgamento imi­nente de Deus, por causa de seu fracasso em seguir o chamado para ser a luz do mundo, por não ter incorporado em sua vida a justiça e a misericórdia para as quais Deus o chamara.

2. Jesus se identificou totalmente com Israel (como o Mes­sias, o Servo, estava destinado a fazer): tom ou sobre si a res­ponsabilidade, chegou ao ponto da dor, da impureza, da doen­ça, da insensatez, da rebeldia e do pecado.

3. Assim, Jesus tomou sobre si as conseqüências diretas,tanto na esfera política quanto na teológica, do fracasso e do pecado de Israel. Morreu, literalmente, por causa do pecado deles. (Vi, certa vez, um adesivo em um carro perto de um a re­serva indígena às margens do rio Ottawa, a oeste de Montreal, no Canadá, que dizia: “Custer morreu pelos pecados de vo­cês”.7 Esse é um raciocínio semelhante.) Isso não é uma parte de uma teologia estranha ou arbitrária encontrada posterior­mente na narrativa. Isso, conforme os Evangelhos afirmam, é o que era para ser o tempo todo. Jesus levou sobre si o resulta­do direto das falhas do povo de Deus em sua vocação.

Especialm ente M ateus, M arcos, Lucas e João declaram, cada um em seu estilo característico, que tudo o que esta­va acontecendo era ao m esm o tempo intenção de Jesus (em um a vocação cujas raízes rem ontam ao Antigo Testam ento, e à sua personalidade, preparada com oração e estudo desde a infância e confirm ada de form a radical em seu batism o) e do próprio D eus. O Deus de Israel havia prom etido que voltaria a Jerusalém para governar, julgar, curar e salvar. Ele chegara à cidade com tudo isso em mente, contando histórias sobre o

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rei que prometera voltar, advertindo quanto às conseqüências de não se estar pronto. Era a galinha que desejava aninhar seus pintinhos sob suas asas protetoras. Era a árvore verdejante, a única que carregava a vida, enquanto tudo em sua volta estava seco, ramos sem vida prontos para serem consumidos.

Jesus fez de si um tema som brio com raízes bíblicas pro­fundas. Chegaria um tempo de grande sofrim ento e tribula- ção, e apenas depois desse tempo o resgate prom etido por Deus viria. Jesus acreditava, movido por um a vocação que nos deixa surpresos e espantados, que o peirasmos, o grande “tem po da provação” sobre o qual os profetas e oráculos ha­viam falado, estava para absorver o m undo com o um a onda gigantesca e que ele tinha de receber sobre si todo o impacto para que os outros fossem poupados. N o jardim, ele disse aos discípulos: “Vigiem e orem, para que não caiam em pei­rasmos” (Mc 14.38). Se a intenção de Jesus ao dizer isso fos­se apenas ensinar que depois de um a boa refeição acom pa­nhada de bons vinhos era preciso orar para não ser tentado a cometer algum pecado cotidiano, a cena seria reduzida a um a banalidade, quase um a farsa. A verdade é que o grande, tenebroso e horrível poder do mal pesava sobre Jesus, e ele há m uito havia entendido que, com o representante de Isra­el, seria exclusivamente sua a tarefa de fazer o que, segundo as mesmas Escrituras, o Deus de Israel havia declarado que som ente ele poderia fazer. Ajoelhou-se, a cerca de um quilô­metro e meio do G eena que havia antevisto com o o destino final da cidade, certo de que tinha de avançar, colocar-se na brecha e tom ar sobre si o destino. N ão há com o fugir dessa extraordinária e empolgante com binação de temas teológi­cos, pessoais e cósmicos. A única forma de fazer jus ao que os Evangelhos tentam transm itir é captar a imagem completa e absorvê-la por inteiro.

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A visão dos primeiros cristãos sobre a derrota do mal

D uas reflexões emergem de tudo isso e constituem, ao mesmo tempo, a base da teologia da expiação na igreja primitiva e o início da resposta do Novo Testamento ao problema do mal.

1. Paulo viu, em sua enfática declaração registrada em Ro­m anos 7.1 - 8.11, que, na morte de Jesus, Deus condenou o pecado, decretou e executou uma sentença sobre ele (8.3). O grande ‘não’ de Deus ao mal se personificou em Jesus, aquele que podia representar — e representou — Israel, com o seu Mes­sias e, consequentemente, o Messias do m undo todo.

2. Os autores do Novo Testamento registraram de váriasformas o sinal visível do mal fazendo o que há de pior e sendo dissipado. Jesus sofreu, mas não amaldiçoou, foi insultado, mas não revidou (lPe 2.23). “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo” (Lc 23.34): uma inovação radical dianteda longa e nobre tradição judaica de mártires, de heróis que, ao serem torturados até a morte (como, por exemplo, em 2 M acabeus 7), clamavam pela vingança de Deus sobre seus per­seguidores e alertavam para o julgamento que viria.

O resultado im ediato é a ressurreição de Jesus. Seria pos­sível entender essa afirm ação de maneira com pletam ente tri­vial e superficial, com o sim plesm ente um a recom pensa por um a tarefa extremamente difícil que ele conseguiu comple­tar, ou talvez com o o sinal de que, com o Jesus era divino, tudo não havia passado de um enigma bem elaborado. Acre­dito que, infelizmente, haja cristãos que pensem assim. N o entanto, a ressurreição é m uito mais do que isso. O mal é a força que se opõe à criação e à vida, que se contrapõe ao m undo de D eus e tenta desfigurar e destruir esse m undo, que é bom em termos de espaço, tempo e matéria. Acim a de tudo, ele tenta destruir as criaturas hum anas que carregam a imagem de Deus. Por isso a morte, com o Paulo declarou de

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form a tão direta em 1 C oríntios 15.26, é o grande inimigo final. Porém, se de alguma form a esse m al foi derrotado — se é verdade, com o afirmam os Evangelhos, que o mal, em todos os níveis e aspectos, fez o que havia de pior, e que Jesus lidou com ele em todo seu m inistério público e de forma suprem a na cruz, tirando-lhe a força e derrotando-o, então, a morte não tem mais poder. “Apenas um breve adormecer, acorda­mos para a eternidade; e a morte não existirá mais; morte, tu m orrerás.” John D onne viu com clareza algo que muitos leitores contem porâneos dos Evangelhos não entendem. De fato, podem os até afirmar que os autores dos Evangelhos contaram a história toda para explicar por que a ressurreição aconteceu, para deixar claro que não foi apenas um milagre estranho, isolado e bizarro, mas sim o próprio resultado do com pleto e bem sucedido confronto de Jesus contra o mal. Foi com o o cham ado de A braão após o julgam ento sobre Ba­bel; com o a pom ba e a folha de oliveira depois de quarenta dias de chuva. Foi o ato de Deus de um a nova criação após o julgam ento ter caído sobre o mal da antiguidade.

Entretanto, no mesmo momento em que dizemos “ressur­reição”, e pelo mesmo motivo (como novamente Paulo viu em1 Coríntios 15), temos de dizer “perdão dos pecados” . N a ver­dade, os dois são a mesma coisa. Ser liberto do pecado é ser liberto da morte; e, já que Jesus morreu como representante de Israel, portanto de toda a raça hum ana e, portanto, de todo o cosmos (é assim que a cadeia da representação funciona), amorte dele, sob o peso do pecado, resulta em libertação ime­diata de todos os que estão cativos pela culpa e pelo poder do pecado. E aí que entram todos os antigos hinos, mas agora com uma força renovada e um significado mais profundo. O perdão dos pecados, por sua vez, significa (como em Isaías 54 e 55) nova criação, já que a força do pecado, oposta a criação, foicontrolada. E a nova criação começa com a palavra de perdão

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ouvida pelo indivíduo pecador, como na excepcional cena de Jesus e Pedro à beira do lago em João 21.15-19.

A história que os Evangelhos tentam contar é uma história na qual o mal e seu poder mortal são seriamente considerados, sobrepujando um a tendência atual de aceitar a antiga ideia liberal de que não havia muita coisa errada com o m undo e com os seres hum anos no início. Diante de uma tão completa teologia da cruz, com o a oferecida pelos autores dos Evange­lhos, não há necessidade de temer o tenebroso diagnóstico, já que o remédio está disponível. Certam ente é humilhante acei­tar tanto o diagnóstico quanto a cura. Porém, conforme nosso m undo cada vez mais mostra, quando fingimos que o mal não está presente, apenas lhe damos m ais espaço para agir; então, talvez seja melhor olhar novamente o diagnóstico e a cura que os Evangelhos oferecem.

Os autores dos Evangelhos reúnem tudo isso em uma seqüência de três eventos que juntos descrevem a cena e expli­cam com profundidade o que estava acontecendo. Primeiro, a purificação do Templo: Jesus incorporou e expressou o julgamen­to do Deus de Israel sobre o Templo, que era o ponto central da vida do povo, que rejeitou o chamado de Deus por meio dos profetas e agora recusava esse mesmo chamado por meio do Filho. A ação de Jesus, um símbolo claro (como em Jere­mias) do julgamento que viria, m ostrou que agora o Deus de Israel seria conhecido, não por meio do sistema de sacrifícios, mas por meio de um a nova aliança na qual o povo aprenderia a amá-lo de todo o coração, mente, alma e força (veja Marcos 12.28-34, em um contexto em que a maioria das cenas perifé­ricas aponta para a futura destruição do Templo).

Segundo, a Ceia. Essa foi a forma que Jesus escolheu para expressar e explicar aos discípulos, naquela época e até hoje, o significado de sua morte. Ele não usou uma teoria, e simum a ação (uma advertência para todos os teóricos da expiação

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que surgiriam e talvez um a indicação do motivo pelo qual a Igreja nunca incluiu um a cláusula de definição específica so­bre a expiação em seus principais credos). Talvez a expiação seja, em seu nível mais profundo, algo que acontece, de m odo que reduzi-la a uma declaração com a qual seja possível concor­dar intelectualmente é um erro bastante grave (já que todas as declarações desse tipo devem ser indicações precisas da reali­dade). U m erro desse tipo ocorre quando as pessoas imaginam ser capazes de solucionar o problema do mal. N a verdade, é o mesmo erro sob outro disfarce... Em todo caso, na ceia, o rei compartilha sua vida com seus amigos e, mais especificamen­te, os faz, solenemente, beneficiários de sua morte que traz o reino. O pastor reuniu as ovelhas pela última vez, antes departir para fazer por elas aquilo que só ele poderia fazer.

Terceiro, a própria crucificação. Por meio de cada um a das pequenas histórias e personagens secundários que tornam a narrativa tão rica e intensa, os evangelistas contam algo do que o evento significa, de form a sem elhante às peças de Shakespeare, em que as cenas menores ajudam o público a entender o significado pleno do enredo principal. M aria de Betânia ungiu Jesus para o sepulcro; Sim ão Cireneu carregou a cruz; Barrabás foi liberto; um bandido praguejou, o outro se arrependeu; os espectadores zombaram, os- soldados tira­ram a sorte e um centurião parou para refletir. Jesus em sua cruz sobrepõe toda a cena com o Israel personificado, com o YH W H personificado, com o o m om ento em que o mal do m undo faz tudo o que é capaz e em que o C riador do m undo faz tudo o que é capaz. Jesus sofre todas as conseqüências do mal, em todos os seus aspectos — político, social, cultural, pessoal, moral, religioso e espiritual — todos rejunidos em um só, o m al com o um espiral descendente que desaba no abis­mo da destruição e do desespero. E Jesus faz isso exatamente com o ato de redenção, para assum ir a queda e destruí-la,

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para que possa haver uma nova criação, um a nova aliança, perdão, libertação e esperança.

O s Evangelhos contam a história de Jesus, especialmente da forma com o enfrentou sua m orte, contam a história de como o m al cósm ico e global, em suas formas pessoal e supra- pessoal, foi confrontado pelo am or soberano e salvífico do Deus de Israel, YH W H , o C riador do m undo. Esse, segundo os evangelistas, é o significado do “reino de D eus” : não é “ir para o céu depois de m orrer”, nem “um a nova ordem da re­alidade política m undial”, mas algo que inclui esses dois as­pectos e vai além. O que os Evangelhos oferecem não é um a explicação filosófica do mal, do que ele é ou por que existe, nem um conjunto de sugestões para ajustarm os ao nosso es­tilo de vida de form a que o m al desapareça m isteriosam ente do m undo. Trata-se da história de um evento em que o Deus vivo lida com o mal. Isso nos faz rem ontar às antigas histó­rias do êxodo do Egito e da volta após o exílio babilônico, e, não surpreendentemente, os primeiros cristãos, tanto os autores dos Evangelhos quanto os das liturgias tradicionais dos séculos 2, 3 e 4, buscaram se apoiar nesses dois eventos para explicar o que aconteceu na cruz. Eles afirmam que essa é a forma como Deus resgata seu povo do mal em que estão presos; e o faz por meio do sofrim ento do representante de Israel, assim como os mártires, porém com mais poder. E isso que parece acontecer quando YH W H diz, em Êxodo 3.7-8: “V i a aflição de m eu povo [...] ouvi o seu clamor [...] desci a fim de livrá-lo” (RA). Também quando ele diz: “Eis o meu servo” . C om o Isaías afirm ou m ais tarde (capítulo 59), não foi um mensageiro, nem um anjo, foi a presença dele que os salvou; em toda a aflição deles, ele tam bém foi afligido. E o resultado disso tudo é a renovação da aliança; os pecadosperdoados; a longa noite de tristeza, exílio e morte acabou e um novo dia raiou.

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De forma central e crucial, os Evangelhos contam uma história que permanece única entre toda a literatura do mundo, entre todas as teorias e visões religiosas do mundo: a história do Deus Criador assumindo a responsabilidade pelo que acon­teceu com a criação, carregando o peso dos problemas dela em seus ombros. Com o Sydney Carter diz em um de seus cânticos mais belos: “Eles tinham de crucificar Deus, em vez de você e de mim”. Ou, como estava escrito em um antigo folheto evange- lístico, as nações do m undo se reuniram para pronunciar o jul­gamento de Deus por todos os crimes do mundo, e ao fazerem isso, apenas perceberam, chocados, que ele já havia cumprido a sentença.

Resultados: expiação e o problema do mal

C om o, então, juntar a questão da expiação e o problema do mal?

A primeira coisa a dizer é que todas as teorias da expiação são, por elas mesmas, abstrações dos eventos reais e que os even­tos, reais no tempo e no espaço, são o que as teorias tentam entender, mas não podem substituir. De fato, as histórias se aproximam mais dos eventos do que as teorias, já que é por meio das narrativas que som os colocados em cçntato com os eventos, que são a realidade, o que realmente interessa. E é por meio de outros eventos do presente que somos levados ainda mais para perto: a eucaristia, uma repetição da refeição que Jesus repartiu como sendo sua própria interpretação de sua morte, e os atos de cura, amor e perdão pelos quais a mor­te de Jesus se torna uma nova realidade dentro de um m undo ainda corrompido. >

Tendo dito isso, sinto-me direcionado a uma das teorias mais correntes sobre a expiação, sobre como Deus lida com o mal por meio da morte de Jesus — não como uma substituição de eventos

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ou histórias, nem como uma única teoria que supera todas as outras, mas como um tema que me leva para além dos outros, rumo a essência de tudo. Refiro-me ao tema do Christus Victor, a crença de que sobre a cruz Jesus venceu os poderes do mal. A par­tir disso, as outras teorias entram para desempenhar suas respec­tivas funções. Para Paulo, a morte de Jesus claramente envolve (por exemplo, em Romanos 8.3) um elemento judicial ou penal, que é o próprio ‘não’ de Deus ao pecado, expresso em Jesus, o Messias, como representante de Israel e, consequentemente, de todo o mundo. É nesse momento que o reconhecimento de que a linha divisória entre o bem e o mal passa exatamente por entre mim, por entre cada um de nós, se une com a proclamação do evangelho de que a morte de Jesus é “para m im ” , em meu lugar, em meu favor. Por ser o Messias, o representante de Israel e do mundo, ele pode fazer isso por todos. Paulo diz que, por nossa causa, Deus fez com que aquele que não conheceu o pecado fos­se pecado, para ser oferecido como pecado por amor a nós (2Co 5.21). Portanto, o Novo Testamento apresenta essa morte como ato de amor, tanto do próprio Jesus (G12.20) quanto de Deus, de quem Jesus era a própria expressão física (Jo 3.16; 13.1; Rm 5.6- 11; 8.31-39; l jo 4.9-10). Assim vemos, não como fundamento, mas como resultado, que o sacrifício e morte de Jesus são um exemplo de como devemos amar uns aos outros.

Dentro de tudo isso, precisamos ter em mente que estamos falando e pensando, em termos escatológicos, sobre os propósi­tos de Deus agindo por meio da história rumo a um momento de clímax. Isso quer dizer que a conquista na cruz não foi um acontecimento atemporal e abstrato, situado, segundo Platão, fora da realidade de tempo e espaço da história. N ão basta afirmar que um dia Deus fará um novo m undo onde não ha­verá mais pranto nem dor; isso não confere justiça por todo o m al posterior. N ão chegaremos a uma solução satisfatória para o problema do mal simplesmente pelo progresso, com o se,

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contanto que a geração final seja feliz, toda a desgraça das gerações anteriores pudesse ser ignorada ou até justificada (como nas terríveis palavras de um hino: “Então saberão, aque­les que o amam, como a dor que sentiam era boa”; esse é um tipo de indiferença ao mal para o qual o Novo Testamento não oferece qualquer base). Todas as teorias da expiação, adequadas ao que pretendem, devem incluir um olhar para o passado (ver a culpa, o pecado e a vergonha das gerações anteriores lançadas na cruz) e uma dimensão futura, a promessa de que aquilo que Deus conquistou no Calvário será instituído de maneira plena e decisiva. Caso contrário, a cruz se torna apenas um gesto sem sentido, ineficaz, ao menos que alguém o note e seja influencia­do por ele a agir de maneira diferente.

É nesse ponto que o significado pessoal da cruz fica bem claro. Chegará o dia em que eu — até mesmo eu, tão pecador!— ficarei totalmente livre do pecado, quando Deus completar sua obra de graça em mim. Porém, já desfruto, em antecipação ao futuro, do perdão no presente, e da vida nova no Espírito, dis­ponível precisamente quando Jesus foi “glorificado” ao ser “le­vantado” na cruz (Jo 7.39; 20.22). E então, como deveríamos esperar, dada a estreita ligação sacramental entre a eucaristia e a cruz, a eucaristia incorpora e expressa o primeiro deles (o perdão), e fortalece e possibilita o segundo (a vida no Espí­rito). A mensagem pessoal da Sexta-feira Santa, proclamada em tantos hinos e orações que expressam a tradição do Servo sofredor (Is 53) e sua apresentação no Novo Testamento, pode ser assim resumida: “veja seus pecados lançados sobre Jesus”; “o filho de Deus me amou e se entregou por m im ”; ou, nas palavras que Jesus pronunciou na Ceia, mas que Deus /disse na própria Sexta-feira Santa: “Este é meu corpo, entregue por vocês”. Aplicando isso de forma pessoal, aos pecados de hoje e aos de amanhã, o resultado não é um a licença para pecarmos, já que tudo já foi resolvido; em vez disso, somos convocados,

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pelo mais poderoso amor do mundo, a vivermos segundo o padrão de morte e ressurreição, arrependimento e perdão, em um viver cristão diário, em esperança e certeza da vitória final. O “problema do m al” não é apenas um a questão “cósmica” , tem a ver comigo. E Deus resolveu isso na cruz de seu filho, o Messias. E por isso que há tradições cristãs que veneram acruz, assim como alguns veneram o chão em que uma pessoa amada pisa. A cruz é o lugar e o meio pelo qual Deus mais nos amou.

A importância do perdão será tratada com mais profundi­dade nos dois últimos capítulos. Agora, voltaremos a tratar das dimensões mais amplas do problema do mal, como descre­vemos no capítulo 1, e veremos como a cruz nos permite lidar com elas de maneira atual.

Mencionei anteriormente a análise superficial do mal e as reações imaturas que ela provoca. É fascinante notar que a passagem mais conhecida sobre “expiação” nos Evangelhos acontece justamente no contexto em que Jesus profere pala­vras diretas quanto à natureza do poder político e sua subver­são pelos próprios eventos do Evangelho. O pedido de seus discípulos Tiago e João para se assentarem ao lado de Jesus em seu reino (Mc 10.35-45) é uma questão política, que recebe uma resposta política: os governantes deste m undo dom inam seus súditos, mas vocês não devem agir assim. Pelo contrário, os importantes devem servir, e os chefes devem ser escravos, porque o Filho do Hom em não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida com o resgate de muitos. Essa evocação de Isaías 53 — exatamente como a de Isaías 40 a 55 — permeia a análise política do império e a subverte, mostrando com o todas as tradições de Israel, o povo por meio de quem Deus iria tratar e resolver o problema do mal no mundo, chegam a um ponto em que derrotam a Babilônia e revertem suas ações. En­contramos a mesma situação em Lucas 9.54, quando, de novo,

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Tiago e João querem agir segundo os caminhos do m undo e pedem que caia fogo do céu para destruir seus inimigos. A censura de Jesus a eles está diretamente ligada ao “Pai, perdoa- lhes” de Lucas 23.34.

Qual, então, é o resultado? O chamado do evangelho é para a Igreja implementar a vitória de Deus no m undo por meio do amor sofredor. A cruz não é apenas um exemplo a ser seguido, é um feito a ser exercitado, posto em prática. Porém, não deixa de ser exemplo, porque é o molde, o modelo para o que Deus quer fazer agora neste m undo, por seu Espírito e por meio de seu povo. E o início do processo de redenção, em que o sofri­mento e o martírio são os meios paradoxais para se alcançar a vitória. Voltaremos a esse tema nos dois últimos capítulos.

Alguns podem perguntar: “E se o povo que tem a solução agora se tornar parte do problema, como aconteceu antes?” Essa é um a possibilidade que deve ser levada em conta. O m o­mento em que a Igreja corre mais risco é quando se vê apenas como portadora da solução, esquecendo-se que tem de dizer, todos os dias: “Senhor, tem misericórdia de mim, pecador” , e permitir que essa confissão gere uma hum ildade verdadeira mesmo quando nos opom os com ousadia diante do m undo e de seus impérios insensatos. Especificamente, tem-se um pro­blema quando o império “cristão” tenta impor sua vontade sobre o m undo de forma dualística, rotulando todos os outros como “o mal” e vendo a si mesmo como o exército vingador de Deus. Isso é mais ou menos o que Jesus encontrou em Is­rael. A cruz foi, e continua sendo, um chamado para outravocacão, um a nova maneira de lidar com o mal e, acima de

./tudo, um a nova visão de Deus.

O que aconteceria, afinal, se o Deus verdadeiro viesse lidar com o pecado? Será que ele viria em um clarão de glória, em uma coluna de nuvem e fogo, cercado por legiões de anjos? Jesus de Nazaré assumiu o risco total de falar e agir como se

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a resposta a essa pergunta fosse: quando o verdadeiro Deus voltar para lidar com o mal, terá a aparência de um jovem profeta judeu cam inhando até Jerusalém na época da Páscoa, celebrando o reino, confrontando as autoridades corruptas, festejando com seus amigos, sucumbindo em oração e agonia diante de um destino injusto, levando sobre si o peso do pe­cado de Israel e do mundo, o mal, em sua forma mais real. Olhando para Jesus dessa forma, descobrimos que, para nós, a cruz é o novo Templo, o lugar aonde vamos para nos encon­trarmos com o verdadeiro Deus e conhecê-lo como Salvador e Redentor. A cruz passou a ser o local de peregrinação, onde contemplamos boquiabertos o que foi feito em favor de cada um de nós. A cruz se torna o sinal de que o império pagão, simbolizado no vigor e no poder da força brutal, foi defini­tivamente desafiado por outro poder, o poder do amor, que finalmente vencerá.

Então, a questão é posta a nós da forma mais enfática e clara possível. Teremos a coragem de nos colocar diante da cruz e admitir que tudo aquilo aconteceu por nossa causa? De pegar todos os significados da palavra “Deus” e permitir que eles sejam recentralizados, redefinidos por esse homem, por esse momen­to, por essa morte? Ousaremos aceitar as conseqüências do que Jesus falou, que os dominadores deste m undo se comportam de uma forma, mas que não podemos agir como eles? Ousare­mos, então, unir a teologia da expiação e a teologia da política, tendo uma profunda mensagem pessoal de um lado e do outro um a mensagem totalmente prática e política, abandonando o procedimento de Tiago e João e seguindo o de Jesus? Creio que só assim poderemos iniciar a tarefa, tema que trataremos nos dois últimos capítulos, de trabalhar em nossos dias com uma inteligência cristã madura e sóbria para lidar com o problema do mal que assombra o m undo que Deus tanto amou, pelo qual o Messias entregou sua vida.

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« < CAPÍTULO QUATRO >«•

I m a g i n e q u e o m a l n ã o e x i s t a :Deus promete um mundo liberto

No capítulo 1 aleguei que, apesar do que muitos afirmaram no último século, o mal é real e poderoso e, por não re-

conhecermos isso, reagimos com imaturidade e imprudência quando ele se manifesta inesperadamente. N o capítulo 2, abor­dei a visão bíblica do mal e mostrei que o Antigo Testamento conta a história de Israel com o a história da proposta ambígua do Criador para lidar com o mal, envolvendo-se no m undo que criou e, mais especificamente, cham ando um povo por meio de quem ele resolveria o problema. No capítulo 3, afir­mei que os quatro evangelistas canônicos escreveram a história de Jesus e de sua morte, em estilos variados, para enfatizar esse evento como o clímax da história de Israel e, consequen­temente, como o mom ento em que o m al político se uniu ao cósmico e juntos se consum iram na morte do filho de Deus. Afirmei então que os Evangelhos nos apresentam não apenas a estrutura histórica para uma salvação basicamente não-his- tórica, mas tam bém o relato de Deus agindo para lidar com

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o mal em todos os níveis, permitindo que ele fizesse o pior com seu próprio ser divino encarnado. A cruz só é entendida dessa forma sob a perspectiva da Páscoa, que é quando o feito de Jesus, em sua morte por obediência, começa a ficar visível, assim como uma m ontanha imensa surge onde antes, para os que estavam no vale, só havia nuvens densas e escuras.

N os dois capítulos finais, tentarei mostrar de que formas essa ação decisiva se manifestará. Segundo os primeiros cris­tãos, o que Jesus conquistou com sua morte e ressurreição é a base, o modelo e a garantia do propósito final de Deus: li­vrar o m undo completamente do mal e estabelecer sua nova criação de justiça, beleza e paz. E desde o início fica claro que não se trata apenas de um alvo distante, que se deve aguardar em expectativa passiva. Em Jesus, o futuro de Deus penetrou no presente, e a tarefa da Igreja é implementar essa conquista e assim antecipar esse futuro. Descobri, em meu trabalho duran­te os últimos anos, que essa estrutura escatológica da missão da Igreja é a forma mais eficaz que conheço de entender os desafios, as possibilidades e os limites do que devemos fazer aqui e agora.

Neste capítulo, quero explorar especificamente algumas formas pelas quais essa dupla tarefa de implementar a conquista da cruz e antecipar o mundo futuro prometido por Deus será posta em prática, não tanto em nossa vida pessoal — esse será o as­sunto do capítulo 5 — mas, mais especificamente, no m undo todo; esse lugar onde os políticos e a mídia redescobriram de repente que o mal existe, mas não sabem o que fazer quan­to a ele. C om o sugeri nos dois capítulos anteriores, tende­mos a ver o que chamamos de “teologia da expiação” como um a coisa (relacionada à salvação pessoal) e o “problema do m al” , incluindo o chamado “mal natural” e a perversidade generalizada no m undo, com o outra (como um problema filosófico ou lógico a ser resolvido pelo bom Criador, sem

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muita relação com a história que a Bíblia conta). Pretendo, nestes dois últim os capítulos, superar esse problema, apresen­tando primeiro um quadro global e abrangente e só depois me voltando para questões mais pessoais sobre com o devemos aceitar o perdão de Deus e passá-lo adiante. Claro que os dois capítulos se completam. Parte da importância de transmitir o perdão de Deus aos outros é que, como Desm ond Tutu, da África do Sul, mostrou com m uita clareza, esse é maior sinal de esperança quanto à restauração e cura comunitárias conhecido pela hum anidade.8 Com eçarem os com um panora­ma global mais abrangente, para depois localizarmos dentro dele a questão da reconciliação.

A inda um comentário sobre o ponto de partida e o mé­todo. C om o o título do capítulo deve ter sugerido, preten­do pular para o fim da história e, de lá, retroceder. Até aqui, avançamos, seguindo pela história do Antigo Testamento até seu clímax em Jesus, sua morte e ressurreição. Isso estabelece a base para todo pensamento cristão sobre onde estamos e o que devemos estar fazendo. Porém, se simplesmente continu­armos a partir desse ponto e tentarmos prosseguir, nos per­guntando como esses eventos básicos estabelecem as diretrizes para a ação cristã no m undo, poderem os acabar estagnados. O que o Novo Testamento faz, em duas ou três passagens impor­tantes, é apontar para o fim, para a promessa de um m undo totalmente livre do mal, e nos convidar a manter isso na men­te e no coração, para assim sabermos para onde estamos indo. Um a vez mais, é nossa tarefa implementar a conquista de Jesus e, assim, antecipar o m undo futuro de Deus. Já vimos o passa­do; vejamos agora o futuro. Imagine que o mal não existe...

Entretanto, ao contrário do que afirma a canção da qual tirei essa paródia, o famoso hino de John Lennon ao secularismo, não é “fácil se você tentar” . Exatamente por termos o pensamento tão confuso por causa do mal, temos dificuldade em imaginar

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como seria o mundo se todo o mal fosse removido. Certa vez, um de meus professores mandou escrevermos um texto sobre como seria se o reino de Deus chegasse. U m de meus amigos escreveu uma redação irônica, afirmando que não aconteceria quase nada, pois ninguém teria motivação para ganhar dinheiro e prosperar. Com o podemos pensar mais criativamente sobre o futuro prometido por Deus?

Claro que não basta imaginar o m undo livre de terroristas, sem ditadores, sem comunismo e sem corrupção. Isso-seria o tipo de pensamento dualístico superficial a que me referi no capítulo 1. Também não basta adotar a perspectiva oposta, e imaginar o m undo sem capitalismo e exploração dos pobres pelos ricos, sem aviões de bombardeio, sem minas terrestres, sem poluição industrial e metade do m undo paralisado por causa de dívidas impagáveis — embora milhões de pessoas, se convidadas a imaginar o m undo sem o mal, certamente inclui­riam todos esses elementos em sua lista de desejos. Nos dois casos existe o perigo de dualismo, da separação entre nós e eles, que diz que “nossa” vida é boa e a “deles” é ruim. E isso, no fim das contas, não é muito diferente do dualismo onto- lógico que afirma que o m undo do espaço, tempo e matéria é mau e que apenas o m undo espiritual é bom , de m odo que, sem o mal, o m undo seria repleto de espíritos sem corpo, sen­tados em nuvens fora do espaço-tempo, tocando harpas não- físicas. Certam ente não é fácil imaginar isso. Felizmente, não é isso que fomos chamados a fazer.

Da mesma forma, não basta imaginar que o m undo livre do mal seja apenas um m undo onde aconteceu um processo natural que o fez ficar melhor. Imaginar a ausência do mal não é apenas pensar como tudo seria caso nos esforçássemos um pouco mais e alcançássemos a U topia que sabemos estar bem- próxima. Com o argumentei antes, é incrível que esse mito do

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progresso ainda persista, tendo em vista os acontecimentos terríveis do último século.

Porém, talvez o m ais importante seja entender como es­sas falsas percepções, as perspectivas dualista e progressista, influenciaram a forma como as pessoas se com portam e con­duzem suas vidas. Se você é um dualista, não há muito a fazer para m udar o m undo no presente. Tudo continuará como sempre foi nesse sombrio e perverso vale de lágrimas até a volta do Senhor. Assim, não devemos nem mesmo tentar me­lhorar a situação. Isso seria, na melhor das hipóteses, como consertar um carro que logo será jogado de um precipício. (Semelhante aos marxistas extremos, que são contra a melho­ria da situação dos trabalhadores porque isso atrasaria a revo­lução.) Tal dualismo gera uma paranóia, do tipo que acomete muitos bispos: o sistema está falido, há uma conspiração imen­sa no Parlamento, na mídia, no teatro, na maçonaria, e assim por diante. Seus tentáculos chegaram até a Igreja; nossa tarefa é lutar, protestar e gritar, mas, no fim das contas, o que se es­pera é um confronto final entre Deus e o mal. Isso facilmente nos leva a uma determinada visão sobre demônios, assunto ao qual voltaremos mais adiante.

O s progressistas adotam outra visão. As coisas estão me­lhorando, mas o motivo disso são os vários tipos de evolução. A Primeira Guerra M undial foi explicada com base nesse prin­cípio: se o que importa é a sobrevivência do mais competente, nada como uma boa guerra para mostrar quem é mais compe­tente para sobreviver. A limpeza étnica das tribos indígenas na América do Norte foi justificada de forma semelhante, mais ou menos na mesma época. E isso, por sua vez, faz surgir um novo tipo de legitimação do imperialismo. Se o m undo está avançan­do, se Deus de alguma forma age por meio desse avanço, en­tão os novos impérios que surgem devem ser resultado da obra de Deus; assim, devemos nos juntar a eles e apoiar a obra do

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Senhor. Foi esse argumento que convenceu muitos alemães a se filiarem ao partido Deutsche Christen (Cristãos Alemães) na dé­cada de 30. Eles diziam que Deus levantara a Alemanha como novo poder mundial. Pensadores como Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer e Ernst Kàsemann reagiram contra essa postura.

Hoje vemos um argumento semelhante que tenta legitimar o novo tipo de império global, o do crescimento capitalista in­domável e a imensa dívida global que produziu. O “destino manifesto” do chamado “mundo livre”, que o autoriza a agir li­vremente frente ao resto do mundo, é uma doutrina amplamen­te aceita e até pregada nos púlpitos (ouvi declarações eloqüen­tes sobre ela em setembro de 2002, na Catedral Nacional de Washington) em muitas regiões dos Estados Unidos. Isso também contribuiu para o surgimento de guerras e rumores de guerras.

Quero mostrar neste capítulo que a visão cristã da história mundial mostra um a forma diferente de lidar com o problema do mal com base na morte e na ressurreição de Jesus. Se qui­sermos implementar sua conquista, enquanto antecipamos o m undo em que o mal já não existe, devemos adotar uma pos­tura que não seja dualista nem progressista. Entretanto, antes de tratar disso, preciso dizer algumas palavras quanto aos po­deres do mal, as forças ocultas que muitos teólogos identifi­caram por trás e por dentro das estruturas mundiais. Trata-se de um assunto difícil, que não deve ser tratado de qualquer forma; tentarei resumir em poucas palavras o que, na verdade, deveria se explicado com mais detalhes.

I

Interlúdio: identificando os poderesO mal possui um a dim ensão oculta. H á nele mais do que se pode ver. Esse elemento extra inclui uma força, ou forças, que não deixam de ser reais por serem difíceis de descrever.' Por sinal, essa é um a característica cada vez mais com um na

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física contemporânea. Se os cientistas sugerissem, há cem anos, a existência de “buracos negros” no universo, seriam acusados de insensatez; hoje aceitamos essa teoria como a única forma de explicar certos fatos. Por que algo semelhante deveria ser desconsiderado em outras áreas de raciocínio?

No Antigo Testam ento (para recapitular e desenvolver pontos que já abordam os várias vezes), esporadicam ente encontram os um a figura chamada “satanás” , HaSatan, em hebraico. A palavra significa “acusador” e, nos prim eiros ca­pítulos de Jó, essa figura aparece com o um tipo de ministro inferior na corte celestial. A o que parece, ele era responsável pelas acusações públicas, e seu trabalho era encontrar crimi­nosos e levá-los a julgam ento. N o caso de Jó , satanás pede perm issão para colocá-lo em um a situação em que ele é quase induzido a praguejar. A pesar de Jó fazer muitas coisas, não com ete o erro que satanás queria, isto é, am aldiçoar a Deus. U m fato im portante é que, no fim do livro, apesar de muitas pessoas terem falado, a voz de satanás não é mais ouvida. Ele volta a aparecer em Crônicas, no relato do censo ordena­do por Davi ( lC r 21.1), com o figura acusadora em Zacarias 3.1 e percebemos vestígios de sua presença não apenas em G ênesis 3 mas tam bém nas visões apocalípticas de Daniel, dos m onstros que surgem do mar. A o que parece, satanás é um ser não-humano, um tipo de anjo, em alguns relatos um ex-anjo, ou um anjo decaído, e ele (o interessante é que as fem inistas nunca fizeram uma cam panha para que satanás tam bém fosse tratado no fem inino) passa a se opor à hum a­nidade, portanto a Israel e, então, não surpreendentemente, a Jesus. A cena satânica m ais conhecida na Bíblia certamente é a história da tentação narrada em Mateus 4 e Lucas 4, na qual Jesus recapitula a provação de Israel no deserto, assim com o a de A dão e Eva no jardim, e agora vence onde Israel (e a hum anidade) havia falhado.

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Aparentemente, satanás não se opõe apenas à humanidade, a Israel, e a Jesus, mas à própria criação. Ele tenta o tempo todo destruir o projeto de Deus, o mundo que o Senhor afirmou ser muito bom (1.31), quando o que o mundo precisa, segundo os autores bíblicos, é ser refeito. O alvo máximo de satanás, em outras palavras, é a morte — dos seres humanos e da própria criação. O meio escolhido por ele para levar ò mundo e a hu­manidade à morte é o pecado, a rebelião da humanidade contra a vocação de refletir a imagem de Deus no mundo, a reçusa de adorar a Deus o Criador e a substituição dessa adoração e dessa vocação pela adoração aos elementos criados e a perda inevitá­vel da imagem de Deus. A morte não é um castigo arbitrário pelo pecado, é sua conseqüência necessária, já que rejeitar o Deus vivo, o que constitui idolatria, é o equivalente espiritual do que acontece quando um mergulhador corta seu próprio tubo de oxigênio. A imagem bíblica de satanás é a de uma força não-humana, não-divina, semipessoal que parece determinada a atacar e destruir a criação em geral e a humanidade em particu­lar e, acima de tudo, decidida a subverter o projeto de Deus de refazer o mundo e os seres humanos em e por meio de Jesus e do Espírito Santo.

C . S. Lewis, em seu famoso livro Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, sugere que as pessoas podem cometer dqis erros iguais e opostos quando pensam sobre o diabo. Por um lado, podem levá-lo a sério demais, imaginando que ele é um ser equivalente e oposto a Deus ou a Jesus, e assim enxergar influências satâ­nicas por trás de qualquer problema, sofrimento ou desgraça. Ainda corremos esse perigo. Muitos veem o trabalho pastoral e até a obra de cura das nações e sociedades mais ou menos como um exorcismo. Estou certo de que há lugar para o exorcismo. A maioria dos pastores tem pelo menos uma noção das situações em que ele é necessário. Porém, também tenho certeza de que Lewis tinha razão quando nos advertiu quanto a um interesse

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excessivo e mórbido nas obras demoníacas, como se fôssemos encontrar um demônio atrás de cada árvore do nosso jardim.

O erro oposto imaginado por Lewis é desprezar ou escar­necer da própria ideia da existência de demônios. As pessoas sugerem a existência de um a figura de capa vermelha, com chifres, patas e rabo, e ao zombarem dessa figura pensam que descartaram, ou até mesmo refutaram a existência do diabo. Suspeito que isso esteja por trás da diminuição de referências ao diabo em algumas de nossas liturgias modernas. Muitos teólogos do século passado ficavam envergonhados ao falarem dos dem ônios — até que alguns teólogos políticos, esquerdistas demais para serem ignorados, começaram a usar essa lingua­gem para falar dos problemas que tratavam. Falarei mais sobre isso adiante.

Quero apontar outro erro em que as pessoas podem cair quando pensam sobre “satanás”. H á o perigo de supormos que toda essa linguagem seja apenas um a projeção em uma tela fictícia, talvez “mitológica” , dos aspectos de nossa perso­nalidade, ou psique, com os quais não nos sentimos à vontade ou que queremos fingir que não existem. Alguns dos aprecia­dores das ideias de C arl Jung tentaram insistir que deveríamos aceitar nosso “lado obscuro” e ver o que chamamos de “m al” , ou o que evitamos por ser satânico, com o apenas mais um aspecto, talvez muito criativo e por isso mais ameaçador, de nossa personalidade multifacetada. Existe algo de atraente e holístico nisso, e talvez até seja verdade na proposta de que pelo menos parte da linguagem sobre os demônios não passa de uma projeção desse tipo. Porém, tanto a Bíblia quanto a experiência cristã (sem procurar muito, poderíam os encontrar muitas evidências semelhantes ao menos no judaísmo) apon­tam para outra verdade.

N a verdade, cada uma das falsas impressões possui uma porção de verdade. Satanás, com o apresentado na Bíblia e

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vivenciado e ensinado por muitos líderes espirituais, se opõe totalmente a Deus, acima de tudo a Deus encarnado em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado. Em Lucas 4.6, satanás afir­ma que recebeu o dom ínio sobre todos os reinos do mundo, mas Jesus o contradiz por completo em Mateus 28.18, dizendo que ele é quem recebeu toda autoridade no céu e na terra. Porém, é um erro pensar que satanás é “pessoal” , como Deus e Jesus. Isso não significa que ele é uma força indefinida ou ne­bulosa, pelo contrário. Prefiro usar os termos subpessoal, ou semipessoal, como forma de recusar-lhe a dignidade completa de uma personalidade, e ao mesmo tempo reconhecer que sua concentração de atividade, seus esquemas e recursos sutis, po­dem nos atingir, e nos atingem, de forma muito semelhante à que associamos a uma personalidade.

Existem formas tolas e sem dúvida inúteis de apresentar satanás, inclusive na imaginação popular, e devemos evitá-las. N o entanto, não podem os pensar que com isso eliminamos a realidade para a qual essas imagens banais apontam.

Por fim, a ideia da projeção nos ajuda a entender um pou­co sobre o mal. Q uando a humanidade comete idolatria, ado­rando aquilo que não é Deus como se fosse, concede a outras criaturas e seres do cosmos um poder, prestígio e autoridade sobre nós, que nós, submissos a Deus, deveríamos ter sobre eles. Ao adorar um ídolo, seja ele qual for, você abdica algo de sua própria autoridade humana sobre o mundo e concede autori­dade a esse ídolo, chamado a ser um a força negativa, contrária a Deus, uma força oposta à criação porque, sendo ela mesma parte do m undo transitório, está destinada à decadência e mor­te e, caso não tenhamos cuidado, seremos arrastados junto com essa força. Por isso creio haver pelo menos um pouco de verdade na teoria que ficou conhecida por meio de Walter Wink3 — as forças internas ou ocultas, latentes em organizações, empresas’, sociedades, corpos legislativos e até igrejas, são o conjunto das

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energias espirituais que os seres humanos lhes conferiram ao abdicarem de sua responsabilidade e permitirem que a organi­zação, seja ela qual for, se aproprie de tal energia. Creio que há outros fatores, mas esse é um deles.

Vemos isso nos intrigantes textos de 1 Coríntios 8 e 10, quando Paulo discursa sobre os alimentos oferecidos a ído­los. Ele insiste, no capítulo 8, que os ídolos na verdade não existem, já que há um só Deus. Então, pode-se deduzir que tanto faz ir ou não ir a um templo pagão. Em sentido bem literal, não há nada lá. Dois capítulos adiante, Paulo diz que isso não é verdade. Os pagãos oferecem sacrifícios a demônios, e Paulo não quer que os cristãos participem de celebrações demoníacas. Poderíamos perguntar a Paulo: afinal, eles são de­mônios ou não são nada? E creio que o apóstolo responderia: Os dois.

Porém, em sentidos diferentes. Isso condiz com a explica­ção sobre o mal apresentada por muitos teólogos de destaque, como Tomás de Aquino. Para eles, o mal é a ausência ou pri­vação do bem, e mesmo assim não significa que é algo inde­finido, vago e que não devemos nos preocupar com ele. Se houver um grande buraco em um a estrada onde eu esperava que houvesse um terreno maciço, o fato de não “haver nada lá” , é um grande perigo se eu estiver andando, pedalando ou dirigindo. O fato de faltar o último degrau da escada quando tateio no escuro para ir ao porão não é algo indefinido nem vago. O ponto a ser enfatizado, tanto por Paulo quanto por Tomás de Aquino, é que a idolatria, e o pecado em todas as suas formas, provoca o surgimento de imensos buracos no ca­minho, faz as pessoas caírem das escadas no escuro, por causa do lugar em que deveria haver um degrau. Diante disso, o mal é o equivalente espiritual e moral dos buracos negros.

Sem dúvida isso é algo misterioso, mas é necessário esque- matizar tudo no pensamento, mesmo que apenas (invocando

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novamente a física) em sentido heisenbergiano. Heisenberg elaborou o princípio da incerteza: quando observo algo, o fato de eu o estar observando altera o que estou observando. Então, jamais posso ter certeza de que entendi tudo corretamente. Da mesma forma, existirá um fator de incerteza, um je ne sais quoi, em todas as nossas equações morais e espirituais; então, por mais que organizemos, oremos, adotemos umá teologia bem fundamentada e trabalhemos com afinco, sempre haverá forças negativas, ou talvez fosse melhor dizer uma força negativa, agin­do contra nós, e precisamos admitir isso.

A boa notícia, segundo o Novo Testamento, é que essa for­ça negativa, esses seres semipessoais sombrios, foi, ou foram, derrotados na cruz de Jesus Cristo. Isso é parte da exploração completa e da análise a que me referi no capítulo anterior. Com o disse, minha tendência é considerar o tema do Christus Victor, a vitória de Jesus Cristo sobre os poderes do mal e das trevas, como o centro da teologia da expiação, em torno do qual os outros significados da cruz encontram seu lugar espe­cífico.

Assim, a vitória de Cristo e a promessa da derrota final do mal formam o último elemento de preparação para o assunto principal deste capítulo. Diante de tudo isso, como imagina­mos ser o novo m undo de Deus, um m undo onde o mal já não existe? C om o podem os viver adequadamente no período compreendido entre a vitória de Cristo sobre o mal e o m undo futuro, onde essa vitória se tornará realidade? ✓

0 mundo sem o mal

O problema em imaginar o m undo futuro é que fomos in­fluenciados por percepções erradas. Com o já afirmei, não devemos imaginar o “céu” conforme a noção popular, mas sim o novo céu e nova terra de que falam Isaías e Apocalipse.

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A Bíblia não apresenta a imagem do m undo futuro com o um lugar repleto de espíritos sem corpo, ou de querubins assen­tados em nuvens, ou das “Ilhas Afortunadas” de Platão, onde os justos se reúnem para debater filosofia o dia todo. Tudo é muito mais sólido e real do que isso. Em Apocalipse 21 e 22, apesar de toda a linguagem simbólica e imaginativa, fica claro que a realidade para a qual os símbolos e imagens apontam é uma nova criação, um mundo real semelhante ao nosso, de espaço, tempo e matéria, mas muito mais glorioso, repleto de novas oportunidades, cura, crescimento e beleza.

Detendo-nos nesses dois últimos capítulos de Apocalipse, vemos que som os chamados a imaginar um a comunidade, uma m ultidão de pessoas form ando um a nova cidade, a nova Je­rusalém, a noiva do cordeiro. Todo tipo de sub-humanidade, de comportamento decadente e desumano foi excluído dessa comunidade (21.8; 22.15, 27; não precisamos nos preocupar agora em como isso se encaixa com a cena do julgamento apresentada no fim do capítulo 20). Essa comunidade é um lugar de beleza estonteante, como indicam as joias, o ouro e as proporções perfeitas dos edifícios. É um lugar de cura, tanto no presente (21.4) quanto, em um desdobram ento misterioso e promissor, no futuro (22.2, as folhas da árvore da vida, que cresce ao lado do rio que flui pela cidade, “servem para a cura das nações”). Imaginar um a comunidade de beleza e cura é dar um grande passo para ver, em nossa mente, o m undo que Deus pretende criar por m eio da morte e ressurreição de Je­sus. E para esse m undo que devemos direcionar nossas forças dadas pelo Espírito.

Ao observarmos as imagens paulinas sobre a mesma reali­dade final, o primeiro texto que encontramos é 1 Coríntios 15, em que a ênfase recai sobre um m undo futuro onde não haverá morte. A morte — a corrupção e a decadência da criação e dos seres humanos feitos à imagem de Deus — é a blasfêmia

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máxima, a maior intrusa, a arma principal de satanás, e ela será derrotada. Esse é o motivo da ressurreição, o principal tema do capítulo. A mera “vida após a morte” em um sentido espiritu­alizado não é o mais importante; por si só, ela acabaria coope­rando com a morte em vez de derrotá-la. N a cultura ocidental, quando pensamos em um mundo livre da morte, pensamos em um mundo não-físico. Porém, a verdade notável de que Paulo fala aqui diz respeito a um mundo físico, incorruptível e imortal. A nova criação é o que importa; outro tipo de mundo, com um novo tipo de física, em que não será preciso definhar e morrer, que não estará sujeita às estações e à aparente (para nós) seqüên­cia infinita de mortes e nascimentos dentro da ordem natural. Em comparação com o novo mundo de Deus, toda beleza e poder do m undo presente não passam de meros indicativos. Porém, são indicativos verdadeiros, não (como nos esquemas de Platão) por apontarem para abstrações, para realidades não-físi- cas, mas porque apontam para um mundo que será mais fisico, mais sólido, totalmente real; um mundo onde a realidade física adotará seu significado mais profundo; um mundo repleto do conhecimento da glória de Deus, como as águas cobrem o mar (Is 11.9; Hc 2.14).

A m aior imagem paulina sobre o m undo futuro está em Rom anos 8.19-25. Segundo Paulo, o m undo foi submetido à inutilidade (8.20), e nós sabemos disso. A árvore frutifica e depois seca e perde as folhas. O verão atinge o ápice e logo os dias começam a ficar mais curtos. As vidas humanas, cheias de promessas e beleza, risos e amor, são tolhidas pelas doen­ças e pela morte. A criação, como a conhecemos, testemunha o poder e a glória de Deus (Rm 1.19-20), mas também fala do presente estado de futilidade em que está presa. Porém, essa escravidão, como todas as outras na Bíblia, recebe seu êxodo, seu mom ento de libertação, quando Deus faz pelo cos­mos o que fez por Jesus na Páscoa. Essa visão é tão poderosa,

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tão estonteante, que muitos leitores devotos de Paulo ficaram atônitos e preferiram ignorá-la, passando a dar mais atenção às aplicações mais “pessoais” no parágrafo seguinte. N o en­tanto, é para isso que todo o argumento de Paulo apontava. E aqui que o grande tema, o da justiça de Deus — poderíamos dizer até da justificação de Deus, o tão polêmico “problema do mal” ! — chega a um clímax importante. N as leituras po­pulares das cartas de Paulo, o tema da justiça de Deus tem sido tantas vezes subposto ao tema da salvação hum ana que precisamos nos lembrar, para fins de uma exegese apropriada, que o tema apresentado em Rom anos 1.16ss alcança sua mais completa expressão não apenas em 3 .21- 4.25, não apenas em 5.1-11 ou 8.1-11, mas tam bém aqui, em 8.19-27. O problema é o mesmo, mutatis mutandis, que o que foi tratado no livro judaico do século 1, conhecido como 4 Esdras: a menos que a criação seja consertada, parecerá que Deus, o Criador, falhou, ou foi fraco e incapaz, ou foi realmente injusto. N ão, declara Paulo: a renovação da criação, o nascimento do novo m undo a partir da matriz do antigo, dem onstrará que Deus está certo. Rom anos 8 é a resposta mais profunda do Novo Testamento para o “problem a do m al", para a questão da justiça de Deus. E tudo acontece segundo o padrão do êxodo, da libertação dos escravos, da cruz e da ressurreição, da poderosa nova vida no Espírito.

O Novo Testamento nos convida a imaginar o novo m undo como uma com unidade bela, de cura; a visualizá-lo como um mundo vibrante com vida e energia, incorruptível, além do alcance da m orte e da decadência; a manter em nossa mente essa imagem de um m undo renascido, liberto do cativeiro da corrupção, livre para ser o que foi criado para ser. Esse é o polo no qual devemos ajustar nossa bússola para que possa­mos encontrar o caminho pelas trilhas intermediárias que es­tão diante de nós. A questão de como imaginar esse m undo é

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desafiadora, e voltarei a ela. Porém, antes, vejamos como seria se, com tal imagem diante de nós, começássemos a antecipar esse novo m undo. C om o Paulo insiste em Rom anos 8, toda nossa vida presente, em antecipação a futura, é uma questão de gemer no Espírito enquanto esperamos o dom final — in­clusive enquanto nos regozijamos porque a vitória já foi alcan­çada (Rm 5.1-5; 8.31-39).

As tarefas intermediárias

Sugiro cinco formas bem diferentes pelas quais podem os agir no sentido de colocar em prática, com base na vitória de Jesus Cristo em sua morte e ressurreição, o início, os sinais prévios do novo m undo que som os chamados a imaginar. N ão será possível aqui fazer mais do que simplesmente citá-las e indicar o tratamento que cada uma delas merece.

OraçãoN o texto que vimos antes sobre Romanos 8, Paulo indica

que a oração é uma antecipação central e fundamental da fu­tura ordem mundial redimida. Nesse mundo, a humanidade redimida assumirá seu lugar de direito, adorando o Criador e responsabilizando-se pelo cuidado com o mundo, comparti­lhando o governo soberano de Deus (Rm 5.17; Ap 5.10). À nova vida no Espírito, que os cristãos são chamados a viver na era pre­sente, não significa se assentar e desfrutar do consolo espiritual resultante de uma espiritualidade pessoal, relaxada e negligente. Antes, consiste em um esforço infindável no mistério da oração; o esforço para trazer ao mundo, agora, a ordem sábia e cura- dora de Deus, implementando a vitória da cruz e antecipando a redenção final. N a oração, somos convidados, convocados, a nos tornarmos mais humanos, a adorar o Deus em cuja ima­gem fomos feitos e, assim, interceder pelo mundo que ele ama.

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O início da ação -de Deus para com o mundo, depois da morte e ressurreição de seu filho, é a criação e a vocação, pelo Espírito, de um povo de diversas linhagens, que viverá conscientemente desajustado com a forma como o mundo presente é, e ajustado com a forma como Deus quer que ele seja (Rm 12.1-2: “não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente" — declaração que poderia ser o títu­lo deste capítulo), e que, levando a tensão sobre si mesmo e transformando-a em oração, se tornará agente do novo mundo, irrompendo o mundo presente com cura e esperança. Assim, a oração é a essência da missão do povo de Deus, de sua gloriosa, estranha, intrigante e honrosa vocação.

SantidadeO chamado cristão para um a vida de santidade radical

é, também, uma questão de escatologia inaugurada, ou seja, começar a viver no presente com base no princípio que será instituído no futuro. A ética cristã não consiste em uma lista de “permissões e proibições". Antes, trata-se de um chamado para viver no novo m undo de Deus, seguros de que a idolatria e o pecado foram derrotados na cruz e de que a nova criação começou na Páscoa — e de que o novo m undo, baseado nessa conquista, está garantido pelo poder do Espírito. Romanos 8.12-17 convida os cristãos a viverem como o povo do Êxodo, não sonhando em voltar à escravidão do Egito, mas se esfor­çando para eliminar tudo que é mortal, vivendo a vida reno­vada que o Espírito proporciona para aqueles que são condu­zidos por ele. U m a das afirmações mais claras sobre esse tema encontra-se em Colossenses 3.1-11: “já que vocês ressuscitaram com Cristo, procurem as coisas que são do alto, onde Cris­to está” — o que significa, em termos bem práticos, que tudo que desfigura a vida hum ana aqui e agora, em especial a ira, a amargura e a imoralidade sexual, precisa ser eliminado.

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Até aqui, não fomos muito além do que se espera de uma “aplicação” padrão da mensagem da cruz. Oração e santida­de, mesmo que brevemente apresentadas aqui sob um ângulo incomum (o da escatologia inaugurada), são temas bem co­nhecidos na vida cristã. Porém, e se formos ver de forma mais abrangente? Se a justiça de Deus é o tema principal de Rom a­nos, será possível usar esse tema na abordagem das questões de justiça do século 21? Com o essa mesma abordagem se aplicará às questões de nosso m undo mais amplo, onde o “problema do m al” se faz sentir de modo específico, onde nosso fracasso em analisar o mal da forma correta e de reagir a ele com uma sabedoria m adura deixou esse m undo ainda mais complicado do que era antes?

Política e impérioO lugar mais óbvio para se começar, tendo em vista o que

foi apresentado no Capítulo 3 sobre Marcos 10.35-45, é pela forma como os governos, autoridades e impérios procedem. Se cremos no que Jesus falou após a ressurreição, que toda auto­ridade no céu e na terra havia sido entregue a ele, então a visão cristã sobre as autoridades humanas é que elas estão, no má­ximo, em segundo lugar, jamais no primeiro. Elas deverão ser responsabilizadas diante de Jesus, que morreu e ressuscitou, e que agora chama o m undo todo para prestar contas.

Isso não significa dizer que as autoridades humanas são uma coisa ruim. N ão são. Deus criou um m undo belo e sua intenção sempre foi que os seres hum anos cuidassem do mun­do para ele. Isso não m udou com a rebeldia da raça humana. O que m udou, claro, foi a capacidade dos seres humanos de viverem de acordo com esse chamado. Deus pretende fazer com que as autoridades humanas levem sua justiça sábia e misericordiosa ao mundo, mantenham o mal sob controle. U m dos fatos mais assustadores da calamidade ocorrida em

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Nova Orleans em agosto de 2005 foi a ausência, durantes alguns dias, de toda lei e ordem. E o caos que novamente surge quando a força é a única lei e os fracos são o alvo fácil. Deus abom ina esse tipo de situação, em qualquer nível, e chama as autoridades humanas para impedirem que isso aconteça. Contudo, já que todos os seres humanos com partilham do m al que as autoridades deveriam manter sob controle, o que acontece constantemente é que as pessoas que deveriam exer­cer o poder encontram meios sutis, ou não tão sutis, de usar o poder para agir fora da lei, segundo seus próprios interesses.

N essa situação complexa, o cristão não pode concordar com a solução direitista pós-iluminista padrão, em que as autoridades fortes dom inam populações submissas, nem com a esquerdista, que vè a revolução e até um tipo de anarquia como ideal. O cris­tão (e, nesse aspecto, o judeu também; embora isso apresente uma complexidade m aior do que é possível tratar neste capítu­lo) tem a obrigação de honrar a autoridade governante, qual­quer que seja ela, e de trabalhar constantemente para lembrar a essa autoridade da tarefa que Deus lhe confiou e encorajá-la a desempenhar bem sua função. Essa tarefa principal é fazer justiça, exercitar o amor misericordioso e garantir que os fracos e vulneráveis recebam todo cuidado necessário. Assistência mé­dica (uma das maiores inovações introduzidas pelos primeiros cristãos foi cuidar dos enfermos, inclusive dos que não eram cristãos nem parentes de cristãos), educação, trabalho em favor dos pobres — esses são sinais de que Jesus é Senhor e de que os poderes do mundo são seus servos.

É claro que isso irá contra todos os interesses estabelecidos que no momento controlam o mundo, e que geralmente falam de “mal” e “bem ” com referência apenas àquilo que serve, ou talvez se oponha, aos objetivos finais. Isso vale tanto para os pa­íses cujos sistemas financeiros mantêm nações inteiras atreladas a dívidas impagáveis, quanto para os que perpetuam o sistema

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de castas, deixando dezenas de milhares de pessoas de castas inferiores na miséria e indigência. E devemos observar com cui­dado, como um chamado a reajustar nossas prioridades e nossa retórica ocidental ao nos dirigirmos ao resto do mundo, que os primeiros cristãos, à semelhança de seus primos judeus, não estavam muito preocupados com o meio usado pelos governan­tes e autoridades para chegar ao poder; preocupavam-se muito mais com o que eles faziam quando alcançavam essas posições. A ideia de que o governo resultante de qualquer tipo de eleição tenha carta branca e legitimidade para fazer o que bem enten­der durante os próximos anos é uma deturpação da sabedoria que os autores bíblicos buscam e enfatizam.

Códigos penaisEssa linguagem de “bem ” e “m al” tam bém é constante­

mente empregada pelos que organizam os sistemas de justiça penal. M uitas vezes se diz, ou se sugere, que determ inadas pessoas são “m ás” e, portanto, devem ficar presas. Em opo­sição a isso, um a antiga geração de pensadores liberais, alar­m ada com a ideia de que talvez exista m esm o o “m al” , que eles acreditavam ter sido banido pelo A to do Parlamento e pela construção de melhores redes de drenagem, esforçava-se para afirm ar que na verdade ninguém era “m au” ; era ape­nas mal orientado, e que essa m á orientação era culpa de toda a sociedade, de m odo que todos nós éramos igualmente culpados. O pêndulo político oscilou entre esses dois extre­mos — um lado procurando prender cada vez mais gente, sem perceber que criavam, assim, universidades do crime, e o outro lado tentando ignorar o problem a e fingir, com uma fina im parcialidade suburbana, que, no fim das contas, tudo estava indo m uito bem.

N o entanto, nenhum a dessas visões incorpora o manda­mento do evangelho. O que precisamos com urgência, e que,

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graças a Deus, já vem acontecendo em alguns lugares mais sábios do m undo ocidental (como a Nova Zelândia: sei que é um paradoxo descrever como parte do m undo ocidental uma região tão ao leste do mundo, mas tais paradoxos caracterizam esse país maravilhoso), é de um a justiça restauradora. Nessa vi­são, toda a comunidade se compromete a identificar o mal e lidar com ele, não trancafiando as pessoas e levando-as para longe dos olhares de condenação, mas reunindo o criminoso e a vítima, junto com suas famílias e amigos, para analisar sé­ria e abertamente o que aconteceu e concordar quanto a uma forma de prosseguir. E um m odelo penoso, mas saudável, cor­respondente ao que acontece em casamentos saudáveis e com pessoas saudáveis. H á nele a marca da cruz (olhar o mal de frente e sentir toda sua força) e a esperança de um m undo em que tudo é conhecido e tudo é posto no seu devido lugar.

D is p u ta s in te r n a c io n a isA mesma polarização de opiniões fica visível quando as re­

lações internacionais fracassam — algo que sempre acontece e, ao que parece, sempre acontecerá. M ais um a vez, trata-se de questões profundas e podem os apenas apresentar um resumo do que deveria ser abordado com muito mais vagar.

Por um lado, alguns afirmam que ter poder é ter direito. Assim, os que possuem poder militar e econômico adquiri­ram o direito de agir como bem entendem. Então, sob essa perspectiva, a casualidade do poder constitui uma vocação di­vina para ir a qualquer lugar do m undo, interferir em. outros países e forçar sua vontade onde e quando quiser. Por outro lado, existem muitos que, diante do mal radical no mundo, se afastam e afirmam que se trata apenas de uma dificuldade localizada, que deve ser resolvida no próprio local: em outras palavras, por m eio de conciliação política. Cada lado acusa o outro pelos excessos óbvios a que cada política conduz.

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Precisamos urgentemente estender, até a esfera internacional, o conceito de autoridade legítima apresentado em Romanos 13, lembrando o que foi dito antes, que toda autoridade vem de Deus e está sob a soberania universal de Jesus Cristo. A Organi­zação das Nações Unidas e a Corte Criminal Internacional são as únicas corporações internacionais que se aproximam disso. A imensa resistência sofrida pelas duas organizações nos últimos anos, seja ideologicamente ou na prática, e o desrespeito osten­sivo a tratados internacionais como a Convenção de Genebra, são sinais preocupantes de que nunca precisamos tanto de boas estruturas internacionais. O mal existe e devemos identificá-lo e derrotá-lo, não ignorando-o, nem tentando explodi-lo com ar­tilharia pesada ou outras armas (mesmo com todas as bombas inteligentes que existem hoje, quando um bombardeio começa, centenas de milhares de civis acabam mortos), mas tratando-o com a mensagem e os métodos da cruz.

Educando a imaginação

Para nos aproximarmos desses objetivos, precisamos, como tenho dito o tempo todo, aprender a imaginar o m undo sem o mal e depois pensar nas providências a tomar para alcançar esse alvo, reconhecendo que jam ais o atingiremos plenamente nesta era, mas que nem por isso devemos simplesmente acei­tar a situação presente no m undo. Mais uma vez, o texto de Rom anos 12.1-2 vem à mente.

N o entanto, a imaginação cristã — retraída e minimizada pelo longo inverno do secularismo — precisa ser acordada, reavivada e posta na direção certa. C ada elemento é importan­te. Os cristãos precisam notar a permissão, de Deus e uns dos outros, para exercitar a imaginação e pensar no novo m un­do de Deus, em novas formas de culto e adoração que sejam modelo e incorporem aspectos do novo mundo. Precisamos

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fortalecer, alimentar e cuidar dessa imaginação, para que ela seja viva, inovadora e não fique vagando em torno de algumas ideias que surgiram há muito tempo atrás. A imaginação cris­tã precisa ser disciplinada, focada e direcionada, assim como a própria consciência, para que não se desembeste por todas as direções. Isso não será feito com o intuito de supor que qualquer antigo m undo imaginário será tão bom quanto os outros. A ficção brilhante e explicitamente anticristã de Philip Pullman revela que nem todas as ideias e obras inovadoras e criativas servem à causa do reino de Deus.

C om o a imaginação cristã pode ser reeducada para termos consciência de que vivemos entre a vitória alcançada por Jesus e a renovação final de todas as coisas? Nesse ponto, preciso falar sobre arte. U m dos aspectos da imagem de Deus em nós é que somos criadores, ou, pelo menos, procriadores. A fantásti­ca capacidade de gerar nova vida, cuja representação máxima é o nascimento de filhos, apesar de existirem milhões de outras formas de gerar vida, coloca-se no centro da ordem dada à raça hum ana em Gênesis 1 e 2. Entender e celebrar um mundo belo por meio da produção de coisas belas é parte do chamado para cuidar da criação, da mesma forma que Adão fez ao dar nome aos animais. A arte verdadeira é, então, uma resposta à beleza da criação, que aponta para a beleza de Deus.

Porém, não vivemos no jardim do Éden. A arte que tenta transm itir essa ideia logo se torna sem graça e trivial. V i­vemos no m undo decaído, e toda tentativa de adotar um tipo de pateísm o, adorando a criação com o se ela fosse di­vina, sempre se depara com o problem a do mal. Nesse pon­to, a arte, assim com o a filosofia e a política, costum a se inclinar para o outro lado, e determ inadam ente responde à feiura com mais feiura. Vemos muito disso na arte britânica atual: um tipo de brutalidade que, sob o disfarce de realis­m o, expressa apenas futilidade e tédio. Certam ente há uma

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oportunidade maravilhosa para os cristãos com uma visão integral de mundo, e com o anseio de amar a Deus de coração, mente e alma, encontrarem a direção a seguir, talvez liderarem o caminho, traspassando esse impasse estéril. Mais um a vez, temos a ajuda de Paulo.

Em Rom anos 8 ele afirma que toda a criação geme em tra­balho de parto, ansiando pela redenção. A criação é boa, mas ela não é Deus. É bela, mas, no presente, a beleza é passageira. Sofre, mas esse sofrimento vai até o coração de Deus e se torna a dor de um novo nascimento. A beleza da criação, que a arte representa e tenta expressar, imitar e enfatizar, vai além da be­leza que ela possui; inclui o que lhe foi prometido, assim como a beleza da aliança de noivado aponta para a beleza do que ela simboliza, e o cálice é belo porque sabemos o que ele significa quando cheio. Se os artistas cristãos captarem essa verdade, haverá muito espaço para celebrar a beleza, para amar a Deus de coração, sem cair no panteísmo ou no realismo árido e negativo. Em sua melhor expressão, a arte não apenas atrai a atenção para a realidade, mas para como tudo deveria ser, e, pela graça de Deus, será um dia, quando a terra se encher do conhecimento de Deus assim com o as águas cobrem o mar. E quando os artistas cristãos assumirem essa tarefa, contribuirão para a integração de coração, mente e alma que buscamos, para a qual fomos chamados. Indicarão o novo m undo que Deus pretende fazer, já visto na ressurreição de Jesus; o mundo cujo alvará de libertação foi conquistado quando ele morreu na cruz. E por esses meios que podem os aprender de novo a imaginar o m undo sem o mal, e a trabalhar para que ele se torne, na m edida do possível, um a realidade mesmo em meio a presente era maligna.

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Este capítulo tratou, de forma sucinta, de vários assuntos. C ada um poderia ser estudado mais a fundo. Porém, espero ter pelo menos oferecido um a ideia da imensa e empolgante tarefa que se coloca diante de nós: somos chamados não ape­nas a entender o problema do mal e a justiça de Deus, mas também a ser parte da solução. Som os chamados para viver tendo a cruz e a ressurreição de um lado e o novo m undo de outro. Crendo na conquista do primeiro e aprendendo a imaginar o segundo, som os chamados a reunir am bos em ora­ção, santidade e ação no m undo como um todo. N o próximo capítulo, veremos com m ais atenção como isso se relaciona a aprender a conviver com o mal dentro de nós e dentro dos que nos cercam, e exploraremos o tema do perdão, que anela estar no centro do evangelho cristão. Porém, agora, pensemos em como incentivar uns aos outros a trabalhar pelo novo m undo que nos foi prometido, onde a terra se encherá do conheci­m ento e da glória de Deus, assim como as águas cobrem o mar. E encorajemos, especialmente, aqueles que possuem ta­lentos concedidos por Deus para nos mostrar esse mundo, inspirar nossa imaginação, para acreditarmos com mais facili­dade e alegria na obra que Deus quer que façamos.

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«■< CAPITULO C INCO >•=

L i v r a - n o s d o m a l :Perdoando a mim mesmo,

perdoando os outros

Quando apresentei o problema do mal no capítulo 1, afirmei que ele é mais profundo e mais sério do que costumamos

acreditar, tanto em nossa cultura quanto em nossa teologia. N o capítulo 2, mostrei uma forma de ver o Antigo Testamento na qual a história de Israel é apresentada com o sendo a solu­ção, ou pelo menos a chave para a solução do problema do mal, mas que, no final, acaba por ser uma história cuja con­clusão ainda procuramos. Em seguida, no capítulo 3, propus uma leitura dos Evangelhos, em especial do relato da morte de Jesus, que coloca o que costumamos chamar de “teologia da expiação” em um panorama mais amplo, ou seja, como o confronto final entre o plano de Deus para resgatar o m un­do do m al e as próprias forças do mal — tanto os governos malignos de César, Herodes e dos saduceus, quanto os pode­res sombrios e acusadores que estavam por trás deles. Depois, no capítulo 4, apresentei uma forma de olhar para o futuro e

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im aginar o m undo sem mal, e assim ver com o conceber a tarefa cristã no presente não em termos de um a espera passiva pelo futuro, mas de um a antecipação desse m undo futuro por meio da oração, santidade e justiça no presente. Isso nos leva, neste últim o capítulo, à questão central de tudo isso. “Livra-nos do m al” — é o que pedim os, vezes sem conta, na oração do Pai-Nosso. Porém, com o isso acontecerá, não ape­nas a cada um individualm ente (o que incom oda na verdade é que o “problem a do m al” é meu e seu, e não apenas um elemento cósm ico abstrato), m as a todo o m undo criado por

. Deus?Para chegarmos ao âmago da questão, escolhi refletir sobre

a natureza do perdão. Três livros em especial me ajudaram a pensar nesse assunto, e os recomendo a todos que desejam es- tudá-lo mais profundamente. O primeiro é uma das melhores obras de teologia cristã escritas na década passada: Exclusion and Embrace (Exclusão e aceitação), de Miroslav Volf, que con­quistou o prestigiado prêmio Grawemeyer em 2002.9Volf, que hoje dá aulas na Escola de Divindade de Yale, defrontou-se, há alguns anos, com um a questão: como ele, um croata batista, poderia amar seu vizinho sérvio ortodoxo, depois das coisas terríveis que os sérvios haviam feito em seu país? Descobriu, com a ajuda de Jürgen M oltm ann, que, caso não conseguisse responder a essa pergunta, a autenticidade de toda a sua teo­logia seria questionada. Quem nunca precisou enfrentar de perto esse tipo de dilema deve ficar surpreso com a perspicaz mente cristã de V olf lutando com um problema tão emotivo e pessoalmente envolvente, e encarando, no processo, algumas das maiores questões teológicas, culturais e filosóficas de nos­so tempo.

O argumento básico de Volf é: seja nas relações internacio­nais ou pessoais, o mal deve ser identificado e confrontado. Não se pode esquivar-se ou fingir (seja para facilitar a vida ou para

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resolver a situação de forma mais rápida) que o que aconteceu não foi tão ruim assim. Só depois disso, quando o mal e o agen­te do mal são identificados pelo que são e pelo que fazem — é isso que Yolf chama de “exclusão” — pode-se dar o segundo pas­so, rumo à “aceitação” daquele que me (ou nos) magoou e feriu profundamente. Claro que, mesmo assim, pode ser que a aceita­ção não aconteça, caso o agente do mal se recuse a ver seus atos sob essa ótica. Porém, se eu nomeei o mal e me esforcei ao má­xim o para oferecer perdão e reconciliação genuínos, estou livre para amar a pessoa mesmo que ela não queira corresponder.

Esse pequeno resumo não faz jus à grande obra de Volf, que é uma referência intelectual e um desafio profundo, nos níveis pessoal e corporativo. O segundo livro, escrito pelo deão da Escola Duke de D ivindade, L. Gregory Jones, é Embodying Forgiveness (Incorporando o perdão).10 Jones ex­plora os detalhes pastorais e pessoais da verdadeira natureza do perdão e com o os cristãos devem praticá-lo. D iante da im portância que essa mensagem tem no N ovo Testam ento e nos ensinam entos de Jesus, é surpreendente notar que a Igreja parece ensinar tão pouco sobre esse assunto. O livro de Jones contém uma rica sabedoria pastoral e teológica que poderia servir de ensinam ento para cada indivíduo e para cada com unidade cristã.

O terceiro livro é m uito mais prático e até político, em­bora haja nele um forte em basamento teológico. Refiro-me à empolgante obra de Desm ond Tutu No Future Without Forgiveness (N ão há futuro sem perdão).11 O m undo sabe— embora às vezes finja desconhecer — o que Tutu tem fei­to na África do Su l por meio da Com issão da Verdade e da Reconciliação. N ão hesito em declarar que o simples fato de essa Com issão existir e, além disso, fazer o que tem fei­to, é o mais extraordinário sinal do poder do evangelho cris­tão que já presenciei em todo o m undo. Basta pensar um

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pouco em como era inimaginável que isso acontecesse há 25 anos, ou como ainda é inimaginável que algo do tipo acon­teça em Beirute, em Belfast ou em Jerusalém, para ver que algo verdadeiramente notável tem acontecido e devemos dar graças a Deus, em temor e tremor. Apesar de a maioria dos jornalistas ocidentais não terem dado m uita atenção a isso, o fato de as forças de segurança de brancos e as guerrilhas de negros confessarem em público seus crimes violentos e hor­ripilantes é, por si só, um fenômeno impressionante. Com o conseqüência das confissões, as famílias de torturados e mor­tos puderam, pela primeira vez, iniciar o verdadeiro processo de luto e, com isso, pelo menos contemplar a possibilidade de um dia conseguirem perdoar e prosseguir com a vida em vez de ficarem prostradas sob o peso contínuo da ira e do ódio. O projeto inteiro aponta para uma forma de humanidade diferente das versões subcristãs oferecidas na m aior parte do m undo ocidental. Ele funciona como uma indicação para a resposta ao problema do mal, ou pelo menos como uma “res­posta” disponível a nós na era presente.

Pense um pouco na dinâm ica interna do perdão. Talvez por conhecerem um pouco de psicologia pastoral, muitos lei­tores devem estar familiarizados com isso; no entanto, poucos o relacionaram ao problem a generalizado do mal. O fato é que, quando perdoam os, liberamos não apenas a pessoa do fardo de nossa ira e suas possíveis conseqüências, mas tam­bém a nós mesmos do fardo do que quer que tenham feito con­tra nós e do estado em ocional debilitado em que viveremos se nos apegarmos à ira e amargura e não perdoarmos. O perdão— de Deus para conosco, entre duas pessoas e até de nós mes­m os — é parte central da libertação do mal. Desejo explorar primeiro, neste capítulo, o perdão com relação ao problema mais amplo do mal, ou seja, com relação a Deus e ao m undo e à solução final de todas as coisas; depois, explorar o que

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significaria para nós antecipar essa resolução final em nossa vida pessoal e comunitária.

A vitória final de Deus sobre o mal

Começarei tratando da vitória completa de Deus sobre o mal. Descartei, nos capítulos anteriores, qualquer possibilidade de solução do problema do mal em termos de progresso gradativo ou evolução. M esmo que o mundo melhorasse gradualmente até chegar a ser um a Utopia — embora, em qualquer caso, devês­semos ser propriamente céticos diante dessa possibilidade — isso não resolveria o problema de todo o mal que aconteceu no pas­sado. Também descartei, para decepção (temo) de alguns, qual­quer pretensão de encontrar um a resposta imediata para os que desejam saber de onde surgiu o mal e por que ele está dentro da criação de Deus. Porém, podemos e devemos levantar uma questão. Quando Deus, no futuro, fizer o novo céu e nova terra prometidos em Apocalipse 21, quando ele libertar a criação do cativeiro da decadência para compartilhar a glória dos filhos de Deus, como prometido em Romanos 8, quando ele for “tudo em todos” , tiver derrotado todos os inimigos, incluindo a pró­pria morte, como anunciado em 1 Coríntios 15 — quando tudo isso acontecer, como será possível não existir o mal, nem qual­quer ira ou ressentimento residuais, nenhum fardo de culpa a carregar como conseqüência de um mal que vem acontecendo há milênios?

A resposta está em três lugares. U m deles já vimos dois ca­pítulos atrás e os outros dois serão nosso assunto neste capítu­lo. Em primeiro lugar, a própria morte de Jesus é apresentada no Novo Testamento, até de form a multifacetada, como meio de confrontar o mal e lidar com ele. O mal já foi derrotado e destituído, apesar de parecer — com o os primeiros cristãos bem sabiam — prosseguir em uma manifestação contínua

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mesmo após essa imensa derrota. N o entanto, em segundo lugar, e também com base na morte de Jesus, Deus perdoará e, com esse perdão, não apenas libertará o m undo do peso da culpa, mas também, digamos, libertará a si mesmo da carga de ter de estar sempre irado com um m undo que saiu dos trilhos. Em terceiro lugar, na concretização plena da vitória da cruz, Deus conquistará a vitória final sobre as forças do mal, do caos e da morte, demonstrando que elas são intrusas em seu mundo, e destronando todo poder que elas atribuíram a si mesmas. Assim, como diz o título da obra de Desm ond Tutu No Future Without Forgiveness (Não há futuro sem perdão), isso não vale apenas para as com unidades que procuram superar o estado de hostilidade e recriminação mútuas; vale também para um nível cósmico, com relação ao próprio Deus. Sendo assim, torna-se maior a urgência de aprendermos a viver dessa forma enquanto buscamos, no presente, antecipar o futuro prometido por Deus.

Apenas o perdão pode dar sentido ao futuro assombroso apresentado em textos como os que já mencionei (Apocalipse, Romanos, 1 Coríntios) e mencionado nos ousados e conhe­cidos versos de Julian de Norwich e, ressoando suas palavras, T. S. Eliot: “Tudo acabará bem, e todas as coisas acabarão bem”. Fora do contexto, essa declaração de esperança pode -se tornar parte do problema, e não um vislumbre da solução; colocada em meio a um otimismo liberal ou progressista, é uma forma de dar de ombros e dizer: “Bem, se tudo vai acabar dando certo, não precisamos nos preocupar”. Claro que nem para Julian de Norwich, nem para Eliot as coisas seriam assim. Julian era extre­mamente sensata e realista quanto ao mundo atual, suas dores e enigmas. Já Eliot só chegou à The Little Gidding e seu maravi­lhoso refrão no fim dos Quatro Quartetos, repletos de dúvida e morte, e já no fim de uma carreira cujos destaques foram uma Quarta-feira de Cinzas e uma Terra Devastada.

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Podemos vislumbrar na longa carreira de Eliot alguns traços de Exclusion and Embrace (Exclusão e aceitação), de Miroslav Volf. A o que parece, Eliot precisou primeiro renunciar ao mal que via por toda parte para então descobrir com o falar, não de otim ism o, mas de esperança. Porém, nós que crescemos nas décadas de 60, 70 e 80 aprendemos rapidamente como partir para a “aceitação” , sem se importar com a “exclusão” . Isso não é possível. O livro de Volf marca a exclusão final da antiga, presunçosa e negligente teologia liberal, que achava que podia declarar que “tudo ficará bem ”, sem antes passar pela morte de fogo e água que Eliot descreve em seu poema. A questão teológica que fundam enta esse dilema pode ser apresentada com simplicidade: como pode ser possível, e ainda por cima certo, que Deus estabeleça um a situação em que tudo esteja bem, em que todas as coisas estejam bem, diante de tudo o que já aconteceu e continua a acontecer?

Esse foi o problema enfrentado pelo autor do livro de Apocalipse, na majestosa cena da sala do trono nos capítulos 4 e 5. O s quatro seres viventes cantam “santo, santo, santo” e os anciãos depositam a coroa diante do trono. Porém, aquele que está sentado no trono tem nas mãos um rolo escrito por dentro e por fora, selado com sete selos, e não há ninguém digno de abrir o rolo e romper os selos. O caminho para che­gar ao propósito revelado de Deus de consertar o m undo, de completar o projeto da criação, parece estar bloqueado, já que ele criou o m undo para ser administrado por seres humanos, mas nenhuma pessoa é capaz de levar esse plano adiante. A po­calipse declara o seguinte sobre o problem a do mal: Deus tem um plano para o m undo; porém, se ele mesmo não refizer a criação, cujo propósito era que fosse dirigida pelas criaturas criadas à imagem dele, ou seja, a raça humana, o plano não se cumprirá por completo. E essa é a declaração de Apocalipse sobre a solução do problema: o Cordeiro venceu, derrotou os

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poderes do mal e agora (Ap 5.9-10) resgatou pessoas de todas as nações para fazer delas sacerdócio real, servindo a Deus e reinando sobre a terra.

Esse tema, tão freqüente no Novo Testamento e tão ignorado na teologia cristã, faz parte da solução do proble­ma. N ão significa que a cruz conquistou a vitória e agora não há mais nada a fazer. Antes, essa vitória resulta na existência de seres humanos agora redimidos se preparando para atuar com o agentes sábios e mordom os de Deus, adorando cons­tantemente o Criador e, como resultado, se capacitando para refletir sua imagem na criação, trazendo ao m undo sua ordem sábia e curadora e colocando-o no caminho certo sob o gover­no justo e bondoso de Deus. A eclesiologia verdadeiramente bíblica deveria enfocar não tanto o fato de a Igreja ser um a comunidade de salvos, mas sim a comunidade dos que, re­dim idos pela cruz, são agora reino e sacerdotes que servem a Deus e reinam sobre a terra. O medo do triunfalismo e a simplificação de nosso destino final, que se resume apenas em “ir para o céu” , nos desviaram desse tema central da Bíblia. Só quando colocarmos tudo na perspectiva correta veremos como o Novo Testamento oferece a solução completa para o problema do mal.

Deus, então, consertará o m undo e fará isso de forma co­erente com o projeto e o plano iniciais para a criação. Então, agora, fica evidente que a ação de Deus em Jesus, de dar reden­ção a um povo e dar a esse povo autoridade sobre o mundo, deixa Deus, por assim dizer, livre de acusações. Depois de ter sido derrotado por Deus na cruz, o mal foi posto em um lugar de onde jamais poderá ameaçar Deus novamente. Deparei-me com esse tema pela primeira vez no magnífico livro The Great Divorce (O grande divórcio), de C . S. Lewis. Ele atribui ao he­rói, George M acDonald, um a fala em que explica não ser pos­sível que alguém ameace o novo m undo de Deus ao rejeitar

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completamente o amor e a misericórdia dele. N ossa cultura avançou ainda mais na ignorância m oral desde a época em que Lewis viveu, e o único patam ar m oral que reconhecemos hoje é o que é ocupado pela vítima, ou por alguém que alega ser vítima; de modo que, instintivamente, sentimos pena de alguém que foi menosprezado, de alguém que ainda não se convenceu de que há solução para os problemas, de alguém que ainda não conseguiu abandonar o orgulho e aceitar o per­dão oferecido de graça pelo evangelho. Surgem eloqüentes de­clarações de universalismo fundam entadas nisso: “N ão é cer­to que os redimidos aproveitem a vida no céu enquanto uma única alma estiver no inferno”. C om esse apelo à compaixão pelos excluídos colocamos a pessoa em uma posição de poder excepcional, capaz de exercer perpetuam ente o veto sobre o triunfo da graça.

A expressão para isso é “estraga-prazeres” : alguém não está aproveitando a festa, mas está decidido a im pedir que todos os outros aproveitem. O aparente direito que todo tipo de mal tem, seja no passado ou no presente, de permanecer na memória conjunta e declarar a im possibilidade de o novo m undo de D eus ser bom porque esse déficit, esse imenso débito moral, ainda não foi pago — esse aparente direito foi derrotado, de um lado pela cruz, que venceu os poderes do m al, e de outro pela criação de um novo m undo, que, sob a adm inistração dos redim idos, trará cura em vez de destruição para o m undo antigo. A oferta de perdão feita por Deus, resultante da derrota do m al na cruz, significa que o próprio D eus, o sábio C riador foi, enfim , absolvido. (Este, inclusive, é o motivo de a teologia cristã genuína ser um a atividade redentora; o esforço para entender e articular a form a com o o C riador está gloriosam ente certo em ter criado o m undo e o redim ido, exatam ente com o o fez, é parte da vocação administrativa da existência hum ana genuína, que traz a

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ordem de D eus à mente e ao coração dos outros e, com isso, capacita as pessoas a adorarem o verdadeiro Deus e servirem a seus propósitos perm anentes.)

Então, assim como não estamos mais condicionados ao mal praticado contra nós quando oferecemos o perdão, mes­mo que a pessoa recuse o perdão e continue em inimizade, Deus também não está mais condicionado ao mal pratica­do pelas criaturas pecadoras, mesmo que elas recusem o perdão. Caso contrário, o irm ão mal-humorado e resmungão do Filho Pródigo ocuparia para sempre o mais elevado patamar de mo­ral implícita. Com o já falei, isso não explica a origem do mal. Porém, acredito que ajuda a entender como será quando Deus estabelecer o novo m undo prometido, em que não existirá mais sombra do mal do passado obscurecendo a paisagem.

Então, você pode até dizer que aceita que Deus perdoará os pecados do passado. N o entanto, o mal foi cometido contra os judeus no Holocausto, contra o hom em assassinado e sua família, contra a vítima de estupro, contra a família dizimada por um motorista bêbado, contra os parentes dos que morre­ram em ataques terroristas. Q ue direito Deus tem de afirmar que o mal pode ser removido, de m odo que pareça não existir mais? N ão é apenas mais uma forma de subestimar o mal, fin­gindo que ele não é tão importante como dizem? E que direito Deus tem de perdoar o ofensor, quando a pessoa que sofreu foi o João, e não Deus?

E aqui que tenho mais uma proposta a fazer, que deve ser entendida à luz do preciso significado do perdão que venho de­fendendo em todo este capítulo. Assim como no mundo novo de Deus todas as pessoas terão passado pela morte, doença, de­cadência etc., e na nova ressurreição o corpo não será passível dessas coisas, o ser moral, pensante, cognitivo e afetivo também será renovado. E, nessa renovação, será capacitado a, por fim, perdoar plenamente todo mal que sofreu, de modo que não

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será mais afetado nem contaminado por ele. Claro que isso requer um grande esforço imaginativo para a maioria das pesso­as, mesmo as que vivem relativamente em segurança. Talvez seja impossível sonhar ao imaginarmos o intenso sofrimento moral, físico e emocional das pessoas em todo o mundo no século passa­do. Ainda assim, essa é exatamente a concretização da promessa da ressurreição — que, evidentemente, parece inacreditável para os que se limitam a estudar o m undo de decadência e morte, e se esquecem do Senhor da vida, que habitou entre nós, morreu e ressuscitou. A decadência e a morte física não terão poder sobre nosso corpo ressuscitado. D a mesma forma, as ameaças de decadência e dissolução moral que a presença persistente do mal representa — o ressentimento que corrói, o sentimento in­cômodo do ciúme ou da ira, os equivalentes morais e espirituais da decadência e morte física — não terão poder sobre nossa vida moral e emocional no mundo vindouro. Som os chamados a ser o povo do perdão no presente porque essa será a vida que viveremos no futuro. Falarei mais sobre isso adiante. A questão (que é o ponto central do livro, a resposta máxima a pelo me­nos esse aspecto do problema do mal) é que, no novo mundo, Deus estará livre das acusações morais do mal não-resolvido, e nós também estaremos. Paulo escreveu em Romanos 6.14: “O pecado nos os dominará” . Isso funciona como promessa não apenas sobre a vida moral presente, mas também sobre a felici­dade completa no futuro. É assim que seremos libertos do mal, é assim que a oração do Pai-Nosso será finalmente respondida.

O Salmo 73, um dos mais poderosos e comoventes, traduz um pouco essa visão. O salmista começa reclamando dos per­versos, que sempre fazem o mal e não são castigados. Sente inveja deles (v. 3); eles escarnecem de Deus e continuam tran­qüilos (v. 10-12); fazem os justos pensarem que nada adianta servir a Deus (v. 13-14). Então, o salmista vai ao santuário de Deus, lugar onde céu e terra se encontram, e vê outra história.

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N o final, os perversos não escaparão, pois estão em terreno instávele acabam arruinados deum ahorapara outra (v. 18-19); se­rão como o sonho dos que j á acordaram (v. 20). Tomar-se-ão como lembranças que perderam o poder de amedrontar, amargurar, enciumar ou irritar. A ssim será, como diz o salmista nos versí­culos 21 e 22, quando olharmos para trás, no futuro, e virmos o presente de hoje: nesta vida, ainda somos vítimas da amar­gura e da raiva, da inveja e da malícia, e, mesmo que, como cristãos, lutemos uma batalha contínua, sabemos que ainda estamos suscetíveis a tudo isso. Contudo, da perspectiva do lugar onde céu e terra se encontram e o futuro é revelado, ou seja, o Templo de Deus, vemos outra realidade:

Contudo, sempre estou contigo;Tomas a minha mãe direita e me susténs.Tu me diriges com o teu conselho,E depois me receberás com honras.A quem tenho nos céus senão a ti?E na terra, nada mais desejo além de estar junto a ti.O meu corpo e o meu coração poderão fraquejar,Mas Deus é a força do meu coração e a minha herança para sempre.Salmo 73.23-26

Sem dúvida, há muito mais a dizer do que isso, mas o que apresentei é, pelo menos, um começo. A imagem bíblica do novo m undo de Deus, sem pecado, injustiça, morte e tudo que é semelhante a isso, não é como os sonhos utópicos dos que acreditam que o mero progresso do m undo fará dele, aos poucos, um lugar melhor e que o futuro dourado será constru­ído sobre os ossos dos que sofreram no passado. Isso é uma pa­ródia grosseira do que a Bíblia apresenta. O Novo Testamento promete um m undo em que o perdão será oferecido por Deus e também por seu povo. Parte da alegria dos redimidos é que, ao conseguirem, por fim, perdoar completamente tudo que foi

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feito contra eles, contra suas vidas e contra sua felicidade, não haverá mais sombras do passado trazendo sofrimento e injus­tiça. Essa ilustração faz um paralelo com outra muito conheci­da, usada por Jesus no discurso de despedida, referindo-se ao contraste entre o presente e o futuro:

A mulher que está dando à luz sente dores, porque chegou a sua hora; mas, quando o bebê nasce, ela esquece a angústia, por causa da alegria de ter vindo ao mundo. Assim acontece com vocês: agora é hora de tristeza para vocês, mas eu os ve­rei outra vez, e vocês se alegrarão, e ninguém lhes tirará essa alegria.João 16.21-22

E parte dessa alegria é que, além do fim de toda dor física, acabará tam bém o sofrimento m ental causado pela ira e amar­gura não-resolvidas, já que recebemos, enfim, a capacidade para perdoar completamente, assim como fomos perdoados.

Sei muito bem que tudo isso pode me deixar vulnerável a acusações que ateus, agnósticos e até cristãos costumam fazer, de que afirmei que o m undo presente não tem importância, porque tudo ficará bem no futuro. Refutei tais acusações em vários lugares, e demonstrei que a promessa do novo m undo de Deus e da ressurreição do corpo é exatamente a reafirmação da bondade do m undo presente, e não algo para ser desconsi­derado. O fato de ter havido a ressurreição não significa uma falta de cuidado com o m undo presente, mas um a determina­ção de que a vida no m undo futuro deve começar a permear o presente o máximo possível. M inha proposta aqui, na verdade, funciona da m esma forma: em vez de dizer que tudo vai bem e provocar uma diminuição da devida preocupação com todas as formas do mal no presente, a visão do futuro de Deus deve nos levar a redobrar o esforço para descobrir o significado do perdão e a derrotar o mal envolvido na questão, também aqui no presente. Isso nos conduz à segunda metade do capítulo.

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Perdão hoje

Até aqui aleguei, sem dúvida de forma resumida, que a resposta final ao problema do mal será encontrada no novo mundo, novos céus e nova terra criados por Deus e governados por seres hum anos redimidos e renovados, que trazem até este m undo a ordem sábia e curadora de Deus. Afirmei que a presença contínua e o poder do mal no presente não podem ameaçar o novo m undo nem vetar sua criação, porque o poder do perdão, organicamente ligado ao poder da ressurreição de Jesus, é o que capacita Deus e seu povo a evitar o vínculo com o mal de outras pessoas.

Para isso acontecer não é necessário que todos os seres humanos se arrependam e compartilhem da alegria do novo m undo de Deus, por mais maravilhoso que isso seja. N a verda­de, o Novo Testamento nos avisa que as escolhas que fazemos nesta vida, principalmente as relacionadas ao tipo de pessoa que nos tornamos, são reais e têm conseqüências duradouras, que serão respeitadas por Deus. Porém, não temos a escolha de fazer nossa raiva impedir que Deus continue avançando sem nós. Temos o direito de agir como o irmão mais velho e não participar da festa; Deus tem o direito de argumentar conosco; porém, o novilho cevado será servido — quer partici­pemos, quer não. Os que aceitam o convite de Deus para par­ticipar de sua festa, de acordo com suas condições, celebrarão, verdadeiramente, a libertação do cativeiro imposto pelo mal.

Quero, agora, m ostrar que parte da tarefa cristã no presente consiste em antecipar essa escatologia, fazer uso do futuro de Deus para m udar as situações no presente, desfrutar o sabor da libertação com pleta do mal, aprendendo com o suavizar as amarras do mal no presente. Jesus nos ensinou a Orar, e um a das frases mais extraordinárias na oração dele é: “Perdoa as nossas dívidas, assim com o perdoam os aos nossos devedores” .

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Em um a parábola aterradora, ele avisou que só seremos perdoados se perdoarm os. Em M ateus 18, um servo recebe o perdão de uma dívida imensa, mas depois se recusa a perdo­ar a dívida ínfim a de um colega. O perdão dele é revogado. C laro que isso parece duro, e voltarei ao tema. Porém, pri­meiro, algumas palavras para refutar m ais algumas acusações com uns contra a proposta do perdão. M ais um a vez, alinho m inhas ideias com a obra Exclusion and Embrace (Exclusão e aceitação), de Miroslav Volf.

O assunto surge diante de nós quando pensamos no signifi­cado de “perdão” em três contextos atuais. M uitos vêm lutando, há anos, em favor do perdão da imensa dívida impagável dos países mais pobres do mundo. U m a das respostas que mais ou­vimos de políticos, banqueiros e outros é que não se pode sim­plesmente perdoar uma dívida. O m undo que eles conhecem acabaria. As pessoas precisam aprender que têm de pagar todos os empréstimos que fazem. Bem, isso é verdade e ao mesmo tempo não é. Em termos de humanismo secular, e até de puro interesse próprio, o perdão das dívidas costuma fazer sentido, já que os devedores ficam livres e podem se dedicar a um relacio­namento de cooperação com o resto do mundo. N a opinião dos banqueiros, o perdão diminui a seriedade da dívida.

A mesma reação surge na Irlanda do Norte ou no Oriente Médio, quando alguém, lhes diz que o caminho para eles, como comunidade, é perdoar. Qualquer proposta nesse sentido pro­voca gritos de protesto. N um caso que ficou famoso, um homem da Irlanda do Norte declarou que perdoava os que lançaram a bom ba que matou sua filha. Muitos, inclusive cristãos, disseram que ele estava fora de si. N o Oriente Médio, os dois protagonis­tas principais praticam religiões em que o perdão nunca foi con­siderado um a obrigação, nem mesmo uma virtude, e sim um tipo de fraqueza moral — e com isso não me refiro apenas à falha em seguir uma lei moral, mas sim a uma deficiência no próprio

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código moral implícito. Nietzsche concordaria: perdão é para os fracos. Para essas pessoas, o padrão moral mais elevado é a justiça. As pessoas devem ser castigadas por seus erros. Perdoar, dizem eles, é minar a justiça, que é a recompensa plena e a pu- nição a que ambos os lados acreditam ter direito por causa das atrocidades cometidas pelo outro. N ão se trata de não querer perdoar, ou de achar isso muito difícil. Eles acreditam, de todo coração, que isso seria imoral e errado. Seria subestimar o mal perpetrado. Todavia, esse argumento não vale contra a proposta de Volf e outros, que afirmam que o reconhecimento do mal é o primeiro estágio rumo ao perdão, não uma alternativa a ele.

Terceiro, encontramos o mesmo tipo de impasse em debates em torno da questão sempre polêmica da justiça penal. Com o vimos antes, a opinião pública tem oscilado entre vários polos nas últimas décadas. Crim inosos são malignos e devem ser trancafiados para sempre (ou coisa pior). Crim inosos são víti­mas do “sistem a”, dignos de pena. Crim inosos são doentes e precisam de tratamento. Até que voltamos ao início: as vítimas dos crimes são as verdadeiras vítimas, devemos cuidar delas e ignorar as necessidades (ou direitos) dos criminosos. Alguns países ocidentais têm experimentado vários tipos de justiça restauradora, especialmente nos casos em que (ideia empres­tada pela sabedoria antiga, ainda encontrada em alguns povos mais “primitivos” !) as famílias e os amigos do criminoso e da vítima se reúnem para falar sobre o que aconteceu e decidir o que deve ser feito. N o entanto, esse esforço não fez muito sucesso, sem dúvida porque não chama a atenção dos jornalis­tas, que procuram manchetes chamativas e simples, nem dos políticos, que procuram oferecer esse tipo de manchete aos jornalistas. Poucas pessoas hoje em dia imaginariam que en­contramos um caminho adiante.

De fato, esse é um aspecto delicado do “problema do m al” . O mal não é apenas um enigma filosófico; é uma realidade que

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perambula pelas ruas e destrói as vidas, os lares e os bens das pessoas. Buscar um a solução é mais do que procurar um a res- posta intelectualmente satisfatória sobre o motivo da existên­cia do mal. Implica procurar m eios para que a justiça curadora e restauradora do Deus Criador, que um dia permeará toda a criação, seja trazida à existência, antecipando a realidade fi­nal, para o m undo presente de espaço, tempo, matéria e para as realidades conturbadas da vida e das sociedades humanas. Diante desse desafio, se preocupar com o mal como sendo um problema da filosofia ou da teologia se torna uma atividade desarticulada; é como chorar sobre o leite derramado em vez de pegar um pano e limpá-lo.

Então, o que pode ser feito? Provavelmente, a maioria de nós defenderia um tipo de código penal que considerasse que alguns criminosos são tão implacáveis, alguns deles tão patolo­gicamente incapazes de conviver na sociedade, que dificilmente se regenerarão, e devem, para o bem de todos e pela necessidade de punição, passar a maior parte da vida presos. Porém, os que conhecem um pouco a realidade do sistema penitenciário do mundo ocidental sabem que, junto com tais pessoas, vão para a cadeia muitas outras que cometeram pequenos delitos ou con­travenções e que, se tivessem outro tipo de punição (prestação de serviço comunitário, especialmente em regiões de carência e miséria), poderiam escapar dessa vida, deixar o passado para trás e viver como cidadãos responsáveis e criativos da socieda­de. Porém, toda vez que tentamos fazer isso, inúmeras pessoas nos acusam de fazer pouco caso do crime, de não levar o mal a sério. Esse argumento começa a parecer familiar. Com o vimos no capítulo 1, parece que estamos condenados a oscilar entre os que acham que o mal não tem importância e os que querem aniquilá-lo sempre que notam sua presença.

Esses três exemplos — a economia global, a tensão internacio­nal e inter-racial e a justiça penal — funcionam como indicadores

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para o problema do perdão, que todos enfrentam em nível muito mais pessoal e íntimo. Com o reagimos quando alguém pratica um ato que nos magoa? Alguns responderão de imediato que de- vemos perdoar e usam como base o próprio Jesus e suas duras pa­lavras de Mateus 18. Porém, quando uma pessoa insiste conosco no dever de perdoar, outra imediatamente diz que, se o fizermos, deixaremos o ofensor sem castigo, ou não estaremos levando o mal a sério. Esse é o problema que Volf enfatiza em seu livro.

O que devemos entender, com a. máxima urgência, é que perdão não é o mesmo que tolerância. Ouvimos hoje, o tempo todo, que precisamos ser “inclusivos” ; que Jesus recebeu todo tipo de gente; que a igreja acredita no perdão, e que por isso devemos casar divorciados sem questionar, recontratar funcio­nários demitidos por fraude e permitir que pedófilos conde­nados voltem a trabalhar com crianças... Normalmente não fazemos essa última afirmação, o que mostra pelo menos que retivemos alguns vestígios de bom senso. Perdão não é o mes­mo que tolerância. N ão é sinônim o de inclusão. N ão é indife­rença, seja ela pessoal ou moral. Perdão não significa que não levamos o mal a sério. N a verdade, significa que o levamos bastante a sério. Para começar, implica um a determinação em dar nome ao mal e envergonhá-lo. Sem isso, não haverá o quê perdoar. Além disso, perdão quer dizer que estamos determi­nados a fazer tudo que está ao nosso alcance para retomar um relacionamento adequado com o ofensor depois que o mal for tratado. Por fim, significa que decidimos, em nossa mente, que não permitiremos que o mal determine o tipo de pessoa que seremos. E isso o que significa perdão. E algo difícil de praticar e de receber — e difícil tam bém no sentido de que, um a vez em prática, ele é poderoso; diferente da falsa tolerân­cia, que se limita a seguir a lei da m enor resistência. '

Gostaria de desenvolver um pouco mais esse ponto. Perdoar não significa não se importar, ou achar que não foi importante.

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Eu me importei, foi importante; caso contrário, não teria nada para perdoar, precisaria apenas ajustar minha atitude ao que acon­teceu. (Hoje, ouvimos falar de pessoas que precisam ajustar sua atitude diante das coisas que antes achavam erradas. Porém, isso não é perdão. Se minha atitude para com alguém está errada e precisa ser corrigida, não perdoei ninguém; estou apenas dizen­do que a pessoa não precisa de perdão, e, se alguém precisa, sou eu, por causa de minha postura anterior.) Perdão também não é fingir que algo não aconteceu. Esse aspecto é um pouco mais sutil, porque parte do ato de perdoar é comprometer-me a traba­lhar no sentido de conseguir agir como se não tivesse acontecido. Aconteceu, e perdoar não implica fingir o contrário; é examinar bem o fato de que aconteceu e tomar um a decisão consciente, de vontade moral, de deixar a ofensa de lado para que ela não se torne uma barreira entre os dois lados envolvidos. Em outras palavras, o perdão pressupõe que o que aconteceu foi maligno e não pode ser considerado irrelevante. Fazer isso gera uma raiva reprimida e um distanciamento cada vez maior entre pessoas, que já não confiam umas nas outras. E muito melhor colocar tudo sobre a mesa, seguindo a orientação do Novo Testamento, e lidar com os problemas.

Tudo isso nos leva ao mais desafiador dos capítulos bíbli­cos, Mateus 18. Jesus tom a um a lei judaica sobre queixas con­tra o próximo e a desenvolve para aplicá-la a uma situação entre seus discípulos. Precisamos colocar os versículos 15-20 lado a lado com os versículos 21-22. M uitos agirão conforme um a das passagens, e não conforme a outra, e vice-versa.

Se o seu irmão pecar contra você, vá e, a sós com ele, mostre-lhe o erro. Se ele o ouvir, você ganhou seu irmão. Mas se ele não o ouvir, leve consigo mais um ou dois outros, de modo que “qualquer acusação seja confirmada pelo depoimento de duas ou três testemunhas”. Se ele se recusar a ouvi-los, conte à igreja; e se ele se recusar a ouvir também a igreja, trate-o como pagão

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ou publicano. Digo-lhes a verdade: Tudo o que vocês ligarem na terra terá sido ligado no céu, e tudo o que vocês desligarem na terra terá sido desligado no céu. Também lhes digo que se dois de vocês concordarem na terra em qualquer assunto sobre o qual pedirem, isso lhes será feito por meu Pai que está nos céus. Pois onde se reunirem dois ou três em meu nome, ali eu estou no meio deles.Mateus 18.15-20

Esse texto deixa claro o que o m andam ento para perdoar não significa. N ão quer dizer deixar todo m undo fazer o que bem entender. Mais uma vez, trata-se da “exclusão” de Volf. Se alguém cometeu um erro, mesmo em âmbito pessoal, a provi­dência correta não é fofocar, contar para todo mundo, nem permitir que o ressentimento cresça e se espalhe, muito menos começar a planejar a vingança. O certo é ir conversar direta­mente com a pessoa que errou. Infelizmente, os que melhor fazem isso, segundo minha experiência, são os que sentem pra­zer em dizer aos outros que eles estão fora do caminho certo. Talvez a única qualificação válida para fazer isso seja saber, bem no fundo, que você preferiria mil vezes não ter de fazer isso, e que você precisa orar e pedir graça e coragem antes de tocar a campainha da casa do outro. E fica ainda pior. Se a pessoa se recusar a ouvir o que você tem a dizer, se não enca­rar o problema, você tem de ir com outro cristão; depois, se ainda houver resistência, tem de contar tudo na assembleia do povo de Deus. Isso é muito sério e creio que a maioria das pessoas nem mesmo começou a entender. Provavelmente en­tenderíamos, claro, no caso de uma irregularidade financeira ou talvez de um escândalo sexual no meio da vida da igreja local — embora mesmo nesses casos algumas vezes as pessoas se esforcem ao máximo para olhar para o lado na esperança de que o problema desapareça. Em geral, no entanto, temos nos empenhado mais nesses assuntos atualmente, embora (pobres

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de nós) isso geralmente seja resultado de pressões externas e não de um movimento interno. Porém, o que Jesus insiste é que devemos nos vigiaT, viver com o um a família que não vai dormir enquanto houver algo mal-resolvido entre seus mem­bros. Segundo Paulo, em Efésios 4.26, não devemos permitir que a noite caia e nos encontre com raiva. Isso é difícil; mas é profunda e seriamente sáhio e terapêutico, tanto para nós mesmos quando estamos irados, quanto para aqueles contra quem a ira se dirige.

Todavia, a dura exigência de olhar nos olhos do outro e falar a verdade, mesmo quando sabemos que haverá mágoa, é contrabalançada pela igualmente dura exigência do perdão constante. Repare na profundidade simbólica do que Jesus pede: “Devo perdoar meu irmão sete vezes?” — perguntou Pe- dro. “N ão” — respondeu Jesus —, “sete vezes, não, setenta vezes sete”. O eco seria claro para qualquer judeu do primeiro século que conhecesse as Escrituras. Daniel, no capítulo 9, pergunta ao anjo quanto tempo ainda vai durar o exílio na Babilônia, se será setenta anos, com o Jerem ias previu (9.2). O anjo respon­de que não será setenta anos, mas setenta vezes sete (9.24). Esse é o tempo necessário — note bem — para “acabar com a transgressão, dar fim ao pecado, expiar as culpas, trazer justi­ça eterna”. O exílio foi resultado do pecado de Israel. Deus precisa cuidar não só do exílio de seu povo, mas também das causas da iniqüidade. O que Jesus diz é que a nova era, a era do perdão chegou, e seu povo deve incorporá-lo.

Por trás disso está, ainda, o m andam ento do jubileu em Levítico: quando sete for m ultiplicado por sete, as dívidas serão perdoadas. Em nenhum período da antiguidade de Israel fica claro com o isso foi estabelecido, m as esse m anda­mento representa um a divisão clara e profundam ente con- tracultural na vida social e econôm ica do povo de Deus. E um dos m andam entos que a Igreja deliberadam ente ignorou

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durante m uitos anos e só agora vem redescobrindo, à luz da im ensa desigualdade econôm ica do m undo atual.

Todas essas coisas estão por trás da ordem de orar, na oração do Pai-Nosso: “Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoa­mos aos nossos devedores” . Jesus declara, de forma veemen­te, que a nova aliança está sendo estabelecida em sua própria obra e que seus discípulos devem viver como povo que voltou do exílio, portanto, como um povo perdoador de pecados. A ordem para perdoar não é simplesmente um novo e duro có­digo de ética para moralistas extravagantes tentarem cumprir. Deriva diretamente da situação que Jesus estabeleceu com seu ministério e selou com sua morte e ressurreição. “Este cálice”— disse ele — “é a nova aliança do meu sangue, derramado por vocês e por muitos para perdão dos pecados.” A expiação é mais do que uma transação abstrata, que coloca o perdão de Deus à disposição dos que o desejarem. Foi e é a conquista es- tarrecedora, majestosa, pela qual o mal foi derrotado para que a nova era de Deus começasse. E nós que afirmamos seguir Jesus só podem os fazer tal afirmação se vivermos pela regra do perdão — perdão verdadeiro, não as imitações baratas de que já falei. Só assim encontraremos a resposta cristã adequada ao problema do mal, que não é uma teoria, mas um a vida, que será justificada ou validada na era vindoura, quando o mal for, enfim, abolido por completo.

Tudo isso nos capacita a abordar a difícil parábola do final de Mateus 18, com alguma esperança de sucesso.

“Vejam, então”— prosseguiu Jesus —, “o reino do céu é como um rei que queria acertar as contas com seus servos. Como estava começando a pôr tudo em ordem, um homem que lhe devia dez mil talentos foi trazido até ele. Como não tinha di­nheiro para pagar, o rei ordenou que o homem fósse vendido, juntamente com sua esposa, seus filhos e tudo que ele tinha, para quitar a dívida. Então o servo se jogou aos pés do senhor.

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“Tenha misericórdia de mim” — disse ele —, “e eu vou pagar tudo!”O senhor ficou com muita pena do servo, e o deixou ir em­

bora. Perdoou toda a dívida.Porém, o servo, ao sair, encontrou um colega que lhe devia cem denários. Agarrou-o e começou a enforcá-lo. “Você vai pagar tudo que me deve!” — disse.O colega se prostrou aos seus pés e implorou: “Tenha mise­ricórdia de mim, e eu pagarei tudo!” . Mas ele não aceitou, e mandou o outro para a prisão até que pagasse a dívida.Quando os outros servos viram o que tinha acontecido, fica­ram transtornados. Foram até o senhor e contaram tudo que tinham visto. Então, o senhor mandou chamar o servo e lhe disse:“Você é um patife! Perdoei toda a sua dívida, porque você me implorou. Não acha que deveria ter tido pena de seu colega, assim como tive de você?”O senhor ficou irado e entregou-o aos torturadores, até que pa­gasse toda a dívida. E é assim que meu pai celestial fará com vo­cês, se não perdoarem de todo o coração seus irmãos e irmãs.”M a t eus 18.23-3512

Já ouvi cristãos consagrados dizerem que não devemos ler essa parábola em voz alta ou que se o fizermos, devemos ironi­zar o último versículo, já que esse trecho teria sido uma adição posterior ao que Jesus “queria ter” dito, e que houve uma in­tervenção editorial maldosa e distorcida: “Assim também lhes fará meu Pai celestial, se cada um de vocês não perdoar de coração a seu irm ão”. Será que Deus é assim mesmo? Com o ele decide punir as pessoas, se já as perdoou?

N o entanto, essa objeção falha em perceber como a lógica hum ana interior realmente funciona. Jesus não está apresen­tando um m andam ento arbitrário e abstrato para depois di­zer que os que não conseguirem passar no teste de Deus não serão perdoados. Ele não colocou a barra moral em um a altura

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impossível de transpormos para depois avisar que Deus ficará bravo para sempre se não conseguirmos saltar. Ele está cha­m ando a nossa atenção para um fato sobre o universo moral e a natureza humana. Está dizendo que a nossa capacidade de receber perdão e a nossa capacidade de perdoar são um a coisa só. Se ativarmos uma, ativamos a outra. Deus não está sendo arbitrário. Se você é o tipo de pessoa que acusa o vizinho pelas mínimas coisas e fica irritado com ele até que tenha resolvido a situação (talvez por meio da vingança), você é também um a pessoa incapaz de abrir o coração para receber o generoso per­dão de Deus. O mais provável é que você nem mesmo admita que precise dele.

Aqui, voltam os ao ponto que com entei antes sobre o perdão: ele liberta não apenas o perdoado, mas tam bém o que perdoa. Provavelmente, todos tenham os exemplos disso. Você pisa em meu pé e eu o perdoo. Você fica livre de todo o peso da culpa, de qualquer sensação de que ainda estarei com raiva quando nos encontrarm os am anhã, de que o tra­tarei de forma diferente no futuro ou de que tentarei acertar as contas com você. Porém, tam bém liberto a m im m esm o de ir me deitar com raiva e de me debater na cam a à procura de um a vingança. Ao percorrermos a escala que vai desde um pisão no pé até ofensas mais graves, o perdão podé significar não apenas que eu liberto você da ameaça de minha ira e suas conseqüências, mas tam bém que me livro de passar o resto da vida consum ido por ira, amargura e ressentimen­to. E, mais, faz com que am bos desfrutem os da liberdade de prosseguirm os em um relacionam ento contínuo de alegria e respeito m útuo.

Claro que tudo isso pode soar como mero egoísmo. Pode-se entender que todo o meu esforço para perdoar o outro não pas­se de um esforço para tornar minha vida emocional um pouco mais confortável. Porém, há um segredo. Nada adianta tentar

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perdoar alguém apenas para aliviar suas emoções. N ão funciona. O resultado pessoal só vem como resultado do perdão verdadeiro que foi oferecido. De outra forma, estaremos apenas diante de jogos emocionais autocentralizados, que acabarão nos prejudi­cando. Tentar amar alguém apenas para receber amor significa que não se ofereceu amor, e que também não haverá amor em troca. Se você percorrer esse caminho, mais cedo ou mais tarde estará em uma situação pior do que estaria se não tivesse feito tal escolha.

O mandamento de perdoar uns aos outros, então, é a ordem para trazer ao presente o que está prometido para o futuro, ou seja, o fato de que no novo mundo de Deus todos viveremos bem e todas as coisas estarão bem. Ainda será possível as pessoas recusarem o perdão — tanto dá-lo quanto recebê-lo —, mas elas não terão mais o direito ou a oportunidade de subjugar Deus e seu mundo futuro, de fazer o universo moral girar em torno de seu próprio mau humor. A única maneira de trazer os ele­mentos do mundo futuro de Deus a este mundo presente é por meio das devidas disciplinas espirituais. Isso não “acontece auto­maticamente” . Nenhum de nós pode fazer isso, como dizemos, “naturalmente” . Precisamos aprender como fazê-lo, e tem sido difícil porque a Igreja não tem ensinado essa lição. É por isso que precisamos entender melhor o relato bíblico da escatologia inaugurada, da vida no presente à luz do futuro. Isso é difícil de entender no começo, mas fica mais fácil à medida que tentamos. Viver dessa forma também exige muito esforço: oração, reflexão, atenção moral ao estado de nosso coração e mente, e o esforço moral para pensarmos e nos comportarmos de determinada for­ma quando “a reação natural” seria algo bem diferente.

A penosa e multifacetada oferta do perdão deveria ser o alvo máximo quando pensam os nos problemas do imperia­lismo global e da dívida internacional, da justiça penal e da punição, da guerra e dos conflitos internacionais. Há, em cada

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uma dessas esferas, a tarefa de dar nome ao mal e encontrar a forma adequada de resistir a ele, e, ao mesmo tempo, trabalhar pela remissão, reconciliação, restituição e restauração. M inha esperança é que os que estão começando a ver as questões sob essa luz pensem mais nelas e reconheçam as muitas formas como esse elemento central e vital do evangelho cristão clama para ser colocado em prática, não apenas em nôssa vida pes­soal e na Igreja, mas tam bém na vida pública e política, nos âmbitos nacional e global.

Mais um comentário deve ser feito aqui. C om o aplicar a nós mesmos a oração, no final do Pai-Nosso, para sermos li­bertos do mal? Pode ser que eu creia que Deus me perdoou por meio da morte de Jesus. Pode ser que eu comece a aprender a perdoar o próximo. Porém, como perdoar a mim mesmo? Esta é outra questão.

Jesus, evocando o Antigo Testamento, afirmou que deve­mos amar o próximo com o a nós mesmos. O primeiro aspec­to a notarm os é que ele não se referia a sentimentos. Com o ocorre muitas vezes no pensamento judaico e cristão, “am or” é primeiro e acima de tudo uma ação, não um sentimento. Os sentimentos costumam seguir nossos atos, e não (como defendem certos pensadores modernos) o contrário. Portanto, "amar a mim m esm o” , nos ensinamentos de Jesus, não sig­nifica o que os movimentos terapêuticos modernos sugerem quando falam de “sentir-se bem com você m esm o” . Isso pode, ou não, acontecer. “A m or” significa pensar em alguém, cuidar dessa pessoa, perceber suas necessidades antecipadamente, da mesma form a que você pensaria com cuidado e planejaria com sabedoria sua própria vida.

Os cristãos m oralistas algumas vezes chamam a atenção para o fato de que é fácil, quando descobrim os que som os cham ados a amar uns aos outros, excluir a nós mesmos do quadro, im aginando que não som os mais im portantes e

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desenvolvendo uma autoim agem negativa. Eles com entam , com razão, que para amar o próxim o como a nós m esm os precisam os primeiro nos amar, para saberm os qual deve ser o padrão! Esse ponto é bem conhecido e já foi m uito explo­rado. Porém o mesmo se aplica, talvez com mais sutileza, à questão do perdão. Todos com experiência pastoral já ouvi­ram alguém dizer: “Bem, sei que Deus me perdoa, mas eu não consigo me perdoar!” . Podemos entender tal afirm ação. Porém, é exatamente nesse ponto que a oração “Livra-nos do m al” vai direto ao coração, a imaginação e as emoções de um a pessoa, ou, se você preferir, a alma, que é realmente um a forma de m ostrar “quem sou na presença de D eus” . É necessário ter disciplina espiritual para perdoar os outros, com o afirmei há pouco. É preciso um a disciplina espiritual diferente, em bora relacionada, para perdoar a m im mesmo, para que ecoe em meu coração a oferta alegre e generosa de perdão que D eus me faz e que, caso eu seja afortunado, meu próxim o tam bém me fará. A qui, tam bém (estamos es­tabelecendo o futuro final de Deus, em que saberei que sou com pletam ente am ado e aceito por causa da obra de Jesus e do Espírito), essa sensação de valor próprio surge, não ao examinar a m im mesmo e descobrir que não sou tão ruim assim , mas ao contemplar o am or de D eus e descobrir que nada pode se colocar entre nós. E a essa aceitação atônita e agradecida da graça e do am or gratuitos de Deus que algu­mas tradições se referem ao evocar a linguagem paulina sobre “justificação pela fé” .

Isso é básico para a saúde mental, emocional e espiritual. Parte da disciplina de receber o perdão de Deus, de treinar a capacidade de receber perdão como resposta ao evangelho, consiste no fato de que, ao fazermos isso, ativamos nossa capa­cidade interior e, assim, aprendemos o segredo não apenas de aceitar a nós mesmos — isso é um aspecto, reconhecer que sou

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um a pessoa com a qual estou aprendendo a conviver —, mas também de perdoar a nós mesmos — algo um pouco diferente. Perdoar a mim mesmo significa reconhecer que realmente pe­quei, magoei e prejudiquei os outros, a mim mesmo e a Deus, a cuja imagem fui criado, e que porque ele me perdoa preciso aprender, sob a orientação dele, a me perdoar também. Claro que, como em todas as outras facetas do perdão que já vimos, isso não significa fingir que o que fiz não foi tão prejudicial assim, ou que não aconteceu, ou que não foi importante. Foi ruim, aconteceu e foi importante. Porém, se Deus lidou com isso e me perdoou (e, havendo mais pessoas envolvidas, fiz o melhor que pude para lidar com a situação), então faz parte da autêntica vida cristã que eu aprenda a me perdoar também.

Claro que, como estamos falando de perdão, não de tole­rância nem de indiferença, isso mais uma vez implica exclu­são e aceitação. Significa dizer não a qualquer coisa que tenha acontecido para poder dizer sim a Deus e seu perdão. C om certeza isso envolverá oração, adoração e, talvez, o acompa­nhamento de um conselheiro sábio, mas esse é o caminho que som os chamados a trilhar, o caminho para a saúde espi­ritual. Os que insistem em se apegar ao sentimento de culpa facilmente se tornam aqueles que transferem esse sentimento para os outros, já que o fardo se torna pesado demais: Parte da resposta à oração “Livra-nos do m al” consiste em aprendermos a perdoar a nós mesmos, por nossa causa e por causa dos que nos cercam.

Aonde tudo isso nos levou com o problema do mal? Afirmei que o problema do mal, como concebido pela filosofia clássi­ca, não tem solução, porque tende a postular outro deus que não o Deus revelado em Jesus Cristo. Ao introduzir a Bíblia na

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equação, principalmente os relatos de Jesus nos Evangelhos, o quadro se tom a mais complicado, porém mais rico, e o proble­ma se reformula.

N ão somos informados, pelo menos não de forma que sa­tisfaça nosso questionamento, sobre como nem por que existe o mal primário na criação maravilhosa, bela e essencialmen­te boa de Deus. Creio que um dia entenderemos, mas hoje somos incapazes de compreender, assim como um bebê no ventre materno não possui as categorias de pensamento neces­sárias para entender o m undo. Porém, é-nos prometido que D eus fará um m undo em que tudo será bom , tudo dará certo, o perdão será um a das pedras fundam entais e a reconciliação, o cimento que manterá tudo unido. E recebemos essa pro­messa não com o um falso otimismo, nem como algo em que devemos acreditar mesmo sem evidência alguma. A promessa vem por meio de Jesus Cristo, sua morte e ressurreição, e pelo Espírito, por meio de quem a vitória de Jesus se torna realida­de em nosso m undo e em nossa vida. Q uando entendemos o perdão que flui da obra de Jesus e do Espírito como o fato estranho e poderoso que ele é, começamos a perceber que o perdão que Deus nos concede — e o perdão que concedemos aos outros — é a faca que corta as amarras que ainda nos ligam ao pecado, à ira, ao medo, à recriminação e à morte. N o fim,o mal não terá nada a dizer, porque a vitória da cruz será com­pletamente estabelecida.

Voltamos ao ponto de partida. N o novo céu e nova terra não haverá mais mar, nem caos, nem monstros surgindo do abismo. E, com o em toda a escatologia cristã, a melhor de todas as notícias é que não precisamos esperar o futuro para começar a viver a libertação do mal. Som os convidados, con­vocados, intimados a começar essa vida no presente. Suspeito que os problemas que isso nos apresenta — questões imediatas de perdão a nós mesmos e ao próximo, e questões práticas e

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políticas de se trabalhar por um m undo onde as pessoas não queiram mais ser terroristas, não escravizem mais umas as ou­tras com dívidas inimagináveis, onde aqueles que correm risco por causa de desastres naturais recebam proteção especial das autoridades civis — sejam os verdadeiros problemas, e que as questões filosóficas funcionem apenas como uma cortina de fumaça atrás da qual tentamos nos esconder. Suponho, por­tanto, que quanto mais aprendermos o significado do perdão em nossa vida, quanto mais percebermos a profunda verdade teológica de que tudo acabará bem, mais seremos capazes de antecipar essa realidade, mesmo em meio ao nosso m undo sofredor.

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N o t a s

1. Veja os Salmos 24.2; 33.7; 46.2; 65.5,7; 66.6; 68.22; 74.13; 89.9; 95.5; 98.7; 104.25.

2. Veja especialmente Susan Neiman, O mal no pensamento moderno ; uma históriaalterna tiva da filosofia.. R io de Janeiro; Difel, 2003.

3. Walter Wink, Naming tfie powers. Philadelphia, PA: Fortress Press, 1984; Unmask- ing the powers. Philadelphia, PA: Fortress Press, 1986; Engaging the powers. Minne- apolis, MN: Fortress Press, 1992.

4. N. T. Wright, Jesus and the victorj o f God, série Christian Origins and the Questionof God. London: SPCK, 1996.

5. Veja nota 4.

6. N. T. Wright, The challenge o f Jesus. London: SPCK, 2000.

7. General dos Estados Unidos que lutou na Guerra Civil e foi morto em uma bata­lha contra tribos indígenas -violentas. (N.T.)

8. Desmond Tutu, No future m thou t forgiveness; a personal overview of South Africa’s Truth and Reconciliation Commission. London: Rider, 2000.

9. Miroslav Volf, Excltuion. and embrace; a tbeological exploration of identity, other- ness and reconciliation. Nashville, TN: Abingdon Press, 1994.

10. L. Gregory Jones, Embodjmg forgiveness; a theological analysis. Grand Rapids, Ml:Eerdmans, 1995.

11. Veja nota 8.

12. N. T. Wright, Matthew for everyone; parte 2, capítulos 16-28. London: SPCK, 2002.

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I n d i c e d e a s s u n t o s

AAbraão, cha mado, 41 -48,5 0-51 aceitação (conceito), 119,123 Addison, Joseph, percepção

sobre o mal, 18 Adorno,Theodor, 28 adultério, 22 akrasia, 33 Al-Qaeda, 22,25amor, 143; dentro da expiação, 84,88 amorreus, 51Antigo Testamento: sobre o mal,

39-65; poderes, 97; veja também livros individuais do Antigo Testamento em "Livros bíblicos discutidos"; Israel,42,50-63,68, 71,76-89,97

arrependimento,falta de arrepen­dimento universal, 130

arte, e a percepção da nova criação sem o mal, 113-114

Assíria, 51

assistência médica, 109 Auschw itz,com o desafio à

doutrina do progresso, 16,21 autoperdão,com o libertação

do mal, 143-144 autoridade legítima, 112 autoridades humanas, subordi­

nação à autoridade de Jesus, 108-110

BBarth, Karl, sobre a doutrina do

progresso, 20 bem: sua ausência gerando o mal,

101; e o mal, 34; nos Evange­lhos, 73

bezerro de ouro, adoração, 50 Blair,Ton/,9,15 Bonhoeffer, Dietrich, 52

budismo, sobre o mal, 30

buracos negros, 97,101

Bush, George W., 9,15

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cCanaã, conquista, 51

caos, simbolizado pelo mar, 13-14,72

capitalismo, legitimidadequestionada dentro da nova criação, 94

Carter, Sydney,84

castas, sistema, 109-110

Ceia do Senhor, teologia da expiação, 70,81 -82,86

censura, 22-23

céu, veja nova criação

Christus Victor, 85,102

Comissão da Verdade e da Reconciliação, 119

com unhão à mesa, nos Evangelhos, 75

Cordeiro de Deus, vence o pecado, 123-124

Corte Criminal Internacional, 112

criação: escravidão, 64;envolvimento de Deus, 35; restauração, 63-65; veja também mar

cristianismo, resposta ao mal, 35-37

crucificação, teologia da expiação, 82-83

cruz, 85-89; e o mal, 9-11,15-16

cultura de acusação como resposta ao mal, 26

curas, teologia da expiação, 74-75, 81-86,93

DDarwin, Charles, 20

Davi, monarquia e o problema do mal, 53

democracia europeia, 31-32

democracia, falhas, 31 -32,35,39

demônios, 33; nos Evangelhos, 72

desconstrução (desmascaramen- to), 27-28

desum anização,40

Deus:ação sobre o mal, 39-40, 42-48; ação sobre o mal por meio de Israel, 49-51; e o mal, 19,25; envolvimento na criação, 37; justiça, 105, 108-111,118; reino, 71,83; e a derrota do mal, 68; propósitos com relação à morte de Jesus, 67; retidão e justiça, 55-58; soberania, 13-14,62-63; vitória sobre o mal, 121-130

Deutsche Christen, partido, 96

dilúvio, 37,45,47

dívida internacional, 22,109-110;perdão, 141-142

Donne,John,80

Dostoievsky, Fyodor, 62; sobre a doutrina do progresso, 21

Doutor Fausto (Mann), 33

dualismo, dentro da nova criação, 94-96

EÉden, expulsão da humanidade,

46-48

Egito, julgam ento sobre,49-50

ego, desconstrução do, 28-29

"eixo do mal';9

Eliot,T.S., 122

Epicteto, 29

Errata (Steiner), 30

Page 149: O Mal e a Justiça de Deus - Mundo Injusto, Deus Justo- N. T. Wright

escatologia inaugurada, 107-108; e o perdão, 130-142

escatologia: e a expiação, 85,93- 94; veja também escatologia inaugurada

Estados Unidos, democracia, 32

ética cristã, 107

eucaristia, teologia da expiação, 70,82,84-86

evangelho (conceito), 71

Evangelhos: teologia da expiação, 69-78,81-83,91,117; vejo também Novo Testamento

exclusão (conceito), 118,136,144

exílio: e o m al,43,47,56;simbolismo usado na teologia da expiação, 83-84

existencialismo, 28

exorcismo, 98

expiação, 138; Christus Victor,85,102; crucificação, 82-83; e escatologia, 92-93; e o mal, 67-69,84-89,91 -92; nos Evangelhos, 69-74,87-88,91,117; veja também Jesus

Ffariseus, 71

fator livre-arbítrio, 65

Filho do Homem, 58-59,68; nos Evangelhos, 76,86-87

filosofia europeia e o problema do mal, 19-20

fraqueza moral, 131

Freud, Sigmund,27;sobre a redenção, 21

furacão Katrina (agosto de 2005), 10,16,25,108-109

GGetsêm ani,63,65

Grã-Bretanha, democracia, 32

guerra,e o mal, 17

HHegel,G.W. F.,e a doutrina

do progresso, 19

Heisenberg,W. K., 102

herodianos, papel nos Evangelhos, 117-118

hinduísm o,sobre o m al,30,31

história:função no Antigo Testamento, 40-41,117-118; na expiação, 84-85

holocaustoe pós-modernidade,28

humanidade individual e o mal, 42

hum anidade,conquista por meio do perdão, 119-120

Iidentidades corporativas, perigos,

100-101 idolatria, 40,99-101

igreja: papel na expiação, 88,92; com unidade dos que vencem o mal, 123-124; perdão na, 136-137

ilum inism o:efeitos sobre a teologia da expiação, 69; e o mal, 39

imaginação, uso para a percepção da nova criação sem o mal, 112-114

império global e o mal, 17

Page 150: O Mal e a Justiça de Deus - Mundo Injusto, Deus Justo- N. T. Wright

império, legitimação questionada dentro da nova criação, 96

instituições corporativas, possessão, 34

Iraque, guerra, 9

Irmãos Karamazov, os (Dostoievsky), 21,62

Islam, sobre o pecado, 31

Israel: corrupção como vista nos Evangelhos, 71; identificação com Jesus, 76-78; e o problema do mal, 42-43,48-53,56-58,62, 68-69,91,118-119; visões do mar, 14

JJacó, 48-49

Jesus: autoridade superior às autoridades do mundo, 108- 110; crucificação, 65; morte e seus efeitos, 121 -122; morte à luz dos propósitos de Deus, 67; ministério público como reflexão sobre a expiação, 74- 78; ressurreição 79-80,91-92, 103-104; tentado por satanás, 97,99; veja também expiação

Jones, L. Gregory, sobre o perdão, 119

José e a providência divina, 48-49

Jubileu, mandamento, 137

judeus revolucionários, nos Evangelhos, 71-72

julgam ento, representação por meio do mar, 13-14

Julian de Norwich, 122

Jung, Carl, e a projeção do mal, 99

justiça penal: e o mal, 17;

e o perdão, 132,141; à luz da justiça de Deus, 110-111

justiça restauradora, 111,132

justificação pela fé, 143

justos, sofrimento, 54,60-61

LLewis, C. S.: sobre a vitória de Deus

sobre o mal, 124-125; sobre as percepções de satanás, 98-99

libertinagem sexual, 22

Lisboa, terremoto (Dia de Todos os Santos, 1755); e percepções sobre o mal, 18

"Little Gidding" (Eliot), 122

Mmal moral, 16,19

mal natural, 16,19

mal, 39,57-58,117;ausência na nova criação, 93-96,102-106,112-114; análise do, 30-35; e a expiação, 67-69,84-92; tentativas de ignorá-lo, 21 - 22; respostas cristãs, 35-37; percepções contemporâneas sobre, 18-27; e a cruz, 9-11,15-16; libertação por meio do perdão, 117-121; efeito- surpresa, 23; exclusão da nova criação, 121,124-129,144-146; vitória de Deus sobre o, 121,129; identificação como meio para a nova criação, 118- 119; reações inadequadas, 24-27; papel de Israel, 42-43, 48-53; teologia do Antigo Testamento, 39-65; superado

Page 151: O Mal e a Justiça de Deus - Mundo Injusto, Deus Justo- N. T. Wright

pelo perdão, 144-146; superado pela ressurreição, 79-80; percepções sobre,14-17; poderes, 96-102; projeção d o ,2 6 ;aspectos psicológicos, 32; realidade, 133; nos Evangelhos,73; na pós- modernidade, 27-30

malthusianismo e o mal, 19-20

Mann,Thomas, sobre o m al,33

mar Vermelho, travessia, 14

m ar:com o caos, 13-14;como representação do mal, 10- 11;sujeiçãoa Deus, 13-14; simbolismo nos Evangelhos,72

Marx, Karl, 27; sobre a redenção, 21

marxismo, sobre o m al,31

Messias: nos Evangelhos, 76; papel na expiação,84-85

M o ltm annjürgen, 118

m orte,80; tentativas de ignorar, 24; maldição de D eus,46; derrota na ressurreição, 105; com o alvo de sata nás, 98; dentro dos Evangelhos,72

mulheres, papel nos Evangelhos com o seg uidoras de Jesus, 71-73

m undo contemporâneo, percepção do mal, 18-27

NNeiman, Susan, 19

Nietzsche, Friedrich, 27

nova criação: na ausência do mal, 94-96; antecipação, 106-108; e a libertação do mal, 144-146; estabelecida pela ressurreição de Jesus, 92-93; com o perdão

dos pecados/ressurreição, 80; pa pel do mar, 13,16; sem o mal, 102-106,112-114,117, 121,124-129

Nova Jerusalém, 103

Nova Orleans, atingida pelo furacão Katrina, 10,16,25,109

Nova Zelândia,justiça restauradora na, 111

Novo Testamento: teologia da expiação, 79; poderes no, 97; veja também Evangelhos; livros individuais do Novo Testamento em "Livros bíblicos discutidos"

0oração do Pai-Nosso, perdão

na, 138

oração, 118; com o antecipação da nova criação, 106-108

Organização das Nações Unidas,112

Ppanteísm o,eo mal, 19

parábola do servo que não perdoou, 131,138-139

Parker,Charlie, 28

Paulo: sobre a conquista da justiça, 68; teologia da expiação,79-80; sobre a libertação do mal, 127; sobre o perdão, 137; sobre idolatria, 101; sobre Israel à luz dos Evangelhos, 71; sobre a nova criação, 103-106,114,121; veja também cartas individuais em "Livros bíblicos discutidos"

Page 152: O Mal e a Justiça de Deus - Mundo Injusto, Deus Justo- N. T. Wright

pecado original, recusa da pós-modernidade em aceitar, 28-29

pecado, usado por satanás, 97-98

pecados, perdão, 80-81,86-87

Peck, M. Scott, sobre o mal, 32,33

pedofilia, 23-24,134

peirasmos, 78

Pentecostes e o problema do m al,44

perdão, 17,115; como libertação do mal, 117-121,127-129,143- 144;e escatologia inaugurada, 130-142; como meio pelo qual Deus derrota o mal, 122,126- 127; e a superação sobre o mal, 144-146

perversos: mal, 40;julgam ento, 49-50

platonismo, sobre o mal, 30

poder político, prática à luz da justiça de Deus, 110

poderes, 96-102; papel nos Evangelhos, 117-118

pós-modernidade e o mal, 19, 27-30,39

possessão,de instituições corporativas, 34

Povo da mentira, o (Peck), 32

Primeira Guerra Mundial, 95; desafio à doutrina do progresso, 21

princípio da incerteza, 102

progressismo, dentro da nova criação, 95-96

progresso, doutrina, 19-20

projeção, perigos ao se pensar sobre o mal, 99-100

psicologia e o mal, 32

Pullman, Philip, 113

punição e o mal, 17

QQuarta-feira de Cinzas (Eliot), 122

Quatro Quartetos (Eliot), 122

Rredenção: visões não-cristãs,

21; negada pela pós- modernidade, 30

reino de Deus, 71,83

relações internacionais, prática à luz da justiça de Deus, 111-112

ressurreição: e a expiação, 91 -92; derrota da morte, 103-104; e o perdão, 127-130; como a superação do mal, 79-80

restauração comunitária por meio da expiação, 93

Roma, papel nos Evangelhos, 71, 117

ssacerdócio em Jerusalém,

corrupção mostrada nos Evangelhos, 71

saduceus, papel nos Evangelhos, 117

sala do trono, em Apocalipse, 123

santidade, 118, com o antecipação da nova criação, 107-108

satanás, 40,62-63,98-100; nos Evangelhos, 72

seres humanos: e a terra, 44-48; responsabilidade, 30; pecado, 42,62

Page 153: O Mal e a Justiça de Deus - Mundo Injusto, Deus Justo- N. T. Wright

Serm ão do Monte, 76,77

Servo Sofredor, 55-56,58-59,62-63, 68-69,83,86

setembro, 11,2001,9-10,16,25

Soham ,assassinatos (2003), 16,23

Soljenítsin,Alexander, sobre o b e m e o m a l,3 4

Steiner,George,30

suicídio, 29

Ttemplo, purificação, 68,76,81

teodiceia,41

Terra Devastada (Eliot), 122

terra e seres humanos, 44-48

terra, veja criação; nova criação

terrorismo, 21-23; perdão, 132, 141-142

tolerância,distinção entre perdão, 134

Tomás de Aquino, 101

torre de Babel, 43-47

tsunami (26 de dezembro de 2004), 10,16

Tutu, Desmond, sobre o perdão, 119-122

tzaddik (justiça), 56

uuniversalismo, 125

Vverdade, ataques à, 27-28

Volf,Miroslav, sobre o perdão como libertação do mal, 118, 123,131,134

wWill ia ms, Bernard, sobre

a verdade, 27-28

Wink,Walter, sobre identidades corporativas e seus perigos, 100-101

YYHWH, veja Deus

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L i v r o s b í b l i c o s d i s c u t i d o s

Antigo Testamento e Apócrifos

Gênesis: sobre o mal,40-48,52; Israel e o mal,48-53;e a imagem da nova criação, 113; satanás,97

Êxodo 49-50; como padrão para a nova criação, 105;simbolismo usado na teologia da expiação, 83-84

Levítico: sobre mandamento do jubileu, 137

Juizes: sobre Israel e o mal, 52-53

1 Crônicas: sobre satanás,61,97

Jó: sobre o mal,43,54-56,60-62,68; satanás, 97

Salmos: sobre a libertação do mal, 127,128; sobre o mal, 40,51-55; e o mar, 14

Isaías: sobre a providência de Deus contra o mal, 51-52; sobre a retidão e a justiça de Deus, 55-57,62-63

Daniel: sobre o mal, 58-59; e o perdão, 137-138; sobre satanás, 97;e o mar, 14

Zacarias: sobre satanás, 97

4 Esdras, 105

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Novo Testamento

Mateus: teologia da expiação, 76-77; sobre o perdão, 131,135-140

Marcos: teologia da expiação, 70,75-76

Lucas: teologia da expiação, 70

Romanos: sobre a libertação do mal, 127; sobre autoridade legítima, 112; sobre a nova criação, 105-107,112,114

Efésios: sobre o perdão, 137

Colossenses: sobre a vida santa, 107

Apocalipse: nova criação em, 102-103,106,121,123-124; papel do mar na nova criação, 13,17

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N. T . W R I G H T é u m dos mais conhecidos e respeitados estudiosos do Novo Testamento daatua lidade. Bispo anglicano de Durham, na Inglaterra, foi professor das universidades de Cambridge e Oxford por v in te anos e é professor v is itante de universidades como Harvard D iv in ity School, Universidade Hebra icade jerusalém e Universidade Gregoriana em Roma, entre outras. É art icu l is ta de jornais como The Times, The Independent e The Guardian, e autor de mais de quarenta livros, entre os quais Simplesmente Cristão (Editora Ultimato).

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O M A L N ÃO É U M A P R E O C U P A Ç Ã O A P E N A S

dos cristãos. Todos os dias ouvimos sobre maus-tratos, violência, injustiça, terrorismo, enfim , o sofrimento,

da boca dos políticos e da imprensa. Se antes acreditávam os

ingenuamente no progresso humano, hoje não sabemos o que fazer.

Nossas perguntas sobre Deus e a natureza do mal dem andam

um a exp licação m adura, profunda e esclarecedora. O que Deus fez (se é que fez ou faz a lgum a coisa) e o que nós devem os

fazer? Como a Bíblia , Jesus Cristo , a h istó ria do Antigo e do Novo Testam entos respondem ao problem a do mal?

»«

a O Mal e a Justiça de Deus trata de uma das mais profundas questões da existência humana. Uma brilhante síntese de como o mal é visto

na Bíblia e no pensamento cristão. Para N. T. Wright, o sofrimento é

um pilar estrutural da realidade e do propósito de Deus.”

Lam in Sanneh , Universidade de Yale

í4 N. T. W right apresenta o mal a partir de uma visão profundam ente convincente dos ‘novos céus e nova terra ’, a realidade final da

qual já podemos com eçar a participar. Um livro que todo cristão

consciente deve ler.”

John W ilson, ed itor de Books & Culture